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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Renato Tadeu Veroneze AGNES HELLER: indivíduo e ontologia social - fundamentos para a consciência ética e política do ser social MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Renato Tadeu Veroneze

AGNES HELLER: indivíduo e ontologia social - fundamentos para a

consciência ética e política do ser social

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Renato Tadeu Veroneze

AGNES HELLER: indivíduo e ontologia social - fundamentos para a

consciência ética e política do ser social

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço Social, sob orientação da Profª. Drª. Maria Lúcia Martinelli

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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À minha secretária do lar Ana Maria dos Reis dos Santos. Sem ela, não seria

possível a realização deste mestrado.

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AGRADECIMENTOS

A todos e todas que de alguma forma fizeram parte de mais esta fase de minha vida. A Profª. Drª. Maria Lúcia Martinelli pela confiança e amizade. A todos os professores e professoras da PUC/SP que compartilharam seus conhecimentos e estiveram conosco durante a realização desse mestrado. E a CAPES ao UNIFEG pelo suporte financeiro.

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“Toda filosofia oferece uma forma de vida; toda filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de outra forma de vida”.

Agnes Heller

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RESUMO

Agnes Heller, indivíduo e ontologia social: fundamentos para a consciência

ética e política do ser social

Renato Tadeu Veroneze

Esta pesquisa busca investigar a contribuição do pensamento de Agnes Heller,

formulado entre os anos de 1956 e 1978, para a construção da consciência ética e

política do ser social. Agnes Heller, nome de projeção internacional na filosofia

contemporânea, foi aluna e assistente de Georgy Lukács, principal expoente

marxista, sobretudo, no campo da Estética e da Ontologia do Ser Social. Heller foi

considerada por Lukács como o membro mais produtivo do grupo de intelectuais

denominado “Escola de Budapeste”. Este grupo tinha por objetivo formular uma linha

de pensamento baseada nos escritos teórico-filosóficos de Lukács e fazer uma

releitura da obra marxiana, no sentido de uma correta compreensão do método em

Marx. Até 1978 Heller permaneceu na Hungria e produziu obras que expressavam o

tipo de orientação dessa escola. Nesse período, comungava com as ideias de se

mestre e da proposta marxista. As perseguições ideo-políticas da Hungria, fizeram

com que Heller saísse de seu país natal, indo residir na Austrália juntamente com

Ferenc Fehér. Em 1986, vincula-se a cadeira de Hannah Arendt de Filosofia e Ciência

Política da New School for Social Research, em Nova Iorque e mantém até os dias

atuais em profícua atividade nos Estado Unidos e na Hungria. Suas obras, escritas

até 1978, ou seja, em sua fase marxista, trazem importantes contribuições para a

consolidação de consciência ética e política do ser social, tendo como base a

ontologia do ser social, a sua teoria sobre a vida cotidiana e de seus escritos

direcionados à consciência ética e política. Acreditamos que Heller buscou

complementar o “grande projeto” de Lukács de escrever uma Ética na visão marxista,

portanto, partimos da hipótese de que sua teoria aponta na direção de uma filosofia

da práxis e da vivencia de uma vida cotidiana não-alienada. Buscamos, desse modo,

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compreender os principais fundamentos de sua teoria enquanto proposta para um

modo de pensar, ser e agir consciente na e para a vida cotidiana, nas relações e

inter-relações sociais, na proposição ética e política da vida social, rumo ao sujeito

revolucionário individual e coletivo. Para tanto, temos como objeto de pesquisa o

reconhecimento da individualidade enquanto condição sine qua non para a

consciência ética e política do ser social.

Palavras chaves: individualidade, ser social, consciência ética e política.

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ABSTRACT

Agnes Heller, individual and social ontology: fundamentals for the ethical and

political conscience of the Social Being

Renato Tadeu Veroneze

This research intends to investigate the contributions of Agnes Heller’s thoughts,

which was formulated between 1956 and 1978, to the construction of the social been

ethical and political consciences. Agnes Heller, a name with an international

projection in the Contemporary Philosophy, was a Georgy Lukács’ pupil and

assistant, who was the greatest marxism exponent, mostly in the Esthetics and the

Ontology of the Social Being areas. She was considered by Lukács the more

productive member of group called “School of Budapest”. The objective of this group

was to creat a line of thought based on Lukács’s theoretical and philosophical

writings, re-read Marxian work to heve a correct understanding in Marx’s method.

She remained in Hungary until 1978 and produced some works in which we see

expressed the Budapest school’s kind of guidance. The ideo-political persecution in

Hungary, Heller did that come out of his native in 1978, to reside in Australia with

Ferenc Fehér. In 1986 she was bound to Hannah Arendt’s post of Political Science

and Philosophy at the New School for Social Research, in New York, and she is until

now in fruitful activities in the United States of America and Hungary. Her works

written until 1978, therefore, during the Marxist time, bring important contributions to

consolidate the ethical and political conscience of the social being, having for basis

the ontology of the social being, its theory about everyday life and its writings direct to

the ethical and political conscience. We believe Heller tried to complete the “big

project” of Lukács of writing an Ethics in the Marxist’s point of view, so we set from

the hypothesis that her theory points towards a praxis philosophy and non-alienated

everyday life experiences. We seek to understand the main fundaments of her theory

as a proposal for a way of thinking, being and conscientious acting at and to

everyday life, in the social’s relations and inter-relation, in ethical and political’s

proposition of the social life, towards the collective and individual revolutionary

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subject. Therefore, our research objective is the recognition of individuality while the

sine qua non condition for ethical and political conscience of the social being.

Key-words: individuality, social being, ethical and political conscience.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14

I. A “INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER” SOCIAL ................................................. 34

1.1. Aspectos metodológicos ..................................................................................... 34

1.2. Elementos introdutórios: aspectos conceituais ................................................... 51

1.3. “Ser ou não ser, eis a questão” .......................................................................... 61

1.4. A “babel” capitalista dos tempos modernos: “salve-se quem puder” .................. 74

1.5. Reificação do ser social em tempos modernos: mecanização da vida ............... 83

1.5.1. Alienação e reificação no capitalismo: subserviência ao capital .................... 87

1.6. A representação dos “papéis sociais” no palco da vida cotidiana ...................... 98

2. PANORAMA DA VIDA COTIDIANA ........................................................................ 105

2.1. Indivíduo social e cotidiano: a vida como ela é .................................................. 105

2.2. Estrutura da vida cotidiana: o palco da vida ....................................................... 134

2.3. O cotidiano e o não-cotidiano: o ser ou não ser da mesma questão .................. 143

2.4. Valor e necessidades: duas faces da mesma moeda ........................................ 150

3. A ESSÊNCIA DE UMA VIDA FILOSÓFICA ............................................................ 159

3.1. “Um produto verdadeiro do século XX” .............................................................. 159

3.2. A história de uma vida ou a vida de uma história ............................................... 165

3.3. Heller e o marxismo ............................................................................................ 181

3.4. A “Escola de Budapeste” e seus escritos marxistas ........................................... 194

3.5. Heller e seu legado marxista: “o poeta habita o homem” ................................... 211

4. EMANCIPAR-SE PARA EMANCIPAR: “LIBERDADE AINDA QUE TARDIA” ...... 220

4.1. A gênese do ato ................................................................................................. 220

4.2. Emancipar-se para emancipar: a genericidade em questão .............................. 222

4.3. A liberdade como conceito ................................................................................. 226

4.4. O/a assistente social frente ao Projeto Ético-político-profissional ...................... 234

4.5. Para uma ética marxista: consciência ética e política ........................................ 239

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 247

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 262

OUTRAS REFERÊNCIAS ............................................................................................ 273

ANEXOS ...................................................................................................................... 274

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AGNES HELLER: INDIVÍDUO E ONTOLOGIA SOCIAL – FUNDAMENTOS PARA

A CONSCIÊNCIA ÉTICA E POLÍTICA DO SER SOCIAL

(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10150849582273581&set=pb.35373273580.-2207520000.1362245289&type=3&theater). Acesso dezembro, 2012.

AGNES HELLER

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14

INTRODUÇÃO

“A história é tão mais humana quanto mais consciente são capazes os homens de alterar suas condições de vida, suas circunstâncias”.

Agnes Heller

A vinculação do pensamento de Agnes Heller no Serviço Social brasileiro,

remonta aos idos de 1980 e 1990, tendo como premissa a inserção do referencial

teórico-metodológico, técnico-operativo e ético-político de cariz marxista no âmbito

da formação e da atuação profissional do/a assistente social.

As discussões e a produção de conhecimento produzido no âmbito da

profissão, nesse período, apontavam para a necessidade de construir um projeto de

formação e atuação profissional que atendesse as transformações da vida cotidiana

nos últimos tempos, fundamentados pela tradição marxista enquanto referência

básica e hegemônica para as abordagens contemporâneas do Serviço Social

brasileiro (YAZBEK, 2009a).

As tensões provocadas pelas contradições da lógica capitalista e as

mudanças sociopolíticas da sociedade brasileira, fomentavam a constituição de

novas propostas profissionais, tendo em vista os novos desafios que se colocavam

para a atuação profissional, sobretudo, que vislumbrassem alternativas éticas e

políticas calcadas no protagonismo dos sujeitos sociais (IAMAMOTO, 2005).

Nesta ótica, pensar o Serviço Social contemporâneo requer dos/as

protagonistas sociais olhos abertos para o mundo conforme se apresenta para a

realidade social, buscando decifrá-lo e participar de sua recriação (YAZBEK, 2009a).

A partir da década de 1980, o Serviço Social brasileiro, apropriou do

pensamento de Gramsci, Lukács, Thompson, Hobsbawm dentre outros que

trouxeram contribuições importantes para analisar o Estado, a sociedade civil, o

mundo dos valores, a ideologia, a hegemonia, a subjetividade, a cultura, a ontologia

do ser social, as relações de trabalho, a historiografia, enfim, reflexões e

posicionamentos ideopolíticos para e do mundo contemporâneo. Neste universo,

também se incluiu o pensamento de Agnes Heller e à sua problematização do

cotidiano (idem).

Yazbek (2009a) aponta que a inserção e o processo de construção da

hegemonia dos novos referenciais teórico-metodológicos e interventivos, a partir da

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tradição marxista, ocorreram através de um amplo debate no interior da profissão,

permeado pela produção intelectual, que gerou uma bibliografia própria do Serviço

Social no Brasil, principalmente com a criação e expansão da pós-graduação –

mestrado e doutorado – a partir da década de 1970, constituindo-se um elemento

impulsionador para a intenção de ruptura.

As condições sócio-históricas da sociedade brasileira, neste período,

contribuíam satisfatoriamente para a construção desses pilares, bem como para a

formação de uma identidade profissional capaz fazer uma leitura crítica ético-política

da realidade social, do desvendamento crítico das forças sociais presentes e das

ações efetivas que dessem concretude e materialidade às formas de ser da

profissão (MARTINELLI, 2009).

Histórica e coletivamente, estes pilares consolidaram-se para uma apreensão

crítica do processo histórico e social contemporâneo, percebendo - em sua

totalidade - as particularidades e singularidades da constituição e do

desenvolvimento do capitalismo e do Serviço Social no Brasil, bem como, o

significado social da profissão, pautada em ações que atendessem à realidade

social contemporânea e que buscassem cumprir com as competências e as

atribuições profissionais estabelecidas na lei que regulamenta a profissão de forma

crítica e propositiva (CRESS/SP, 2008).

Também, passou-se a considerar o/a assistente social como um/a profissional

inscrito/a na divisão sócio-técnica do trabalho, na luta pelos interesses da classe

trabalhadora e em favor dos diversos projetos societários que visavam à superação

da sociedade capitalista e, posteriormente, à emancipação do ser social.

Porém, os interesses exclusivamente classistas não deram conta de atender

as diversas faces da questão social nem de construir um ethos profissional baseado

em princípios e valores universais e de liberdade.

Os anos que se seguiram à intenção de ruptura do conservadorismo – final

década de 1980 e início dos anos de 1990 -, revelou-se a necessidade de rever as

bases teórico-metodológicas e ético-políticas rumo à construção de um projeto

coletivo e hegemônico, fundado nos valores ontológicos e sociais da Teoria Social

de Marx, e que espelhasse a legitimidade teórico-prática, ético-político e ideopolítica

da profissão.

Os debates acerca do significado da ética no Serviço Social desencadeou um

esforço coletivo para um redimensionamento dos valores e compromissos ético-

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político-profissionais. Deste modo, as bases para a formação ético-político-

profissional foram direcionadas para uma proposta histórico-crítica, propositiva e

revolucionária, incorporando - sobretudo na aurora da década de 1990 - a ontologia

do ser social, buscando, assim, uma nova visão de mundo e de humano1 para a

profissão.

Esta reviravolta no modo de pensar, fazer e agir da profissão, fez com que

grande parte dos/as assistentes sociais passassem a enxergar a vida social em suas

contradições, ou seja, inscrita no campo das contradições e desigualdades sociais,

causadas principalmente pelas grandes transformações do mundo contemporâneo,

da consolidação e do avanço da sociedade regida pelo capital, do modo de

produção capitalista e da luta de classes.

Subsidiado pelas categorias ontológicas do ser social, os novos parâmetros

para a formação e atuação profissional do/a assistente social foram pautados em

valores universais: liberdade, democracia, respeito aos Direitos Humanos, justiça e

equidade social, na luta contra qualquer forma de arbítrio e autoritarismo,

preconceito e/ou discriminação, enfim, valores que espelham os princípios

emancipadores segundo Karl Marx.

Estes princípios norteiam o projeto ético-político-profissional - construído

histórica e socialmente no âmbito da profissão -, e que foram inscritos no Código de

Ética Profissional de 1993 como fundamentos ético-políticos, na luta por uma nova

sociabilidade e na defesa intransigente dos direitos humanos e sociais.

O novo Código de Ética de 1993 não somente estabelecia normas e regras

para a conduta profissional, mas também trazia no seu bojo, princípios norteadores

para a práxis profissional, pautado na liberdade como valor ético-político central.

Nesse ponto, diante das desumanidades próprias da lógica do capital, a

reflexão ética e política implicava um determinado modo de ser e agir na e para a

vida social, assim como a permanente conexão entre os valores essencialmente

1 No decurso de nossas reflexões, utilizaremos diferentes conceitos que constituem a ontologia do ser social que, aparentemente, apresentam semelhanças, mas possuem significados diferenciados. Também, em conformidade ao reconhecimento da linguagem de gênero, que alterou o Código de Ética Profissional do Serviço Social (Resolução nº 594, de 21 de janeiro de 2011), adotaremos no texto a forma masculina e feminina simultaneamente, por acreditarmos e defendermos o posicionamento ético-político das lutas lideradas pela categoria profissional, porém, para que não fique uma linguagem cansativa para o/a leitor/a, optamos pela denominação de ser social ou humano para designar homens e mulheres o que acreditamos que contempla essa questão de gênero. Porém, no decurso das citações manteremos a forma original do autor ao se referir ao “homem” enquanto referência a ambos os gêneros – masculino e feminino, atentando para a originalidade dos textos trabalhados.

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humanos emancipatórios e de coletividade. Desse modo, supunha uma atitude

consciente voltada à superação da alienação individual, social e profissional.

Estes novos pressupostos possibilitaram enxergar homens e mulheres,

enquanto sujeitos sociais, cidadãos/ãs de direito, que diariamente são violentados

pelo processo de industrialização, mercantilização, mecanização e globalização das

relações sociais, sobretudo, pela competitividade, imediatismo, consumismo e pelo

individualismo exacerbado na vida social. Em outras palavras, homens e mulheres

são cada vez mais transformados em coisa (coisificação) e/ou em mercadoria

(reificação).

Nesse processo, as relações sociais acabam por ser produzidas e

reproduzidas de forma alienadas, alienantes e de exploração, geradas

substancialmente pela lei do “mais forte”, do “mais rápido”, do “descartável”. Essa

violência e/ou autoviolência na vida individual e social contribui para gerar uma

autofragelação paranoica que, impulsiona os seres sociais a serem vítimas de si

próprios.

Portanto, ao buscar uma contribuição para o entendimento das contradições

da vida social e fazer uma reflexão sobre os fundamentos éticos e políticos que

balizam o Serviço Social brasileiro, percebemos que estes fundamentos tem como

alicerce a concepção de que os sujeitos sociais - enquanto criadores de si mesmo e

a história enquanto processo de autocriação - alimentam a formação e a práxis

social e profissional do/a assistente social (BARROCO, 1999; 2009).

Deste modo, buscando a compreensão dos fundamentos para a consciência

ética e política do ser social na vida cotidiana, percebemos que o pensamento de

Agnes Heller - pautado na perspectiva marxista - traz contribuições significativas

para as reflexões sobre a ontologia do ser social.

A tomada de consciência ética e política só pode ser uma tomada consciente

diante da vida e do mundo. Afirmamos que isso só pode ser considerado um ato de

coragem perante si mesmo – enquanto sujeito criador e transformador da realidade

– e perante a vida social – enquanto modo de ser e agir na e para a vida social.

Marx e Engels (2007) já chamaram a atenção de que o pensamento e as

representações humanas aparecem como emanações diretamente ligadas à vida

material e que a produção de ideias, das representações, da consciência é um

produto social - emanação direta da relação dos homens e das mulheres entre as

suas atividades materiais e o intercâmbio entre os seres sociais. Desta forma, a

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consciência só pode ser a consciência do ser consciente de si mesmo e do mundo a

sua volta.

Sendo a consciência um produto da matéria, é ela que permite aos humanos

refletir sobre o modo de ser, estar e agir no mundo e do próprio mundo através do

processo histórico de autocriação. A consciência extrai do mundo real, os elementos

para a sua apreciação/formação e retorna a vida real através das objetivações

concretas.

Marx e Engels (2007) também definiram o ser social em sua relação com a

natureza e com a sociedade - em sua dimensão social, econômica, política,

produtiva e cultural – assinalando que as formas de alienação e suas fontes

traduzem uma determinada sociabilidade. O modo de produção capitalista e as

relações objetuais e coisais determinam a alienação política, religiosa e ideológica,

como consonantes inequívocas das condições e contradições de

dominação/exploração do “homem pelo homem”.

A consciência, portanto, só pode ser o processo de humanização do ser

social. Não pode ser jamais algo diferente do ser consciente dos humanos (MARX;

ENGELS, 2007, p. 48). É o produto da “cabeça pensante” (MARX, 2011, p. 55), ou

seja, da capacidade teleológica de objetivar na vida material os elementos

essencialmente humanos na e para a vida social, por conseguinte, na manifestação

da vida individual e coletiva – expressão da atividade vital e social dos homens e das

mulheres.

Contudo, a vida individual e a vida genérica dos homens e mulheres não são

diferentes. O ser social – homens e mulheres – em sua genericidade tem atributos

imanentes comuns a todos os outros seres sociais, enquanto universalidades

existentes e do humano-genérico - carregam em si o conhecimento histórico e

socialmente acumulado da Humanidade.

Agnes Heller, em seus estudos sobre a vida cotidiana, buscou analisar esta

antropologia-ontológica2 do ser social enquanto consciência de-si-mesmo, em-si-

mesmo e para-si-mesmo na vida cotidiana, numa verdadeira historiografia filosófica

2 A utilização dessa expressão neste trabalho tem como referência a obra de György Márkus (1974)

que atribui à ontologia trazida por Marx como uma “antropologia filosófica”, ou seja, refere-se à vinculação do ser social com o seu processo histórico de autocriação. Heller em alguns momentos de sua obra aponta para esta concepção – uma unidade entre a ontologia do ser social e a sua antropologia.

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e sociológica da tomada de consciência ética e política do ser social, bem como, da

formação do sujeito individual e coletivo revolucionário.

Deste modo, o ser social se apresenta na e para a vida social enquanto ser

particular e genericamente humano, como também singular, enquanto síntese de

múltiplas determinações – particular e genérica – real e dinâmicas. É o dínamo

criador, representante do desenvolvimento e substância da história.

Do ponto de vista da teoria do conhecimento, Chaui (1999, p. 118), entende-

se por sujeito o indivíduo que “[...] cria e descobre significações, ideias, juízos e

teorias”, ou seja, o ser social consciente que descobre a si mesmo e o mundo a sua

volta.

Entendemos por indivíduo o ser social que é simultaneamente, “ser particular

e ser genérico”, produto e “[...] expressão de suas relações sociais, herdeiro e

preservador do desenvolvimento humano” (HELLER, 2004, p. 20-21).

Do mesmo modo, Heller (1974, p. 39) considera o indivíduo, o ser humano

singular que tem uma atitude consciente (e autoconsciente), a respeito da sua

condição de genericidade e é capaz de conduzir sua vida segundo suas atitudes

sensíveis e intelectuais - é o ser social consciente de-si-mesmo.

É nessa compreensão que Heller irá considerar a condição de individualidade

do ser social – ponto central de suas investigações e que nos ocuparemos nessa

dissertação, ou seja, quando o indivíduo social passa a assumir conscientemente a

sua própria personalidade/identidade - tem consciência de-si-mesmo -, assumindo,

assim, as rédeas de sua própria vida.

Portanto, é a condição em que o indivíduo reconhece sua “[...] capacidade de

conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento” (CHAUI, 1999, p. 118), em outras

palavras, é a capacidade de reflexão/abstração e ação de sua própria natureza

dinâmica e social – um projetar-se na e para a vida social.

É sujeito conhecedor de si e do mundo no qual se insere ou é inserido,

manifestando-se como percebedor, imaginante, memorioso, falante e pensante.

Porém, essas capacidades ou potencialidades só se objetivam e são fruto do meio

social (na e da vida cotidiana). Assim, o sujeito se apresenta enquanto síntese de

múltiplas determinações históricas e sociais.

No período compreendido entre os anos de 1956 e 1978, anos em que Heller

permaneceu na Hungria ou, se preferirmos, em sua fase marxista, ela desfrutou

juntamente com um grupo de amigos até 1971 da presença do filósofo húngaro e

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marxista Georgy Lukács que, a partir de 1950 busca realizar uma sistematização

categorial de suas reflexões sobre a arte e a literatura, rumo à construção de uma

ética marxista.

Este grupo de amigos e intelectuais ficou conhecido no universo intelectual

como “Escola de Budapeste”. Esta denominação não indica uma escola formal, mas

sim uma expressão utilizada por Lukács para descrever os membros e os trabalhos

produzidos por este grupo num determinado período e contexto histórico.

Este grupo reuniu-se ao redor de Lukács, entre os anos de 1950 até o ano de

sua morte em 1971 e, posteriormente, mantiveram os laços de amizade, porém, não

com a mesma intensidade e nem com os mesmos propósitos.

Os nomes que se destacaram foram os de Agnes Heller, Ferenc Fehér,

Mihaly Vajda e György Márkus. Destaca-se desse grupo o nome de Agnes Heller,

considerada por Lukács como o “membro mais produtivo” e que a sua produção era

a que melhor expressava o pensamento da “Escola de Budapeste”.

Deste modo, ao nos apropriarmos do referencial helleriano nas experiências

da docente no curso de graduação em Serviço Social, em específico, na disciplina

de Ética Profissional, percebemos que este contribuía satisfatoriamente para

despertar uma mentalidade crítica e de uma possibilidade para a formação do sujeito

revolucionário, individual e coletivo.

Ao utilizar desse referencial em aulas, cursos, oficinas e palestras, bem

como, em nossas pesquisas acadêmicas, percebemos que muito mais que trazer

elementos para uma análise conceitual sobre os pressupostos da Ética, intervinha

na e para a vida cotidiana dos sujeitos sociais em formação, oferecendo elementos

propositivos e pró-ativos para uma determinada práxis social e profissional,

fundamentada para a consciência ético-político-profissional do/a assistente social.

Em 2008, ao assumir a cadeira da disciplina de Ética Profissional do curso de

Serviço Social do Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé –

UNIFEG, Guaxupé/MG, este pesquisador observamos que os/as alunos/as vinham

para a sala de aula sem nenhum, ou quase nenhum, conhecimento sobre Ética,

sendo que a principal motivação que os/as trazia ao Serviço Social, expressava o

sentimento de “boa vontade” e/ou de “ajuda ao próximo”, pensamento característico

de alguma formação moral/religiosa ou ético/religiosa e de uma visão destorcida

sobre a profissão.

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Também, observou-se nos vários cursos de formação/capacitação

ministrados no mesmo período, que o discurso que imperava na grande maioria

dos/as profissionais era: “na prática a teoria é outra”, negando, dessa maneira, os

pressupostos ético-políticos que norteiam a profissão, por conseguinte, impedindo,

de certa maneira, a possibilidade de uma consciência coletiva e revolucionária,

histórica e socialmente constituída no interior da profissão.

Vinculado a estas características, ainda encontrava-se um nível de apatia e

conformismo com a realidade apresentada, onde os princípios e significados éticos e

políticos eram totalmente estranhos, tendo em vista a consolidação da barbárie

exposta pela lógica capitalista e neoliberal da atualidade, expressão mais cabal da

precarização e fragilização das relações de trabalho e de ensino no país.

Deste modo, estas concepções – visão de humano e de mundo - minimizam

as possibilidades de ações éticas e políticas conscientes, o que consolida a vivência

da ética maquiavélica na vida social: “os fins justificam os meios”.

Portanto, tornava-se necessário criar uma forma didático/pedagógica que

impulsionasse os sujeitos sociais em formação para o despertar da consciência ética

e política em conformidade com o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço

Social. Por conseguinte, buscamos nos referenciais teóricos marxistas uma

metodologia capaz de contribuir para este fim, ou seja, despertar para uma

consciência e postura ética e política na e para a vida social e profissional.

Contudo, observamos que, ao trabalharmos com os/as alunos/as aspectos da

vida cotidiana, referendados pela teoria marxista e, em específico, com a teoria

helleriana, constatamos empiricamente, ao longo de quatro anos na docência do

Ensino Superior, que este referencial teórico contribuía satisfatoriamente para uma

filosofia da práxis social.

A princípio, isso não parece novidade, porém, percebemos que o referencial

helleriano propiciava estímulos reflexivos para uma mudança de postura na vida

cotidiana, não só para o exercício profissional, mas, sobretudo, para uma proposição

crítica e revolucionária, ou seja, contribuía em-si para a consciência ética e política

do ser social, portanto, na e para uma práxis social revolucionária.

É importante destacar que o sentido de revolução empregado nessa

dissertação tem como referência à transformação parcial e/ou radical da vida

cotidiana dos sujeitos sociais. Para Heller (1982b, p. 08-09) a revolução não se

reduz ao problema da tomada do poder pelo proletariado revolucionário, mas sim na

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reestruturação da vida cotidiana, ou seja, na abolição da alienação, de tal modo, que

para a construção da própria sociedade pelos sujeitos singulares torna-se

necessário que haja a revolução em-si-mesmo enquanto indivíduos sociais.

A fragilidade da própria individualidade – da consciência de-si-mesmo, em-si-

mesmo e para-si-mesmo – provocada pelos estímulos da lógica capitalista, faz que

homens e mulheres - em sua particularidade-singularidade – alienem-se e vivam tão

somente voltados aos aspectos imediatos do cotidiano, eliminando as possibilidades

de vivenciar a não-cotidianidade – o momento de suspensão do próprio cotidiano

alienado.

[...] A vida cotidiana é o conjunto das atividades que caracterizam as reproduções particulares criadoras da possibilidade global e permanente da reprodução social. Não há sociedade que possa existir sem reprodução particular. E não há homem particular que possa existir sem sua própria autoreprodução. Em toda sociedade há, pois, uma vida cotidiana: sem ela não há sociedade. O que nos obliga, ao mesmo tempo, a sublinhar conclusivamente que todo homem – qualquer que seja o lugar que ocupe na divisão social do trabalho – tem uma vida cotidiana (HELLER, 1982b, p. 09).

A incorporação da lógica capitalista e a mecanização da vida social e

individual, de certa maneira, produzem a alienação e o estranhamento de-si-mesmo,

enquanto ser genérico na e para a vida social. As relações e inter-relações sociais

nessa ótica acabam por serem relações coisais e objetuais.

A familiaridade com alguns textos de Agnes Heller desse pesquisador,

principalmente, os dispostos no livro O cotidiano e a História, editado em 1970 no

Brasil, pela editora Paz e Terra, deu-se, sobretudo, em 2006, quando concluímos a

pesquisa A introdução estética na visão lukacsiana: uma interpretação ontológica da

realidade social - (VERONEZE, 2006) -, sob a orientação, na ocasião, do Prof. Ms.

Ricardo Lara (hoje Prof. Dr.).

Nesta pesquisa, estudamos profundamente as categorias marxistas, a

estética de Georgy Lukács, as expressões artísticas e a interdisciplinaridade,

retomando os estudos desse pesquisador sobre a arte, bem como, sobre as políticas

de cultura. O objetivo desta pesquisa era entender a expressão artística como

instrumental capaz de captar a realidade social para o trabalho do/a assistente

social.

O universo desta pesquisa foi o Centro Educativo e Social de Guaranésia –

CESG, instituição de educação não-formal no município de Guaranésia/MG, criado

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em 2003, para atender crianças e adolescentes em situação de risco e

vulnerabilidade social daquela cidade, com o intuito de oferecer atividades

esportivas, culturais, de lazer, de reforço escolar, de cidadania, de alimentação, de

saúde e de integração social.

O despertar para esta pesquisa aconteceu quando estagiávamos nesta

instituição em 2005. Ao analisarmos alguns desenhos produzidos pelas crianças

desta instituição, percebemos que os mesmos descreviam elementos do cotidiano

vivido e da realidade social na qual estas crianças estavam inseridas e suas

particularidades3.

Portanto, ao destacar os pressupostos filosóficos hellerianos (historicidade,

cotidianidade, imediaticidade, genericidade, papéis sociais, axiologia,

comportamento ético/moral, ultragenericidade, juízos provisórios, objetividade e

subjetividade, entre outros, ou seja, os fundamentos antropológico-ontológicos do

ser social na perspectiva helleriana), percebemos que estes eram paulatina e

continuamente absorvidos pelos/as discentes e/ou cursistas, resultando, assim, num

despertar para a consciência ética e política profissional e social.

O trabalho pedagógico consistia em levar os/as discentes a refletir e a buscar

mediações duradoras à transformação revolucionária em-si e para-si, concomitante

e simultaneamente à vida social e consigo mesmo, numa interpenetração

transformadora e dialética do cotidiano, operando na mão dupla: teórico-práxis e

práxis-teórica.

Em outras palavras, propunha-se caminhar do real abstrato - do cotidiano

dado -, para o real concreto - ou concreto pensado -; do campo da abstração

intelectiva/reflexiva, para o campo correlacionado de forças operantes da realidade;

através da construção de mediações possíveis para compreender e transformar a

realidade social, no sentido de desvendar as contradições da vida social e da

ontologia do ser social, entre o particular/universal e o singular/genericamente

humano, ou seja, da aparência para a essência, no intuito de desvelar as vias de

resistência ultrageneralizadas que impedem a transformação dos nexos de

articulação do fenômeno estudado para concreto pensado.

3 Estes fatos foram analisados na pesquisa em questão e, posteriormente, apresentados no 2º Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais em Belo Horizonte, no ano de 2009 (VERONEZE, 2009).

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Para isso, pressupunha-se para o interlocutor uma concepção e apreensão

filosófica que contribuísse para um nível de autonomia individual/coletiva e

individual/social historicamente construída, ou seja, de princípios epistêmicos do

reconhecimento, da atividade, de sistematização e de totalidade do ser social, logo,

de mediação, conforme os apontamentos de Martinelli (1993, p. 136-141), de cuja

base teórico-metodológica, nos apropriamos.

A autonomia na visão de Heller (2004, p. 118), refere-se à possibilidade do

indivíduo de criar seu próprio destino e promover, mediata e imediatamente, sua

integração e a de toda a Humanidade e, por outro lado, de levar e conta tudo aquilo

que é necessário e do esforço de encarar os fatos e fenômenos sociais como eles

são.

Ao partirmos dos elementos simples e contraditórios do cotidiano,

transportando-os para um universo teórico-filosófico-conceitual, conseguíamos

elevar os sujeitos em formação para a capacidade intelectiva acima da

imediaticidade alienada e alienante da vida social, revelando um campo de

mediações conscientes ética e politicamente críticas e duradouras.

Partindo da hipótese de que as matrizes contidas no pensamento

metodológico/pedagógico de Agnes Heller contribuem para a formação da

consciência ética e política do ser social, interrogamos: qual seria então o

fundamento primeiro desta teoria? Como ela poderia contribuir para a

formação/intervenção do Serviço Social, bem como de outras áreas do saber? De

que forma o Serviço Social poderia se apropriar – ou se apropriou - dessa

metodologia/pedagógica teórico-conceitual para a formação e/ou despertar de uma

consciência ética e política do e no ser social?

Tendo como base a Teoria Social de Marx, buscamos responder estas

perguntas, partimos do princípio de que deveríamos conhecer a totalidade dos

escritos de Agnes Heller. Num primeiro momento, percebemos que sua contribuição

estava relacionada às suas análises da vida cotidiana, portanto, de uma

determinada práxis social.

Isso implicaria numa determinada postura na e para a vida social em que o

sujeito social se afirmasse como tal, mas, como se sabe, a realidade social, na

lógica do capital, é contraditória, tornando, em grande medida, reificada a vida

social.

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Desse modo, os sujeitos sociais - individual e coletivo - podem apresentar-se

alienados e a reproduzirem essa alienação. Portanto, como poderíamos trazê-los/as

para a realidade não-alienada, ou seja, como poderíamos contribuir para uma

postura consciente ética e política para a vida social?

Para responder esta pergunta, pressupúnhamos um caminho - uma filosofia

da práxis social. A que se apresentava de antemão, sem sombra de dúvida, era a

Teoria Social de Marx.

Porém, é sabido que as contradições dos dias atuais, tendo em vista ainda a

real condição de mercantilização da Educação, o tempo e a realidade social dos/as

discentes, muitas vezes, a formação profissional é prejudicada. Principalmente por

se deparar com um universo totalmente desigual e contraditório e que, nem sempre,

se consegue desvencilhar e elevar-se acima da imediaticidade e da cotidianidade –

para a não-cotidianidade. Portanto, era preciso algo mais dinâmico e que atendesse

aos nossos objetivos.

Porém, isso não implicaria em abandonar os referenciais primários e de base

– a Teoria Social de Marx -, indispensáveis, sobretudo, para estas análises, mas sim

em construir um caminho que induzisse ao universo marxiano - referente à própria

obra de Karl Marx -, e marxista - estudiosos e defensores da Teoria Marxiana -,

estranho para a grande maioria dos/as nossos/as alunos/as.

Buscávamos, então, uma contribuição metodológico/pedagógica possível

para a apreensão de uma filosofia da práxis social. A teoria helleriana contribuía

satisfatoriamente para este fim. Deste modo, apresentava-se a nossa frente um

gigantesco mundo a ser descoberto.

Tínhamos em mente, que a grande contribuição do pensamento helleriano

estava vinculada a sua Teoria do Cotidiano. Porém, por meio de uma análise mais

aprofundada, ou seja, ao estudá-la em sua totalidade, percebemos que vida e a obra

se entrelaçavam e complementavam-se.

Percebemos que muito mais do que contribuir para analisar as relações e

inter-relações sociais dos sujeitos sociais na e para a vida cotidiana, o pensamento

helleriano buscava revelar uma antropologia-ontológica especifica do ser social – a

sua condição de individualidade -, não em relação a sua condição individualista e

egocêntrica no sentido liberal, mas em sua condição ontológica de

individualidade/singularidade, ou seja, do ser-em-si-mesmo e do ser-para-si-mesmo.

E que, como tal, caminha da condição de particular e genérico, para a de singular

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e/ou de indivíduo social. A singularidade é o campo mais íntimo dos indivíduos

sociais, compreende também, a esfera dos sentidos, dos sentimentos e da

personalidade – da identidade4.

Nessa antropologia-ontológica do indivíduo social helleriano, pudemos

detectar que as pessoas comuns, podem ou não assumir uma atitude consciente,

ética e política, na e para vida social, tendo em vista os estímulos, necessidades e

interesses que recebem ao longo de suas vidas.

Atentamos nesta pesquisa, para a condição de individualidade do sujeito

social enquanto tomada de consciência em-si-mesmo, com possibilidades para uma

consciência para-si-mesmo, ou seja, uma consciência tal que propicie uma vida

social não-alienada e não-alienante. Contudo, sem desprezar a sua condição

enquanto particular e genericamente humano.

Não é possível, na realidade social do mundo capitalista, vivermos fora da

cotidianidade alienada e alienante, porém, é possível não se deixar tornar-se

alienando/a e alienante diante dos fatos mais corriqueiros e mecanizados da

cotidianidade e que, na maioria das vezes, não percebemos. Ao mesmo tempo, não

é possível viver num estado total de suspensão e fora da cotidianidade, isso também

é uma forma de alienação.

Para tanto, torna-se necessário e fundamental para o ser social assumir uma

consciência ética e política em sua singularidade-particularidade. É na condição de

singular que o ser particular e genérico, encontra condições para assumir uma

atitude consciente diante das determinações e posicionamentos alienados e

alienantes da vida social, sobretudo, sobre a égide da lógica do capital.

A tomada de consciência de sua genericidade permite ao indivíduo social se

desprender da condição de alienação - na qual, e muitas vezes, está condicionado/a

– para o despertar e aquisição de novos valores ético-morais e ético-políticos de

liberdade/responsabilidade - de valores éticos e políticos universais.

Por outro lado, também possibilita a abertura de novos campos de

possibilidade e de mediação. Para tanto, torna-se necessário desprender-se dos

sistemas consuetudinários, dos juízos provisórios e das ultrageneralizações,

portanto, situações estas de alienação.

4 Segundo Martinelli (2009), identidade é uma categoria sócio-política que se constrói no jogo das forças sociais. Encontra-se enquanto síntese dialética entre os modos de ser e de afirmar-se socialmente.

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Estes pressupostos encontraram elementos para a reflexão filosófico-

conceitual da autora a partir do momento em que esta tomou contato com os

fundamentos da Teoria Social de Marx, vinculados a “escola lukacsiana” (referente

às ideias defendidas e divulgadas por Georgy Lukács), em Budapeste que,

juntamente com os acontecimentos significativos de sua juventude e do momento

histórico (os anos compreendidos entre 1929 e 1956), contribuíram para o

afloramento das respostas aos seus questionamentos existenciais.

Contudo, nos deparamos, a princípio, com conflitos teóricos existentes em

fases distintas de sua vida. Conflitos estes que, acreditamos, refletem circunstâncias

reais e concretas, mas que, em nossa opinião, não interferem nas análises aqui

apresentadas.

Para sanar tais contradições, demarcamos nossas análises, aos textos

escritos no período compreendido entre os anos de 1956 e 1978. Nesse período,

Agnes Heller e o grupo de amigos intelectuais, reuniram-se ao redor de Georgy

Lukács, com o intuito de fazerem um profundo estudo nos escritos marxianos –

principalmente os de sua juventude -, tendo como base as dos próprios escritos de

Lukács.

As preocupações/reflexões deste grupo estavam diretamente vinculadas aos

estudos de Lukács sobre a Estética e à ontologia do ser social, na forma como estes

se apresentavam no pensamento lukacsiano e na restauração da essência filosófica

marxiana que, na opinião do grupo, estava-se desvirtuando de seus propósitos

originais.

Como cenário deste período, observamos uma grande efervescência política,

econômica, social e cultural na Hungria, no Leste Europeu e demais países do

mundo em decorrência das grandes guerras mundiais. Tais acontecimentos

marcaram profundamente a infância e juventude de Heller, somado, sob suas

impressões, ao holocausto nazista alemão e o comunismo stalinista. Em

contraposição, a formação de uma onda socialista fundamentada na liberdade e na

democracia.

Heller, ao longo de sua vida, passou por grandes dissabores internos em sua

vida pessoal e em seu país natal, sofrendo perseguições étnicas, políticas e

ideológicas, assim como os demais membros da “Escola de Budapeste”. Seus

questionamentos iniciais e, consequentemente, sua busca por respostas, estão

diretamente ligados aos episódios histórico-sociais, sendo que, para ela os horrores

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do nazismo de Hitler e o totalitarismo nazi-fascista de Stalin, foram os mais

significativos.

Posteriormente, suas análises caminhariam para elementos relativos à

questão social, ou seja, as condições objetivas e subjetivas nas quais os sujeitos

sociais estão inseridos e que acabam por provocar tamanhas atrocidades aos

demais entes viventes. Seus questionamentos partem para entender que sujeito e

que mundo é este que provoca tamanha violência?

Sua trajetória intelectual indelevelmente passa por referenciais teóricos,

momentos históricos, países e culturas bem distintas, tendo como suporte inicial o

marxismo lukacsiano que, segundo Rivero (1996), seria o produto da uma nova

esquerda do leste europeu. Posteriormente, Heller se considerou como neomarxista

e, mais tarde como pós-marxista (RIVERO, 1996, p. 10).

Além disso, Terezakis (2009) aponta para as características posteriores a

estas fases, ou seja, existencialista e pós-moderna. Estas fases, segundo Prior

(2002) e Rivero (1996) apontam para períodos, países e culturas distintas de sua

vida, ou seja, a realidade da Europa e do leste europeu até 1978, sua estadia na

Austrália de 1978 até 1986 e sua posterior carreira enquanto docente no New

School for Social Research, ocupando a cadeira de Hannah Arendt de Filosofia e

Ciência Política nessa universidade, em Nova Iorque, Estado Unidos, desde 1986.

É preciso estar atendo à demarcação e contextualização das referências, dos

diálogos e dos momentos históricos das fases distintas do pensamento de Agnes

Heller, sem o quê, a compreensão e desenvolvimento do seu pensamento ficaria

prejudicado, sobretudo para não cair em análises preconceituosas, deformadas e de

analogismos como pluralista, revisionista e eclético, características estas das as

quais não concordamos.

A partir dessas prerrogativas – e da insuficiente realização de pesquisas, em

território brasileiro, que contemplem a totalidade das análises helleriana e de

estudos analíticos sobre Agnes Heller – considerando a sua temporalidade e

historicidade - justificamos a importância desse estudo.

O interesse e a escolha do tema dessa investigação, além dos fatores já

assinalados, também tiveram com prerrogativa os questionamentos e reflexões que

este pesquisador pode notar ao longo das experiências de vida e profissional

materializadas na construção do memorial para a qualificação enquanto mestrando

do curso de pós-graduação em Serviço Social. A temática da ontologia do ser social

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sempre este presente nas várias pesquisas realizadas entre 2005 e 2011, bem

como, o interesse próprio de compreender a dinâmica antropológico-ontológica do

ser social na perspectiva marxista. Isso nos levou a empreendermos pelo universo

helleriano, como também de outros expoentes marxista, em específico, Georgy

Lukács.

É evidente que a percepção de certas escolhas e certos caminhos, só são

possíveis perante a influência de muitas pessoas, sujeitos sociais conscientes de

seu papel, que fizeram e fazem parte de nosso contexto social: nossa história.

Desse modo, nos propomos a buscar um “saber por inteiro”, procurando

entender os fatos “em suas raízes”, em outras palavras, não entendê-los apenas

pela sua aparência, mas na captura de sua essência, buscando, constantemente, o

significado axiológico das escolhas e para que lugar essas possa nos levar.

As questões ético-morais e ético-políticas envolvem questões relevantes à

vida cotidiana e, portanto, prescrevem um campo de possibilidades e

impossibilidades nas relações e inter-relações sociais: “[...] a vida cotidiana

caracteriza-se pela unidade imediata de pensamento e ação”5.

A ética e a política só existem porque somos seres da práxis e vivemos em

sociedade e, para que possamos vivê-la, devemos observar regras e normas,

momentos históricos, culturas, necessidades e, principalmente, modos de ser

individual e social, além dos valores universais produzidos pelos sujeitos sociais.

Para tanto, é condição sine qua non entender o ser social, homens e

mulheres, como aqueles/as que apresentam em-si o processo de hominização -

passagem entre o reino animal e o reino nominal (este processo se deu na era

primitiva) – e de humanização - tornar-se sociável (relações entre os indivíduos). Em

outras palavras, é o ente que já passou do estado primitivo (ser natural), para o

estado de humano/social (ser social).

Segundo Lukács (2004, p. 48), homens e mulheres deixam a condição de ser

natural para a personalidade humana; de um gênero animal relativamente

desenvolvido, para o gênero humano e, deste modo, para a humanidade. Para

Engels, em seu texto O papel do trabalho na transformação do macaco em homem,

essa transformação se deu através do desenvolvimento de todos os sentidos através

do trabalho.

5 HELLER, 2004, p. 45. Grifos da autora.

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Lukács (2004) aponta que o processo de hominização e humanização é

produto de uma série de fatores que se constituem num complexo da sociedade.

Este processo não tem, em si mesmo, algum fim. Sua evolução ascendente contém,

por si, a efetivação de contradições cada vez mais desenvolvidas, cada vez mais

fundamentais: “[...] o progresso é, sem dúvida, uma síntese de atividades humanas,

porém, não a sua realização plena no sentido de algum um conjunto teleológico”

(LUKÁCS, 2004, p. 48).

Há uma linha muito tênue nesse processo, haja vista que encontramos em

Marx e Engels elementos antropológico-ontólogicos que justificam esta passagem.

Porém, ambos irão compreender que a passagem entre ser natural e ser social se

dá desde o momento em que homens e mulheres se descobrem no mundo, ou seja,

ao transformar a natureza para sanar suas necessidades primárias, transforma a si

mesmo, num continuo processo de hominização e humanização.

Portanto, não há como ter consciência ético-moral e ético-política sem que

haja condições e estímulos e/ou possibilidades objetivas e subjetivas, reais e

concretas para a preservação dos componentes essencialmente humanos.

Na concepção de Marx, os componentes existenciais substantivos para a vida

humana são o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a

consciência, a linguagem e a liberdade, possibilidades imanentes à humanidade do

gênero humano, conforme os apontamentos de Heller (2004).

Portanto, escrever sobre Agnes Heller e sua contribuição intelectual, tornou-

se um grande desafio, primeiramente por encontrarmos poucas pesquisas a seu

respeito e, as existentes, tratavam de questões pontuais; por outro lado, escrever

sobre pensadores vivos é, ao mesmo tempo, uma tarefa muito gratificante que nos

permite fazer uma pequena homenagem, como também é um grande desafio,

principalmente, porque não permite ao pesquisador/a o distanciamento necessário

para uma análise menos apaixonada.

Ainda, dado essas limitações, optamos por fazer um estudo

analítico/exploratório sobre o pensamento de Agnes Heller, elencando os elementos

mais substanciais para uma filosofia da práxis. Desta forma, não é nossa intenção

realizar um estudo crítico/comparativo sobre o pensamento de Heller, mas sim

utilizar da criticidade e das categorias da teoria crítica para subsidiar nossas

análises.

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Salientamos ainda que a hipótese aqui levantada não é a única de interesse

para a construção de uma filosofia da práxis. Não se pode excluir de nenhuma

maneira a possibilidade de outras concepções e de outras hipóteses para

compreender o pensamento helleriano, tendo em vista e, principalmente, as

contradições de sua temporalidade. Deixamos estes pontos nevrálgicos para futuras

análises.

Também, há de se observar que este estudo é, em certa medida, unilateral,

ou seja, ocupa-se de questões levantadas por Agnes Heller e que foram tratadas

com base nos seus apontamentos, não descartando, em alguns momentos, uma

comparação ou análise com outras fontes.

Na atualidade, a preocupação dos existencialistas e dos denominados “pós-

modernos”, volta-se para as temáticas do ser que vive em sociedade ou do sentido

da existência, não cabendo aqui fazer uma análise crítica ao pensamento

existencialista, fenomenológico ou pós-moderno, mas sim, compreender a teoria

helleriana naquilo que tem de mais importante: o indivíduo social.

Para tanto, num primeiro momento buscamos fazer uma análise lato sensu

dos aspectos metodológicos na construção dessa pesquisa e que intrínseca e

extrinsecamente vinculam-se a substância do pensamento helleriano frente ao

cotidiano e do estado de alienação na qual estamos inseridos. Tendo como ponto de

partida nossas experiências em sala de aula.

O primeiro capítulo subdivide em seis momentos, ocupando-se dos aspectos

introdutórios e metodológicos aos principais conceitos desenvolvidos nessa

pesquisa, sobretudo, com relação à alienação da vida cotidiana em “tempos

modernos” e de como o ser social se insere ou é inserido nesse universo. Sua

extensão tem como justificativa a necessidade de apontamentos que situem no

cotidiano e na contemporaneidade o pensamento helleriano.

Num segundo momento, buscamos entender a complexa teia antropológico-

ontológica e sócio-histórico-filosófica da essência do pensamento helleriano em sua

historicidade, destacando, substancialmente, o indivíduo social como agente e

construtor de sua própria história.

Nesse capítulo buscamos entender o indivíduo enquanto sujeito social

consciente na e para a vida cotidiana, a estrutura da própria vida cotidiana e a

suspensão do cotidiano, tendo o valor como categoria central para a consciência

ética e política do ser social.

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No terceiro momento, verificamos como Agnes Heller reagiu (ou se afirmou)

enquanto individualidade diante dos acontecimentos históricos de sua vida, seu

desenvolvimento intelectual, seus amigos, suas raízes, suas angústias, sua busca,

sua “causa”, sua produção, contextualizando e temporalizando os momentos mais

significativos de sua Lebensphilosophie. Heller, enquanto “produto verdadeiro do

século XX”, viveu sua própria individualidade.

A extensão desse capítulo tem como justificativa uma aproximação que

contemplasse a totalidade, historicidade e linearidade para construir uma biografia

aproximada de Agnes Heller naquilo que nos propomos analisar. Demarcamos e

buscamos contemplar os fatos mais significativos de sua vida e de sua obra.

Somente assim é que pudemos caminhar para a completude de nossas

ideias, entrelaçando-as no decurso dessa pesquisa com as falas/pensamentos de

Agnes Heller, no intuito de verificar sua contribuição e o seu significado para o

Serviço Social e demais áreas do saber.

O quarto capítulo foi construído diante da necessidade desse pesquisador de

preparar o caminho para as considerações finais, tendo com parâmetro nossos

estudos anteriores. Nesse caminhar, buscamos analisar que as escolhas dos

indivíduos sociais se dão na sua vida particular-singular.

A consciência ética e política do ser social é a condição sine qua non para os

fundamentos de uma ética marxista. Não se deve considerar que todas as

necessidades serão satisfeitas, mas que devem ser igualmente consideradas e

reconhecidas como legitimas no intuito de emancipar-se para poder emancipar.

Em nossas considerações finais, chegamos à conclusão de que o

pensamento helleriano, com forte inspiração humanista-marxista, contribui para a

tomada de posição frente à alienação da vida cotidiana, numa proposição

consciente, ética e política, do ser social, de modo que reconhecemos o seu valor

enquanto individualidade em-si e para-si enquanto sujeito revolucionário, enquanto

inspiração e fermentação de uma filosofia da práxis social.

É importante destacar que num determinado momento histórico e em

circunstâncias particulares, o Serviço Social brasileiro também buscou, num

determinado momento histórico, a sua consciência e autonomia de-si-mesmo, em-si-

mesmo e para-si-mesmo, enquanto profissão, tentando se constituir, posteriormente,

enquanto projeto coletivo revolucionário e emancipatório rumo a uma nova

sociabilidade.

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Desta maneira, a proposta dessa dissertação, é preencher, em nossa opinião,

uma lacuna no que se refere à contribuição do pensamento helleriano para o Serviço

Social brasileiro, não se restringindo, apenas, à profissão, mas também que possa

alcançar outras áreas do saber, contribuindo, assim, para uma reflexão sobre a

consciência ética e política do ser social.

Certamente, não pretendemos esgotar o assunto e os apontamentos aqui

apresentados são compatíveis para entender o pensamento helleriano enquanto

visão de humano e de mundo, inspirada pela concepção marxiana e marxista que

constrói uma filosofia radical, propondo em si uma postura ética e prática, portanto,

uma práxis.

Acreditar que é possível mudar a realidade dada e que esse movimento

depende inicialmente – mas não somente - de uma atitude consciente, em nossa

opinião, já é um posicionamento ético e político consciente. Agir radicalmente supõe

superar a alienação e o estranhamento dos valores humanos da vida social e do

“reino da barbárie”. Do contrário, regozijai por achar que nada vale a pena e que é

melhor ficar apenas reclamando de braços cruzados, tal é o estado absoluto da

alienação.

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CAPÍTULO I

1. A “INSUSTENTAVEL LEVEZA DO SER” SOCIAL

“A essência humana não é o ponto de partida, ou o ‘núcleo’ para que as influências sociais se sobrepõem, mas se constitui um resultado”.

Agnes Heller

1.1. Aspectos metodológicos

Desde o início, este estudo foi orientado na busca de uma interpretação do

corpus teórico do pensamento helleriano, tendo em vista que, principalmente no

âmbito do Serviço Social brasileiro, até o presente momento, encontrarmos poucos

estudos específicos e direcionados a este fim ou sobre Agnes Heller, filósofa

húngara que é considerada por alguns intelectuais, como uma pensadora

secundária.

A princípio, esta consideração, nos incomodou, porque no ambiente da sala

de aula e as experiências cotidianas se mostraram acolhedoras para este

referencial. Conforme já apontamos na introdução, estas experiências se deram no

trato com os/as discentes em Serviço Social e em outras experiências

didático/pedagógicas, nas quais observamos que a teoria helleriana contribuía

satisfatoriamente para o despertar de uma consciência ética e política do ser social.

Tal constatação nos levou a buscar um conhecimento mais aprofundado

sobre o seu pensamento e a entender qual seria de fato sua contribuição. Assim,

iniciamos nossa busca nessa direção.

É necessário esclarecer inicialmente que o conceito de ética de que nos

apropriamos diz respeito à “tomada de consciência” do ser social, ou seja, do

momento em que se humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade6´7, bem como

o conceito de política que, em seu sentido lato, refere-se a toda atividade humana

“[...] dirigida à transformação, à modificação ou à reforma da sociedade”8.

6 Para melhor leitura e clareza, omitiremos as referências das obras de Heller nas citações diretas e

indiretas no corpo do texto, apontando-as em notas de rodapé de acordo com as bibliografias da autora utilizadas para a construção dessa pesquisa e contidas nas referências dessa dissertação. Somente referenciaremos no corpo do texto as que acharmos estritamente necessárias. 7 HELLER, 2004, p. 121.

8 HELLER, 1983a, p. 41.

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A hipótese de que há uma contribuição teórico-conceitual do pensamento

helleriano para o campo do estudo da consciência ética e da política na e para a

vida cotidiana, levou-nos a realizar, primeiramente, um estudo monográfico que

abordasse o conjunto de sua obra em sua totalidade. Porém, no início, não tínhamos

conhecimento do volume de sua produção intelectual.

Numa primeira pesquisa, buscamos verificar sua utilização no campo das

dissertações, teses, artigos, livros - enfim, onde e como Heller estava sendo

estudada e utilizada. Pouca coisa em português foi encontrada, mas o pouco que

encontramos, tinha como base, principalmente, a sua teoria do cotidiano.

Também notamos que Heller era muito estudada tanto na Europa como nos

Estados Unidos, de uma forma pluralista, principalmente no campo dos estudos

referentes à pós-modernidade. Tendo em vista que essa não era a nossa proposta

de estudo e ainda, dado a dificuldade em conseguir estes materiais, abandonamos

essa intenção.

Partimos para uma segunda pesquisa, tendo em mente que o pensamento

helleriano, segundo algumas opiniões particulares, constituía-se em duas fases

distintas: uma marxista e uma neokantiana. Fazer uma análise para demonstrar essa

hipótese, também nos parecia inviável no momento, acreditando que isso não traria

nenhuma contribuição para o Serviço Social, além do mais teríamos que fazer um

estudo em toda a sua obra e isso, conforme já colocamos, seria inviável.

Tendo em vista os fundamentos marxistas do Serviço Social brasileiro,

demarcamos um espaço temporal que contemplasse somente a fase marxista de

Heller ou os anos de sua permanência na Hungria - entre os anos de 1950 até o final

dos anos de 1970. Buscamos, então, levantar os seus escritos desta época.

Qual não foi a nossa surpresa ao verificar a extensão, a dificuldade e

complexidade do campo de análise teórico-filosófica desta pensadora, ao longo dos

seus oitenta e três anos de existência. Além disso, percebemos que a grande

maioria dos seus livros não foram escritos e editados obedecendo a sua cronologia e

linearidade.

Percebemos que havia uma distinção em suas fases assaz interessante, que

Ángel Prior apontou em seu livro Axiologia de la modernidad: ensayos sobre Agnes

Heller, publicado em 2002 pela Universidade de Valéncia, Espanha.

Nesse livro, Prior destaca três momentos de seu pensamento e que

circunscreviam aspectos distintos da vida cotidiana de Heller: a primeira fase

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compreende o seu nascimento e a sua permanência na Hungria (1929-1977), a

outra contempla sua estada na Austrália (1978-1986) e a última quando passou a

viver nos Estados Unidos a partir de 1986 até os dias atuais.

Esta divisão cronológica apontava sempre para a temática central: a busca de

uma filosofia da vida, ou seja, “viver a vida de outra maneira” (MUÑOZ apud PRIOR,

2002, p. 11). Acerca disso, Muñoz, ao apresentar a obra de Prior, salienta que o

debate trazido por Prior afirma que essa perspectiva está diretamente relacionada

com o tempo e a própria evolução do pensamento de Agnes Heller, apontado para o

contexto histórico e social em que ela estava e está situada e que, portanto, na

atualidade, não poderia deixar de se preocupar com uma “filosofia moral e política

ocidental” (idem, ibidem).

Muñoz ainda pontua que em sua permanência na Hungria, Heller estava

envolta nas temáticas de sua época e pelas discussões e circunstâncias ao redor de

Georgy Lukács, ou seja, a busca de um “renascimento do marxismo” e na “possível

transformação socialista da cotidianidade herdada” (idem, ibidem).

Partindo do pressuposto de que os posicionamentos ético-políticos do Serviço

Social brasileiro contemporâneo, sintetizam a tomada de posição frente à realidade

regida pela lógica do capital, percebemos que a vida cotidiana está demarcada pelas

relações objetuais e coisais. O humano, eminentemente social, se coisifica, assim

como seu modus vivendi.

Deste modo, acomoda-se com os sistemas consuetudinários9 da vida

burguesa, com o modo de produção capitalista e seu aparente bem-estar

eminentemente econômico. Porém, para a grande maioria da população mundial,

isto apenas significa que uma minúscula população concentra a riqueza socialmente

produzida, gerando, assim, um ambiente contraditório e de exploração.

Nessa direção, a vida humana acaba sendo desvalorada e uma alta parcela

da população acaba por incorporar a lógica do capital e da mercantilização,

passando a ser vitima de si mesma. Para sair desse amalgama, dessa situação de

alienação/alienante, tem-se que buscar um posicionamento contrário a esse

processo de reificação da vida humana.

Assim, definimos que nossas análises deveriam circunscrever os anos de sua

juventude e aos acontecimentos mais significativos da vida de Agnes Heller deste

9 Entende-se por sistemas consuetudinários aqueles constituídos por normas, regras e costumes que passam de geração em geração (ex.: sistemas conservadores, moral conservadora etc.).

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período e os que mais influenciaram em sua produção intelectual - o encontro de

Heller com seu mestre Georgy Lukács, a “Escola de Budapeste”10 e a Hungria até o

final dos anos de 1970 -, constituindo, assim, a fase em que Heller comungava com

as ideias de seu mestre e o referencial teórico eminentemente marxiano e marxista.

Na medida em que fomos tomando contato com sua obra, surgiu a

necessidade de conhecer mais de perto esta filósofa e o contexto sócio-histórico em

que fora inserida. Numa verdadeira garimpagem, conseguimos levantar

praticamente todas as obras da periodização demarcada, assim como algumas de

outros períodos.

Seus livros, em grande maioria, foram traduzidos para a língua espanhola,

sendo apenas dois deles, desta fase, foram traduzidos para o português: O cotidiano

e a história e O homem do Renascimento. Em sua fase intermediária, ou seja, entre

a Hungria e a sua estadia na Austrália, traduziu-se para o português as obras

Filosofia radical e Teoria da História. Algumas outras traduções de seus textos

posteriores também podem ser encontradas no Brasil.

Por conseguinte, mais um problema se colocava à nossa frente, dado ao

vasto material a ser analisado: por onde começar?

Pela carência de guias de estudos, sobretudo, sobre o seu pensamento em

sua totalidade e, principalmente, pelo espinhoso problema da evolução de suas

reflexões, tendo em vista ainda as polêmicas endereçadas a esta personalidade e

da ruptura com os posicionamentos defendidos até meados dos anos de 1980.

Desse modo, ficava ainda mais complexa esta empreitada.

Precisávamos entrar no universo de Agnes Heller, viver os seus dias,

introjetar tudo que fosse possível em nossas veias, num verdadeiro mergulho

helleriano “por inteiro”. Foi nesse momento que tivemos a oportunidade de tecer um

contato, via e-mail, com a própria Agnes Heller, que gentilmente respondia às

nossas primeiras indagações.

Ao “mergulhar de cabeça” nesse universo, ver suas últimas entrevistas - em

vídeo e publicações -, fotos, vídeos, seus amigos e amigas intelectuais, a Hungria,

os acontecimentos mais significativos de sua vida, filmes relacionados, o holocausto,

as guerras mundiais, a Revolução Húngara de 1956, os acontecimentos do Leste

10

Conforme já apontamos na introdução, esta expressão se refere a um grupo de jovens intelectuais que se reuniu ao redor de Lukács entre os anos de final de 1950 até o ano de sua morte em 1971, posterior a esta data, ainda mantiveram os mesmo laços, mas sob outros propósitos. Analisaremos com mais detalhes este grupo no Capítulo III dessa dissertação.

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Europeu e, sobretudo, Georgy Lukács, aquele que foi o principal responsável pela

sua trajetória intelectual, descobrimos um universo a ser desvelado. Assim, surgiu a

ideia de contextualizar, cronologicamente, os fatos mais relevantes de sua vida

particular e intelectual, num esforço de construir uma biografia aproximada de Agnes

Heller.

Depois de reconstruir rigorosamente sua vida e obra – da fase em análise -,

percebemos que alguns pontos delineavam basicamente seu modo de pensar: a

vida cotidiana, a democracia e a liberdade, tendo em vista o contexto histórico vivido

por Heller.

Mas, por que essas temáticas implicaram tão profundamente em sua

produção intelectual? Tal resposta pôde ser encontrada quando nos defrontamos

com os acontecimentos e com a história da Hungria que exprime o sentimento do

povo húngaro na luta pela transformação da realidade, ou seja, por meio de um

“socialismo verdadeiro”.

Até o final dos anos de 1970, tanto a Hungria como o restante do mundo,

passaram por grandes efervescências: duas guerras mundiais, crises econômicas,

políticas, culturais e sociais, a ascensão do comunismo no Leste Europeu, a

opressão dos regimes totalitários, o desenvolvimentismo avassalador do capitalismo,

a “Guerra Fria”, dentre outros acontecimentos que, sem sombra de dúvidas,

marcaram a história de Agnes Heller.

Desse modo, o contexto histórico em que Heller viveu, somados a ânsia por

uma “redenção” e “autoafirmação” enquanto sobrevivente do holocausto, foram

elementos constitutivos e constituintes que influenciaram a sua tomada de posição.

Como se não bastasse encontrou um amplo campo teórico, altamente

desenvolvido e a oportunidade de viver seu desenvolvimento intelectual ao lado de

Georgy Lukács, enquanto aluna e assistente, como também encontrou um berço de

colegas e amigos que comungavam com o mesmo ideal.

Outra questão está diretamente relacionada aos acontecimentos sócio-

históricos e políticos daquela época. Conforme os apontamentos de Heller (1982b),

só quem viveu naquele período os horrores do nazi-fascismo de Hitler e o

totalitarismo-fascista de Stalin, pode entender porque o sentimento de liberdade e

democracia são tão significativos para aqueles/as que estiveram diretamente

imersos neste universo, sobretudo, para aqueles/as que eram estimulados/as na

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formação e consolidação do sujeito revolucionário individual e/ou coletivo – seja por

livre vontade ou por necessidade.

Portanto, levantar a história da Hungria até aquele período foi uma tarefa

assaz interessante e prazerosa. A história daquele país está indelevelmente

vinculada à luta pela liberdade e pela emancipação. Não é por mera coincidência

que os judeus se identificaram com aquele pequeno “país satélite” dos grandes

impérios invasores.

Pensar o cotidiano como um universo tão contraditório, constitui um campo

infindável e encantador a ser desvelado para alguém que buscava uma “causa” para

sua vida, como foi o caso de Heller. Por conseguinte, por que não extrair do próprio

cotidiano vivido os elementos para a construção de um arcabouço teórico-conceitual-

filosófico, fundamentado numa determinada proposta ética e política? Não foi por

mero acaso que Heller empreendeu-se nesse desbravamento.

Já de início é preciso definir o cotidiano de vida social. O cotidiano é o “mundo

da vida” que se produz e se reproduz dialeticamente, num eterno movimento: “[...] é

o mundo das objetivações”11. O conceito de cotidiano está relacionado àquilo que é

vivido e a vida social ao que se apresenta, um e outro se relacionam.

O cotidiano é a vida em sua justaposição, numa “sucessão aparentemente

caótica” dos fatos, acontecimentos, objetos, substâncias, fenômenos, implementos,

relações sociais, história dentre outros fatores. A vida cotidiana aparece como a “[...]

base de todas as reações espontâneas dos homens ao seu ambiente social, na

qual, frequentemente parece atuar de forma caótica”12.

A existência humana implica necessariamente a existência da vida cotidiana.

Não há como desassociar existência e cotidianidade, assim como, não há como

viver totalmente imerso na não-cotidianidade (estado de suspensão da

cotidianidade). É o mundo da vida: “[...] é o conjunto de atividades que caracterizam

a reprodução dos homens particulares13, os quais, por sua vez, criam possibilidade

da reprodução social”14.

É na cotidianidade que homens e mulheres exteriorizam suas paixões, seus

sentidos, suas capacidades intelectuais suas habilidades manuais, suas habilidades

11

HELLER, 1977, p. 07. 12 LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 12. 13

HELLER, 1977, p. 19. Grifos nossos. 14 HELLER, 1977, p. 19.

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manipulativas, seus sentimentos, suas ideias, suas ideologias, suas crenças, seus

gostos e pendores, enfim, todas as suas potencialidades e capacidades.

[...] A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-générica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente. (HELLER, 2004, p. 17).

A vida cotidiana é o espaço da vida dos sujeitos sociais15 em suas intrincáveis

e complexas relações sociais, dinâmica e dialética, ou seja, em sua forma de vida e

que carrega em si múltiplas determinações (historicidade, contradições,

estratificação e estrutura social, ultrageneralizações, imanências etc.)16.

Inseridos nesse contexto, homens e mulheres nascem, crescem,

desenvolvem-se, educam-se, trabalham, reproduzem-se, vivem e morrem. São

atuantes, desempenham seus papéis ativos, passivos, receptivos ou não, nos mais

variados espaços da vida social (ou esferas heterogêneas).

Porém, muitas vezes, dado o alto grau de alienação das relações sociais, não

aguçam ou mesmo não percebem suas capacidades e/ou potencialidades em sua

intensidade.

No que diz respeito à Agnes Heller, as condições objetivas conspiravam para

que desenvolvesse suas capacidades/potencialidades “por inteiro”, porém, ainda,

tinha a possibilidade de escolha: deixar envolver-se pela cotidianidade ou buscar

uma vida reflexiva? E porque não dizer revolucionária?

Na busca pelo conhecimento, primeiramente, buscou nas ciências algo que

respondesse aos seus anseios, depois, mergulhou “por inteiro” no universo reflexivo

da filosofia - da arte, da ética e da política. Posicionar-se ética e politicamente num

cotidiano tão conturbado como os anos de sua juventude, muito mais do que uma

simples escolha, era também um dever-ser.

Heller (2004) aponta que o ser social, inserido na cotidianidade, pode

desenvolver ou não por si mesmo, ou seja, pode adquirir habilidades que o

mantenha ativo e receptivo diante da realidade apresentada. Esse amadurecimento

humano está diretamente ligado às suas habilidades e potencialidades de

15

Ser social consciente e ativo ética e politicamente. 16

Em momento oportuno, nos deteremos mais amiúde nessas categorias.

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manipulação das coisas, como também, está relacionado às relações sociais que

estabelece ao longo de sua vida, o meio em que se insere (ou é inserido), as

respostas aos estímulos e aos interesses, singulares e particulares, que lhe são

colocados à sua frente. As respostas de Heller foram de uma vida reflexiva e

revolucionária.

Para uma vida reflexiva e revolucionária, consciente, ética e politicamente, há

de se fazer uma verdadeira “revolução do modo de vida”17, enquanto “ser da

práxis18” (BARROCO, 2008).

Heller aponta em seu estudo Teoría, praxis y necesidades humanas19, que

práxis no sentido lato é “[...] todo tipo de atividade social e, em última instância, a

atividade humana em geral”20, em outras palavras, implica em toda atividade

humano-social que se objetiva teórico/práxis na vida cotidiana, que implique uma

atividade, ou ação dinâmica e de mudança, consequentemente, uma ação político-

revolucionária21.

A vida de Heller é um verdadeiro posicionamento teórico/práxis e

práxis/teórico na e para a vida social. Esta práxis-político-revolucionária implicava,

necessariamente, na transformação da hierarquia das suas necessidades.

Por conseguinte, para que uma teoria se converta em uma práxis

revolucionária22, deve se propor a observar determinado movimento social e suas

17

HELLER, 1978, p. 169. 18

O termo práxis (do grego – πράξις – ação) utilizado aqui em seu sentido lato como o conjunto de todos os tipos de atividades humano-sociais objetivadas no cotidiano; e em seu sentido stricto como ação transformadora do ser social através do trabalho, em outras palavras, ao transformar a natureza, o ser social transforma a si mesmo concomitantemente, numa relação dinâmica e dialética. A ação transformadora é entendida enquanto atividade específica do ser social. Atividade prática consciente capaz de criar e re-criar necessidades e capacidades materiais e/ou espirituais, instituindo, por sua vez, um ponto concreto, antes inexistente. Segundo Vázquez (2007, p. 28), “[...] a práxis ocupa lugar central na filosofia que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também como elemento do processo de sua transformação”, portanto, é uma atividade prático-consciente, capaz de criar e recriar possibilidades objetivas às suas carências e necessidades objetivas e subjetivas. 19

Este estudo se encontra como Apêndice da obra Teoria de las necessidades em Marx (1978), compreendendo as páginas 161 a 182. 20

HELLER, 1978, p. 164. 21

Opção condicionada direta e historicamente a uma ação direcionada à alterar a realidade dada: “[...] o que é a revolução sem a transformação profunda da vida dos homens?” (HELLER, 1982b, p. 121). 22

Entendemos aqui como práxis revolucionária o movimento de transformação social concreta e dinâmica da vida social. Para Marx, em suas Teses sobre Feurerbach, “os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 29 – grifos do autor). Não basta somente interpretar, expor, refletir sobre as condições ou circunstâncias objetivas ou subjetivas de aspectos relacionados à vida humana, mas sim, ir além, procurar condições e possibilidades concretas e objetivas de reverter ou minorar situações que impedem que a vida humana se exponha a condições subumanas de sobrevivência.

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situações concretas. A práxis contém em si os meios adequados para cada

situação/objetivação concreta e em sua totalidade (HELLER, 1978).

Heller, enquanto individualidade consciente do seu papel social e de suas

ações, por si só e pela própria condição de ser social inserida num cotidiano tão

diverso, plural e contraditório, merecia um estudo mais aprofundado. Deste modo,

passou a ser nossa preocupação apropriarmo-nos de seu pensamento, do seu

cotidiano, para somente depois, darmos sequência a nossa proposta investigativa.

Dada à dimensão e erudição de seus escritos, fixamo-nos em suas análises

sobre o cotidiano e o ser social, buscando a sua essência filosófica. Partindo das

contradições inerentes aos fenômenos e às mudanças dialéticas que ocorrem na

sociedade contemporânea e do universo helleriano, em sua totalidade, tendo como

objetivo entender a antropologia-ontológica produzida por Heller no intuito de

entender o indivíduo social em sua particularidade, singularidade e genericidade.

Deste modo, nos apropriamos dos referenciais teórico-metodológicos de cariz

marxiano e marxista, buscando apoderar do objeto em seus pormenores e em suas

diferentes formas de desenvolvimento, perquirindo uma conexão íntima entre elas,

para somente depois, descrever adequadamente, a(s) essência(s) velada(s) pela

aparência.

A vida de Heller, assim como a de qualquer pessoa, não estava livre das

implicações e determinações cotidianas e das vivências de outras pessoas,

principalmente as que dividiram o mesmo contexto histórico-social de sua época.

Sua vida, tanto objetiva como subjetiva, desenvolveu-se repleta de acontecimentos

constituintes de qualquer cotidiano, porém, no caso dela, acontecimentos

particulares e próprios daquele contexto, direcionaram-na para um determinado

modo de pensar e agir numa determinada direção.

Não podemos esquecer que em cada época e contexto social há

particularidades, estruturas, sistemas político-econômico-culturais, enfim, realidades

diversas e distintas em suas formas, tessituras, ritmo, substâncias dentre outros

elementos constitutivos e constituintes, como também, cada pessoa em sua

singularidade-particularidade reage de uma maneira a essas determinações.

É inegável que as particularidades e singularidades do ser social sejam

diferentes e que as respostas objetivas e concretas aos estímulos, interesses e

determinações cotidianas, também sejam distintas. Contudo, partimos do

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pressuposto de que os sujeitos sociais fazem a sua própria história, mas a faz em

condições previamente dadas (MARX, 1997; HELLER, 2004).

Desta maneira, Heller trata o ser social com particular:

[...] na vida cotidiana de cada homem são pouquíssimas as atividades que tem em comum com outros homens, ademais estas só são idênticas num plano muito abstrato. Todos necessitam dormir, porém ninguém dorme nas mesmas circunstâncias e por um mesmo período de tempo; todos tem necessidade de alimentar-se, porém não na mesma quantidade e do mesmo modo. Cada um – considerando o homem particular na medida da sociedade – deve ademais reproduzir a espécie, quer dizer, trazer filhos ao mundo. Os homens, por conseguinte, tem em comum, entre outras atividades que – fazendo abstrações de seu conteúdo concreto – são comuns a dos animais. Trata-se das atividades que servem para conservar o homem enquanto ente natural. (HELLER, 1977, p. 19).

É inegável que as particularidades e singularidades do ser social são

diferentes e que as respostas objetivas e concretas às determinações cotidianas

também sejam distintas. Contudo, partimos do pressuposto de que os sujeitos

sociais fazem a sal própria história, mas em condições previamente dadas (MARX,

1997; HELLER, 2004).

Ao nascermos, desenvolvemos nossas capacidades de comportamento

simbólico, ou seja, a linguagem, o pensamento racional, a orientação segundo os

valores, “nosso a priori se assim o quiser. [...] Somente a posteriori podem se

manifestar em total extensão”23, em capacidades/potencialidades.

É conhecido o caso das meninas-lobo, bem como, O enigma de Kaspar

Hauser24. Não somos guiados apenas pelos instintos, mas também produzimos

teleologicamente mediações e as objetivamos na vida social: “[...] são estas

objetivações sociais das quais devemos nos apropriar se queremos viver, as que

ocupam o lugar de guia atribuído aos instintos. O que há em nós de estritamente

biológico é nossa fronteira. A fronteira absoluta é a moralidade”25.

Não somos seres estritamente biológicos e instintivos. Mas sim, seres de

relações sociais, construtores e artífices de nossa própria história. Portanto, partimos

da premissa de que “[...] toda a história humana é, naturalmente, a existência de

seres humanos vivos” e que “[...] toda a historiografia deve partir desses

23

HELLER, 1982b, p. 142. 24

Referência ao filme produzido por Werner Herzog em 1974. 25

HELLER, 1982b, p. 142-143.

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fundamentos naturais e de sua transformação pela ação dos homens no curso da

história” (MARX; ENGELS, 2004, p. 44).

Portanto,

[...] a produção de ideias, de representações e da consciência está no princípio, diretamente vinculado à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. [...] A consciência nunca pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo da vida real. (idem, p. 51).

Porém, não somos inseridos na vida cotidiana como uma “folha de papel em

branco”, mas sim, num contexto prévio e historicamente constituído por outros seres

sociais. Deste modo, é na vida cotidiana que os seres sociais adquirem todas as

habilidades e descobrem suas capacidades/potencialidades imprescindíveis à vida

social.

Para Heller, homens e mulheres, nascem e são inseridos numa dada

cotidianidade26 mas, o seu amadurecimento, em qualquer esfera e em qualquer

sociedade, se dá em sua fase adulta: “[...] é adulto quem é capaz de viver por si

mesmo a sua cotidianidade”27.

É na vida cotidiana que homens e mulheres “[...] fazem sua própria história,

mas em condições previamente dadas”28. É na vida cotidiana que homens e

mulheres defrontam-se diretamente com o legado anteriormente construído e

constituído antes mesmo do seu nascimento, e que é transmitido involuntário e

incondicionalmente.

Mesmo que aspire a certos fins, estes estão implicados pelas determinações

iniciais (estrutura e sistema social, momento e contexto histórico, lugar na

estratificação social, situação de classe, modo de produção, condições objetivas e

subjetivas etc.), mas homens e mulheres não estão fadados a um destino prévio a

condições e contradições anteriormente estabelecidas – ou em decorrência destas.

Pode ou não se acomodar diante dessa ou daquela realidade. Pode ou não

modificar esta mesma realidade.

26

Ou seja, num universo de determinações pré-concebidas anteriormente ao nascimento. 27

HELLER, 2004, p. 18. 28

HELLER, 2004, p. 01.

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45

[...] As coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. (KUNDERA, 2007, p. 09).

Só o ser humano tem a capacidade de modificar as circunstâncias

inicialmente dadas. Na Teoria Social de Marx constatamos esta afirmação. Através

de esforços e aspirações, o ser social tem a capacidade de criar e recriar

alternativas possíveis de serem objetivadas na vida cotidiana e, ainda, escolher

dentre elas a que mais atendam seus objetivos, suas necessidades e/ou interesses,

tal é este o fundamento da liberdade29 e, por conseguinte, da consciência ética e

política.

[...] A liberdade só veio a conseguir um lugar importante e cada vez mais significativo no núcleo da ética na época em que assumiu essa mesma importância na própria realidade; quando as comunidades naturais de tipo antigo se desenvolveram, a sociedade capitalista empreendeu o caminho do seu desenvolvimento e, com isso, esgotou-se a inserção incondicional e natural do homem numa situação dada; por conseguinte, pelo menos de modo abstrato e de acordo com a mera possibilidade, o homem pôde já escolher seu lugar no mundo e, com ele seus costumes e suas normas, o que tornou desnecessária uma ética vinculada ao código de costumes. (HELLER, 2004, p. 07).

Deste modo, homens e mulheres aspiram a certos fins, porém, as

determinações e circunstâncias muitas vezes impedem ou modificam tais esforços e

aspirações, e o que é produzido e/ou reproduzido, pode se diferenciar dos fins

inicialmente projetados30.

Esta referência de Heller às teses marxianas, já indicam o seu envolvimento

com as matrizes teóricas da Teoria Social de Marx. Ao tomar contato com a obra

helleriana, verificamos que ela incorpora de tal maneiro os enunciados de Marx e/ou

pelo próprio Lukács que, muitas vezes, não conseguimos detectar o que é realmente

de Heller, Marx ou de Lukács, tal é o estado de sua subsunção a estes pensadores

como também a outras matrizes filosóficas, destacando-se Aristóteles, Hegel e Kant,

além dos contemporâneos de sua época.

Dado ao alto grau de sua erudição, Heller também realiza um profundo

diálogo com outros/as pensadores, literatos/as, artistas de um modo geral,

sociólogos, antropólogos, historiadores dentre outros/as. Não estamos aqui

29

Entende-se por liberdade o “campo de ações reais das decisões entre alternativas realizáveis” (LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 10). 30

HELLER, 2004, p. 01; MARX, 2002, p. 21.

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46

desprezando estes diálogos, mas sim destacando as principais fontes em que Heller

bebeu para o desenvolvimento de seu pensamento.

Obviamente temos que considerar o contexto cultural europeu, em específico,

a Hungria aristocrática e popular, como também, o arcabouço teórico-metodológico

desenvolvido por Lukács e os demais membros da “Escola de Budapeste”.

Heller também aponta que é importante considerar que suas análises

compreendem o universo europeu e o norte americano. Não desconsideramos essa

limitação analítica, resguardando-se, desse modo, de analogismos

ultrageneralizados. Mesmo assim, sem sombra de dúvidas, os direcionamentos

dados por Lukács, propiciaram a Heller - e aos seus demais colegas - esta explosão

intelectual.

Nos anos que se sucederam à Revolução Húngara de 1956, Lukács

empenha-se numa verdadeira batalha para fazer uma releitura dos textos do jovem

Marx, principalmente depois dos acontecimentos na Hungria e no Leste Europeu31.

Heller, nesse período, caminha para a sua maturidade teórica e intelectual para

envolver-se nessa empreitada, juntamente com os demais membros da “Escola de

Budapeste”.

Por conseguinte, os fundamentos constitutivos de suas análises, ecoavam

para fundamentos de uma determinada consciência ética e política do ser social na

e para a vida cotidiana. Deste modo, este estudo não só se definiu em sua forma

teórico-conceitual, mas também, teórico-práxis e práxis-teórico, porque traziam os

aspectos de um determinado pensamento vivido, de uma determinada práxis social

revolucionária. Assim, buscamos entender qual seria o fundamento primeiro de sua

teoria.

Segundo Heller, a vida cotidiana é o “mundo das objetivações”, conforme já

apontamos. Portanto, é fato que o ser social se coloca na e para a vida social de

forma objetiva e propositiva. Mas, num mundo repleto, em grande medida, por

apelos alienados e alienantes, homens e mulheres se inserem ou são inseridos nas

diversas esferas heterogêneas por relações sociais coisais e objetuais. Assim sendo,

é possível o ser social se colocar ativo e conscientemente nesta mesma vida social?

A princípio, nossa resposta seria negativa, mas em análises mais

aprofundadas encontramos a sua afirmação: sim, é possível, mas não

31

Ocuparemo-nos desses acontecimentos no Capítulo III relacionado a contextualização sócio-histórico de Agnes Heller.

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genericamente e a todo o momento, nem mesmo por todos os seres sociais. Para

tanto, o ser social necessita de condições objetivas, concretas e conscientes para

este ato: “[...] a vida pode transformar-se totalmente em diversas direções e essas

transformações hão de ser voltadas segundo nosso ponto de vista”32.

Parecia-nos, então, que era uma questão de circunstância ou de

oportunidade, mas poderíamos cair no campo do determinismo, da sorte ou do azar,

do destino e/ou do acaso, da fatalidade ou causalidade, ou até mesmo em sua forma

mítica e mística de dom sobrenatural ou de moral.

Se o ser social é capaz de fazer sua própria história, mas em condições

previamente dadas, conforme já apontamos, então, só pode ser nas situações

concretas que se encontram estas mesmas condicionalidades.

[...] Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-las nas vidas posteriores. [...] não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. (KUNDERA, 2007, p. 14).

As condicionalidades, e/ou potencialidades, estão na vida cotidiana, mas não

são exteriores ao ser social, mas sim, em seu interior. No cotidiano, as

condicionalidades e/ou capacidades/potencialidades são construções sócio-

históricas. Assim como fazemos escolhas inerentes a nossa vontade, também há

circunstâncias e/ou determinações de causalidade que modificam os fins almejados,

produzindo, desse modo, resultados inesperados ou diferentes daqueles

inicialmente projetados.

Mais um problema se colocava: o campo da subjetividade. Ao reduzirmos a

realidade humana a um estado ou ato de plena responsabilização individual dos

sujeitos sociais, cairíamos, sem sombra de dúvida, no campo das escolhas

particulares e morais e/ou das preferências individuais, portanto, no terreno árido e

espinhoso da moralidade e/ou moralização.

Num determinado período histórico, por exemplo, as expressões da questão

social foram relegadas ao determinismo divino ou às questões particulares e

individuais, naturalizando as mazelas humanas e condicionando a responsabilização

do indivíduo pelos problemas, atos ou situações que por ventura pudesse se expor,

responsabilizando, desconsiderando as determinações históricas e sociais, a luta de

32

HELLER, 1982b, p. 121.

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classes, os níveis de exploração e submissão, o campo das necessidades, enfim,

aspectos constitutivos da totalidade social.

Então, onde estava a saída? Onde Heller se apoiou para desenvolver suas

análises? Como encontrar um caminho para uma filosofia da práxis social ou de uma

contribuição para uma filosofia da práxis social? Como emancipar o sujeito na e para

a vida cotidiana? Como sair do estado de alienação?

Não vamos nos ocupar de desenvolver aqui um estudo mais aprofundado

sobre as matrizes teórico-ontológicas de Marx e Lukács, haja vista que estas já se

encontram largamente estudadas por intelectuais nas mais diversas áreas do

conhecimento, das quais também realizamos alguns estudos em outras

oportunidades33. Mas, acreditamos ser necessário fazer alguns apontamentos

significativos para situar a insustentável leveza do ser social.

Há um analogismo desse capítulo com o romance de Milan Kundera (2007),

que explora a ideia sobre as incoerências das ações humanas que, na maioria das

vezes, estão baseadas nas motivações mais obscuras e verdadeiras, não é por

acaso essa analogia: “[...] todo homem tem motivações que se referem apenas a sim

mesmo, finalidades que pacificam tão-somente suas próprias necessidades”34.

No interior do romance de Kundera, encontramos certa tipologia existencial,

ou categorias consoantes do modo de ser e/ou de viver na e para a vida social. Tais

categorias podem ser entendidas como a função dos papéis sociais que Heller

(2004) descreve em seu texto Sobre os Papéis Sociais, assunto este que nos

ocuparemos mais adiante.

Kundera (2007) nos mostra que temos a necessidade de olhares, ou seja, o

ser social carece de espelhos ou procura seu reflexo nos outros. Esta situação

reflete a necessidade de construir modelos e/ou estereótipos para a vida social, ou

até mesmo de eleger uma série de regras, normas e convenções sociais para o viver

cotidiano.

Histórica e socialmente a vida humana foi se constituindo um peso, um fardo

complexo que, muitas vezes, é difícil de ser carregado. Podemos fazer aqui uma

analogia perfeita ao Atlas da mitologia grega que fora condenado por Zeus a

carregar o mundo em suas costas, ou até mesmo ao mito de Sísifo que condenado a

33

Referências aos estudos anteriores deste pesquisador: As reflexões estéticas na perspectiva lukacsiana: uma expressão ontológica da realidade social (2006) e Introdução ao pensamento filosófico em Marx: a ontologia do ser social (2011). 34 HELLER, 2004, p. 47.

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continuamente escalar uma montanha com uma pedra atada às costas e quando

chegava ao topo, escorrega, tendo que recomeçar a subida novamente, na busca de

sentido para um mundo aparentemente inteligível: “[...] No mundo do eterno retorno,

cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável” (KUNDERA,

2007, p. 11).

Os complexos sociais tornam-se, em grande medida, grilhões que prendem a

vida humana a convenções, a um repetir de normas e regras consuetudinárias e de

juízo de valor incondicionais: “[...] nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e

tudo é, portanto, cinicamente permitido” (KUNDERA, 2007, p. 10).

Sabina, um dos personagens de Kundera, reflete exatamente o desapego

destas convenções sociais. Sabina não carecia de nenhum olhar, era leve, vivia

continuamente a negação das convenções, dos estereótipos, dos juízos provisórios,

das ultrageneralizações, dos valores, dos costumes, das regras e normas histórica e

socialmente arraigadas no arcabouço humano-genérico, enfim, o romance chama a

atenção para a leveza da vida ou da vida de liberdade.

Seria leviano de nossa parte considerar a liberdade em seu sentido absoluto,

mas sim, relativa – ou de liberdades. Heller (1982) aponta para o conceito de

autonomia – ter responsabilidade pelas próprias ações – e de relativa, apontando

que, as situações concretas e os diversos sistemas normativos “definem os limites

no interior dos quais podemos interpretar e realizar determinados valores”35.

Barroco (1999) já chama a atenção para os limites e as possibilidades da

ética profissional – e poderíamos também dizer para uma determinada postura ética

e política – diante das tendências estruturais e conjunturais da sociedade capitalista.

A vulnerabilidade na qual muitas vezes o ser social se coloca ou é colocado,

individual ou no coletivo, é o elevado preço que muitas vezes se paga para manter o

status quo dos papéis sociais – ou mesmo da própria vida que aparecem meramente

formais e/ou como negação da liberdade.

No romance de Kundera (2007), o amor, por exemplo, é revelado numa

complexa arqueologia de explosões e retrações, de liberdade e de exílio, de certeza

e de dúvida, enfim, de leveza e de peso: “[...] o peso, a necessidade e o valor são

três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem

valor àquilo que pesa”. (KUNDERA, 2007, p. 45).

35 HELLER, 1982, p. 151.

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Heller transformou os momentos mais pesados de sua vida e suas

necessidades mais prementes, numa teoria de afirmação da sua própria

individualidade, numa completa negação e afirmação perante os fatos e fenômenos

mais significativos de sua história, numa valoração incondicional, na e para a vida

social, assim como muitos/as ao longo da história da Humanidade, conhecidos/as ou

anônimos/as, percebidos/as ou ignorados/as.

Também o romance de Chico Buarque, Budapeste (2011) - além de nos

trazer elementos históricos e cotidianos da vida em Budapeste, cidade natal de

Agnes Heller -, nos mostra o cotidiano duplo e dúbio de José Costa, personagem

central do romance.

Ali, José Costa divide momentos entre sua afirmação e negação, resolução e

problematização, persona e não-persona, fama e anonimato, identidade e não-

identidade, enfim, numa vida transloucadamente paralela entre sua afirmação e sua

negação.

Dizemos que toda negação do personagem de José Costa era por si só uma

afirmação. Ao negar-se, afirmava-se contrariamente aquilo que negava, portanto,

afirmava aquilo que não queria ser, que não acreditava e que não concordava.

A obsessão de José Costa em aprender a “[...] única língua do mundo que,

segundo as más línguas, o diabo respeita” (BUARQUE, 2011, p. 06), nos aponta, um

desafio que a vida lhe colocava à sua frente. Era necessário jogar-se “por inteiro”

para resolver obstáculos aparentemente intransponíveis.

Ao negar-se como escritor e escrever uma biografia encomendada - O

Ginógrafo -, revela sua própria personificação obstinada pelas letras, pelas histórias

que mesmo sendo dele, escoavam pelas suas mãos assim como as letras que se

apagam ao banhar do corpo das musas de sua estória. Ao se afirmar, negava-se e

ao se negar se afirma enquanto ninguém.

Heller, por sua vez, ao querer se afirmar “por inteiro”, faz de sua teoria uma

causa, de sua vida uma filosofia e de sua filosofia uma vida filosófica. O espírito

analítico de Heller consiste em suprimir os parênteses que circunscrevem o objeto

analisado e encontrar nas mediações sua diferenciação desde o ponto de vista de

sua finalidade (teleologia), até a análise do processo e das etapas sucessivas que

podem coadjuvar ou obstaculizar a relação deste fim, tendo como principal categoria

a dialética.

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Primeiramente, busca a causa imediata, depois as raízes e suas

deliberações, descartando as não-possibilidades. Por último, encontra a(s) base(s)

para a deliberação daquilo que se apresenta de mais premente no objeto em

análise. A primeira etapa retoma a última e, assim, parte do resultado para remontar

as causas constituintes de suas objetivações concretas.

Para chegarmos a estas afirmações, buscamos apreender o universo teórico

desenvolvido por Heller, apropriando-se sucessivamente dos diferentes momentos

de sua trajetória, da gênese de seu pensamento, da estrutura e desenvolvimento de

suas concepções de humano e de mundo. A síntese dessas aproximações permitiu

identificar, conhecer e trabalhar o objeto de nossa análise: a consciência ética e

política do ser social na vertente helleriana.

Porém, não se esgotaram aqui todas as aproximações encontradas.

Buscamos apresentar parte do real enquanto síntese destas aproximações. Todo

pensamento, toda ideia, todo ideal e toda filosofia não são adquiridos de uma só

vez, mas nascem, frutificam-se e compõem na somatória de inúmeras

determinações que fazem parte do sujeito e, por que não dizer, da vida do sujeito.

O pensamento de Heller é a síntese de múltiplas determinações, de modo a

atribuir significado e intencionalidade condicionante à suas objetivações na e para a

vida social. Para que possamos visualizar as complexas estruturas e conjunturas da

sociedade capitalista, torna-se necessário buscar os elementos constituintes e

constitutivos dessa realidade, bem como, as formas de alienação a que estamos

submetidos/as.

Portanto, buscaremos no decurso desse capítulo os elementos constitutivos

desta investigação para visualizarmos a insustentável leveza do ser social

personificada nos escritos de Agnes Heller.

1.2. Elementos introdutórios: aspectos conceituais

Entendemos o ser humano enquanto ser social, um ser real que se relaciona

histórica e socialmente com o mundo em que se insere ou está inserido. Esta

inserção se dá, num processo de construção e autoconstrução, dinâmico e dialético,

e que possui uma dupla dimensão: ontológica, a ser concebida como tendo uma

natureza comum e inerente a todos e a cada um dos seres, portanto, genérica; e

reflexiva que é elaborada pela mente humana. (BARROCO, 2005).

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Portanto, é um ser real, concreto, histórico e dialeticamente constituído na

vida social, em contraposição a qualquer proposta idealista. Para Marx, a natureza

se transmuta em natureza humana, não apenas no sentido de reproduzir a

existência genérica - particular e singular - do humano de forma isolada, mas passa

a se socializar particularmente através das relações sociais, num processo intrínseco

e extrínseco de seu modo de ser socialmente válido. Em outras palavras, além de

estabelecer relações sociais objetivas, também estabelece relações subjetivas

consigo mesmo.

O liame que separa o ser natural - homem/natureza e natureza/homem - e o

ser social, ou seja, em seu processo de socialização, é muito tênue. Este processo

se deu numa determinada época da história da Humanidade36. A partir de então,

todos os homens e mulheres serão frutos das relações sociais, ou seja, do humano-

genérico37.

Baseado nas análises de Heller, podemos ainda afirmar que o ser social

constitui-se enquanto ser natural, ser social e ser individual, assunto este que será

desenvolvido no decurso dessa dissertação.

Marx e Engels se detiveram nessas análises ao apresentaram a ontologia do

ser social no obra A Ideologia Alemã (2007), bem como Engels em seu texto Sobre o

papel do trabalho na transformação do macaco em homem (1876), como também

compreenderam os últimos estudos de Lukács e os membros da “Escola de

Budapeste”.

György Márkus38 trouxe à luz uma verdadeira síntese didática sobre a

ontologia do ser social intitulado Marxizmus és “antropología” traduzido do alemão

para a língua espanhola por Manuel Sacristán e editado pela Grijalbo, em 1974, sob

o título Marxismo y “Antropología”, onde estudou o conceito menschliches Wesen –

ser humano, essência humana -, contidos nos Manuscritos Econômico-filosóficos de

1844 de Marx. Constitui uma verdadeira construção antropologia-ontológica do ser

36 Para maiores detalhes, sugerimos a leitura do texto de F. Engels O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. (MARX/ENGELS. Obras escolhidas. V. 2. São Paulo: Alfa-Omega, s/d, p. 267-280. 37

Processo acumulativo no desenvolvimento histórico-social do/a homem/mulher. É o homem/mulher “um ser genérico [...] produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano” (HELLER, 2004, p. 21). 38

György Márkus nasceu em Budapeste em 1934, estudou na Universidade Lomonosov de Moscou, retornando à Budapeste por volta do ano de 1957, onde foi lecionar na Faculdade de Filosofia da Universidade Científica de Budapeste. Márkus foi um dos integrantes da “Escola de Budapeste”.

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social, estudando o ser humano enquanto ser natural universal, o ser humano como

ser natural, social e consciente, e o ser humano e a história.

Não poderíamos deixar de apontar para a categoria ontológica mais

significativa na obra marxiana: o trabalho39. Para Marx, o trabalho é a categoria

fundante do ser social e que assume o caráter de protoforma do seu processo de

hominização e humanização.

É pelo trabalho que o ser social se relaciona com a natureza e os outros seres

de igual natureza – homens e mulheres - e, portanto, se tornam enquanto tal. O

trabalho é a primeira ação objetiva da atividade humana. É por ele que o ser social

transforma a natureza e, ao mesmo tempo, se transforma.

Para Marx (2006, p. 211), o trabalho é “[...] um processo de que participam o

homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação,

impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza”. É pelo

trabalho que o ser social se objetiva no mundo através de suas prévias ideações40 -

teleologia, e de mediações41’42.

É sob essas premissas que Marx e Engels dão o passo decisivo para

compreensão o ser social em seu processo de hominização e humanização, bem

como a sua socialização.

Para sobreviver, o ser social transforma a natureza pelo trabalho, criando as

condições para a sua sobrevivência e dessas, cria os complexos categoriais e

sociais que constituíram a Humanidade. Diferentemente dos animais que agem por

instinto de sobrevivência, o ser social age por teleologia e mediações e objetiva seus

resultado no mundo real e concreto através do trabalho. 39

Para maior aprofundamento, consultar Marx (2006, p. 207-219) e Lukács (2004). 40

Representações que surgem na mente humana enquanto reflexo do real captadas como representações da consciência. (PONTES, 2002, p. 59). 41

Movimento intelectual processual que “ascende do abstrato (real caótico) representação do real caótica do real ao concreto (real pensado), combinando representações ideais como observações empíricas”. É o “movimento que a razão opera para apreender reflexivamente o movimento das categorias histórico-sociais, desenhando-as de sua forma imediata de aparecer no pensamento, como fatos isolados”. (PONTES, 1999, p. 40). “[...] o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efeito e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por resultado do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto”. (MARX, 2011, p. 54-55). 42

Para maiores esclarecimentos sobre a categoria mediação, consultar Pontes (2002).

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Esta imanência resulta na capacidade de formular possibilidades, finalidades

e alternativas de escolhas, dentre as condições possíveis, construindo mediações

para suas objetivações. Em outras palavras, é dentre as possibilidades dadas, que

se busca os meios e as formas para sair do estado primitivo (ou natural), para o

estado humano-social. Portanto, o ser social possui em-si a capacidade onto-

criativa43, ou seja, o poder criativo e autocriativo de se objetivar.

Nos dizeres de Marx (2006, p. 64-65),

[...] o trabalho, como criador de valor-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade -, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana.

Para Lukács (2004, p. 40),

[...] o trabalho se converte, não somente em um fato no qual se expressa à nova peculiaridade do ser social, mas também – precisamente, de maneira ontológica -, em modelo da forma de ser inteiramente nova.

O trabalho é, portanto, a manifestação mais original e premente de liberdade,

da capacidade humana de criar, histórica e socialmente, a sua própria forma de

existência. É pelo trabalho que foi possível criar (e/ou estabelecer) os primeiros

complexos de sociabilidade que, ao se multiplicaram, tornaram-se cada vez mais

complexos.

Contudo, estes complexos deram origem aos agrupamentos sociais, criando

novas formas de socialização, novos modos de vidas, culturas, estruturas sociais,

estratificação social, elementos constituintes para a vida em sociedade, e com eles a

sociedade, a linguagem, a escrita e os demais complexos sociais44, até chegarmos

ao que denominamos por civilização altamente desenvolvida.

43

Este conceito é utilizado por Karel Kosik (2010) em sua obra Dialética do concreto. Entendida como a capacidade ontológica do ser social de criar a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade), processo este de luta constante para sua auto-emancipação e conquista da liberdade. (KOSIK, 2010, p. 222). 44

Entendemos por complexos sociais o “conjunto de relações sociais que se distingue das outras relações pela função social que exercem no processo reprodutivo”. (LESSA, 1999, p. 25). Quando a vida do ser social, ou as relações sociais, ou a própria sociedade se complexifica, abre-se um campo novo de mediações, ou seja de novas possibilidade para as projeções teleológicas.

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A caça e a pesca deram lugar à agricultura e a pecuária; a manufatura passou

para a acumulação primitiva e para as mais complexas formas de industrialização e

acumulação; a manipulação dos metais preciosos constitui-se o valor monetário - o

dinheiro; o trabalho individual e coletivo deu lugar à divisão social do trabalho,

determinando o modo e as condições de vida dos indivíduos que viviam em

sociedade; as construções rudimentares deram lugar as cidades, Estados e Nações;

a navegação primária e de subsistência organizaram-se em grandes navegações

exploratórias; a filosofia, a ciência e a tecnologia propiciaram meios para o status, a

dominação, a eterna controvérsia entre dominantes e dominados, até que as

condições sócio-históricas possibilitaram o surgimento da sociedade burguesa e o

modo de produção capitalista, abrindo as portas para a produção e acumulação de

riquezas, ou seja, o desenvolvimento universal das forças produtivas e a subversão

incessante da dominação da lógica do capital sobre a vida humana e dos interesses

privados e individuais.

[...] O marxismo considera todas as épocas históricas como complexos particulares e totais em si próprios, apesar de cada uma se desenvolver orgânica e dialeticamente a partir da época anterior; por essa razão rejeita como estéril, tanto em teoria como na prática, toda a procura de semelhanças que redunde numa procura de normas, e rejeita particularmente o precedente como motivo para as decisões e ações sociais concretas dos homens na história. (HELLER, 1982a, p. 77)

45.

Articulado a este desenvolvimento histórico-social ao longo dos séculos, veio

também à propriedade privada, a dominação, a estratificação, a escravidão, a

possessão e subordinação, o poder, o status, o dinheiro, enfim aquilo que

conhecemos como luta de classe, apropriação, exploração, questão social,

alienação/reificação46, ou seja, as formas mais cruéis e concomitantes da dominação

dos “homens sobre os homens”.

[...] Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a mesma profundidade em todas as camadas sociais; assim, por exemplo, fechou-se quase completamente nas épocas de florescimento da polis ática e do

45

Grifos da autora. 46

Reificação está sendo utilizado aqui enquanto “submissão manipulada aos grandes mecanismos sociais” (HELLER, 2004, p. 7).

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Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se desmesuradamente. (HELLER, 2004, p. 38).

Nas sociedades pré-capitalistas, ou pré-industriais, o trabalho estava

intrinsecamente vinculado à vida social e a força-de-trabalho produzia a sua própria

riqueza. Nas sociedades industriais, ou capitalistas, o trabalho perdeu o sentido

humanizador e a força-de-trabalho passou a ser mera mercadoria, parte passível de

compra e venda. Passa paradoxalmente a ser mero produto e produtora de capital,

de lucro e de “mais-valia”. Estabelece-se, desta forma, a regência do capital sobre a

vida social.

Quando a força-de-trabalho assume a característica de produtora de valor-de-

uso e de valor-de-troca no capitalismo, ou como diria Marx (2006),

[...] as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem de acordo como que realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos. [...] Os homens não estabelecem relações entre os produtos do seu trabalho como valor por considerá-los simples aparência material de trabalho humano de igual natureza. Ao igualar, na permuta, como valores, seus diferentes produtos, igualam seus trabalhos diferentes, de acordo com sua qualidade comum de trabalho humano. [...] É porém essa forma acabada do mundo da mercadoria, a forma dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência (MARX, 2006, p.95-97).

Deste modo, o caráter social do trabalho assume a fantasmagórica forma de

uma relação entre coisas. Sobre a lógica do capital, as relações sociais passam a

serem relações de produção de valor-de-troca, ou seja, de mercadorias, para cada

vez mais produzir e acumular mais capital – plus capital.

Ao sofrer esta profunda modificação, esse fetiche47, o ser social coagula

factualmente as objetivações sociais, coisificando-as, diminuindo, ou até mesmo,

anulando as suas particularidades históricas e sociais, numa generalização alienada

e alienante: reificada48.

47

Heller se refere ao fetichismo como relações de mercado. Para Netto (1981, p. 42) o fetichismo se dá quando as “[...] relações sociais entre pessoas convertem-se em relações sociais entre coisas”. 48

O fenômeno da reificação (em latim, res = coisa; reificação, pois, é sinônimo de coisificação) é peculiar às sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma típica da alienação (mas não a única) engendrada no modo de produção capitalista. O fetiche daquela mercadoria especial que é o dinheiro, nessas sociedades, é talvez a expressão mais flagrante de como as relações sociais são deslocadas pelo seu poder ilimitado. (NETTO; BRAZ, 2007, p. 93).

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57

O antagonismo entre o progresso e a exploração, entre a estratificação

classista – burguesia vesus proletariado - e a desapropriação do produto produzido

e o produto adquirido, entre a riqueza e a miserabilidade, enfim, quando há a

desumanização do próprio ser social, ascende um clima de insatisfação e

insurreição generalizada, gerando a organização do proletariado numa classe social

vigorosa, frente às decisivas subordinações opressivas e de exploração das

tendências burguesas e capitalistas progressistas do século XIX: “[...] A insatisfação

em face do modo de vida das gerações anteriores pode dar-nos a consciência da

necessidade da revolução”49.

É nessa perspectiva que Marx e Engels buscaram formular sua Teoria Social,

em outras palavras, uma teoria que aludisse para uma práxis social revolucionária,

que buscasse alterar radicalmente o sistema de opressão e exploração através da

mobilização e organização da classe trabalhadora e dos eflúvios dos movimentos

socialistas, comunistas e anarquistas, que se organizavam a época.

Romper com as barreiras do fatalismo e da naturalização da miséria, rumo à

consumação daquilo que se esperava ser a gênese de um sistema verdadeiramente

revolucionário - o socialismo/comunismo - era, então, a condição sine qua non para

a liberdade.

Do final de século XIX e início do século XX o socialismo/comunismo encontra

terreno fértil para levantar seus alicerces. Surge em vários países pelo mundo a fora

a consolidação daquilo que parecia ser a vitória contra a situação de penúria em que

encontrava uma grande parte da Humanidade.

É no Leste Europeu, especificamente na Rússia czarista que, no despontar

dos primeiros anos do século XX, o comunismo encontra solo fértil e se firma

enquanto sistema opositor ao czarismo e ao capitalismo, dividindo o mundo em dois

sistemas distintos e antagônicos.

Já no final dos anos de 1920, Heller foi inserida nesse mundo dividido entre o

capitalismo e o socialismo/comunismo. A Hungria de sua época era uma mistura

efervescente de alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, liberdades e opressão, uma

verdadeira pandemia pluralista - social, política e cultural -, típicas daquela época.

Em Budapeste, cidade banhada e cortada pelas “ondas do Danúbio”, Heller

teve suas primeiras experiências traumáticas. Buda e Pest, não foram somente

banhadas tão somente pelas águas do Danúbio, que tanto inspiraram compositores, 49 HELLER, 1982, p. 156.

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58

poetas e literatos a um romantismo amoroso e patriótico, mas também por um mar

de sangue e mortes.

Foi nesse solo que Heller encontrou terreno fértil para firmar suas raízes.

Budapeste, apesar das efervescências políticas, sociais e culturais, apesar das

agruras daquele período, era herdeira de um vasto cabedal cultural aristocrático e

popular, principalmente, no que diz respeito a um afã de liberdade.

Vitimizada em sua juventude pelos horrores nazi-fascistas de Hitler, vê cair a

sua terra querida no totalitarismo-fascista de Stalin. Era preciso uma força

descomunal para não desfalecer diante de tamanhas atrocidades, como ela mesma

descreve.

Buscando ressurgir das cinzas cotidianamente como uma Fênix ao alçar voo

na busca pela sua autoafirmação, Heller se vê salva dos horrores do holocausto e

sente que precisa pagar “aquela divida”: “[...] eu sentia que tinha uma dívida a pagar

como uma sobrevivente”50, diz Heller em entrevista concedida a Csaba Polony51.

Precisava fazer alguma coisa pela Humanidade que não conseguiu sobreviver

como ela. Era preciso fazer alguma coisa grande, algo que realmente significasse

este salvo-conduto.

A ciência era a que primeiro lhe inspira, porém, seu encontro com Georgy

Lukács trouxe novos rumos. Na busca por uma “causa”, encontra na filosofia a sua

autoafirmação existencial, mas deveria escrever uma filosofia que impingisse um

dever-ser: “[...] escrevendo filosofia moral e filosofia da história para mim, então se

tornou uma maneira de pagar a minha dívida como uma sobrevivente para as

pessoas que não puderam sobreviver”52.

Nos anos que se seguem - os de 1950 até o final de 1970 -, Heller formula

sua filosofia inspirada e conduzida por seu mestre. Extrai da vida cotidiana - e até

mesmo de sua própria vida - os objetos para suas análises. Além dos objetos,

também extrai os elementos constitutivos de sua teoria. Juntamente com Lukács e a

“Escola de Budapeste”, buscou subsídios teórico-conceituais para estudar aspectos

distintos da ontologia do ser social.

50

POLONY, 1997. 51

Entrevista concedida a Csaba Polony, em 24 de março de 1997, por ocasião do Osis Liberary Club and Bookstore, em Budapeste, Hungria. A entrevista é uma transcrição gravada em inglês. Disponível em http://www.leftcurve.org/lc22webpages/heller.html, acesso em 12/05/2011. 52

POLONY, 1997.

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59

No azáfama do projeto lukacsiano de construir uma Ética marxista, era

preciso dissecar o ser social, realizar uma verdadeira anatomia filosófica, sociológica

e antropológica da ontologia do ser social para construir uma ética de inspiração

marxista.

Firma suas bases na moralidade, na ética, na historiografia, na vida cotidiana,

no valor, nas necessidades e, sobretudo, alinhavadas pela democracia e pela

liberdade, temas que refletiam sentimentos tão profundos de sua genialidade, não

para externar sua inteligência – fruto de sua empiria vivida -, mas também para

externar a sua criatividade.

Aqui não nos cabe traçar uma biografia helleriana, principalmente que este

não é o nosso objetivo neste capítulo, mas sim, realizar uma análise do pensamento

e da práxis ética e política nos escritos de Heller, especificamente, em sua fase

marxista, ou seja, delinear o significado de sua contribuição para a formação e

construção da consciência ética e política do ser social, sobretudo no que possa

contribuir para a formação teórico-metodológica e ético-política do/a assistente

social, bem como, dos demais profissionais das diversas áreas do saber.

Porém, ao mesmo tempo em que desenvolvemos esta proposta, é importante

situá-la na história e perceber, através do diálogo estabelecido com os seus textos, a

sua posição como individualidade e como figura representativa de um grupo de

intelectuais que se preocupavam com questões relevantes da sua época.

Sua preocupação em afirmar-se enquanto intelectual preocupada com os

assuntos cotidianos e de sua autoafirmação, trouxeram ao longo de sua vida uma

filosofia da práxis e uma práxis filosófica.

A análise de um determinado modo de ser, pensar e agir na e para a vida

social, principalmente num período onde a forças produtivas, o capitalismo, a

violência, o despotismo, o totalitarismo, as desumanidades, o imperialismo e a

barbárie, enfim, para tudo que rege o que há de humano e, porque não dizer, da

vida terrena, não é uma tarefa fácil.

No atual estágio avançado das forças produtivas e do capitalismo, quando a

lógica do capital envolve todos os campos da vida humana, onde encontrar ou como

passar de um estado alienado/alienante para um estado consciente/emancipatório,

em outras palavras, elevar-se da condição de cotidianidade para uma situação de

sujeito social consciente e livre e que lute pela emancipação humana?

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Heller afirma que é necessário ler as contradições sem convertê-las em um

conceito naturalista totalmente objetivo. As necessidades do ser social se

apresentam em sua particularidade, como por exemplo, as necessidades primárias

de tomar banho são diferentes em cada momento da vida.

Esta necessidade se diferencia na fase infantil e na fase senil, como também,

são totalmente diferentes nas fases produtivas, na vida adulta saudável. Em cada

momento da vida esta mesma necessidade passa a carecer de novas necessidades.

Deste modo, tendo em vista que o primeiro ato humano é a própria

sobrevivência, não há como fazer história e/ou tomar consciência do seu significado

enquanto sujeito social se sua própria existência se apresenta estranha à sua

consciência e se suas necessidades mais elementares ainda não foram satisfeitas.

Se a sua existência no auge do desenvolvimento social se apresenta

coisificada e, sendo ela social, portanto, inseparável da vivência humana do outro

que, enquanto tal, se apresenta, da mesma forma, enquanto coisa - estranha de si

mesma -, torna-se difícil para o ser social se reconhecer enquanto ente natural e

social, e, ainda, estabelecer relações conscientes sociais e consigo mesmo. Assim,

se o ser social e as relações que estabelece se apresentam objetuais e coisais,

como pode este mesmo ser humano se posicionar ética e politicamente na vida

cotidiana?

Não há dúvidas para os marxistas que isso seria possível somente num outro

modo de vida, numa outra forma de sociabilidade. Obviamente não estamos aqui

buscando reduzir ou simplificar, nem tão pouco eliminamos as formas de revolução:

“[...] Marx imaginou o socialismo como uma sociedade racional”53.

Para Heller (1982a), espera-se de um marxista uma harmonia entre sua visão

de mundo e a sua prática: “[...] todas as filosofias exprimem simultaneamente uma

visão de mundo e uma atitude ativa relativamente a ele”54.

Estes apontamentos se colocam para aqueles/as que objetivamente buscam

transformar uma determinada teoria em práxis social revolucionária, mesmo sendo

constante e peremptoriamente compelidos/as pelos apelos do capital, do fatalismo,

do naturalismo e do relativismo, e não encontram saída para o enfrentamento das

barreiras que se colocam ou são colocadas à sua frente.

53

HELLER, 1982b, p. 142. 54 HELLER, 1982a, p. 85.

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1.3. “Ser ou não ser, eis a questão”

Desde o princípio, deparamo-nos com uma questão que nos impulsionou a

nos embrenharmos nessa selva intelectual, na ânsia em descobrir a essência do

pensamento helleriano além da cotidianidade e da moralidade: como assumir a

consciência ética e política num mundo regido pela lógica do capital e por

necessidades?

Para analisarmos o pensamento helleriano, foi preciso recolher todos os

elementos que, de certa forma, foram produzidos no decurso de sua vida,

principalmente aqueles que, de alguma forma, pudessem contribuir para a

compreensão da tomada de consciência ética e política do ser social.

Os pensamentos, ideias ou ideais de vida do sujeito social não são adquiridos

de uma só vez. Eles nascem, frutificam e se objetivam da soma de inúmeras

experiências, contatos e relações sociais ao longo da vida. Encontramos e

recebemos influências sociais, culturais, políticas e econômicas, como também,

substratos pessoais conjugados às realidades específicas de cada momento vivido.

Além das relações externas e objetivas, há também aquelas inerentes a

estrutura pessoal, individual e subjetiva: o campo das emoções e da

intelectualidade, da paixão e da razão, da ação-reação-ação, do confronto com as

diversas realidades vivenciadas e, com elas, a própria mudança de atitude, de

interesses e de percepção das coisas e situações que nos rodeiam.

A proposta helleriana, baseada em Marx e Lukács, trouxe em seu bojo o

conhecimento da emancipação de-si-mesmo ou, se preferirmos, da condição de

individualidade do sujeito social.

Nessa perspectiva, o pensamento de Agnes Heller, assim como outros

marxistas contemporâneos, também influenciou o Serviço Social no final da década

de 1970 e nos idos dos anos de 1980 e de 1990, no sentido de buscar sua própria

emancipação enquanto profissão liberal: sua individualidade enquanto profissão.

Emancipação essa que Martinelli (2003) traduziu como identidade

profissional. A necessidade de buscar uma consciência crítica própria, num esforço

para romper com as bases conservadoras da profissão que servia aos interesses da

lógica burguesa, do capital e do Estado conservador, conforme as conjunturas da

época e do contexto histórico.

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Subordinado a esses interesses da classe dominante, a prática profissional do

Serviço Social brasileiro se resumia num funcionalismo estático e conservador. A

tomada de consciência crítica provocou a dinâmica para “[...] se libertar das formas

reificadas de prática que vinham marcando sua caminhada profissional”

(MARTINELLLI, 2003, p. 141).

[...] A consciência crítica dos agentes permitia-lhes, nesse momento, apreender tanto a identidade do Serviço Social, como sua prática no mundo capitalista, como contraditórias e complexas. A identidade atribuída, esvaziada da contradição, do movimento, transformava-se em algo inerente, sem nenhuma vitalidade; as práticas burguesas, atravessadas por interesses de classe e produzidas a partir de interpretações técnico-científicas, a distância dos primórdios usuários, não respondiam nem às suas demandas nem aos desafios colocados pela realidade (MARTINELLI, 2003, p. 140)

55.

Somente a partir do momento em que se expandiu a base crítica no interior

da profissão, numa tentativa de se trabalhar com “[...] objetivos ligados à ideia de

luta de classes e a superação das contradições da sociedade capitalista, visando

superá-la”. (ESTEVÃO, 1989, p.83), é que se iniciou o processo de ruptura do

conservadorismo do Serviço Social brasileiro.

O pensamento vigente nesta época foi o de se intervir na vida cotidiana,

transformando-a através da luta política subsumida pela esfera das relações

capital/trabalho. Porém, perdia-se de vista o próprio cotidiano e as implicações da

sociedade do capital. O trabalho do/da assistente social se confundiu com a

militância política, ficando preso a um ethos classista, não repensando, assim, o seu

papel enquanto profissional inscrito/a na divisão sócio-técnica do trabalho (idem,

ibidem).

O profissional nesta concepção corre o risco de alienar-se no e do seu próprio

trabalho, como também alienar igualmente sua própria luta. O pensamento

helleriano traz importantes contribuições para entender essa necessidade de uma

consciência crítica para o Serviço Social brasileiro, de sua luta pela emancipação

dos laços conservadores e da afirmação de sua identidade profissional.

[...] Já não requer a superação da particularidade e já não se constitui numa atividade social que surge de uma visão totalmente nova da sociedade em seu conjunto. O fim é a satisfação das motivações particulares no seio de uma determinada ordem social. Por essa razão, os

55 Grifos da autora.

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movimentos econômicos têm podido ser rapidamente integrados na ordem econômica capitalista. Quanto aos ideais, sua propaganda ideológica, não se distancia muito da ideologia oficial do Estado de bem-estar social. (HELLER, 1970, p 180).

A lógica capitalista tem levado os indivíduos que vivem em sociedade a

estarem cada vez mais alienados e a reproduzirem relações sociais alienantes:

[...] o homem passa cada vez mais a desdobrar relações sociais de exploração, a vida social é cada vez mais baseada na violência que possibilita que uma classe viva do trabalho (LESSA, 1999, p. 28).

A alienação nada mais é do que a desumanização social produzida pelo

próprio ser social (idem, ibidem).

Ao analisar a contribuição do pensamento de Agnes Heller, enquanto teoria

que carrega em si uma visão de mundo, uma antropologia-ontológica do ser social

na direção de uma determinada consciência ética e política - portanto, de uma

determinada filosofia da práxis - tivemos o intuito de consolidar valores favoráveis à

coletividade e à garantia de atitudes capazes de concretizar as potencialidades

eficazes nas ações politicamente éticas para a vida social.

[...] Basta pensar nos valores morais mais arcaicos e, ao mesmo tempo, mais persistentes, como a honradez, a justiça, a valentia, para ter certeza de que tais valores foram sempre – como normas, usos ou ideais – meios de elevação da particularidade ao genericamente humano. [...] Temos que acrescentar ainda que a arte cumpre também, enquanto autoconsciência e memória que é da historia humana. [...] Não é casual que esta catarse, seja propriamente uma categoria ética (HELLER, 2004, p. 06).

Nessa direção, a arte, para Heller, é uma das formas de suspensão das

relações alienadas/alienantes, uma vez que busca em si uma autoconsciência, um

autodesenvolvimento (liberdade) e uma autorrealização (atividade emancipatória).

Esta é uma coexistência harmoniosa que comprovamos através das experiências

empíricas no campo das artes por esse pesquisador.

A arte - enquanto verdadeira produção artística - é a materialização no plano

real do momento de catarse, ou seja, de auto-exteriorização do que há de mais

premente na complexidade do universo íntimo do ser social, onde todas as paixões,

desejos, formas, cores, texturas, sons, expressões de um modo geral, afloram “por

inteiro” e se materializam no momento da criação, onde a subjetividade se objetiva

não em sua forma de mercadoria, mas em objetivações concretas.

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[...] Mas existe uma inter-relação entre o autoconhecimento e a práxis: só podem atuar adequadamente aqueles que possuem um conhecimento de si próprios, e este só pode ser ganho através da práxis, demonstrando a integridade própria (HELLER, 1982a, p. 95-96)

56.

Esta materialização acontece ao pintar um quadro, ao moldar uma escultura,

ao compor uma música, na dança, na poesia, dentre outras manifestações artísticas.

Esta catarse foi bem traduzida pela mitologia em Pigmalião e Galatéia57. A

expressão artística é o ápice da explosão de liberdade e criatividade que o humano

pode experimentar e externar. Nela, vida e obra se misturam.

Além dessa forma de elevação da cotidianidade, Heller também aponta para

outra forma de objetivação dessa suspensão – o conhecimento:

[...] as formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem objetivações duradouras são a arte e a ciência. [...] o reflexo artístico e o reflexo cientifico rompem com a tendência espontânea do pensamento cotidiana, tendência orientada ao Eu individual-particular. a arte realiza tal processo porque, graças à sua essência, é autoconsciência e memória da humanidade; a ciência da sociedade, na medida em que desantropocentriza (ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem singular); a ciência da natureza, graças a seu caráter desantropomorfizador. Nem mesmo a ciência

56

Grifos da autora. 57 A mitologia grega nos conta que Pigmalião via tantos defeitos nas mulheres que acabou por abominá-las, e resolveu viver solteiro. Era escultor e executou, com maravilhosa arte, uma estátua de marfim, tão bela que nenhuma mulher de verdade com ela poderia comparar-se. Era, na verdade, de uma perfeita semelhança com a jovem que estivesse viva e somente o recato impedisse de mover-se. A arte, por sua própria perfeição, ocultava-se, e a obra parecia produzida pela própria natureza. Pigmalião admirou sua obra e acabou apaixonando-se pela criação artificial. Muitas vezes, apalpava-a, como para se assegurar se era viva ou não, e não podia mesmo acreditar que se tratasse apenas de marfim. Acariciava-a e dava-lhe presentes como jovens gostam: conchas brilhantes e pedras polidas, pássaros e flores de diversas espécies, contas de âmbar. Colocou o vestido sobre seu corpo, anéis em seus dedos e um colar no pescoço, brincos nas orelhas e cordões de pérolas no peito. Vestiu-a e ela não pareceu menos encantadora do que nua. Deitou-a num leito recoberto de panos coloridos com púrpura, chamou-a de esposa e colocou-lhe a cabeça num travesseiro de plumas macias, como se ela pudesse sentir a maciez. Estava próximo o festival de Vênus, celebrado com grande pompa em Chipre. Vítimas eram oferecidas, os altares fumegavam e o cheiro de incenso enchia o ar. Depois de ter executado sua parte na solenidade, Pigmalião de pé, diante do altar, disse, timidamente: - Deuses, vós que tudo podeis, dai-me por esposa... – não se atreveu a dizer “minha virgem de marfim”, mas acrescentou:... Alguém semelhante à minha virgem de marfim. Vênus, que estava presente ao festival, ouviu-o e compreendeu o pensamento que ele não se atrevera a formular, e, como augúrio de sua benevolência, fez a chama do altar erguer-se três vezes no ar. Ao voltar para casa, Pigmalião foi ver a estátua e, debruçando-se sobre o leito, beijou-a na boca. Os lábios pareceram-lhe quentes. Beijou-a de novo e abraçou-a; o marfim mostrava-se macio sob seus dedos, como a cera do Himeto. Atônito e alegre, embora duvidando, e receando que tivesse se enganado, de novo, muitas vezes, com o ardor de um amante, toca o objeto de suas esperanças. Estava realmente vivo! O corpo, quando apertado, cedia aos dedos, para recuperar, depois, a elasticidade. Afinal, o cultuador de Vênus encontrou palavras para agradecer à deusa e apertou os lábios de encontro aos lábios tão reais como os seus próprios. A virgem sentiu os beijos e corou, e abrindo seus tímidos olhos à luz fixou-os, no mesmo momento, em seu amante. Vênus abençoou as núpcias que propiciara, e dessa união nasceu Pafos, de quem a cidade, consagrada a Vênus, recebeu o nome. (BULFINCH, 2001, p. 78-79).

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65

e arte estão separadas da vida do pensamento cotidianos por limites rígidos, como podemos ver em vários aspectos. (HELLER, 2004, p. 26)

58.

Isso é inegável, e a construção dessa dissertação é a prova mais viva desta

justaposição entre vida cotidiana, ciência e arte. No momento em questão,

experimentamos estes três elementos constitutivos num mesmo espaço de tempo: a

vida cotidiana conturbada, com todos os seus conflitos, contradições, gostos,

pendores e aflições, nos impingindo as mais puras turbulências, comuns a todos os

estudantes/pesquisadores que se propõem a dar continuidade à formação

intelectual/profissional, onde até mesmo o mais sublime momento – a construção do

conhecimento – é invadido pelos apelos do capital e pela balburdia cotidiana ou ate

mesmo por pequenos detalhes que retiram a nossa atenção e concentração; a

própria dissertação que é um mergulho no mundo das formas, cores, teorias,

experiências, enfim, do conhecimento produzido, reproduzido e constitutivo do

humano-genérico; e a arte, momentos em que, entre um intervalo e outro, entre uma

abstração e outra, recheamos e dividimos com o piano.

Lembrando Kundera (2007, p. 66),

[...] nossa vida cotidiana é bombardeada por acasos, mais exatamente por encontros fortuitos entre pessoas e os acontecimentos, o que chamamos de coincidência. Existe coincidência quando dois acontecimentos inesperados se dão ao mesmo tempo, quando eles se encontram.

Porém, “[...] o acaso tem seus sortilégios, a necessidade não” (idem, p. 63). O

mundo das necessidades carece de muito mais do que sorte, coincidências,

encontros, providência, fé, crenças, dentre outras prerrogativas, carece de garra,

determinação, posicionamento, consciência, lucidez, condições financeiras,

intelectuais e sociais - de condições objetivas - e, principalmente, vontade e atitude.

Com certeza as relações e situações sócio-humanas, e mesmo as relações e

situações econômicas, sociais e culturais que estão mediatizadas pelas coisas e que

perpassam pelo nosso viver, alteram significativamente o rumo de nossa vida e de

nossas aspirações.

Quando nos propomos ao conhecimento novo, a derrubar barreiras, a buscar

objetivos ou até mesmo, ideais, nos afirmamos enquanto sujeitos sociais, sem juízos

58

Grifos da autora.

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provisórios ou ultrageneralizações, com certeza abrimos um campo novo de

possibilidades.

As vidas humanas, nos dizeres de Kundera (2007, p. 67), são compostas

como uma partitura musical. Homens e mulheres são guiados pelo senso de beleza,

transformam os acontecimentos fortuitos, casuais, num motivo que mais tarde vai se

inscrever na partitura de sua vida: “[...] voltará a esse motivo, repetindo-o,

modificando-o, descrevendo-o como faz o compositor com o tema de sua sonata”

(idem, ibidem).

Mas não vivemos sós. Nossa partitura musical é somada e se soma a outras

partituras musicais, a outros sujeitos sociais, a outras situações sociais, formando,

assim, um grande concerto musical.

Esta analogia nos parece assaz interessante quando visualizamos um

concerto sinfônico: observa-se que cada instrumento da orquestra tem sua

singularidade e particularidade (formato, timbre, material, função, extensão etc.);

cada nota em cada instrumento compõe um pequeno universo; cada frase musical

constitui o todo e a parte ao mesmo tempo, porém, não é parte do todo, nem o todo

em si.

Ao contrário, são complexos que se juntam num complexo ainda maior; cada

musicista traz suas características singulares e particulares, a expressão de sua

historicidade; o resultado só é percebido em sua totalidade onde cada parte é a

expressão do todo e o todo é a síntese das partes. Ali genialidade, originalidade,

criatividade, personalidade, enfim, todos os componentes substanciais se externizam

e eternizam em sua apoteose: a catarse.

É o momento da mais pura desantropomorfização consciente: a construção

da arte e do saber. É quando todos os juízos, pré-juízos, noções, valores, regras e

normas, herança cultural e social, enfim, as alternativas e escolhas se materializam

em parcos “espaços brancos”. Muitas vezes, ou quase sempre, experimentamos a

catarse, essa descarga emocional que nos coloca num ápice de liberdade e criação:

“[...] só aquele que é consciente de si como homem livre pode chegar a uma

catarse”59.

Obviamente, tudo isso não seria possível sem as condições objetivas para

este feito, pois, aqui somos, ou pelo menos deveríamos ser, “por inteiro”.

59

HELLER, 1982b, p. 147 – grifos do tradutor.

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[...] A primeira premissa de toda a existência humana, e portanto também de toda a história, é a premissa de que os homens, para “fazer história”, se achem em condições de poder viver. Para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvidas, um ato histórico, uma condição fundamental de toda história, que tanto hoje como há milênios, tem de ser cumprida todos os dias e todas as horas, simplesmente para assegurar a vida dos homens. (MARX; ENGELS, 2007, p. 50).

A tomada de consciência, por si só, já é um posicionamento ético e político da

e para a vida. Envolvem escolhas, interesses, valores, juízos, necessidades,

particularidades, assim como sentimentos, paixões, egoísmos, exigências,

aspirações e ações sociais, por isso, tem que partir do próprio ser social.

Permite ainda ao sujeito social, elevar-se da condição de ser particular,

conforme se apresenta na vida social, ou seja, na cotidianidade ou em seu estado

de alienação, para a condição genericamente humana ou para a não-cotidianidade

(ou estado de suspensão da cotidianidade).

Para tanto, toma-se necessário assumir a consciência de-si-mesmo, em sua

singularidade, dos valores ético-morais, ético-políticos, de liberdade e de

responsabilidade, na e para a vida cotidiana.

Mas, como chegar a um estado de consciência que nos afirme enquanto tal

perante a vida cotidiana alienada e alienante? Como construir essa atitude ética e

política? Estas interrogações necessariamente tem que ser uma tomada de

consciência na e para a vida: um para-si-mesmo.

Se a consciência é um atributo ontológico do ser social que, exatamente por

isso, não pode estar na vida cotidiana. É necessário extrair de suas contradições os

elementos constitutivos para uma atitude consciente. É uma tomada de posição do

ser social enquanto ser singular, particular e universal.

Como vimos, ser social e vida cotidiana, vida e obra, particularidade,

singularidade e genericidade, ocupam o mesmo espaço. Portanto, o fundamento da

ética e da política só pode se consumar na essência ontológica do ser social, ou

seja, em seu Eu.

Resumidamente, só para rememorar, a ética, conforme a entendemos, é uma

postura de vida, um determinado modo de ser e a política, por conseguinte, é

entendida aqui como uma determinação ativa – uma ação ativa e proativa -, um

modo de ser e agir consciente e objetiva na e para a vida social. Lembrando Marx

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68

(2005, p. 52-53): “[...] não é a consciência dos homens que determina o seu ser,

mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.

Afirma-se, assim, que a tomada de uma consciência política, enquanto modo

de agir na e para a vida cotidiana, é uma postura ética e política perante situações

concretas do e no cotidiano.

[...] Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem compô-las juntas e trocar os motivos, [...] mas, quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo diferente na partitura de cada um (KUNDERA, 2007, p. 108).

Na medida em que prosseguíamos nossas análises, desvelava-se o universo

teórico-filosófico, antropológico-ontológico e histórico-social de Heller e fomos

percebendo que vida e obra coabitavam.

Observamos que muito mais do que analisar o comportamento e a postura do

ser social, das relações e sujeitos sociais, da vida cotidiana, o pensamento

helleriano buscava desvelar uma condição do ser social que Marx e Lukács já

haviam chamado à atenção: a condição de individualidade.

Já tínhamos em mente esta categoria, porém era necessário, buscar a

essência filosófica escondida em sua aparência: por que é na condição de

individualidade (ou singularidade) que o ser social encontra substâncias para a sua

afirmação consciente? Na proposta ontológica do ser social helleriana, em nossa

opinião, essa é a condição sine qua non do indivíduo social: a consciência de-si-

mesmo60.

Heller verificou a condição de individualidade enquanto valor61 ontológico do

ser social, não na sua condição individualista – egocentrista -, no sentido liberal –

enquanto individualismo -, mas sim na sua condição ontológica de individualidade,

ou seja, na condição de ser-em-si-mesmo e de ser-para-si-mesmo62.

60

Buscaremos no decurso dessa pesquisa demonstrar os por quês. 61

“Valor é tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais” (HELLER, 2004, p. 04-05). Os componentes essenciais para Heller, dizem respeito aos componentes essenciais da vida humana para Marx, ou seja, trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. O valor, portanto, se apresenta como uma “categoria ontológico-social; como tal, é algo objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições naturais) e sim objetividade social. É independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais” (idem, p. 05). 62

Esta categoria helleriana será desenvolvida mais a frente.

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69

O ser social particular e genérico, também se apresenta simultaneamente na

vida social, enquanto indivíduo63 social64: “[...] cada indivíduo representa o gênero e

o gênero se transforma em cada individuo”65. Portanto, é necessário decompor o ser

social, numa verdadeira dissecação teórico-conceitual, para somente depois

encontrar os elementos valorativos de superação e suspensão da cotidianidade.

Essa dissecação do ser social é primordial para que possamos entender e,

sobretudo, intervir, ou até mesmo levar ao despertar da consciência para uma

determinada postura ética e política na e para a vida cotidiana. Não estamos aqui

nos referindo a uma atitude humanista cristã, mas a uma condição de humanidade,

de consciência das potencialidades constitutivas do ser social.

Acreditamos que é necessário primeiramente um despertar para esta

consciência, um autodesenvolvimento e uma autorrealização, enquanto ser-em-si-

mesmo para que, somente depois, o indivíduo possa ter condições subjetivas para

sua autolibertação consciente para-si-mesmo.

Muitas são as alternativas para este despertar. Acreditamos que a educação

seja uma dessas alternativas. A educação moral, contida nos mais diferentes credos,

pode realizar este processo, porém, acaba apenas por atingir a individualidade

subjetiva do ser social e a uma dimensão maniqueísta da relação entre o bem e o

mal, exemplo disso pode ser encontrado nos vários catecismos, manuais de

educação moral e/ou de autoajuda.

63

Para Marx (2004, 107), “[...] o indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isso necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quando mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou universal. 64

Também para Marx (2004, p. 106-107), “[...] o homem produz o homem, a si mesmo e ao outro homem; assim como [produz] o objeto, que é o acionamento (Betätigung) imediato da sua individualidade e ao mesmo tempo a sua própria existência para o outro homem, [para] a existência deste, e a existência deste para ele. Igualmente, tanto o material de trabalho quanto o homem enquanto sujeito, são tanto resultado quanto ponto de partida do movimento (e no fato de eles terem de ser este ponto de partida reside, precisamente, a necessidade histórica da propriedade privada). Portanto, o caráter social é o caráter universal de todo o movimento; assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim é produzida por meio dele. A atividade (Tätigkeit) e a fruição, assim como o seu conteúdo, são também os modos de existência segundo a atividade social e a fruição social. A essência humana da natureza está em primeiro lugar, para o homem social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro para ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da própria experiência humana. É primeiro aqui que a sua existência natural se lhe tornou a sua existência humana e a natureza [se tornou] para ele o homem. Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada (vollendete) do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito”. 65

HELLER, 1982b, p. 151.

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70

O que temos em mente nesta investigação é uma postura que ultrapasse a

esfera da moralidade e da subjetividade do sujeito social. Buscamos um

posicionamento perante as armadilhas do capital, ou seja, na superação dos

entraves que condenam o ser social a uma vida alienada/alienante e ainda, buscado

um posicionamento político frente à barbárie na qual estamos vivenciando na

contemporaneidade.

Acreditamos que para o arcabouço teórico-metodológico, ético-político e

técnico-operativo do/a assistente social o conhecimento do ser social, cidadão/ã de

direito e usuário/a das políticas públicas, é fundamental para aqueles/as que se

dispõem a serem educadores/as sociais – ou agentes sociais de mudança - e aqui

se enquadram todos/as aqueles/as que se dispõem a este fim.

O valor na lógica do capital se apresenta em sua forma reificada, ou seja,

enquanto valor-de-uso e valor-de-troca monetarizado, assim como o conceito de

riqueza humana distanciado da concepção trazida por Marx enquanto essência

humana. Quanto mais apropriação da riqueza humana pelo capital, tanto mais

alienada esta sociedade se apresenta: “[...] a verdadeira riqueza do homem se

realiza nas atividades livres do tempo disponível”66’67.

[...] Através das relações humanas o homem coletivo realiza qualidades cada vez mais novas que se colocam como fim; o homem rico é o homem rico em relações humanas. (HELLER, 1978, p. 154).

As características evocativas de uma atitude consciente diante das

particularidades alienadas/alienantes da vida social podem ser superadas apenas

quando se tem consciência de sua magnitude genérica.

Desde o alvorecer da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista

que o ser social e a vida cotidiana, estão e são constante e violentamente

bombardeados pela lógica do capital.

66

HELLER, 1978, p. 140. 67

“Wealth is disposable time and nothing more” – riqueza é o tempo disponível e mais nada. (HELLER, 1978, p. 154). Heller explica que esse tempo livre – ou “tempo para o ócio” – não é sinônimo precisamente de “tempo livre” no seu sentido negativo, como por exemplo “liberdade de trabalho” – aqui trabalho assume a condição de castigo, muito bem colocado na gênese bíblica, mas sim, trabalho deve ser visto aqui como categoria onto-criativa do ser social. “Para Marx, ao contrário, o tempo livre é ‘tempo para o ócio’, uma categoria inequivocamente positiva que indica o tempo empregado em atividade propriamente humanas, mais elevadas”, ou seja, “em atividades livres” (idem, p. 153).

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71

Heller aponta para a necessidade radical de interrogações sobre as

contradições próprias do sistema capitalismo e, consequentemente, da alienação da

vida social. Necessidades de um determinado posicionamento ético e político, que

não só analise estas contradições, mas que também às modifique.

[...] O trabalho em favor do socialismo há de começá-lo antes; há que mostrar na práxis que o socialismo não é idêntico ao bolchevismo e ganhar a aprovação passo-a-passo para este socialismo novo e distinto (HELLER, 1982b, p. 112).

Neste fragmento, além de apontar a preferência de Heller por um tipo

determinado de socialismo, também faz uma crítica ao modelo comunista/socialista

vigente de sua época.

O processo de consciência do ser social em sua condição de individualidade

é fruto de sua inserção na e da vida cotidiana enquanto sujeito social. Apresenta-se

de forma objetiva e concreta, constituída e constituinte da realidade, do conflito real,

dialético e em sua totalidade.

As condições objetivas para essa emancipação (e/ou consciência social)

perpassam não só pelo individuo, mas também pelas condições sócio-históricas, o

território onde vive, as capacidades proativas que oferecem, as situações concretas,

os estímulos, os interesses, as particularidades e singularidades, as fatalidades,

causalidades, enfim, a vida como ela está posta.

Poderíamos citar, aqui, uma série de personalidades que superaram suas

limitações, mas nos reportamos, por exemplo, à surdez de Ludwig van Beethoven,

um dos maiores compositores clássicos, dentre muitos outros, que o mundo já

conheceu. Uma genialidade e criatividade que desponta em profunda surdez iniciada

logo em sua juventude que, hoje, poderia ser resolvida com uma simples cirurgia de

consultório.

Porém, nos parece mais próximo e significativo o exemplo do maestro e

pianista João Carlos Martins, um dos grandes interpretes e um virtuose brasileiro da

música erudita. Após um incidente trágico, em 2002, ele ficou impossibilitado

fisicamente de tocar piano, tendo que abandonar sua prodigiosa carreira de pianista.

Porém, esse acontecimento não o impediu de direcionar todo o seu

conhecimento, toda sua capacidade e habilidade para outra área: a regência.

Fundou a Bachiana Filarmônica e desenvolve um trabalho social com adolescentes

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72

através da sua Bachiana Jovem. Criou ainda a Fundação Bachiana cujo trabalho

desenvolvido envolve a arte e a sustentabilidade68.

Estava desvendado o “enigma da esfinge” helleriano. É necessário destruir

radicalmente o sistema que dinamizava as relações objetuais. Era necessário buscar

uma teoria das necessidades radicais69.

Podemos trazer estas considerações de Heller para os dias atuais, ou seja,

quando o sujeito revolucionário marxiano está submetido aos apelos do capital.

Torna-se necessário um novo movimento. Nos ocuparemos mais a frente sobre este

assunto mais a frente.

Para Heller, naquele contexto histórico, este “novo começo” se desenhava

com a “sociedade dos produtores associados”. Por conseguinte, via nascer esta

possibilidade nos movimentos sociais de 1968. As necessidades radicais se faziam

presentes novamente e a proposta original marxiana tinha que ser reavivada e

deveria propor-se um novo sistema, diferente do que se apresentava no Leste

Europeu.

Portanto, era preciso construir novas mediações. Foi então que Heller buscou

na Teoria das necessidades em Marx70 - uma verdadeira monografia esquemática e

circunscrita à obra de Marx - o conceito de necessidades. Este estudo proporciona a

análise teórico-histórica sobre o conceito de necessidades (ou carecimentos) em

Marx. Contudo, também se dirige para despertar do sujeito revolucionário, portanto,

com uma determinada postura ética e política na vida cotidiana, rumo à sociedade

dos produtores associados71.

68

Para maiores detalhes consulte o site: http://www.fundacaobachiana.org.br 69 Entende-se por necessidades radicais (ou carecimentos radicais) “[...] todas aquelas necessidade que nascem na sociedade capitalista como consequência do desenvolvimento da sociedade civil, porém que não podem ser satisfeitas dentro dos limites da mesma. Portanto, os carecimentos radicais são fatores de superação da sociedade capitalista” (HELLER, 1982, p. 133). 70 A Teoria das necessidades em Marx foi revisitada por Heller posteriormente. Nessa autorrevisão, Heller altera significativamente e radicalmente o seu ponto de vista. Durante o período de construção dessa dissertação, tivemos a oportunidade de adquirir uma versão em castelhano dessa revisão: HELLER, Agnes. Una revisión de la teoría de las necesidades. Barcelona, Bueno Aires e México: Pensamiento Contemporáneo, 1996. Tendo em vista que esta obra é de um período posterior ao aqui analisado, e que, traz em si concepções polêmicas, deixamos este ponto para posteriores análises, apenas utilizamos a parte da Introdução, escrita por Ángel Rivero que traz importantes contribuições para a biografia de Heller que nos ocupamos no decurso dessa investigação. 71

Esta proposta, ao que nos parece, se mostra formalmente utópico, recheada de eflúvios marcusiano, algo possível em micro comunidade, mas no sentido macro nos apresenta inviável, porém deixamos estas analises para futuras investigações. Porém, ao nosso ver, não prejudica o conteúdo da obra e a proposta de uma práxis revolucionária.

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73

Ligada à temática axiológica, constitui e reconstitui os fundamentos críticos e

materialistas num idealismo72 ético e político para uma determinada vida em

comunidade, consubstanciados na proposta da “sociedade dos produtores

associados”.

Não estamos desconsiderando a questão da organização e consciência de

classe em-si73 e para-si74, enquanto classe revolucionária, e nem Heller

desconsidera esta condição. Este assunto, pelos menos ao que nos parece, já tinha

sido resolvido e reavaliado por Lukács em História e consciência de classe. Não nos

cabe aqui fazermos estas análises, o que despenderia novas pesquisas.

É importante frisar que as categorias em-si e para-si, estão sendo utilizadas

no mesmo sentido e com relação ao ser social e a categoria para-si-mesmo –

quando o ser social toma consciência e emancipa-se consigo mesmo, rompendo

com as barreiras ultrageneralizadas e consuetudinárias que o impede de objetivar a

sua própria liberdade – ou seja, sua condição de individualidade.

Portanto, para que possamos ter um ponto de partida, necessitamos fazer o

caminho inverso da estrutura do pensamento desenvolvido por Heller, analisando,

desta forma, a vida cotidiana na atualidade e como o ser social se insere nesse

universo contraditório para depois desvelarmos as sua antropologia-ontológica,

buscando apontar as contribuições do seu pensamento.

Na alusão a expressão shakespireana: “Ser ou não ser, eis a questão”, há de

ser ter em mente a complexidade dessa expressão. Não estamos aqui buscando a

essência existencialista do ser social, o que não deixa de contemplar alguns de seus

aspectos, mas nos referimos à essência humana, aos componentes essencialmente

humanos para a afirmação do ser social enquanto sujeito social (ou indivíduo social),

consciente do seu papel social na e para a vida social.

O ser social está sempre em movimento, na sua vida, na sua cultura, nos

seus valores, na sua história. Por isso, a ciência e a filosofia constantemente

buscam dar respostas para explicar a essência de todos os fatos que envolvem a 72 Utilizado aqui no sentido de algo projetado e que é possível. 73

Quando “[...] uma classe - por esta ou aquela razão - não toma consciência de seus interesses reais e age inadequadamente ou até em condição contradição com os seus interesses. Casos destes ocorrem, sobretudo, quando uma classe se encontra ainda em formação, não tendo ainda consciência dos seus interesses e objetivos”. (LUKÁCS; SCHAFF, 1973, p. 10). 74 “[...] Uma classe social, já formada na base da relação dos seus membros com os meios de produção e a partir dos interesses econômicos e sociais desses membros, será uma “classe em si” até que a consciência da sua situação e dos seus interesses de classe se tenha propagado pelos seus membros e que estes a tenham aceite; nesse segundo estágio, transforma-se em “classe e para si”. (LUKÁCS; SCHAFF, 1973, p. 10).

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74

vida humana e, consequentemente, dar respostas do próprio ser humano e sua

existência: “[...] o que faz a grandeza do homem é ele carregar seu destino como

Atlas carregava nos ombros a abóboda celeste” (KUNDERA, 2007, p. 45).

Segundo Batista (MARTINELLI; ON; MUCHAIL, 2001, p. 115),

[...] o saber que informa a ação profissional cotidiana é complexo: emerge de uma combinação histórica específica de diversos modos de conhecimento, simultâneos e interatuantes mas, de certo modo, hierarquizados: um é dominante e impregna todos os demais, modificando suas condições de funcionamento e desenvolvimento. [...] Este saber se constrói na inter-relação entre conhecimentos já constituídos e postos à mão e novos conhecimentos em processo de construção.

Kochê (1997), parafraseando Marx, afirma que:

[...] a ciência é ao mesmo tempo a revelação do mundo e a revelação do homem como ser social, levando em conta o papel da cultura e do trabalho que, em cada momento histórico, apresentam possibilidade de expansão e aquisição de conhecimentos, pretendendo ultrapassar o nível da “descrição” dos fenômenos, para chegar a sínteses explicativas; estas sínteses, por sua vez, sugerem novas relações, novas buscas, novas sínteses, que realimentam o processo do conhecimento. (KOCHÊ, 1997, p. 22).

O conhecimento nasce do resultado de uma relação entre o pensamento e a

realidade, entre o pesquisador e o objeto de estudo (MINAYO, 1994). A

responsabilidade da transformação é um fator significativo, considerando-se que

este acontece em vários momentos da vida e da história.

Desta forma, necessitamos ainda resgatar alguns apontamentos

resumidamente sobre o processo de alienação/estranhamento e reificação do ser

social na vida cotidiana em tempos modernos para apurarmos os elementos

transformadores e emancipadores do pensamento helleriano.

1.4. A “Babel” capitalista dos tempos modernos: “salve-se quem puder!”

Em tempos modernos, no auge do desenvolvimento da sociedade burguesa e

do modo de produção capitalista, onde “[...] o sistema subsumido totalmente ao

capital” e a barbárie capitalista “omnilateral e polifacética” impera (NETTO, 2010, p.

31), a vida em sociedade é predominante e peremptoriamente regida pela lógica do

capital e as relações e inter-relações sociais se apresentam em sua quase totalidade

coisificadas e reificadas.

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Numa analogia ao filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, podemos

juntamente com ele fazer uma crítica feroz ao processo acelerado de

“modernização” e da industrialização/robótica na sociedade globalizada, mostrando

como o operário, ou ser social, é constantemente engolido e subjugado pelo

capitalismo, tornando-se apêndice das máquinas (NALLE JUNIOR, 2009).

Essas reflexões introdutórias não tem o objetivo de apresentar uma pesquisa

rigorosa, mas sim demonstrar como o nosso cotidiano está constantemente sendo

bombardeado por acontecimentos que de uma forma ou outra afetam o nosso viver,

mesmo não sendo necessariamente percebido por nós.

Para exemplificar estas colocações, nos apropriamos de algumas manchetes

corriqueiras da atualidade para apontar o estágio atual da Humanidade e alguns dos

principais problemas, em nível mundial, que tem afetado, direta ou indiretamente, o

cotidiano mundial75.

Estas referências nos trazem um exemplo concreto de que fatos corriqueiros

do cotidiano simples de algumas pessoas, lugares ou circunstâncias, às vezes sem

a menor importância para muitos/as, podem repercutir em várias vidas, nas mais

extremas localidades do mundo.

Para uma averiguação desse assunto, sugerimos a projeção cinematográfica

Babel. O filme foi lançado no Brasil em 2007, numa produção de Alejandro González

Inárritu. A história gira em torno de um Rifle que atravessa o mundo, desencadeando

uma série de acontecimentos significativos para muitas vidas, pessoas, culturas e

países diferentes: Marrocos, Estados Unidos, Japão e México.

Outro exemplo é o filme Crash: no limite, lançado em 2005 e dirigido por Paul

Haggis, que apresenta também uma série de situações em cadeia, geradas pelo

preconceito e pela discriminação étnico-sociais e que traz trágicas consequências na

vida de muitas pessoas que, aparentemente, não estavam ligadas entre si.

Mas, para sair do universo cinematográfico e entrar no mundo real, tão bem

analisado pelo Prof. Dr. José Paulo Netto, no texto Uma face contemporânea da 75 Estas manchetes e acontecimentos referem-se ao momento-presente e em relação à construção dessa dissertação, ou seja, acontecimentos relativos aos anos de 2011 e 2012, principalmente as manchetes da primeira metade do ano de 2012 quando este item foi escrito. Nossa intenção é demonstrar que o cotidiano é muito mais que o dia-a-dia. A escolha dessas manchetes não implica numa intencionalidade, poderíamos aqui colocar qualquer manchete de qualquer tempo-presente. Nossa inspiração tem com referência as análises de Lefebvre (1991) quando debruçou sobre manchetes e periódicos do dia 16 de junho de um ano do início do século XX para explicar sua teoria. Não foi nossa intenção fazer a mesma coisa que Lefebvre, mas sim, demonstrar que fatos corriqueiros podem alterar a vida de pessoas que aparentemente nada tem haver com determinados acontecimentos.

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76

barbárie (NETTO, 2010), e nos textos de vários autores conhecidos mundialmente e

que foram compilados no livro OCCUPY: movimentos de protesto que tomaram as

ruas, publicado pela editora Boitempo (HARVEY, 2012), trazem de cara uma

pequena amostra do que vem acontecendo na sociedade, nos dias atuais e, sem

sombra de dúvida, refletem, de alguma forma ou de outra, na vida da população

mundial. Dois anos se passaram e a efervescência da Primavera Árabe ainda

continua a borbulhar.

Em entrevista a Caros Amigos (2012, p. 20-22), Leila Paulani, professora de

Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) faz uma

análise de conjuntura da crise atual. Mesmo com o seu posicionamento

pessimista/reformista, selecionamos alguns trechos que nos parecem ser relevantes:

Leila aponta que as crises atuais estão relacionadas à “[...] transformação na forma

como o capitalismo está se desenvolvendo, aquilo que alguns economistas chamam

de financeirização76 do processo capitalista” (NAGOYA, 2012, p. 20).

[...] Desde as décadas de 1970 a1980, a riqueza financeira cresceu em uma velocidade muito rápida e começou a determinar uma série de transformações, sendo a principal delas a ascensão do neoliberalismo. [...] Um crescimento ainda mais rápido da riqueza financeira. (LEILA apud NAGOYA, 2012, p. 20).

Leila destaca que dos anos de 1980 para cá, mundialmente falando,

acompanhamos constantes crises financeiras: “[...] não se fica três ou quatro anos

sem enfrentar uma. [...] Não teremos mais paz econômica, vamos viver

experimentando crises de tempos em tempos”. Também aponta que a crise de 2008

nos Estados Unidos, trouxe consequências para o Brasil, pois o crescimento

econômico que vinha despontando, caiu vertiginosamente - de 5% a 6%, caiu para

0,3% ao ano, porém, para ela, o Brasil tem hoje uma “[...] situação relativamente

confortável, do ponto de vista financeiro” (idem, p. 20-21).

Outro ponto a ser enfatizado é em relação à China que, para ela, “[...] é uma

grande incógnita, porque depende dela mesma e dos dirigentes chineses” que vem

aproveitando da situação de crise e investindo especulativamente em diversos

76

Para Leila Paulani (apud NAGOYA, 2012, p. 20) a financeirização “produz uma regime onde a renda produzida é muito baixa, porem, é um sistema rentista, que depende da geração de produtos e de renda para poder extrair o lucro, então é uma contradição muito complicada”.

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77

países do mundo. É sabido que a força-de-trabalho na China é explorada ao máximo

(idem, ibidem).

Ao se referir ao Brasil, aponta para um crescimento na área das políticas

compensatórias, de crédito e de regulação dos juros, o que tem aumentado o

poderia econômico da “classe C” e do consumo.

É notório que as políticas de combate a pobreza no Brasil, controvérsias à

parte, tem sido analisadas como populistas, de “assistencialização economicista”77,

apesar de alguns avanços. Para finalizar, Leila acredita que “[...] a tendência é que,

de tempos em tempos, o mundo passe por crises” (idem, ibidem).

Com relação as questões ecológicas que, de certa maneira, afetam

diretamente a vida do planeta, Sandra Quinteiro, economista do Instituto Políticas

Alternativas para o Cone Sul – PACS e representante da Rede Jubileu Sul Américas,

faz uma análise sobre os resultados da RIO+20, grande evento realizado na cidade

do Rio de Janeiro, Brasil, de 15 a 22 de junho de 2012.

Sandra destaca que a “Cúpula dos Povos”, conferência que reuniu cerca de

200 delegações dos mais diversos países para discutir as questões ambientais não

apresentou resultados satisfatórios: “[...] o documento foi tão rebaixado que, de fato,

o que sai daqui fortalecido não é o multilateralismo, mas o poder corporativo” (SÁ;

JÚNIA, 2012, p. 36), e concluiu que:

[...] a Cúpula dos Povos foi anticapitalista. É urgente e necessária a criação de uma novo modelo, minha gente. Não dá, o capitalismo está nos matando, está colocando a vida sob o júdice do lucro. O lucro está acima da vida e de qualquer racionalidade. As áreas que estão preservadas, que estão nas mãos hoje das populações tradicionais do sul, estão sendo mercantilizadas por mecanismos como o mercado do carbono. A Cúpula conseguiu se manifestar contra tudo isso, é uma grande vitória política num momento de muito dissenso e desarticulação. Em um momento também de muita captura corporativa, de grandes ONGs, parte de alguns movimentos que estão no campo e nas florestas ainda um pouco seduzidos pela ideia do pagamento de serviços ambientais e outras coisas mais, mas eu acredito que com a Cúpula isso vai mudar. (idem, ibidem).

O processo de industrialização, mercantilização, globalização e do

capitalismo monopolista e financeiro, sobretudo, no que diz respeito à

77

Não nos cabe aqui defender ou refutar qualquer classificação ou análise das políticas públicas brasileiras na área da Assistência Social, como nas demais áreas, apenas estão apontando alguns resultados críticos que já aparecem no cenário acadêmico. Em nossa opinião, há verdades e mitos nessa questão, porém, não é a temática a ser estudada nessa dissertação.

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78

competitividade, à imediaticidade78 à lucratividade na e da vida social, são

características constitutivas do individualismo exacerbado e violento e da reificação

da vida humana.

Lembrando Heller:

[...] temos que imaginar uma sociedade em que todos os homens, com maiores ou menores convicções morais e só com um common sense, podem lograr uma vida digna de homens sobre a base da liberdade, da fraternidade e da igualdade social. [...] Que é realmente a revolução se não a transformação profunda da vida dos homens? (HELLER, 1982b, p. 120-121)

79.

O quadro que se apresenta, não inclui problemas somente de natureza

política, econômica, social e cultural, como também de caráter ético-moral. Estas

palavras de Heller em outros momentos e contexto histórico parecem ecoar

significativamente nos dias atuais.

Apesar do pessimismo de alguns, do fatalismo de outros, ou mesmo de

algumas ações particulares contra exploração e reificação da vida humana, ainda

assim, torna-se necessário e tão somente uma revolução radical, conforme os

apontamentos hellerianos, no sentido de ter uma vida verdadeiramente humana e,

quiçá, podermos finalmente alterar este quadro caótico.

Também gostaríamos de destacar os últimos acontecimentos na Síria, região

característica dos regimes totalitários, extremistas e fundamentalistas. Protestos

pós-democráticos iniciados em março de 2011, tem gerado uma onda de violência e

morte naquela região, sob o comando do presidente Bashar Al-Assad. O número de

vítimas tem passado da casa dos 3.800, sendo, na maioria, civis. Estes nos parecem

remeter aos dias vividos por Heller nos anos de 1940 a 1970 na Hungria.

A crise econômica europeia, desde 2011, também tem gerado um clima de

descontentamento geral naquele continente e, por sua vez, vem repercutindo mundo

afora, deixando um rasto de trinta milhões de pessoas no limite entre a “classe

média” e a pobreza. Uma situação contraditória para uma região que historicamente

se afirma como “o primeiro mundo” em todos os sentidos.

78

Entende-se por imediaticidade ao agir humano enquanto resposta ativa e imediata aos acontecimentos do cotidiano, ou seja, “o padrão de comportamento próprio da cotidianidade é a relação direta entre pensamento e ação; a conduta específica da cotidianidade é a conduta imediata, sem a qual os automatismos e o espontaneísmo necessário à reprodução do indivíduo enquanto tal seriam inviáveis”. (NETTO; CARVALHO, 2010, p. 67). Grifos do autor. 79

Grifos do tradutor.

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79

Da Índia e da África é corriqueiro recebermos notícias sobre a situação de

penúria e miséria, onde a vida humana, muitas vezes, é reduzida à condições

desumanas. Por outro lado, deparamo-nos com a situação social antagônica de

Dubai, um exemplo típico dos extremos entre a riqueza excessiva e a miséria

relativa.

Ainda na África, para escapar da miséria subumana, “jovens ugandenses”80

são recrutados pelos Estados Unidos como reforço do aparato de guerra. Os negros,

para não morrerem de fome no seu país, se dispõem a trocarem de lugar com os

“combatentes patriotas americanos” que historicamente alimentaram o mercado de

Hollywood, já que estes não mais valoram o sentimento de “amor à pátria”. Lembra-

nos bem o filme O jardineiro fiel81.

O movimento Occupy, uma verdadeira reação que eclodiu, simultânea e

contagiosamente, sob a forma de movimentos sociais, rebeliões e protestos em

2011, teve suas primeiras manifestações na África e se espalhou rapidamente para

a Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Espanha, Grécia, Londres, Chile, Estados Unidos e

Rússia, com algumas expressões no Brasil.

Este movimento foi uma resposta dos/as indignados/as, numa verdadeira

amostra de consciência solidária aos acontecimentos que tem estourado em várias

partes do mundo desde a aurora do século XXI.

Tais acontecimentos nos parecem reportar aos idos de 1968, na Primavera de

Praga, a qual Heller descreve com profundo sentimento de coletivismo, solidarismo e

patriotismo. É possível reverter os acontecimentos, porém, ao invés de termos uma

“massa” politicamente dissensiosa e desorganizada, precisamos de um movimento

organizado: “[...] a alma carece de pré-história”82.

Esta vulnerabilidade da condição humana, individual e coletiva, reflete o

elevado preço que muitas vezes se paga pelas questões meramente formais e de

interesses privados ou em nome das convenções sociais. Assim, “[...] o peso da vida

está em toda forma de opressão” (KUNDERA, 2007).

No Paraguai, pelo que indicaram as notícias, a deposição do presidente

Fernando Lugo, no dia 22 de junho de 2012, foi um golpe de Estado, comparado ao

80

Matéria veiculada no jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, ano 05, nº 06, julho de 2012, tendo como título Soldados africanos para guerras norte-americanas (VICKY, 2012, p. 21-23). 81

Filme dirigido por Fernando Meirelles, em 2005, aborda, dentre outras temáticas, as experiências com os primeiros medicamentos contra o vírus da AIDS no Quênia, África. 82

HELLER, 1982b, p. 146.

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80

de Hitler na Alemanha em 1936, que apenas favoreceu os interesses dos grandes

latifundiários do país (ZINET; MONCAU, 2012, 10-13). Lembrando Heller, “[...] Não é

a bondade humana que transforma a sociedade, mas sim contrainstituições as que

transformam os homens e a sociedade”83.

Vale ainda destacar a situação do ensino no Brasil que tem afetado

significativa e principalmente a formação educacional e profissional. A Educação

tem-se transformado nos últimos tempos num mercado altamente rentável, onde

tanto o ensino, quanto a educação estão a serviço do capital.

Nesse sentido, no âmbito do Serviço Social, o conjunto CFESS/CRESS –

Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social -,

juntamente com outros sujeitos coletivos, tem se posicionado e lutado contra o

ensino mercadológico e notoriamente precarizado, em prol da educação de

qualidade.

Dados emitidos pelo CFESS84 revelam que “[...] no Brasil o investimento

público direto em educação, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), é de 5% e,

desses, apenas 0,7% é investido no ensino superior” e ainda, de acordo “[...] com

dados do artigo Mercantilização do ensino superior, educação à distância e Serviço

Social, publicado em 2009, pela professora da Universidade Federal Fluminense

(UFF), Larissa Dahmer, dos 332 cursos de Serviço Social existentes no Brasil, mais

de 205 (61,7%) foram autorizados a funcionar entre os anos de 2003 e 2009, sendo

91,7% de natureza privada” (CFESS, 2012).

A situação em relação aos outros cursos é igual ou pior. Ainda, o mais tinhoso

descaramento não poderia ser demonstrado nas instituições de ensino instaladas e

espalhadas pelo Brasil em shopping centers, comprovando vergonhosamente, que a

educação se tornou “artigo de vitrine” e que deve se adequar aos apelos do capital e

do mercado.

Concordamos com Netto (2010) ao sinalizar que a “questão social” não sofreu

mudanças, mas sim, as formas de sua expressão, em grande medida, se

modificaram.

83 HELLER, 1982b, p. 163. Grifos do tradutor. 84

Manifesto emitido pelo CFESS em comemoração ao Dia do/a Assistente Social e lançamento da campanha Serviço Social de olhos abertos para a educação: ensino público de qualidade é direito de todos/as. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta_diadoAS2012-site.pdf, Brasília, 15/05/2012.

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81

Ainda, a forma de organização dos/as manifestantes, também implica novos

formatos. Hoje o mundo é virtual, cibernético, o mundo do “silício – zeros e uns”.

Estudos nessa área, tem demonstrado uma nova realidade e novas formas de

organização dos movimentos sociais e das redes de movimento social85.

Esta pequena amostragem já demonstra a complexidade do nosso cotidiano e

de qual realidade estamos referindo. Segundo Heller, pensamento e ação devem

caminhar juntos na vida cotidiana.

[...] A transformação da vida cotidiana (quer dizer: das formas de vida) e de todas as instituições que reproduzem e fixam esta forma de vida só pode ter lugar inferior na guia de uma objetivação tal, que ofereça em si mesma uma nova forma de vida, mas não a que já existe, sim a utopia, o dever-ser. Por isso, que estamos insatisfeitos com a forma de vida dada, todos os que a querem transformar, hão de recorrer à filosofia como ideia reguladora de seu pensamento e de ação. Conscientemente, a necessidade da filosofia é em si mesma radical: pré-supondo que não consideremos o dado como uma necessidade, como um dado insuperável, mas que nos pré-dispomos a transformar. (HELLER, 1982b, p. 186).

Nessa ótica, a filosofia para Heller era concebida com uma filosofia radical e

que deveria direcionar para uma determinada forma de vida e de sociedade. Um

direcionamento para a formulação de uma teoria da e para a práxis social. A

filosofia, para Heller, nada mais é do que uma vida reflexiva ou de uma reflexão da

vida cotidiana – uma Lebensphifosophic.

À primeira vista, quando nos detemos nesta fala de Heller, pensamos numa

tal filosofia salvacionista, que espelhasse um humanismo cristão ou uma utopia aos

moldes de Thomas Morus ou Campanella, por exemplo. Heller não se referia à

filosofia clássica, mas sim, a uma filosofia de vida, tendo em vista que a sua própria

filosofia foi construída sobre matrizes revolucionárias.

Heller - fazendo uso da liberdade em seu mais alto grau - optou por matrizes

teóricas que expressassem esse movimento, essa dialética, essa historiografia, essa

85 Para maiores detalhes sobre este assunto, destacamos as pesquisas e estudos encabeçados pela Profª. Drª. Ilse Scherer-Warren, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, assim como e outros/as pesquisadores/as desta temática. Recomendamos a leitura de: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma Revolução no Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987; SHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993; ROSSIAUD, Jean; SHERER-WARREN, Ilse. A democratização inacabável: as memórias do futuro. Petrópolis: Vozes, 2000; SHERER-WARREN, Ilse; FERRERIA, José Maria Carvalho (org.). Transformações sociais e dilemas da globalização: um diálogo Brasil/Portugal. São Paulo: Cortez, 2002; SHERER-WARREN, Ilse; LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn (org.). Movimentos sociais e participação: abordagens e experiências no /Brasil e na América Latina. Florianópolis: UFSC, 2011; GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2010.

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82

totalidade, enfim, uma matriz que apresentava em si uma práxis revolucionária, que

possibilitasse desenvolver a riqueza humana ou, em outras palavras, em

desenvolver todas as “[...] faculdades materiais, psíquicas e espirituais adequadas

ao gênero humano”86.

Não podemos deixar de esclarecer que a filosofia helleriana espelha uma

filosofia, no sentido platônico, do “[...] uso do saber em proveito do homem”

(ABBAGNANO, 2007, p. 514). Neste caso, primeiramente busca-se adquirir um

determinado conhecimento que fosse ao mesmo tempo válido e o mais amplo

possível.

A utilização desse conhecimento em favor dos seres vivos é que implicava na

alteração da(s) situação(ões) que não contribua(iam) para o enriquecimento da

“riqueza humano” ou da “essência humana”: “[...] toda filosofia oferece uma forma de

vida; toda filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de

uma outra forma de vida”87.

Esta pequena amostra, permite visualizarmos algumas situações do cotidiano

atual no qual estamos inseridos. Enquanto tudo isso acontece, perguntamos: o que

fazemos?

Buscando responder e finalizar estas exposições de forma bem cotidiana, nos

apropriamos das palavras do músico e compositor brasileiro José Geraldo Juste (Zé

Geraldo), para responder e resumir esta questão:

Enquanto esses comandantes loucos ficam por aí/ Queimando pestanas organizando suas batalhas/ Os guerrilheiros nas alcovas preparando na surdina suas Mortalhas/ A cada conflito mais escombros/ Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça/ Dando milho aos pombos / Entra ano, sai ano, cada vez fica mais difícil/ O pão, o arroz, o feijão, o aluguel/ Uma nova corrida do ouro/ O homem comprando da sociedade o seu papel/ Quando mais alto o cargo maior o rombo/ Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça/ Dando milho aos pombos.[...].

Diante de uma sociedade que parece uma “torre de babel” a ruir e desabar, a

única coisa que os sujeitos sociais pensam, na maioria das vezes, é salvarem a si

mesmo. Este individualismo exacerbado tem alimentado a mente de muitos/as, que

não conseguem enxergar ou encontrar um projeto coletivo e revolucionário,

86 HELLER, 1983a, p.174. Grifos da autora. 87

HELLER, 1983a, p. 31. Grifos da autora.

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consistente e coerente, que inspire para uma nova sociabilidade. Isto não quer dizer

que estes não existem.

Nesse sentido, busca-se o sucesso individual, o bem-estar e a realização

pessoal, onde o outro é visto como concorrente - rival ou inimigo. Estampa-se nas

feições o horror ao fracasso.

Esta postura de indiferença às coisas mais comuns da vida cotidiana ou do

indivíduo, faz com que os escândalos sociais e políticos, a grande quantidade de

crimes e a violência em suas diversas expressões, as desumanidades, a

sobrevivência, as expressões da questão social, enfim, a barbárie, se justifiquem ou

caiam no relativismo e na sua naturalização, ou até mesmo num determinismo. Nas

palavras de Viviane Mosé: “[...] talvez este seja o sinal para destruir aquilo que não

temos coragem de transformar”88.

Nessa Babel do “salve-se quem puder!”, um número considerável de pessoas

prefere estar alheios/as, ou deixa-se submeter aos “reflexos condicionadores”, ou

seja, aos interesses e fetiche do capital e, por conseguinte, se alienam e estranham

de-si-mesmo.

Portanto, para que possamos pensar a problemática da reificação do ser

social, ou seja, a sua condição objetiva e concreta na cotidianidade em tempos

modernos, necessitamos recuperar o conceito de alienação.

1.5. Reificação do ser social em tempos modernos: mecanização da vida

Depois de um período obscuro da história da Humanidade – o período

medievo ou da Idade Média – uma nova fase despontou – a Modernidade. Os novos

eflúvios revolucionários provocaram, de certa forma, um desenvolvimento

antropológico-ontológico para a sociedade europeia. Passado, presente e futuro

aparecem como criações humanas – homens e mulheres são sujeitos de sua própria

história.

A história de Abelardo e Heloísa é um bom exemplo dessa passagem.

Abelardo traduz os princípios tomistas de sua época, atrelado às determinações e

concepções da igreja católica medieval e do destino vinculado ao castigo divino.

88

Referência à fala da filósofa Viviane Mosé, na série Ser ou não ser? Do programa exibido pela Rede Globo de Televisão (Fantástico), no dia 26/10/2006. Disponível em http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,MUL696172-15607-157,00.html; e: http://www.youtube.com/watch?v=jL_OR0OaGnA, acesso 13/04/2012.

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84

Heloísa89, por sua vez, enfrenta os padrões de sua época e entrega-se aos

sentimentos mais puros do amor e de sua individualidade.

Heller faz uma brilhante análise sobre este período no livro O homem do

Renascimento (1980; 1982a), uma verdadeira sociologia-histórica. Através da

literatura, principalmente das shakespearianas, Heller colheu rico material para suas

reflexões, mostrando o quê o Renascimento propiciou à Humanidade.

A literatura, assim como a arte - ou expressão artística -, é o espelho da

sociedade em suas determinadas épocas e do que há de mais premente na

substância do ser social. Uma pintura, uma partitura musical, uma escultura, um

livro, uma dança, enfim, as formas de arte escondem um universo a ser descoberto

e revelado. Um bom filósofo, antes de tudo, tem que ser um leitor ávido e Heller,

sem sombra de dúvidas, fez de seus escritos filigranas de conhecimento.

Neste período, no Renascimento - assim como num determinado período da

Antiguidade Clássica90 -, Heller aponta que o ser social encontrou condições

objetivas para assumir a consciência de que pode dinamizar suas

capacidades/potencialidades, tanto na vida social, como na esfera da

individualidade, objetiva e subjetiva.

Por séculos, o conceito místico e mítico - primeiramente referente a mitologia

greco-romana e, posteriormente, ao conceito de pecado original e o Juízo Final,

impostos pela ideologia cristã medieval - limitaram concretamente a vida social à

subjugação supra-humana ou metafísica, ou ainda, a forças onipotentes, oniscientes

e onipresentes inalcançáveis e incompreensíveis à natureza humana.

O ser social, nesses períodos, passa a criar a sua própria história, a ter e

desenvolver a sua história. Principalmente com o Renascimento, o conceito de

dinâmico, segundo Heller, ocupa todas as esferas heterogêneas da natureza

humana. A “liberdade”, a “igualdade” e a “fraternidade” nascem como categorias

ontológicas imanentes.

Heller (1982a) aponta que o Renascimento constituiu a primeira onda do

adiado processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Este conceito surge

89 Esta história foi muito bem representada no filme Em nome de Deus, filme se passa na França do século XII e foi produzido pelo cineasta inglês, Clive Donner (1926-2005). 90 Este período é analisado por Heller em seu livro Aristóteles y el Mundo Antiguo (HELLER, 1983) num profundo estudo da ética aristotélica e o mundo Antigo. Ao analisar a ética de Aristóteles e o mundo Antigo, Heller aponta a harmonia dialética do individual e do autodomínio representada no desenvolvimento dos escritos desse pensador. Anteriormente a Aristóteles não havia aparecido ainda no âmbito da filosofia uma concepção assim.

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entre dois sistemas sociais e econômicos mais estáveis - entre o feudalismo e um

determinado equilíbrio entre as forças feudais e burguesas -, particularmente,

remonta aos idos dos séculos XV e XVI. Compreende um processo revolucionário

tanto social, como histórico, total e generalizado, mas, tipicamente específico de

alguns países europeus.

A estrutura básica da sociedade foi alterada e afetada naquilo que é mais

premente no reino da humanidade: sua essência. Estas alterações atingiram todas

as esferas da vida social: econômica, política, social, cultural, religiosa e moral,

social e individual.

Para Heller, o Renascimento constitui uma determinada época na história da

Humanidade em que houve a transição do feudalismo para o capitalismo. Surge

entre dois sistemas sociais e econômicos: de um lado o feudalismo, do outro um

estado de equilíbrio entre as forças feudais e burguesas e os primórdios da

acumulação primitiva.

[...] Engels designou-o corretamente como “revolução”. Nesse processo de transformação, foi abalada toda uma estrutura econômica e social, todo um sistema de valores e maneiras de viver. Tudo se tornou fluido; sucederam-se levantamentos sociais com uma rapidez incrível, os indivíduos situados “mais alto” e “mais baixo” na hierarquia social mudaram rapidamente de lugar (HELLER, 1982a, p. 10).

Com o Renascimento, surge o conceito de “homem dinâmico” e também a

sociedade burguesa, a acumulação primitiva, o capitalismo mercantilista, industrial e

financeiro, o modo de produção capitalista, o aparecimento do Estado nacional

unificado, aniquilando o sentimento de comunidade e dando vazão a individualidade

egocentrista e, mais tarde, ao egoísmo individualista. É nessas circunstâncias que o

ser social encontrou condições favoráveis para a objetivação plena na vida

cotidiana91.

É inegável o desenvolvimento trazido pelo Renascimento, tanto histórico-

social, científico, tecnológico, antropológico-filosófico, como ontológico-social e

ontológico-individual, não negando, sobretudo, porém, que com ele também

ascendia os primórdios do capitalismo, destruindo a “relação natural entre indivíduo

e comunidade”, dissolvendo os laços que ligavam o humano a hierarquia das

91 Para maiores detalhes voltaremos a este assunto mais a frente.

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estruturas sociais coletivas. As relações se tornam efêmeras, fluidas e objetuais,

conforme o que Marx demonstrou em seus escritos.

Com a emergência e consolidação do modo capitalista de viver, a alienação

se apresenta no campo social e individual. Na sociedade do consumo e do

descartável, esse processo é ainda mais avassalador, por que não dizer violento.

Em grande medida, induz, reduz e provoca condições para que o ser social

assuma características inferiores a sua própria condição humano-genérica, ou

mesmo, passe a expressar sentimentos, atitudes, hábitos, costumes, culturas,

formas de expressão na vida cotidiana estranhas a sua natureza.

A mídia e a cibernética, na sociedade atual, não totalmente nem

exclusivamente, contribuem para esse processo. Acostumamos a presenciar dos

realitys shows ou mesmo programas que ideologicamente conduzem a inferiorizarão

da natureza humana, num nível tão exacerbado que ficamos a pensar até que pondo

o homem e a mulher se sujeitam à humilhação para “ganhar um prêmio”.

O condicionamento ideológico é tão acentuado que homens e mulheres se

sujeitam a passar por situações das mais inesperadas possíveis e impossíveis.

Literalmente desumanas, podendo ser verificadas nos programas televisíveis No

Limite, Hipertensão, Pânico, Cante se puder, dentre outros, ou a um nível de

maquiavelismo, competitividade e individualismo expostos nos realitys shows.

Programas como estes são exibidos em várias partes do mundo e muitas vezes

aplaudidos.

A vida privada se tornou pública, mas os aspectos mais prementes da

essência humana acabam por ser banalizados. Por outro lado, o público – os/as

espectadores/as – acabam por serem algozes daqueles/as que se submetem a tais

situações.

Não estamos aqui fazendo uma apologia à censura e/ou liberdade de

expressão, mas sim, buscando exemplificar a que limites de desumanização homens

e mulheres se submetem em busca de um enriquecimento rápido e fácil, como

também ao poder e status que a mídia lhes oferece.

Há também outras formas de desumanização como é o caso do trabalho

escravo, da exploração do mundo do trabalho, da todos os níveis de violência, do

não respeito aos Direitos Humanos, do mundo do narcotráfico, dos vícios de

qualquer natureza, da miséria, dentre outros.

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Portanto, podemos observar que o cotidiano alienado92 é real, concreto e

objetivo e nos inserimos nele. Neste estágio de condicionamento as relações sociais,

e consigo mesmo, se mostram como relações objetuais, em alto grau de reificação,

como também fetichizadas, ou seja, como “caráter místico” e fantástico das coisas.

Vários estudos já chamaram a atenção para esta relação coisal e objetual que

a genialidade de Marx colocou às claras para a Humanidade, portanto, acreditamos

não ser necessário aprofundar esta questão.

No campo da ética no Serviço Social, Barroco (2008) é a referência para que

se possa compreender a ética numa concepção marxista. Apenas para contemplar o

conceito de alienação, nos apropriamos do estudo desenvolvido por Netto (1981),

intitulado Capitalismo e reificação parafraseando alguns apontamentos hellerianos

contidos em sua Teoria das necessidades em Marx (HELLER, 1986).

1.5.1. Alienação e reificação no capitalismo: subserviência ao capital

Acreditamos que Heller demonstra claramente como as necessidades mais

vitais do ser social coisificam-se na sociedade regida pela lógica do capital. Ao

estudar a categoria necessidade em algumas das obras principais de Marx, Heller

construiu a sua Teoria das necessidades em Marx que, conjugada com o texto

Teoria, práxis e necessidades humanas, apresenta um verdadeiro estudo

monográfico stricto sensu em que Heller verifica o desfalecimento e a necessidade

de reavivar o sujeito revolucionário marxiano – a classe operária para-si em Marx.

Poderíamos complementar estes estudos como o texto O lugar da Ética no

Marxismo (HELLER, 2004, p. 111-121), onde Heller apresenta a natureza da ética

no marxismo e a proposta de uma consciência coletiva revolucionária.

92

Para Lefebvre (2009, p. 42), a “alienação do homem não é teórica e ideal, ou seja, algo que se representa exclusivamente no plano das ideias e dos sentimentos; ela também é, acima de tudo, prática e se encontra em todos os domínios da vida prática. O trabalho é alienado, escravizado, explorado, tornado exaustivo e esmagador. A vida social, a comunidade humana, tornou-se dissociada pelas classes sociais, arrancadas de si mesma, deformada, transformada em vida política, enganada e empregada como meio de dominação do Estado. O poder do homem sobre a natureza, do mesmo modo que os bens produzidos por essa potência estão açambarcados, e a apropriação da natureza pelo homem social se transformou em propriedade privada dos meios de produção. O dinheiro, esse símbolo abstrato dos bens materiais criados pela mão do homem (isto é, pelo tempo de trabalho social, meio necessário para produzir este ou aquele bem de consumo), comanda e domina aqueles que trabalham e produzem. O capital, essa forma de riqueza social, essa abstração (que, em certo sentido, e em si mesmo, é somente um jogo de escritas comerciais e bancárias), impõe suas exigências à sociedade interna, implicando uma organização contraditória da sociedade, ou seja, a escravização e os empobrecimentos relativos da maior parte dela”.

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A discussão que Heller desenvolve em torno do conceito das necessidades,

tem extrema ligação com a categoria valor que, precisamente, constitui o

fundamento materialista da consciência ética e política do ser social.

Para suas análises, Heller parte de alguns pressupostos:

1. O trabalhador não vende ao capitalista seu trabalho, mas sim a sua força-

de-trabalho;

2. Elaboração de uma categoria geral de “mais-valia”93 (plus-valia) e sua

demonstração (beneficio, salário e renda da terra são apenas forma

fenomênicas de “mais-valia”).

3. Descobrimento do significado de valor-de-uso (Marx escreve que as

categorias de valor-de-uso e valor-de-troca não são novas, mas sim que

procedem da economia política clássica). (HELLER, 1978, p. 21).

É a prova mais cabal de que não faz um estudo lato sensu em Marx94, em

busca da categoria necessidade, mas sim, stricto sensu, na busca da essência

filosófica dessa categoria.

Heller parte da tese de que “[...] o lugar ocupado na [ou dentro da] divisão do

trabalho determina a estrutura da necessidade ou ao menos seus limites”95,

apontando, deste modo, que cada indivíduo se coloca, ou se apresenta, na e para a

vida cotidiana como um conjunto de necessidade diferenciadas.

Mas vai mais além, ao verificar a estrutura das necessidades. Heller

demonstra que não é somente a estrutura da divisão do mundo do trabalho que

influencia na diferenciação das necessidades e, por conseguinte, na estrutura e na

hierarquia dos valores.

Há determinações que antecedem o próprio mundo do trabalho, vamos dar

um exemplo: suponhamos que por algum motivo, uma pessoa esteja impossibilitada

de satisfazer suas necessidades primárias através do trabalho, ou seja, estaria

impossibilitada de inserir-se na divisão sócio-técnica do trabalho, sendo que, na

sociedade capitalista, essa inserção é condição sine qua non para a sobrevivência e,

até mesmo para um determinado reconhecimento.

93 Preferimos empregar a expressão “mais-valia” entre aspas por designar uma categoria de análise em Marx. Sendo ela uma categoria pode conter em si outras formas de interpretações. Originalmente Marx fez uso da terminologia plus-valia, que é utilizada originalmente por Heller, para designar o excedente de trabalho não remunerado pelo capitalista. 94

Em sua entrevista a Laura Boelle, Guido Neri e Amadeo Vigorelli, publicada num conjunto de texto intitulado La revolução de la via cotidiana (HELLER, 1982b), Heller descreve metodicamente como chegou e concretizou seus estudos em Marx. 95

HELLER, 1978, p. 23. Grifos da autora.

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89

Portanto, a princípio, suas objetivações já estariam prejudicadas e, contudo,

sendo esta impossibilitada de se objetivar naturalmente na vida social, passaria,

assim, a depender de outras pessoas. Deste modo, sua vida e a de outras pessoas,

estariam fadadas por fatalidades, causalidades e determinações estranhas a sua

vontade. As reações à esta situação seriam imprevisíveis e diferenciadas.

Ao passo que a sobrevivência deste indivíduo estaria automaticamente

condicionada a outrem, alterando todo o quadro da estrutura social e cotidiana em

que se inserisse, a ponto de até mesmo desenvolver outras necessidades e/ou

potencialidades que inicialmente não foram projetadas e/ou computadas.

Este assunto é assaz complexo para apresentarmos nessas notas

introdutórias, necessitando, de tal forma, um estudo a parte, a princípio, nossa

intenção é apenas apresentar um quadro sintético e geral da estrutura da vida

cotidiana na contemporaneidade, tendo em vista que quando estamos nos referindo

ao indivíduo social, não estamos de modo algum buscando individualizar o sujeito

coletivo marxiano, nem mesmo, individualizar o ser social, mas sim, demonstrar que

situações particulares e singulares podem alterar a natureza dos posicionamentos

éticos e políticos dos indivíduos na e para a vida social.

De acordo com as indicações hellerianas: “[...] nossas necessidades – e entre

elas, sobretudo, as radicais – são forças materiais que podem ser capazes de

transformar nossa sociedade”96. Portanto vamos apenas recuperar o conceito de

alienação segundo Netto (1981), tendo como alicerce a Teoria Social de Marx.

Conforme já apontamos, somos eminentemente sociais, ou seja, nos

constituímos humanos – hominização - com a internalização das experiências

individuais e grupais que realizamos. Humanizamo-nos, ou seja, nos constituímos

enquanto ser social, através da relação com a natureza e com os grupos sociais. Ao

introjetar elementos hominizadores e humanizadores, significado e significância

passam a ser a síntese do particular.

Quando as relações sociais aparecem estranhas a sua própria natureza – a

humana – ou seja, relações entre mercadorias, por exemplo, acabam por se tornar

relações entre coisas, passando a ter uma relação de mercado, na qual se perde o

caráter essencialmente humano. Agregada ao fetiche da mercadoria, estas, por sua

vez, passam a se constituir por relações sociais reificadas.

96 HELLER, 1982b, p. 138.

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90

Essa tautologia é necessária para diferenciar as relações sociais

verdadeiramente humanas com as relações sociais objetuais, ou seja, quando estas

se convertem em relações entre coisas, estranhas a sua própria natureza. Quanto

mais uma sociedade apresenta formas coisais entre pessoas, maior é o grau de

alienação/estranhamento dessa sociedade – tanto maior é o grau de sua reificação.

A circunscrição fundamental do fetichismo é a supressão das mediações

sociais, subsumindo-as a meras substâncias coisais e autônomas. No estágio atual

do capitalismo, as coisas em si, assumem uma valoração substantiva, inerente ao

seu valor real, como por exemplo, a posse de meras mercadorias representa um

status de poder ou de socialização – a vida em sociedade fica condicionada ao ter e

não ao ser.

[...] A resposta marxiana é clara: na sociedade contemporânea a realização da vida genérica do homem que se torna em instrumento para a consecução da sua sobrevivência física (orgânica, animal, natural). Nas condições desta sociedade, o trabalho, portanto, não é a objetivação pelo qual o ser genérico se realiza: é uma objetivação que o perde, que o aniquila. (NETTO, 1981, p. 56)

97.

Homens e mulheres passam a utilizar do outro como mero meio, como

instrumento para as suas necessidades. Mas não só o outro é utilizado desta forma:

sua própria existência torna-se um meio e não a teleologia da vida. O imperativo

categórico kantiano aqui é totalmente revogado.

Desse modo, todos os atributos da vida humana são transmutados em sua

forma de mercadoria e/ou coisa. O valor monetário passa a ser condição

imprescindível de toda a existência: lazer, trabalho, tempo, sobrevivência, vida

social, por fim, a vida “por inteiro” passa a ser reduzida à dimensão de lucratividade.

Nesse sentido, segundo Netto (1981, p. 56-57), a manifestação da vida

(Lebensäusserung) passa a ser a alienação da vida (Lebenstäusserung). A

alienação é uma forma específica e condicionada de objetivação do ser social no

cotidiano. Lukács demonstrara que há formas não alienadas de objetivação. É com

essa percepção – de objetivação não alienadas – que Heller desenvolve seus

estudos da não-cotidianidade e de uma vida social não alienada.

Para que o indivíduo possa assumir uma atitude ou consciência ética e

política, primeiramente é necessário que ele/ela tenha consciência de que é um ser

97

Grifos do autor.

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91

humano e não uma coisa qualquer e, enquanto humano, estabelece relações sociais

humanas e não objetual ou coisal.

A vida cotidiana alienada, regida pela lucratividade, mercantilização e

imediaticidade, anula as possibilidades de consciência de-si-mesmo. Por

conseguinte, anula as condições de liberdade e expressa um modo de ser altamente

destrutivo e perecível. Portanto, se a ética implica um modo de ser consciente, a

pessoa alienada - do ponto de vista do estranhamento de-si-mesmo - apresenta-se

na vida cotidiana tendo um comportamento não-ético.

O termo não-ético se refere à ideia de um comportamento não consciente e

negativo no que diz respeito a desvaloração dos componentes essencialmente

humanos. Assim, ao se objetivar na vida cotidiana elementos alienados/alienantes, o

ser social provoca sua própria destruição ou aniquilação, assim como a do outro e à

própria vida do planeta: cada negação é a afirmação dos seus contrários.

Nessa perspectiva, é importante frisar que as questões ecológicas, por

exemplo, estão diretamente ligadas a uma postura ética e política consciente, ou, a

um determinado modo de ser, de agir ou de se afirmar no mundo.

Contudo, se o modo de ser está condicionado a um não-ético –

alienado/alienante e estranho a sua natureza -, sua afirmação/objetivação – sua

ação -, na vida social, também se apresenta prejudicada, portanto, num sentido

negativo da ação política.

Se o ser social se vê ou se apresenta como coisa, como mercadoria, como

algo descartável e não-humano, como pode ele/ela ter ações revolucionárias? Como

pode assumir compromissos, atitudes, posicionamentos, responsabilidades, lutas

sociais, ou seja, uma vida social ética e um comportamento político?

Se o ser social é um ser da práxis e se essa práxis se coloca

alienada/alienante, estranha a sua natureza, por conseguinte, reificada, como pode

ter ou apresentar uma práxis revolucionária, consciente, constituída e constituinte?

Se a ação política está condicionada às relações objetuais ou coisais, se os

interesses apresentam-se regidos pela lógica do capital ou pelos interesses

privados, como essas ações podem visar à coletividade ou à liberdade? Se não há

uma relação de comunidade, de coletividade - um para-nós -, as relações e ações

políticas passam a vislumbrar interesses escusos ou estranhos aos sujeitos sociais e

à sociedade.

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92

Nesse caminhar, a categoria propriedade privada também se apresenta como

uma forma de alienação. É sabido que esta categoria surge num momento histórico

em que o ser social delimita algo ou pessoa como sendo exclusivamente seu –

aquilo-que-é-meu, eliminando o caráter social das coisas ou pessoas – aquilo-que-é-

nosso. Como se vê, há uma alusão da categoria valor às coisas, situações e

pessoas. A categoria valor aqui e no pensamento de Heller tem um caráter

altamente ontológico.

Na sociedade individualista – no individualismo -, aquilo-que-é-nosso

praticamente é eliminado, passando a valer apenas aquilo-que-é-meu. Não é a toa

que o sentimento de comunidade é uma categoria primaz no pensamento helleriano.

Em suas análises sobre Aristóteles e o mundo Antigo, Heller demonstra claramente

como a polis grega, ou o sentimento de comunidade (o público), passou do sentido

natural para o sentimento privado (individual).

A comunidade constituía um vínculo natural entre os cidadãos da polis grega

que impedia a aparição da moralidade individualizada. Respeitando-se suas devidas

especificidades e particularidades, Heller apresentava a própria comunidade grega

como um valor ou para um entendimento d’aquilo-que-é-nosso. O sentimento

defendido por Platão e Aristóteles não poderia ser mais característico.

[...] O indivíduo que não está em situação de realizar-se dentro da comunidade, que se sente importante ante a realidade objetiva, busca na ética somente a solução do problema de como estruturar sua própria vida. A moral se reduz, em consequência, à pergunta que o indivíduo se formula a propósito de “como viver” (HELLER, 1983, p. 368).

Desta forma, na polis grega, ou pequenas comunidades, os homens de bem

(aqueles que cuidavam dos assuntos econômicos, políticos, religiosos e militares –

da res pública), estavam envolvidos por inteiro como os assuntos da polis,

lembrando que o trabalho no mundo Antigo era constituído por sistema escravista e

que as mulheres eram excluídas dos assuntos da cidade-estado, porém, a dimensão

ética e política dos indivíduos expressavam diretamente o seu pertencimento à

comunidade.

Portanto, a consciência ética e política de comunidade era um elemento

natural e universal entre os cidadãos gregos (homens de bem). Segundo Heller

(1983), quando o centro político-administrativo da polis passa a centralizar-se num

determinado centro político imperial, paulatinamente, a consciência e a postura ética

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e política deixam de fazer parte da vida social, passando, assim, a ser ocupada por

um sentimento de como se comportar na e para a vida social (o quê fazer e o quê

não fazer; o que é certo e o que é errado; o que é bom e o que é mau). A ética,

deste modo, fica restrita ao campo da moral, das regras e normas ou de um código

de conduta moral para a vida em sociedade.

Já em suas análises sobre O homem do Renascimento, Heller (1982a) aponta

que quando o conceito de homem estático passa para homem dinâmico, ou seja,

quando “[...] o indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento

pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento, e

[...] a relação entre indivíduos torna-se fluida; o passado o presente e o futuro

transformam-se em criações humanas”98, afasta-se cada vez mais do sentimento de

público, passando a imperar o sentido de privado.

[...] O desenvolvimento do conceito renascentista do homem, tinha as raízes no processo através do qual os primórdios do capitalismo destruíram a relação natural entre o indivíduo e a comunidade, dissolveram os elos naturais que ligavam o homem à sua família, à sua situação social e ao seu lugar previamente definido na sociedade, e abalaram toda a hierarquia e estabilidade, tornando as relações sociais fluidas tanto no que se refere ao arranjo das classes e dos estratos sociais como ao lugar dos indivíduos neles (HELLER, 1982a, p. 11)

99.

No âmbito da mercantilização, da lucratividade, da competitividade e da

imediaticidade, ou do capitalismo altamente desenvolvido, aquilo-que-é-nosso - o

para-nós - é totalmente aniquilado, até mesmo no corporativismo essa categoria se

apresenta em sua forma unitária e unilateral, enquanto fenômeno objetual.

[...] Há uma razão profunda e decisiva que obriga Marx, em distintos momentos da sua evolução, trabalhando com a economia política, a tematizar frontalmente a alienação e o fetichismo: é que ele se vê compelido a explicar porque precisamente o modo de produção capitalista, que assenta numa organização puramente social, engendra formações econômico-sociais que manifestam o seu ser social como se fora a-social. Desde que foca de maneira não-especulativa a realidade sócio-histórica, este é o problema primeiro que a reflexão marxiana se põe: desvendar o mecanismo fluido e dinâmico que faz com que aquelas formações econômico-sociais que articulam um ser social puro, produto radical e exclusivo da interação dos indivíduos, expurgado de componentes extrínsecos e adventícios (laços de sangue, vinculações territoriais etc.), sejam também aquelas onde a forma fenomênica deste ser se coloca de modo a que os agentes sociais particulares, os homens vivos e atuantes,

98 HELLER, 1982a, p. 09. 99 Grifos da autora.

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94

não reconheçam nela a resultante das suas múltiplas inter-relações reais. (NETTO, 1981, p. 68)

100.

Esta objetivação a-social do próprio ser social – do indivíduo social - constitui,

na vida cotidiana, uma das preocupações de Agnes Heller, esclarecendo que a

questão de interrogar como as coisas acontecem ou como se pode entender isso ou

aquilo, já era própria de sua natureza – do seu ser-assim.

Obviamente, a influência de seu pai e o contexto histórico vivido por ela,

contribuíram nessa direção. Juntamente a esta empiria, somou-se a experiência do

holocausto e o resultado dos regimes totalitários: “[...] Isso trouxe questões muito

semelhantes em minha alma”101.

A busca e a investigação mundial para tais acontecimentos formavam o

alicerce para seus primeiros questionamentos: “[...] como isso pôde acontecer?

Como podem as pessoas fazer coisas como estas?”102

Para Heller, estas questões de cunho moral103, e por isso mesmo própria do

campo das escolhas particulares e singulares dos sujeitos sociais, passam a ser

entendidas como éticas, quando se tem consciência, real e concreta, do movimento

da vida e das circunstâncias e determinações sociais:

[...] então, eu tive que descobrir o que a moralidade é tudo, qual é a natureza do bem e do mal, o que posso fazer sobre o crime, o que posso descobrir sobre as fontes da moralidade e do mal? Essa foi a primeira indagação. [...] O outro inquérito era uma questão social: que tipo de mundo pode produzir isso, que tipo de mundo permite que tais coisas aconteçam? (POLONY, 1997).

Nesta fala, é notório o entendimento humano-sócio-histórico de Heller. O

acaso, o místico e mítico, a fatalidade/causalidade, a naturalidade dos

acontecimentos, não aparecem como formas de objetivações estranhas ou

100

Grifos do autor. 101

POLONY, 1997. 102 POLONY, 1997. 103

Para Heller (2004, p. 05-06) a moral “é uma relação entre as atividades humanas. Essa relação é – para empregarmos uma expressão bastante abstrata – a conexão da particularidade com a universalidade genericamente humana. [...] A moral é o sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior – em necessidade natural – a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua particularidade individual), as quais podem se expressar como desejo, cólera, paixão, egoísmo ou até mesmo fria lógica egocêntrica, de modo, a que a particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais que existem para além das causalidades da própria pessoa, ‘elevando-se’ realmente até essa altura” – grifos da autora. Portanto, a moral – que é estritamente social – apresenta-se como um modus operandi regulador na e para a sociedade.

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metafísico/sobrenatural à natureza humano. A práxis, na concepção materialista, é

ou se apresenta, em todos os aspectos (sociais e históricas).

Tendo em vista o caráter distintivo da sociedade contemporânea, que

apresenta um estágio de alienação altamente generalizado, podemos dizer que:

[...] a autonomia104

dos indivíduos é puramente ilusória, eles estão subordinados a mecanismos e processos que não controlam e sequer reconhecem como oriundos das suas próprias relações. A escravidão dos indivíduos resulta tanto do fenômeno objetivo da exploração econômica (de que a propriedade privada é o índice mais evidente) quanto da internalização psico-social dos efeitos dela decorrentes, cujo resultado é a sua desvinculação do todo da sociedade, do todo da existência social enquanto são agentes sociais particulares. Através do conceito de alienação, o que Marx aponta é a cisão operada entre o indivíduo, que se toma a si mesmo como unidade autonomizada e atomizada, e a coletividade, que é percepcionada como uma natureza estranha – a alienação conota exatamente esta fratura, este estranhamento, esta despossessão individual das forças sociais que são atribuídas a objetos exteriores nos quais o sujeito não se reconhece. (NETTO, 1981, p. 69).

A visão de totalidade que Marx nos trouxe implica em conceber o mundo da

vida como um sistema de inter-relações, não no sentido sistêmico em que as partes

se interligam num todo, e o todo é a resultante das partes, mas sim, enquanto

complexos sociais particulares e singulares constituintes de um sistema mais

complexo e ainda maior – o todo se apresenta nas partes, mas estas não são o

todo, nem parte do todo; assim como a parte contém as representações do todo.

Em outras palavras, pensamos, por exemplo, numa obra de arte: o todo está

contido na obra, pois expressa o conhecimento humano-genérico do artista – o

conhecimento e desenvolvimento histórico-social – mas não é o todo, e sim

expressão do todo, assim como não é o artista, mas expressão do artista. Por outro

lado, o artista se reconhece na obra – sua produção -, mas não é a obra, assim

como a obra não é o artista, mas espelha toda a subjetividade e objetividade do

artista, que se reconhece nela. São complexos que se somam e se dividem ao

mesmo tempo e na mesma unidade.

104

Entende-se por autonomia “[...] o que sucede quando, na eleição entre alternativas, o feito da eleição, seu conteúdo, sua resolução etc., estão marcados pela individualidade da pessoa. Evidentemente, no plano ontológico, tem o primado da alternativa: sem alternativa não há autonomia, assim como sem autonomia sempre pode haver alternativas”. (HELLER, 1977, p. 58). Heller (2004, p. 103) ainda complementa que “[...] para a média dos homens, é prática e teoricamente impossível distinguir entre as estruturas valiosas ou relativamente valiosas da tradição, etc., e a sua função de papel”.

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O dinamismo do capitalismo promove simultaneamente a dessacralização do

mundo extra-humano – a antropormofização social e a alienação social – a

desantropormifização social. Em outras palavras, assim como o Renascimento

provocou o desenvolvimento do ser social em seu mais alto grau – as possibilidade

objetivas de ser “por inteiro”105, também potencializou as possibilidades para a

individualização da vida social (a vida privada), a cumulação primitiva e,

consequentemente, o desenvolvimento do capitalismo, das relações de exploração,

da luta de classes e da alienação/reificação da vida social.

Porém, isso não quer dizer que todos/as, naquela ocasião, agiram ou

potencializaram tal intensidade/possibilidade da mesma forma, ou até mesmo, houve

aqueles/as que negassem ou se abstivessem dessa situação106.

O Renascimento não foi um acontecimento casual. As condições, contextos,

situações, potencialidades e objetivações, tanto sociais quanto individuais, ou seja, o

contexto sócio-histórico contribuiu para que houvesse um desenvolvimento em todas

as esferas heterogêneas107, assim como, na época de Marx, a classe operária

encontrou elementos sócio-históricos para a sua organização, mobilização,

movimentação e ação libertadora.

Netto (1981, p. 81) aponta que,

[...] enquanto a organização capitalista da vida social não invade e ocupa todos os espaços da existência individual, como ocorre nos períodos de emergência e consolidação do capitalismo (nas etapas, sobretudo, do capitalismo comercial e do capitalismo industrial-concorrencial), ao individuo sempre resta um campo de manobra ou jogo, onde ele pode exercitar minimamente a sua autonomia e o seu poder de decisão, onde lhe é acessível um âmbito de rotoalização humana que compensa e reduz as mutilações e o prosaísmo da divisão social do trabalho, do automatismo que ela exige e impõe etc.

Porém,

[...] na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social preenche todos os aspectos e permeia todos os interstícios da existência individual: a manipulação desdobra a esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que

105

Estado em que homens e mulheres participam na vida cotidiana “com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidade intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias” (HELLER, 2004, p. 17). Porém, isso não implica que possam ser realizadas em sua intensidade. 106

Esta dualidade da vida social será estudada no próximo item. 107 Estruturas sociais que se diferenciam entre si.

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penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares é o inteiro dos indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo psico-social se destila de todos os poros da vida e se instila em todas as manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação dos imagináveis, a gratuidade do ócio etc.) convertem-se em limbos programáveis. (idem, p. 81-82).

Cremos que estamos mergulhados “por inteiro” nesse universo reificado e

fetichizado, mas, será então verdade que chegamos ao “fim da história”

fukuyamiano? Acreditamos que não, pois ainda há espaços para que possamos

reverter esta condição.

Porém, as possibilidades muitas vezes aparecem como utópicas, no sentido

de algo idealizado e sem possibilidade de realização. Mesmo que assim apareça,

ainda assim apresenta-se como uma crítica ao modo de vida contemporâneo e atual.

A vida cotidiana é essa fruição, justaposição de objetos, substâncias,

implementos, circunstâncias, dinamismo, extremismo, contradições ou, como diria os

pós-modernos, esta ambivalência: homem e mulher na cotidianidade são atuantes e

fluidores, ativos e receptivos, “[...] mas não tem nem tempo nem possibilidade de se

absorver inteiramente”108.

Tal é o estado de sua subserviência aos apelos e apetites do capital que, em

seus aspectos mais prementes da hominização, o ser social não pode ou não

consegue se entregar “por inteiro” e aguçar todas as suas possibilidades e

potencialidades.

Desta forma, não consegue assumir um estado de consciência ética e política

que implique numa determinada ação revolucionária. Torna-se necessário

desmanchar os elos, os grilhões que nos prendem a essa submissão. Tal é o “papel”

do/a agente revolucionário/a - coletivo ou individual. Mesmo sendo individual, o para-

nós deve está implícito em-si-mesmo e para-si-mesmo.

Há aqueles/as, que por situações concretas, conseguem por si só chegar à

condição de individualidade e romper com os grilhões da alienação, porém, grande

parte ainda se perde no emaranhado da lógica capitalista. Outros, por sua vez,

conseguem se libertar dessas armadilhas pela sua inserção nos grupos sociais

revolucionários - nos sujeitos sociais coletivos. É essa dialética que trinca o

monolítico granito estrutural do capitalismo.

108

HELLER, 2004, p. 17-18.

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98

Para finalizar estas exposições iniciais e introdutórias, necessitamos ainda

verificar como nós, indivíduos sociais, inserimos ou somos inseridos na vida

cotidiana: condicionados/as a representações desde o nascimento, ou seja,

condicionados/as a representar papéis sociais estampados, em grande medida, num

determinado estado de alienação.

1.6. A representação dos “papéis sociais” no palco da vida cotidiana

Ao nascermos, segundo Heller, assumimos continuamente “papéis sociais”

na e para a vida cotidiana. Conforme já apontamos, o indivíduo é inserido num

mundo repleto de contradições, normas, regras, valores, costumes, culturas,

instituições, sistemas e/ou estruturas consuetudinários, juízos provisórios,

ultrageneralizações, representações, ou seja, “num mundo já dado” – já constituído

antes mesmo de nascermos.

Nascemos em condições sociais reais e concretas, em sistemas, estruturas,

determinações, expectativas, instituições, modos de ser social e historicamente

determinadas. A assimilação deste contexto, as ciências da psique já explicam - se

dá pelos sentidos e através de representações – ou se quisermos, por

condicionamentos.

Aprendemos primeiramente a usar e manipular as coisas, a apropriar

mecanicamente dos elementos/substâncias, em conformidade aos hábitos e

costumes de cada época, da estrutura e estratificação social, dos contextos sociais

distintos, momentos históricos diferenciados, enfim, de acordo com os padrões

sociais já estabelecidos.

Heller109 aponta que essa assimilação é realizada, particularmente, através

de imitações110 (mímesis111). A mímesis está relacionada à característica constitutiva

109

HELLER, 2004, p. 87-110. 110

Segundo Guimarães (2002, p. 16), em termos helleriano, a imitação se considera como “a primeira ação do cotidiano, pois antes de os sujeitos terem consciência, obedecerem a regras e normas etc., existe o comportamento que se constitui por imitações e que se faz presente a partir dos primeiros anos de vida das pessoas. [...] A imitação constitui-se numa objetivação em si, porque, a partir da imitação de um comportamento ou pensamento, passo a me apropriar de algo ou de alguma coisa. Esta característica pode permanecer presente durante toda a vida das pessoas, pois é um comportamento, que muitas vezes é reforçado socialmente”. 111

Mímesis ou mimese (do grego – μίμησις – imitação), conceito utilizado inicialmente por Platão, no Livro X d’A República, que, segundo Gagnebin (1993, p. 68) se referia a um “modelo a ser seguido” através da imitação ou representação desse modelo. Contra Platão, Aristóteles, no livro Poética, reabilita a mímesis enquanto “forma humana privilegiada de aprendizagem” (idem, p. 70), conceito que acreditamos mais apropriado nesta investigação.

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e particular de aprendizagem do ser social, sobretudo, na infância. Portanto, a

mímesis faz parte da natureza humana.

Ao assimilar as imagens112, modos, condutas, ações, representações,

opiniões, usos e costumes, ou seja, ao tomar contato com as coisas e situações do

cotidiano, o indivíduo traz para sua mente as imagens e representações da

realidade. Em sua particularidade, o ser social se adapta as formas sociais

(LUKÁCS, 1971, p. 09).

Para Aristóteles (1984), “[...] o imitar é congênito no homem”. É por meio da

mímesis que o humano aprende as primeiras noções das coisas e da vida social.

[...] Nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo, “este é tal”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 243).

Diferente dos animais, o humano é capaz de imitar não apenas momentos e

funções isoladas, mas também modos inteiros de conduta e de ação. No exemplo já

referido das meninas-lobos, o processo de imitação/representação se apresentou

restrito ao mundo animal, tal a similitude encontrada. Ao serem introduzidas no

universo social, não foram capazes de assimilá-lo em sua totalidade. Este é um caso

assaz interessante para análises, porém, não nos cabe aqui nem é nosso propósito

fazê-las.

Mas esta imitação/representação não se apresenta de modo absoluto. O ser

social não só se apresenta enquanto simulacro, mas parte da mímesis para os

diversos estágios do desenvolvimento social: “[...] o homem não pode alienar-se de

sua natureza de um modo absoluto [...]”113.

[...] A sociedade não poderia funcionar se não contasse com sistemas consuetudinários de certo modo estereotipados. Esses sistemas constituem o fundamento do sistema de “reflexos consuetudinários” do homem, sistema que permite aos membros de uma sociedade mecanizar a maior parte de suas ações, praticá-las de um modo instintivo (mas instintivo por aquisição, não como resíduo de uma estrutura biológica), ou seja,

112

Imagem aqui é usada enquanto representação dos cinco sentidos do ser social – visão, olfato, audição, paladar e tato. 113

HELLER, 2004, p. 88.

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100

concentrar o pensamento, a força moral etc., nos pontos concretos exigidos pela realização de novas tarefas. (HELLER, 2004, p. 88).

A vida cotidiana se tornaria complicada, ou até mesmo impossível de ser

realizada sem as imitações/representações. Os nossos atos mais corriqueiros se

tornariam impossível de serem realizados se parássemos a cada momento para

refletir sobre eles. Por exemplo, o simples ato de escovar os dentes pela manhã,

tornar-se-ia complicado se já não absorvêssemos os mecanismos próprios para a

sua realização. Se fossemos refletir a cada manhã sobre o seu processo ou

significado deste ato, não conseguiríamos nem mesmo sair de casa ou realizar as

demais tarefas cotidianas114.

A reciprocidade social é substantiva e resultante das relações sociais que, em

outras palavras, é o reconhecimento mútuo dos seres diante da mesma espécie e

que partilham as mesmas atividades, portanto, social, plural e heterogênea115.

Na imediaticidade116, em sua particularidade e singularidade, os indivíduos

respondem117 à sua sobrevivência e manutenção imediatamente. É na

imediaticidade que se instaura o processo de alienação, ao produzir e reproduzir as

imitações/representações sociais carregadas de juízos provisórios118 e de

114

As tarefas cotidianas são realizadas, em sua grande maioria pela repetição. Guimarães (2002, p. 13-14) salienta que podem acontece na esfera do particular/individual – repetição de movimentos já treinados e assimilados -, ou seja, ações que desempenhamos sem mesmo nos darmos conta (abrir e fechar portas, janela, torneiras, escovar os dentes etc.) – ações automáticas, repetitivas, objetivas e sem concentração. Como também na esfera do economicismo, ou seja, no intuito de economizar tempo, ações rápidas e breves, como por exemplo, “para obter alimento, não preciso plantar, esperar crescer, colher, vou direto ao supermercado e compro o que desejo” (idem, p. 14), ou seja, na esfera da imediaticidade. 115

A heteroneidade da vida cotidiana compreende as “atividades que compõem o conjunto das objetivações do ser social” (NETTO; CARVALHO, 2010, p. 67). Em outras palavras, compõe a hierarquia concreta das atividades intrínseca, extrínsecas e estritamente humanas incomum, heterogêneas e variáveis. Para Guimarães (2002, p. 13), essa heteroneidade “se caracteriza por sermos todos diferentes; não há pessoas iguais, é a alteridade a partir da singularidade”. 116

Relativo às ações (ou objetivações) imediatas da vida cotidiana que, na sua grande maioria, se apresentam na esfera do pragmatismo, ou seja, “ações baseada num pensamento essencialmente prático, empírico, que não necessita de teorias que explique, pois a prática diária confirma que aquilo é o verdadeiro” (GUIMARÃES, 2002, p. 16). 117

Lukács (2004, p. 39) em sua Ontologia do ser social afirma que o ser social é “capaz de dar respostas”. 118

Heller (2004, p. 43-63) traz uma importante contribuição para as análises sobre os preconceitos – uma forma de juízo provisório. As formas de preconceitos impedem categoricamente as possibilidades de liberdade do ser social. Buscaremos mais a frente detalhar com melhor clareza esta categoria vinculada ao pensamento helleriano. Para Guimarães (2002, p. 17), os juízos provisórios “são assim considerados porque não possuem nenhuma teoria que os sustentem, ou seja, são pensamentos empíricos baseados na experiência cotidiana e social das pessoas, sendo que a prática os confirma como verdadeiros” ou não.

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101

ultrageneralizações119 - portanto, representações miméticas alienadas -, se

afirmando, deste modo, enquanto ser-ai120 alienado/a.

Para Heller (2004, p. 102-103),

[...] o capitalismo desenvolvido aliena todas as relações humanas, cristalizando em papéis todos os sistemas consuetudinários, todas as hierarquias de comportamento etc., de tal modo que os fatos vitais imprescindíveis para a convivência humana, tais como a imitação, os estereótipos básicos, a relação com a tradição, os costumes etc., passam a aparecer sob forma de papéis.

No mundo regido pela lógica capitalista as imitações/representações sociais

aparecem, genericamente, estranhas e hostis à natureza. Para Heller, “[...] o caráter

estruturado do uso, a presença simultânea de várias reações consuetudinárias

(sistema tanto mais complexo quanto mais desenvolvida é a sociedade), é um dos

pressupostos da função papel” 121.

Ao objetivar-se no cotidiano, em sua imediaticidade122, o ser social apropria-

se somente de alguns aspectos de suas capacidades genéricas123, outros, porém,

podem não aparecer ou aparecem como estranhos, necessitando, assim, de

estímulos para a sua consciência:

[...] apropriar-se das habilidades do ambiente dado, preparar-se124

para o mundo dado, significa, portanto, não somente interiorizar e desenvolver as capacidades humanas, mas também e ao mesmo tempo – tendo em conta

119

A ultrageneralização é um “tipo de juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo da prática” (HELLER, 2004, 44-46 – grifos da autora), podendo ser científicas ou cotidianas, com base em fatos e/ou dados reais ou do senso comum, verdadeiros ou falsos. 120

Referência ao ser-assim (LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 9-10). 121

HELLER, 2004, p. 88. Grifos nossos. 122

O ser social, em sua imediaticidade, assimila os aspectos e substâncias da sua própria realidade, daqueles que estão circunvizinhos a sua esfera de possibilidades, outros lhe aparecem estranhos. A serem estimulados (consciente ou inconscientemente) ou ser social pode ou não apropriar-se destas novas situações que podem apresentar-se inesperadamente. A falta de possibilidades também pode ser fator de procura e descoberta, portanto, aparecem como estímulos. Em sua Teoria das necessidades em Marx, Heller traça um horizonte para entendermos mais amiúde como podem se manifestar ou não os estímulos. Não é nossa proposta entrar no campo da psicologia para compreendermos melhor estes aspectos, apenas de trazer a tona alguns dos aspectos mais relevantes das obras de Heller. 123

Entende-se enquanto humano-genérico a totalidade das ações e reações humanas social e historicamente constituídas, ou seja, é “sempre representado pela comunidade ‘através’ da qual passa o percurso, a história da humanidade” (HELLER, 2004, p. 21). 124

No original em espanhol, o tradutor utiliza o verbo madurar que, segundo tradução quer dizer “alcançar ou haver alcançado um desenvolvimento completo” (VOX, 2010, p. 710), portanto, processo pelo qual o ser social assume a sua maturidade.

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a sociedade em seu conjunto – apropriar-se da alienação. (HELLER, 1977, p. 29)

125.

Ao produzir/reproduzir ações sociais alienadas, alienantes e reificadas, em

outras palavras, fundamentadas pela lógica do “mais forte”, do “mais rápido”, do

“descartável”, o ser social passa a reproduzir “papéis” objetuais, negando a sua

própria natureza e enquanto ser de consciência126, ou seja, enquanto ser ético e

político, enquanto ser de liberdade.

Contudo, o ser social paralelamente ao desenvolvimento social, e em

proporção crescente, transforma suas próprias carências e necessidades em

potencialidades, que podem ou não serem objetivadas. O êxito, a falta dele ou a sua

negação, podem contribuir para que o ser social procure superar a sua situação

imediata, como também pode não reagir ou, até mesmo, criar novas formas de agir:

“[...] a negação é um importante impulso para a realização de novas formas de

vida”127.

Para Heller128, “[...] toda negação é, ao mesmo tempo, afirmação: esse

princípio também se amplia plenamente ao caráter”, conforme já exemplificamos

anteriormente. Contudo, ao negar a sua própria negação - negação enquanto

humano-genérico -, afirma-se na sua singularidade enquanto ser consciente de si-

mesmo e ao objetivar-se enquanto ser consciente de si-mesmo, objetiva-se

particularmente em-si-mesmo.

Quanto maior a sua exposição à realidade fetichizada, maior será a sua

identificação particular com os “papéis sociais” alienados e alienantes, por

conseguinte, contribui para o aumento das suas objetivações alienadas e alienantes.

Contudo, quanto mais se afirmar em-si-mesmo enquanto ser consciente de-si-

mesmo, maior será o campo das possibilidades que se abrem para uma consciência

ética e política para-si-mesmo, por conseguinte, maior será a extensão das

possibilidades e liberdades.

125

Grifos da autora. 126

Kosik (2010, p. 241-242) define consciência humana como a “atividade do sujeito que cria a realidade humano-social como unidade de existente e de significados, de realidade e de sentido”, portanto, onto-criativa. Porém, para nossas exposições, este conceito se apresenta muito restrito, não contemplando nossas análises. Desta forma, o estágio de consciência do qual estamos trabalhando, merece aprofundamentos mais detalhados que apresentaremos mais adiante. 127 HELLER, 1982, p. 156. 128

HELLER, 2004, p. 108.

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Este jogo de palavras – que não são palavras soltas, mas sim categorias

constitutivas e constituintes da ontologia do ser social – indicam a complexidade da

ontologia do ser social.

O ser social é sempre e simultaneamente, ser particular e ser genérico:

particular enquanto resultante da síntese de múltiplas determinações genéricas;

genérico porque é a sínteses de múltiplas determinações histórico-sociais; e, por fim,

singular enquanto síntese entre o particular e o genérico.

O indivíduo social – enquanto consciente de-si-mesmo -, não expressa a sua

singularidade enquanto ser isolado, mas sim enquanto síntese de múltiplas

determinações sociais - é o ser social em sua singularidade-individualidade,

simultaneamente social e consciente de seu lugar na e para a vida social.

Não representa a essência da Humanidade – ou o humano-genérico -, mas

contém em si sua substância. Ao mesmo tempo em que é singular – enquanto

indivíduo social – é particular e genérico – enquanto ser social. Tal é a antropologia-

ontológica de sua genericidade.

Essas objetivações fundam e enriquecem a sua própria atividade

teleológica129, estabelecendo mediações bastante articuladas, de modo que não só

a responda no campo da imediaticidade, mas também a pergunte, produzindo na

sua consciência as possibilidades de objetivação e, dentre elas, escolhe a que

melhor satisfaça às estas suas carências e necessidades (LUKÁCS, 2004, p. 39).

É na tensão e contradição dos acontecimentos cotidianos que se expressa o

palco da vida e a vida de todos nós. Historicamente, homens e mulheres, delegaram

a outrem ou a instituições a sua colocação na vida social, representando “papéis

sociais”, deixando-se conduzir por caminhos já traçados e planificados por outras

pessoas ou por interesses que nem sempre constituem a satisfação das

necessidades mais prementes da genericidade humana, determinando e

condicionando vidas, muitas vezes, a modos de ser alienados e alienantes.

129

Vázquez (2007a, p. 77) aponta que “[...] toda ação especificamente humana exige certa consciência de um fim, ou antecipação ideal do resultado que se pretende alcançar”, portanto, teleologia é a “capacidade humana de projetar finalidade às ações; finalidades que contêm uma intenção ideal e um conjunto de valores direcionados ao que se julga melhor em relação ao presente” (BARROCO, 1999, p. 122). Segundo Abbagnano (2007, p.1110), teleologia é “a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas”. A dimensão teleológica compreende a capacidade do ser social de “projetar antecipadamente na sua imaginação o resultado a ser alcançado pelo trabalho, de modo que, ao realizá-lo, não apenas provoca uma mudança de forma da matéria natural, mas nela realiza seus próprios fins” (IAMAMOTO, 2006, p. 40).

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Contudo, o modo de ser e a consciência ética e política não pode se

reconhecer na alienação. Desse modo, torna-se necessário lutar contra qualquer tipo

ou modo de alienação, jamais podemos permitir que outrem o/a reduza à “condição

de verme”, contudo, “[...] quem se considera como um verme, não pode depois

reclamar de ser pisoteado”130.

130

KANT apud HELLER, 1984, p. 95-96.

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CAPÍTULO II

2. PANORAMA DA VIDA COTIDIANA

“A diferença radical ‘apenas’ – e este ‘apenas’ representa o mundo inteiro – está basicamente no fato de que a totalidade do mundo ‘dado’ não assume para o indivíduo a sua quase transcendência”.

Agnes Heller

2.1. Individuo social e cotidiano: a vida como ela é

O indivíduo é o ser social em sua singularidade-particularidade e genericidade

e é em sua individualidade que se apresenta consciente de-si-mesmo e em-si-

mesmo – autoconsciência -, deste modo, pode ou não conduzir sua vida segundo

suas próprias atitudes e capacidades - para-si-mesmo, como também pode objetivar

sua consciência do para-nós – viver em prol da coletividade.

Para Lukács (1978, p. 13),

[...] a individualidade131

já aparece como uma categoria do ser natural, assim como gênero. Esses ‘dois’ polos do ser orgânico

132 podem se elevar à

pessoa humana e ao gênero humano no ser social tão-somente de modo simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade cada vez mais social.

Marilda Iamamoto (2006) já se ocupou de analisar a estrutura e ação do

sujeito social e o mundo do trabalho, trazendo importantes contribuições para as

análises do indivíduo social, que ora nos ocupamos, porém, acreditamos ser

oportuno para nossas análises, transcrever a referência a Coutinho (1990)133 trazida

por ela:

[...] o que importa é que o conjunto da reflexão marxiana é dominado pela ideia que, no social, se dá uma articulação entre o mundo da causalidade e da teleologia, ou seja, entre o fato de que as ações humanas são determinadas por condições externas aos indivíduos singulares e o fato de

131

Ser-em-si-mesmo. (HELLER, 1977; 1978; 1983; 2004). 132

Ente natural e biológico. 133 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Serviço social e Sociedade, nº 34 ano 11. São Paulo: Cortez, dez. de 1990, p. 21-40.

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eu, ao mesmo tempo, o social é constituído por projetos que os homens tentam implementar na vida social. A ontologia marxista dirá que o ser social é formado por determinismo e liberdade. Ou, em termos mais modernos utilizados pelas ciências sociais contemporâneas, que a sociedade é formada simultaneamente por momentos de estrutura e momentos de ação. (COUTINHO apud IAMAMOTO, 2006, p. 37)

134.

Partimos do pressuposto de que o desenvolvimento histórico e social da

sociedade é dado pelos indivíduos sociais e que a história é a substância da

sociedade: “[...] a sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem,

pois os homens são portadores da objetivação social, cabendo-lhes exclusivamente

a construção e transmissão de cada estrutura social”135.

Heller chama a atenção para o fato de que a história não só se constitui de

individualidades e particularidades, mas também, da continuidade de toda a sua

heterogeneidade – o humano-genérico -, e que a estrutura social dessa sociedade é

composta pelas suas esferas heterogêneas (ex.: produção, relações de propriedade,

estrutura política, vida cotidiana, moral, ciência, arte etc.), numa relação de

alteridade.

É importante salientar que, segundo Heller (1982), o conceito de

particularidade e individualidade, não são categorias substanciais e absolutas, mas

sim, relativas, e que se “[...] desenvolvem no curso da relação sujeito-objeto, ou seja,

representam apenas dois pontos extremos de possíveis condutas vitais, entre uma e

outra existem infinitas mediações”136.

A particularidade ao extremo aproxima-se do estado de alienação e da

imediaticidade; por outro lado, a individualidade extremada é a substância do

egoísmo individualista. Acreditamos que o melhor seria o justo meio aristotélico,

visto por um novo prisma - não o da virtude, mas sim, o da liberdade.

Nesse ponto, entendemos que a diferença entre o mundo Antigo e a Idade

Média estava relacionada ao conceito de estático e de transcendência, ou seja, a

visão de humano vinculava-se a subserviência de forças míticas e místicas. O

destino estava nas mãos da natureza ou de seres sobrenaturais.

Heller se ocupa em suas inquirições da tese da imanência e da objetividade

que contém em si o conceito de dinamismo social. Porém, a objetivação social pode

estar determinada por causalidades, situações inesperadas ou ser inerente à

134 Grifos da autora. 135 HELLER, 2004, p. 02. 136 HELLER, 1982, p. 161-162.

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vontade humana e às determinações circunstanciais. É por essa razão que o

resultado inicialmente projetado, pode ou não ser diferente daquilo que se é

esperado.

[...] A história é o processo de criação e continuidade do homem por sua própria vontade, por seu próprio trabalho, no sentido de sua universalidade e uma liberdade crescente, e a característica primordial do homem é precisamente essa autoatuação que forma o próprio sujeito. O indivíduo chega a ser indivíduo humano ao isentar-se ativamente em seu processo apropriando-se de certas realizações objetivadas da prévia evolução da humanidade de acordo com a altura de seu tempo e de suas concretas possibilidades sociais (MARKÚS, 1974, p. 54)

137.

Para Heller (1982a), o marxismo considera todas as épocas históricas como

complexos particulares e totais em si mesmos, apesar de cada uma se desenvolver

orgânica e dialeticamente a partir da época anterior. Por essa razão, rejeita como

estéril, tanto em teoria como na prática, toda a procura de semelhanças que redunde

em normas, como também rejeita particularmente o “[...] precedente como um motivo

para as decisões e ações sociais concretas dos homens na história”138.

Desta forma, ao atingir um determinado nível de consciência histórica, os

seres sociais deixam de ter qualquer necessidade de procurar um precedente para

os motivos. Pelo contrário, “[...] fazê-lo impedi-los-ia de avaliarem corretamente a

situação e de tornarem as suas decisões em função dela”139.

Destacamos na referência a Markús, que a condição de individualidade, na

qual Heller se apoia para suas análises e estudos, não é a única condição em que o

ser social se apresenta na e para a vida social.

A condição de individualidade, mesmo pertencendo à esfera da singularidade

do indivíduo social, ou seja, daquilo que é mais singular e íntimo do indivíduo, não

desconsidera a influência do social. O singular é a síntese da relação concreta do

particular e do genericamente humano, enquanto o particular é síntese da relação

concreta do universal e do individual.

O ser social não é simplesmente ser singular, mas sim, simultaneamente

individual e particular e, ao mesmo tempo, genérico. Sua objetivação social também

é simultaneamente individual-particular e genérica:

137 Grifos do autor. 138 HELLER, 1982a, p. 77. Grifos do autora. 139 HELLER, 1982a, p. 77.

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[...] em outras palavras: o ente singular humano sempre atua segundo seus instintos e necessidades, socialmente formados mas referidos ao seu Eu, e, a partir dessa perspectiva, percebe, interroga e dá respostas à realidade; mas, ao mesmo tempo, atua como membro do gênero humano e seus sentimentos e necessidades possuem caráter humano-genérico. Todo homem se encontra, enquanto ente particular e singular, numa relação consciente com seu ser humano-genérico nessa relação, o humano-genérico é representado para o indivíduo como algo dado fora de si mesmo, em primeiro lugar através da comunidade e, posteriormente, também dos costumes e das exigências morais da sociedade em seu conjunto, das normas morais abstratas etc. em sua atividade social global, o homem está sempre “em movimento” entre sua particularidade e sua elevação ao genericamente humano; e é função da moral conservar esse movimento. (HELLER, 2004, p. 80).

Essa antropologia-ontológica do ser social particular é necessária para

entender que o particular torna-se singular na medida em que produz a síntese do

seu Eu e que transforma conscientemente os objetivos e aspirações individuais e

sociais em objetivos e aspirações particulares de-si-mesmo e em-si-mesmo para as

aspirações para-si-mesmo: “[...] o indivíduo na vida cotidiana é sempre e

simultaneamente ser particular e ser genérico140”.

Nessa simbiose antropológico-ontológica, o particular se torna indivíduo

quando a sua vida se constitui, conscientemente, objeto de sua existência, assim se

apresenta como ente consciente de sua genericidade e, como tal, escolhe

conscientemente as suas aspirações e possibilidades para suas objetivações

concretas.

A esfera particular do ser social - a sua particularidade -, não expressa

apenas o ser isolado, mas significa, ainda, a síntese de sua singularidade-

genericidade, aquilo que há de mais premente na esfera de sua individualidade: “[...]

todo particular é ao mesmo tempo único e genérico-universal, [...] o particular

começa a madurar para transforma-se em indivíduo quando deixa de aceitar a

‘circunstância definitiva’ e em ambas as direções”141.

[...] o homem nasce num mundo – concreto – que está mais ou menos alienado. Porém, nem todos os particulares devem aceitar obrigatoriamente este mundo, nem aceitá-lo precisamente tal como é; nem todos estão obrigados a identificar-se com as formas alienadas de comportamento (HELER, 1977, p. 55).

140 HELLER, 2004, p. 20. 141 HELLER, 1977, p. 55.

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Na vida cotidiana, homens e mulheres tendem a conservar e se subordinar as

formas, estruturas, convenções, regras, enfim, às estruturas ou situações conforme

se apresentam. O novo, o diferente e o diverso causam estranheza ou, até mesmo,

repulsão, externando, muitas vezes, nas mais diversas formas de violência,

preconceitos e discriminações.

[...] A particularidade do homem está vinculada aos sistemas de preconceitos pelo fato de, também na própria sociedade, predominarem – embora em outro plano e com variações – sistemas de preconceitos sociais estereotipados e estereótipos de comportamentos carregados de preconceitos (HELLER, 2004, p. 50).

A relação preconceituosa, na ótica helleriana, é uma relação de amor e ódio.

Esta relação é bem visível, como por exemplo, nos extremismos religiosos. Nessas

situações, defende-se arduamente determinada concepção religiosa como verdade

absoluta, odiando qualquer outra forma de expressão diferente daquela defendida. O

embate entre duas ou mais concepções diferenciadas, muitas vezes, é estabelecido

por conflitos violentos: “[...] os preconceitos servem para consolidar e manter a

estabilidade e a coesão da integração social”142.

Este sentimento é ainda mais forte quando implica as questões éticas e

morais. O sistema de normas e regras foi estabelecido diante da necessidade de se

viver harmoniosamente em sociedade. É dessa necessidade que surge a moral.

Na Antiguidade clássica o objeto e objetivo da vida humana era a felicidade.

O modo de ser, estar e agir, consentia em viver uma vida feliz ou em criar formas

para que a vida assim se estabelecesse. Na Idade Média, a felicidade foi relegada

às questões de transcendência e de espiritualização da vida social – deificação da

vida social. Os homens e mulheres deveriam buscar na beatitude para uma vida

verdadeiramente feliz.

Heller fez um estudo detalhado desses dois momentos distintos da história da

Humanidade e do desenvolvimento singular do ser social. Nesses estudos, Heller

aponta a construção e a desconstrução dos laços comunitários, o despertar da

consciência individual, a autonomia e a liberdade do ser social (quando esse passa

a agir por si mesmo), e os primórdios elementares de uma vida alienada/alienante.

Nesses estudos, não deixa de perpassar pelo período medievo e o surgimento da

sociedade burguesa.

142 HELLER, 2004, p. 53. Grifos da autora.

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Não vamos nos ater a estes dois períodos em seus pormenores, ou seja, o

mundo Antigo (HELLER, 1983) e o “Renascimento” (HELLER, 1982a), mas

buscaremos apresentar alguns apontamentos importantes para entender o processo

histórico para à emancipação da individualidade.

Ao estudar a ética aristotélica e o mundo Antigo, Heller (1983) traça uma

fronteira entre duas épocas e situações bem distintas: a polis grega (onde o

sentimento ético e comunitário era uma questão natural) e a fragmentação dessa

relação; o legado jônico e o legado de Ática.

Baseado uma concepção moral-comunitária, os gregos clássicos

expressavam o conjunto de problemas estudados e elaborados pela comunidade

natural, mas ao mesmo tempo refletiam o acúmulo de sentimentos e ideias do ser

social privado que constitui o perfil dominante da época helenística, tanto no plano

prático como teórico.

Heller aponta que a ética aristotélica é a primeira ética imanente da história da

filosofia e a primeira a valorar o aspecto humano da moral. Uma ética científica e

completa, edificada sobre a base do zóon politikón, sobre a análise das

particularidades da consciência do ser social e sobre a teleologia do trabalho,

apreendendo pioneiramente os elementos particulares e genéricos do indivíduo e da

dialética que medeia a relação entre o ente e a comunidade, da moralidade e da

moral.

Em Aristóteles o homem (sendo que a sociedade grega desconsiderava a

mulher enquanto cidadã) aparece com um ente que vive a própria moral no social,

na medida em que, como indivíduo, possui um caráter social ativo e teleológico.

Graças a atividade analítica de Aristóteles, se desintegram os pontos de vista

unilaterais e absolutos e que se manifestavam nas relações humanas

heterogeneamente míticas e místicas.

Na época helênica, as comunidades não se constituem como formas naturais

de existência da vida individual. O homem não se encontra na vida política da polis

nem na vida pública. As cidades passam a ser governadas por centros políticos

distantes e inacessíveis da comunidade.

Os cidadãos passam a se constituir enquanto povo e a serem dominados e

subordinados por um poder central (imperialismo). A política se separa da ética e a

vida política se separa da vida comunitária.

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111

Com a dissolução dos laços comunitários, a atitude eudemônica143 é

conduzida a uma teoria dos prazeres vulgares: “[...] para Epicuro, como para os

estóicos, o fim não é a felicidade individual, mas sim a virtude. O fim do indivíduo é a

virtude, a vida “boa”, ou, todavia, a vida suportável, mas não a felicidade”144.

Quando o cristianismo passa a ser a religião oficial do império romano e o

imperador assume a figura de representante do poder divino sobre a Terra, o povo

fica submetido ao poder a-temporal e divino, antropomorfizado na figura do

imperador. A própria descrição dos atributos da divindade assume o caráter

antropomórfico centrados na figura do imperador.

Nesse período, que remonta ao século III da era cristã, a vida humana fica

submetida aos desígnios onipotentes, onipresentes e oniscientes da divindade

antromorfizada e o mundo regido por uma força divina e sobre-humana - Deus. Tudo

o que desafiava esta força, teria que ser destruído.

Um bom exemplo disso é a projeção cinematográfica Alexandria (Ágora). O

filme, dirigido por Alejandro Amenabár, lançado em 2009, conta a história da suposta

primeira filósofa mulher – Hipátia – que ensinava filosofia, matemática e astrologia

na escola da Alexandria, no Egito, por volta dos anos de 355 a 415 da era cristã.

Neste período, Alexandria vivia sob o domínio do Império Romano de

Alexandre Magno e se vê invadida pelo fanatismo do cristianismo intolerante judaico-

cristão. Um dos pontos centrais do filme é o incêndio da grande biblioteca da

Alexandria, resultante das intolerâncias religiosas da época. Mostra ainda o

enfrentamento entre os cristãos, os judeus e a cultura greco-romana.

Hipática teria sido a filósofa que primeiro descobrira a teoria heliocêntrica do

sistema solar, porém, a intolerância abismal à ciência e, principalmente, à mulher,

acaba por eliminar esta grande personagem da história. No filme, é impressionante

os acontecimentos mais violentos e bárbaros que o ser humano pôde cometer numa

época em que compreende a passagem da cultura greco-romana para a cultura

medieva e o descaso ao conhecimento científico.

Nessa época, a ética é concebida enquanto postura moral, ou como código

de conduta moral para elevação da situação de beatitude. As desigualdades passam

a ser naturalizadas, determinando homens e mulheres e serem joguetes do poder

divino e do próprio destino. O poder e a fortuna são relegados ao azar: “[...] os

143 Relativo a felicidade enquanto princípio e fundamento da vida moral (ABBAGNANO, 2007, p. 455). 144 HELLER, 1983, p. 368-369.

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motivos mais individuais são sociais, ainda que seja de maneira diferente segundo

os imperativos (normas e usos) da sociedade”145.

Voltando ao mundo Antigo, Heller (1983) aponta que Aristóteles foi quem pela

primeira vez separou a moral humana da divina, afirmando que os deuses não

podem ter uma moral, dado que não podem cometer nenhuma transgressão às leis

(princípio da perfectibilidade). Esforça-se em estabelecer uma relação harmoniosa

entre a esfera da ontologia e da ética, desmitologizando o universo da ética e da

política, dizendo que o mundo está determinado qualitativamente e

quantitativamente.

Para Heller (1983), Aristóteles foi o primeiro a compreender a essência

ontológica e o caráter social do humano. Compreendeu o papel da estrutura da

teleologia - sobretudo a teleologia do trabalho - e constituiu formas de valores que

eram próprias da natureza hominal.

Porém, devido às características de sua época, a ética aristotélica acabou

representando um código de conduta moral, individual e social, não havendo ainda

lugar para o rompimento dos costumes e das finalidades determinadas: “[...] a ética

de Estagirita pressupõe uma moral dialética e flexível, porém, num determinado

contexto sócio-histórico dado”146.

Porém, Heller ainda aponta que “[...] nos dois milênios que se passaram

desde então não tem sido suficiente para que volte a superfície a complexidade que

está contida na ética de Aristóteles”147.

No mundo Antigo, todos os valores integrantes da unidade individual e social,

são decisivos na relação com a comunidade. A justiça, por exemplo, passa a ser

uma questão de caráter, de respeito, de hombridade, de virtude; já na Idade Média a

justiça passa a ser um atributo da divindade (de Deus) e cabe aos seus

representantes (a igreja) aplicar as correções/punições necessárias para a

eliminação do pecado (mancha venial que impede a beatitude). Com a secularização

da sociedade e a formação dos Estados nacionais, estas questões passaram a ser

de domino do Estado e da Lei.

O pensamento da era da cristandade, dominado pelas paixões humanas, fez

com que o ser social submetesse toda a sua particularidade aos imperativos morais

145 HELLER, 1983, p. 337. 146 HELLER, 1983, p. 326. 147 HELLER, 1983, p. 366.

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dos interesses privados das esferas religiosas. No Renascimento, a religião perdeu

seu papel enquanto ideologia dominante e a concepção secular ganhou espaço na

vida cotidiana. As expressões artísticas permitem a volta da categoria de medida, ao

mesmo tempo – em consequência do declive das normas religiosa – aflora a ideia de

autonomia moral e, consequentemente, a individualidade do ser social.

Quando a unidade imediata entre indivíduo e comunidade começou a romper,

em momentos distintos da história da Humanidade, o interesse individual constitui-se

a mediação entre o particular e o social. Quanto mais se despreza a unidade entre

indivíduo e comunidade, maior é o papel do interesse privado enquanto regulador

para as ações humanas.

Somente durante o desenvolvimento da sociedade burguesa, quando a

existência do interesse regulador se consolidou entre o público e o privado é que os

imperativos individuais criaram raízes nas relações sociais e se consolidaram como

interesses extremamente egoístas. Heller (1983) aponta que na sociedade do

privado, os interesses destroem a unidade entre indivíduo e comunidade.

Heller (1982) assinala que o individualismo burguês é um fenômeno ambíguo:

ao mesmo tempo em que expressava a dissolução das velhas hierarquias de valor,

possibilitando organizar uma nova escala de valores e necessidades próprias;

também possibilitou a consolidação do egoísmo cotidiano, transformando as mentes

enquanto calculadoras, a fim de valorar a luta pela concorrência econômica: “[...] o

individualismo burguês apresenta-se como uma função particular dessa

individualidade”148.

A consciência de que o humano é um ser histórico e social, é um produto do

desenvolvimento burguês, contudo, a condição de realização do ser social é a

negação da existência burguesa.

[...] O egoísmo burguês não é apenas uma prática comercial, mas o único princípio que deve ser consequentemente realizado para conquistar o poder. O indivíduo forte tem o direito de não levar em conta nem mesmo os preceitos morais que são aceitos pelo homem médio egoísta; e define, abertamente, o segredo da sociedade capitalista: conquistar o poder sobre os homens médios (HELLER, 1982, p. 158).

Com o Renascimento o conceito de dinamismo do humano e da sociedade,

transformava o passado, presente e futuro em criações humanas. Tempo e espaço

148 HELLER, 1982, p. 157-158.

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se humanizam. Reportamos-nos as próprias palavras de Heller para uma síntese

desse período:

[...] a revolução do Renascimento foi uma revolução na concepção do homem. A liberdade, a igualdade e a fraternidade juntas tornaram-se uma categoria antropológica, com o que a humanidade despertou pela primeira vez, como humanidade, para a consciência de si própria. Do mesmo modo, a liberdade, o trabalho, a multilateralidade, a ausência de limites representaram juntas a essência do homem, a sua “natureza”, sendo, portanto, declarado que o homem era capaz de tudo. Mas as primeiras explosões da Terra e, presentemente, do universo, mostraram que no processo de realização das potencialidades do homem o presente não constituía o fim, mas apenas o início. Por entre os cataclismos do século XVI, no entanto, tornou-se cada vez mais duvidoso que o homem pudesse viver com as suas próprias potencialidades. As devastadoras guerras religiosas e as desumanidades da acumulação primitiva pareciam ainda mais terríveis porque eram levadas a cabo por uma humanidade que os homens sabiam ser “grande”, “sublime”, “capaz de tudo”, “capaz de guiar o seu destino”. Durante algum tempo, o panegírico foi substituído pelo ceticismo e pelo desespero. Mas este estado de espírito não persistiu durante muito tempo na antropologia. A filosofia da sociedade burguesa emergente não rejeitou a noção de autocriação, nem a de multilateralidade (técnica), nem a das capacidades infinitas. Mas explorou numa nova direção; procurou o motivo que levava o homem a criar. E encontrou esse motivo – que já não era sublime, nem moral – na motivação real do individuo burguês: o egoísmo (HELLER, 1982a, p. 361).

O conceito de “Renascimento” trazido por Heller (1982a) significa uma

determinada época histórica em que houve um processo total de remodelação

social. Toda a estrutura social, econômica, cultural e política da sociedade foi

afetada e alterada. O domínio da cultura envolveu a vida cotidiana em todas as suas

esferas heterogêneas, alterando as maneiras, o pensar, as práticas morais e os

ideais éticos e cotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e a ciência.

[...] Só podemos falar de Renascimento quando todos estes aspectos surgem ligados e, num mesmo período, fundamentados em certas alterações da estrutura social e econômica: em Itália, Inglaterra e França e, em parte, na Holanda. (HELLER, 1982a, p. 09-10).

As primeiras forças produtivas capitalistas e as relações sociais burguesa

surgem a partir do desenvolvimento da imanência149. Na medida em que a produção

de riqueza se transformava na meta a atingir, todas as características sociais

previamente existentes tornavam-se restritas.

O conceito estático de humano é substituído pelo de dinâmico. O indivíduo

passa a modelar o seu próprio destino, não apenas no sentido ético, mas em relação 149 Próprio do EU. (IMMANENCE – latim - in – manere = permanecer dentro).

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ao dinamismo impingido à vida humana e social, transformando-se em categoria

central da condição dialética da sociedade: “[...] o homem é um ser relativamente

autônomo que cria o seu próprio destino, luta com a sua sorte e faz a si próprio”150.

Do ponto de vista ético, a secularização da vida social durante o

Renascimento, abriu caminho para o ceticismo e o espírito crítico, para a

investigação científica e a discussão racional: “[...] é cada vez mais comum verificar

que a atitude do indivíduo perante a Igreja é uma atitude de indiferença ou desdém,

e que esta indiferença não tem qualquer relação com os sentimentos ou o seu

comportamento religiosos”151.

Nessa fase, a base social da concepção cristã de humano começa a ruir. Ao

lado da subordinação ao Estado unificado e da religião, surge outra forma de

subordinação: a subordinação nacional, primeiramente à lealdade local,

posteriormente, no sentido moderno de nação.

Com a secularização da vida social, a religião, paulatinamente, perdeu o seu

conteúdo ético sobre a vida social: “[...] o indivíduo era capaz de aperceber-se do

seu destino com relativa clareza, e podia enfrentar com relativa segurança a ligação

entre suas intenções, ações e escolhas, por um lado, e as suas consequências, por

outro”152.

Na Idade Média as questões éticas e morais estavam submetidas aos

dogmas e sanções religiosas. Durante o período do Renascimento, estas questões

passaram paulatinamente a serem restritas a uma determinada moralidade individual

e a um sistema individual de valores. Com a secularização cada vez mais crescente

da sociedade, estas questões a ficaram a cargo das Leis.

A ética constantemente é atribuída ao princípio maniqueísta do bem e do

mau. Heller (1982, p. 158) coloca que “[...] é preciso separar a ética dessa tradição:

“[...] é preciso interpretar de modo novo as normas éticas”153.

De maneira alguma estamos aqui nos referindo a anulação da moral e da

moralidade, porém, tanto a moral como a moralidade tornam-se rígidas “[...] quando

alguém segue unicamente as prescrições recebidas de fora, sem operar nenhum

150

HELLER, 1982a, p. 21-22. 151 HELLER, 1982a, p. 56. 152 HELLER, 1982a, p. 60. Grifos da autora. 153 HELLER, 1982, p. 159.

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tipo de seleção. [...] Quanto mais pensarmos com nossa cabeça, tanto menos

seremos rígidos”154.

Heller (1982) traz uma importante colocação sobre o princípio maniqueísta: a

tese da imanência e da historicidade destrói, de certa forma, as duas faces da

mesma moeda, segundo qual, fazemos nossa própria história. É inegável que

fazemos coisas boas e más, o mal não é tão somente a ausência do bem, conforme

as teses agostinianas, mas a destruição ou anulação daquilo que é bom, com base

na concepção aristotélica.

Do ponto de vista ético, o mal é a desvalorização dos componentes

essenciais da genericidade do humano e do mundo. Se o bem é construção

histórica, assim também o mal se desenvolve e é construído no desenvolvimento

histórico pela ação dos homens e das mulheres: “[...] na verdade, bem e mal são

determinações reflexivas”155. Não vamos nos ater a esta discussão já que foge aos

nossos propostos, mas deixamos aqui registrado para futuras reflexões.

Com o Renascimento, é cada vez mais crescente o processo de humanização

do mito e, simultaneamente, a deificação do humano. Na medida em que “[...] Deus

se torna homem, também os homens são divinizados”156. A desantropomorfização

da divindade propicia o desenvolvimento das potencialidades humanas e do

conhecimento social e individual do ser social.

Acreditamos, assim como Heller, que o conhecimento de si próprio só pode

se dar através da práxis. É no conflito diário entre as exigências sociais, a educação

social e a própria moralidade individual que nos conhecemos. A justa posição de

experiências vividas, reunidas com as experiências que se tem vontade de viver

provoca a emancipação da individualidade.

O ser social envolve-se numa força absolutamente enérgica, onde cada

detalhe torna-se parte dos anseios, das paixões, das decisões, dos sentimentos, do

caráter, enfim, do Eu.

Esta vazão subjetiva e objetica do Eu provoca a impressão de um

conhecimento novo, algo que não se pareça com nada aquilo que já tivesse sido e

conhecido antes. Entrar num universo desconhecido, num território do qual não se

154 HELLER, 1982, p. 160. 155 HELLER, 1982, p. 161. 156 HELLER, 1982a, p. 67.

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tem nenhuma ideia, é permitir-se conhecer a cada momento incondicionalmente e

sem estar condicionado às ultrageneralizações ou sistemas consuetudinários.

O autoconhecimento envolve, de certa maneira, a destruição das barreiras

ultrageneralizadoras, dos juízos provisórios e dos sistemas consuetudinários. Tal é o

estado para a liberdade. É preciso, desse modo, estar aberto para o novo.

Não se pode perder esse sentido de liberdade, que é a oportunidade de

explorar o desconhecido. Todo ser humano é um território escondido a ser

explorado, com todas as experiências pessoais e sociais adquiridas ao longo do

tempo:

[...] o autoconhecimento, como estudo da natureza humana, significa duas coisas. Equivale primeiramente a uma antropologia geral – a aquisição de conhecimentos sobre a “natureza humana” e a investigação de cada um de nós como indivíduos pertencentes à espécie “humana” (HELLER, 1982a, p. 190).

Nessa aproximação psicanalítica conforme exposto por Heller, é inevitável o

conflito porque somos obrigados paradoxalmente a decidir e, em grande medida,

essa possibilidade nem sempre surge de forma positiva: “[...] O homem deve

participar na vida pública, dar-lhe forma e ser formado por ela; mas não deve ser

completamente absorvido por ela. O seu comportamento combina a participação e a

distância”157.

Heller aponta que é necessário conhecer a natureza humana para definir as

características e potencialidades existentes que podem e devem ser desenvolvidas

em função de certos objetivos e tendências. Com o Renascimento, a autorrealização

e a autoafirmação e acrescentaríamos, a autolibertação da personalidade

transformou-se num objetivo – numa teleologia.

A vida privada, paulatinamente, criou substância em relação ao público. Do

ponto de vista ético, quanto mais o público e o privado se separam, mais os

aspectos da vida privada são acentuados e, de igual maneira, quanto mais os

interesses e as relações monetárias capitalistas passam a comandar as esferas da

particularidade, maior é a força do egoísmo ante as mediações e objetivações

concretas da vida social.

Nesse sentido, a moralidade e a eticidade não podem decorrer da utilidade,

bem como não podem decorrer do conceito de medida: “[...] o utilitarismo burguês

157 HELLER, 1982a, p. 96.

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não se preocupou [em] dar qualquer explicação dos valores que eram hostis ao

mundo burguês e que, além disso, negavam a universalidade das relações de

utilidade”158.

[...] A moralidade tem dois aspectos: o da intenção e o da consequência. Ambos fazem parte da responsabilidade moral. Se minha intenção é do tipo ético, se se refere a valores, temos todas as premissas para que minha ação seja moral. Mas isso não basta: faz parte do dever moral reconhecer as consequências da ação. Evidentemente, só podem ser consideradas as consequências previsíveis (HELLER, 1982, p. 155).

Para Heller (1977, p. 143), os indivíduos extraem sempre do mundo real – ou

daquele em que se nasce – os valores, as normas, os conceitos morais, como

também, a repulsa à ordem dos valores pré-estabelecidos por uma determinada

sociabilidade.

Quando se vive particular e unicamente de acordo com os padrões pré-

estabelecidos, os indivíduos reprimem suas necessidades particulares ou as

canaliza para zonas não proibidas, por outro lado, o indivíduo consciente de-si-

mesmo, se “educa”, “cultiva as qualidades que crê carregadas de valor e se

distancia de outras”159: “[...] não há moral inata em nós”160.

Heller (1977) define a consciência como “comparsa das exigências genéricas

do sujeito”:

[...] não é o “sentido” moral, nem tem relação necessária com a espontaneidade. [...] A consciência só pode funcionar quando se conhece o bem e o mal; nela se há explicito o saber concernente a ambas as coisas (naturalmente só o saber referido a um bem e a um mal concretos) (HELLER, 1977, p. 145).

Nesse sentido, Heller traz do conceito kantiano, uma definição para a

moralidade e para a legalidade: a moralidade implica num dever; já a legalidade,

numa determinada obrigação – na força da lei.

Portanto, a moralidade impõe padrões universalmente válidos de conduta

para o bem comum. O indivíduo moral, de certa forma, é aquele/a que

conscientemente defini o bem do mal e busca agir de acordo com um determinado

sistema de valores.

158 HELLER, 1982a, p. 204. 159 HELLER, 1977, p. 144. 160 HELLER, 1983, p. 318.

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Por outro lado, o moralista – ou moralismo – é aquele/a (ou sistema) que

impõe, na maioria das vezes, ferozmente e coercivamente aos outros padrões ou

sistemas pré-estabelecidos, podendo ou não utilizar da legalidade: “[...] a moral de

um mundo alienado é sempre alienada”161.

O utilitarismo não pode e não deve ser nunca a referência para a moralidade,

muito menos para a ética. O utilitarismo burguês provocou a redução de todos os

fenômenos da existência humana e o princípio da utilidade passou a governar a

atitude moral e ética na e para a vida social.

Também é importante destacar que o ritmo da vida individual e social foi

alterado significativamente no período renascentista. O tempo nas diferentes épocas

históricas decorre em alguns casos “lentamente” e em outros “com maior rapidez”162,

mas não é o tempo que possui um ritmo, mas sim os acontecimentos e estes, por

sua vez, são irreversíveis.

[...] O tempo é a irreversibilidade dos acontecimentos. O tempo histórico é a irreversibilidade dos acontecimentos sociais. Todo acontecimento é irreversível do mesmo modo; por isso, é absurdo dizer que, nas várias épocas históricas, o tempo decorre em alguns casos “lentamente” e em outros “com maior rapidez”. O que se altera não é o tempo, mas o ritmo da alteração das estruturas sociais. Mas esse ritmo é diferente nas esferas heterogêneas. É esse o fundamento da desigualdade do desenvolvimento, que constitui uma categoria central da concepção marxista da história. (HELLER, 2004, p. 03)

163.

A temporalidade e a historicidade164 é um fator primordial na perspectiva

helleriana. O momento histórico e suas implicações certamente trazem novos

elementos para os sistemas filosóficos, como também, para o arcabouço humano-

genérico. Com o desenvolvimento das forças produtivas dos primórdios da

sociedade burguesa, o humano universaliza-se - se bem que esta universalização

ocorreu sobre formas cada vez mais alienadas e alienantes.

161 HELLER, 1977, p. 151. 162 HELLER, 2004, p. 03. 163 Grifos da autora. 164 Para Goldmann (1986, p. 22-24), “o fundamento ontológico da história é a relação do homem com os outros homens, o fato de que o eu individual só existe como pano de fundo da comunidade. O que procuramos no conhecimento passado é a mesma coisa que procuramos no conhecimento dos homens contemporâneos”. Portanto, a historicidade não se desvincula da ontologia do ser social. A categoria da historicidade na concepção marxiana é fundamental para entendermos estas questões, sobretudo, porque “estudar a história é primeiramente tentar compreender as ações dos homens, os móveis que os moveram, os fins que perseguiram, a significação que para eles tinham seus comportamentos e suas ações”.

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Os níveis de consciência racional e de liberdade aconteceram durante

estágios, períodos e condições distintas na história da Humanidade.

Heller pontua que num determinado momento do mundo Antigo e no período

renascentista, as condições objetivas propiciaram meios para uma consciência

racional e de liberdade, porém, propiciaram também os primórdios da acumulação

primitiva, ensaiando os passos para o desenvolvimento do capitalismo. O

individualismo surge quando se rompe a relação natural entre o indivíduo e a

comunidade.

Na sociedade feudal, o ser social estava vinculado ao local de nascença na

escala da estratificação social. Com a divisão social do trabalho nascida do

capitalismo e a abertura da hierarquia social, tornava-se possível que uma mesma

pessoa ocupasse diferentes degraus na escala social:

[...] podia ser ativo em ramos completamente diferentes da divisão do trabalho, ser barbeiro num dia e escritor no seguinte e condottieri no terceiro, adaptando formas de comportamentos diferentes umas a seguir às outras e continuando apesar disso a ser o mesmo homem (HELLER, 1982a, p. 170).

O ser social só se afirma como ser criador através do trabalho, portanto, não

é somente indivíduo pensante, mas indivíduo que age consciente e racionalmente

(IAMAMOTO, 2006, p. 41). Portanto, o trabalho constitui a categoria fundante da

objetivação concreta do ser social na vida social conforme já apontamos.

Conforme os laços com a comunidade estreitavam-se e o lugar ocupado na

divisão social do trabalho tornava-se representativo, a vida comunitária foi perdendo

paulatinamente a sua importância. Neste ponto, o capitalismo obrigou a dissolução

dos sentimentos comunidades.

A vinculação com a condição de sociabilidades coincide com a vinculação do

indivíduo à comunidade ou grupo social, contudo, quanto maior for essa integração

social, maior será o caráter comunitário, maior será sua afirmação e identificação

com a comunidade ou grupo social em que se insere ou é inserido. Com a

dissolução dos laços entre indivíduo e comunidade, a vida privada tomou o lugar da

vida pública.

A sociedade e o modo de produção capitalista possibilitaram as relações

sociais cotidianas em sua forma alienada e alienante. Concordamos com a

colocação de Estevão quando aponta que a obra de Heller “[...] tem como objetivo

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discutir a possibilidade de uma vida cotidiana não-alienada, tendo em vista que a

filosofia sempre se ocupou em colocar a vida cotidiana fora de seu espaço (com

Hegel) ou referir-se ao cotidiano como algo alienado por princípio (com Heidegger)”

(ESTEVÃO, 1989, p. 57).

Quanto mais heterogênea e estruturada for uma sociedade concreta, tanto

menos poderá se constituir, ela própria, numa unidade comunitária de homens e

mulheres.

Heller (2004) traça um perfil de como se dá a relação do indivíduo com a

comunidade. Primeiramente expõe a relação entre indivíduo e grupo que pode se

basear perfeitamente pela causalidade, por exemplo, quando um indivíduo é

matriculado numa determinada sala a ou b de um determinado curso, independente

das condições internas ou externas, é uma questão casual.

Seguindo o mesmo raciocínio, podemos também afirmar que essa inserção

pode ser intencional ou individual. A título de exemplificação dessa afirmação, nos

reportamos a um caso particular desse pesquisador: lembro-me165 que quando

estava cursando o 2ª Grau, havia várias salas do 1º Colegial, que assim se

denominavam: 1º A, 1º B, 1º C, 1º D, 1º E e 1º F. As letras denominavam o nível

dos/as alunos/as que obtinham as melhores notas no ano anterior (8ª série do 1º

Grau).

Sendo assim, a sala do 1º A compreendia os/as alunos/as que tiravam o

melhor desempenho e as maiores notas, ou seja, que obtiveram um bom

comportamento, consequentemente, a sala do 1º F compreendiam os/as alunos/as

com as menores notas e que não tiveram um bom comportamento, de acordo com o

que se pensava na época.

A intencionalidade da direção da escola provocava certa disputa e certo

preconceito e discriminação entre os/as alunos/as das outras salas para com os/as

do 1º E e 1º F, principalmente, aos/as do 1º F, considerada a sala dos/as mais

fracos/as.

Esse tipo de atitude compreende uma intenção e não uma causalidade e, por

conseguinte, os vínculos estabelecidos pelo grupo seriam em conformidade com a

relação estabelecida entre seus membros. A causalidade implicaria àquele/a aluno

ou aluna que, aleatoriamente, fosse matriculado numa dessas salas. E a dimensão

165

A referência na 1ª pessoa do singular justifica-se por se referir a assuntos particulares desse pesquisador.

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individual, quando a inserção se desse sob a forma de uma escolha pessoal e

consciente.

Na medida em que os fatores deixam de ser casuais e se constituem por

escolhas, do ponto de vista da sociabilidade, o indivíduo constrói o grupo ou

comunidade a que pertence e a relação estabelecida integra os vínculos

comunitários.

[...] Nem todo grupo, portanto, pode ser considerado como uma comunidade, embora qualquer grupo possa chegar a ser comunidade. Para acrescentar um outro aspecto: o indivíduo pode pertencer a numerosos grupos, na medida em que o fato de pertencer a grupos define-se através de uma certa analogia de interesses e de objetivos, bem como mediante uma certa atividade em comum. Mas há finalidades, interesses e atividades importantes, ao lado de outros que não o são na mesma medida. Isso origina uma hierarquização de “nossos” grupos, distinguindo principalmente entre os grupos que representam nossos principais interesses, atividades e objetivos secundários, inessenciais (HELLER, 2004, p. 66-67).

A vinculação do indivíduo a grupos sociais resulta, diretamente, em sua

condição de individualidade e na hierarquia dos valores, que porventura, constituem

o campo do caráter e da personalidade, por que não dizer de identidade166. Do ponto

de vista da consciência ética e política, essa vinculação tem implicações diretas no

seu modo de ser, pensar e agir em-si e para-si.

O pertencimento a este ou naquele grupo e/ou comunidade está diretamente

vinculado também à hierarquia heterogênea de necessidades (as necessidades

naturais ou primárias, as necessidades naturalmente necessárias e/ou socialmente

determinadas, necessidades necessárias, as necessidades espirituais e as

necessidades radicais).

Heller (1978) ao analisar o conceito das necessidades em Marx, coloca que

as necessidades primárias, físicas ou naturais, compreendem o conjunto das

necessidades biológicas, essenciais à conservação das condições vitais

(autoconservação), podemos citar, por exemplo, que o trabalho, em sua condição de

manutenção da vida, é estritamente necessário, portanto, comum a todos os

humanos.

As necessidades naturalmente necessárias são aquelas construídas e

surgidas historicamente, que carregam em si os componentes culturais, morais e os

166 As identidades ou a identidade são constituídas pela positividade e negatividade da relação que se estabelece com a estrutura e conjuntura histórica e social e com o cotidiano, portanto, é um produto social.

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costumes para uma determinada vida social e se distinguem em cada indivíduo,

como por exemplo, a necessidade de comer com talheres ou não.

As necessidades necessárias são aquelas que geralmente são geradas

mediante o crescimento da produção material. As necessidades espirituais ou

morais167 se distinguem na coletividade e se relacionam à esfera das condições

individuais.

Na esfera das necessidades individuais, podemos colocar também as

necessidades livres (ou de liberdade). As necessidades radicais, conforme já

pontuamos, são aquelas geradas pelo próprio sistema capitalista.

A sociedade capitalista cria necessidades de ostentação, poder, status e

necessidades necessárias; paradoxalmente cria riqueza e pobreza; sua dinâmica

está motivada pelas necessidades de valoração do capital, compondo, assim, o

reino da produção material, como o reino das necessidades.

No capitalismo a mercadoria apresenta-se como uma coisa apta a satisfazer

as necessidades humanas em qualquer classe ou estamento social, assim como

para satisfazer as necessidades físicas como os fetiches (ou desejos e fantasias) da

vida social. Por conseguinte, a satisfação das necessidades constitui condição sine

qua non e hic et nunc da substância da mercadoria.

Mas o capitalismo não produz somente mercadorias, o seu fim não é apenas

a satisfação das necessidades, mas também, a valoração do capital, a produção de

“mais-valia” e de “mais-capital”, ou seja, o aumento da riqueza social, mas esta, por

sua vez, não está dividida igualitária e socialmente; está concentrada nas mãos de

poucos: “[...] os indivíduos particulares não participam do conjunto da riqueza

social”168.

Neste sistema, homens e mulheres se convertem em escravos de si

mesmo/a. Colocam-se como escravos/as do tempo, dos objetos, das máquinas, da

tecnologia, enfim, reificam-se. O trabalho se constitui uma carga (um peso) porque é

executado como consequência de pressões externas e de necessidades, portanto, é

um elemento que aliena em sua própria natureza.

O trabalho se apresenta como algo repulsivo, oneroso, forçado, imposto

desde o exterior; por outro lado, o não-trabalho aparece como “liberdade e

167

O surgimento da moral, ou seja, o conjunto de regras e normas válidas para todo o mundo e que determina a conduta da vida em sociedade ( viver em harmonia socialmente) é uma necessidade que surge com os complexos da vida social. Portanto, uma necessidade histórica e social. 168 HELLER, 1978, p. 51.

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124

felicidade”169e, por conseguinte, o tempo disponível – disposable time -, passa a ser

preenchido pelo consumo e desfrute dos bens materiais.

[...] A ideia é clara e coerente. Os problemas surgem quando analisamos as relações do disposable time com a produção e o consumo. Disposable time é o tempo do consumo (HELLER, 1978, p. 140).

Nesse sentido, podemos também relacionar a educação ou as atividades

intelectuais que, a passos largos, tem se tornado mercadoria e a sua efetividade tem

sido condicionada à lucratividade e à imediaticidade, assim como, muitas vezes, são

encaradas como algo forçado, imposto, desagradável, desestimulante, dentre outros

adjetivos pejorativos.

O ócio, no sentido grego, ou conforme é entendido na contemporaneidade

como ócio criativo, passa a não fazer sentido no capitalismo e não tem sentido

também separar o tempo em que homens e mulheres trabalham para satisfazer suas

necessidades necessárias do restante, pois, todo o bem produzido, de modo

imediato ou mediato, busca satisfazer os interesses do capital.

[...] É a sociedade capitalista que provoca a manifestação das necessidades radicais, produzindo, desse modo, suas próprias sepulturas; necessidades que são parte constitutiva e orgânica do “corpo social” do capitalismo, mas de satisfação impossível dentro desta sociedade e que precisamente por isso motivam a práxis que transcende a sociedade determinada (HELLER, 1978, p. 106).

Eis o paradoxo. Ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista produz a

satisfação das necessidades, também produz as desumanidades, por conseguinte,

também produz as necessidades radicais de superação dessas mesmas

desumanidades e necessidades.

Com relação às desumanidades, nos reportamos a Heller em suas análises

shakespearianas, acreditando que possa contribuir para sintetizar esta violência do

capitalismo:

[...] os vilãos sentem-se em casa num mundo que pensam destituídos de quaisquer valores, enquanto heróis ingênuos, desiludidos, são infelizes – pois o desprezo pelas pessoas é um sentimento frio e desapaixonado, enquanto o ódio é apenas o amor invertido (HELLER, 1982a, p. 182).

169 HELLER, 1978, p. 142-143.

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125

Diferentemente das Sociedades Antigas, o destino dos indivíduos não está

determinado pelo nascimento, mas sim, pelo lugar que ocupa na divisão social do

trabalho, portanto, é relativo ao modo de produção conforme já apontamos. Cada

um/a se propõe a realizar os seus próprios fins, porém, muitas vezes, os resultados

diferenciam do que inicialmente foram projetados, tendo em vista a heterogeneidade

das necessidades e dos valores.

Nesse sentido, a pergunta sobre o significado das ações e relações humanas

irá demandar a vinculação do ser social com as necessidades e finalidades sociais

com as quais se ocupa, bem como, com a consciência que tem sobre o seu lugar na

escala dos valores essencialmente humanos.

O processo de consciência se dá com a inserção dos sujeitos sociais nas

situações concretas da vida cotidiana, ou seja, na realidade social; na sua inserção

no conflito real e concreto e em sua dialética substancial.

Do ponto de vista ético, o espaço específico do pensar, do agir e do modo de

ser está relacionado ao espaço em que o ser social ocupa na vida cotidiana, as

determinações sociais, os grupos e comunidades a que pertence e o lugar e as

condições que ocupa na divisão social do trabalho.

O cotidiano é constituído de um espaço contraditório e complexo onde a

história se faz e onde os sujeitos sociais devem ter centralidade e serem vistos “por

inteiro”. É o espaço das possibilidades de construção individual e coletiva, da

intervenção do tecido social, como também, o espaço para a construção de

identidades.

A ética e a política só existem porque vivemos em sociedade e porque somos

seres da práxis. As questões éticas, morais e políticas envolvem questões da vida

cotidiana. A ação ética e politicamente consciente, visa o despertar do sujeito

individual e coletivo revolucionário170 para a erradicação e/ou superação das

desumanidades.

Podemos exemplificara formação do sujeito coletivo mais concretamente um

momento brasileiro em que este se fez presente “por inteiro”, ou seja, nos anos que

antecederam aos acontecimentos de 1988 e o momento da consolidação da Carta

Magna do Brasil – conhecida como Constituição Cidadã -, momento este em que a

170 O sujeito coletivo revolucionário é uma construção que se faz histórica e socialmente. Também aqui o sentido revolucionário não está implicitamente vinculado à revolução armada, mas sim, a qualquer mudança profunda da coletividade – pacífica ou violenta.

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sociedade brasileira lutou por mudanças. Na vida de Heller destacam-se a

Revolução Húngara de 1956 e a Primavera de Praga de 1968.

As condições objetivas para a consciência ética e política do indivíduo

perpassaram não somente pela sua individualidade, mas também pelas condições

sócio-históricas, territoriais, econômicas, coletivas, individuais com que se relaciona

e os grupos ou comunidades em que se insere ou é inserido, enfim, por todas as

esferas e sistemas heterogêneos. No capitalismo, é imprescindível considerar

também a esfera econômica.

O pertencimento a este ou àquele grupo ou comunidade está vinculado

diretamente à hierarquia das necessidades, exterior ou interior (em consequência de

sua escolha individual) aos interesses comuns. Disso decorre que a classe social

não é, necessariamente, uma comunidade. Nascer numa determinada classe nos

dias atuais implica numa causalidade:

[...] desde a aparição da sociedade capitalista, o homem deixou de ser um ser comunitário por nascimento. A partir de então é possível transcorrer toda a vida sem converter-se em membro de nenhuma comunidade (HELLER, 1977, p. 82)

171.

Segundo Heller, a comunidade é uma categoria da estrutura social, da

integração dos indivíduos à vida social, porém, esta integração depende em cada

ocasião do conteúdo concreto dessa mesma integração, do modo como as relações

(materiais, sociais, morais etc.) se convertem num conjunto social.

A relação indivíduo, grupo e comunidade só se estabelecem quando este

decide conscientemente pertencer a um determinado círculo social (ou grupos

sociais), ao se inserir ou ser inserido/a. Contudo, a relação dos indivíduos com a

sociedade prescreve uma relação mediatizada por comunidades orgânicas172.

[...] Quando pensamos no futuro da humanidade, é quase impossível imaginar que a integração total possa chegar a converter-se em comunidade; mais plausível aparece a imagem de uma estrutura social articulada em comunidades orgânicas (HELLER, 2004, p. 66).

Heller (1977) distingue dois tipos de comunidades: as comunidades que

surgem ou se formam naturalmente tendo em vista a ordem econômica, produtiva e

social. São comunidades que se formam naturalmente para a produção ou 171 Grifos da autora. 172 Comunidades constituídas conscientemente.

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administração de uma determinada coletividade e representam a parte orgânica da

sociedade, possibilitando o desenvolvimento do caráter comunitário entre seus

membros.

Estas comunidades diferem daquelas que surgem ou se formam fora dos

interesses da vida material da sociedade, mas que se constituem a partir das

necessidades da atividade política e do desenvolvimento da individualidade, da

intenção consciente e da vontade que o ser social tem, através da integração dada,

de modo a estabelecer uma relação consciente com a sua genericidade. Estas

comunidades estão organizadas em torno de um fim único: o de cumprir com os

objetivos conscientemente genéricos e comunitários.

A concepção de comunidade helleriana jamais pode instaurar-se de forma

institucionalizada; apenas enquanto unidade de base em sua totalidade e de valores

comuns. O veículo direto da forma de vida é a unidade.

Estevão (1989) traz importantes contribuições para entendermos a

comunidade como valor, vinculada às concepções hellerianas: “[...] a comunidade

faz parte do mundo das objetivações em si e para si, podendo situar-se tanto na vida

cotidiana como fora dela” (ESTEVÃO, 1989, p. 60)173.

Nessa concepção,

[...] a vida do indivíduo já não está fracionada em pura sucessão ou justaposição de atividades heterogêneas - embora a heterogeneidade continue presente - mas cada atividade tem seu posto, conscientemente atribuído, na vida do homem. Deste modo, a personalidade poderá objetivar-se em um sujeito de tipo definido. A personalidade particular é o sujeito em si, a personalidade individual é o sujeito que é para-si (ESTEVÃO, 1989, p. 76).

Para Heller (2004, p. 69), sociedades, classes, grupos, estamentos,

comunidades, são efetivamente categorias de uma esfera homogênea de

estruturação da sociedade.

[...] Para Agnes Heller, comunidade é uma categoria essencialmente axiológica. E por valor, devemos entender o conjunto de todas as relações sociais, produtos, ações, ideias etc., que promovem o desenvolvimento da essência humana num estágio histórico dado. Valor, neste sentido, é objetivo, não depende da “avaliação” humana. Terá um conteúdo axiológico positivo tudo aquilo (relações, produtos, ações, ideias) que fornecer aos homens maiores possibilidades de objetivação, que

173 Grifos da autora.

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integrar sua sociabilidade, que configure mais universalmente sua consciência e que aumente sua liberdade social (ESTEVÃO, 1989, p. 81).

Para Heller (2004) um grupo ou comunidade jamais pode ser uma “massa”,

pois o ser social estará sempre articulado e estratificado, ao passo que na ação

comum, a “massa” pode perfeitamente aparecer não-estratificada e não-articulada.

A “massa” pode ser traduzida como multidão, representa, de certa forma,

alguma coisa amórfica. Uma multidão nem sempre é algo estruturado que pode ser

organizado. Como exemplo: temos as torcidas esportivas, as passeatas, ou seja, as

ações que são “de massa”, realizadas por pessoas conjuntamente, como reação a

alguma coisa, um acontecimento ou uma necessidade.

[...] A multidão pode ser representante, nas ruas, de uma comunidade determinada, com interesses e objetivos comuns, e, portanto, pode-se entendê-la nesse caso como uma entidade organizada, estruturada e de modo algum casual. Alguns autores, de modo simplista, contrapõem a multidão à comunidade, supondo que existe multidão precisamente onde não há comunidade (HELLER, 2004, p. 69).

Desse modo, podemos traduzir o conceito de multidão, conforme a

concepção helleriana, como um agrupamento de pessoas com traços, objetivos e

interesses comuns. Isso não implica na abolição da condição de individualidade,

mas sim a suspensão provisória de suas aspirações heterogêneas, porém, pode

estar vinculada ou submetida à interesses particulares e totalmente privados.

Uma “massa” pode ser facilmente manipulada: “[...] em consequência da co-

existência massiva, aumentam as possibilidades de manipulação quando a multidão

é formada por indivíduos pouco desenvolvidos ou quando pertence a uma

comunidade não-estruturada” (HELLER, 2004, p. 70).

Heller ainda aponta para a expressão “sociedade de massa”, que consiste, no

sentido lato, em uma expressão metafórica para designar ou descrever uma

sociedade conformista e altamente manipulada.

Nessa direção, poderemos nos apoiar na descrição de Marx sobre formação

da “Sociedade beneficente” em suas análises sobre o Estado bonapartista:

[...] A pretexto de formar uma sociedade beneficente o lúmpen-proletariado de Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agente bonapartistas e sob a cheia geral de um general bonapartista. Lado a lado

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como roués174

decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus

175, donos de bordéis, carregadores,

líterati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldados, mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam la bohème; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade 10 de dezembro. “Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lúmpen-proletariado, que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phase. Velho astuto roué, concebe a vida histórica das nações e os grandes feitos do Estado como comédia em seu sentido mais vulgar, como uma mascarada onde as fantasias, frases e gestos servem apenas para disfarçar a mais tacanha vilania (MARX, 2002, p. 78-79).

A noção de classe definida por Marx está diretamente vinculada ao processo

de produção: burgueses e proletariado. Marx não considera aqueles/as que estão

em situação inferior à condição de proletariado.

Para Marx o lumpén-proletariado é considerado como a “[...] putrefação

passiva das camadas mais baixas da velha sociedade” e que “pode, às vezes, ser

arrastadas ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de

vida o predispõem mais a vender-se à reação” (MARX; ENGELS, 1999, p. 49).

Esta camada da sociedade era constituída por aqueles que estavam

entregues a condições subumanas de sobrevivência ou que não inspiravam

confiança, mas encontravam-se com os níveis de pertencimento totalmente

esgarçados, fragilizados ou inexistentes. A identificação com a comunidade, em seu

sentido positivo, não se estabelecia.

A comunidade, por outro lado, compreende uma unidade estruturada,

organizada, de grupos, dispostos sob uma hierarquia homogênea de valores e na

qual se estabelece necessariamente a necessidade de pertença – ou pertencimento.

Essa necessidade pode decorrer do fato do indivíduo “estar lançado” nela ao nascer

– caso em que a comunidade promove posteriormente a formação da

individualidade; ou de uma escolha relativamente autônoma do individuo já

desenvolvido (HELLER, 2004, p. 70-71).

174 Pode ser traduzido por libertino; devasso, homem dissoluto, espertalhão, finório, dissoluto. 175 Alcoviteiros.

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Na sociedade burguesa, a relação natural (ou unidade de substância) do

indivíduo e da comunidade passa a ser submetida às leis do movimento e de

interesses de classes, no qual o ser social se converte num indivíduo não

necessariamente comunitário:

[...] a relativa “vacuidade” da vida cotidiana atual é só em parte devida à falta de comunidade; por outra parte, é devido ao fato de que o livre desenvolvimento da individualidade está bloqueado, embora haja forte exigência de tal desenvolvimento. A comunidade mais a individualidade autônoma são as objetivações ideais cujo carecimento permaneceu até hoje insatisfeito (HELLER, 1982, p. 166).

No mundo Antigo, a relação entre indivíduo e comunidade, era uma relação

natural – para aqueles que eram considerados “homens de bem” ou “cidadãos da

polis”. Já no Renascimento o desenvolvimento da individualidade projetou-se sem

precedentes. Posteriormente, esta condição enriqueceu-se com características

inteiramente novas (subjetividade, interioridade, alteridade, liberdade, superioridade,

secularidade etc.), mas o individualismo egoísta burguês atrofiou ou mesmo desviou

o sentido de comunidade: a individualidade e a comunidade como valor. Nessa

relação, os indivíduos apresentam-se com diferentes graus de desenvolvimento.

Este modo de sociabilidade, também propiciou a subordinação do indivíduo à

sua classe, às leis econômicas e de mercado, abolindo, de certa forma, as

possibilidades de liberdade, tornando, os indivíduos escravos da alienação, até ao

ponto de se verem como inferiores, negando, assim, a sua condição de gênero

humano e do próprio desenvolvimento humano-genérico.

As relações submetidas à lógica do capital alteram significativa e

substancialmente as esferas axiológicas e a hierarquia moral e social dos valores,

transforma a relação indivíduo/comunidade em relações objetuais e coisais,

conforme exposto na primeira parte dessa pesquisa - ao negar-se enquanto

essência humana, afirma-se enquanto coisa.

Ao negar os componentes genericamente humanos, nega a si mesmo e,

portanto, nega a sua individualidade, nega, assim, sua condição pró-criadora e pró-

ativa, nega sua própria história, em outras palavras, passa a incorporar elementos

estranhos a sua própria natureza e a não se reconhecer enquanto riqueza humana,

portanto, passível de destruição e de indiferença.

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A indiferença é o descaso ao outrem e a tudo que não se enxerga ou não se

quer enxergar à sua volta. As coisas ou situações aparecem como estranhas em sua

essência. É a banalização da vida humana (ou “reino da barbárie”) - é o abandono

de qualquer tentativa de possibilidade, de alteração ou de mudança. É a banalização

daquilo que consideramos como mal.

Uma atitude ética é um posicionamento político consciente, é um estado de

atenção a tudo aquilo que pode impedir as possibilidades de liberdade176. A conduta

ética é, sobretudo, uma tomada de posição, de atitude, de escolha, de afirmação.

Quando esta atitude é em prol de uma causa comunitária, passando a incorporar o

para-nós, passa a reconstruir os vínculos entre indivíduo e comunidade.

A banalização nos leva à indiferença que, por sua vez, implica em

desconsiderar e desqualificar aquilo que é próprio da essência humana. Uma

pessoa ignorada é como um objeto sem vida, sem importância, algo do qual

podemos nos desfazer, jogar fora, destruir e dispensar quando não nos é útil ou

necessário.

[...] A explicitação da sociedade burguesa acarretou também a dissolução das hierarquias axiológicas, fixas, inclusive das comunidades naturais. A partir de então, a tarefa do indivíduo não mais consiste apenas em aplicar uma hierarquia de valores já dada a cada ação correta (embora também isso seja imprescindível), mas igualmente em escolher os valores e construir sua própria hierarquia valorativa no interior de certos limites, mais ou menos amplos (HELLER, 2004, p. 75-76).

O indivíduo burguês que despontava com o Renascimento, de modo

particular – e, especialmente, por estar fora do campo das necessidades mais

prementes - aumentava as possibilidades de externar sua individualidade, identifica-

se conscientemente enquanto indivíduo livre.

Porém, com o nascimento da acumulação primitiva e dos interesses privados

e mercantilizados, esta libertação se expressou sob a forma de poder, em

superioridade e de status, e submeteram-se aqueles/as que não conseguiram estar

nessa mesma situação ao domínio dos/as mais abastados/as.

O poder social que esse status lhe permitiu, converteu-se de modo explícito

nos interesses particulares e privados, de maneira que as ações acabaram por

espelhar também esta condição.

176 Voltaremos mais a frente a tratar da questão da liberdade.

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Heller (2004) coloca que isso não significa necessariamente o carecimento da

comunidade, o que altera é apenas sua relação com a comunidade. Esta relação

pode ou não contar com uma hierarquia axiológica de valores constitutivos da

essência humana, porém, para que estes valores se convertam em interesses

comunitários, há que se ter consciência de sua condição de gênero e de mundo e

que suas projeções teleológicas expressem ações em prol da coletividade.

Sobre essa questão, Heller exemplifica com relação a consciência de classe

do trabalhador:

[...] o trabalhador que atinge a consciência de classe e cria uma comunidade para abolir a existência das classes, colocando novos valores no lugar da ordem e da hierarquia axiológicas existentes, é o representante de tudo aquilo que a própria sociedade burguesa criou no plano de desenvolvimento da individualidade (HELLER, 2004, p. 76-77).

Porém, no estado avançado do desenvolvimento das relações sob a lógica do

capital, as condições e possibilidade de liberdade individual e coletiva encontram-se

bem problemáticas: o indivíduo experimenta agora a falta de comunidade, a falta do

sentimento de pertença. A solidão, a infelicidade, o medo, a angústia, enfim

sentimentos próprios do mundo atual, não significam o “medo da liberdade”, mas

sim, do modo como lidar com essa liberdade.

A preocupação com a identidade ou identificação é visível na formação das

redes sociais virtuais ou dos inumeráveis grupos que se constituídos na atualidade,

nas mais diversas expressões, sobretudo àqueles que congregam os mesmo

sentimentos, valores, objetivos, sejam religiosos, políticos, sociais, culturais ou de

identidade.

Ao se referir aos movimentos revolucionários que floresceram no século XX,

Heller assim se expressa: “[...] a busca de uma atividade em comunidade, que

elevasse o indivíduo “nas asas da comunidade” somou-se à exigência de uma nova

sociedade na qual o homem pudesse voltar a ser um ente comunitário”177.

Esta busca do “ente comunitário” é facilmente visível na formação dos grupos

sociais da atualidade, especificamente, no que diz respeito às políticas públicas

(grupos de idosos, mulheres, negros, índios, homossexuais etc.), porém, as

iniciativas existentes, muitas vezes, desprezam a construção do sujeito

177 HELLER, 2004, p. 77. Grifos da autora.

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revolucionário. Sem sombra de dúvida, a conscientização paulofreiriana visava este

interesse.

Contudo, acreditamos que esta constante formação de grupos segregados, o

que ora ainda é necessário, gera certo particularismo e individualismo, multifacetado

e polifacetado, provocando, muitas vezes, um ceticismo com relação aos demais

grupos e comunidades. Isso é facilmente observado no ceticismo, fundamentalismo

e extremismo dos grupos religiosos e nazi-facistas.

A falta de uma postura consciente da genericidade pode, em grande medida,

constituir-se em fanatismo, fundamentalismo, extremismo e ultrageneralizações, por

conseguinte, juízos provisórios e/ou preconceitos e discriminações, como também

auto-preconceito, auto-discriminação e violências.

Do ponto de vista da elevação (ou suspensão) da cotidianidade, a categoria

valor178 assume aqui a substância axiológica mais premente e imprescindível para a

consciência ética e política da condição de individualidade do ser social, ou seja, o

enriquecimento dos valores essencialmente humanos é uma das necessidades mais

radicais numa sociedade esfacelada, desigual, violenta, excludente, multifacetada e

polifacetada.

Heller também demonstra que o conteúdo de uma determinada comunidade

ou grupo pode exprimir uma hierarquia de valores negativos e que, por conseguinte,

jamais podem desenvolver a condição de individualidade.

O pertencimento nessas comunidades ou grupos (ex.: as comunidades

fascistas ou nazi-fascistas, os skinheads, os grupos extremistas islâmicos179 etc.),

pode estar condicionado ao medo e ao sentimento de superioridade perante outros

grupos ou comunidades, ou até mesmo de aversão às diferenças e/ou diversidades.

Nessas comunidades ou grupos a liberdade de escolha é suprimida e o que

prevalece é a superioridade e a violência: “[...] o desprezo pelo “outro”, a antipatia

pelo diferente, são tão antigos quanto a própria humanidade”180.

Devemos considerar que a “livre escolha” expressa maior substância de

liberdade. A orientação teleológica, nesse sentido, resulta numa maior valoração da

essência humana e dos sentimentos de comunidade.

178 Tendo em vista a importância dessa categoria, buscaremos tratar dessa questão separadamente. 179 Notícias veiculadas pela Internet nas redes sociais apontam que os grupos extremistas, de ódio radical e xenofóbicos, tem aumentado progressivamente em todo o mundo. Só nos Estados Unidos, estes aumentaram em 69% nos últimos 12 anos, atualmente existem mais de mil organizações desse tipo. 180 HELLER, 2004, p. 55.

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Nesse sentido, é importante considerar a educação não enquanto fim em si

mesmo, mas como mediação para o desenvolvimento consciente dos valores

essencialmente humanos (trabalho, objetivação, sociabilidade, universalidade,

consciência e liberdade). Isso não quer dizer a ausência de conflitos singulares e

particulares.

A resistência aos valores negativos (ou desvalores) é por si só uma atitude

consciente. Ao se colocar contrário a qualquer situação ou circunstância

desvalorativa, o ser social se afirma conscientemente na e para a vida social. Ao

decidir pelos valores essencialmente humanos, o indivíduo decide em prol da

integração comunitária de liberdade: “[...] quem escolhe um valor e aspira à sua

realização (e as duas coisas são inseparáveis) escolhe também, no mais amplo

sentido da palavra, uma comunidade”181.

Desta forma, Heller demonstra que a relação social é constituída por um

sistema de valores, de escolhas e interesses individuais, singulares e particulares,

porém, estes podem se mostrar influenciáveis pelas circunstâncias e determinações:

“[...] todos os preconceitos se caracterizam por uma tomada de posição moral, já que

[...] são amo mesmo tempo falsos juízos de valor”182.

Do ponto de vista ético, as escolhas são individuais. O fim estabelecido

determina efetivamente a natureza dos meios e o cumprimento total do fim. Esta

relação, por sua vez, é determinada pelos valores a que estão submetidos os meios

das objetivações concretas.

Homens e mulheres desenvolvem uma relação individual com a comunidade,

grupo ou sociedade, na qual refletem sua vontade, determinação, necessidade,

enfim, sua liberdade. É nessa situação que estão implicadas a consciência ética e a

ação política, individual e coletiva, na e para a vida social.

2.2. Estrutura da vida cotidiana: o palco da vida

Conforme vimos no item anterior, homens e mulheres percorreram um longo

itinerário que constitui o acúmulo da empiria da vida humano-genérica. Da chamada

pré-história até os dias atuais a História, a Filosofia e as Ciências Humanas e

Sociais dão notícias da evolução cultural e social ao longo dos tempos.

181 HELLER, 2004, p. 83. 182 HELLER, 2004, p. 56.

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Temos estudado ao longo de nossa vida acadêmica o processo e a razão de

ser para a vida em sociedade. Para tanto, apropriamo-nos dos elementos que

aparecem na vida cotidiana, situações específicas que, de certa forma, espelham os

entraves das diferentes faces da vida em sociedade.

Ao verificar nossa trajetória acadêmica, observamos que esta,

indelevelmente, está marcada pela nossa trajetória pessoal, em outras palavras,

pelas nossas vivências: nossa história. As interrogações do passado são hoje a

base de nossas investigações.

[...] A negação completa do passado significa uma dependência do passado ainda maior do que a redefinição dos valores tradicionais, ou sua aceitação, ou sua recusa argumentada. A História é, ao mesmo tempo, continuidade e descontinuidade. Ela não pode ser reconstruída sem levar em consideração a continuidade. [...] Tudo o que quisermos negar, só podemos fazê-lo com falsa consciência. Mas, a meu ver, a reflexão consciente faz parte da necessidade de conservar uma organicidade na relação com as gerações que nos precederam (HELLER, 1982, p. 155-156).

A negação do passado é a negação da história, é a negação do humano-

genérico. Heller exemplifica dizendo que se um filho tivesse como objetivo fazer tudo

que o seu pai lhe determinou, teria uma relação de completa dependência do pai,

pois, não teria nenhuma iniciativa autônoma, nenhuma avaliação sobre os

acontecimentos, sobre a opinião do pai, ou sobre sua própria vida. Sua motivação

seria sempre, e com referência, uma contraposição às alusões do pai.

Ao assumirmos as rédeas de nossa própria vida, externamos nossos

posicionamentos, nosso modo de ser, de estar e de agir, nossos gostos e pendores,

nossas paixões e sentimento, enfim, nos colocamos na e para a vida social “por

inteiro”.

Nas palavras de Bertold Brecht, “há homens que lutam um dia e são bons; há

outros que lutam um ano e são melhores; há outros que lutam toda a vida, e estes

são imprescindíveis”. Com certeza a vida é sempre perpassada por muitas lutas,

vitórias e derrotas na busca da essência do ser e do significado da vida e, por que

não dizer pela busca de uma filosofia para a vida ou de vida.

No acúmulo teórico que desenvolvemos, gostaríamos de destacar duas

pesquisas: a primeira, da qual já fizemos referência logo na introdução desse

trabalho - A introdução estética na visão lukacsiana: uma interpretação ontológica da

realidade social (VERONEZE, 2006); a segunda refere-se ao Trabalho de Conclusão

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de Curso desse pesquisador, intitulada - As expressões sexuais diferenciadas: um

grito de liberdade na luta contra a discriminação e o preconceito (VERONEZE,

2007), sob a orientação do Prof. Ms. Fábio César da Fonseca.

Este último trabalho nos ocupamos sobre a diversidade sexual e a

homossexualidade enquanto uma das expressões sexuais de homens e mulheres

que buscam espaço no campo das identidades, das políticas e dos direito; uma

afirmação de si mesmo em prol da coletividade homossexual, bissexual e

transgênica.

Buscamos entender os tabus, preconceitos e discriminações relacionados à

sexualidade humana, principalmente, a homossexualidade, estabelecida hoje como

um conceito cultural, um comportamento visível que soma uma grande população de

homens e mulheres que relacionam-se afetiva e sexualmente com pessoas do

mesmo sexo (VERONEZE, 2007).

Ao analisar obra de Edith Modesto: Vidas em arco-íris: depoimentos de

homossexuais183, colhemos nas falas de muitos/as homossexuais, homens e

mulheres, a realidade vivida por este grupo, muitas vezes, carregada de

preconceitos e discriminações individuais e sociais.

Essa pesquisa possibilitou verificar a necessidade de uma autoafirmação para

uma autorrealização e autolibertação. Os/as homossexuais, por exemplo,

coagidos/as historicamente a viverem negando sua própria sexualidade, causa

consequências traumáticas e, em grande medida, violentas, para consigo mesmo e

para o próprio grupo.

Embalados/as pelas conquistas do Movimento Feminista, os/as

homossexuais assumiram uma atitude conscientemente passaram a buscar um

espaço na sociedade e a defender coletivamente sua própria libertação e

emancipação, ou seja, a lutarem pelos seus direitos, a desconstruir os entraves da

omissão e submissão e a lutarem por de respeito, dignidade e a favor da diversidade

sexual. Apesar dos grandes avanços nessa área, muito ainda esta por fazer.

Desse modo, o indivíduo transforma em perguntas as suas próprias

necessidades e possibilidades através de mediações cada vez mais articuladas de

acordo com o nível de consciência que expressa na vida social.

183 MODESTO, Edith. Vidas em arco íris: depoimentos sobre a homossexualidade. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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As interrogações se multiplicaram sobre esta questão – e muitas outras - na

busca do conhecimento, assim como outros entraves exposto na cotidianidade e na

vida social. A Ciência, que se constituiu na pesquisa e no estudo, cada vez mais se

aprofunda no conhecimento dos intrincáveis paradoxos que envolvem o humano e a

sociedade.

Nessa interação contínua da vida cotidiana, é que homens e mulheres

produzem formas de inter-relação como os símbolos, a linguagem, as

representações e os costumes, componentes do que chamamos de cultura,

entendida como o conjunto das relações humanas que elabora e produz, simbólica e

materialmente, referente a um circuito socialmente organizado para a vida em

sociedade (BARROCO, 2005).

A partir da totalidade da vida social, o indivíduo social apreende em suas

intrincadas e múltiplas relações, de modo real e dinâmico, a exteriorização de sua

individualidade-particularidade por meio de elementos culturais, de modo a

compreender os elementos mais essenciais para a vida humana em sociedade.

A todo o momento surge a necessidade de criar formas para apreender e

compreender a complexidade da vida social e da ontologia do ser social. As

mediações para as objetivações concretas na e para a vida social só podem ser

constituídas na vida cotidiana.

Conforme temos demonstrado ao longo desta pesquisa, o capitalismo

submete o ser social cotidianamente ao enigma da vida, tendo em vista que está

subsumido às alienações e fetiches que o próprio sistema embute no imaginário

individual e coletivo, de forma até mesmo a transformar sua própria essência em

coisa ou mercadoria.

A vida alienada/alienante deixa de ter o valor intrínseco da sua genericidade.

No momento em que entra no sistema das relações alienando/alienante, cessa sua

autonomia, sua liberdade e, por conseguinte, suas possibilidades de autorrealização,

autodesenvolvimento e autolibertação. Minimiza o campo das mediações duradouras

e de liberdade.

Segundo Pontes (2002, p. 187),

[...] a categoria de mediação possui um notável poder heurístico, se se considerar a sua legítima apreensão no prisma marxiano e lukacsiano. Apreendido como categoria central do método dialético marxiano, responsável pela complexidade da totalidade e pela dinâmica parte-todo no

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interior do ser social, a mediação o compõe ontologicamente. Também assume a forma de categoria reflexiva, criada pela razão, para captar o seu movimento.

Heller aponta que é possível viver uma vida não alienada, aliás, está é sua

grande preocupação, conforme já apontamos. Ela coloca que a arte, o conhecimento

e a filosofia, sobretudo, a filosofia revolucionária, cumprem este papel.

Referimo-nos ao longo dessa investigação varias vezes a arte ou às

expressão artística para tecer comentários ou exemplos sobre a suspensão da

realidade ou à não-cotidianeidade. Salientamos que esta preferência tem haver com

a proximidade desse pesquisador aos assuntos relacionados a ela, não

desconsiderando, em nenhum momento as outras formas de suspensão da

realidade ou da não-cotidianeidade.

As expressões artísticas entendidas pela Estética como o estudo das

condições e dos efeitos da criação artística, tradicionalmente, o estudo racional do

belo, quer enquanto possibilidades em sua conceituação ou como diversidade de

emoções e sentimentos suscitados pela essência humana, permite que expressões

corporais, palavras, cores, formas, figuras, desenhos, sons, timbres, enfim,

elementos constituintes e constitutivos da arte, não sejam somente meios materiais

de produção do fazer artístico, mas sim, formas/condições do pensar artístico,

momentos e processo de criação, parte integrante e constituinte da expressão do ser

ontológico (VERONEZE, 2006).

Lukács e os membros da “Escola de Budapeste”, em especial, Agnes Heller,

buscaram compreender a arte, a filosofia e o conhecimento como ponto culminante

no qual o ser social expressa sua subjetividade e a sua objetividade na e para a

realidade cotidiana que o cerca, como a confluência do que é subjetivo (singular) e

do objetivo (universal), o que Heller entende por singularidades-particularidade do

indivíduo social. Tem-se assim, a substância dos conceitos de singularidade,

universalidade e particularidade.

Para ela, o artista, o filósofo e o cientista devem refletir a totalidade de modo

intensivo que é particularizada, em outras palavras, ao ser particular, é única e

concentra tanto os traços específicos de sua singularidade, quanto os que se

integraram às circunstâncias, ao ambiente, à história, por conseguinte, ao

genericamente-humano.

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Para Lukács, toda obra de arte é uma totalidade e que deve refletir em sua

dinâmica a dialética entre o singular e o universal, numa totalidade particular. Essa

particularidade vai indicar o tipo, ou seja, algo característico que reúne em si aquilo

que é essencial e as unidades cambiantes dos fenômenos (LUKÁCS, 1970, p. 178-

180).

Destacamos que a arte constitui uma forma específica de consciência, ou

seja, a consciência estética, uma questão peculiar de refletir a realidade e a própria

essência do artista: “[...] ela não se constitui em uma faculdade anímica do homem

nem possui uma história autônoma, mas sim, um produto da evolução social do

homem que se torna homem através do trabalho” (DUAYER apud VERONEZE,

2006, p. 61).

Para Lukács (1970, p. 181),

[...] a subjetividade dos que participam criativamente da obra unitária tem assim valor positivo, significativo do ponto de vista estético, tão-somente enquanto for capaz de se tornar um elemento estrutural orgânico da individualidade da obra. As subjetividades imediatas, particulares, são, porém incomensuráveis em sua singularidade de mônadas.

A arte, para Lukács,

[...] é a elevação acima da subjetividade imediata como abstrata singularidade ou particularidade, mas ao mesmo tempo é também algo ainda subjetivo, pessoal. A sua objetividade é aferida pelo modo como uma subjetividade assim universalizada na particularidade – subjetividade que com isso, ao mesmo tempo, [...], introduz também a universalidade como momento no seu meio organizador – é capaz de dar uma reprodução da realidade, verdadeira e original, que possua eficácia imediata. A objetividade, portanto, não pode ser separada da subjetividade, nem mesmo na mais intensa abstração da análise estética mais geral. A proposição “sem sujeito não há objeto”, que na teoria do conhecimento implicaria num equívoco idealista, é um dos princípios fundamentais da estética, na medida em que não pode existir nenhum objeto estético sem sujeito estético; o objeto (a obra de arte) é carregado de subjetividade em toda a sua estrutura; não existe nele “átomo” ou “célula” sem subjetividade, o seu conjunto implica a subjetividade como elemento do princípio construtivo. (idem, ibidem).

Na visão lukacsiana, a Estética propicia uma profunda compreensão da busca

da essência e dos fenômenos presentes na expressão artística e, ao refletir seu

tempo, torna-se patrimônio de toda humanidade.

Encontramos desde a pré-história elementos artístico – assim como sistemas

filosóficos e científicos - que registraram o cotidiano e as impressões dos seres que

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viveram em determinadas épocas. Por exemplo, observamos nas pinturas rupestres,

nos hieróglifos das civilizações do passado, nas inscrições dos antigos povos das

Américas e dos índios brasileiros dentre outros inumeráveis exemplos, o registro

mais premente da cultura, do habitat, das vidas, dos meios, do tempo, dos animais e

hábitos cotidianos desses povos e de suas épocas: “[...] se nós compreendermos

corretamente a cultura de uma época compreenderemos, em suas raízes, o

desenvolvimento do conjunto dessa época, como se tivéssemos partindo da análise

de suas relações” (LUKÁCS, 1920 , p. 01).

De acordo com Lukács (1970, p. 275),

[...] o reflexo estético cria, por um lado, reproduções da realidade nas quais o ser em-si da objetividade é transformado em um ser para-nós do mundo representado na individualidade da obra de arte; por outro lado, na eficácia por tais obras, desperta e se eleva a autoconsciência humana.

Ao conceber a arte como ponto culminante do ser humano, Lukács defende

que ela contém tanto a síntese da consciência do ser social singular-particular diante

da realidade, como sua capacidade de transformar a realidade, característica esta,

marcante e motriz da história.

A essência humana e sua integridade se manifestam na valorização de sua

humanidade (de sua genericidade) e, da relação com o exterior (sua possibilidade

de transformação). Na arte ou expressão artística, o essencial é aquilo que

permanece, encontra-se sob o estímulo do desenvolvimento dos fenômenos ou do

dinamismo da história: a essência está implícita nos fatos e os fatos demonstram a

essência (VERONEZE, 2006, p. 63).

Não pretendemos fazer aqui um estudo sobre a concepção lukacsiana sobre

a Estética, tendo em vista que estes já foram analisados em outro momento.

Também aqui não buscamos fazer apologia à arte como única forma de suspensão

da cotidianidade, as mesmas análises também poderiam ser feitas com relação o

conhecimento (a ciência) e a filosofia, formas estas também de suspensão da

cotidianidade.

A arte aqui foi destacada tendo em vista a aproximação desse pesquisador ao

este assunto e que melhor contextualiza o ambiente interno e externo em que Heller

estava imersa. Para Heller, assim como a arte, o conhecimento e a filosofia, também

apresentam estas mesmas características no mundo das objetivações.

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[...] O mundo das objetivações, por sua vez, apresenta-se enquanto esfera das objetivações em si: a linguagem, o sistema de hábitos e o uso dos objetos. E num nível superior de objetivação, aquelas não quotidianas, que se dirigem à genericidade (aquilo que é genérico) para si, que são a arte, a ciência e a filosofia, mediadas pela ética. As objetivações não são apenas formas de exteriorização dos homens e não acontecem somente no seu sentido estrito, objetual. Para Heller, constituem-se em processos que precisam ser apropriados pelos indivíduos e representam distintos níveis: o homem, na sua vida cotidiana, objetiva-se de numerosas formas (ESTEVÃO, 1989, p. 58).

Acreditamos que a arte, o conhecimento e a filosofia transcendem as

limitação e fragilizações da vida cotidiana e, por sua vez, educam os homens e as

mulheres. Produz a elevação (suspensão) daquilo que os/as separam de sua

genericidade, mas sempre retornam para o mesmo ponto, pois não é possível viver

em completa e eterna suspensão, sendo esta, também, uma forma de alienação.

Barroco (1999) sobre esse assunto, assim se expressa:

[...] várias atividades permitem a elevação ao humano genérico: a práxis política, a práxis artística e filosófica, a ação ética. São atividades onde o indivíduo não perde a sua singularidade mas se eleva à sua universalidade, comportando-se como individualidade ou indivíduo particular. Para a tradição marxista, a ética é uma forma de relação consciente e livre entre indivíduo e sociedade, que possibilita ao mesmo adquirir consciência de si mesmo como ser humano genérico (BARROCO, 1999, 126).

Segundo Tertulian (2010),

[...] a ação ética ultrapassa, ao mesmo tempo, a norma abstrata do direito e a irredutibilidade das aspirações individuais à norma, pois ela implica, por definição, levar em conta o outro e a sociedade, uma socialização dos impulsos e inclinações pessoais, uma vontade de harmonizar o privado e o espaço público, o indivíduo e a sociedade. A ação ética é um processo de “generalização”, de mediação progressiva entre o primeiro impulso e as determinações externas; a moralidade torna-se ação ética no momento em que nasce uma convergência entre o eu e a alteridade, entre a singularidade individual e a totalidade social. O campo da particularidade exprime justamente esta zona de mediações onde se inscreve a ação ética (TERTULIAN, 2010, p 26).

É nesse movimento enriquece tudo aquilo que faz parte do ser genérico do

humano e contribui, direta ou mediatamente, para a sua explicitação enquanto

essência humana – ou riqueza humana - na esfera individual, espiritual e social.

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[...] A reflexão ética possibilita a crítica à moral dominante pelo desvelamento de seus significados sócio-histórico, permite a desmistificação do preconceito, do individualismo e do egoísmo, propiciando a valorização e o exercício da liberdade (BARROCO, 1999, p. 126).

É no mundo das objetivações (ou vida cotidiana) que a reflexão e ação ética e

política, os valores, as paixões, os desejos, as escolhas, os costumes, enfim, toda

subjetividade e objetividade do ser social se interiorizam e se exteriorizam não de

forma arbitrária, mas, geralmente, de acordo com as determinações históricas e

sociais.

É parte constituinte e orgânica da vida cotidiana a organização do trabalho e

da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o

intercâmbio e a purificação; é também o palco da construção dos valores, ou da

degenerescência, acaso desse ou daquele valor, e das esferas heterogêneas que

constituem a substância da sociedade em seu desenvolvimento histórico.

[...] Mas a significação da vida cotidiana, tal como seu conteúdo, não é apenas heterogênea, mas igualmente hierárquica. Todavia, diferente da circunstância da heterogeneidade, a forma concreta da hierarquia não é eterna e imputável, mas se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas econômico-sociais. O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade (HELLER, 2004, p. 18).

O cotidiano, para Lukács (1966, 11-12), é como um rio em permanente fluxo,

dentro da qual tudo se movimenta, transforma-se, espalha-se e retorna ao seu leito.

É nesse fluxo contínuo e dialético que as formas superiores de recepção e

reprodução da realidade, da ciência e da arte; diferenciam-se de acordo com suas

funções teleológicas específicas dos indivíduos, alcançando sua forma mais pura.

A vida cotidiana é o ponto de partida e de chegada. É dela que provém a

necessidade do ser social de se objetivar, ir além dos limites habituais e é

novamente na e para a vida cotidiana que retornam os produtos de suas

objetivações: o rio é sempre o mesmo, mas nunca é igual. A cada afluente, a cada

queda, a cada percurso, por onde passa, agrega novas experimentações, porém,

continua a ser aquele que nasceu num mero fio d’água que foi transformado e, ao

mesmo tempo, transformando as coisas ao seu redor (VERONEZE, 2006, p. 66).

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Não podemos analisar aqui a totalidade dos aspectos da vida cotidiana

segundo as exposições helleriana em sua heterogeneidade, tendo em vista a sua

extensão e complexidade. Além disso, este tema tem sido o mais estudado no

âmbito do Serviço Social brasileiro contemporâneo, quando se refere ao nome de

Agnes Heller. Portanto, buscaremos realizar apenas alguns apontamentos

importantes para esta dissertação.

Acreditamos, ainda, que esta questão produziria por si só, um estudo

monográfico. Além das fontes aqui analisadas, Henri Lefebvre184 e José de Souza

Martins185 também se ocuparam desse assunto, além de outros estudiosos do

Serviço Social, da Educação, da Psicologia, entre outras.

Assim, optamos por fazer uma análise do cotidiano e do não-cotidiano,

enquanto espaço heterogêneo dos sentidos e aspectos mais diversos e, por

conseguinte, como se dá a objetivação de homens e mulheres “por inteiro” na vida

social.

2.3. O cotidiano e o não-cotidiano: o ser ou não ser da mesma questão

Conforme vimos, é na vida cotidiana que os indivíduos e grupos vivem, se

articulam, se relacionam, constituem unidades e pluralidades, exteriorizam suas

paixões, gostos, pendores, necessidades, enfim, é o mundo da vida.

Segundo Heller, a vida cotidiana é a vida de todos nós. Todos, sem exceção,

independente de qualquer coisa ou situação estamos inseridos num determinado

contexto social: “[...] ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-

genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade”186.

A vida cotidiana é o palco onde todas as atividades através das quais homens

e mulheres reproduzem a si mesmo para poderem produzir e reproduzir a

sociedade: “[...] as relações da vida cotidiana, na moderna sociedade burguesa,

perderam cada vez mais sua autenticidade”187.

Essa inserção não só estabelece uma relação individual e grupal, como

também contribui para a construção do humano-genérico e de suas particularidades.

184 Para maiores detalhes, ver: LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Trad. Alcides João de Barros. São Paulo: Ática, 1991. 185

Para maiores detalhes, ver: MARTINS, José de Souza. Sociabilidade do homem simples. 2ª Ed.. São Paulo: Contexto, 2008. 186 HELLER, 2004, p.17. 187 HELLER, 1982, p. 164-165.

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O conceito de particularidade-totalidade significa a síntese entre o particular (ou

parte integrante do mundo) e a totalidade social (a vida cotidiana), conforme já

apontamos.

Heller (1977; 2004) aponta que a vida cotidiana não representa em si mesma

um valor autônomo, pois, a cotidianidade só tem sentido porque é constituída e

construída pelos sentidos e aspectos mais diversos dos indivíduos particulares e

singulares e, por isso, é heterogênea.

Mas é na vida cotidiana que homens e mulheres desempenham e

exteriorizam com vigor todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais,

habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, ideais, ideologias, crenças etc.

Nela, homens e mulheres expressam seu modo de ser, sentir, agir, relacionar,

pensar, ou seja, vivem-na “por inteiro” e é nela, também, que o mundo, a sociedade

e os grupos se constituem e são constituídos.

A vida cotidiana ocupa todas as capacidades/potencialidades do ser social,

porém, nem sempre ao mesmo tempo ou a todo o momento. Desde os sentidos

mais primários até os superiores (a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato, as

habilidades físicas, o espírito de observação, a memória, a sagacidade, a

capacidade de reação etc.). Estes, por sua vez, operam nos afetos mais diversos

(amor, ódio, desprezo, compaixão, participação, simpatia, repugnância, veneração

etc.).

Heller (1977) exemplifica isso no processo de trabalho: dependendo do lugar

ocupado na divisão sócio-técnica do trabalho, alguns sentidos serão mais ativados,

enquanto outros poderão afloram em menor intensidade (por ex.: num trabalho mais

embrutecido, mais rude, a força física tende a aflorar com maior vigor, enquanto que

num trabalho mais intelectualizado, o intelecto, a capacidade de abstração é que

afloram com maior intensidade), isso não quer dizer que num e noutro processo

alguma das capacidades sejam atrofiadas ou subsumidas.

Mas o ritmo e o resultado podem alterar-se conforme a relação íntima que se

estabelece com aquilo que se faz. Esta relação, por exemplo, pode estar carregada

de ódio, implicando, assim, num determinado resultado e numa determinada relação

e reação.

Vamos dar um exemplo mais concreto para melhor explicitar esta relação:

numa sociedade escravista, a relação com o trabalho por daqueles que estão

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privados de liberdade é diferente daqueles que o fazem livres e conscientes de sua

condição essencialmente humana e genérica.

Para o/a escravo/a, o trabalho pode aparecer na forma de castigo, de peso,

de opressão, de dominação, enfim, no sentido negativo da ação; para aqueles que

se encontram livres de qualquer determinação, o trabalho poderá aparecer com algo

prazeroso e carregado de significados.

O trabalho em si não é a causa desse ou daquele sentimento ou situação. O

processo de trabalho não impede qualquer sentimento de ódio, vingança, amor,

prazer etc., mas as determinações e as condições em que esse ocorre podem

alterar a aparência e a essência de um mesmo processo, tanto para o lado positivo

como para a sua negatividade.

Diferentemente das necessidades necessárias – ou situações obrigatórias -,

Heller aponta que na arte (e também no conhecimento) todos os sentidos e

sentimentos estão aflorados (tanto os físicos como os subjetivos). Isso é facilmente

observado, por exemplo, quando se executa uma peça musical ou teatral. Sua

expressão contém todos os elementos mais prementes da esfera individual do

compositor/ar, do ator ou da atriz, assim como os elementos constitutivos do

cotidiano. Todo o conjunto põe em relevo uma antítese (os afetos, gostos, desejos,

motivação, circunstâncias, historicidade etc.).

Para melhor exemplificar, apresentaremos uma análise de uma das sonatas

mais tradicional composta pelo compositor vienense Ludwig Von Beethoven - a op.

27, nº 02 – conhecida popularmente como Sonata ao Lua.

A forma sonata é uma peça instrumental composta em três movimentos188

distintos entre si, mas que contém o mesmo tema: o 1º movimento contém a

exposição do tema; o 2º movimento exprime um contraste – uma tensão -

estabelecendo, assim, uma ponte para um novo movimento; e finalmente o 3º

movimento, que geralmente explode numa evolução do tema (o resultado).

Beethoven compôs a Sonata ao Luar em 1801, logo, aos 31 anos de idade,

portanto, num momento em que sua maturidade já podia demonstrar a sua

consciente paixão pela música, suas impressões amorosas com Juliette Guicciardi e

Thérèse Bruswick, a ingratidão do seu amado sobrinho e o drama de sua surdez.

Esta sonata foi composta para piano e dedicada ao seu primeiro amor, a

Condessa Juliette Guicciardi. Podemos observar duas impressões totalmente 188 Podem também conter mais movimentos

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distintas e co-relacionadas: as impressões do despertar do primeiro amor e o drama

de sua surdez, ambas, concepções carregadas de elementos cotidianos.

Além disso, não podemos descartar os fatores históricos e sociais daquela

época e o momento presente da composição. Porém, aqui vamos nos ater aos

elementos relacionados às nossas análises: cotidiano e não-cotidiano.

A sonata refere-se ao reflexo da lua sobre as águas, daí o seu nome. O 1º

movimento inicia-se por um andamento vagaroso, calmo, repetitivo, quase sonolento

- um Adágio e Sustenuto189. Técnica e estilo se complementam. Este movimento

refere-se ao reflexo da lua sobre as leves ondulações das águas, compondo um

cenário bucólico e reproduzindo nas notas musicais um “estado de espírito” em que

a vida aparece como um leve reflexo e que, às vezes, é agredida por pequenas

brisas (o peso dos acontecimentos e das emoções) – o despertar para o amor no

caso em questão.

Esse movimento representa a juventude de Beethoven, como também, as

emoções do primeiro amor, à leveza da vida, o desabrochar de sua genialidade –

sua adolescência. Já no 2º movimento, um alegre (Allegretto) brincar (Scherzando)

sobre as notas, constitui um intermédio, um interlúdio, d’onde Beethoven brinca com

a vida e os sentimentos; um ar de mistério esconde as experiências do primeiro

amor que explodem em sentimentos próprios da adolescência, como também, expõe

as primeiras impressões sobre sua surdez.

O 3º movimento é constituído de uma rápida (Presto) furiosa tempestade

sobre as águas, não escondendo sua harmoniosa essência. É o momento da

agitação, da fúria dos ventos, como também do amor, embalado pelo desespero

acarretado pelo descobrimento de sua surdez.

Estes três movimentos trazem em si toda subjetividade, sentimentos, paixões,

impressões, emoções, enfim, o “por inteiro” numa única justaposição. Os elementos

mais comuns do cotidiano aí estão expressos de maneira “sublime” e de uma

genialidade essencialmente humana.

Obra e compositor se identificam. O compositor se vê na obra e a obra

contém os traços mais singulares e particulares do compositor, mas a obra não é o

compositor, nem tão pouco, parte do compositor. A obra expressa a síntese entre o

189 Sustenuto refere-se ao sustenido – acidente ascendente que faz subir meio tom uma determinada nota musical, normalmente exprime um som nasal.

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singular, o particular e o universal da genericidade humana, conforme já

introduzimos ao descrever o mito de Pigmalião e Galatéia190.

O cotidiano compõe o não-cotidiano e este, retorna ao próprio cotidiano. Esta

suspensão momentânea (momento da criação e elevação da cotidianidade), não

representa a anulação do cotidiano, assim como a cotidianidade não nega a não-

cotidianidade. Em momento algum acontece à negação total do cotidiano, por isso, o

não-cotidiano não exprime o contrário do cotidiano: “[...] a diferenciação entre

cotidiano e não-cotidiano em absoluto é um fenômeno de alienação por principio,

mas sim um único produto da específica dialética entre reprodução social e

individual”191.

O cotidiano não é por si só alienado, mas pode expressar o fenômeno da

alienação, conforme já expusemos. Isto se dá quando o cotidiano aliena-se

(estranha-se) dos componentes essencialmente humanos. Quando as relações,

tanto íntimas como coletivas, se estabelecem estranhas em sua natureza, dando

lugar a coisificação/reificação da vida social.

Esta suspensão da cotidianidade é que exprime a não-cotidianidade. Ambas

são dois estados distintos da mesma expressão. O grau de utilização e de

intensidade na vida cotidiana, expressa-se de diferentes formas: todos devem

aprender como comer, beber, vestir, ou seja, manipular as coisas simples e próprias

da vida diária, porém, nem todos podem ter a mesma destreza de um/a cozinheiro/a,

costureiro/a, arquiteto/a etc.

[...] Se dizemos que na vida cotidiana operam os sentidos e todas as capacidades, dizemos ao mesmo tempo, que seu grau de utilização, ou seja, sua intensidade fica muito por baixo do nível necessário para as atividades orientadas acima das objetivações genéricas e superiores (HELLER, 1977, p. 94)

192.

Por outro lado, as atividades e habilidades direcionam-se na vida cotidiana

em múltiplas dimensões e com a mesma intensidade. As atividades genéricas

exigem habilidades e intencionalidades ainda maiores, um conhecimento da

natureza orgânica de si mesmo e do mundo que o cerca. Também o particular pode

se encontrar num nível superior em sua reprodução.

190 Ver nota nº. 54. 191 HELLER, 1977, p. 101. Grifos da autora. 192 Grifos da autora.

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Nessa direção, se coletivamente os sujeitos particulares e singulares estão

insatisfeitos com alguma coisa, situação ou época e se juntam num mesmo objetivo,

ideal, num mesmo compromisso e interesses ou por necessidades, constituem-se o

sujeito coletivo revolucionário e, por conseguinte, caminha de forma organizada na

direção de projetos coletivos, rumo à determinada ação revolucionária.

Assim, a união dos sujeitos sociais em torno de projetos sociais coletivos

resulta, em grande medida, em melhores e significativas possibilidades de

revolução193: “[...] as mudanças não derivam de uma pessoa particular, mas sim de

uma simultânea pluralidade de particulares”194.

O entendimento desse dinamismo da vida, dos processos de mudança,

individual e coletivo - de sua historicidade -, propiciam elementos avaliativos e

propositivos para projeções e ações verdadeiramente revolucionárias.

Os desejos e as necessidades - numa determinada escala valorativa - podem

ou não se distinguirem daqueles verdadeiramente humanos: “[...] cada afeto é

medido pelo seu conteúdo de valor”195.

A valoração da essência humana requer, diante dos diferentes estímulos da

cotidianidade, sentimentos e atitudes que valorem o trabalho, a sociabilidades, a

universalidade, as capacidades criativas e proativas do ser social, teleologia, as

possibilidades de mediação numa determinada direção, a consciência, a liberdade, a

linguagem, enfim, os elementos essencialmente humanos.

Depende de uma atitude – um modo de ser, pensar e agir – diferente

daqueles estimulados pela heterogeneidade da vida cotidiana: “[...] a

heterogeneidade das formas de atividade não se evidenciam só porque estas são de

espécie diferentes, mas também, porque tem distinta importância e, desde logo, não

em último lugar, porque mudam de importância segundo o ângulo visual em que as

considera”196.

Os aspectos da vida cotidiana são muito diversos e tem relação direta com o

tempo histórico e o lugar ocupado na estratificação social. A vida cotidiana é, em seu

conjunto, um ato de objetivações, sendo, portanto, a “[...] base do processo histórico

universal”197.

193 Alteração do status quo das coisas e/ou situações. 194

HELLER, 1977, p. 97. 195 HELLER, 1977, p. 95. 196 HELLER, 1977, p. 95-96. 197 HELLER, 1977, p. 96.

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Por conseguinte, pode apresentar-se em duplo sentido: por um lado, como

processo de continua exteriorização do sujeito singular e particular; por outro, é

também o perene processo de reprodução do particular.

[...] Se estas objetivações são sempre do mesmo nível, se “se repetem”, o particular também se reproduz sempre do mesmo nível, pelo contrário, quando as objetivações são de um novo tipo, contém o novo, hão alcançado um nível superior, também o particular se encontra num nível superior em sua reprodução. Se as objetivações são incoerentes, se falta nelas um principio ordenador unitário, se representam só “adaptações”, interiorizações, o particular se reproduz ao nível da particularidade; se as objetivações são sintetizadas, se levam a presença da personalidade, a objetivação da vida cotidiana – no plano do sujeito – é o indivíduo. O objetivar-se como exteriorização contínua e de personalidade como objetivação são, por conseguinte, processo que se requerem mutuamente, que se interatuam reciprocamente, são dois resultados de um único processo (HELLER, 1977, p. 97)

198.

Acreditamos que Heller não estimula para uma consciência altamente privada

(egoísta) e individualista, mas sim para uma consciência individual (de-si-mesmo,

em-si-mesmo, para-si-mesmo) e, ao mesmo tempo, coletiva (para-nós):

[...] a vida puramente privada é tão alienada (ainda de forma distinta) como a vida pública desligada dela. [...] A diferenciação do cotidiano e do não-cotidiano não constitui em absoluto um fenômeno de alienação por principio, mas sim um produto da específica dialética entre reprodução social e individual (HELLER, 1977, 101).

Quando nos reportamos às condições de suspensão da cotidianidade, ou

melhor dizendo, as condições da não-cotidianidade (a arte, o conhecimento e a

filosofia), não apontamos para que todos fossem artistas, cientistas ou filósofos.

Ninguém precisa ser um exímio pianista, por exemplo, para saber tocar piano, ou até

mesmo ter um determinado conhecimento musical. Ninguém precisa se tornar um

filósofo, um artista ou um cientista para chegar ao estado de suspensão da

cotidianidade: “[...] não existe nunca um mundo em que cada um possa ser cientista,

nem possa liquidar sua própria vida cotidiana”199.

Quanto mais genéricas e conscientes forem as aspirações e objetivações do

ser social na e para a vida cotidiana, quanto mais consciência do valor da essência

humana e de comunidade, maior é o grau de genericidade, por conseguinte, maior

198

Grifos da autora. 199 HELLER, 1977, p. 109.

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será o campo das objetivações genericamente individuais e comunitárias - maior

serão as possibilidades de suspensão da cotidianidade (da não-cotidianidade).

E ainda, quanto mais se agrupam os sujeitos individuais e coletivos

revolucionários, maior as possibilidades de mudança, de libertação, de liberdade; o

contrário, constitui-se o “reino da barbárie”.

Tendo em vista a importância da categoria valor enquanto categoria

ontológica do ser social, é relevante analisar a maneira como esta é concebida e se

expressa no pensamento helleriano.

2.4. Valor e necessidades: duas faces da mesma moeda

Heller (1974) em sua Hipótese para uma teoria marxista dos valores, busca

entender a categoria valor em sua concepção ontológico-social geral, ou seja,

axiomas universalmente válidos para todos os seres sociais.

Reconhece que sua teoria se baseia em preferências axiológicas, social e

universalmente válidas, buscando entender a diferença entre esse sentido e os

valores que expressam imediatamente a sua especificidade (relativo às escolhas

cotidianas específicas).

Acreditamos que Heller, nessa obra, não traz o aprofundamento necessário

para os questionamentos levantados, nem tão pouco se dirige a uma teoria do valor.

Porém, o ponto no qual nos prendemos é como Heller entende a categoria valor

enquanto axioma de uma determinada axiologia, tendo como base a Teoria Social

de Marx.

Também, ao que nos parece, a intenção de Heller, aponta para critérios que

permitem falar da evolução e do desenvolvimento dos valores do ponto de vista de

uma teoria que afirme a perspectiva da sociedade comunista/socialista (ou seja, que

afirmasse o marxismo)200.

Não iremos aqui nos ocupar em fazer uma análise detalhada e crítica dessa

obra. Sua importância para essa pesquisa, está relacionada ao questionamento de

como Heller entendia a categoria valor no sentido lato e o que este entendimento

implicaria para a tomada de consciência ética e política do ser social?

200 Este interesse está ligado coerentemente com os acontecimentos e propostas em que se ocupava, juntamente com Lukács e os demais membros da “Escola de Budapeste”, conforme veremos no capítulo posterior.

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Para sua hipótese, Heller (1974) se apoia no conceito de riqueza genérica (ou

riqueza da espécie) e a riqueza individual, trazidos por Marx em sua Teoria Social.

Historicamente, os conceitos de riqueza e pobreza têm sido estabelecidos

historicamente naqueles que implicam à posse ou à produção dos bens materiais,

porém, no sentido de riqueza essencialmente humana, visa valorar tudo aquilo que

faz parte do ser genérico do homem e da mulher, direta ou mediaticamente, para a

explicação desse mesmo ser genérico (HELLER, 2004, p. 04).

As premissas marxianas e, consequentemente, as hellerianas e marxistas,

apontam para o entendimento do ser social enquanto ser consciente de suas

escolhas e ações, ou seja, enquanto artífices de sua própria história, mas, para

tanto, é necessário primeiramente viver ou estar em condições para viver e “fazer

história”:

[...] para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda história, que tanto hoje como há milênios, tem de ser cumprida todos os dias e todas as horas, simplesmente para assegurar a vida dos homens (MARX; ENGELS, 2007, p. 50).

Desta forma, o conceito de valor está diretamente vinculado ao de

necessidade e “relação de produção” (ou “modo de produção”). É uma necessidade

primária do ser social a geração e satisfação do seu primeiro ato histórico: a

produção da vida material, o que implica diretamente num axioma axiológico.

O valor enquanto axioma traz em si uma necessidade social perante a vida,

porém, Heller (1974) nos esclarece que necessidade difere de interesse. O interesse

é a realização dos objetivos, de integração, de classe ou de indivíduos frente a

outras integrações, classe ou indivíduos.

“Realização de objetivos”, neste caso, significa a obtenção de todos os meios,

possibilidades, condições, posições etc., adequados para satisfazer as

necessidades dos indivíduos pertencentes a uma determinada integração ou classe

dada - de uma parte desta ou de um grupo de indivíduos (HELLER, 1974).

Segundo Heller (1974, p. 23), os interesses aparecem quando um indivíduo

representa uma ameaça (e/ou “barreira”) ou quando os objetivos de um determinado

indivíduo, classe ou grupo diferem da relação ou objetivos de outrem. Na sociedade

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capitalista e na luta de classes, esta relação implica numa diversidade e

antagonismo de interesses.

Portando, o conceito de valor enquanto axioma-ontológico (relativo as

preferências ou escolhas ético-moral) se difere do conceito de valor implícito às

coisas, fatos e situações mais comuns da vida cotidiana – no sentido de valorização

(ato ou efeito de valorar).

A todo o momento estamos escolhendo ou optando por essa ou aquela coisa

e/ou situação: se devo ou não realizar tal ação: se vou ou não vou a tal lugar, enfim,

as mais diversas situações nos obrigam, de certa forma, a escolher entre duas

alternativas: sim ou não; bom ou ruim; bem ou mal.

Estas, por sua vez, implicam numa determinada relação ético-moral com as

coisas e/ou situações. Vem a ser a escala valorativa que expressa a esfera

heterogênea das individualidades, não constituindo, entretanto, a referência para o

entendimento dos valores essencialmente humanos.

Heller considera valor essencialmente humano tudo aquilo que, em qualquer

das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o

enriquecimento dos componentes essenciais trazidos pela Teoria Social de Marx (o

trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a

liberdade), podendo ainda considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente

rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado

componente essencial (HELLER, 2004; 1974).

O valor é, portanto objetivo e independente das avaliações dos indivíduos,

mas não da atividade dos homens e das mulheres, “[...] pois é expressão e

resultante de relações e situações sociais”201. O valor enquanto categoria ontológico-

social e axiologicamente válido para todos, implica em valorar os componentes

essencialmente humanos. O trabalho, a objetivação, a consciência, a sociabilidade,

a universalidade e a liberdade compõem o ente do ser social. Isso implica dizer,

nessa concepção, que o valor “[...] nasce com a sociedade e só perecerá com

ela”202.

A necessidade também aparece no pensamento helleriano como uma

categoria ontológico-social, tão geral e primária como o valor: “[...] a necessidade é

uma categoria do indivíduo, uma exigência interna, uma construção, uma ânsia de

201 HELLER, 2004, p. 05. 202 HELLER, 1974, p. 23.

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algo. Esse “algo” (o objeto da necessidade) é sempre heterogêneo (todo ser humano

tem necessidades heterogêneas)”203.

Para Heller (1982, p. 133-134), uma teoria das necessidades (ou

carecimentos) tem que ser aberta, tem que exprimir não tão somente os

“carecimentos”, mas também os seus conteúdos, o grau de consciência adquirido, o

caráter revolucionário do indivíduo e de uma classe, um determinado estrato social,

programas políticos e de movimentos.

E diz mais:

[...] os carecimentos puramente quantitativos são aqueles que implicam, para sua satisfação, que um homem se torne puro instrumento para outro homem. Esses carecimentos são alienados: ou melhor, são os carecimentos alienados por excelência. Os carecimentos de posse, de poder e de ambição: esses três carecimentos não podem e não devem jamais ser completamente satisfeitos. [...] Os carecimentos referidos a bens puramente materiais não significam a exploração de nenhuma outra pessoa e, portanto, devem ser reconhecidos, como todos os demais carecimentos humanos, ainda que nós os critiquemos (HELLER, 1982, p. 135-136).

Heller busca desenvolver uma teoria alternativa, ou seja, uma teoria em que

estejam expressos os anseios de um socialismo democrático e de uma determinada

vida não-alienada. Para tanto, é preciso viver a vida conscientemente, consciente

das potencialidades/capacidades genéricas do ser social e da alienação a que

somos submetidos a todo instantes.

No campo das necessidades burguesas e capitalistas há aquelas

direcionadas às necessidades de classe e às do modo de produção. No corpus

teórico helleriano, essas necessidades aparecem como necessidades radicais, ou

seja, necessidades de superação da sociedade capitalista, rumo ao advento da

sociedade socialista democrática ou, o que poderíamos chamar de comunismo na

visão helleriana.

[...] O movimento entre as necessidades e seus objetos tem sempre dois sentidos: as necessidades produzem os objetos, os tipos de atividades, as relações que se servem a sua satisfação, e, por sua parte, os objetos, os tipos de atividade e as relações “engendram” necessidades (HELLER, 1974, p. 25).

Na sociedade capitalista, o trabalho, por exemplo, aparece como meio para a

sobrevivência. O trabalho aliena-se de sua condição essencial e genericamente

203 HELLER, 1974, p. 25. Grifos da autora.

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humana, para assumir a condição de assalariamento. Por outro lado, os capitalistas

utilizam (exploram) o trabalho dos indivíduos para atingirem seus fins (o lucro, a

“mais-valia”, a acumulação de riqueza socialmente produzida etc.). Os interesses e

aspirações aqui são controversos.

O paradoxo helleriano coloca que ao mesmo tempo em que este tipo de

sociabilidade cria “carecimentos radicais”, estes também constituem a força motriz,

objetiva e material, para um nível de consciência ética e política individual e coletiva

revolucionária, conforme já apontamos anteriormente. Sua teoria reconhece o sujeito

e o objeto enquanto unidade de transformação.

Nessa relação, a produção de mercadorias e o consumo apresentam-se como

necessidades próprias desse sistema e recebem uma valoração substancial. A

moda, por exemplo, é uma necessidade criada para a manutenção do status quo do

capitalismo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o capitalismo gera

satisfação das necessidades, também gera novas necessidade, como também, gera

ainda desigualdades, exploração, miserabilidades, exclusão, e tantas outras

expressões da questão social.

[...] o ser do valor não pode derivar das necessidades. Pelo contrário, os valores estão mediados com as necessidades pela produção social, pelas relações-circunstânciais e sociais, pelas objetivações sociais globais. [...] Os valores não se podem medir por necessidades, mas as necessidades podem medir por valor (HELLER, 1974, p. 26).

Nesse caminhar, o valor é uma categoria primária da prática social e que não

pode derivar de fatores heterogêneos (necessidades, interesses, psiquismo etc.).

Quando os componentes essenciais do ser social (ou da essência humana) estão

valorados, o valor assume um modo de preferência consciente. Para melhor

clarificar, vejamos um exemplo mais concreto, conforme os apontamentos helleriano.

Num determinado momento histórico e por determinadas condições, decidiu-

se, individual e coletivamente, pela preferência por relações sexuais extrafamiliares

às intrafamiliares (dizendo que as extrafamiliares eram boas e as intrafamiliares

eram um mal), não se vinculou esta escolha nem a atributos individuais nem a uma

simples questão do azar.

Ao se preferir as relações extrafamiliares, estipula-se uma proibição para o

incesto, um código de conduta moral e de punições para quem infringir esta

determinação social. Nasce, assim, a necessidade de uma moral, um conjunto de

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regras e normas, estabelecendo o que é bom ou ruim – o que pode e o que não

pode - para a vida em sociedade ou, melhor dizendo, um código de leis, por

conseguinte, uma determinada moralidade e uma determinada legalidade.

Todo valor, segundo Heller (1974), é preferência, mas nem todas as

preferências são eleitas por valor. As preferências axiológicas, ou axiomas, não

estão vinculadas aos gostos particulares e pode implicar preferências históricas (no

intuito de objetivar normas e costumes). Por determinações especificas, o incesto

constitui-se uma proibição histórica e socialmente aceita.

Mas nem todas as determinações são homogêneas. Há aquelas que são

valoradas mais numa determinada época do que em outras, numa determinada

sociedade do que em outras, como também podem ser desconsideradas totalmente

ou super valoradas.

No período dos samurais, por exemplo, no Japão, o suicídio estava prescrito

em seu código de conduta ético-moral. O Haraquiri (corte estomacal) era uma

prática comum entre os samurais que deveriam se suicidar em determinadas

situações (perigo ou honra). Nas sociedades judaico-cristãs, como a nossa, por

exemplo, o suicídio é considerado um atentado contra a vida e, por isso, carregado

de “abominações”.

[...] Todo ser humano nasce numa determinada época e em determinados sistemas de preferência axiológicas e, por conseguinte, não passa pela vida sem assimilar essas preferências (HELLER, 1974, p. 36).

Porém, os indivíduos não se encontram somente regidos por preferências

subjacentes ou objetivações especificas em-si (preferências que se assimila e

absorve em maior ou menor medida), mas também, sofrem influências dos sistemas

de referência (comunidade, liberdade, justiça, ideologias etc.), nesse caso, as

referências serão para-si.

Para Heller (1974) a maioria das teorias do valor elege a preferência com a

categoria do dever - há que preferir o que se deve preferir. Nesse caso,

ultrageneraliza a esfera dos valores e os vincula às questões que envolvem o campo

da moral.

Vázquez (2007a) faz exatamente esta análise ao apontar que a função da

moral é o veto. Para Heller (2004, p. 05) a moral é uma relação entre as atividades

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humanas, ou seja, é a “conexão da particularidade com a universalidade

genericamente humana”204, e complementa:

[...] a moral é o sistema das exigências e costumes que permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior – em necessidade moral – a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua particularidade individual), as quais podem se expressar como desejo, cólera, egoísmo ou até mesmo fria lógica egocêntrica, de modo a que a particularidade se identifique com as exigências, aspirações e ações sociais que existem para além das causalidades da própria pessoa, “elevando-se” realmente até essa altura. Essa estrutura básica compreende também o caso de sociedades portadoras de desvalores, mediante os quais resulte extremamente valorizado do ponto de dista material - não daquele estrutural – até mesmo a satisfação da pretensão mais espontânea e vaga (HELLER, 2004, p. 05-06).

A moral constitui um sistema de valor no qual e, em grande medida, imperam

o desenvolvimento e a projeção da particularidade-individualidade devido ao seu

caráter ultragenerativo, ou seja, capaz de generalizar o específico e o particular, com

também o singular.

[...] A moral pressupõe valores que se baseiam na consciência tanto ética quanto social e que acabam por definir toda ação e comportamento. Ou seja, a moral subjaz toda ação. Porem a grande diferença está em esta ação ser ou não do cotidiano particular. Para que ela se caracteriza pela não-cotidianidade é necessário que a ação tenha um conteúdo moral (GUIMARÃES, 2002, p. 23).

Heller (1974) diferencia os valores imperativos daqueles que são optativos.

Nas sociedades em que o incesto, por exemplo, é uma questão de proibição, esse

ato implica num valor imperativo; mas naquelas em que impera apenas uma

condição a evitar, a questão do incesto, apresenta-se como uma questão de opção e

os seus membros apenas buscam evitá-lo.

Do ponto de vista da consciência ética e política, os componentes da

essência humana, assumem a postura de um axioma. É uma questão imperativa e

axiológica, generalizada e universal. Diz respeito à regulação social primária do

gênero humano.

Não mostra o que devemos escolher ou as preferências, mas sim, o que se

tem que escolher para preservar o sistema valorativo, de modo que o gênero e a sua

204 Grifos da autora.

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genericidade se tornem um fim e não um meio, possibilitando que todos os

componentes essenciais e genericamente humanos sejam preservados.

A desvaloração desses componentes implicaria na preferência do “reino da

barbárie” em relação à vivência dos princípios essencialmente humanos, ou seja,

aqueles que são imprescindíveis para uma vida social verdadeiramente humana.

Heller aponta ao longo de suas obras as principais

características/preferências axiológicas em diferentes e distintos momentos

históricos da Humanidade – numa verdadeira historiografia-sociológica entre o

mundo Antigo, o período do Renascimento e o advento e consolidação da sociedade

burguesa e do modo de produção capitalista, sem desconsiderar, sobretudo, as

características do período medievo.

A comunidade como valor e a virtude ética e política eram as características

mais destacadas e assumiam um caráter de naturalidade no mundo Antigo; já no

Renascimento e, consequentemente, no advento da acumulação primitiva e da

sociedade burguesa, a individualidade, o dinamismo, a arte, o conhecimento, a

liberdade, igualdades, entre outros, explicitaram a valoração axiológica

desantropormorfizada, da secularização e da consciência dos componentes

essenciais e verdadeiramente humanos em sua individualidade.

Já no capitalismo, a relação entre ser social e mundo visam os interesses

privados, individuais e egoístas, ou seja, a grande maioria das relações sociais

passa a ser constituída e externada por escolhas individuais e interesses privados. O

lucro, a produção, a mais-valia, as relações mercantilizantes, o ter, o consumo, entre

outros, ocupam os axiomas mais gerais.

Aqui, a alienação,

[...] não é puramente a discrepância entre o ser genérico e a existência individual; se trata – mais concretamente – do abismo entre a riqueza genérica, a riqueza da espécie e a riqueza individual. [...] A alienação empobrece o individuo (de modo mais claro no capitalismo) porque só permite desenvolver algumas de suas capacidades (em prejuízo das demais), porque atrás das capacidades do indivíduo se convertem em simples meios de autoconservação, porque reduz a riqueza de sentidos a um só sentido, o sentido de ter ou possuir (HELLER, 1974, p. 30-31).

A alienação é um conflito de valores entre o desenvolvimento axiológico do

gênero humano e o desenvolvimento do valor da personalidade; entre necessidades

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genéricas e interesses particulares; entre riqueza humana e riqueza econômica. Um

conflito necessariamente e concomitantemente ético-moral e ético-político.

Todo ato humano inclui necessariamente uma determinada preferência entre

algo mais valoroso e o menos valoroso. Do ponto de vista ético-moral e ético-

político, esta valoração é ainda mais expressiva. A tomada de consciência nessa

relação é primordial para manter o status quo das coisas ou não, isso não implica

necessariamente, numa tomada de posição contra ou a favor de algo.

Mas sim, na tomada de posição, ou de uma determinada consciência

revolucionária, individual ou coletiva. O que implica num movimento social de

enfrentamento dos problemas éticos e políticos. Neste caso, a consciência de

liberdade é o que rege as atitudes, interesses e ações, assunto este do qual nos

ocuparemos mais adiante.

Conforme os apontamentos de Heller, valor e necessidades são duas faces

distintas da mesma moeda. A valoração da necessidade (ou carecimento) de

superação da condição de exploração, ou seja, as necessidades radicais, é

condição sine qua non para viver uma vida não-alienada e não-estranhada em sua

genericidade, bem como das possibilidades de sair do amálgama e das armadilhas

da lógica do capital.

Para tanto, valorar a essência humana, a liberdade, a democracia e as

concepções não ultrageneralizadas, compõem uma práxis revolucionária e, portanto,

uma determinada consciência ética e política de liberdade. Desta forma, vamos ver

como Agnes Heller concebeu e viveu sua teoria.

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CAPÍTULO III

3. A ESSÊNCIA DE UMA VIDA FILOSÓFICA

“Meu trabalho é minha vida inteira”.

Agnes Heller

3.1. “Um produto verdadeiro do século XX”

Falar sobre o pensamente teórico-filosófico de uma pensadora, certamente

não é uma tarefa fácil. Sobretudo, quando esta está viva. Além de ser uma

exposição de suas ideias, é, sem dúvida alguma, um momento de avaliação/reflexão

sobre o que realmente pensamos, acreditamos e defendemos.

Defender uma ideia requer do pesquisador, adequada definição e domínio

sobre quem ou o quê irá expor. Principalmente, se essa exposição remete a

conceitos e filosofias, que se espelhem numa teoria científica e/ou uma práxis social,

ou seja, um conjunto de enunciados logicamente coerentes a respeito de um

determinado objeto.

Falar de Agnes Heller torna-se ainda mais difícil, principalmente por ser uma

personalidade de renome internacional, descrita por Terezakis (2009, p. 01) como

“[...] um produto verdadeiro do século XX”. Sua obra percorre diversos campos do

conhecimento, passando desde os assuntos ligados a estética, a política e a ética,

até as análises históricas, da personalidade e das discussões sobre a “pós-

modernidade”. Seus escritos remetem a fases distintas de sua vida.

Apropriamo-nos da classificação de Prior (2002) e Terezakis (2009) que

atende nossa proposta, ou seja, no período que viveu na Hungria, na Austrália e nos

Estados Unidos, enquanto marxista, pós-marxista, existencialista e pós-moderna.

Sua obra, segundo Rivero (1996, p. 10), foi o primeiro produto de uma nova

esquerda do Leste Europeu, tanto para os críticos oficiais da Hungria, como para

seus defensores ocidentais.

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Também recebeu outras classificações tais como neomaxista e pós-

pósmarxista205, porém, no desenvolvimento do seu pensamento filosófico, Heller

defende que apenas quis ser “ela mesma” sem denominações ou

compartimentações conceituais de qualquer “ismo”, apenas buscou escrever uma

filosofia da vida ou viver uma vida filosófica (Lebensphilosophie).

Heller veio duas vezes ao Brasil. A primeira enquanto “intelectual empenhada

na revisão do marxismo” e, posteriormente, retornou como filósofa preocupada com

as temáticas atuais, dentre as quais, destacam-se seus estudos sobre a pós-

modernidade e a ética da personalidade (LOYOLA apud HELLER, 2002, p. 19)206.

Autora de uma vasta obra que pode ser dividida em dois grandes grupos: as

ligadas à sociologia histórica da filosofia e às reflexões filosóficas. Os temas do

cotidiano, da ontologia do ser social, da racionalidade, da ética, da ação política, da

comunidade, do valor, da historicidade e da atualidade constituem as vigas-mestras

de todo o seu pensamento.

Para Maria Helena Bittencourt Granjo207 (2008), a teoria do cotidiano e a

teoria das necessidades foram os temas centrais de suas reflexões208: “[...] Heller irá

colocando as vigas-mestras a partir das quais desdobrará suas demais

preocupações com a moral, a história, o destino das esquerdas, a modernidade e a

pós-modernidade, os valores, a práxis” (GRANJO, 2008, p. 9).

Rivero (1996, p. 23) observa quatro grandes campos de reflexão inter-

relacionados na obra de Agnes Heller: uma antropologia social, a teorização da vida

205 Rivero (1996, p. 10) pontua que estas denominações dizem respeito aos seus defensores ocidentais e que, Richard Rorty (filósofo norte-americano) a definiu como pós-pósmarxista em sua obra The Grandeur and Twilight of Radical Universalism, Thesis Eleven, n. 37, 1994, p. 119-126. 206

Entrevista de Agnes Heller realizada por Francisco Ortega, no Rio de Janeiro, em 2002. A entrevista foi traduzida por Bethânia Assy, doutoranda em filosofia e orientanda de Agnes Heller na New School for Social Research, em Nova Iorque (LOYOLA apud HELLER, 2002, p. 19). 207

Maria Helena Bittencourt Granjo é licenciada e bacharelada em filosofia pela PUC-SP, mestra em História Social pela USP, doutora em Educação, História e Filosofia pela PUC-SP, professora do programa de Pós-graduação em História e Filosofia da Educação da PUC-SP, professora de Filosofia da Educação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Fundação Santo André. O livro citado refere-se a sua tese de doutorado defendida na PUC-SP, em 1994. 208

É importante destacar que o estudo de Granjo (2008) está relacionado à “crise das ortodoxias e das grandes teorias explicativas” (idem, p. 07) que apontam para a necessidade de se buscar novos caminhos para explicar as mudanças do mundo moderno (ou, para alguns, pós-moderno). Portanto, mesmo analisando a obra de Heller em suas fases distintas, seu foco de pesquisa, ao que nos parece, está direcionado a encontrar uma teoria que responda a estes anseios, principalmente, no que tange a Filosofia da Educação. Nesta pesquisa, nosso foco é analisar a contribuição de Agnes Heller, enquanto fundamentos para uma consciência ética e política do ser social. Concordamos com Granjo (2008) com relação ao pensamento de Agnes Heller enquanto fundamento para uma teoria ou filosofia da práxis, porém discordamos com relação ao seu ponto de partida, ou seja, as indagações filosóficas iniciais que construíram as “vigas-mestras” de seu pensamento, conforme apontaremos no decurso desse capítulo.

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cotidiana como modelo de racionalidade, a formulação de uma filosofia política e

uma reflexão ética. Todos estes temas apareceram em momentos distintos do seu

desenvolvimento intelectual que compuseram um corpus comum e compuseram o

que Heller denominou como “uma filosofia aberta e inacabada” (idem, ibidem).

No período anterior a 1978, Heller deteve-se juntamente com Lukács e os

demais membros da “Escola de Budapeste” na proposta de uma releitura dos

escritos de Marx e no grande projeto lukacsiano de escrever uma Ética marxista,

conforme os apontamentos de Tertulian (2010). Este projeto, segundo Rivero (1996,

p. 12) constituía em estimular o renascimento teórico do marxismo e criar uma sólida

base filosófica desse pensamento.

Esta última tendia para uma antropologia social marxista que, finalmente

estimularia, mediante uma crítica à recondução do processo de construção do

socialismo e sua democratização, buscando combater a escolástica do materialismo

histórico (hismat) e do materialismo dialético (diamat), mediante uma re-leitura

integral dos textos de Marx (o jovem e o clássico).

Na visão de Granjo (2008, p. 16), Heller estava preocupada na formulação de

uma “teoria da práxis social”, ou seja, uma “teoria da ação” e, consequentemente, de

uma ética. Entendia que o socialismo estava se desviando dos seus propósitos

originais e que era necessário retomar os fundamentos teóricos em sua totalidade e

originalidade. O sujeito revolucionário proposto pelos enunciados marxianos,

necessitava ser revitalizado em termos das necessidades radicais.

Lukács e seus discípulos pensavam que o pior socialismo seria melhor que o

modelo capitalista mais benigno. Para eles, assim como para Heller, tinham em

mente que o caminho para a emancipação deveria transcorrer necessariamente

pelas veias do socialismo, assim como o processo de democratização. Acreditavam

que qualquer expressão da democracia burguesa, estaria sempre limitada a lógica

do capital e do modo de produção capitalista.

Sua formação enquanto pensadora deve-se a múltiplas determinações sociais

historicamente constituídas. O holocausto nazista alemão, o totalitarismo-fascista do

regime stalinista, o encontro com Georgy Lukács e a Revolução Húngara de 1956,

conforme os apontamentos de Agnes Heller. Estes acontecimentos demarcaram

seus primeiros questionamentos, delinearam sua trajetória intelectual e estão

intrinsecamente relacionados à sua profícua produção filosófica no período em que

nos propusemos a estudar, ou seja, entre os anos de 1956 e 1978.

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Considera-se aqui, que o destino dos homens e mulheres, enquanto seres

singulares são marcados por formas de sociabilidade que os tornam indivíduos

sociais, cujos resultados são imprevisíveis, dado ser síntese de múltiplas

determinações. Conforme exposto nesta pesquisa, partimos sempre do princípio de

que o ser social faz a sua própria história, porém, não a faz como quer, mas sim,

sobre circunstâncias previamente estabelecidas. (MARX, 1977, p. 21; HELLER,

2004, p. 01).

Conforme já apontamos, o ser social é um ser particular e genérico, produto e

expressão das relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento

histórico-social da humanidade e, enquanto tal, jamais passa pela vida sem estar

circundado por outros seres de igual natureza e de determinações circunstanciais

para o seu fazer histórico.

Sem sombra de dúvida, a vida de Agnes Heller foi marcada por muitas lutas,

vitórias e derrotas, na busca de sua autoafirmação, autorrealização, autolibertação e

da essência filosófica do ser social, bem como, do significado da vida num mundo

repleto de contradições.

Seu pensamento é internamente consistente na sua motivação e

metodologicamente coerente em sua abordagem (TEREZAKIS, 2009). Traz uma

diversidade tal de temas que chegamos a compará-la ao maestro e compositor

brasileiro Heitor Villa-Lobos209 que considerava suas obras como “cartas que

escrevia à posteridade, sem esperar respostas”.

Rebelde às exigências e ao dogmatismo de sua época, despontou como uma

autodidata permitindo escapar do exclusivismo. Seus escritos captam as principais

problemáticas do mundo moderno numa tessitura própria, individual e

contemporânea, assimilando, sobretudo, a sociologia da vida cotidiana e a

necessidade de transformar as formas alienadas da vida social, tendo em vista o

despertar de uma consciência ética e política e a consolidação da democracia.

Porém, não há como falar de Agnes Heller sem se reportar a Georgy Lukács,

por Heller sempre teve profunda admiração, mesmo nem sempre concordando com

suas atitudes e seus posicionamentos. Também, devemos ressaltar a sua ligação

com o grupo de intelectuais que se reuniram ao redor de Lukács, dos anos finais de

1950 até 1971, ano de sua morte, com quem Heller manteve os laços de amizade

mesmo posterior a morte de seu mestre. 209 Heitor Villa-Lobos (1887-1859), maestro e compositor erudito brasileiro.

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O ponto mais delicado em toda discussão sobre a obra de Agnes Heller,

principalmente no âmbito do Serviço Social, é com relação ao caráter espaço-

temporal, a diversidade de seus escritos e a pluralidade teórica de sua obra em sua

totalidade. Não é pelo fato de serem desiguais, mas, sobretudo, pela complexidade,

erudição e dimensão, como também, o abandono de suas bases.

Há quem negue a sua importância devido ao fato de ter abandonado as

matrizes marxistas que compuseram os seus escritos iniciais, passando de marxista

a pós-marxista, existencialista e pós-moderna. Porém, não se pode negar que Heller

trouxe importantes contribuições para analisar a vida cotidiana e a antropologia-

ontológica do ser social a luz marxiana e lukacsiana.

Podemos dizer que sua obra é uma declaração de independência, embora

algumas vezes, paradoxal e contraditória. Segura de seus efeitos, Heller buscou

inspiração primeiro, e principalmente, em Aristóteles, Kant, Hegel e Marx, não

negando outros pensadores, teceu um diálogo com alguns interlocutores de seu

universo acadêmico, marcando sempre um sentimento apaixonado pela filosofia

que, para ela, “[...] deve servir à compreensão do presente”210.

Sua biografia é acentuada por uma sucessão de lutas contra a hostilidade, o

dogmatismo, o totalitarismo, a violência e a incompreensão, nos mais diversos

espaços e condições, contudo, sempre enfrentou com ferrenha intransigência o nazi-

fascismo autoritarista que marcou a Hungria na primeira metade do século XX,

obrigando-a a atravessar o oceano em busca de liberdade e reconhecimento.

Sua obra, repleta de erudição filosófica e literária, apresenta uma tessitura

tênue e ao mesmo tempo áspera e dura contra qualquer tipo de violência,

explodindo os seus instintos atávicos contra qualquer tipo de opressão. Porém,

esconde o que poderíamos chamar de melancolia perdida de uma nova Jerusalém.

Grande parte de sua obra, principalmente as do período em análise, foi

traduzida para o castelhano. Além disso, nem sempre seguiu-se a ordem

cronológica em que seus escritos foram concebidos e publicados, originalmente em

húngaro, alemão, italiano e inglês. Acreditamos que isso prejudica a compreensão

de seu pensamento em sua totalidade, tendo em vista que a linha epistêmica e os

argumentos se perdem e o caminho se torna árduo.

Rivero (1996, p. 09) comenta que desde que Manuel Sacristán traduziu e

publicou seu livro Historia y vida cotidiana, para o castelhano, quase todos os seus 210

POLONY, 1997; HELLER, 1983a; HELLER, 2002.

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livros foram traduzidos para esta língua, principalmente, porque seus escritos

proliferavam constantemente nas páginas das revistas especializadas como também

nos periódicos acadêmicos.

Um estudo aprofundado em sua obra revela a necessidade antropológico-

ontológica rigorosa de escrever uma “filosofia da práxis”. Uma práxis revolucionária

que buscasse intervir na realidade e nas determinações dadas, tendo por horizonte

a busca pela liberdade e a pela democracia.

Portanto, buscaremos traçar nesse capítulo uma pequena e aproximada

biografia da autora pesquisada, tendo em vista os principais acontecimentos

históricos e sociais vividos em sua particularidade por ela, de modo a perceber a

ligação entre sua vida e sua obra e, principalmente, no que tange aos seus

questionamentos e reflexões que nortearam e acompanham sua trajetória

acadêmico-intelectual-filosófica entre 1956 e 1978 e que continuaram a ecoar

posteriormente.

Tomamos a liberdade de, como pano de fundo, elaborar um roteiro dos

principais acontecimentos histórico-sociais, tanto da Hungria, quanto ao seu redor e

entrelaçar com as vivências/reflexões e comentários de Agnes Heller. Para dar maior

veracidade e neutralidade aos fatos aqui apresentados e para enriquecer o universo

pesquisado, utilizamos outras fontes históricas além das suas entrevistas, sobretudo,

sobre a história da Hungria, alguns fatos mundiais, a vida de Lukács e do contexto

da “Escola de Budapeste”.

Salientamos que no material pesquisado encontramos algumas lacunas e

alguns desencontros. Porém, buscamos sanar esses hiatos complementando-os

com outras fontes. Não pretendemos aqui realizar uma biografia total e geral sobre a

autora. A intenção é a de demarcar o contexto histórico e social no qual se inseriu,

bem como os principais acontecimentos que contribuíram para suas reflexões.

Tendo em vista o grande volume de sua obra, encontramos algumas

referências biográficas espalhadas em orelhas dos livros pesquisados, entrevistas,

depoimentos, descrições e demais fontes, portanto, algumas informações se

tornaram difíceis de serem referendadas, outras estão registradas em suas diversas

entrevistas concedidas nos mais diferentes momentos de sua vida. Assim, os dados

encontrados cientificamente datados, serão referendados e os demais, serão

descritos conforme sua própria fala.

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3.2. A história de uma vida ou a vida de uma história

Agnes Heller nasceu em Budapeste, Hungria, no dia 12 de maio de 1929,

meses antes da crise mundial causada pela queda da Bolsa de Nova York que,

segundo o historiador Eric Hobsbawm (2010, p. 96), “[...] equivaleu a algo próximo

de um colapso econômico mundial”.

Neste período, a Hungria, estava se reerguendo das cinzas causada pela 1ª

Guerra Mundial e suas consequências. Em 28 de junho de 1919 é assinado o

Tratado de Versalhes, em Paris. A Europa sofreu uma reorganização territorial, a

desagregação interna de seus territórios e a aceleração da queda das suas

potências centrais.

Estes acontecimentos trouxeram algumas consequências para a Hungria. Até

1920 a Hungria pertencia ao Império Austro-Húngaro. Porém, em consequência de

suas derrotas militares na 1ª Guerra Mundial, possibilitou a afirmação das minorias

nacionais.

A Hungria foi forçada a assinar no dia 04 de junho de 1920, no Palácio Petit

Trianon, em Versalhes um acordo, que ficou conhecido como Tratado de Trianon.

Este tratado pôs fim ao Império Austro-Húngaro, separando o território da Áustria e

da Hungria, pondo fim à dinastia dos Habsburgo e transformando a Hungria num

“pequeno país satélite” (SZACKI, 1972).

O Tratado de Trianon desmembrou grande parte territorial do Império Austro-

Húngaro, abolindo assim, a sua unidade nacional, histórica, física e econômica,

como também, afastando a Hungria central de suas fontes de matérias-primas e de

combustível, o que criou uma situação econômica catastrófica.

Com este tratado, a Hungria passa a ser submetida ao domínio dos países

vizinhos:

[...] após a conclusão do Tratado de Trianon, as condições de vida tornaram-se ruins e os empregos difíceis de achar, os proprietários de terra voluntariamente deixaram de usar a sua maquinaria agrícola, para prover mais empregas ao trabalhador manual. (MONTGOMERY, 1999, p. 50).

Como é de conhecimento geral, a eclosão da 1ª Guerra Mundial, teve como

estopim o assassinato do arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, em

Sarajevo, em 1914 e a guerra durou até 1918. Segundo os historiadores, com o

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Tratado de Trianon a Hungria perdeu cerca de 71,5% de seu território e 63,6% de

sua população. Nessa época, era um país estritamente agrícola e, por isso, a

Hungria ficou numa situação muito complicada economicamente falando,

instaurando-se uma crise em todo o seu território.

Em contrapartida, para situar os acontecimentos ao redor da Hungria que

terão influência direta na sua história e na vida de Heller, destacamos também a

eclosão da Revolução Russa de 1917, a instauração do comunismo leninista em

1917 a 1924 e do stalinismo entre os anos de 1924 a 1953. Stalin passou a

centralizar todo o poder da antiga União Soviética e a perseguir implacavelmente

seus opositores políticos, num projeto de industrialização maciça, coletivização

agrária e ditadura nazi-fascista logo em seus primeiros anos de mandato.

No oeste da Hungria, a ideologia fascista de Mussolini se consolidava na Itália

e na Alemanha e a República Weimar (1918-1933) nascia em meio a uma frustrada

revolução socialista. Em 1919 é fundado o Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães, logo chamado de Partido Nazista. Após ser nomeado

chanceler da Alemanha, Adolf Hitler211 proclama em 1933 o III Reich, passando a

instituir uma política fundamentada na ideologia nazista.

Como se vê, Heller nasceu num período de grande efervescência mundial e,

em especifico, na Europa. Nesta época, Budapeste - cidade natal de Agnes Heller -

era bem diferente daquela encontrada pelo chanceler alemão, Otto Von Bismark, em

1852 que, em uma missão para o rei da Prússia, em Buda, encantado pela beleza

da cidade, descrever numa carta endereçada a sua esposa:

[...] a vista é encantadora. As torres do Castelo no alto sobre a colina. Quando olho para baixo, vejo primeiro o Danúbio, sobrearqueado pela ponte pênsil; depois, a cidade de Pest e, atrás dela, estende-se a planície sem fim, fundindo-se no vapor azul-avermelhado da tarde. À esquerda de Pest, meus olhos podem vaguear rio acima; na sua margem direita, é, primeiro, margeado pela Cidade de Buda; em seguida, estão as montanhas azuis, mais azuis, finalmente vermelho castanhas, contra o céu inflamado da tarde. Separando as duas cidades, o largo espelho de água quebrado pela ponte pênsil e uma ilha cheia de árvores. (BISMARCK apud MONTGOMERY, 1999, p. 37).

211

Adolf Hitler (1889-1945), austríaco, foi líder do Partido Nazista a partir de 1921, tornou-se o ditador unipartidário e disseminou a ideia anti-semitista pelo mundo. Em 1933 proclamou o III Reich (império) alemão e a redenção da raça ariana. Pela sua grande capacidade de liderar as massas, foi instituído o slogan alemão “Ein Reich, ein Volk, ein Führer” – “um império, um líder, um povo”.

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Budapeste é a capital da Hungria, cidade cortada ao meio pelas águas do

Danúbio, rio tão exaltado pelos artistas e músicos ao longo dos anos. O Danúbio

divide a cidade em duas partes: Pest a parte baixa de onde pode ser avistada a

Colina do Castelo, que fica na parte alta da capital; e Buda, onde se localiza o

imponente Palácio Real e a Colina Gellért. As duas partes são ligadas por várias

pontes destacando a Széchenyi Lánchíd, ou Ponte das Correntes como é

popularmente conhecida. Cidade que é constituída por uma vasta cultura popular e

aristocrática nos seus mais de 1.000 anos de história.

O reino da Hungria foi estabelecido pelo Rei Estevão I, no ano 1.000 da era

cristã. Sua localização geográfica propiciou o desenvolvimento de uma cultura

aristocrática, própria na Europa Central num intercâmbio com a Europa Oriental e,

ao mesmo tempo, guarda a sutileza e simplicidade dos magiares212 e dos judeus.

Sua localização de fronteira, fez com que a Hungria sofresse ao longo dos anos,

pressões militares tanto do Oriente como do Ocidente.

Entre 1241 e 1242 sofreu a invasão dos mongóis. No século XVI a dos turcos

otomanos que ocuparam grande parte do país e o restante ficou sob o domínio da

casa dos Habsburgos da Áustria213. Com o fim do jugo otomano (1526-1718), toda a

Hungria passou a ser dominada pela aristocrática casa dos Habsburgos.

Em 1848, um levante liderado por Lajos Kossuth214, lutou pela independência

do país. Porém, um pedido de ajuda do imperador austríaco Francisco José ao czar

russo Nicolau I, fez com que as tropas russas esmagassem o levante. Em 1867

firmou-se o Império Habsburgo austro-húngaro, que duraria até o final da I Guerra

Mundial.

Segundo Konder (1980, p. 19),

[...] o império austro-húngaro era uma espécie de Frankentein, um monstro formado artificialmente com pedaços de diferentes organismos. Com a anexação da Bósnia, em 1908, ele se tornou o segundo Estado europeu, em matéria de superfície, e o terceiro, ao nível da população. O clima espiritual da chamada “Belle Époque” se fazia sentir em Budapeste quase com a mesma intensidade com que era vivido em Viena, capital do império.

212

Povos de origem eurasiana que migraram para a bacia dos Cárpatos no século X. Eles representavam a interface entre o Ocidente e o Oriente, entre a Europa e a Ásia, entre o cristianismo e o islamismo (SZABO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 12). A língua húngara tem influência direta desses povos. 213 Paul Kennedy, em seu livro Ascensão e queda das grandes potências (1989), traz um bom estudo sobre a dinastia dos Habsburgo. 214 Lajos Kossuth (1802-1894), político húngaro, líder do levante de 1848.

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Mas os espíritos mais lúcidos percebiam que havia alguma coisa de podre no ar e viam na futilidade reinante um sinal de fim de festa.

Realmente, entre 1871 e 1914 não houve nenhuma guerra na Europa em que

exércitos de grandes potências cruzassem alguma fronteira hostilmente

(HOBSBAWM, 2010). Porém, esta calmaria chegaria ao fim após o assassinato do

príncipe herdeiro do império austro-húngaro, Francisco Ferdinando em 1914,

estourando, assim, a I Guerra Mundial envolvendo todas as potências mundiais.

Nesse período, o desespero provocado pela escassez e pela inflação na

Rússia czarista, em 1916, conduziu à reativação do movimento grevista e a

manifestações populares. Estes eram os anúncios para o que se chamou de

Revolução Russa de 1917. No início deste ano, essas manifestações derrubaram a

autocracia czarista russa e, no final do mesmo ano, era instaurado o regime

socialista/comunista soviético.

Esses acontecimentos influenciaram decididamente o rumo da história da

Hungria. Em 1919, Béla Kun215, fundador do Partido Comunista Húngaro216, tentou

transformar a Hungria numa República Soviética: a República Húngara dos

Conselhos, que duraria apenas 133 dias. Após ser derrotada essa iniciativa, a

Hungria passou a ser governada pelo regente almirante Miklós Horthy217, chefe do

que ele afirmava ser o “reino da Hungria”, estabelecendo um Estado autoritário aos

moldes da oligarquia do século XVIII. Nesse período a Hungria era um país

estritamente agrícola, conforme já apontamos.

Após a 1ª Guerra Mundial, a Áustria e a Hungria não possuíam força militar,

nem qualquer potencial bélico. A Áustria tinha perdido Sudetenland, região industrial

localizada no nordeste da Boêmia, e a Hungria, foi obrigada a ceder grande parte de

seu território a Áustria, Tchecolosváquia, Iugoslava e Romênia.

215

Bela Kun (1889-1936), político comunista, dirigiu a República Húngara dos Conselhos. Ficou exilado em Viena e, posteriormente, na União Soviética, onde desempenhou diferentes funções dentro do partido. Foi executado durante o expurgo stalinista. 216

O Partido Comunista Húngaro foi formado em 1918. Originalmente denominado Partido dos Comunistas Húngaros, posteriormente, em novembro de 1944, passou a ser denominado Partido Comunista Húngaro. Com a fusão com os social-democratas, em junho de 1948, recebeu a denominação de Partido dos Trabalhadores da Hungria. Após o levante húngaro de 1956, o governo Kádár renomeou-o como Partido Socialista Operário Camponês da Hungria. 217 Miklós Hothy (1869-1957), Contra-Almirante da marinha habsburguesa que, em 1919, apoia a aliança contra a República Húngara dos Conselhos. Em 1920 é chefe do regime reacionário da Hungria. Destituído em 1944 pelo golpe nazista, é preso como prisioneiro de guerra pelos Aliados.

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Em entrevista publicada na Revista Ensaio, nº 13, István Mészaros218 afirma

que o período compreendido entre os anos de 1929 a 1933 foram tempos de crise.

Como se vê, Heller viveu seus primeiros anos, mergulhada num clima de intensa

crise econômica e efervescência política.

[...] éramos muito pobres, mal tínhamos o que comer, mas a pouca comida era valorizada. Estávamos sempre com bom ânimo, poderíamos rir e contar histórias juntos. Devo muito a meu pai... (HELLER, 2002, p. 24).

O pai de Agnes Heller era um homem cético e de vasta cultura. Foi ele quem

a conduziu para entender as diversas maneiras do mundo do espírito (da essência

do ser humano) e da erudição. (idem, p. 23).

Em entrevista a Francisco Ortega, Heller (2002) conta que aos quatro anos

seu pai lhe ensinou o imperativo categórico kantiano. O significado desse

aprendizado na vida de Agnes Heller, na mais tenra infância, sem sombra de

dúvidas, irá refletir de maneira significativa ao longo de sua trajetória e de sua

produção intelectual, sobretudo, pela importância que o seu pai teve em sua vida.

Heller, já na sua maturidade teórica, traz importante contribuição para o

estudo de Kant. Em suas análises sobre este pensador moderno, no texto intitulado

La “primeira” y la “segunda” ética de Kant219, publicado no livro Crítica de la

Ilustração, livro que contém uma série de trabalhos de Heller produzidos ao largo de

1970 que, com a mesma intencionalidade teórica, faz algumas reflexões críticas do

pensamento da Modernidade.

Nesse texto, expõe com maestria o imperativo categórico kantiano. Ao

analisar a obra de Kant entre os anos de 1780 e 1790, estabelecendo um diálogo

rigoroso entre Schiller (1759-1805), Goethe (1749-1832) e Simmel (1858-1918),

verificando primeiramente que Kant pretendia estabelecer uma teoria do

conhecimento e da ética, afirmando, assim, que Kant esperava que “[...] qualquer

criança de 10 anos pudesse compreender o imperativo categórico”220.

Segundo Barroco (2008, p. 139),

218

István Mészáros. Nasceu em Budapeste em 1930, começou a trabalhar como assistente de Georgy Lukács de 1951 até 1956. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade de Budapeste, porém, após o levante húngaro de 1956, exilou-se na Itália, onde lecionou na Universidade de Turim e posteriormente, indo trabalhar na Escócia, no Canadá e Inglaterra. Autor de uma vasta obra é considerado um dos mais importantes pensadores marxistas da atualidade. 219 HELLER, Agnes. Crítica de la Ilustração: las antinomias Morales de la razão. Trad. Gustau Muñoz e José Ignacio López Soria. Barcelona: Península, 1984, p. 21-96. 220 HELLER, 1984, p. 37.

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[...] Kant busca uma resposta ética para o antagonismo entre a defesa da liberdade e a luta por interesses privados. Sua saída é transcendental, pois sua ética permanece fiel aos princípios universais, mas se torna incompatível com a vida empírica.

Kant tinha como pressuposto que homens e mulheres são ao mesmo tempo

“ser de razão” e “ser empírico”, portanto, devem estabelecer uma regra que

expressasse através do dever, um convite objetivo à ação. Esta regra (ou fórmula)

foi denominada por Kant por imperativo categórico221.

Para Barroco (idem, ibidem),

[...] a doutrina do imperativo categórico baseia-se no principio da universalidade: uma norma é moral quando pode ser universalizável, quando ultrapassa os casos particulares e os interesses. Opondo-se ao utilitarismo moral, Kant entende que uma ação só é moral quando é independente de objetos externos, de móveis empíricos, sensíveis, logo, de utilidade ou de interesses e consequências concretas. É desse modo que necessidade e liberdade se separam: o mundo empírico é o espaço da necessidade; a liberdade é o espaço das ações humanas, da capacidade radical e teleológica que não se realiza, segundo ele, por necessidades causais.

222

No cerne do pensamento kantiano está o dever (uma deontologia223), ou seja,

um sistema de moral ou conjunto de deveres norteadores para a vida social. Kant

fez uma distinção224 entre Razão Pura e Razão Prática, entre Vernunft (mente) e

Verstand (intelecto; faculdade dos conceitos; propriedade intelectiva das

pessoas)225.

221 Não cabe aqui fazer uma análise aprofundada sobre o pensamento kantiano, porém, iremos expor os pontos que achamos importantes para situar essa base teórica da vida prática e intelectual de Agnes Heller. Para Heller, o imperativo categórico kantiano está sintetizado em quatro máximas morais: “[...] atua de maneira tal que a máxima de tua vontade possa servir sempre e também como principio de lei de caráter geral; atua somente conforme aquelas máximas que podes desejar que se converta em lei geral; atua como que a máxima de tua ação tenha que converter-se por tua vontade em lei geral e natureza; atua de tal maneira que trates a humanidade, tanto em tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e em todo momento como um fim e nunca como um simples meio” (HELLER, 1984, p. 56 – grifos nossos). Em nossas análises, percebemos que estes princípios compõem o alicerce do pensamento moral helleriano. 222 Grifos da autora. 223 Para Abbagnano (2007), entende-se por deontologia uma ciência da moralidade, ou seja, uma ciência que busque ensinar homens e mulheres como “dirigir suas emoções de tal modo que as subordine na medida do possível, ao seu bem-estar” (BENTHAN apud ABBAGNANO, 2007, p. 208). 224 Do grego - κρισεις – krisis, ordenança; distinção. 225 O objeto das reflexões de Kant é a liberdade e a felicidade e delas dependem, consequentemente, da natureza empírica os sujeitos particulares, ou seja, da força da autonomia (um agir-por-si-mesmo). Kant adota como terminologia epistemológica, o termo imperativo que segundo Abbagnano (2007, p. 628), pode ser entendido como uma analogia ao termo bíblico “mandamento”, que expressa uma norma da Razão, portanto, um dever. Distingue os imperativos (ou ordens da Razão) em hipotéticos

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A influência do pensamento kantiano no corpus teórico helleriano não pode

ser negada, porém, isso não quer dizer que podemos rotulá-la assim, aliás, somos

contrários, assim como Heller a qualquer “ismo” no sentido pejorativo da expressão.

É a própria Heller quem irá esclarecer esta questão:

[...] sou muito influenciada pela concepção de Kant. [...] De qualquer modo, porém, não sou kantiana, não só porque recuso a primeira ética de Kant, que se tornou depois a sua ética “clássica”, mas também porque não creio que o simples formalismo na ética possa servir como ponto de partida válido (HELLER, 1982, p. 160-161).

Voltando aos aspectos históricos, em agosto de 1934, morre o presidente da

Alemanha, Paul Von Hinderburg226. Assume no seu lugar, Adolf Hitler que é aceito

pelo povo como presidente e chanceler da Alemanha. O fascismo atraía o jovem

Adolf. Numa versão pessoal deste movimento, vislumbrava como o nazismo poderia

levá-lo a cumprir o que ele acreditava ser seu destino: limpar a Alemanha dos

“elementos impuros” e restaurar seu antigo sonho e poder: a supremacia da raça

ariana.

Para os judeus de toda a Europa iniciava-se um período de grande terror. Um

prelúdio de medo se abatia sobre a população judia pelo sentimento anti-semita que

começava a despontar com a perseguição de Hitler a este povo, principalmente na

Hungria após a 1ª Guerra Mundial.

De 1934 a 1944, a Hungria sofre com as invasões da Alemanha nazista em

suas fronteiras. Em 25 de julho 1934, Engelbert Dolfuss227, chanceler da Áustria, é

assassinado. O medo toma conta da Hungria contra o que significava o

aparecimento do exército alemão nas suas fronteiras.

Em agosto de 1938, Hitler toma a Áustria e traz o exército alemão para as

fronteira da Hungria. No dia 15 de março de 1939, invade a Boêmia. Em setembro

de 1939 inicia-se a II Guerra Mundial e, em 1940, a Romênia passa à subserviência

da Alemanha. No dia 21 de junho de 1941, Hitler lança seu ataque à Rússia.

(ou condicionais) e categóricos (ou absolutos). Estes, por sua vez, estão relacionados à prudência. Assim como os primeiros pensadores modernos, Kant acreditava que os indivíduos agiam naturalmente por interesses (forma natural do egoísmo humano) que levava a tratar as coisas e as pessoas como meio e/ou instrumento para a realização dos seus desejos. Portanto, caberia a Razão regular estas motivações instintivas da natureza humana. 226 Presidente da Alemanha de 1925 a 1934. 227 Engelbert Dollfuss (1892-1934), político austríaco socialista-cristão. Foi assassinado pelos nazistas, durante um golpe de Estado em 1934.

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Até 1943 um milhão, duzentos e cinquenta mil judeus ainda estavam vivos

tanto na Hungria, como na Eslováquia, Romênia e Bulgária. Até março de 1944, a

Hungria era o único país europeu em que os judeus (em torno de um milhão)

poderiam viver com segurança. No dia 19 de março de 1944, as tropas alemãs

chegam a Budapeste e a Hungria passa a ser submetida ao nazismo de Hitler:

[...] a fúria de Hitler contra a Hungria foi, em grande parte, provocada pela proteção concedida aos judeus, dos quais um grande número sobreviveu ao período nazista na Hungria, pois, na época em que os exércitos alemães realmente assumiram o comando, Hitler estava próximo do seu fim. (MONTGOMERY, 1999, p. 107).

Este período trará à memória de Agnes Heller cicatrizes profundas. De

ascendência judia, Heller tinha verdadeira admiração pelo pai que, por seu

conhecimento da língua alemã, ajudava muitos judeus a reunir documentos para

escaparem do horror da perseguição nazista aos povos semitas.

Ao longo da história da Hungria, os judeus tiveram uma longa e especial

ligação com o país. Assim como os magiares, que eram considerados povos

itinerantes que encontraram na Hungria, campo para uma verdadeira simbiose entre

os seus compatriotas e se identificaram com aquele território historicamente

cobiçado e esfacelado.

Os judeus tiveram papel fundamental no desenvolvimento econômico,

cultural, político e social da Hungria. Em Budapeste, encontraram campo fértil para o

seu enriquecimento, ocupando lugar de destaque na vida social e intelectual

húngara. Contudo, também enfrentaram momentos de perseguição, principalmente

no período em que a Hungria esteve sobre ameaça e sob o jugo do nazismo

alemão.

No dia 19 de março de 1944, o exército nazista alemão invadiu a Hungria,

Heller era uma adolescente judia de quatorze anos. John Flournoy Montgomery228

descreve este acontecimento:

[...] à meia-noite de 18 para 19 de março [1944], poderosas forças alemãs, somando onze divisões e incluindo trens blindados, armas motorizadas e os mais pesados tanques “tigre”, partiram da Áustria para o território húngaro, chegando a Budapeste às quatro horas da manhã. Simultaneamente, os campos de pouso húngaros foram invadidos por tropas de paraquedistas,

228 O livro de Montgomerry foi escrito no calor das cinzas da II Guerra Mundial. Foi embaixador dos Estados Unidos na Hungria entre os anos de 1933 a 1941. Seu livro foi editado pela primeira vez em 1947.

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que encontraram somente leve resistência, pois todas as forças húngaras estavam concentradas nas fronteiras leste e sudeste da Hungria. Temendo a retaliação dessas tropas, os alemães, auxiliados por tropas romenas, fecharam a metade lesta da Hungria na linha do rio Tisza, para prevenir seu contato com Budapeste, mantendo esse controle por várias semanas. (MONTGOMERY, 1999, p. 189).

Nessa época, Heller experimentou sua primeira experiência traumática: o

holocausto. Perdeu amigos e parentes, mas a perda maior foi seu pai, que fora

deportado juntamente com cerca de 450.000 outros judeus húngaros para os

Campos de Concentração de Auschiwitz. Seu pai foi morto antes do final da II

Guerra Mundial. Sobreviveram sua mãe e sua tia, irmã de seu pai, e ela.

Com a derrota da Alemanha na 2ª Guerra Mundial, os países Aliados

(Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia, Bulgária, Albânia e a Hungria)

passaram a fazer parte da zona socialista, assim como parte da Alemanha ocupada

pelo Exército Vermelho Soviético, tornando-se, assim, países satélites da ex-URSS

(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), sob o domínio de Josefh Stalin229,

líder soberano da URSS de 1922 até 1953, ano de sua morte.

Essa experiência e o contato com os regimes totalitários daquele período,

exerceram enorme influência sobre sua vida intelectual posteriormente. As questões

relacionadas à ética e a moral nasceram nesta fase. Seus primeiros

questionamentos foram: por que as pessoas fazem tais coisas? Qual a fonte do bem

e do mal? Podemos descobrir as fontes da moralidade e do mal? (POLONY, 1997).

O seu interesse pelos assuntos sobre a moralidade, entendida por Heller230

como a “[...] conexão da particularidade com a universalidade genericamente

humana”231 que, em outras palavras, é o modo como as pessoas estabelecem as

normas e regras para a vida em sociedade, está relacionado com a violência vivida

por ela no período de sua juventude até a sua saída da Hungria.

Outras questões de cunho social também fizeram parte das reflexões de

Heller: “[...] Que tipo de mundo pode produzir experiências como a do holocausto?

Como podem as pessoas fazer tais coisas? Haverá uma “redenção”?”232.

229 Joseph Vissarionovich Djugashvili (1879-1953), adotou o nome de Stalin (homem de aço) em 1912. Em 1917 após a vitória da Revolução, revolucionário, político e estadista soviético. Em abril de 1922, foi eleito Secretário Geral do Partido Comunista, posição que ocupara até a sua morte em 1953. Após a morte de Lênin, em 1924, Stalin introduziu sua teoria do "socialismo em um só país", instaurando um regime altamente totalitário e de grande repressão. 230

HELLER, 2004, p. 05. 231 Grifos da autora. 232 POLONY, 1997.

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Mais tarde, ao analisar este período e a sua filosofia, Heller irá dizer: “[...] Eu

sentia que eu tinha uma dívida a pagar por ser uma sobrevivente”233.

Após a 2ª Guerra Mundial, aos 15 anos, Heller abraçou a causa sionista, um

movimento político-filosófico que defendia à autoafirmação do povo judeu e a

existência de um Estado independente e soberano para este povo: o Estado de

Israel234. Acreditavam que esta “redenção” viria de Sião (ou Tzion)235, daí o seu

nome.

Nessa época, pelo grande número de judeus em Budapeste, grupos de

jovens sionistas se reuniam aos domingos na montanha de Swábheggy, perto da

capital. Acreditavam que seria necessário uma bichá (fuga), já que as tropas de

Hitler marchavam em direção da Hungria. Muitos desses jovens fugiram para a

Palestina. Salo W. Baron comenta que “[...] por detrás do movimento sionista estava,

obviamente, os antigos anseios judaicos de uma restauração da terra dos

antepassados”236: a “Terra Prometida”, segundo os ensinamento da Torá237.

Heller, nessa ocasião, assim como muitos/as jovens sionistas, pretendia ir

para a Palestina, mas, aos 17/18 anos mudou de ideia e optou por permanecer na

Hungria para estudar física e química na Universidade de Budapeste.

Sua filiação ao movimento sionista remete ao ideário de uma “redenção”.

Heller via nesse movimento uma forma de libertação, segundo ela, da grande

opressão sofrida pela invasão dos regimes totalitários à Hungria.

[...] Eu não estava interessada em nacionalismo, e sim nos kibutzes e nas comunidades. De qualquer forma, o movimento sionista funcionava para nós como um tratamento psicanalítico. Afinal, éramos pessoas que tínhamos sido inteiramente excluídas das comunidades húngaras. Não só pelo estado de extremo perigo, como éramos intrusos por definição. Para nós, caminhar nas ruas de Budapeste e cantar as canções sionistas era uma espécie de terapia sartriana (HELLER, 2002, p. 28).

233 POLONY, 1997. 234 Podemos encontrar maiores detalhes sobre a consolidação do estado de Israel no Best Sellers de Leona Blair, “Cada mulher em seu lugar” (título original: A Woman’s Place), editada em 1981. O romance foi traduzido para o português e editado pela Editora Nova Cultural, em 1988, sob licença da Distribuidora Record, Rio de Janeiro. 235 Referente à região próxima a cidade de Jerusalém, onde se localiza o Monte Sião, local do Templo construído pelo rei David das narrativas bíblicas. 236CODEIRO, Hélio Daniel. Sionismo: o judaísmo como práxis política. Disponível em: www.judaica.com.br/materias/002_09e11.htm, nº 002, maio-junho/1997, acesso em 25/05/2012. 237

Livro sagrado para o povo judeu composto, em analogia, os cinco primeiros livros da Bíblia cristã, onde se mostra a libertação do povo hebreu da escravidão do Egito e a promessa de uma “Terra Prometida”.

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Nesse período, Heller leu o romance bibliográfico de Marie Curie, escrito por

sua filha, Eva Curie, Nesta época, havia grande efervescência dos Movimentos

Feministas pelo mundo todo, em que as mulheres buscavam sua autoafirmação -

enquanto gênero – e sua libertação da cultura machista. Heller percebeu que uma

mulher também poderia realizar grandes feitos. Diante do exemplo de Marie Curie,

nasceu a vontade de ser cientista. Esta vontade estava implícita no seu desejo de

fazer alguma coisa para o mundo por ter sobrevivido aos horrores do holocausto e

do nazista alemão. Decidiu, então, estudar física e química.

Abrimos um parêntese para registrar aqui a história de Marie Curie, ou

simplesmente Madame Curie, por considerarmos digna de nota, porém, não se deve

confundir esta personalidade histórica com Agnes Heller, ambas, percorrem

caminhos bem distintos.

No outono de 1891, a jovem polaca Marie Sklodowska matriculou-se no curso

de Ciências da Universidade Sorbonne, em Paris. Causava estranheza aos seus

colegas pelo seu ar tímido, expressão obstinada e vestuário austero e pobre.

Escolhia sempre o primeiro lugar nas aulas de Física e considerava perdido qualquer

momento em que não estivesse dedicando-se aos livros.

Sua obstinação pelos estudos era tão grande que ficava horas a fio a

escrever números e equações, sem se dar conta de que suas mãos se enrijeciam e

seu corpo tiritava de frio dado ao fato de não acender a lareira para economizar

carvão. Ficava até semanas inteiras sem ingerir qualquer alimento além de chá e

pão. Conta-se que quando queria festejar algum acontecimento mais feliz, comprava

dois ovos, um chocolate e duas ou três frutas. Tal regime a deixou com uma saúde

frágil.

Esta paixão científica, aos vinte e seis anos de idade, fez com que ela

desenvolvesse uma feroz independência pessoal. Em 1894 conhece aquele que

seria seu companheiro, o cientista Pierre Curie. Em poucos meses, Pierre a pediu

em casamento. Porém, casar-se com um francês significava ter que abandonar a

sua volta à Varsóvia e sua família, conforme os costumes da época. Decorreram-se

dez meses para que Marie aceitasse a proposta de Pierre.

Até fins de 1897, Marie tinha obtido dois diplomas universitários, uma bolsa

de estudos e publicado um importante trabalho sobre magnetização do aço

temperado, porém sua meta era o Doutorado. Ao procurar um objeto para suas

investigações, descobriu numa recente publicação do eminente francês Antoine

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Henri Becquerel238, que apontava para um elemento químico desconhecido nas

partículas do urânio. Sua obstinação pela ciência faz com que assumisse,

juntamente com seu marido, uma longa empreitada na busca de elemento

radioativo.

Em julho de 1898, o casal anuncia o descobrimento de uma dessas

substâncias, a qual Marie deu o nome de Polônio, em homenagem a sua terra natal

e, em dezembro do mesmo ano, revelaram a existência do segundo elemento: o

rádio. Esta pesquisa demorou cerca de quatro longos anos e de incansáveis

experimentos.

Podemos imaginar como Heller ficou impressionada ao tomar contato com a

história dessa primeira mulher no mundo a ganhar o Prêmio Nobel, num período em

que somente os homens iam às universidades e como ficou surpresa,

principalmente, ao descobrir um elemento químico que iniciou uma verdadeira

revolução nas ciências e na medicina.

Em 1943, um maravilhoso filme foi produzido em sua homenagem: Madame

Curie239, do qual destacamos o seu discurso na Faculdade de Ciências da

Universidade de Paris pronunciado em comemoração ao vigésimo quinto aniversário

da descoberta do rádio:

Mesmo agora, após vinte e cinco anos de pesquisa investigativa, sentimos que ainda há bastante para ser feito. Nós fizemos descobertas. Pierre Curie, nas sugestões que encontramos em suas notas e nos pensamentos expressados, nos ajudou e guiou até eles. Mesmo que apenas um de nós não possa fazer muito, cada um talvez possa pegar um pouco de sabedoria ainda que modesto e insuficiente, mas que pode despertar o sonho do homem de alcançar a verdade. Por meio dessas pequenas luzes em novas trevas é que veremos pouco a pouco os esboços desse grande projeto que dá forma ao universo. Eu estou entre aqueles que pensam que por este motivo, a ciência tem grande beleza e com sua grande força espiritual limpará um dia este mundo de seus males, sua ignorância, pobreza, doenças, guerras e mágoas procurem a clara luz da verdade. Procurem estradas novas desconhecidas mesmo quando a visão dos homens alcançar mais longe que agora. A maravilha divina nunca falhará. Cada época tem seus próprios sonhos. Deixe então os sonhos de ontem para trás. Você, tome a tocha do conhecimento e construa o palácio do futuro.

(MARIE CURIE).

Estas palavras apaixonadas, carregadas de um idealismo messiânico de

Marie Curie, vão bem ao encontro do que Agnes Heller pensava naquela ocasião.

238

Antoine Henri Becquerel (1852-1908), físico francês que descobriu acidentalmente aquilo que fora mais tarde denominado por radioatividade. 239

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=L49iSpEl8FU.

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Seu desejo de autoafirmação e de uma “redenção”, a impulsionou para matricula-se

no curso de Física e Química da Universidade de Budapeste. Acreditava que tinha

uma “dívida para com a humanidade”240 – sua “redenção”. Este pensamento fez com

que se interessa pelas ciências naturais – física e química.

Queria ser igual aos homens, porém, não queria perder as suas

características femininas. Sua autoafirmação feminista, provavelmente tem a ver

com influência de sua tia:

[...] tive uma tia que era uma feminista bastante aguerrida. Usava roupas masculinas, comportava-se como homem e recusava todo dever feminino como algo tradicional. Mas recusava não só os deveres femininos, como também as alegrias femininas. Eu tinha grande respeito por ela, mas – ao mesmo tempo – experimentava também uma estranha sensação; parecia-me que não conseguiria jamais me assemelhar a ela. Queria ser uma mulher cientista, mas continuar de algum modo a ser mulher; e isso me parecia impossível. (HELLER, 1982, p. 197-198)

241.

Assim, Heller desistiu da ideia de ir para a Palestina e resolveu estudar na

Universidade Eötvös Loránd. De acordo com as informações contidas no site dessa

instituição242, esta Universidade é uma instituição de ensino superior situada no

centro de Budapeste e possui um rico passado científico-cultural. Seus antecedentes

remontam a data de sua fundação no ano de 1635, na cidade de Nagyszombat (hoje

Trnava, Eslováquia). Fundada pelo cardeal Péter Pázmány, como universidade

católica para o ensino da Filosofia e da Teologia.

Em 1667, criou-se nesta Universidade uma Faculdade de Direito e, em 1769,

uma Faculdade de Medicina. Entre 1770 e 1780 a Universidade foi transferida para

Buda e mais tarde para Pest e com o apoio da rainha da Hungria Maria Teresa,

converteu-se na Universidade Real Húngara. Em 1950, a Universidade foi

remodelada e passou a chamar-se Universidade Eötvös Loránd, em homenagem a

um dos seus mais antigos professores: o físico de renome mundial, Loránd Eötvös.

Neste mesmo período, Georgy Lukács, regressava à Budapeste assumindo a

cátedra de Estética e Filosofia da Cultura nesta mesma Universidade243. Lukács se

240 POLONY, 1997. 241 Entrevista a Ferdinando Adornato em sua última estada na Itália. Traduzida por Carlos Nelson Coutinho e publicada pela Editora Brasiliense em 1982. 242

Disponível em: http://www.eltebtk2.hu/portugues.asp, acesso em 15/07/2012. 243

Entre os anos de 1930/1931, Lukács trabalhou no Instituto Marx-Engels de Moscou; representou papel ativo na vida literária do Partido Comunista Alemão, em Berlim entre 1931/1933; trabalhou no Instituto Filosófico da Academia de Ciências de Moscou, de 1931/1944; e ajudou a editar publicações literárias, retornando, então, a Hungria sob o regime de Mátyás Rákosi (1945-1956). Por causa das

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reinstala em Budapeste em 1º agosto de 1945. Ligado à vida política, exerceu

intensas atividades de grande ressonância pública, não só no Parlamento Húngaro

como também na direção da Academia de Ciências e na Universidade.

Heller já frequentava, nessa ocasião, o curso de Física e Química, quando

seu namorado a convidou para assistir uma aula de Filosofia da Cultura proferida por

Lukács. A princípio Heller relutou, pois achava que Filosofia não era ciência. Seu

ideal era ser cientista como Madame Curie, portanto, seria inútil aquela aula, mas

por insistência de seu namorado, foi.

[...] Então, eu estava lá sentada ouvindo a elaboração de Lukács sobre Shelling ou Hegel - não me lembro exatamente - eu comecei a perceber que eu não tinha entendido nada sobre o que ele estava falando, mas havia algo que eu entendi: ele falou sobre a coisa que é a mais importante de todas as coisas do mundo e que eu precisava compreendê-la [...], basicamente, era algo que estava preocupada: o sentido da vida. (POLONY, 1997).

A busca pelo sense of life, ou seja, entender o mundo em que estava inserida,

passou a ser o motivo de sua vida: sua inspiração, ou se quisermos, “sua redenção”.

Percebeu que ao invés de estudar as ciências duras, precisava entender primeiro o

mundo no qual se inseria, principalmente, entender a relação entre o bem o mal e as

pessoas. Nas suas entrevistas, Heller sempre aponta que Lukács foi a segundo

pessoa mais importante de sua vida, a primeira foi seu pai:

“[...] depois de meu pai, Lukács é a segunda pessoa mais influente em minha vida. Fui sua aluna até 1949. [...] Quando me tornei estudante e Filosofia, Georgy Lukács era o único filósofo que ensinava na Universidade de Budapeste. De fato, nunca teria me tornado aluna de Filosofia sem a presença de Lukács” (HELLER, 2002, p. 38).

Imediatamente, Heller deixou as aulas de Química e Física e passou a

frequentar as aulas de Lukács, tornando-se estudante de Filosofia e, mais tarde,

estudante de Filosofia e Literatura húngara.

[...] Eu decidi que este era o meu destino e escolhi eu mesma, naquele momento, ser uma filósofa. Cheguei à conclusão de que você nunca se desenvolve. No momento em que você escolhe a si mesmo como um filósofo você é como um filósofo. (POLONY, 1997).

perseguições stalinistas, deixou a vida partidária e se dedicou a vida universitária. (LICHTHEIM, 1973, p. 10). Maiores informações sobre Lukács podem ser encontradas em LICHTHEIM, 1970; KONDER, 1980; NETTO, 1983; NETTO, 1992; LÖWY, 1998.

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A partir de suas indagações e a busca de um sentido para a sua vida, Heller

começa a traçar seu próprio caminho na busca de respostas para o conhecimento e

reflexão da realidade e do significado das coisas.

A busca pelo saber é uma característica própria do gênero humano. A sua

fundamentação está na concepção de que, por natureza, o humano tende ao saber,

não só deseja o saber, mas também pode obtê-lo. Este saber não é privilégio ou

patrimônio reservado a poucos, mas, qualquer um pode contribuir para sua

aquisição e enriquecimento (ABBAGNANO, 2007, p. 516).

Na visão de Heller (1983)244, a tarefa primordial da filosofia deve ser, portanto,

a construção de um mundo e não apenas, a formulação de uma máxima que busque

explicar a natureza das coisas e dos fenômenos.

Na concepção helleriana, o papel da filosofia é de “desmitização”. É pôr em

questão, o óbvio. Não deve se colocar como um saber supremo, mas como um

saber que se dá no próprio processo do conhecimento, na própria interrogação entre

sujeito e objeto, no próprio questionamento e, segundo Descartes (1596-1650), na

própria dúvida. Mas não é um saber mítico e/ou místico, de existência própria. Mais

do que isso, é um vir-a-ser, um ir ao encontro da verdade, não enquanto a busca de

uma Verdade Absoluta, mas sim de um conhecimento mutável e dialético.

Em outras palavras, para Heller, a filosofia não implica um “descaminho” ou

um “engano”, mas revela a suprema tarefa de buscar o conhecimento que se revela

no realizar-se se realizando. Nas palavras de Heller, “[...] a filosofia desmistifica”245:

[...] a razão é o sujeito do conhecimento. [...] O homem da filosofia é o “ser dotado de razão”. A filosofia contrapõe à ambiguidade imaginosa da mitologia a univocidade da argumentação radical. Da tradição mitológica, nada pode ser questionado; ao contrário, a filosofia exige que seja posto em discussão tudo o que a própria razão não compreenda. A vantagem de não saber nada não é mais do que um convite ao pensamento, o pensar em comum, uns com os outros. O “exercício da filosofia” significa: “vem, pensar comigo, vamos conhecer juntos!”. O filósofo guia o que pensa e o conduz através da argumentação para a clara luz do Verdadeiro e do Bem. (HELLER, 1983a, p. 15-16)

246.

244

Em A Filosofia Radical (HELLER, 1983a), editada pela primeira vez no Brasil em 1983, pela Editora Brasiliense, Agnes Heller discute temas relacionados à filosofia e a vida, problemas do cotidiano, questões das necessidades radicais e revolução. Esta obra encontra-se na fase intermediária de Heller, ou seja, do desencanto com a visão marxista de mundo relacionada aos acontecimentos do Leste Europeu, em outras palavras, o rumo que tomava o pensamento de Marx na Ex-URSS. Heller começa a encaminhar suas análises para o imperativo categórico kantiano. Nesta obra ainda traz elementos de sua Teoria dos Carecimentos. Portanto, ao utilizar estas análises, buscamos extrair especificamente o que se refere às influências do pensamento marxista. 245 HELLER, 1983a, p. 15. 246 Grifos da autora.

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Com efeito, “[...] a filosofia constrói o seu mundo sobre a argumentação

racional”247. Contudo, sua busca por elementos não se dá na abstração, mas sim no

real, no concreto, no cotidiano da vida. A construção filosófica deve partir sempre da

empiria da vida cotidiana: “[...] a filosofia constrói o seu mundo sobre argumentação

racional. [...] Só é verdadeiro o que todo homem pode reconhecer como tal, por meio

de sua própria razão”248.

Heller afirma que “[...] toda filosofia é utopia”249. Mas, o que podemos

entender por utopia250? Seria um projeto irrealizável? Uma quimera? Ou até mesmo,

traduzida conforme o pensamento de Thomas More (1478-1535) ao descrever seu

“reino ideal”, o “reino da fantasia”, o “não-lugar”? Na concepção helleriana, a

filosofia, enquanto “utopia radical”, é o “conhecimento racional da essência

racional”251 que implicaria numa “atitude filosófica”, ou seja, numa vivência da própria

filosofia.

Heller sintetiza, com maestria, que a filosofia deve oportunizar a possibilidade

da reflexão: “como deves pensar”; como “deves agir”; como “deves viver”. Por

conseguinte, o “como deves viver” está contido no “como deves pensar” e no “como

deves agir”252, portanto, uma determinada práxis.

[...] Toda filosofia só se pode constituir quando revelou a falsa autoconsciência da outra. [...] Toda filosofia oferece uma forma de vida; toda filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de uma outra forma de vida, [...] as objetivações filosóficas incitam o receptor a refletir sobre o modo como deve pensar, como deve agir, como deve viver (HELLER, 1983a, p. 31-33).

Para Heller,

[...] todas as filosofias exprimem simultaneamente uma visão de mundo e uma atitude ativa relativamente a ele. Ser filósofo significa antes do mais duas coisas: criar uma visão do mundo que esclarece o seu conteúdo objetivo de uma maneira mais global e profunda do que anteriormente e, ao

247 HELLER, 1983a, p. 19. 248 HELLER, 1983a, p. 19. 249 HELLER, 1983a, p. 20. 250

Utopia (grego – ou = não; topos = lugar), esse não-lugar, assume o lugar de algo ideal, mas não algo ilusório extraído do “mundo das ideias” platônico, mas sim um projeto real que parte da realidade para o mundo das formulações, para depois, novamente, retornar ao mundo concreto. (ABBAGNANO, 2007, p. 1173). 251 HELLER, 1983a, p. 25-26. 252 HELLER, 1983a, p. 19.

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mesmo tempo, incorporar nas atitudes sociais e éticas as consequências práticas dessa nova visão (HELLER, 1982a, p. 85).

A Filosofia, sem sombra de dúvidas, permitiu que Heller conhecesse as

diversas expressões conceituais nas mais diferentes visões de mundo e de humano

e, pela presença e influência de Lukács, além do campo da erudição, também se

empreendeu no campo da política e da visão marxista.

3.3. Heller e o marxismo

Nos quatro anos que se seguiram, Lukács participou ativamente da vida

cultural europeia (NETTO, 1983). Fez diversas viagens proferindo seminários e indo

a encontros em vários países da Europa, publicou várias obras, artigos e ensaios em

sua língua natal e participou ativamente da vida política húngara.

Em 1947, Heller abraçou a causa socialista e entrou para o Partido Comunista

Húngaro. Para ela, o comunismo, naquela época, oferecia a possibilidade de uma

“comunidade internacional”, proposta que se identificava com seus ideais sionistas,

apesar de ter desistido de abraçar esta causa. O comunismo lhe parecia uma

proposta mais ampla e mais real.

[...] como já tinha sido sionista, era considerada suspeita. Não confiavam em mim. Aqueles que se vincularam em 1945, por não serem suspeitos, tornaram-se todos funcionários e se submeteram a coisas horríveis. Como não poderia me tornar funcionária, sempre ocupei as posições mais inferiores dentro do partido. Dessa forma, pude preservar minha naturalidade e jovialidade, além de uma visão relativamente objetiva dos fatos. Fui membro do partido por apenas dois anos, quando perdi essa condição por uma razão muito inocente. Inocente porque resolvi dizer o que pensava durante uma reunião. Eu acreditava que o partido comunista fosse democrático, mas não era bem o caso. (HELLER, 2002, p. 28-29).

Heller foi expulsa pela primeira vez do Partido Comunista Húngaro em 1949:

[...] fui expulsa do partido e poderia ter sido expulsa da universidade, se não fossem Georgy Lukács, de quem já era aluna naquela época, e Fogarasi, outro filósofo húngaro. Depois disso, deixei de acreditar no comunismo soviético, embora ainda acreditasse no ideal comunista. (HELLER, 2002, p. 29).

Portanto, a vinculação de Heller à causa comunista era, naquele momento, a

que atendia melhor aos seus anseios – a redenção. O comunismo oferecia uma

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explicação do por que do sofrimento espalhado pelo mundo: “[...] a segunda via de

algo”253.

[...] Em filosofia você precisa de uma redenção e de liberdade para as respostas. O partido oferecia a redenção, mas não a capacidade de pensar com a própria mente. [...] O marxismo sim (POLONY, 1997).

Heller queria pensar por conta própria e, no interior do partido não encontrou

essa possibilidade.

[...] Em filosofia você precisa de uma redenção e respostas a essas perguntas. Mas você precisa de algo mais, você precisa da capacidade de pensar com sua própria mente. Você precisa de redenção e da liberdade de pensar com a própria mente.Você precisa de ambos, mas houve um choque entre os dois. O partido ofereceu um esquema de resgate, mas nunca permitia que você usasse sua própria mente. Havia uma contradição entre essas duas coisas. Na verdade é assim que eu primeiro vivi o marxismo. Mais tarde é que me tornei marxista, enquanto eu estava bastante hostil ao comunismo húngaro. Esta foi uma duplicidade ou uma ligação dupla, se você quiser. O marxismo sim, porque ele prometia uma redenção, mas esta forma de comunismo não, porque não permite que você pensasse com a sua própria mente. (POLONY, 1997).

A implantação do socialismo na Hungria foi diferente da União Soviética. Os

tanques de guerra no final da 2ª Guerra Mundial trouxeram consigo graves

consequências para a absorção deste sistema pela população húngara.

Muitas pessoas foram parar nas prisões soviéticas ou nos gulag, uma espécie

de rede de campos de concentração stalinistas, oficialmente conhecidos como

Campos Correcionais de Trabalho. Estima-se que cerca de dez milhões de pessoas

estiveram sobre as frentes de trabalhos forçados. Muitos eram presos políticos,

opositores do regime comunista.

Szabo (SZABO, SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006) tece consideráveis

comentários sobre este evento. Na Hungria, o governo de ocupação soviética

concentrou punições pesadas sobre os líderes e capitalistas. Entre a coletivização

forçada e os incessantes expurgos de toda oposição possível, Stalin destruiu muitas

vidas. Stalin não só governou com mão, mas também, com luvas de ferro.

Em 04 de novembro de 1945, houve eleições multipartidárias na Hungria,

vencendo o Partido dos Pequenos Proprietários Rurais. O presidente do partido,

Zóltán Tildy254, visando uma conciliação e tendo como propósito evitar confrontos,

253 POLONY, 1997. 254 Zóltán Tildy (1989-1961), protestante influente na Hungria, foi presidente do país num curto período pós II Guerra Mundial, empreendeu oposição antissoviética revolucionária.

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mantém relações cordiais com o Partido Comunista Húngaro e a União Soviética,

compõe um governo comunista que vai de 1946 a 1948, quando é deposto pelas

forças soviéticas.

Com a eclosão da “Guerra Fria”255 e da política anti-inquisidora das cruzadas

anti-comunsitas liderada pelos Estado Unidos, os soviéticos resolveram “apertar os

parafusos” nas eleições de 1947/1948, com o objetivo de instaurar um regime

monopartidário em todo o Leste Europeu, formando, assim, um bloco comunista sob

o comando da União Soviética. Na Hungria, novas eleições são chamadas em 31 de

agosto de 1947, porém,

[...] acatando as instruções de Stalin de acelerar o processo de implantação do socialismo e entendendo que não chegaria ao poder através das eleições, o Partido Comunista muda de tática: em vez de tomar o poder lenta e gradual, opta pela eliminação dos mecanismos democráticos até a obtenção total do poder na Hungria. (SZABO, SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 16-17).

Heller (1982b) aponta que no período compreendido entre os anos de 1945 e

1949, foram os anos do terror fascista de Stalin na Hungria. Libertos da invasão

nazista, acabaram nas “mãos de ferro” de Stalin. Nas eleições, os partidos de

esquerda na Hungria recebem uma grande porcentagem de votos, porém, ao

mesmo tempo, os campesinos e os trabalhadores começaram a se organizarem

sobre a base de uma autoadministração local.

No cabo dos quatro anos mais de 300.000 pessoas (dos 10 milhões de sua

população), foram deportadas para os campos de trabalhos forçados soviéticos e

dezenas de milhares foram encarceradas ou executadas.

O Partido dos Trabalhadores da Hungria declarava-se marxista-leninista e

tinha como meta a construção do socialismo. Em março de 1948, as empresas com

mais de cem funcionários são estatizadas, Mátyás Rákosi256 é eleito primeiro

secretário do Partido dos Trabalhadores da Hungria. Rákosi era rígido no

255

A “Guerra Fria” aparecia no cenário mundial como uma “guerra ideológica” inspirada na crença da indestrutibilidade dos sistemas comunistas, muitas vezes alimentadas pelos próprios comunistas que favoreciam a espionagem e a políticas ultraconservadoras. Os americanos partilhavam a ideia de que o socialismo e o comunismo eram “perversões totalitárias”. 256 Mátyás Rákosi (1892-1971), político comunista que em 1919 foi vice-comissário da República dos Conselhos e, em 1925 é preso e condenado por atividades ilegais, sendo solto em 1940 e mandado para a União Soviética. Em 1945 voltou para a Hungria como chefe dos comunistas. De 1945 a 1956 foi secretário-geral do Partido Comunista Húngaro e primeiro-ministro, sendo destituído em 1956. Viveu até a sua morte na União Soviética.

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cumprimento do seu programa que, na opinião de Lukács (1999), era um mero

utilitarista.

Segundo Ladislao Szabo257 (SZADO, AGRILLO, AQUINO, AUBERT, 2006, p.

21), com Mátyás Rákosi, “[...] instalou-se na Hungria uma ditadura do proletariado

que o poeta Gyula Illyés258 chamou de ‘reino sangrento do Rei Ubu’259”. Nesta

época, os conflitos intrapartidários eram frequentes.

Entre os anos de 1949 a 1950, Lukács foi arduamente atacado e criticado. A

chamada “questão Lukács” era uma “campanha de descrédito ideológico”. Acusado

de “revisionista” até de “caluniador de Lênin”. (NETTO, 1992).

As decepções de Heller com relação ao rumo que o comunismo tomava no

Leste Europeu, principalmente, na Hungria, tinham como referência, segundo ela, o

forte totalitarismo e da perseguição àqueles/as que eram contrários/as a estes

acontecimentos. Tal situação, fez com que ela refletisse que “[...] a essência estava

certa apesar de todas as aparências estarem erradas”260.

Para Heller, um movimento que busca certa “redenção”, que busca aliviar ou

alterar as condições de exploração e alienação, não pode ser despótico e violento.

Suas indagações, assim, se reafirmaram: Por que há sofrimento? Por que há

opressão? Por que há pessoas que agem desta forma? (POLONY, 1997).

Os anos de 1950 foram de grande efervescência histórico-social e político da

Hungria. Em 1951, cerca de 14 a 15 mil pessoas são deportadas da Hungria, sob a

acusação de serem suspeitas de terem apoiado o regime de Horthy. Em

contrapartida, um número considerado de pessoas obtinham acesso aos benefícios

sociais.

O regime comunista instaurou uma série de medidas visando melhorar a

situação da população húngara, porém, esta, vivia sob um regime de tensão: a

qualquer momento alguém poderia ser questionado, preso ou condenado. Em 1951

Lukács foi forçado a abandonar a vida pública. Rákosi punha em execução uma

política agressiva de industrialização, buscando a modernização do país, seguindo,

257 Ladislao Szabo trabalhou em 1989 na cobertura da mudança do regime húngaro para a Folha de São Paulo. Tradutor, entre outros, de Dezsö Kostolányi e S´sndor Márai. Organizou o livro Hungria 1956...e o muro começa a cair devido a sua fluência do idioma húngaro, tendo, dessa maneira, acesso direto às fontes daqueles país. 258

Gyula Illyes, (1902-1983), poeta, romancista, dramaturgo húngaro, figura de destaque na literatura húngara. Apoiou a breve república soviética liderada por Béla Kun em 1919. 259

Referência à encenação teatral do texto Ubu Rei do escritor francês Alfred Jarry (1873-1907). 260 HELLER, 2002 p. 29.

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de certa forma, o modelo soviético. A Hungria, país basicamente agrário, sob o

regime de Rákosi, transformou-se num país industrializado.

A vida cultural, intelectual e literária, era coordenada pelo dirigente comunista

József Révai261. Mészáros (1984), que nessa época era assistente de Lukács, conta

que este realmente foi um período difícil e que Lukács vivia muito isolado. Konder

(1980) aponta que ele se concentrava em seus escritos e ministra aulas para um

público reduzido de alunos na Universidade. Neste período, em 1952, Heller se

licenciou em filosofia pela Universidade Eötvos Lóránd, em Budapeste.

Porém, novos acontecimentos vieram dar novo fôlego a Lukács e seus

discípulos. Em 05 de março de 1953 morre Stalin. Começa a despontar um período

de profundas modificações políticas na Europa Central e Oriental (NETTO, 1992).

Na Hungria, ocorrem amplas mobilizações no sentido de democratizar o regime pós-

stalinista, que culminaria com a Revolução Húngara de 1956.

Heller (1982b) nos conta que os anos de 1953 a 1956 foram anos precisos e

significativos na transição de sua conduta e do seu modo de pensar. Entre esses

anos, havia no ar, um sentimento verdadeiro de consciência e liberdade. Surge a

esperança de eles serem agentes de sua própria história.

Nesse período, segundo Heller (1982b), a Hungria era considerada

antagonicamente, um “país modelo na Europa”: modelo de um regime legitimamente

fascista/stalinista e da materialização das esperanças de um “verdadeiro socialismo

democrático”. Estes foram anos decisivos para repensar o período anterior e rever

as posturas políticas e intelectuais, considerados, por Heller, como “anos da maior

idade”.

Heller relata que, nessa época, os membros da “Escola de Budapeste”, assim

como ela, tomaram contato com a literatura contemporânea. Este grupo sabia

praticamente “de cor” os clássicos da filosofia. As influências contemporâneas

proporcionavam uma visão mais pluralista para o marxismo. As discussões dos

círculos de estudos, na ocasião, centravam-se nas temáticas sobre a liberdade e a

democracia socialista.

261

Jozsef Révai (1898-1959), político, publicista, crítico literário e ideólogo comunista. Permaneceu no exílio entre as duas guerras mundiais, vivendo por fim na União Soviética. Em 1945 voltou para a Hungria e fez parte da cúpula dirigente de Partido Comunista. Foi redator-chefe do órgão do partido Szabad Nép, 1949 a 1953 foi ministro da Cultura.

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Em 1956, Mátyás Rákosi foi convocado a ir para Moscou para receber novas

instruções. No mês seguinte Rákosi retornou a Moscou e foi acusado por

Malenkov262 de ser o principal responsável pelos erros cometidos na Hungria.

Depois de várias acusações, indicaram Imre Nagy263 para primeiro-ministro.

Rákosi continuou a dirigir o partido e Nagy acabou assumindo o poder em 04 de

julho de 1953, fazendo um discurso eloquente pela rádio de Budapeste, anunciando

uma nova etapa para o desenvolvimento do país.

Uma das propostas de Nagy foi a valorização da classe intelectual. É nesse

período que Agnes Heller aprofundou os estudos para seu doutoramento que

aconteceu em 1955, com a tese A Ética de Techernichévski, onde estudou os

problemas do “egoísmo racional” na obra desse pensador russo do século XIX. Seu

primeiro livro foi publicado no ano seguinte e, logo começou a lecionar na

Universidade de Budapeste.

[...] o livro foi escrito em 1953/1954 como reflexão filosófica sobre o novo programa social de Imre Nagy de 1953. [...] Parti da tese de que não é possível realizar nenhum programa social sem os interesses dos afetados, que só o consenso do indivíduo leva ao geral (HELLER, 1982b, p. 115).

Inesperadamente, nesse período, a indústria cinematográfica da Hungria,

Polônia e Tchecoslováquia, até então incipiente, começou a desabrochar. Nagy, em

certa medida, realiza um governo nacionalista, de cooperação e exortação da cultura

e das tradições populares e de atenuação dos ódios. Havia um clima de esperança e

liberdade pairando no ar: “[...] os trabalhadores não desejavam a restauração da

propriedade privada, o que queriam era a libertação da exploração do Estado

político”264.

Porém, Nagy foi “[...] acusado de propor um socialismo húngaro, diferente do

de Moscou, o que era a sentença de morte para a sua política” (SZABO; SEGRILLO;

AQUINO; AUBERT, 1999, p. 45). Em 1955, Nagy é excluído do Comitê Político e em

novembro é expulso do partido:

262 Georgy Malenkov (1902-1988), político soviético e líder do Partido Comunista. 263 Imre Nagy (1896-1958), político, perito em questão agrária, uniu-se na Rússia, como prisioneiro de guerra, ao Partido Comunista. De 1921 a 1928 trabalhou no Partido Comunista ilegal. De 1929 a 1944 esteve no exílio na União Soviética. De 1944 a 1953 foi ministro de diversos governos, e, por pouco tempo, presidente da assembleia nacional e professor universitário. Em 1955, devido a “desvio de direito”, foi duramente criticado e expulso do partido e reabilitado um ano depois. Em outubro de 1956, durante o levante popular húngaro, foi novamente primeiro-ministro e líder da revolução. Após a derrota do levante pelos órgãos de segurança soviéticos, foi levado para a Romênia e executado em junho de 1958. 264 HELLER, 1982b, p. 112. Grifos do tradutor.

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[...] Nagy escreve que, desde a morte de Lênin, a teoria marxista se transformara em “um dogmatismo similar a um talmudismo que explica a Bíblia”, concluindo que o modelo soviético de socialismo tem alcance restrito e que existem formas de transição em que “a democracia popular não pode ser uma cópia do modelo soviético, mas uma forma democrática da ditadura do proletariado”. O socialismo húngaro seria então resultado da aplicação dos conceitos marxista-leninista à realidade húngara, partindo do que é básico na construção do socialismo. (SZABO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 1999, p. 48).

Envolta no confronto político que despontava em Budapeste, Heller construía

seu ideário político:

[...] em 1956, eu estava entusiasmada com o movimento que eu chamava de revolucionário. E ele foi de fato revolucionário ao por fim à ocupação russa, abrindo caminho para um governo livre e democrático. Eu admirava os conselhos de trabalhadores e apoiava com entusiasmo a ideia de autogestão, organizações econômicas cuja meta era entregar as fábricas aos trabalhadores. [...] Essa foi a única revolução socialista que o mundo conheceu. O socialismo, a democracia, a liberdade e o liberalismo estavam todos atrelados entre si e evidenciados por meio dos conselhos. (HELLER, 2002, p. 29-30).

Em contra partida a estes acontecimentos, após a morte de Stalin, uma onda

de descontentamento dos países europeus pertencentes ao sistema unipartidário do

bloco comunista soviético, crescia vertiginosamente contra o regime

socialista/comunista soviético.

Esse descontentamento deu-se como consequência do totalitarismo stalinista:

os comunistas, sobretudo os intelectuais, ficaram chocados com o contraste

existente entre as esperanças que ainda fervilhavam e a realidade do regime

stalinista.

Um movimento em prol da “desestalinização”265 começou a se formar na

Tchecoslováquia e na Polônia. Na Iugoslávia defendia-se a tese de que “[...] havia

diferentes vias de socialismo e que cada país poderia escolher de maneira soberana

a trilha mais adequada para si” (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p.

55). Essa “desestalinização” era mais voltada às reformas econômicas e política:

“[...] a desestalinização econômica, não politicamente explosiva em si, tornou-se

265

O processo de “desestalinização” tem inicio quando, na ocasião do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado entre os dias 14 a 25 de fevereiro de 1956, quando Nikita Kruchev assume o secretariado geral do Partido Comunista Soviético, em sessão secreta, explica as graves violações de Stalin. Essa declaração culmina num processo de revisão do comunismo.

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explosiva quando combinada com a exigência de liberalização econômica e, mais

ainda, política” (HOBSBAWM, 2010, p. 388).

Jovens idealistas assumiam junto aos partidos o compromisso em reviver as

esperanças que o socialismo/comunismo marxiano e marxista proclamava. A

confrontação entre a liderança soviética e polonesa em Varsóvia culminou com a

vitória de Gomulka266 que defendia reformas internas na Polônia, mas não o

abandono dos ideais comunistas.

Na Hungria, manifestações estudantis demonstravam o caráter de

solidariedade aos estudantes poloneses que criavam uma organização autônoma

para as lutas políticas. Os estudantes começavam a se tornar mais radicais e

amplas mobilizações ecoavam no sentido de democratização do regime comunista

no país.

O estopim desse barril de pólvora foi aceso no dia 17 de junho de 1956

quando uma manifestação de protesto em Berlim Oriental resultou num saldo oficial

de 51 trabalhadores mortos. No dia 28 do mesmo mês, na cidade de Poznan, na

Polônia, uma greve de trabalhadores acabou com 54 mortos. Na Hungria, distúrbios

de trabalhadores aceleravam-se a passos largos.

Escritores e intelectuais participavam fervorosamente das manifestações que

culminaram com a Revolução Húngara de 1956. Estes movimentos, ao longo dos

meses de 1956 assumiram um caráter de massa, principalmente com a adesão dos

trabalhadores às lutas sociais: “[...] 1956 foi o ano da ‘história comprimida’ para mim

e igualmente para minha geração. Era o final de algo e, ao mesmo tempo, o começo

de algo” 267.

Rivero (1996, p.15), destaca que a Revolução Húngara de 1956 foi um dos

acontecimentos mais determinantes no rumo do pensamento de Heller e os demais

membros da “Escola de Budapeste” e que era necessário uma reforma do

socialismo, porém, foi posterior ao levante na Tchecoslováquia em 1968, quando,

finalmente, sua posição teórica se definiu.

Os panfletos estudantis improvisados exigiam reformas econômicas e do

sistema legal, imprensa livre, a volta de Nagy ao poder, eleições livres, relações

266

Wladyslaw Gomulka (1905-1982), comunista polaco que defendia na década de 1950 reformas internas na Polônia. 267 HELLER, 1982b, p. 105.

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independentes entre a Hungria e Moscou e a retirada das tropas soviéticas da

Hungria. (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 60).

Um ato simbólico que marcou o clima de revolta e o grito de liberdade na luta

pela “desestalinização” do país, foi a derrubada da estátua de Stalin - símbolo do

culto a imagem àquele ditador -, às 21h30 do dia 23 de outubro de 1956. Dava-se

início ao levante que ficou conhecida na história como a Revolução Húngara de

1956 e duraria até 04 de novembro do mesmo ano, quando as tropas soviéticas

tomaram Budapeste, esmagando o levante, numa ação autodefensiva, por temer

que esse movimento influenciasse outros países num sentimento contrário ao bloco

soviético.

A Revolução Húngara de 1956 tornou-se um dos “mitos históricos populares”

na traumática história húngara. Esta revolução não foi um acontecimento isolado,

mas sim a resultante de uma série de acontecimentos e situações que encontraram

terreno fértil para a fermentação daquilo que pareceria ser uma “fênix que se erguia

das cinzas”. Longe do romantismo patriótico, foi um acontecimento sangrento

(FEHÉR; HELLER, 1983).

Ao vermos as imagens reais em alguns vídeos espalhados pela Internet,

pudemos imaginar o porquê da Revolução de 1956, ser o terceiro fato significativo

no desenvolvimento intelectual de Agnes Heller. Este acontecimento teve impactos

no mundo todo268.

A própria Heller descreve aqueles momentos vividos da seguinte forma:

[...] a revolução era um movimento popular, todos estavam nas ruas. Além disso, as prisões foram abertas, todos os assassinos e ladrões, libertados. Durante dez dias de liberdade, não houve um único crime em toda a Hungria. Podíamos deixar os pertences nas ruas e eles estariam no mesmo lugar no dia seguinte. Ninguém foi ferido, nenhum apartamento foi roubado. Quem caminhasse durante a noite poderia se sentir totalmente seguro. As pessoas agiram muito acima de suas próprias capacidades morais. Acredito que isso aconteça em todas as revoluções. Mas todas as revoluções são superadas. As situações retornam à normalidade. Os conselhos de trabalhadores se diluíram... A propriedade particular e o capital estrangeiro terminaram substituindo a autogestão dos trabalhadores... As pessoas se tornaram cada vez menos interessadas em

268

Maria Aparecida de Aquino (Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e Professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo, Professora Adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie) e Pedro Gustavo Aubert (Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo), no livro Hungria 1956... e o muro começou a cair (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 106-149), expõem algumas das principais repercussões internacionais, inclusive no Brasil, sobre o levante húngaro de 1956.

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política... Agora lembro de uma formulação semelhante de Marcel Proust, que afirma que todo paraíso é um paraíso perdido. (HELLER, 2002, p. 30).

Para Heller, a Revolução Húngara de 1956 foi o “maior acontecimento” de sua

vida, tanto na teoria como nas atividades políticas, com resultados visíveis de um

extremo ao outro. Acreditamos não ser oportuno descrever aqui os fatos mais

significativos dessa revolução comparada por Ferenc Fehér e Agnes Heller (1983)

com a Comuna de Paris e a Revolução Húngara de 1848, por fugir aos objetivos

dessa pesquisa.

O livro de Feher e Heller Analisis de la Revolución Hungara, editado em

língua espanhola pelo Editorial Hacel, é um relato vivo, regado de um nacionalismo

exacerbado que, nas palavras dos autores, pretendiam transformar este evento de

um “mito impreciso” para um “símbolo concreto”. Os objetivos dessa revolução eram

democratizar o comunismo húngaro e instaurar a emancipação do país que,

historicamente, fora subjugado aos interesses estrangeiros.

Porém, o resultado não foi satisfatório. Os soviéticos não permitiriam que uma

nação pequena, sob seu domínio, recobrasse a liberdade, sendo que poderia se

tornar exemplo para que outros países satélites pudessem fazer o mesmo.

Nas primeiras horas do dia 04 de novembro de 1956 o Exército Vermelho

soviético tomou Budapeste. Imre Nagy foi assassinado e János Kadar269, assumiu o

governo da Hungria. Imre Nagy acabou sendo considerado forjador, árbitro, mártir e

símbolo da revolução.

Na Hungria, o socialismo veio à força, ou seja, trazido pelos tanques de

ocupação soviéticos ao final da II Guerra Mundial, conforme já apontamos. Porém,

encontrou resquícios da experiência de 1919, quando foi por meses uma república

socialista aos moldes de Béla Kun.

Nesse sentido, Heller (1982, p. 112), aponta que defende a causa do

socialismo, porém, não defende a “causa da oposição intransigente”.

269 János Kádár (1912-1989), ingressou no Partido Comunista da Hungria em 1931. Foi ministro do Interior em 1948 e esteve preso entre 1951 a 1953, foi ministro do governo Nagy durante o levante de 1956, considerado traidor da Revolução Húngara de 1956. Após ter desaparecido por três dias, volta à Hungria à frente dos tanques soviéticos anunciando que formara um novo governo. Perdeu seu posto de secretário-geral do Partido Comunista Húngaro em 1988 e foi excluído do comitê Central em 1989.

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Angelo Segrillo270 (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 53-103)

descreve sinteticamente os principais acontecimentos, dia-após-dia, da Revolução

Húngara de 1956. Acreditamos não ser necessário fazer transcrever estes

acontecimentos da mesma forma como se apresentados no texto citado.

Acreditamos, ao ler e analisar a obra de Agnes Heller que o levante húngaro

possibilitou a materialização do ideário socialista, marxiano e marxista, que aparece

ao longo de seus escritos como um sentimento característico do romantismo

revolucionário, muitas vezes próximo de um idealismo utópico, não no sentido de

algo impossível de ser realizado, mas no sentido de uma “nova Jerusalém”.

Esta característica, na nossa opinião, não desmerece de maneira alguma

suas análise. Vemos nesse utopismo uma crítica aos regimes totalitários e ao

capitalismo selvagem. Também não acreditamos numa luta pelo “renascimento do

marxismo” enquanto possibilidade objetiva, mas numa análise que expõe claramente

a metodologia marxista e lukacsiana, no afã de reler os primeiros escritos de Marx

buscando respaldo para a crítica do totalitarismo que reinava no Leste Europeu.

Estas ideias podem ser clarificadas numa fala de Lukács em sua última

entrevista a István Eörsi e Erzsébet Vezér: “[...] Não é possível experimentar só um

pedaço do marxismo. Ou alguém realmente se converte ao marxismo – e sei que

isso não é fácil, custou-me doze anos até que essa conversão tivesse êxito -, ou

então pode-se também encarar muito bem o mundo de um ponto de vista burguês

de esquerda” (LUKÁCS, 1999, p. 64).

Para Heller, havia uma contradição entre o comunismo marxiano e o

comunismo que se apresentava na Hungria e na ex-URSS de Stalin e pós-Stalin. O

pensamento de Marx trazia uma proposta libertadora e revolucionária, “[...] uma nova

metafísica: [...] Marx era um cógito que elaborava uma grande teoria para a

modernidade”. Era a própria inversão da metafísica. (POLONY, 1997).

270 Angelo de Oliveira Segrillo é professor Doutor de História Contemporânea no Departamento de História da Universidade de São Paulo. É responsável pela disciplina História Contemporânea com ênfase em Ásia. Coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP. Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de Moscou (Rússia) e doutorado na Universidade Federal Fluminense. É especialista em História da Rússia e ex-URSS eurasiana. Sua tese de doutorado foi considerada pioneira na historiografia brasileira por ter sido a primeira tese acadêmica nacional sobre a história da Rússia/URSS baseada em pesquisa direta nos antigos arquivos classificados soviéticos e fontes primárias russas originais. É autor de diversos livros e artigos sobre a história da Rússia e socialismo, entre os quais O Declínio da URSS: um estudo das causas (Ed. Record), O Fim da URSS e a Nova Rússia (Ed. Vozes) e Rússia e Brasil em Transformação (Ed. 7letras). Seus trabalhos se inscrevem na interface entre história, ciência política e relações internacionais.

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Os/as alunos/as de Lukács, como ele mesmo, estiveram diretamente

envolvidos com os acontecimentos tanto culturais e sociais como os políticos na

Hungria. Os nomes András Hegedüs, Maria Márkus, Mihály Vajda, György Márkus,

István Mészáros, József Szigeti, Janós Kis, György Bence, Miklós Almási, Ferenc

Fehér, Geza Fodor, Maria Ludassy, Dénes Zoltai e, naturalmente, Agnes Heller,

dentre outros, são destacados por Pier Aldo Rovatti, no Prefácio da edição

espanhola do livro Teoría de la necessidades em Marx, de Agnes Heller271. Desse

grupo, pós o levante de 1956, um reduzido número, ficou ao redor de Lukács

denominado “Escola de Budapeste”.

[...] Marx, para nós, é uma tradição de vida, não uma escritura sagrada; é preciso levar em conta o período histórico em que ele escreveu; e devemos utilizar tudo o que, em seus escritos, corresponda às exigências de nossos modernos problemas políticos e sociais. (HELLER, 1982, p. 15).

Ao mesmo tempo em que Heller descreve seu encantamento, também aponta

o seu desencantamento: “[...] Depois de 1956, compreendi que toda utopia é uma

utopia do passado”272.

Heller explica que o regime comunista húngaro era extremamente totalitário e

intolerante a qualquer ideia ou pensamento contrário (ou pluralista) ao próprio

regime: “[...] não poderia escrever algo que não fosse permitido pelo Partido. [...] Nós

não jogávamos as regras do jogo”273.

Quando Heller se refere a “nós não jogávamos as regras do jogo”, está se

referindo ao pequeno grupo formado ao redor de Lukács (Agnes Heller, Ferenc

Fehér, György Márkus e Mihály Vajda), no período compreendido entre meados dos

anos de 1950 até a sua morte em 1971. Apesar de muitas divergências tornaram-se,

além de um grupo de intelectuais, um grupo de amigos.

A passagem linear por estes fatos que trouxeram profundas cicatrizes para

Agnes Heller, nos mostra que, ao longo de sua trajetória intelectual, além das

análises filosóficas, espelhavam as reais consequências e determinações daquele

período, numa verdadeira sinfonia villa-lobiana ou bartokiana.

Esta comparação nos parece apropriada para entender o rumo que Heller

tomou para a sua produção intelectual: “[...] começava naquela ocasião a pensar e a

escrever de forma independente, refletindo sobre a real situação da Hungria dos 271 HELLER, 1978, p. 5-6. 272 HELLER, 2002, p. 30. 273 POLONY, 1997.

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anos de 1950/1960 e o rumo que estava tomando o pensamento de Marx naquele

país e no Leste Europeu”274.

Ao fazermos referência a Villa-Lobos, não estamos desconsiderando também

a obra igualmente significativa de Béla Bártok275, um compositor húngaro que esteve

diretamente envolvido nos acontecimentos políticos, sociais e principalmente,

culturais da Hungria.

Estas referências significam que, para ouvir ou até mesmo executar as obras

destes compositores contemporâneos, guardadas as suas devidas proporções

estilísticas, torna-se necessário uma garimpagem no conjunto de notas e sons para

encontrar a melodia principal e que, depois desse encontro, observa-se o

entrelaçamento sutil e o alinhavo que perpassa por toda a obra.

Em ambos os casos, não desmerecendo outros compositores e artistas de

igual renome, é possível encontrar um nacionalismo musical, que desbrava, muitas

vezes, numa cadência de rebeldia e agressividade, para repousar em melodias

dissonantes e consonantes num Poema Singelo276 ou num Mikrokosmos

bartókiano277. Ambos os compositores refletem elementos folclóricos nacionalistas

totalmente estranhos à música brasileira e europeia.

Em Heller, também notamos estas características. O holocausto, o encontro

com Lukács e a Revolução de 1956, que segundo ela, foram os acontecimentos

mais marcantes de sua vida. Sem sombra de dúvida, estes estão expostos em sua

obra. Nem sempre podemos concordar com suas conclusões, ou até mesmo com o

ideal democrático-socialista a sua moda.

Porém, não podemos negar a sua dedicação aos estudos marxistas e a

filosofia e, posteriormente, as novas tendências pós-modernas e existencialistas,

como um “verdadeiro produto do século XX”, conforme as impressões de Terezakis

(2009).

Contudo, sua produção intelectual dos anos analisados é um verdadeiro

posicionamento consciente de sua individualidade. Ao refletir sobre a realidade

dada, afirma-se enquanto sujeito social revolucionário.

274 POLONY, 1997. 275Béla Bártok (1881-1945), compositor húngaro mundialmente conhecido. De 1907 a 1934 foi professor de piano na Escola Superior de Música de Budapeste. Emigrou para os Estados Unidos em 1940. 276

Referência à obra composta por Villa-Lobos, no Rio de Janeiro em 1942. 277

Referência a uma série de estudos progressivos para piano desenvolvidos por Béla Bártok, escritas entre 1926 a 1939, composta de seis cadernos.

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3.4. A “Escola de Budapeste” e seus escritos marxistas

Como já apontamos anteriormente, falar de Agnes Heller no período de 1956

a 1978, sem se reportar a Georgy Lukács, seus escritos e algumas alunos/as mais

próximos e que permaneceram ao seu redor até a sua morte em 1971, é impossível.

Em novembro de 1956, depois da invasão soviética, Lukács foi preso e levado

para Snagov, na Romênia, onde ficou até abril de 1957 (KONDER, 1980). Alguns de

seus discípulos também sofreram sanções e, alguns acabam presos. Segundo Netto

(1992), ao retornar a Budapeste, ele perdeu sua cátedra na Universidade, foi

excluído do partido e foi vítima de uma nova campanha difamatória. De 1956 a 1971

concentrou-se na elaboração sistemática da sua Estética, em produções críticas

avulsas (literária e política) e no projeto da construção da sua Ontologia do ser social

rumo a uma Ética marxista.

Em 1957, Heller voltou ao partido, mas logo foi expulsa novamente em 1958,

sob a acusação de participar da Revolução de 1956. Ela, Lukács e outros colegas

que comungavam com o mesmo ideário, foram expulsos do partido e afastados da

Universidade. De 1958 a 1963, Heller foi professora de Instituto de Sociologia e de

1963 a 1973, também investigadora da Academia Húngara de Ciências: “[...] até o

final de 1964 seguíamos vivendo num túnel escuro de desesperança”278.

As críticas se estenderam também para o exterior da Hungria, chegando a

República Democrática Alemã e a União Soviética, porém, Lukács, já perto dos seus

oitentas anos, não deu ouvidos a essa campanha de descrédito, concentrando todos

os seus esforços na produção daqueles que seriam seus últimos escritos.

Nas palavras de Netto (1992, p. 43-44),

[...] num gigantesco esforço criador, ele repensa o marxismo e a sua própria obra numa perspectiva que pretende revigorar e desenvolver os resultados anteriores positivos do seu pensamento. Procurando reunir os principais frutos de sua evolução filosófica, de sua estética e de sua ética – é a etapa em que conclui a primeira parte de sua Estética e prepara os textos iniciais de sua Ontologia do ser social -, fá-lo como empreendendo uma apaixonada restauração das dimensões fundamentais do projeto revolucionário de Marx.

Ao seu lado formou-se um pequeno grupo de alunos que ficou conhecido

como a “Escola de Budapeste”. No Prefácio da edição francesa do livro La théorie

278 HELLER, 1982b, p. 125.

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des besoins chez Marx, de Agnes Heller (1978), Jean-Michel Palmier279, faz uma

apresentação significativa da “Escola de Budapeste”.

Nesse texto, Palmier (1978) aponta que essa escola, com certeza foi criação

de Lukács. Ao se referir em carta endereçada ao redator do jornal Times Literary

Suplement280. Quando interrogado sobre qual seriam os seus “livros futuros”, Lukács

respondera apresentando os trabalhos de seus discípulos:

[...] se você olhar para os meus escritos a partir de sua origem e seus efeitos imediatos, está se tornando cada vez mais claro que a minha atividade teórica nunca foi a de uma pensador solitário, muito mais que isso – e cada vez mais – é a criação de uma escola. [...] Foi ara testar a eficácia de tais métodos

281 aplicados concretamente para todos os problemas da

vida social e de impô-los, que surgiu durante o meu trabalho como teórico e pedagogo, o que foi chamado de “Escola de Budapeste”. Através de diferentes pesquisas monográficas em várias etapas importantes do desenvolvimento social, que esta escola tentou esclarecer de maneira concreta e atual, as estruturas e mudanças das estruturas do processo histórico-ontológico, cujo bom entendimento é o ponto de partida de qualquer metodologia marxista. As atividades da “Escola de Budapeste” são mais conhecidas internacionalmente através dos meus próprios livros – a maioria deles foram escritos em alemão – não altera o fato de que este é objetivamente uma linha de pensamento de importância cientifica considerável, que certamente terá grande influência no futuro. (PALMIER apud HELLER, 1978, p. 11-12).

Fica claro o objetivo desse pequeno círculo de intelectuais. A “Escola de

Budapeste” reunia tanto filósofos e sociólogos, como esteticistas (estudantes da

estética), emergindo como uma das correntes marxistas mais originais e inovadoras

pela diversidade e amplitude de seus trabalhos. Não só para os/as alunos/as de

Georgy Lukács, como também para desenvolver uma dialética marxista

resolutamente crítica nas mais diversas áreas do conhecimento.

Buscavam fazer uma releitura dos escritos da juventude de Marx à luz dos

problemas das sociedades capitalistas e socialistas da contemporaneidade.

Procuravam desenvolver um questionamento radical da burocracia e da vida

cotidiana. Estudavam os problemas sociais de seu tempo, a luz do pensamento

marxiano, opondo-se radicalmente ao historicismo subjetivista, como também às

versões “estruturalistas” do marxismo.

279

Jean-Michel Palmier (1944-1998), filósofo e historiador francês. 280

Em nota, Palmier explica que esta carta foi publicada na versão inglesa, em junho de 1971. O original em alemão foi publicado na revista iugoslava Práxis, órgão da antiga escola Koçula (nº 2-3, 1973) e a versão francesa em Temps Modernes (agosto-setembro de 1974, nº 337-338). 281 Referência aos textos de Marx.

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Jean-Michel Palmier retrata a história desta corrente marxista, sua inspiração

teórica e as polêmicas levantadas no interior do Partido Comunista Húngaro. Traz

uma visão precisa do trabalho da “Escola de Budapeste”, considerado, segundo ele,

na Itália, na Alemanha e na França, um dos mais significativos grupos de pesquisa

teórica em países socialistas.

Esse brilhantismo não ficou livre das grandes polêmicas e das ácidas críticas

de seus opositores que a consideravam como uma “nova esquerda húngara” ou de

“revisionistas” e “traidores do marxismo”. Estes denominativos, sem sombra de

dúvida, iam contra a liberdade intelectual.

Não nos cabe aqui fazer um elogio ou uma crítica a esse grupo de

intelectuais, nem mesmo aos seus escritos. Nosso objetivo é apenas fazer uma

apresentação desse grupo, relacionando-o com o universo intelectual de onde foram

geradas as obras de Agnes Heller no período analisado.

Essa escola referenciava o marxismo como um método vivo de análise e não

como um dogma, buscando colocar as ideias de Lukács em prática. Muito mais que

apenas fazer uma releitura de Marx, este pequeno grupo desbravou e mostrou a

riqueza da diversidade da vida culta húngara, da literatura, do cinema e das artes

em geral - nesse ponto, concordamos com Palmier (1978). Além disso, este grupo

deixou-nos um referencial rico em indagações sobre a ontologia do ser social, na

perspectiva do sujeito revolucionário individual e coletivo.

Além da unidade estabelecida entre os seus membros, estabeleceu-se um

vínculo de amizade. Todos eles sofreram com as sanções do Partido Comunista

Húngaro e das acusações de seus críticos, juntamente com Lukács. Obviamente a

obra magna desse grupo é aquela desenvolvida pelo próprio Lukács. Poderíamos

arriscar a dizer que esse grupo de alunos e alunas, foram os guardiões de sua última

e monumental obra: a finalização da Estética e a Ontologia do ser social.

Transcrevemos aqui a tradução282 do texto de Palmier (1978) sobre a

apresentação, feito pelo próprio Lukács, dos integrantes da “Escola de Budapeste”:

"O universo do pensamento da “Escola de Budapeste” é um universo

estruturado e coerente, apesar de suas muitas ramificações. Seu membro mais

produtivo é Agnes Heller, cujos três livros, entre outras obras, são os mais

representativos das tendências marxistas tomadas pela escola. A Ética de

282 Por se tratar de uma tradução do texto em francês de Palmier, realizada pelo pesquisador, transcrevemos entre aspas. Esta forma condiz com o texto original e não como uma citação.

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Aristóteles e o O Homem da Renascença são monografias históricas. A primeira

apresenta um panorama em conjunto com a filosofia de Platão e Aristóteles. A

segunda oferece a completa realização de um Cassirer283 marxista - a descrição

exata de um período de vida intelectual que o marxismo até agora tratou apenas de

passagem. [...] Este problema levou precisamente Agnes Heller a escrever a sua

mais completa obra até esta data: A vida cotidiana284, em que apresenta a totalidade

da dinâmica do sistema e dos tipos de atividade e modos do pensamento cotidiano,

tema principal desta obra. Estes três livros foram publicados em húngaro pela

editora da Academia Húngara de Ciências. A vida cotidiana é também um dos

exemplos mais importantes da renovação da ontologia marxista nos últimos dez

anos".

"A pesquisa de György Márkus285 está no mesmo campo, mas caminha para

direções muito diferentes. O seu livro - Marx e o conceito da essência humana - foi

publicado em húngaro pela mesma editora - é o primeiro ensaio marxista de

interpretação dos conceitos-chave da ontologia marxiana e da antropologia que são

inseparáveis. Márkus foi bem sucedido e realizou um notável e erudito trabalho

semântico - embora seja muito mais que isso - com base em uma utilização

aprofundada do método de Marx. Seu ensaio crítico sobre Wittgenstein286 e seu

estudo, o primeiro na literatura marxista sobre a estrutura teleológica da percepção,

são profundamente originais, conduzindo para novas soluções, com base numa

apurada compreensão das ideias de Marx e num conhecimento completo das

disciplinas científicas especializadas”.

Quanto a Mihaly Vajda287, Lukács observa que seu trabalho toma uma direção

oposta:

"Ele progride a partir da epistemologia para a ontologia social e o estudo

político da sociedade. Seus ensaios sobre Husserl - publicado em húngaro na

283Referência ao filósofo alemão Ernest Cassirer que realizou estudos em direito, literatura e filosofia germânica nas universidades de Berlim, Universidade de Leipzig e Heidelberg. 284 Referência ao livro Sociologia da vida cotidiana. 285 Lukács, na sua Autobiografia realizada através da entrevista com Estván Eörsi e Erzsébert Vezér (1999, p. 143-144), tece algumas informações sobre seus discípulos. Sobre Márkus, relata que não foi diretamente seu aluno e que quando voltou de Moscou já estava 75% formado, porém, diz que alguma influencia ele pôde exercer sobre ele. 286 Segundo Carlos Nelson Coutinho, no Prefácio da edição brasileira A teoria do conhecimento no jovem Marx, editado pela editora Paz e Terra, em 1974, no Brasil, foi sua tese de doutoramento em 1965. Ao apresentar György Márkus, Coutinho tece algumas informações relevantes sobre a “Escola de Budapeste”. 287 Na mesma entrevista Autobiográfica, já citada, Lukács aponta que Vajda era aluno de Agnes Heller, quando ela lecionava na universidade.

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editora da Academia de Ciências em Gondolat - não só representam a primeira e

verdadeira tentativa marxista de confrontação com a fenomenologia e sua

problemática, mas esclarece os problemas da epistemologia, em termos da práxis,

isto é, da ontologia verdadeira".

Finalmente, Lukács tece algumas considerações sobre Ferenc Fehér:

"O estudo de Ferenc Fehér (ainda não publicado) sobre Dostoïevky é

constituído de relatos completos de uma dinâmica original e convincente da cultura

russa da segunda metade do século XIX, com base nas análises de Marx e num

conhecimento profundo de material literário. Ao mesmo tempo, Fehér propõe uma

nova teoria marxista do romance. Seu livro também é muito mais do que um trabalho

especializado da história literária pela polêmica apaixonada que ele concorda com o

individualismo moderno".

Lukács acrescentou: "[...] eu estou firmemente convencido de que é hoje

nessas obras que se prepara a filosofia do futuro" (PALMIER, 1978). Lukács

apresenta de forma solidária o trabalho de seus discípulos, apesar, segundo os

relatos de Heller, das relações entres eles nem sempre serem tão amistosas,

chegando a discordar dos seus escritos e de suas atitudes288.

Lukács (1999) aponta que Heller e Féher foram seus alunos desde o início.

Após a publicação dos trabalhos produzidos por esta escola, críticas ferrenhas

caíram sobre eles, principalmente depois de algumas discordâncias desse grupo

com relação aos escritos de Lukács.

Segundo Palmier (1978), a posição do Partido Comunista Húngaro era formal:

"[...] a concepção que emerge através dos escritos discutidos é essencialmente

contrária aos esforços teóricos e políticos da obra marxista de Lukács. E não é uma

coincidência. A ruptura dos autores destes escritos com o marxismo também

significa o rompimento com Lukács”.

Conforme vimos através dos comentários de Lukács, foi nesse período que

Heller produziu suas mais significativas obras e que expressavam o tipo de

orientação daquele grupo de intelectuais que despontava no horizonte intelectual da

Hungria e, consequentemente, do mundo.

288 Konder (1980, p. 106) relata algumas divergências e discordâncias dos discípulos de Lukács, principalmente no que diz respeito a sua Ontologia do ser social, como também sobre suas posições políticas que se “conciliavam demais com os burocratas da direção do Partido Comunista”.

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Sem dúvida, Heller foi a mais profícua. O volume de sua produção intelectual

é considerável. Lukács várias vezes referiu-se a Heller como a figura chave da

“Escola de Budapeste”. Por sua vez, Heller sempre exaltou carinhosamente a sua

amizade com Lukács. Nas entrevistas que acompanhamos na atualidade, com seus

mais de oitenta anos, é notável a admiração e o reconhecimento de Heller à ele:

[...] Lukács acabou desenvolvendo uma relação de confidência comigo. Talvez eu tenha sido um de seus estudantes favoritos. Surgiu uma grande amizade entre nós. Inicialmente era uma relação de mestre e aluno; depois, tornou-se uma amizade entre uma pessoa mais velha e uma mais jovem. Nunca vou esquecer as inspirações e as discussões, as lições verdadeiras que recebi dele. Em termos de política, chegamos paulatinamente a um total desacordo. Eu o respeitava muito, pois percebia que na idade em que se encontrava – ele já era um homem velho – não poderia esperar uma mudança radical. Não pretendia mudá-lo politicamente. Ele tinha sua posição e eu, a minha. (HELLER, 2002, p. 39).

Segundo Palmier (1978), não se pode dizer que estes foram os únicos

seguidores de Lukács: “[...] muitos acadêmicos, teóricos húngaros afirmaram

trabalhar na continuidade da obra de Lukács”, mas, o que os diferenciava dos

primeiros era o vínculo especial que os unia a Lukács, a qualidade dos trabalhos

produzidos e a diversidade de direções em que se desenvolveram os método e as

interrogações.

É importante salientar que Palmier (1978) se refere a “Escola de Budapeste”

como a “Escola Lukacsiana”, ou seja, à produção intelectual e a atividade acadêmica

de Lukács. Outros vão se referir a “Escola de Budapeste” como este pequeno grupo

de intelectuais que se juntaram ao redor de Lukács nos seus últimos anos.

Heller irá dizer que este pequeno círculo de amigos se formou no inicio dos

anos de 1960 e que Lukács assim denominou “Escola de Budapeste”, baseada na

amizade e na afinidade pessoal e teórica entre os seus integrantes.

Este círculo de intelectuais foi formado por Agnes Heller, Ferenc Féher,

György Márkus e Mihály Vajda, tendo como mestre Georgy Lukács e continuou

unido após a morte de Lukács em 1971, até o seu total desfecho no final dos anos

de 1970, quando foram expulsos da Hungria: “[...] nenhuma ideia era ‘propriedade

privada’, todas as ideias constituíam um patrimônio comum”289.

289 HELLER, 1982b, p. 125. Encontramos algumas entrevistas na Internet, com relação a vida atual de Heller, apontando para a edição de uma livros escrito por Heller e Vajda, comprovando que elas ainda trabalham juntos e dividem momentos de estudos e de produção intelectual.

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Há também algumas referências a Maria Márkus, estudiosa dos problemas

econômicos e sociais, e ao economista e sociólogo András Hegesüs, como também

Janós Kis e György Bence, dedicados ao campo teórico-filosófico. Heller também faz

referência a Dénes Zoltai, todos como integrantes desse pequeno grupo, porém,

estes não aparecem na maioria dos escritos pesquisados290.

Segundo Carlos Nelson Coutinho291, este círculo de colaboradores mais

próximo de Lukács, empenhava-se numa “reavaliação dos temas relativos ao

humanismo marxista e, em particular, à problemática da alienação”, o que

correspondia, no plano teórico, numa tentativa prática de “encontrar novas vias para

o socialismo”, ou seja, a “redescoberta e reexame da obra do jovem Marx”. Não

estamos desconsiderando os problemas das análises do grupo no que diz respeito

as suas conclusões, porém, não nos cabe aqui fazer tais críticas, já que fogem aos

nossos objetivos.

Heller aponta que os anos entre 1965 a 1968 foram considerados anos de

uma “profundização”, ou seja, um movimento mundial que buscava o “renascimento

do marxismo entendido como uma teoria pluralista”: “[...] nosso propósito era

transformar a reforma econômica em reforma social”. Por isso denominado “anos de

reformas”: “[...] o encontro com os filósofos iugoslavos na Escola de Verão de

Korçula teve lugar precisamente nessa época o período de reforma. De minha parte

eu participei três vezes das sessões: em 1965, 1967 e 1968”292.

[...] Nos anos 60, houve barulho sobre o renascimento do marxismo de Lukács. Na compreensão dele, seria necessário abandonar o chamado marxismo oficial do regime soviético e voltar ao próprio Marx, a fim de se construir uma espécie de marxismo filosófico, autêntico. Todos nós, membros da “Escola de Budapeste”, acreditávamos que éramos parte e tínhamos uma parcela de responsabilidade sobre o renascimento do marxismo. De certo modo, fizemos o que achávamos importante. (HELLER, 2002, p. 39-40).

Mesmo sob perseguições, Heller ainda se envolve em manifestações

políticas. Em 1968, participa dos protestos contra a invasão soviética à

Tchecoslováquia, conhecida como a Primavera de Praga. Um dado interessante é

290 Estas informações foram confirmadas pela filha de Agnes Heller (Zsuzsa) através da Rede Social Facebook. Além desses, Zsuzsa fez referência a Almasi Miklos, Miklós Radnóti, Ludassy Maria, como também aos já citados Janós Kis e György Bence. 291 Referência ao Prefácio da edição brasileira A teoria do conhecimento no jovem Marx, de György Márkus, editado pela editora Paz e Terra, em 1974. 292

HELLER, 1982b, p. 126-127.

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que mesmo com todas essas conturbadas reviravoltas na sua vida intelectual, Heller

nunca deixou de escrever, mesmo sendo rechaçada, criticada, acusada, perseguida,

entretanto, sua produção intelectual é impecável. É evidente que sua preocupação

com a “emancipação humana”, vinculada ao pensamento marxiano, floresceu em

todas as suas fases de sua vida intelectual, assim como o caráter distinto de sua

obra.

Frente aos eventos na Tchecoslováquia e a possibilidade de um “socialismo

realizável”, Heller percebe que nas revoltas estudantis ocidentais a “[...] expressão

concreta de uma crítica que, desde o nível da política e da economia, consegue

penetrar no interior do modo de vida burguês” (ROVATTI, 1986). Para Heller estes

momentos tornam-se historicamente visíveis tanto na vida cotidiana, quanto nas

relações sociais.

Foi com esse pano de fundo que Heller acabou de escrever o livro Sociologia

da vida cotidiana, chegando à conclusão de que a “revolucionalização” das formas

de vida e das configurações para uma nova comunidade, são precondições para

uma sociedade “verdadeiramente socialista”, expressões contidas exaltadamente

nas conclusões do livro escrito posteriormente As teorias das necessidades em

Marx, que foi inspirado nos movimentos de 1968. Na visão de Heller, esse

movimento se movia para uma perspectiva de uma “Europa unitária”, na dimensão

de um “socialismo democrático”.

Portanto, a “Escola de Budapeste” punha em questão a natureza do

socialismo soviético, da burocracia, do totalitarismo, do dogmatismo marxista, da

realidade da vida cotidiana nos países capitalistas e socialistas, enfim, fazia uma

crítica feroz aos principais acontecimentos da época, o que justifica a posição do

Partido Comunista Húngaro de reprovar seus escritos, alegando caírem num

“revisionismo de direita”, num “marxismo ocidental”, de “teorias anti-marxistas”,

relacionando seus membros como “dissidentes”, de escreverem “generalidades

nebulosas e utópicas” e/ou de manifestarem ideologias “ecléticas pequeno-

burguesa”, tendências que, na opinião de seus opositores, eram perigosas e

levavam a “negação das propostas do partido político e do movimento dos

trabalhadores internacionais”, conforme os apontamentos da comissão de Política

Cultural do Comitê Central do Partido. Com certeza, foram vítimas da “burocracia

neo-stalinista” (PALMIER, 1978).

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202

Palmier (1978), em sua apresentação, faz um resumo daquilo que era a

direção da “Escola de Budapeste” e que consideramos significativas para

compreender seu desenvolvimento:

Um prolongamento (extensão) do método dialético de Lukács;

Um trabalho aprofundado das categorias marxistas e de uma releitura

dos escritos de Marx à luz das sociedades capitalistas e socialistas;

A confrontação do marxismo com as ciências sociais e a filosofia além

do dogmatismo;

A vontade de elaborar um tipo de metodologia, uma "filosofia social",

que pudesse construir uma ponte entre diferentes disciplinas;

A fixação em questões permanentes das realizações socialistas a partir

dos próprios princípios do marxismo e a eterna busca do que poderia

ser uma sociedade genuinamente socialista;

A extensão dos trabalhos sobre a Estética de Lukács sobre o romance

moderno ou o cinema;

O desejo de fazer do trabalho de Lukács uma herança crítica da vida;

Um conjunto de questões radicais da estrutura da vida cotidiana.

Sem sombra de dúvida, concordamos com Palmier (1978), quando este

afirma que eram pesquisas anti-dogmáticas, no campo da filosofia, da sociologia, da

antropologia, da historiografia, da literatura, da estética, da política e da ética, tanto

na área da fenomenologia como no marxismo, sobretudo, as obra de Heller, buscam

a reestruturação radical da vida cotidiana, mas, acima de tudo, defendiam uma

posição ética e política bem diferente da que viviam no Leste Europeu.

Em nota, Palmier (1978) esclarece que um dos primeiros artigos sobre o

trabalho da “Escola de Budapeste” foi o de Laura Boella "Ontologia e teoria della vita

quotidiana nella ricerca filosofica scuola di Budapest" que apareceu na Revista

Internazionale di Filosofia del Direito (2-1973). Também, a revista Temps Modernes

(agosto-setembro de 1974, n º 337-338), dedicou um número aos problemas de

grande interesse da “Escola de Budapeste” e, finalmente, o volume de Lukács,

Heller, Fehér (et au.) Individuum e Praxis: Positionen der Budapester Schute

(Suhrkamp, 1975) também contém relatos importantes.

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203

Heller relata que, enquanto estudante, casou-se com István Hermann293, com

quem teve uma filha (Zsuzsa Hermann). Este casamento acabou em divórcio,

casando-se, posteriormente, com Ferenc Féher, companheiro que seguiria Heller até

os anos de sua morte, em 1994. Deste casamento, em 1963, Heller teve um filho

(Gyuri) (TEREZAKIS, 2009).

No pequeno livro La revolución de la vida cotidiana (1982b), uma verdadeira

antologia humanista marxista, Heller empenha-se numa transformação radical da

vida cotidiana. Expressa, significativamente, a exigência de vincular o tema

lukacsiano à vida cotidiana, ou seja, ao conceito de revolução: “[...] devíamos abolir

primeiro a alienação econômica e política para logo estar em condições, post festum,

de humanizar as relações cotidianas entre os homens”294.

Nesse livro também encontramos a entrevista realizada por Laura Boella,

Guido Neri e Amadeo Vigorelli com Agnes Heller que contribuíram para a elaboração

desse histórico. Acreditamos que as falas de Heller são exemplos vivos de um

período conturbado, mas de profunda reflexão e produção teórica. Em suma: “[...] a

verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais” (LUKÁCS

apud MÉSZÁROS 1984, p. 09).

Enquanto Lukács estava vivo, apesar das várias acusações e perseguições,

ele sempre protegeu este grupo de intelectuais. Vitimado por um câncer, Lukács

morre no dia 04 de junho de 1971, quase em total solidão. Em 1973, Heller sofre

nova repressão política, é expulsa mediante resolução do Partido Comunista

Húngaro e da vida cultural húngara e é banida da vida acadêmica. Trabalha como

tradutora particular até sua saída do país em 1978. Nesse período também faz

algumas viagens pela Europa proferindo seminários e, principalmente, participando

dos eventos mais significativos no campo da filosofia e da política, em especial, dos

eventos de 1968.

[...] Com base no nosso protesto contra a intervenção, nossos passaportes foram retidos durante um ano (no meu caso, durante dois anos). Hegedüs

293 Segundo informações trocadas com a filha de Agnes Heller, Zsuzsa Hermann, pela Rede Social Facebook, Hermann István (1925-1986), nasceu e morreu em Budapeste. Foi filósofo, esteta, crítico e professor, membro da Academia Húngara de Ciências. Estudou na Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste, Hungria, entre 1945-1950, período em que conheceu e se casou com Heller, sendo graduado em Economia e Filosofia Política. Também foi aluno de Georgy Lukács. Trabalhou como pesquisador da Academia Húngara de Ciências e Instituto de Filosofia entre os anos de 1956 e 1958 e 1967-1973. Além do ensino, dedicou a pesquisa em história, filosofia e escreveu tratados sobre a estética, a estrutura da estética moderna e a mídia – acesso em janeiro de 2013. 294 HELLER, 1982b, p. 18.

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204

foi destituído como diretor do Instituto de Sociologia. Por sua vez, József Szigeti, o agente diretor da União Soviética, cujas atividades “filosóficas” consistiam durante anos em meras denúncias, permitiu seu posto de diretos do Instituto de filosofia. (HELLER, 1982b, p. 131-132).

A resolução emitida em 1973 pelo Partido Comunista - a "Trial Filosofal",

conhecida assim por ser contra o grupo de filósofos e sociólogos da “Escola de

Budapeste”, dizia que as instituições científicas húngaras deveriam ser partidárias ao

pensamento marxista-leninista e que, as pessoas que eram estrangeiras e hostis a

este pensamento, não teriam lugar na Hungria e nem nas instituições científicas.

Consequentemente, tais pessoas deveriam ser removidas de seus postos de

trabalho. Palmier (1978) registra sua indignação a essas medidas na apresentação

ao livro de Heller.

Heller fica proibida de ocupar algum qualquer cargo universitário e de publicar

seus escritos, passando a ensinar gramática nas escolas primárias por algum tempo

e a viver de traduções. (HELLER, 2002; TEREZAKIS, 2009). Por esse motivo, Heller

e os demais membros da “Escola de Budapeste” foram demitidos de seus cargos do

Instituto de Filosofia e do Instituto de Sociologia da Universidade em Budapeste,

perdendo, assim, seus empregos:

[...] ou seja, "teoricamente desempregados", porque supostamente não havia desemprego oficial na época. E por isso não era permitido que você tomasse um trabalho inferior, mas ao mesmo tempo, de acordo com a resolução do Partido, que nós, como trabalhadores científicos não éramos qualificados para trabalhar em nosso campo, por causa da nossa hostilidade ao marxismo-leninismo. Então, por causa do Partido [fomos] demitidos de nossos trabalhos na Academia de Ciências, e ficamos desempregados por alguns anos. Enquanto estávamos desempregados, decidimos que tínhamos que deixar o país, não apenas porque estávamos desempregados, mas porque estávamos constantemente sujeitos a perseguição policial. Éramos acompanhados nas ruas, eles enviavam informantes e espiões para os nossos apartamentos e meu marido, Feri, também passou alguns dias na prisão. Nossos apartamentos foram revistados nas primeiras horas da manhã. Então era um tipo muito desagradável de vida. (POLONY, 1997).

Pier Aldo Rovatti (1986), renomado docente italiano, no Prólogo da tradução

espanhola do livro Teoría de las necessidades em Marx (HELLR, 1986), ao

apresentar a autora comenta que no início de 1973, o Comité Central do Partido

Comunista abre uma investigação contra os escritos de Agnes Heller: “[...] um grupo

de estudiosos das ciências sociais da Academia examinaram suas posições

políticas. Sobre a base dos resultados da investigação, publicada depois na revista

Szociológia, em meados de maio do daquele ano” (ROVATTI, 1978, p. 05) e, em

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205

consequência, o Comitê Central do Partido emitiu um comunicado de apenas duas

páginas datilografadas condenando decisivamente suas posições políticas sobre a

tradicional alegação de “revisionismo de direita” e, ao mesmo tempo, de “novo

esquerdismo de cunho ocidental”, definindo suas posições como “filo-burguesas” e

“anti-marxistas”. O objetivo era explícito: apartá-los da vida cultural húngara e

impedir que seus escritos fossem lidos e publicados, alegando serem “ideias

consideradas perigosas” (idem, p. 05-06).

Nesse período de clausura, Heller se ocupa da produção de sua Teoria das

necessidades em Marx e, posteriormente, de trabalhos sobre os afetos, as paixões,

o problema da “segunda natureza” e por último a teoria da personalidade, uma

verdadeira “antropologia ontológica” e crítica da natureza humana. Nessa ocasião

seus trabalhos já são reconhecidos internacionalmente, principalmente àqueles

centrados na teoria da moral (ou ética) e da vida cotidiana. Finalmente, em 1977, ela

e Ferenc decidiram deixar o país:

[...] em 1977 foi o primeiro ano em que pudemos optar por deixar o país. Deixe-me explicar. Foi Catch-22

295. Disseram-nos que só poderíamos obter

um passaporte de imigração, se tivéssemos um trabalho para fazer. Mas naquela época, havia poucos empregos no Ocidente e as universidades nos chamavam para uma entrevista e, só depois é que iriam ver a possibilidade de nos dar trabalho. Mas nós tivemos que dizer a eles que não poderíamos chegar para uma entrevista, porque só poderíamos ter nossos passaportes se já tivéssemos um trabalho. Por isso, foi Catch-22. Finalmente, um amigo meu, que era um imigrante húngaro, Iván Szelenyi, candidatou a um emprego para mim na Austrália e, a universidade enviou alguém para Budapeste para me entrevistar. E eu comecei esse trabalho e foi assim que eu tirei o passaporte. (POLONY, 1997).

Depois de trabalhar como professora em escolas secundárias, viver de

traduções e ser considerada uma “dissidente”, Heller e seu marido Ferenc Fehér,

como outros integrantes da “Escola de Budapeste”, foram convidados a assumir

cargos na La Trobe University296, em Melbourne, Austrália, em 1977: “[...] aos

poucos, comecei a conhecer a Austrália, onde constatei um sentimento de

igualdade”297. Nessa universidade, Heller assume a cátedra de Sociologia.

295

Referente ao romance CATCH-22, do autor norte-americano, Joseph Heller, publicado pela primeira vez em 1961. 296

A La Trobe University é uma instituição de Educação Superior australianas, fundada em 1964. Possui quatro campus, dois na cidade de Melbourne (Bundoora e Carlton), um em Bendigo e outro em Albury/Wodonga. 297

HELLER, 2002, p. 32.

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Embora Heller tivesse que se afastar do convívio de sua filha (Zsuzsa

Hermann), que ficara na Hungria para se casar, ela se “jogou por inteiro” em seu

novo ambiente de trabalho, escreve e publica proficuamente entre 1978 a 1986

quando, ela e seu companheiro Ferenc Fehér, assumiram compromissos para

integrar o quadro de docentes da New School for Social Research298 em Nova

Iorque, Estados Unidos da América, ocupando a cátedra de Hannah Arendt299, como

professora de Filosofia.

[...] Quando se cogitou de eu ir para New School, eu já sabia de sua tradição e prestígio. Mas, na época em que cheguei lá, o departamento de filosofia passava por um de seus piores momentos, o que me deixou bastante insatisfeita. Então decidi que só ficaria se a situação melhorasse. Felizmente as coisas melhoraram e, em poucos anos, o departamento se tornou um dos melhores da costa leste dos Estados Unidos. Tínhamos um pequeno grupo de excelentes professores e um corpo discente entusiasmado em estudar e fazer filosofia. Não visávamos exclusivamente a ter um emprego. Além disso, havia um ótimo relacionamento entre professores e alunos. Na universidade, acredito que é mais importante ter bons parceiros do que bons professores. (HELLER, 2002, p. 33).

Atualmente, Heller divide o seu tempo entre Nova Iorque e a Hungria,

participando ativamente das mudanças políticas daquele país desde 1989. Entre

1956 e 1978, Heller comungava com as ideias de seu mestre e da teoria marxiana. A

partir de então, percorre caminhos que cada vez mais a afastaram de suas origens.

Conforme vimos, no período estudado, Heller buscava compreender os

caminhos que levavam a uma postura ética e política na vida cotidiana na

concepção marxista no sentido da recondução de um “projeto de construção do

socialismo e sua democratização” (RIVERO, 1996, p. 12).

Nessa perspectiva compreender os principais fundamentos da ética marxista,

na vertente helleriana, levou-nos a proposições para uma consciência ética e política

do ser social.

Através de suas análises sobre a vida cotidiana, percebe-se um arcabouço

teórico-prático e ético-político do sujeito revolucionário singular, ou seja, em sua

condição antropológico-ontológica de ser social, mostra-nos que o ser social em sua

singularidade pode assumir uma atitude consciente para a vida, passando de uma

298

New School for Social Research foi fundada em 1919 na cidade de Nova Iorque. A partir dos anos de 1930, obteve financiamento para um refugar nos Estados Unidos para estudiosos e pesquisadores cujas carreiras e vidas foram ameaçadas pelos nazistas. 299

Hannah Arendt (1906-1975), conhecida pensadora da liberdade.

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condição de ser-em-si para a condição de ser-para-si-mesmo: “[...] Uma pessoa

escolhe a si mesma e, desde então, torna-se o que é ela”300.

E continua,

[...] o modo como vivemos é fruto de escolhas. Para buscar algo novo, não necessitamos de utopias. Precisamos apenas de pessoas com as quais possamos trabalhar. (HELLER, 2002, p. 48).

Ao nos referir ao sujeito social – ou ser-para-si-mesmo, nos referimos a sua

condição de ser genérico e de ser particular propositivo e revolucionário, porém, é na

sua condição de individualidade que o ser social assume a consciência de sua

condição humano-genérica e parte para a ação revolucionária para-si

Um estado individual que o sujeito social pensa, age e reage consciente e

livre na e para a vida social, vivendo conforme as suas próprias convicções, seus

gozos e pendores. Heller, no decurso de sua obra, aponta que os grandes filósofos

da Humanidade, os grandes artistas, os grandes músicos e compositores, por

exemplo, viveram as suas próprias convicções, ou seja, a sua individualidade, foram

“por inteiro”, por conseguinte, assumiram um ethos perante a vida.

É essa condição singular (ou singularidade), que as capacidades humano-

genéricas afloram com mais premência. Ao se posicionar enquanto ser responsável

e consciente assume para-si-mesmo o controle de sua própria vida social, porém,

em condições previamente dadas. É uma tomada de consciência - um vir-a-ser.

Parafraseando Lukács (1999, p. 170):

[...] tornar-se homem do homem como conteúdo do processo histórico, que se efetiva – de modo muito variado – em cada vida humana singular. Assim, cada homem – não importa com que grau de consciência – é um fator ativo no processo total, cujo produto ele é ao mesmo tempo: aproximação da genericidade na vida individual é a real convergência de ambos os caminhos evolutivos reais inseparáveis.

Nos termos do jovem Marx, a vida individual só se realiza quando a vida

converte-se em objeto para homens e mulheres, vivem conscientemente sua

condição de genericidade. Em contrapartida, a vida particular, cuja realidade é a

autoconservação e cujas necessidades consistem na identificação com todas as

condições e exigências da cotidianidade e da imediaticidade, muitas vezes, essas e

300 HELLER, 2002, p. 42.

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as determinações sociais não permitem que o ser social saia do estado de alienação

e estranhamento passivo diante da realidade dada.

Heller propõe uma suspensão (ou elevação) da condição de alienação e

estranhamento em que todos nós mimeticamente estamos envoltos. Na sociedade

capitalista a vida é peremptoriamente regida, condicionada e determinada pela

lógica do capital, conforme vimos no início dessa pesquisa.

A vida ética, nessas condições, se resume a um jogo de interesses, ou, para

sermos mais precisos, a ética maquiavélica – “os fins justificam os meios”; a vida

política, por conseguinte, se restringe ao campo da política partidária,

governamental, estatal, e não a condição de zoon politikon301.

Desta forma, há a exigência revolucionária de uma mudança radical para uma

exigência verdadeiramente ética e política do ser social, ou seja, de um novo modo

de vida na estrutura da vida cotidiana que não se limite a humanização do trabalho

produtivo e a humanização desta mesma vida cotidiana, mas que tenha como

parâmetro uma vida comunitária, global e essencialmente humana. Onde homens e

mulheres sejam um fim e não o meio.

[...] Quando falamos de perspectiva socialista, hipostasiamos uma sociedade cuja estrutura oferece a todos essa possibilidade de princípio, uma sociedade construída com comunidades organizadas por indivíduos e produtora de valores positivos. E, se alguém nos perguntar o que é preciso hic et nunc, responderemos: é preciso organizar e assumir comunidades cujo objetivo seja o encaminhamento ou a aceleração do processo social que possibilite o nascimento dessa sociedade (HELLER, 2004, p. 85)

302.

Esta fala/posicionamento de Heller demonstra claramente o que acreditava e

buscava: uma sociedade socialista e, conforme defende em sua Teoria das

Necessidades: uma sociedade dos produtores associados303. Um tipo de

organização social que compreendia comunidades organizadas democraticamente

enquanto substância da sociedade; comunidades onde fosse possível a

configuração de um conteúdo axiológico positivo.

Estes apelos hellerianos podem ser facilmente captados pelas ressonâncias

marcusiana, de um utopismo ou, como já apontamos, de uma renovação messiânica

para uma “nova Jerusalém”, como também de uma exaltação ao imperativo

301

Referencia a Aristóteles que coloca o “homem” enquanto “animal político”. Porém, nessa colocação não estamos nos referindo somente ao homem, mas também a mulher. 302

Grifos da autora. 303 HELLER, 1978.

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categórico kantiano, mas aqui, pretendemos buscar os fundamentos para a tomada

de consciência do sujeito revolucionário que podemos ser.

No decurso de nossas exposições visualizamos que as circunstâncias e

determinações sócio-históricas traçadas e vividas por Heller, impeliam para estas

esperanças e apelos, no sentido de projetar uma total revolução no contexto social e

político para ideologia de um “verdadeiro socialismo”. Nesse sentido, vemos um

material altamente crítico que se enquadra na realidade capitalista do momento

atual, principalmente com os acontecimentos dos últimos anos nos Estado Unidos,

no Oriente e na Europa.

Não podemos perder de vista que Heller aponta para a necessidade de

emitirmos sempre interrogações sobre as condições de vida e da fase atual do

capitalismo: a necessidade premente de darmos resposta acerca da realidade

individual, social, sobre o papel e o caráter do trabalho rumo à riqueza geral.

Como riqueza geral, Heller se dirige a Marx ao considerar a riqueza da

“essência humana” – trabalho, objetivação, sociabilidade, universalidade,

consciência e, sobretudo, liberdade304. Na lógica capitalista, as determinações são

exclusivamente econômicas, os apelos são para o consumo, a produção, ao

descartável, ao imediato, ao veloz, enfim, para o alienado/alienante.

Haja vista que ao analisarmos os programas sociais governamentais

brasileiros dos últimos governos, os apelos vão em direção ao aspecto econômico e,

quase sempre, não se observa a emancipação do sujeito social; a riqueza social

está voltada para o desenvolvimento econômico: a necessidade do consumo,

esquecendo, muitas vezes, os outros aspectos que compõem a natureza humana

(ou a essência humana).

Nesse caminhar, Heller, ao vivenciar as consequências do comunismo

totalitarista e despótico da Hungria e do Leste Europeu de sua época, buscava

encontrar uma “teoria da práxis social” que desse conta de despertar o sujeito

revolucionário.

Por conseguinte, se toda obra filosófica se relaciona com a vida do autor,

conforme seus próprios apontamentos, traz em-si uma ética, e se esta obra busca

uma práxis social, ou seja, uma atitude revolucionária diante de situações concretas,

traz em-si uma postura política, mas para que ela possa ser autêntica na vida social,

deve possibilitar o despertamento dessa consciência ética e política, portanto, dirigir- 304 HELLER, 2004, p. 04.

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se para uma “práxis social revolucionária”, esta consciência só pode-se dar em

situações concretas e em condições concretas, portanto, na vida do sujeito social, ou

seja, na vida cotidiana, palco onde homens e mulheres, jovens ou não, se colocam

para vida. Portanto, a vida de todos nós.

Para Heller a “[...] vida cotidiana é a vida do homem inteiro”305. Marx e Engels

já haviam demonstrado que homens e mulheres são seres sociais, que se

diferenciam dos outros seres da natureza pela sua capacidade de humanizar as

relações sociais e de manipular a natureza, de tecer mediações objetivas e

concretas para as suas projeções teleológicas.

Portanto, o processo de hominização é objetivo, concreto e social, contudo,

só se estabelece na vida real, quando o homem e a mulher entram em contato

diretamente com os atributos e possibilidades do mundo real, ou seja, do concreto

pensado.

A vida de Heller, assim como tantos outros, demonstra a capacidade de

tomada de consciência no processo de hominização e humanização social. Através

de suas vivências/reflexões percebemos que, na sociedade de classes, no modo de

produção capitalista e dos interesses escusos e egoístas, o ser social pode ou não

tornar-se alienado e estranho a sua natureza, ou mesmo pode ser forçado a tal

situação. Mesmo que assim apareça – alienando e estranhado – pode-se superar tal

situação.

A imediaticidade das coisas e situações, em grande medida, acontece com a

maioria das pessoas que vivem em sociedade, principalmente nas grandes

metrópoles, e que, de algum modo, incorporam o modo de produção capitalista e a

lógica do capital, numa verdadeira transfiguração alienada e alienante da vida social.

Ao retomar a essência do pensamento marxiano, juntamente com a “Escola

de Budapeste”, Heller percebe que Marx, ao longo de sua obra, ora colocava as

contradições inerentes à formação da sociedade capitalista como motor da história,

ora expunha a classe operária como agente revolucionário. Com efeito, buscava

esse agir no micro universo da vida cotidiana, na qualidade de sujeitos sociais, livres

e conscientes de sua condição – tal é o fundamento da individualidade do ser social.

Faremos na sequência, uma breve aproximação das obras analisadas nessa

investigação, acompanhando o resgate sócio-histórico de Heller, para somente

depois concluirmos nossas reflexões. 305 HELLER, 2004, p. 17.

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3.5. Heller e seu legado marxista: “o poeta habita o homem”306

O legado helleriano, no período analisado – 1956 a 1978 -, está diretamente

vinculado à essência do pensamento marxiano, na perspectiva lukacsiana que, por

conseguinte, estão entrelaçados aos estudos aflorados pela “Escola de Budapeste”

e as principais tendências de sua época, conforme já sinalizamos. Ênio da Silveira,

ao apresentar a obra Uma Teoria da História (1993), assim se refere à Agnes Heller:

[...] marxista não-sectária, [...] a então jovem filósofa viveu momentos alternados de euforia e depressão ao conhecer no dia-a-dia tanto os aspectos positivos da aplicação prática do sistema socialista de governo quanto os abusos e violências decorrentes de sua deformação sob um regime ditatorial tão arrogante quanto o de Stalin.

Conforme já fizemos referência, Ángel Prior, no livro Axiología de la

modernidade: ensayos sobre Agnes Heller (2002), divide o pensamento de Heller em

três fases distintas: as da Hungria, as da Austrália e as dos Estados Unidos. Essa

divisão nos parece assaz significativa, haja vista que as tendências e o rumo que

Heller dá aos seus escritos acompanham sua trajetória de vida.

Seus escritos apresentam-se realmente como uma lebensphilosophie, ou

seja, sua própria evolução intelectual acompanha o contexto sócio-histórico vivido. É

um esforço de intensa singularidade-particularidade personificada e materializada

numa obra, um verdadeiro prelúdio de seus mais ardentes desejos. Acompanha as

oscilações e tensões do mundo moderno e contemporâneo, consubstanciada numa

tentativa de construir uma filosofia da práxis.

Ao apresentar a obra de Ángel Prior, Jacobo Muñoz, traça um perfil, que nos

parece bem característico e significativo do qual nos apropriamos, sintetizando o

pensamento de Heller em três fases distintas: “[...] um fundamento idealizado de um

melhor mundo sociopolítico possível” (PRIOR, 2002, p. 15).

Seguindo a analogia de Prior (2002), seus primeiros trabalhos remontam aos

anos em que viveu na Hungria, particularmente, entremeios da década de 1950 até

a sua saída do país no final dos anos de 1970. A obra que caracteriza o interlúdio

para sua segunda fase, compreende o livro Filosofia Radical, escrito em 1974,

306 Não é nossa intenção aqui fazer uma listagem completa das obras de Agnes Heller, primeiramente pela vasta bibliografia, mas sim as que estão diretamente relacionadas com a temática desta pesquisa e algumas que consideramos de maior relevância.

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publicado pela primeira vez em 1977 e traduzido no Brasil por Carlos Nelson

Coutinho em 1983, publicado pela Editora Brasiliense.

Nessa sua primeira fase, Heller escreve seus primeiros estudos sobre A Ética

de Techernichévski, escrita entre 1953/1954 e publicado em 1956. Nesta obra (sua

tese de doutoramento) estuda o problema do egoísmo racional– já comentada

anteriormente. Heller (1982b) esclarece que nesse período “[...] queria conjugar de

modo coletivista o racionalismo ético de Sócrates com as teorias do egoísmo da

Ilustração”, porém, carecia completamente de uma teoria da objetivação. Caminha

por um “epicurismo coletivo filosoficamente insustentável”. A influência de Lerzek

Kolakowski307 é considerável nesse momento para a configuração de uma “filosofia

positiva”308.

No decurso escreve outros ensaios: A Dissolução dos Padrões Morais (1957);

Das intenções as consequências (escrito em 1957 e publicado em 1969); A

Sociologia da Moralidade e Moral da Sociologia (1963); Papel Social e Preconceito

(1963) - estes textos não foram encontrados para nossas análises; e Valor e História

(1969) – este último, ao que nos parece está contido nos seus escritos sobre

Hipóteses para uma teoria marxista do valor, editado em língua espanhola em 1974.

Também é desse período o texto O futuro das relações entre os sexos (1969),

publicado no Internacional Social Science Journal (vol. XXI, nº 04 em 1969), editado

pela UNESCO e traduzido por Amélia Coutinho e publicado pela Editora Paz e Terra

no Brasil como Apêndice do livro A crise da família (1971), obra que trazia temas

importantes sobre as principais preocupações contemporâneas a respeito da família

e da relação entre os sexos, tendo como universo, os debates italianos. Também há

uma versão em alemão e em italiano datadas de 1974.

O livro O Cotidiano e a História, editado primeiramente em alemão em 1970 e

traduzido para o português por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder em 1972,

saiu pela Editora Paz e Terra, primeiro livro da autora editado em terras brasileiras.

Nesta obra, encontramos uma síntese do pensamento helleriano através de

pequenos ensaios temáticos em inspirada concepção marxista.

Heller (1982b) esclarece como se deu a passagem entre os pensadores

clássicos da Antiguidade, passando por Hegel até chegar ao jovem Marx.

307 Leszek Kołakowski (1927-2009), filósofo e historiador polonês. 308 Positivo não esta sendo empregado no sentido positivista, haja vista que Heller relata que ainda não conhecia o Positivismo, mas sim no sentido de uma “utopia social positiva” stricto sensu.

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213

Logicamente com os respingos kantianos que acompanharam suas fases. Também

é importante destacar que esta fase encontrou em Belinski309 e Kolakowski. Antes de

escrever os livros mais significativos desse período, Heller comenta que escreveu

um largo sobre A novela Heloise de Rousseau.

Desta caminhada não poderia resultar se não outra coisa que A Ética de

Aristóteles, escrita entre os anos de 1958 a 1963. Publicada originalmente como Die

Ethik der Aristóteles und das antike EthosI, em Budapeste pela Akadémiai Kiadó, no

ano de 1966. Traduzida para o espanhol por José-Francisco Yvars e Antonio-

Prometeo Moyá posteriormente, do texto original datilografado, publicada em

Barcelona, em abril de 1983, pela Ediciones Península, saindo com o título

Aristóteles y el mundo Antigo. Há indícios que Heller tenha estudado Aristóteles em

grego.

Na sequência, escreve O Homem do Renascimento, publicado em Budapeste

pela Akdémiai Kiadó, em 1967, em inglês em 1978, na Espanha (1980) e em

Portugal (1982b): “[...] uma verdadeira declaração de amor à Itália”310. Heller diz que

esta obra foi inspirada em sua estadia na Itália por ocasião de sua primeira viagem

ao ocidente (1956).

Estes trabalhos formam um esboço introdutório daquilo que planejava ser

uma “ética geral” e foram publicados dez anos depois. Nesses estudos, Heller queria

resolver “[...] a antinomia plantada por Weber entre a ética das contradições e a ética

da responsabilidade e para essa solução necessitava pressupor a prioridade da

ética sobre a moralidade”311.

[...] Em última análise, quase tudo que escrevi nos anos posteriores poderia, efetivamente, caracteriza-los assim: busca do mundo perdido da eticidade

312. Queria encontrar uma tradição, uma história para minhas ideias

(para minha utopia socialista). Encontrei tal tradição nas cidades de cidadãos emancipados, nas que não havia abismo entre o pensamento da vida cotidiana, de um lado, e a política, a ciência e a filosofia, do outro, donde era possível uma vida plena de sentidos para todos. Meu ponto de vista era de modo algum romântico. Já escrevera sobre Atenas e sobre a Florença do Renascimento, jamais ocultava que se tratava, em todos os casos, de “momentos” históricos muito breves e que, como tais, não poderiam servir de “modelo” para nós. Sua validez não era, para nós,

309

Filósofo russo. 310

HELLER, 1982b, p. 124. 311 HELLER, 1982b, p. 119. Grifos do tradutor. 312 Entendida como “forma de vida, pluralidade de mundo ético (como na época do Renascimento), pluralidade das formas de vida”. (HELLER, 1982b, p. 120).

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certamente, a de modelo, mas sim de pré-história313

. (HELLER, 1982b, p. 119-121)

314.

Em nossa opinião, esta obras, dentre todas, são as mais encantada e de uma

erudição invejável, reconhecidas por Lukács como as que mais sintetizavam os

estudos realizados pela “Escola de Budapeste”. Nelas, Heller se preocupa com a

ética e a vida social em momentos e contextos históricos distintos, mas que

apresentavam as condições objetivas para uma vida cotidiana em sua plenitude,

livre dos mais atávicos sentimentos de alienação - era a vida do homem e da mulher

“por inteiro”.

Heller (1982b) descreve com precisão como foi o seu encontro com as obras

de Marx nesse período. Conhecia os clássicos (Platão, Leibniz, Spinoza, Kant e

Hegel), praticamente de memória, mas seu conhecimento sobre os escritos de Marx

era incipiente. Sua ânsia pelo saber, sobretudo por um saber da práxis (ou de uma

filosofia da práxis) a impulsiona para ficar a maior parte do tempo na biblioteca.

Caminha da edição MEGA Marx-Engels315, as obras de Lukács até Gramsci.

Quando encontra com György Márkus, do seu regresso de Moscou (1957), toma

contato com o neopositivismo, Wittgenstein, Russell, dentre outros, passando pelos

americanos Riesmann, Whyte, Fromm e Wrigt Mills.

Sem dúvida estes estudos lhe rederam alguns outros ensaios: Teoria da

práxis e necessidades humanas (1961); Teoria marxista da revolução e a revolução

da vida cotidiana (publicado inicialmente na revista Praxis, em 01 de fevereiro de

1969); Hipótese para uma teoria marxista dos valores – título original Hypothese zu

einer marxistische Werttheorie (manuscritos da autora), Budapeste em 1970, a

edição espanhola data de 1974; Estrutura familiar e comunismo (trabalho em

colaboração com Mihaly Vajda realizado em 1970, publicado em Berlim em 1974 e

na revista Aut Aut em 1972), estudos estes também analisados nesta pesquisa.

Desde 1964, são frequentes os debates nos círculos de estudos sobre a

alienação. Fehec e Heller fazem política na clandestinidade, acabando por serem

detidos pela polícia secreta por agitação adversa ao Estado.

313

Termo utilizado no sentido de antítese e não das épocas jurássicas de escala geológica. 314

Grifos do tradutor. 315 Maiores detalhe podem ser encontrados no artigo Hugo Eduardo da Gama Cerqueira David Riazanov e a Edição das Obras de Marx e Engels, disponível em http://www.anpec.org.br/revista/vol11/vol11n1p199_215.pdf.

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Em 1968, Heller acaba de escrever o livro Sociologia da vida cotidiana,

publicado em 1970 originalmente em húngaro pela Akadémiai Kiadó de Budapeste,

com o título A mindennapi élet (A vida cotidiana). Esta obra contém um Prefácio de

Lukács, pouco antes de sua morte. Este livro foi traduzido para o italiano e alemão

em 1975 e em língua espanhola em 1977.

Vendo a necessidade de trabalhar na distinção de interesses e necessidades,

ainda nessa fase, destaca-se o livro A Teoria das Necessidades em Marx, inspirada

nos movimentos juvenis de 1968, conforme já apontamos.

Nessa obra que a partir da categoria necessidades radicais propõe uma

releitura de Marx e busca fundamentar sua própria utopia: a sociedade de

produtores associados. Esta obra foi publicada pela primeira sob o título Bedeutung

und Funktion des Begriffs Bedürfnis in Denken von Karl Marx. Publicada em italiano

em 1974, em língua espanhola e francesa em 1978.

Em 1974 escreve Movimento radical e utopia radical – publicado em italiano

por Laura Boella em 1974 e em 1976 O ideal do trabalho desde a ótica da vida

cotidiana, publicado na edição espanhola que reúne diversos desses ensaios, já

citados, juntamente com a entrevista concedida a Laura Boella, Guido Neri e

Amadeo Vigorelli, sob o título de La revolução de la vida cotidiana, editado em

Barcelona em 1982.

Segundo Rivero (1996, p. 32), o projeto de realizar uma antropologia social

marxista foi o primeiro intento de Agnes Heller de construir uma filosofia sistemática.

Este, por sua vez, começou com a publicação em 1977 em língua alemã do livro

Instinkt, aggression, charakter: einleitung zu einer marxistischen

sozialanthropologie316, Hamburgo, Berlim: VSA.

Neste livro, Heller desenvolve a primeira parte daquilo que pretendia ser uma

antropologia da personalidade, numa perspectiva polêmica que, na visão de Rivero

(1996, p. 38-39), consistia de uma análise “freudomarxista e da psicologia”. A

segunda parte desse projeto viria a lúmen com o livro Teoría de los sentimentos,

traduzido por Francisco Cusó e publicado pela Editora Fontamara, Barcelona, em

1985, dedicado a uma análise fenomenológica dos sentimentos, realizada na

316

Instinto, agressão e caráter: uma introdução à antropologia social marxista. Este livro também foi publicado pela Editora Península, Barcelona, em 1980, traduzido por J. F. Yvars e C. Moya, sob o título: Instinto, agresividad y carácter.

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mesma perspectiva em que analisou os instintos. Já a terceira parte desse projeto

seria composta com o livro Teoria da História317.

É desta fase os texto que compõem a obra Crítica de la Ilustração (HELLER,

1984a). Os textos publicados nesse livro, na edição espanhola, alguns traduzido do

alemão e outros do inglês por Gustavo Muñoz e o ensaio Fenomenología de la

conciencia desdichada, foi traduzido diretamente do húngaro por José Ignacio López

Soria, são decorrrentes dos anos compreendidos entre 1970 e 1980.

Os ensaios contidos nesse livro tem a intenção teórica de fazer uma

apropriação crítica do pensamento da Modernidade e a persistência do projeto

ilustrado da reflexão contemporânea. Heller faz um diálogo entre Marx e Habernas e

Feuerbach e Lukács. Nesses ensaios, Heller já demonstra suas afinidades eletivas e

o seu projeto intelectual independente.

Este volume contem os seguintes ensaios: Ilustración contra

fundamentalismo: el caso Lessing; La “primeira” y la “segunda” ética de Kant

(utilizado nessa pesquisa); Ludwig Feuerbach redivivoi; Fenomenología de la

conciencia desdicgada: sobre la función histórica de la alternativa de Kierkegaard

(escrito em 1971 e publicado por Heller em 1976); El naufrágio de la vida ante la

forma: Georg Lukács e Irma Seidler (este texto refere-se aos manuscritos de Lukács

encontrados em 1973 num cofre do banco de Heidelberg e se referem as cartas de

Lukács a Irma Seidler); De la pobreza del espíritu: um diálogo de joven Lukács;

Marx, justicia, liberdad: el profeta libertário; Más Allá del deber: el caráter

paradigmático de la ética del clasicismo alemán en la obra de Georg Lukács; La

filosofia del viejo Lukács; La disputa del positivismo como punto de inflexión em la

teoria alemana de postguerra; Habermas y el marxismo; Marx y la “libertación de la

humanidade”.

Em sua fase intermediária (pós 1977), Heller publica os livros Filosofia

Radical, título original: Philosophie des linken Radikalismus, terminando assim seu

primeiro ciclo. A partir de então começa a percorrer novos caminhos que irão

distanciá-la cada vez mais de suas origens, ou seja, do legado lukacsiano e da

defesa do marxismo clássico. Em seus estudos posteriores a 1977, segundo Granjo

(2008), alerta para uma mudança de rota tão profunda que desconhecer a sua

trajetória intelectual, redundaria na impossibilidade de compreender a teoria em que

se baseia atualmente. 317 Este projeto tem sido desenvolvido por Heller nos últimos anos com posteriores escritos.

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Seguindo o raciocínio de Prior (2002), sua segunda fase tem início em sua

estadia na Austrália. Seus principais trabalhos são: Sobre os instintos, editado em

Lisboa em 1983 pela editora Presença; A teoria da História – título original: A Theory

of History – publicado em versão inglesa em 1981, em castelhano em 1985, em

italiano em 1993, no mesmo ano, também no Brasil pela editora Civilização

Brasileira. Crítica a Ilustração, é publicado em língua espanhola em 1984; Além da

justiça (1984-1987) – publicada no Brasil em 1998 pela editora Civilização Brasileira,

dentre outros.

Também, destacam-se nesse período os livros em parceria com seu

companheiro Ferenc Fehér Analises de la Revolución Húngara (Barcelona, 1983),

como também Anatomia de la izqueirda occidental e Sobre el pacifismo (1985) e

Dictadura y cuestions sociales, além de Fehér, em conjunto com György Márkus

(edição inglesa – 1983, espanhola – 1986 e mexicana – 1986), como também o livro

Eastern Left-Western Left, em 1987.

Também é desse período o livro Dialéctica de las formas: el pensamiento

estético de la Escuela de Budapest, escrito por Heller e Fehér e traduzido para o

castelhano por Montserrat Gurguí, em 1987 e publicado pela Editora Península,

Barcelona – Espanha.

Nestes anos, segundo Rivero (1996, p. 20), Heller em colaboração com

Ferenc Fehér, concentrou-se num tipo de atividade autocrítica e de reexame. A

primeira tarefa, juntamente com Fehér e Márkus foi, precisamente, dar conta teórica

do “monumental fiasco que representava os regimes do socialismo real”, resultando

no livro Dictatorship over needs (traduzido para a língua espanhola como Dictadura y

cuestions sociales e publicado em 1983 – Agustín Bárcena traduziu este mesmo

livro e editou pelo Fondo de Cultura Económica, no México, em 1986).

Nos anos posteriores, Heller irá se ocupar com a subjetividade da

personalidade do ser social na busca de respostas para os questionamentos: “[...]

onde podemos encontrar um apoio para nossas ações morais? ; Como é possível

uma ética da personalidade num mundo de valores contraditórios em que já não há

uma nova comunidade moral antecipada por um sentido histórico?”.

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Rivero (1996, p. 27) irá chamar a atenção para o livro Teoria da História, onde

Heller rompe com a grande narrativa marxista, inclusive com a filosofia da história

reformulada como teoria das necessidades radicais318.

Em sua terceira fase, já nos Estados Unidos (1986 - ) empreende pelos

caminhos da pós-modernidade desenvolvendo sua teoria do pêndulo da

modernidade como também outros trabalhos sobre ética, moral e personalidade. Há

uma multiplicidade de títulos nesse caminhar, porém, aqui destacamos somente os

títulos mais significativos para nossa investigação.

Nessa demonstração, percebe-se que “sua vida foi sua obra”: “[...] todo

trabalho filosófico é de fato autobiográfico. [...] Em todo trabalho filosófico existe uma

relação entre vida e obra”319. Um verdadeiro caminhar pelas mais diversas temáticas

no campo da filosófica, sociologia, antropologia, historicidade, política, moral e ética,

personalidade e pós-modernidade.

[...] Escrevendo filosofia moral e filosofia da história para mim, então se tornou uma maneira de pagar a minha dívida para com as pessoas que não puderam sobreviver

320. Assim e a este respeito, a minha filosofia tornou-se

um sacrifício, mas um sacrifício que eu gostava. E isso não é contraditório, eu posso dizer sinceramente que toda a minha vida tornou-se um sacrifício para pagar a minha dívida e, simultaneamente, eu gostei de escrever filosofia. (POLONY, 1997).

Podemos entender por sacrifício a libertação de algum tipo de culpa ou como

a “destruição de um bem ou renúncia ao mesmo” (ABBAGNANO, 2007, p. 1023).

Heller se coloca “por inteiro” na vida cotidiana enquanto sujeito social. Sua obra

passa a ser a materialização daquilo que foi e é importante na sua trajetória de vida.

Enquanto sujeitos plurais321, somos a síntese de múltiplas determinações e relações

sociais, histórica e socialmente constituídas.

A filosofia helleriana se fez na e da sua própria história, traz em si, traços

autobiográficos, assim como na ciência, na música, na literatura, na arte em geral,

318 Ángel Rivero (1996) traça comentários sobre a biografia e o desenvolvimento dos posicionamentos de Heller na atualidade, assim como Ángel Prior (2002), porém, acreditamos não ser oportuno copilá-los aqui, já que não estamos nos ocupando dessas analises, podendo, assim, cair numa descrição unilateral. 319 HELLER, 2002, p. 20. 320

Referência ao holocausto. 321 Entende-se aqui por sujeitos plurais o ser social consciente de sua condição de individualidade (ou singularidade), particularidade e genericidade, resultado de suas múltiplas determinações e relações sociais, ou seja, o “ser por inteiro”.

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em outras palavras, é a própria afirmação da sua condição de individualidade. Para

nós, um verdadeiro concerto sinfônico na e para a vida.

Apesar de suas intransigências, às vezes, incoerência, polêmicas, de um

romantismo utópico, ou mesmo de suas inconsistências, de um estilo próprio -

pluralista conforme algumas opiniões contrárias (opiniões estas das quais não

compactuamos) -, é inegável o seu esforço em favor de uma autêntica vida reflexiva

e não-alienada, tanto na teoria, como na práxis, algumas vezes apontando para um

lirismo, é sempre real e concreto, enquanto síntese de múltiplas determinações.

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CAPITULO IV

4. EMANCIPAR-SE PARA EMANCIPAR: “LIBERDADE AINDA QUE TARDIA”

“O homem vem ao mundo dotado somente de características particulares e de uma genericidade ‘muda’: e é somente o ‘mundo’ o que desenvolve nele tanto a genericidade consciente quanto o comportamento baseado na particularidade”.

Agnes Heller

4.1. A gênese do ato

Em suas análises sobre a ética aristotélica, Heller (1983) trouxe elementos

assaz interessantes para a compreensão da gênese do ato. Para Aristóteles, a

decisão é sempre uma expressão de autonomia e esta, por sua vez, constitui um

conceito mais amplo que a decisão: “[...] a decisão é um ato eletivo encaminhado a

uma ação e precedido por uma deliberação”322.

Deste modo, só se delibera aquilo que está ao nosso alcance e é realizável,

mas também deliberamos em conformidade aos nossos interesses e necessidades.

Não deliberamos sobre os fins, mas sim sobre os meios que conduzem ao fim:

[...] se o homem não fosse – relativamente – autônomo, se não pudesse fazer de causa e ser – sempre em medida relativa – ao ponto de partida das ações próprias, a deliberação não teria demasiada importância no terreno ético. Nesse caso, o homem não deveria fazer outra coisa que assimilar a própria situação ao fator geral e sua ação se voltaria igualmente mecânica (HELLER, 1983, p. 298).

Para exemplificar, nos reportamos ao trabalho: quanto mais mecânico é, mais

subordinado ao mecanicismo está, ou seja, sem deliberações, ao passo que quando

temos uma relação consciente com o trabalho realizado, maior são as possibilidades

de deliberação, ou seja, de mudar o curso ou criar novas possibilidades para a sua

realização.

Heller (1983) demonstra que Aristóteles não poderia, em seu tempo conceber

a autonomia relativa do ser social dentro dos processos de exploração e reificação

nos quais homens e mulheres estão submetidos/as: “[...] quanto menos possibilidade

322 HELLER, 1983, p. 297.

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há, mais fechado estará a probabilidade do inevitável, e o papel da deliberação se

voltará secundário na decisão”323.

Heller (1983) demonstra que a decisão não pode surgir sem a deliberação.

Mas como atuamos também sem deliberação, menor é a relação com os impulsos.

Coloca que, segundo Aristóteles, nem todas as deliberações desembocam numa

decisão: “[...] há deliberações que não tem por consequência, uma decisão, tão

pouco se transformam em ato”324.

A valoração boa ou má não se constitui necessariamente uma deliberação

moral, mas sim, daquilo que contribui para a valoração da essência humana. A

desvalorização de um desses componentes é por si mesma um mal: “[...] o ponto de

partida de todo o processo é a vontade”325.

A visão de humano e de mundo interfere significativamente na moralidade

diante de uma ação. Segundo Heller (1983), foi Aristóteles quem descobriu que a

ação nociva e a boa ação, em igual medida, são objetos da moral. Desse modo, o

ser social é tão responsável como também artífice de seu próprio destino, seja ele

direcionado ao bem quanto ao mal, porém, não se pode negar as determinações e

circunstâncias enquanto causalidade e fatalidade, os interesses e necessidades.

Heller (1983) aponta que Aristóteles apenas se ocupou do bem. Sua ética

visava às virtudes, portanto, o mal não se apresentou enquanto objeto, mas sim,

como objetivo, estava determinado a certos interesses contrários às virtudes. A

virtude moral é uma virtude ética adquirida pelo hábito bom.

Nesse caminhar, a ética é sempre concebida em sua forma positiva (ação

para o bem – para a felicidade), porém, do ponto de vista valorativo, pode também

apresentar componentes de desvaloração da essência humana, havendo, assim,

uma afirmação do mal: “[...] não é só a eleição dos meios que exigem reflexões e

decisões, mas sim, também eleições mesma de objetivos, não só os meios e os

métodos de realização pertencem à esfera do particular, mas sim também o fim”326.

Nesse sentido, a vontade só pode ser verdadeiramente autônoma se se tem

consciência dela. Vontade e opiniões são fatores que se influenciam

reciprocamente. Pode-se desejar coisas distintas e ter diferentes impulsos, porém,

serão sempre individuais. Tudo o que se faz contra a vontade é feito sob coação.

323

HELLER, 1983, p. 299. 324 HELLER, 1983, p. 299-300. 325 HELLER, 1983, p. 300. 326 HELLER, 1983, p. 301.

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Estamos convencidos que a vontade, a opinião e o ato, não só dependem do

sujeito, mas também das possibilidades, necessidades e circunstâncias.

Determinações externas à vontade dos indivíduos podem determinar fins

inicialmente não projetados ou esperados.

Aqueles/as que estão necessariamente presos/as às circunstâncias e/ou

determinações, estão, por sua vez, coagidos à não-liberdade:

[...] Sartre tinha razão quando chamava a concepção marxista da história a história consciente da Humanidade. Quanto em maior medida seja capaz um pensador de apreender dialeticamente a totalidade e a heterogeneidade, analisando a complexidade e as diferenças específicas da ontologia social, tanto mais clara expressão dessa consciência será sua obra (HELLER, 1983, p. 374).

No atual estágio da Humanidade, ou reavivamos a expressão da

individualidade enquanto emancipação dos sujeitos rumo ao afloramento de sua

singularidade-particularidade revolucionária, individual ou coletiva e (re)organizamos

o sujeito histórico revolucionário coletivo para uma nova sociabilidade, ou nos

entregamos ao “reino da barbárie”: é preciso lutar por consciência e liberdade antes

que seja tarde demais.

4.2. Emancipar-se para emancipar: a genericidade em questão

Marx, ao se posicionar radicalmente contra Bruno Bauer em A questão

judaica, escrita em 1843 e publicada em 1844, expõe a emancipação de forma clara,

dizendo que a emancipação política é o primeiro passo para a emancipação

humana. No texto em questão, Marx defende que a luta pela emancipação não deve

se restringir simplesmente ao seu caráter civil e político, nem mesmo objetivar uma

emancipação individual e singular, mas sim em sua forma ampla, focada na luta pela

libertação da humanidade (MARX, 2010).

Apesar de Marx tratar de uma questão particular sobre a religiosidade, fica

claro que esse conceito se amplia numa perspectiva mais genérica. A emancipação

se inicia com a própria emancipação do indivíduo (ou consciência de-si-mesmo), de

modo a emancipar-se para-si-mesmo.

Contudo, não há como emancipar um segmento, ou a formação do sujeito

coletivo revolucionário, sem que os próprios indivíduos estejam ainda “prisioneiros”

de alguma coisa (dogmas, ultrageneralizações, juízos provisórios, normas e regras

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etc.). A emancipação de um segmento não deve acarretar apenas sua diferença, ma

sim o reconhecimento de sua igualdade enquanto genericamente humana (ou

genericidade).

As lutas pela emancipação - individual e coletiva – tem-se sido direcionadas

para a discussão das diferenças e da diversidade. A liberdade de um segmento ou

de particularidades não implica necessariamente a luta por liberdade, mas sim da

própria emancipação enquanto humano-genérico.

No momento atual, as lutas éticas e políticas visam à liberdade de etnia,

gênero, sexualidade, condição social ou econômica, enfim, as lutas particulares e de

interesses singulares e particulares e não de sua genericidade.

É evidente que estas lutas ainda são necessárias. É preciso primeiramente

que os indivíduos estejam identificados e sejam reconhecidos enquanto

individualidades. Ainda, infelizmente, é preciso que os segmentos historicamente

inferiorizados e descriminados assumam suas bandeiras, sua identidade e se

coloquem enquanto tais.

Entendemos que fazem parte desses grupos as mulheres, as etnias, os/as

homossexuais, índios, as pessoas com deficiência, enfim, os segmentos que social e

historicamente foram perseguidos, discriminados, excluídos, até mesmo mortos por

serem desconsiderados enquanto gênero humano.

A consciência da individualidade é, sem sombra de dúvida, o primeiro passo

para a própria libertação. Mas a liberdade enquanto categoria ontológico-social de

forma a objetivar sua própria libertação genérica, implica num movimento.

[...] A Humanidade será livre quando todo homem particular puder participar conscientemente na realização da essência do gênero humano e realizar os valores genéricos em sua própria vida, em todos os aspectos desta (HELLER, 1977, p. 217).

Deste modo, quando um segmento minoritário luta pela sua emancipação,

está lutando, também, pela sua própria identidade e libertação (na direção de sua

autoafirmação, autorrealização e autolibertação). Libertação essa que o desvincula

dos grilhões que o oprimem, perante as imposições de conceitos e valores que

castram a própria essência enquanto indivíduo.

Observa-se que, no decorrer histórico das conquistas civis, políticas e sociais,

engendradas por lutas constantes e por sujeitos revolucionários individuais e

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coletivos, propiciou uma evolução social capaz de reconhecer homens e mulheres

enquanto agentes e detentores de direito. Mesmo com algumas conquistas

universais, como por exemplo, o sufrágio universal, e conquistas particulares e

pontais, muito ainda está para ser feito e realizado.

Em nossa opinião, a segregação leva sempre ao não cumprimento dos

direitos universais dos homens e das mulheres. A luta pela emancipação não é uma

luta unilateral que se restrinja à conquista de direitos de apenas um segmento

minoritário, mas, ao contrário, a emancipação tem seu valor agregado justamente

pela atitude emancipativa do ser humano-genérico.

Heller (1977), ao se referir a Marx e seus apontamentos sobre a Liberdade,

coloca:

[...] a Humanidade será livre quando todo homem particular puder participar conscientemente na relação da essência do humano-genérico e realizar os valores genéricos em sua própria vida e em todos os aspectos (HELLER, 1977, p. 217).

A segregação impede a participação na vida política, na vida em comunidade,

ao passo que a democracia traz para o palco a liberdade de participação, abrindo as

portas para o diálogo plural e igualitário: “[...] onde não há democracia formal, os

movimentos que expressam carecimentos radicais não tem sequer a possibilidade

de se constituírem”327.

A questão da democracia ou das formas democráticas328 tem valoração

importante no desenvolvimento do pensamento helleriano e está intrínseca e

diretamente relacionada aos acontecimentos mais significativos de sua vida. As

formas democráticas de participação resultam da consciência de liberdade e,

portanto, representam um caminho para a emancipação.

Para Marx (2010, p. 54), “[...] toda emancipação é redução do mundo humano

e suas relações ao próprio homem”. Para Heller, (1977, p. 217), a liberdade em sua

individualidade-particularidade, é a liberdade que possibilita plasmar o próprio

destino, a própria integração, a que liberta a personalidade moral da construção

externa, pode atuar na base da sua própria responsabilidade e deve assumir a

327

HELLER, 1982, p. 137. 328 Sobre esta questão ver - HELLER, A. Democracia formal e democracia socialista. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1980, p. 171-187 (HELLER, 1980a).

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responsabilidade das suas ações. É, portanto, o justo reconhecimento das

alternativas e das possibilidades de realização orgânica de sua autonomia:

[...] todas estas são liberdades autênticas, que não perderam sua validez nem se quer no futuro, e que todo homem poderá levar a pratica só depois da superação da alienação. E vice-versa: todas estas liberdades, que o homem tem desenvolvido no curso de sua pré-história são partes integrantes e necessárias do desenvolvimento genérico mais possível para a superação da alienação. A concepção da superação da alienação, da liberdade humana, não “sintetiza” todas as liberdades; portanto, o conceito de liberdade proporcionado por Marx não substitui os seus precedentes, nem estes podem estar subordinados. O conceito marxiano de liberdade possui um caráter histórico-filosófico, expressa a perspectiva histórica em que as liberdades heterogêneas das esferas heterogêneas alcançam sua própria realização (HELLER, 1977, p. 217-218)

329.

A sociedade contemporânea apenas demonstra a necessidade de afirmar os

direitos individuais egoisticamente, de forma a prevalecerem os interesses privados

e particulares, restringindo o ser genérico à preservação de um individualismo

egoístico.

Defendemos que a liberdade pressupõe a total eliminação de qualquer

entrave que possibilite a justiça, o respeito e a defesa dos direitos humanos, as

formas democráticas, a equidade, a eliminação de qualquer forma de preconceito e

discriminação, a socialização da riqueza, a eliminação da propriedade privada,

enfim, o anseio de uma sociedade verdadeiramente socialista.

Tal dizer parece ecoar de forma utópica de visualizar a sociedade, porém, a

História tem demonstrado que, através das lutas e conquistas constantes, dos

movimentos sociais, dos sujeitos individuais e coletivos revolucionários, é possível

viver numa sociedade mais justa, democrática, igualitária e, por conseguinte, mais

humanista.

Ousamos dizer que a sociedade idealizada por Marx nunca existiu, mas seus

ideais ecoam, cada vez mais, de modo a impulsionar para as transformações

necessárias. Logicamente, tais ideais ainda estão longe de tornarem-se realidades,

mas, a cada dia, observamos sua materialização através dos direitos conquistados,

vitórias civis, políticas e sociais, mesmo que particulares e judiciais, enfim, a

consolidação daquilo que parecia ser utópico.

Vivemos numa sociedade em que velhos clichês preconceituosos, moralistas

e machistas ainda fazem parte do cotidiano de uma vida em comunidade. As lutas,

329 Grifos da autora.

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de certa forma, ainda visam emancipar apenas grupos minoritários em suas próprias

diferenças e grupos segregados.

Parafraseando Marx (2010, p. 54), pensar apenas na emancipação política,

civil e social, é reduzir homens e mulheres a indivíduos egoístas independentes,

cidadão/ãs, pessoas morais, membros de uma sociedade eminentemente burguesa.

Acreditamos que o primeiro passo se encontra na emancipação civil e política,

porém, as lutas não podem parar aí, devem ter como meta a emancipação humana.

A contribuição de Heller está em demonstrar a individualidade enquanto tomada de

consciência ética e política do movimento que humaniza individual e coletivamente,

além disse, também apresenta fundamentos para uma atitude crítica e revolucionária

e da vivência de uma vida não alienada.

A autoemancipação leva à emancipação civil, política e social e, num contexto

mais amplo, rumo à emancipação humana. Deste modo, seguindo Bonetti (et. al.,

2006) cabe aliar a vontade individual, iluminada por uma consciência ética e política

como intencionalidade coletiva e de compromissos sociais, conjuntamente a um

saber teórico-prático crítico e, ainda, às necessidades e possibilidades, de modo a

buscar materializar o produto de uma ação consciente e que espelhe o conteúdo e

os princípios de um conjunto de valores fundamentais, os quais apontam para

motivações e exigências ético-políticas na perspectiva da revolução da vida

cotidiana.

4.3. A liberdade como conceito

Os conceitos que entrelaçam a liberdade e a igualdade dificultam o

estabelecimento de um sistema coerente entre ambos, talvez por isso muitos

teóricos concebam por liberdades, e não como um conceito fechado em si mesmo.

Falar em liberdade pressupõe analisar os vários momentos em que este

conceito se estabeleceu. Não cabe nesta dissertação fazer esta análise, muito

menos fazer um tratado sobre a liberdade, mas sim ponderar os principais

apontamentos hellerianos e suas concepções.

Nesse sentido, Heller aponta que:

[...] a liberdade é sempre liberdade para algo, e não apenas liberdade de algo. Se interpretarmos a liberdade apenas como o fato de sermos livres de alguma coisa, encontramo-nos no estado de arbítrio, definimo-nos de modo

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negativo. A liberdade é uma relação e, como tal, deve ser continuamente ampliada. O próprio conceito de liberdade contém o conceito de dever, o conceito de regra, de reconhecimento, de intervenção recíproca. Com efeito, ninguém pode ser livre se, em volta dele, há outros que não o são (HELLER, 1982, p. 155).

Para Heller (1977, p. 218), quanto mais particulares são os interesse e as

esferas determinadas, maior e mais próximo estaremos da cotidianidade, ao passo

que quanto mais se tem em conta os valores genéricos, tanto mais nos

aproximamos de um conceito filosófico de liberdade.

A consciência particular (ou cotidiana) entende a liberdade em seu sentido

mais reduzido, ou seja, a liberdade enquanto esfera da moral (da possibilidade de

eleger entre o bem e o mal).

Para Heller (1977, p. 219), há uma hierarquia evidente na concepção de

liberdade. A possibilidade ou a realização das ações destinadas a levar a cabo os

valores genéricos elegidos conscientemente, deve ocupar o primeiro lugar nessa

hierarquia. Isso não quer dizer eliminar as outras concepções de liberdade.

A liberdade se insere no cotidiano da vida em sociedade. A sociedade livre é

aquela em que homens e mulheres não precisam impor suas necessidades. O

membro dessa sociedade é aquilo que é em sua singularidade-particularidade.

Expressa seu próprio modo de ser, sem entraves ou atavismos.

Heller (2004) coloca que homens e mulheres na vida cotidiana,

[...] jamais escolhem valores, assim como jamais escolhem o bem ou a felicidade. Escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas, alternativas concretas. Seus atos concretos de escolha estão naturalmente relacionados com sua atitude valorativa geral, assim como seus juízos estão ligados à sua imagem do mundo. E reciprocamente: sua atitude valorativa se fortalece no decorrer dos concretos atos de escolha. A heterogeneidade da realidade pode dificultar extraordinariamente, em alguns casos, a decisão acerca de qual é a escolha que, entre as alternativas dadas, dispõe de maior conteúdo valioso; e essa decisão – na medida em que é necessária – nem sempre se pode tomar independentemente da concreta pessoa que a pratica (HELLER, 2002, p. 14).

Neste caso, a essência ficaria encoberta até que novos ideais se

consolidassem. A liberdade da vida cotidiana colide com o gênero humano quando

algo que se quer representa a liberdade de sua particularidade. Quando o interesse

se individualiza e particulariza, tende-se a pisotear nos demais para se conseguir

aquilo que se quer.

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228

O ser social não nasce pronto, mas num ambiente pré-estabelecido. A partir

do momento em que toma consciência de si, passa a produzir e reproduzir seu

próprio ambiente e sua própria personalidade. Ao questionar, interrogar e

autoanalisar, passa a buscar um novo conhecimento.

Para que este novo conhecimento se estabelece, primeiramente, torna-se

necessário eliminar todas as formas de juízos provisórios, ultrageneralizações e

sistemas consuetudinários baseados em crenças e desprovidos de fundamentação e

sentido, ou seja, de uma opinião aceita, devido à tradição do grupo na qual se insere

sem, contudo, questionar a hierarquia dos seus valores.

Os indivíduos não são, tão somente, um ser que traz em si uma consciência

de-si, nem tampouco uma consciência de-nós, ao contrário, configuram sua própria

“consciência do Eu”, ou sua própria identidade, através das relações sociais que

estabelece ao longo de sua vida e das determinações (HELLER, 2004).

Para Heller (2004, p. 22), “[...] o indivíduo é um ser singular que se encontra

em relação com a sua própria individualidade particular e com sua própria

genericidade humana”.

É em sua singularidade que o ser social busca sua própria liberdade e

autonomia. Em outras palavras, “[...] o desenvolvimento do indivíduo é antes de

qualquer coisa – mas de nenhum modo exclusivamente – função de sua liberdade

fática ou de suas possibilidades de liberdade”330.

Quando esta “unidade do indivíduo” se alia à sua própria particularidade e

genericidade, cria em-si-mesmo, um movimento de construção, desconstrução e

reconstrução singular e constante. Essa relação é, na maioria das vezes,

contraditória e conflituosa.

A exteriorização dessa individualidade consciente e dos valores

essencialmente humanos, perante situações particulares, como por exemplo, a vida

cotidiana alienada e alienante, acaba entrando em choque com os padrões pré-

estabelecidos ou sistemas consuetudinários. Fato este que faz com que homens e

mulheres não tenham uma liberdade plena, mas sim uma “liberdade relativa”

(HELLER, 2004, p. 23).

Ao se projetar no mundo, o indivíduo não só produz e reproduz as condições

ou padrões pré-estabelecidos, mas também cria alternativas de escolhas, de

mediações e de possibilidades, porém, é dotado de paixões, sentimentos, 330 HELLER, 2004, p. 22.

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229

interesses, necessidades, motivações e desejos particulares e singulares que devem

ser considerados em qualquer análise ou intervenção particular ou profissional.

A tomada de consciência possibilita, em grande medida, lutar para modificar a

realidade pré-estabelecida ou imposta, muitas vezes, alienada e alienante

(VERONEZE, 2007).

Deste modo, para que haja a construção de uma sociedade menos

individualista e cada vez mais coletiva, na direção da emancipação civil, política e

social, torna-se imprescindível a emancipação do ser social por uma vontade

coletiva.

Segundo Barroco (2005, p. 16), é no “[...] campo de possibilidades onde são

feitas as escolhas, onde valores são afirmados e negados, onde nascem e se

desenvolvem determinados modos de ser que facilitam ou não a adesão a projetos

coletivos [...]”, que se identificam as configurações e fundamentos para uma

determinada ética e para uma determinada vontade e ação política.

Para se construir uma consciência ética e política coletiva deve-se levar em

conta que os sujeitos sociais não estão isolados do conjunto da sociedade, nem tão

pouco desvinculados dos interesses unilaterais da vida cotidiana, são indivíduos

que, em si, apresentam necessidades, objetivos e interesses particulares, singulares

e, muitas vezes, coletivos.

A vivência de determinados princípios ético e políticos na vida cotidiana rumo

a uma ação coletiva revolucionária, exige um comprometimento próprio dos sujeitos

sociais revolucionários. Implica na consubstancialização de valores para uma

tomada consciência e de atitude, ou seja, para uma mudança radical do modo de

ser, pensar, viver e agir.

Por conseguinte, implica numa consciência ética e política daquilo que se

pensa e se defende, um ethos, um determinado modo de ser singular, particular e

genericamente humano.

É importante salientar que a práxis, ou a motivação da práxis revolucionária,

não deve estar desvinculada de sistemas de valores e circunstâncias cotidianas que,

muitas vezes, impedem a elevação da subjetividade, a suspensão da imediaticidade

e da cotidianidade, para a objetivação dos valores éticos e políticos universais.

A consciência ética e política depende, além das reflexões teórico-filosóficas,

a necessidade de alterar o “reino das necessidades”. Pressupõe uma atitude radical

em não aceitar a realidade dada e aparente, mas ir em busca da essência e dos

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230

valores em que se baseia e, nessa busca, ter como objetivo alterar as situações

alienadas e alienantes (submissão, exploração, violência, juízos provisórios, arbítrios

etc.).

Quando o indivíduo toma consciência de si e busca outros indivíduos que

pensam ou agem da mesma forma e que comungam das mesmas necessidades e

interesses, cria-se um elo mais resistência que possibilita realizar alterações

pertinentes e duradouras do grupo em que se insere (consciência para-nós).

Essa tomada de decisão rumo a uma determinada ação coletiva, promove a

formação de grupos sociais que buscam sua autonomia em relação à realidade

apresentada. Estes, por sua vez, lutam não só pela garantia de seus direitos

enquanto cidadãos/ãs como também devem expressar a luta em favor dos

componentes essencialmente humanos e genéricos.

Tendo em vista os padrões e conceitos historicamente estabelecidos, os

juízos provisórios, os preconceitos, os sistemas consuetudinários, as

ultrageneralizações e a discriminação definem e rotulam pessoas, grupos ou

situações, por aquilo que aparentam ser – a aparência esconde a essência. Deste

modo, se faz uma analogia a um determinado comportamento ou ação de uma

pessoa, grupo ou situação e se ultrageneraliza.

[...] Se fui roubado por um menino de rua, vou achar que todos os meninos de rua são ladrões. É uma justificativa baseada numa experiência própria, cujo conceito se generaliza para uma categoria, envolve também o sentimento de confiança, pois nunca mais terei confiança nos meninos de rua (GUIMARÃES, 2002, p. 18).

Ao assumir estes “juízos provisórios” de modo a tomar conta do pensamento

cotidiano, geram-se os preconceitos: “[...] o juízo provisório de analogia pode

cristalizar em preconceitos”331. Esta cristalização gera, por sua vez, os estereótipos,

discriminações e violências.

Para Heller (2004, p. 34),

[...] Não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismos, economicismo, andologia

332, precedentes, juízos provisórios, ultrageneralizações, mimese e

entonação. Mas as formas necessárias da estrutura e do pensamento da vida

331 HELLER, 2004, p. 35. 332 Estudo da medicina do homem ou da sexualidade humana (aparentemente – não sendo encontrada uma definição especifica desse termo).

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231

cotidiana não devem se cristalizar em absolutos, mas têm de deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação.

333

Os sistemas cristalizados provocam a alienação da realidade e da vida

cotidiana. Verdades fechadas e acabadas, como dogmas, que teimam em se impor,

não fazem parte do conhecimento empírico e científico, mas sim do moralismo. Em

outras palavras, essa cristalização de concepções aparentemente verdadeiras são

em conformidade com as concepções dos interesses particulares de determinada

pessoa, grupo ou comunidade.

É na vida cotidiana que homens e mulheres estabelecem as definições e os

juízos de valores pelos quais suas vidas serão estabelecidas. Porém, em alguns

casos, o fazem de maneira negativa, o que significa conceber pré-julgamentos ou

juízos provisórios ultrageneralizados (VERONEZE, 2007).

Para Heller (2004, p. 43),

[...] o preconceito é a categoria do pensamento e do comportamento da vida cotidiana. [...] São traços típicos da vida cotidiana: o caráter momentâneo dos efeitos, a natureza efêmera das motivações e, a fixação repetitiva do ritmo, a rigidez do modo de vida. De forma análoga, é o pensamento cotidiano, um pensamento fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo, ultrageneralizador.

Os juízos provisórios e os preconceitos são gerados pelo pensamento e pelo

comportamento cotidiano e estes acabam por gerar normas de conduta regidas pela

moral, e não pela consciência ética. A reprodução dessas normas depende da

espontaneidade e da repetição por meio das quais elas se tornem hábitos e se

transformam em costumes, de modo a responder as necessidades de integração

social.

Ao se afirmar como norma de conduta, a moral define as regras para se

manter o status quo das coisas ou situação, uma determinada ordem social. Porém,

quando a moral é concebida por princípios dogmáticos e dominantes, esta se

apresenta de modo alienada e passa a estabelecer uma função punitiva: o

moralismo.

O moralismo e o preconceito andam juntos. O preconceito impede a

concepção de ideias ou atitudes diversas daquelas já estabelecidas, e o moralismo,

as pune. É, portanto, uma relação de amor e ódio e de fé e confiança. Diante do

333 Grifos da autora.

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diferente, do diverso e do estranho, a atitude moralista, preconceituosa e

discriminatória pune através das diferentes formas de violência.

Para Heller, “[...] o preconceito pode ser individual ou social. O homem pode

estar tão cheio de preconceitos com relação a uma pessoa ou instituição concreta

que não lhe faz absolutamente falta à fonte social do conteúdo do preconceito”334.

Implica dizer que, em grande medida, o nível de alienação é tão grande que não se

percebe ou não se busca a origem ou os fatos que geraram aquele determinado

preconceito: “[...] os preconceitos servem para consolidar e manter a estabilidade e a

coesão da integração dada”335.

Ao se transformar em moralismo, como forma de alienação da moral, o

preconceito moral nega a própria moral “como forma de objetivação da consciência

crítica, das escolhas livres, de construção da particularidade” (BARROCO, 2005, p.

48), por conseguinte, instaura-se a intolerância, o arbítrio, o autoritarismo, enfim,

situações que negam a substancia da liberdade e da democracia.

Heller pontua que toda a forma de preconceito traz, em si, aspectos

negativos, portanto, moralistas, deste modo, impedem “[...] a autonomia do homem,

ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e,

consequentemente, estreitar a margem real de alternativas do indivíduo”336.

Portanto, quando uma pessoa ou segmento, um grupo ou comunidade luta

pela sua “des-fossilização”, ou seja, pela des-cristalização de ideias, conceitos e

juízos pré-estabelecidos, luta, também, pelo próprio andamento da história, pela

própria dialética das relações sociais. Luta, ainda, pelo seu reconhecimento como

sujeito civil, político e social, luta-se pela emancipação em todos os graus e pela

dissolução de concepções antigas, luta por liberdade.

[...] Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forças propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).

Heller (1977) pontua que o,

334 HELLER, 2004, p. 49. 335 HELLER, 2004, p. 53. 336 HELLER, 2004, p. 59. Grifos da autora.

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[...] desenvolvimento da liberdade genérica não constitui um processo homogêneo isento de contradições. Determinadas tendências de desenvolvimento, determinados procedimentos etc., podem favorecer num certo sentido a liberdade genérica e em outro empurra-la ao distanciamento ou inclusive bloquear (HELLER, 1977, p. 222).

Concluímos esta parte com uma colocação de Lukács quando diz que:

[...] a liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do ‘alto’ e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas consequências dilata – objetivamente e de modo contínuo – o espaço no qual a liberdade se torna possível; e tal dilatação ocorre, precisamente, de modo direto, no processo de desenvolvimento econômico, no qual, por um lado, acresce-se o número, o alcance etc., das decisões humanas entre alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a capacidade dos homens, na medida em que se elevam as tarefas a eles colocadas por sua própria atividade. Tudo isso, naturalmente, permanece ainda no “reino da necessidade”. (LUKÁCS, 1978, p. 15).

Heller entende o “agente revolucionário” como o sujeito consciente ética e

politicamente, porém, não podemos perder de vista o cotidiano, as relações sociais,

a complexidade do ser social, as subjetividades, a diversidade, os preconceitos, os

papéis sociais, os juízos ultrageneralizados, as diferenças, os limites, enfim,

situações comuns no emaranhado campo das relações sociais cotidianas, micro e

macro estruturais.

Para Heller (1983) a riqueza do gênero humano, “[...] significa o

desenvolvimento de todas as faculdades materiais, psíquicas e espirituais

adequadas ao gênero humano”337. Nessa reflexão, Heller aponta que Marx é o “[...]

mestre filosófico do radicalismo de esquerda”338, contudo, “[...] como todo filósofo,

pode ser compreendido de diferentes maneiras”339.

Aqui faremos uma pequena e rápida referência ao Projeto Ético-político-

profissional do Serviço Social no intuito de compreender o entrelaçamento do

referencial helleriano e, consequentemente, marxista, para uma proposta consciente

e de coletividade enquanto sujeitos revolucionários e educadores sociais.

337 HELLER, 1983, p. 174. Grifos da autora. 338 HELLER, 1983, p. 142. 339 HELLER, 1983, p. 143.

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234

4.4. O/a assistente social frente ao Projeto Ético-político-profissional

Com base nos princípios de emancipação elencados no item anterior

estudaremos a construção de um projeto ético-político do Serviço Social, que tem

como centro o reconhecimento da liberdade como valor ético-político primordial para

a vida humana e profissional.

É resultante da renovação dos parâmetros que definiam a identidade e

atuação dos/as assistentes sociais na sociedade brasileira diante do modelo

conservador. Dentro de um processo histórico e coletivo, redefiniu-se as bases

teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas do Serviço Social,

assumindo um posicionamento crítico frente às mudanças da sociedade brasileira

contemporânea, compreendendo, desse modo, a dimensão e as novas expressão

da questão social no Brasil, a redemocratização do Estado e as consolidação dos

direitos civis, políticos e sociais.

O Código de Ética do Serviço Social de 1993 marca fundamentalmente a

segunda renovação ética da profissão, historicamente conquistada em prol da

afirmação de valores emancipatórios na contemporaneidade do Serviço Social

brasileiro, parte constitutiva do processo de construção do projeto ético-político

profissional como pensamento crítico em oposição ao conservadorismo.

(BARROCO, 2004, p. 28).

A democratização da vida política, das lutas dos/as trabalhadores/as e dos

movimentos populares, representados pelos diversos partidos, sindicatos,

associações, instituições de todo jaez, são fatores que produziram a renovação das

bases teóricas e metodológicas do Serviço Social contemporâneo no Brasil.

Incorpora-se ao debate uma nova proposta para a atuação do/a assistente social:

um projeto ético-político que se expressa em si a organização política da categoria e

seu acúmulo teórico, especialmente no campo da tradição marxista.

Portanto, este projeto coletivo envolve “sujeitos individuais e coletivos em

torno de uma determinada valorização ética que está intimamente vinculada a

determinados projetos societários presentes na sociedade de forma a se relacionar

com os diversos projetos coletivos (profissionais ou não) em disputa na mesma

sociedade” (REIS, 2005, p. 415).

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[...] Os projetos coletivos se relacionam com as diversas particularidades que envolvem os vários interesses sociais presentes numa determinada sociedade. Remetem-se ao gênero humano uma vez que, como projeções sócio-históricas particulares, vinculam-se aos interesses universais presentes no movimento da sociedade. Em outras palavras, os interesses particulares de determinados grupos sociais, como o dos assistentes sociais, não existem independentemente dos interesses mais gerais que movem a sociedade. (REIS, 2005, p. 415).

Desta forma, o Serviço Social, embasado numa proposta ideo-política, visou

atuar numa perspectiva de totalidade. A intervenção profissional “[...] está

historicamente vinculada às sequelas da ‘questão social’, fruto do “esgarçamento”

dos vínculos sociais, do desrespeito ao ser humano, da violência e da perda de

direitos, das questões políticas neoliberais etc.” (BARROCO, 2004, p. 39).

As questões singulares remetem a questões universais. Desta forma, esta

proposta está vinculada a um projeto de transformação social. Portanto, o assistente

social, engajado nesta proposta, não age de forma unilateral, mecanicista,

fragmentada, assistencialista, vinculado a políticas distributivas, mas procura

transformar a sociedade através de uma intervenção política e de ações dirigidas em

que sejam favorecidos os interesses sociais distintos e contraditórios (REIS, p. 415-

416).

Segundo Netto (1999), o projeto ético-político do Serviço Social,

[...] tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor ético central – a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher entre alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais (NETTO, 1999, p. 104-105).

Assim, o projeto ético-político do Serviço Social constitui a autoimagem da

profissão, os valores que a legitimam sua função social e seus objetivos, bem como,

seus conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, enfim, seu

modo de ser teórico-metodológico, ético-político e ideo-político, bem como a sua

dimensão técnica-operativa. Esta proposta ideo-ético-política constitui a

materialização deste projeto nas próprias ações profissionais do cotidiano do/a

assistente social.

A materialização deste projeto possui três dimensões articuladas entre si:

a) a dimensão da produção de conhecimentos no interior do Serviço Social: a

capacidade que a profissão tem de analisar a sociedade e concretizar tais

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observações em produções dissertativas e analíticas (histórico-crítica) da sociedade,

produzindo, assim um saber próprio da profissão e não somente um saber técnico;

b) a dimensão político-organizativa da categoria: o Serviço Social está

organizado numa categoria técnico-operativa que tem em si o papel político de

propor uma renovação da sociedade, histórica e dialeticamente constituída, numa

visão de totalidade, embasado pela teoria marxista e fundamentada dentro de

princípios éticos pré-estabelecidos em seu Código de Ética;

c) a dimensão jurídico-política da profissão: é legalmente constituída. Tem

suas leis próprias, de forma a propor instrumentos viabilizadores de direitos através

das políticas sociais. (REIS, 2005, p. 418-419).

O projeto ético-político está comprometido com a construção coletiva que,

como tal, tem uma determinada direção social que envolve valores, compromissos

sociais e princípios participantes que são do movimento vivo e contraditório das

classes sociais. (idem, p. 419).

Portanto, em sintonia com os princípios ético-políticos, o Serviço Social

agrega-se a lutas, reivindicações de variados segmentos que trazem em suas

trajetórias coletivas a defesa política pela garantia de direitos.

Deste modo, a ética no Serviço Social é entendida como “uma capacidade

humana posta pela atividade vital do ser social”, capacidade essa de “agir

conscientemente com base em escolhas de valor, projetar finalidade de valor e

objetivá-las concretamente na vida social, isto é, ser livre” (BARROCO, 2005, p. 19).

O indivíduo livre é aquele que encontra no outro uma relação de semelhança.

Desta forma, é necessário compreender a necessidade que as pessoas têm de se

soltar das rédeas da moral e da tradição conservadora que as oprimem

consideravelmente.

Nessa direção, a defesa dos direitos humanos coloca-se como questão

prioritária ao projeto profissional de forma a objetivar duas dimensões: a ética e a

política. Ética porque supõe escolhas de valor dirigidas à liberdade; política porque

busca criar condições objetivas para a vida em sociedade (BARROCO, 2004, p. 40-

41).

Para Barroco (2004, p.40), os direitos humanos não estão somente colocados

“pela realidade atual como tema emergente, mas também são postas pela categoria

de acordo com a sua capacidade de responder às demandas de forma crítica e

madura”.

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237

Portanto, nos dizeres de Barroco,

[...] a luta pelos direitos humanos é recolocada para/pela categoria profissional como tema de debate, a partir desse acúmulo, apontando seus limites/objetivos no contexto da propriedade privada e do discurso ideológico burguês, mas também assinalando sua atualidade como instrumento de crítica social e de defesa de conquistas históricas de classe, grupos e indivíduos em suas lutas por direitos (idem, ibidem).

Este processo de construção do significado e da identidade profissional do

Serviço Social contemporâneo é fruto da inter-relação entre os sujeitos sociais

revolucionários que historicamente se constituíram enquanto categoria profissional

na luta contra o conservadorismo no âmbito da profissão.

Enquanto ethos profissional, a atuação do/da assistente social deve ser

norteada por ações sócio-educativas junto à população usuária dos serviços sociais,

contra a naturalização do ordenamento capitalista e das desigualdades sociais a

eles inerentes, tidas como inevitáveis, evitando o retrocesso e o desmonte das

conquistas sociais acumuladas pela classe trabalhadora ao longo da história

(IAMAMOTO, 2008a, p. 163).

Deste modo, segundo Iamamoto (2008a), os/as assistente sociais, por meio

da prestação de serviço sócio-assistenciais nas diversas organizações públicas e

privadas, “interferem nas relações sociais cotidianas, no atendimento às mais

variadas expressões da ‘questão social’ vividas pelos indivíduos sociais no trabalho,

na família, na luta pela moradia e pela terra, na saúde, na assistência social pública

etc.” (idem, p. 177).

A construção de identidades, lideranças e a organização coletiva rumo a

autorrealização, autolibertação e o autodesenvolvimento dos indivíduos só se dá

através de ações coletivas revolucionárias e que alterem significativamente a vida

cotidiana.

A segregação leva sempre ao não cumprimento dos direitos universais dos

sujeitos sociais. A luta pela emancipação não é uma luta unilateral que se restrinja à

conquista de direitos de apenas um segmento minoritário, mas, ao contrário, a

emancipação tem seu valor agregado justamente pela atitude emancipatória do

humano-genérico.

A segregação impede a participação na vida política e da vida em

comunidade, ao passo que a inserção civil, política e social e a democracia traz para

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o palco da vida a liberdade, a participação, o diálogo, a pluralidade, a igualdade,

enfim, formas e modos coletivos de ser.

O direito em seu sentido lato implica o direito à liberdade – a liberdade de

consciência, de expressão, de formação, de cultura etc. Porém, a sociedade

contemporânea apenas demonstra a necessidade de afirmar os direitos individuais e

egoístas, de modo a prevalecer os interesses privados e particulares, restringindo os

indivíduos à preservação do individualismo egoístico. O Serviço Social defende a

liberdade enquanto valor emancipatório, pressupondo a total eliminação de qualquer

entrave que possibilite a efetivação dos princípios éticos-políticos estabelecidos no

Código de Ética Profissional de 1993 e no seu projeto ético-político profissional.

Para Iamamoto (2008a, p. 183),

[...] não há uma identidade imediata entre a intencionalidade do projeto profissional e resultados derivados de sua efetivação. Para decifrar esse processo é necessário entender as mediações sociais que atravessam o campo de trabalho do assistente social.

A proposta para a tomada de consciência já esta dada, dentro dos novos

parâmetros para a atuação dos/das assistentes sociais, porém, estes parâmetros

não podem ser levados de fora para o interior da profissão, mas sim efetivar-se num

dever-ser que se desenvolve no interior do movimento de construção da identidade

profissional, do qual fazem parte os diversos atores sociais da profissão.

Para Kosik (2010, p. 227),

[...] o homem não é apenas uma parte da totalidade do mundo: sem o homem como parte da realidade e sem o seu conhecimento como parte da realidade, a realidade e o seu conhecimento não passam de mero fragmento.

Quando consideramos o indivíduo que vive em sociedade, inserido numa

determinada organização social, que comporta regras, limites, normas para a

organização e vivência em sociedade, observa-se que a liberdade do indivíduo é

tolhida.

Portanto, para a efetivação deste projeto, torna-se necessária entender o ser

social em sua totalidade, enquanto integrante e natural do mundo, inserido num

determinado contexto social, agente e detentor de direitos e deveres, que devem ser

defendidos e legislados pelo Estado.

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239

4.5. Para uma ética marxista: consciência ética e política

No âmbito do Serviço Social brasileiro, temos como referência os estudos e

propostas de Maria Lúcia Silva Barroco (2008; 2005), bem como outras publicações,

ensaios e artigos, da mesma autora e outros/as que se embrenharam pelo campo da

ética e dos Direitos Humanos.

As mudanças da sociedade capitalista, ocorridas de maneira brusca e

desordenada, tem gerado a inversão dos valores que envolvem o campo da Ética e

dos Direitos Humanos, principalmente, no que diz respeito às consequências do

avanço da industrialização, da tecnologia, da ciência e da globalização e que

contribuíram, substancialmente, para gerar o assolamento dos princípios morais,

éticos e essencialmente humanos.

Problemas, como por exemplo, a corrupção, a má distribuição dos bens e da

riqueza socialmente produzidos, a exploração, a fome, a miséria, a violência,

contribuem para criar uma mentalidade egocêntrica e individualista que fortalece a

concepção da “lei do mais forte”, num pragmatismo selvagem que tem como base as

relações econômicas e sociais hegemônicas, fundamentadas numa “moral de

resultados” e de lucro, acima de qualquer coisa.

Essa mentalidade acaba por se instaurar em todas as esferas das relações

humanas e sociais - no Estado, nas empresas, nos grupos sociais, nos meios de

comunicação, nas religiões, enfim, em todos os lugares - um espectro voraz que

influencia negativamente para a falência dos valores humanos e universais.

A tomada de consciência dos valores e da orientação ética que implica na

criação de uma nova realidade deve ser pautada por um dever-ser e pela ação

revolucionária: “[...] não podemos transformar o mundo se, ao mesmo tempo, não

nos transformarmos a nós mesmos”340.

Vive-se uma realidade míope, ou seja, engessa-se a reflexão sobre as razões

que impedem, inibem ou dificultam a observação da realidade. Somente quando se

tem conhecimento claro acerca da realidade vivida é que se dá conta da sua

importância. O contrário, é viver numa situação inebriante que mascara aquilo que

não se quer ver.

340

HELLER, 2004, p. 117.

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240

O indivíduo, em grande medida, se apresenta dividido entre prazer e

realidade, ambição e ética, ganhar ou perder, contradições próprias de uma

sociedade aparentemente perdida e desorientada.

A busca desenfreada pela riqueza e pelo poder, mesmo que sem limites,

sublinham cada vez mais os “valores éticos” pela produção, pela competitividade,

pela mercantilização da vida social e, até mesmo, da vida espiritual. Torna-se um

homo necessitudinis, um ser de necessidades. Necessidades estas que, muitas

vezes, não se explicam. Vive-se pelo ter e não pelo ser. Este é o alimento da

sociedade de consumo.

Deste modo, é importante levantar um questionamento: até que ponto será

possível encontrar um limite entre o lícito e o ilícito do ponto de vista ético-moral e

político?

É nesse mote que nos aproximamos do projeto inacabado de Lukács de

construir uma Ética Marxista (TERTULIAM, 1999). Heller e os demais membros da

“Escola de Budapeste”, conforme vimos no decurso dessa pesquisa, buscaram

colaborar com Lukács nesse propósito.

Heller destacou-se como membro desse grupo no intuito de construir um

corpus teórico que desse conta dos fundamentos para a consciência ética e política

do ser social, não só como um perspectiva teórico-filosófica, mas sim, como uma

filosofia de vida ou uma Lebensphilosophie, com base nas premissas da Teoria

Social de Marx e na proposta de uma ética marxista revolucionária da vida cotidiana.

No terreno da ética, Heller traz importantes contribuições nessa direção. Não

apenas buscou interpretar o seu mundo, mas viveu o seu postulado: “[...] todo

filósofo deve viver seus pensamento; as ideias que não forem vividas não são

efetivamente filosóficas”341.

Numa tentativa de sublinhar a proposta de uma ética marxista, Heller (2004;

1989) aponta a compreensão marxiana de não só interpretar o mundo, mas trazer

algo que possa alterar a situação dada:

[...] a questão do saber se cabe ao pensar o humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas sim uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar [...].

341 HELLER, 2004, p. 121. Grifos da autora.

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[...] A coincidência do ato de mudar as circunstâncias com a atividade humana ou autotransformação pode ser compreendida e entendida de maneira racional apenas na condição de práxis revolucionária (revolutionäre Praxis). [...] Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no ato de compreender essa práxis. [...] Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo (MARX; ENGELS, 2007, p. 27-29)

342.

Nessas referências marxianos às teses de Feuerbach, percebe-se claramente

a concepção prática de Marx e Engels com relação aos fundamentos para uma

práxis social revolucionária. Para Heller, essa práxis tem que contemplar ações

conscientes, pessoas ou grupos que tem o desejo ou a vontade de produzir

determinada mudança social, numa determinada direção.

[...] Quem quer que se esforce por mudar o mundo na direção de um fim desejado ou pretendido assume a responsabilidade do fim e das ações empreendidas, pelo menos implicitamente (HELLER, 1989, p. 103).

O que Heller coloca deve ser entendido no sentido de não apenas

individualizar e responsabilizar o sujeito social, mas sim, de assumir consciência

daquilo que se quer e se faz, levando-se em consideração que nenhuma ação ou

decisão é iminentemente individual. No mundo real, a figura do “super herói” é

apenas uma figura de linguagem.

O herói (ou heroína) referido/a significa aquele/a que assume a defesa de

uma causa, torna-se responsável por ela e que essa causa, é representada por

valores humanos e sociais que o próprio herói não pode realizar nas condições

dadas e que, no entanto, são valores inseridos na perspectiva do desenvolvimento

efetivo da Humanidade (HELLER, 2004, p. 119).

No âmbito do Serviço Social brasileiro, a tomada de consciência e de posição,

expressa um ethos perante a realidade alienada e alienante, de modo tal que

responde às demandas éticas e políticas como o produto concreto de uma práxis

respaldada em bases teóricas e filosóficas revolucionárias e de uma moralidade

profissional fundamentada na construção de uma nova sociabilidade.

342 Grifos do autor.

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242

O indivíduo sozinho não consegue provocar a mudança. Para que haja

mudança ou revolução é necessário que o sujeito, grupo ou comunidade estejam

afinados num mesmo diapasão.

Fatores internos e externos, determinações, causalidades, fatalidades,

necessidades, enfim, situações das mais diversas, podem desviar os fins

inicialmente projetados ou resultar em situações não planejadas inicialmente,

conforme já apontamos anteriormente.

Como exemplo desses apontamentos, imaginemos uma partida de tênis onde

dois oponentes buscam o mesmo objetivo – a vitória -, observamos que por

milésimos de segundos a partida pode ser definida a favor de um e contra o outro

oponente: se a bola cair do lado esquerdo da rede, a vitória será daquele que estiver

à esquerda da rede; se cair a direita, a vitória será daquele que estiver à direita da

rede.

Isso não quer dizer que as coisas ou as pessoas estão regidas pelo acaso,

pelo determinismo, pelo relativismo ou pela sorte. Fatores internos e externos, a

favor e contra a vontade dos oponentes, define o vitorioso (condições físicas,

preparo psicológico, força, ação do tempo, fatores climáticos, treinamento,

motivação, desejo, cansaço, tática etc.), além de outros fatores que antecederam a

partida.

A vida cotidiana exige de nós, sem exceção e a todo o momento, decisões,

decisões e posicionamentos. O simples fato de que devemos fazer ou escolher entre

duas alternativas (sim ou não), segundo Heller (1989), já significa certo limite de

liberdade. Deste modo, a vida cotidiana é regida por certa moralidade. Somos

obrigados, muitas vezes, a seguir sistemas pré-estabelecidos, normas e regras,

prescrições, determinações, sistemas de valores, enfim, modos maniqueístas de

pensar e agir que impulsionam os indivíduos particulares numa determinada maneira

convencional de ser.

A moralidade, expressada numa escala de valoração daquilo que é bom em

detrimento daquilo que é mal, está relacionada aos princípios arcaicos, históricos e

socialmente construídos e constituídos, que ainda persistem enquanto código moral

coletivo: “[...] Hamlet dizia: no mundo não existem nem bem nem o mal; só o

pensamento é que os cria”343.

343 HELLER, 2004, 163.

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[...] Para Marx, a moral é a relação existente entre o indivíduo, sua circunstância e suas possibilidades concretas. [...] Marx considerava desprovida de sentido a crença na onipotência da “educação moral”. [...] a moral se manifesta pela escolha ou pela rejeição do desenvolvimento da essência humana (HELLER, 2004, p. 119).

Do ponto de vista de uma ética marxista que tem como base o referencial

teórico-filosófico marxiano e, portanto, traz certa visão de humano e de mundo, a

moralidade não deve ser regida por nenhum bem ou nem mal, mas sim, pela

valoração da riqueza humana e aquilo que ela exprime para o desenvolvimento

desse objeto e ainda, considera um desvalor tudo aquilo que é estranho à essência

humana.

[...] a moral indica a relação objetiva do indivíduo com a sua espécie, a sua pertinência ao gênero humano (relação dos valores), o nível em que expressa essa relação (em que medida o indivíduo tem consciência de sua pertinência ao gênero, em que medida sua personalidade particular se combina com essa pertinência e em que medida a universalidade do gênero chega a constituir a fundamentação ética das suas ações). É no plano da moral que se manifesta igualmente a sabedoria da vida no indivíduo: em que medida é capaz de avaliar e escolher diante das circunstâncias, “ampliando” seus princípios sem se submeter passivamente à situação. E é no plano moral, por fim, que se manifesta a força, a resistência e a solidez do caráter (idem, p. 119-120).

Como se vê, implica num determinado sistema de princípios e valores que

contribua para o enriquecimento da essência humana, ou seja, o humano deve ser

visto como finalidade e não como meio para a obtenção de algo ou alguma coisa.

Nesse ponto, a liberdade tem destaque principal: “[...] a liberdade está além do

dever, além de toda coação, além de um “propósito estranho”, seja qual for”344.

No decurso da história, a liberdade foi vista e entendida de diferentes

maneiras. Heller (1989) concebe a liberdade como o “[...] desenvolvimento dos

indivíduos, não coagidos por condições externas”, desta maneira, é pleno de

desenvolvimento de todas as suas capacidades/potencialidades: “[...] a pessoa livre

é o indivíduo rico de necessidades, capacidades, gozos e forças produtivas”345.

[...] Quando o indivíduo se coloca a pergunta referente ao conteúdo moral e aos possíveis abertos à sua ação, a ética pode proporcionar uma resposta a essa pergunta, mas nunca lhe oferecerá conselhos concretos (HELLER, 2004, p. 112).

344 HELLER, 1989, p. 106. 345 HELLER, 1989, p. 108.

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Primeiramente, a ética, sob essa perspectiva, não facilita ou contribui para

determinadas escolhas e ações. Promove, sobretudo, a valoração dos componentes

da riqueza humana e, por conseguinte, chama a atenção para a consciência das

coisas, situações, escolhas e ações.

Historicamente, conforme já apontamos, a ética estava direcionada para a

“vida feliz” (ou para busca da felicidade); o que a perspectiva marxista se apresenta

enquanto consciência de liberdade, ou seja, na imanência da história, do

alargamento das alternativas/possibilidades e da ampliação do campo das

mediações com responsabilidade e autonomia.

A felicidade, enquanto valor ético, pressupõe a valoração da virtude, da

bondade, da fraternidade, da ajuda, do amor ao próximo, da benemerência e

benevolência, da caridade, da humildade, do voluntariado, enfim, princípios de

afirmação platônico-socráticos e judaico-cristão, humanistas e individualizados.

Na perspectiva da liberdade, valora-se o direito, o trabalho, a justiça, a

sociabilidade, a comunidade, a coletividade, a autonomia, a alteridade, enfim,

valores próprios da riqueza humana. Deste modo, o conceito de humanismo passa a

agregar o conceito de humanidade e hominização: “[...] nada do que é humano me é

estranho”346.

Heller, em seus textos O lugar da Ética no Marxismo (HELLER, 2004) e A

herança da ética marxiana (HELLER, 1989), busca demonstrar os valores

humanistas para uma ética marxista, assim como, busca demonstrar a sua

necessidade e os equívocos cometidos por uma visão classista da ética. Também,

traça a necessidade e o compromisso/responsabilidade da consciência dos

indivíduos sociais na formação dos sujeitos individuais e coletivos revolucionários

em suas decisões e ações pautadas em escolhas em prol de uma única causa: a

valoração de essência humana.

Neste caso, implica, em longo prazo, na transformação da sociedade “por

inteiro”, em curto prazo, na tomada de consciência ética e política, perdida ou

atrofiada diante dos apelos contínuos da lógica do capital, no intuito de neutralizar

ou, até mesmo, eliminar a prevalência dos valores tradicionais, conservadores,

reacionários, alienado/alienantes e estranhos à genericidade humana.

Numa outra concepção, Heller também busca pontuar os erros do comunismo

e da ética classista de seu tempo, ou seja, num panorama onde o autoritarismo nazi- 346 HELLER, 1989, p. 110.

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fascista dos regimes despóticos compunha a sua realidade, como também, visa

apontar para o fato de que o desenvolvimento do capitalismo não levou à sua

superação e nem os sistemas de bem-estar social europeu e norte-americano

possibilitaram a consciência do direito a uma vida verdadeiramente humana; apenas

promoveram a satisfação das necessidades mais primárias ou dos bens materiais,

como também das “revoluções da fome”.

Heller (2004), ao se referir as teses marcuseanas, demonstra que conquistar

o poder, fazer desaparecer a miséria e a opressão e reorganizar a economia,

estavam na ordem do dia enquanto exigências necessárias a reorganização da

sociedade, porém, não passaram de “revolução da fome”, em outras palavras, de

revoluções que visavam sanar apenas as necessidade básicas.

[...] A situação atual é completamente diversa. Em primeiro lugar, as tragédias e os horrores do passado mostraram o que pode acontecer quando a moral, a escala dos valores morais, desaparece da esfera da política e é separada do esforço de humanização, o que pode acontecer quando a iniciativa individual desaparece em todos os níveis e a responsabilidade individual deixa de existir. [...] Já não se trata de criar as condições elementares para a vida humana e depois chegar a uma vida verdadeiramente humana: o nosso objetivo imediato é, desde logo, chegar efetivamente a esta última. A consciência do direito a uma vida verdadeiramente humana está presente nos homens, potencialmente, da mesma maneira como a consciência do direito à satisfação das necessidades mais primárias se acha presente nos homens na época das “revoluções da fome” (HELLER, 2004, 116-117).

Desse modo, as escolhas, interesses e alternativas de juízo, atos e ações,

deveriam ser pautados por um determinado conteúdo axiológico objetivo, porém, “os

homens jamais escolhem valores, assim como jamais escolhem o bem ou a

felicidade. Escolhem sempre ideias concretas, finalidade concretas, alternativas

concretas”347.

É necessário, ainda, levar em conta que o dinamismo da vida individual e

social da contemporaneidade e que as referências teórico-filosóficas tem que buscar

uma práxis revolucionária consciente.

[...] A ética marxista é uma práxis, não pode existir sem uma realização prática sem se realizar na prática de algum modo. [...] Uma ética que se limita a contrapor-se passivamente ao atual mundo manipulado não passará de uma nova expressão, contemporânea da “consciência infeliz”. A ética marxista só pode ser a tomada de consciência do movimento que se humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade. Por isso, a ética marxista

347 HELLER, 2004, p. 14. Grifos da autora.

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não depende só da compreensão e da aplicação correta dos textos de Marx: ela depende muito mais do desenvolvimento do movimento que a adote como moral (HELLER, 2004, 121).

A partir do momento em que os indivíduos conscientes produzirem

possibilidades e se elevarem acima do reino animal e da alienação da vida cotidiana

e da lógica capitalista, abre-se as portas para o processo de humanização dos

sujeitos sociais: “[...] a consciência da nova exigência, significa ao mesmo tempo a

consciência dos valores e da orientação ética em que se há de basear a criação da

nova realidade”348.

Este é o mandamento para uma ética marxista na vertente helleriana. A

tomada de consciência do ser social enquanto sujeito social (ou indivíduo social),

consciência do seu valor e da coletividade, de sua pequenez e insustentável

grandeza e leveza de ser, de uma visão de humano e de mundo que permita aflorar

e valorar o sujeito revolucionário individual e coletivo: “[...] não podemos transformar

o mundo se, ao mesmo tempo, não transformamos nós mesmos”349.

Para tanto, o despertar dessa consciência e da individualidade dos sujeitos

sociais, torna-se a “causa” do sujeito revolucionário (do/a educador/a social, do/a

agente social, do/a assistente social, do/a cientista social etc.) que ara o terreno fértil

do campo das possibilidades, das mediações, da liberdade.

348 HELLER, 2004, p. 117. 349 HELLER, 2004, p. 117.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Um lutador político deve ser capaz de se colocar acima das coisas com urgência ainda maior, ou afundar-se-á até as orelhas nas trivialidades da vida de todos os dias” .

Rosa de Luxemburgo apud Agnes Heller

Todo o percurso realizado em torno da tematização helleriana acerca do

complexo mundo de sua antropologia-ontológica do ser social, nos permite afirmar

que a postura por ela assumida e defendida em seu córpus teórico impulsiona na

direção da tomada de consciência ética e política na e para a vida social.

Herdeira crítica de um vasto cabedal cultural e intelectual, bebeu nas fontes

teórico-filosóficas de Aristóteles, Kant, Hegel e Marx para compreender a dinâmica

da vida cotidiana e a complexa ontologia do ser social marxiana trazida a lúmen por

Georgy Lukács, propiciando o debate com seus contemporâneos e com o grupo de

amigos que se firmaram em torno de Lukács e denominado por “Escola de

Budapeste”.

A vida de Heller, assim como a de qualquer pessoa, não estava livre das

implicações e determinações cotidianas. Não podemos esquecer que em cada

momento e contextos sociais há particularidades próprias de cada época, cada

estrutura, cada estratificação, cada sistema político-econômico-cultural, enfim,

realidades sociais que se apresentam em determinadas formas, contextos,

tessituras, como também, cada pessoa reage de uma maneira particular-singular a

essas determinações.

Desta maneira, Heller trata o ser social como particular que carrega em si sua

condição de singularidade e de genericidade, capaz de assumir uma atitude

consciente na e para a vida social. É inegável que a particularidade do ser social

seja diferente de uma para outras pessoas, e que as respostas objetivas e subjetivas

sejam também distintas, há de se observar os momentos, as condições e as

necessidades de cada particularidade-singularidade.

Porém, partimos do pressuposto de que os sujeitos sociais, em sua

genericidade, fazem a sua própria história, porém, o fazem em condições

previamente dadas. Ao nascermos, desenvolvemos capacidades de comportamento

simbólicas e de reação, ou seja, a linguagem, o pensamento racional, a orientação

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segundo os valores, nosso a priori se assim o quiser. Somente a posteriori podemos

manifestar nossa total extensão (HELLER, 1982, p. 142).

O ser social não é somente guiado pelos instintos, mas também por

interesses, motivações, estímulos, necessidades entre outras esferas, mas, mesmo

assim, produz teleologicamente mediações e objetivações na e para a vida social:

“[...] são estas objetivações sociais que devemo-nos apropriar se queremos viver, as

que ocupam o lugar de guia atribuído aos instintos. O que há em nós de estritamente

biológico é nossa fronteira. A fronteira absoluta é a moralidade” (HELLER, 1982, p.

142-143).

O indivíduo social não é somente biológico, mas sim, ser de relações sociais,

construtor e artífice de sua própria história: “[...] toda a história humana é,

naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos” e, desse modo, “[...] toda a

historiografia tem de começar a partir desses fundamentos naturais e de sua

modificação através da ação dos homens no decorrer da história”. (MARX; ENGELS,

2007, p. 41-42).

Porém, os indivíduos não são inseridos na vida cotidiana como uma “folha de

papel em branco”, mas sim, num contexto prévio e historicamente determinado por

outros sujeitos sociais. Para Heller, homens e mulheres, nascem e são inseridos

numa dada cotidianidade e o seu amadurecimento, em qualquer esfera e em

qualquer sociedade, se dá em sua fase adulta: “[...] é adulto quem é capaz de viver

por si mesmo a sua cotidianidade” (HELLER, 2004, p. 18).

Só o humano tem a capacidade de modificar as circunstâncias inicialmente

dadas. A Teoria Social de Marx constata categoricamente esta afirmação. Através

de esforços e aspirações o ser social tem a capacidade de criar alternativas

possíveis de serem objetivadas na vida cotidiana e escolher dentre elas a que mais

lhe aprouver, as que atendam as suas necessidades, projeções mentais, interesses,

gostos, pendores etc., tal é este o fundamento da liberdade e, por conseguinte, da

vida ética e política.

Como filósofa, Heller buscou para si mesma uma causa e, ao mesmo tempo,

explicação para sua causa, pretendendo levar a cabo a fecunda inflexão do

pensamento marxiano e marxista na construção de referências que dessem

consistência ao seu viver, assim como à Humanidade. É precisamente no âmbito

dessa interrogação essencialmente ontológico-social do ser social que Heller irá

questionar a vida, o mundo, o humano e as suas intrincáveis e múltiplas relações.

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Ao tomarmos contato com a obra, a vida, o contexto histórico e social e as

experiências vividos por Agnes Heller, percebemos que muito mais do que fazer

essas interpretações e dar respostas conscientes às perguntas que lhe eram

apresentadas, Heller se apresentou como uma individualidade, consciente e

responsável pelas suas ações, num cotidiano diverso, plural e contraditório em sua

totalidade.

Diante daquilo que apuramos ao longo dos livros e textos de Agnes Heller, da

proposta didático-pedagógica e, ao mesmo tempo, ético-político-pedagógica em sala

de aula que desenvolvemos enquanto docente e por meio das pesquisas que

realizamos ao longo de nossas experiências acadêmicas, percebemos que

pesquisador e objeto se identificavam mutuamente.

Além disso, percebemos que um estudo específico sobre Heller se justificava

por si só, ainda mais quando chegamos à conclusão de que trabalhar com este

referencial propiciava uma maior facilidade para o despertar da consciência ética e

política do profissional em formação, bem como em prol da materialização do Projeto

Ético-Político Profissional do Serviço Social num contexto tão adverso com a

“sociedade da barbárie”.

Num momento em que muitos dos que são denominados e considerados pós-

modernos buscam formular teorias mirabolantes para interpretar ou mesmo dar

respostas ao “caos” em que se encontra a atual sociedade, onde a vida humana

apresenta-se banalizada e a violência, o individualismo e a barbárie teimam em se

afirmar, Heller nos apresenta uma proposta coesa, precisa e real enquanto práxis

teórico-filosófica.

A liberdade, a comunidade, a individualidade, particularidade, genericidade, a

consciência e a democracia constituem os alicerces centrais na determinação de

uma antropologia-ontológica do ser social e de uma sociologia histórico-filosófica, na

proposta teórico-filosófica de uma filosofia da práxis ou de uma Lebensphilosophie,

que se apresenta radicalmente contrária às desumanizações do mundo atual em

torno do problema da alienação da vida cotidiana e das objetivações do ser social.

Num mundo onde o imediatismo, o consumismo, a alienação, a reificação,

enfim, a barbárie tende a imperar e se afirmar, a vida está sendo vivida de modo

quantitativo. Na dinâmica moderna e contemporânea o tempo de esvai rapidamente,

não há momento para a escuta, para a reflexão de si, dos acontecimentos e do

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mundo, muito menos para momentos de abstração intelectiva ou suspensão da

cotidianidade (o não-cotidiano).

Com a vida e o ser social banalizados, as relações e inter-relações sociais

são objetuais e coisais. Neste “caos”, no que chamaríamos de “reino da barbárie” é

que a arte - essa forma sublime de suspensão da cotidianidade, segundo os

apontamentos hellerianos - registra as formas desconexas, as tessituras mais

diversas, os espaços vazios e ao mesmo tempo repletos de cores, sons e formas.

Enfim, nessa “babel do salve-se quem puder” falar de consciência ética e política é,

ao mesmo tempo, uma necessidade e uma questão antiquada e “fora de moda”.

A arte contemporânea espelha o sentimento caótico ou o pensamento raro.

Os big brothers viram “super heróis” por tão pouco e por interesses puramente

econômicos e comerciais. Poderíamos até mesmo nos arriscar a dizer que o mundo

está perdendo a sua poesia. A indiferença toma conta dos recantos mais variados e

reflete um total distanciamento ante a banalização do mal.

Em sua caminhada, a maior contribuição de Heller ao marxismo foi colocar,

no centro da reflexão e do debate, o indivíduo social – o sujeito consciente e

responsável pelos seus atos – não descartando, é obvio, que isso não se trata de

responsabilizar o individuo pela situação de penúria ou vulnerabilidade que, muitas

vezes, está vinculado/a.

A consciência e responsabilidade dos atos, diz respeito a sua colocação no

mundo, suas respostas em conformidade às situações “bárbaras” que muitas vezes

se apresentam na sua frente; ao ficarmos calados e indiferentes diante das

desumanidades, banalizamos o mal. A afirmação do indivíduo enquanto sujeito de

sua própria história constitui a consciência e responsabilidade do indivíduo social.

Além disse, Heller demonstra a estrutura da vida cotidiana, num esforço

hercúleo de humanizá-la e hominizá-lo continuamente. Ao demonstrar o cotidiano e

não-cotidiano, Heller aponta para condições de vida não alienadas.

Neste esforço helleriano, a categoria individualidade aparece como a partícula

chave na substância antropológica e ontológica do ser social, condição esta que

permite ao ser social singular, particular e genericamente humano, tomar

consciência de sua condição enquanto gênero e de sua importância central na e

para a vida cotidiana.

Parafraseando as palavras de Adornado (apud HELLER, 1982, p. 157), o

atual período histórico, impõe-nos a necessidade – a urgência - de discutirmos o

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indivíduo, como uma temática que deve ser enfrentada de modo novo, sob pena da

decadência de nossas funções hegemônicas. Acrescentamos ainda que a discussão

da formação do sujeito revolucionário, individual e coletivo, é nitidamente importante

e necessária.

Temos que, de certo modo, acertar as contas com o individualismo,

funcionalismo e utilitarismo burguês e com o avanço desenfreado do sistema e das

relações sob a lógica do capital, assim como o conceito de pessoa que exprime uma

relação coisal e objetual com o que é essencialmente humano.

O indivíduo valorado e consciente tem maiores condições de identidade, de

substância, de objetivos e propósitos definidos, de segurança, de sentimentos, de

vontade, de personalidade, de expressão, enfim, abre o campo das mediações

conscientes para se colocar no mundo, diante de suas necessidades e de suas

capacidades/potencialidades.

Particularidade e individualidade são conceitos chaves no pensamento

helleriano, categorias que são substanciais e absolutas para entender a ontologia do

ser social, mas também relativas, porque se desenvolvem no curso da relação

sujeito e objeto. Contudo, na relação singular-particular e genericamente humano, há

infinitas mediações.

Nesse sentido é interessante tratar, ainda que rapidamente, da perspectiva

crítica que seu pensamento num determinado momento histórico, inscrita num

determinado contexto social e num determinado espaço-temporal de sua vida.

Os períodos que aqui apresentamos: sua permanência na Hungria, na

Austrália e nos Estados Unidos, refletem momentos distintos de sua teoria, situações

distintas e perspectivas distintas. Não observar estes períodos poderia trazer sérias

complicações para o entendimento de seu pensamento ou até mesmo juízos

ultrageneralizadores.

Sem a demarcação das fontes teórico-filosóficas, dos principais teóricos e

assuntos com que Heller abre o debate, ainda, sem a demarcação espaço-temporal

e os momentos distintos da vida de Heller, ficaria impossível demonstrar sua

coerência, linearidade, diferentes realidades e que não escondem o sentido prático

(ou de práxis) de sua teoria.

Tais convergências e divergências não significam inconsistência e incoerência

no seu pensamento. Suas proposições no seu conjunto obrigaram-nos a analisar

todos os seus aspectos em separado, não perdendo a noção de totalidade, deixando

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claro que nossa intenção não foi fazer um exame crítico e comparativo da obra

helleriana dos períodos de 1956 a 1978, ou seja, quando de sua permanência na

Hungria ou, se quisermos, em sua fase marxista, mas apenas utilizamos do método

histórico-crítico, portanto, de criticidade, e dos elementos da teoria crítica para

nossas análises.

Procedendo desse modo, buscamos concomitantemente, um esclarecimento

do corpus teórico helleriano e uma contribuição para o debate da ética no Serviço

Social e nas demais áreas do saber.

Nesse mundo tão multi e polifacetado, questionamos: seria possível uma

saída? Seria possível uma teoria baseada numa práxis revolucionária? Seria

possível uma teoria capaz de levar o ser social a uma determinada consciência

revolucionária? Seria possível traçar subsídios teórico-práticos e práxis-teóricos para

retirar o ser social do estado de alienado/alienante? Seria possível uma teoria que

despertasse a consciência ética e política no ser social?

Respondemos a estes questionamentos positivamente, não com base em

suposições, mas pautados em experiências profissionais enquanto docente do curso

de Serviço Social, enquanto estudioso dos assuntos relacionados à ontologia do ser

social e enquanto estudioso do pensamento helleriano.

A teoria helleriana, na fase em questão, abre as portas para as possibilidades,

para as mediações e para uma “teoria da práxis”, consequentemente, para uma ética

marxista e para a compreensão dos fundamentos de uma consciência ética e política

do ser social.

Não estamos afirmando que é a única ou a “grande teoria”, mas tende para

uma possibilidade emancipatória dos sujeitos sociais, tende para propósitos

emancipatórios, revolucionários e propositivos, por estar sobre alicerces sólidos da

Teoria Social de Marx.

Para Marx e Engels (2007, p. 48-49),

[...] os homens são os produtores de suas representações, ideias e assim por diante, mas apenas os homens reais e ativos, conforme são condicionados através de um desenvolvimento determinado de suas forças de produção e pela circulação correspondente às mesmas, até chegar a suas formulações mais distantes. A consciência (Bewusstsein) não pode ser jamais algo diferente do que o ser consciente (bewusstes Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [...] Os homens que desenvolvem sua produção material e sua circulação material trocam também, ao trocar essa realidade, seu pensamento e os produtos de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.

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No decurso dessa pesquisa, vimos o indivíduo social como um ente real,

concreto, histórico e dialético que vive e se objetiva na vida cotidiana. Porém, na

sociedade capitalista, esta objetivação está condicionada à divisão e relação de

classe, às relações sociais cada vez mais capitalistas e de exploração, intrínseca e

extrinsecamente, ao fetiche da mercadoria e das necessidades, a uma vida alienada

e alienante, ao estranhamento de si mesmo e da coletividade, numa verdadeira

simbiose à lógica do capital.

Ao sermos um complexo de complexos (LUKÁCS, 1978), nos apresentamos

na vida cotidiana indivíduo particular-singular e genericamente humano, herdeiro e

possuidor do humano-genérico, único e capaz de projetar finalidades e construir

mediações passíveis às nossas ações através do trabalho.

É na condição de individualidade que o ser social se reconhece enquanto tal,

em outras palavras, é nessa condição que toma ou não consciência de si mesmo e,

portanto, pode, ou não, se manifestar conscientemente na vida social. Pode, ou não,

assumir um ethos perante si e para a comunidade e, concomitantemente, para a

vida, enquanto zoon politikon. Para isso, é inegável a sua conscientização.

É essa condição que constitui a essência do “sujeito revolucionário”, opção

onde o “[...] desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada – mas de nenhum

modo exclusivamente – função de sua liberdade ou de suas possibilidades de

liberdade”350.

Lembrando o pensamento paulofreiriano (FREIRE, 2001) somente teremos

uma sociedade livre quando os oprimidos ou as minorias se libertarem de seus

opressores, libertando-se a si mesmo. Somente a aparição do “homem novo” e da

“mulher nova”, que não sejam nem opressor/a, nem oprimido/a, mas sim humanos

que carregam em-si-mesmo e para-si-mesmo uma práxis libertadora e que esta

libertação se configure em realidade, de modo que não haja entraves, proselitismo,

preconceitos, discriminações, atavismos, moralismo, ou seja, onde haja a

humanização de todos/as.

A libertação é uma libertação de humanos, não de coisas.

Consequentemente, os indivíduos não se libertam apenas pelos seus esforços

pessoais e esta não pode ser se não a libertação de todos/as. De igual maneira, não

pode ser realizada por “semi-humanos” desumanizados. Se a desumanização já 350 HELLER, 2004, p. 22.

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está estabelecida, os métodos de libertação tende a ser desumanos (FREIRE,

2001).

Enquanto este estado de consciência não se estabelece, os indivíduos sociais

agem assumindo “papéis sociais”, representações carregadas de preconceitos e

ultrageneralizações e vivendo sob as rédeas dos sistemas consuetudinários. As

ações, mesmo as mais elementares, da vida cotidiana, passam a ser mecanizadas,

estereotipadas, copiadas e representadas no imediato, numa motivação permanente

muda.

Nessa ótica, a inserção no meio social consiste em consignar e absorver

padrões pré-determinados, constituídos anteriormente ao seu nascimento e a

reproduzir sistemas de valor moral e éticos maniqueístas e moralizadores. Porém,

isso não implica dizer que estes padrões estão hermeticamente fechados,

fossilizados e cristalizados em monolíticos pétreos, negando, assim, as

possibilidades de repensá-los e revogá-los, num verdadeiro trabalho emancipatório e

de liberdade.

Não é do interesse do conservadorismo adotar uma metamorfose nos

padrões, clichês e valores pré-estabelecidos, tampouco alterar o transcurso da

realidade social, capaz de alcançar o “reino da liberdade” e, consequentemente,

eliminar a propriedade privada, os valores individualistas e privados, o sistema

capitalista, enfim, construir novos valores, novas formas de vida, uma nova

sociabilidade.

A história tem demonstrado que as utopias de uma vida melhor, em um

mundo melhor, aquelas contidas em várias obras como a República de Platão, A

Utopia de Thomas More, a Cidade do Sol de Campanela ou a Nova Atlântida de

Francis Bacon, por exemplo - que espelham uma crítica e preconizam a necessidade

de revolução. Na história das teorias sociais, somam-se exemplos de um utopismo

romântico.

Estamos de acordo com Szacki (1972) quando este aponta que a

possibilidade da utopia caminha junto com a necessidade de escolha. Escolher entre

algo que já está determinado e uma nova possibilidade, um ideal a ser projetado:

“[...] mais próximo do pensamento utópico é sem dúvida o revolucionário que luta

para destruir as relações dominantes e construir novas no lugar” (SZACKI, 1972, p.

15).

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Heller, muitas vezes, e em suas entrelinhas, traz a esperança de um mundo e

de uma vida livre dos entraves de desumanidade. Com frequência, seus

apontamentos caminham para uma expressão messiânica e humanista, mas é

inegável a praticidade e as possibilidades de uma tomada de consciência na e para

a vida.

Logicamente para que o ser particular possa ter condições objetivas para-si-

mesmo, ou seja, para fazer sua história, ele(ela) tem que ser possuidor de condições

objetivas ou possibilidades para criar tais condições, isto é, satisfazer suas

necessidades mais primárias. Não se pode, por exemplo, aprender a tocar piano

sem pelo menos ter as condições elementares mais básicas (conhecimento, o

instrumento, o processo de aprendizagem, condições técnicas e motoras básicas

etc.).

Não se aprende quando as necessidades mais prementes ainda não foram

satisfeitas. Assim como Maslow351, Heller também traça uma hierarquia de

necessidades. Para a consciência ética e política, sobretudo, na tomada de

consciência para um agir, ou seja, na consolidação do sujeito revolucionário,

individual ou coletivo, torna-se necessário que a hierarquia das necessidades esteja

satisfeitas, ou pelo menos, que encontre condições para este fim. No mais, as

revoluções tenderiam ao seu sentido classista ou de “revoluções da fome”, conforme

os apontamentos helleriano.

Nas “revoluções da fome” as motivações revolucionárias compreendem, em

grande medida, revoltas motivadas pelas necessidades e não pela liberdade ou pela

emancipação humana. Pensar a emancipação humana conforme apontada por

Marx, requer uma postura crítica, propositiva e pró-ativa rumo a uma nova

sociabilidade. Exige ainda uma subjetividade (individualidade) consciente de seu

papel social enquanto sujeito revolucionário individual e coletivo.

Acreditamos que a revogação dos sistemas consuetudinários, das

ultrageneralizações, dos juízos provisórios, dos preconceitos e das discriminações

só podem ser pela via dos movimentos sociais e da emergência de uma nova

sensibilidade mais humanizada nas relações sociais e com a natureza.

As manifestações coletivas de enfrentamento as contradições sociais, devem

estar atentas para ações que atinjam cada vez mais os componentes da riqueza

humana (ou da essência humana), em forma de necessidades coletivas e universais, 351 Referência a Pirâmide de Maslow.

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regadas por valores, princípios ético-políticos conscientes, deixando de lado o

individualismo para lutar por uma vida verdadeiramente humana.

Ao lutar pela sobrevivência ou pelas necessidades mais prementes para que

os sujeitos sociais possam fazer a sua história é a luta pelos direitos sociais, pelo

trabalho, pela remuneração, pela alimentação, pela saúde, pela moradia, pela

educação, pela habitação, pela identidade, enfim, condições básicas para a vida em

sociedade. Mas a luta pela valoração da riqueza humana implica em proposições e

ações onde a ética, a ação política e os direitos humanos se sobressaiam.

A existência de lutas e movimentos sociais fragmentados, isolados,

descontextualizados e desconectados com as necessidades radicais, demonstra a

prevalência dos interesses escusos e particulares daqueles/as que detêm a

hegemonia conservadora, utilitarista e liberal.

Para que o ser social se objetive particular e singularmente na vida social em

sua genericidade, ele necessita primeiramente de condições mínimas para a sua

existência e, por conseguinte, para sua sobrevivência, portanto, precisa comer,

beber, morar, vestir entre outras necessidades.

Historicamente, as lutas e os diversos movimentos sociais foram concebidos

como rebeliões contra a ordem estabelecida, porém, estas lutas representam o que

há de mais necessário à vida humana e que socialmente não estavam ou estão

sendo respeitados.

Ao tecer finalidades para suas ações (projeções teleológicas), o ser pode se

deparar com circunstâncias inesperadas e por mais que aspire se posicionar perante

elas, as contradições da vida social podem fazer com que produza e/ou reproduza

algo ou resultados que inicialmente não foram projetados ou que sejam estranhos à

sua natureza.

Para Heller (2004, p. 18),

[...] o homem nasce já inserido em sua cotidianidade352

. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o individuo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade

353.

352

Ou seja, num universo de determinações pré-concebidas anteriormente ao seu nascimento. 353 Grifos da autora.

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Não é possível viver inteiramente fora da cotidianidade nem mesmo em total

estado de suspensão (não-cotidianidade). Portanto, a vida cotidiana se constitui em

torno da organização do trabalho e da estrutura social. Mas, a luta de classes, o

processo de estratificação social, e a lógica capitalista, podem ou não nos levar à

condição de alienados e alienantes.

Heller traz importantes contribuições e novos elementos para repensar a

própria cotidianidade, permitindo ir além das formas consuetudinárias, dos pré-juízos

e das ultrageneralizações. Podemos ainda afirmar que pensar o cotidiano e o ser

social por um prisma teórico implica descobrir o incomum no repetitivo.

Sua linha de raciocínio cabe perfeitamente nas análises das identidades,

expressões, afirmações, reconhecimento, luta contra qualquer forma de arbítrio ou

autoritarismo, qualquer forma de preconceito, discriminação e desumanidades,

contra a banalização do mal, enfim, dos assuntos cotidianos mais diversos que

implicam em ver homens e mulheres, em sua diversidade e pluralidade, enquanto

sujeitos sociais e não enquanto coisas. Nesse ponto, seus apelos de humanidade

são substanciais.

Desse modo, o cotidiano é visto não como o passar dos dias, o dia-a-dia, mas

sim como o “mundo da vida”: “[...] o homem aprende no grupo os elementos da

cotidianidade”354. A vivência cotidiana exige apenas que “[...] cada um submeta, nas

eventuais situações conflitivas, as aspirações particulares às exigências do

costume”355.

É inegável a importância do valor do sentimento de comunidade no

pensamento de Heller. Histórica e socialmente, homens e mulheres desenvolveram

uma relação natural com a comunidade, também, desenvolveram o despertar de sua

individualidade enquanto sujeito consciente.

É no Renascimento, momento em que o ser social encontra as condições

objetivas melhor desenvolvidas, que permite o aflorar de sua individualidade,

enquanto consciência de-si-mesmo, assumindo as rédeas de suas próprias vidas e

dando um salto ontológico no desenvolvimento de sua própria personalidade.

Mas, com o egoísmo individualista da sociedade burguesa e o modo de

acumulação capitalista, seus interesses e aspirações se desantropomorfizam,

354 HELLER, 2004, p. 19. 355

HELLER, 1977, p. 153. Grifos nossos.

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assumindo assim, o caráter puramente econômico e mercadológico e entregando-se

aos apelos mais bárbaros da lógica do capital.

Acreditamos que a proposta helleriana, vai além da vida cotidiana. A vida

cotidiana é apenas o palco onde assumimos e exercemos ou, até mesmo

“representamos”, nossos “papéis sociais”. Vai ao encontro do sujeito social

revolucionário, individual e coletivo, pode ser artífice de sua própria história, ou seja,

viver com intensidade, “ser por inteiro”, se colocar acima de suas limitações sociais,

físicas, psíquicas, econômicas, emocionais, sobretudo, acima do “reino das

necessidades”.

A teoria de Heller apresenta uma saída, uma opção para uma vida não

alienada e alienante. Muitas vezes suas análises, apresentam epistemologias

fenomenológicas, no sentido de “desvelar” (ir tirando as camadas que esconde a

essência de sua aparência), buscando a liberdade/responsabilidade de nossas

escolhas, singulares e particulares, individuais e coletivas, diante dos

fatos/acontecimentos mais cotidianos e mais simples da vida social.

Nessa busca incessante pela essência filosófica da vida social, Heller

encontra na sua própria vida, ou seja, suas reflexões reais e concretas do seu viver,

as possibilidades/respostas para a construção de uma “filosofia da práxis” ou de uma

“práxis filosófica”: “[...] o que é a revolução sem a transformação profunda da vida

dos homens [e das mulheres]”356.

O ser social enquanto ser da práxis pode apresentar-se enquanto dínamo de

constantes construção e transformações dialéticas e dinâmicas. A vida pode

transformar-se totalmente em diversas direções se estas forem valoradas para a

emancipação da essência humana e social de homens e mulheres que vivem em

sociedade.

Permite coragem diante da vida, permite um enfrentamento sem se

desencantar. Permite certa leveza no peso que a vida alienada se transforma.

Lembrando e parafraseando Charles Chaplin, não se mede o valor de um homem ou

de uma mulher pelas roupas ou pelos bens que possui, mas sim pelo seu caráter,

pelos seus ideais e pela nobreza de suas ações.

Heller é um verdadeiro produto do seu tempo. Uma mulher, uma presença,

uma experiência. Uma mulher que chegou a condição de sujeito de sua própria

história e que suscita interrogações, dúvidas e especulações. Uma presença que 356 HELLER, 1982b, p. 121.

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não ficou calada nem estática diante dos mais diversos momentos e situações, até

mesmo atrocidades e fatalidades próprias de sua época.

Muitas vezes utópica, mas consciente de seu papel, de sua experiência, de

seu método, de sua liberdade e fomentando o debate nos mais diferentes assuntos

e campos do conhecimento.

Não estamos aqui fazendo uma apologia ao pensamento e a figura

emblemática de Agnes Heller, mas sim reconhecendo o seu valor enquanto ser

humano, enquanto sujeito revolucionário, enquanto inspiração e fermentação do

sujeito revolucionário individual e coletivo.

No tocante ao Serviço Social sua contribuição é inegável, além de trazer

elementos que contribuam para o entendimento da estrutura da vida cotidiana, traz

também, elementos sócio-históricos e filosóficos para compreender a complexa

antropologia-ontológica do ser social na e para a vida cotidiana.

Também apresenta elementos substanciais para o trabalho de grupos e

comunidade, modos de percepção do ser social em suas intrincáveis e múltiplas

determinações, enquanto humanos – e não enquanto coisas - e enquanto fim - e não

enquanto meio para se chagar a um determinado fim.

Nos anos compreendidos entre 1970 e 1990 – quando se afirmou a intenção

de ruptura contra o conservadorismo e o tradicionalismo da profissão – a tomada de

consciência do sujeito coletivo, ou seja, de uma identidade profissional autônoma e

hegemônica e contrária aos apelos e interesses ideo-políticos conservadores - que

viam transformando os/as assistentes sociais em meros funcionários/as

executores/as da Política Nacional e dos interesses privados – o Serviço Social

brasileiro toma consciência de si e para a construção de um pensamento

hegemônico e de uma nova sociabilidade.

Os eflúvios revolucionários desse período tiveram como embate além do

conservadorismo, o terror imposto pela Ditadura Militar, no qual alguns/mas

profissionais assumiram a figura de “agentes provocadores de mudanças”,

engajando-se na participação política, conjuntamente com os movimentos populares

para a mobilização coletiva e social.

Na década de 1980, o Serviço Social no Brasil, altera radicalmente o ethos

profissional, principalmente em suas bases ideo-políticas e teórico-metodológicas,

assumindo a teoria marxista como referencial teórico-filosófico para a formação e

atuação profissional, na luta em prol da classe trabalhadora enquanto bandeira

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política. Esta bandeira materializou-se no então Código de Ética Profissional de

1986.

Porém, o novo Código de Ética de 1986 do Serviço Social, somente alteraria

as configurações do Código de 1975, que espelhavam o desenvolvimento da

ideologia capitalista e as mudanças ideo-políticas desse período, substituindo os

valores neotomista-positivistas por um marxismo messiânico. Nesse sentido, seu

avanço constituía em romper com o ethos anterior, passando a assumir um

compromisso com a classe trabalhadora.

É nesse contexto que o pensamento de Agnes Heller, com forte inspiração

marxiana, bem como outros pensadores marxistas, pôde contribuir para a tomada

de posição em assumir determinada atitude consciente, no intuito de exercer a

liberdade dentro dos valores ético-morais e de militância política e social.

Formulava-se, assim, uma nova identidade profissional e novas bases comporiam o

novo Código de Ética Profissional de 1993: a ontologia do ser social.

De lá para cá, muita coisa mudou. Acreditamos que estas bases

revolucionárias, caminham novamente para uma hibernação ou um anestesiamento

diante das necessidades e apelos impostos pelo capitalismo. É necessário reavivar

as lideranças, os sujeitos revolucionários, individuais e coletivos, os grupos e as

forças políticas, um modo de ser e agir independente dos sistemas

consuetudinários e da submissão aos interesses do capital.

Porém, acreditamos que muito mais que isso, urge o despertar de um ethos,

de uma ética, uma vontade política, de uma consciência de-si-mesmo, em-si-

mesmo e para-si-mesmo. Lembrando Pablo Neruda, somos livres para fazer nossas

escolhas, mas somos prisioneiros das consequências. Escolher pelo “reino da

barbárie” é escolher pelo fim da Humanidade.

Para finalizar, ao percorremos os principais pontos do itinerário vivo, vivido e

teórico de Agnes Heller, enfatizados, muitas vezes, por ela mesma, recheados de

passagens (falas) do próprio sujeito pesquisado e distribuídas nas diversas

entrevistas que já concedeu em seus oitenta e três anos de vida, percebemos que

sujeito e objeto pesquisado se identificam.

Não podemos, deste modo, deixar de registrar nossa admiração por essa

pequena senhora, franzina, de cabelos malfagafados, de olhos miúdos, circulados

por grandes aros e de fala linear, miúda, coerente, horizontal e constante, numa

língua que, como dizia o cantor, compositor e romancista Chico Buarque (2011) “[...]

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até mesmo o diabo respeita”, que viveu e vive num país em que os gritos de

liberdade ecoam até hoje no ar, rechaçada por alguns marxistas como a “desertora”,

“pluralista” e “eclética”, principalmente pelas suas posições contrárias ao que

defendia no passado. Deixamos aqui, nossas reverências ante uma vida bem vivida

ou, por outro lado, de uma “vida por inteiro”: uma sinfonia felizmente inacabada.

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Expressão do Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé - UNIFEG. Nº. 12. Guaxupé: UNIFEG, junho de 2010, p. 253-265. __________. Introdução ao pensamento filosófico em Marx: a ontologia do ser social. Monografia apresentada ao curso de pós-graduação latus sensus da Pontifícia Universidade Católica – PUC/Minas, campus de Poços de Caldas/MG, como pré-requisito para a obtenção do título de especialista em Desafios da Filosofia Contemporânea, sob orientação do Prof. Dr. Gérson Pereira Filho e da Profª. Msª. Cláudia Ferreira Galvão. Poços de Caldas: PUC/MG, 2011. VERONEZE, Renato Tadeu; LARA, Ricardo. As reflexões estéticas na perspectiva lukacsiana: uma expressão ontológica da realidade social. Revista

Iniciação Científica do Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé – UNIFEG, ano 07, nº 7. Guaxupé: UNIFEG, dezembro, 2007, p. 129-144. VICKY, Alain. Soldados africanos para as guerras norte-americanas. Le Monde

Diplomatique – Brasil, São Paulo: Palavra Livre. Ano 05. Nº 60, julho 2012, p. 21-23. VOX. Diccionario de Español para extranjeros: para la ensenãnza de la lengua española. Universidad de Alcalá. 2ª reimpressão. Barcelona: Larousse Editorial,

2010. YAZBEK, Maria Carmelita. O significado sócio-histórico da profissão. Em Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília:

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CFESS/ABESPSS, 2009a, p. 143-163. ZINET, Caio; MONCAU, Gabriela. Grécia ensina: não há austeridade sem resistência. Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela. Ano XVI. Nº 184, julho 2012,

p. 10-13.

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273

OUTRAS REFERÊNCIAS

Sites pesquisados357:

http://www.eltebtk2.hu/portugues.asp

http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/ditadura-comunista-

hungria-repressao-vermelha-434962.shtml

http://www.leftcurve.org/lc22webpages/heller.html

http://www.lanacion.com.ar/1323793-el-arte-un-fin-en-si-mismo

http://www.carlosianni.com.ar/blog/periodo/05/2011

http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,MUL696172-15607-

157,00.html

http://www.youtube.com/watch?v=jL_OR0OaGnA

http://www.leftcurve.org/lc22webpages/heller.html

http://www.feeye.uncu.edu.ar/web/epistemologia/Lineadetiempo/Documentos/

Entrevista%20a%20la%20Soci%C3%B3loga%20Agnes%20Heller/entr-

heller.htm

http://www.morasha.com.br/conteudo/artigos/artigos_view.asp?a=551&p=1

http://www.morasha.com.br/conteudo/artigos/artigos_view.asp?a=550&p=0

http://www.chazit.com/cybersio/olam/hungria.html

www.judaica.com.br/material/002_09e11.htm

www.judaica.com.br/materias/044_09a11.htm

www.morasha.com.br/conteudo/artigos_view.asp/a=167&p=o

http://www.youtube.com/watch?v=L49iSpEl8FU.

http://www.eltebtk2.hu/portugues.asp

http://www.newschool.edu/nssr/

http://www.latrobe.edu.au/home

https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts

https://www.facebook.com/AgnesHellerBudapest?fref=ts

https://www.facebook.com/hermannzsuzsa

357 Estes sites foram acessados e consultados várias vezes no decurso desta pesquisa.

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ANEXOS

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CENAS DE BUDAPESTE – HUNGRIA358

Cena de Budapeste em 1922

Mapa da Hungria pós-Primeira Guerra Mundial

Cenas da Revolução Hungara de 1956

Cena do filme “Budapeste”

358 Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas do site Google (Fonte: http://www.google.com.br/imghp?hl=pt-PT&tab=ii). Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.

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276

A “ESCOLA DE BUDAPESTE”359

Georgy Lukács

Agnes Helle

György Márkus Vajda Mihaly Ferenc Fehér

359

Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller (Fonte: https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts). Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.

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277

PRIMEIRO CASAMENTO DE AGNES HELLER360

István Hermann Agnes Heller Zsuzsa Hermann (filha)

SEGUNDO CASAMENTO DE AGNES HELLER

Ferenc Fehér e Agnes Heller

Agnes Heller

Agnes Heller com sua filha (Zsuzsa Hermann), sua neta e sua bisneta.

360

Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller (Fonte: https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts). Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.

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SOMENTE AGNES HELLER361

Medalha Goethe (2010)

Agnes Heller fala com estudantes da Universidade Eötvös Loránd em 16/02/2013.

Budapeste – Hungria

361 Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller (Fonte: https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts). Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.

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AGNES HELLER – “UM VERDADEIRO PRODUTO DO SÉCULO XX”

Fonte: https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts. Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.

ESTES LIVROS FORAM ADQUIRIDOS PARA A REALIZAÇÃO DESSA DISSERTAÇÃO362

362 Estes livros pertencem a biblioteca do pesquisador.