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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E SUAS ESPECIFICIDADES DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

E SUAS ESPECIFICIDADES

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2015

RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

E SUAS ESPECIFICIDADES

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito do Estado, área de concentração Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo Santos (Marcelo Figueiredo).

SÃO PAULO

2015

Banca examinadora:

________________________________________

________________________________________

________________________________________

________________________________________

________________________________________

RESUMO

O presente trabalho busca demonstrar a existência de uma interpretação

autenticamente constitucional, que, embora fundada nas técnicas hermenêuticas

tradicionais, aparta-se da chamada interpretação jurídica geral, em razão das

peculiaridades que distinguem as normas constitucionais das normas

infraconstitucionais. Embora seja majoritário o entendimento no sentido da

existência de uma interpretação tipicamente constitucional, autônoma em relação

à interpretação jurídica geral, há considerável parcela da doutrina que não

reconhece essa autonomia.

Buscar-se-á, assim, demonstrar, em primeiro lugar, quais são as diferenças

fundamentais, formais e materiais, existentes entre as normas constitucionais e

infraconstitucionais, especialmente na atual quadra histórica, em que o advento

dos Estados Sociais e do chamado neoconstitucionalismo reconfiguraram os

perfis das constituições e o papel do Estado, deslocando os textos constitucionais

para o centro do universo jurídico e elevando os direitos humanos e fundamentais

à condição de norte interpretativo das demais normas dos ordenamentos

vigentes. O atual papel das constituições, bem como dos tribunais constitucionais,

será analisado à luz da internacionalização do direito constitucional e do chamado

transconstitucionalismo. Finalmente, estabelecida a existência de uma

interpretação autenticamente constitucional, buscar-se-á demonstrar como esse

processo interpretativo ocorre no ambiente de pluralidade de ordens jurídicas,

nacionais e supranacionais, que incidem simultaneamente sobre um mesmo

problema jurídico, gerando eventuais antinomias que devem ser solucionadas não

pelo tradicional critério hierárquico, inexistente nesse contexto, mas pelo diálogo

entre as referidas ordens jurídicas.

Palavras-chave:

Direito; Constituição; Neoconstitucionalismo; Transconstitucionalismo;

Interpretação; Hermenêutica Constitucional.

ABSTRACT

This study aims to demonstrate the existence of a truly constitutional

interpretation, which, though founded on traditional hermeneutical techniques,

departs from the so-called general legal interpretation, because of the peculiarities

that distinguish the constitutional rules of the infra-constitutional norms. Although

the majority within the terms of the existence of a typical constitutional

interpretation, autonomous from the general legal interpretation, there is

considerable portion of doctrine which does not recognize this autonomy.

It will seek to demonstrate, first, what are the fundamental differences,

formal and material that exist between constitutional and infra-constitutional

norms, especially in the current historical period, in which the advent of Social

States and called neoconstitutionalism reconfigured the profiles of the

constitutions and the State's role, shifting the constitutional text to the center of the

legal universe and raising human and fundamental rights to the north interpretive

condition of other rules of existing systems. The current role of constitutions and

constitutional courts will be analyzed in light of the internationalization of

constitutional law and called trans-constitutionalism. Finally, established the

existence of a truly constitutional interpretation, will seek to demonstrate how this

interpretive process occurs in the plurality of legal systems environment, national

and supranational, which both relate to the same legal problem, creating possible

antinomies that must be resolved not by traditional hierarchical criteria, non-

existent in this context, but by the dialogue between those legal systems.

Keywords: Law; Constitution; Neoconstitutionalism; Trans-constitutionalism;

Interpretation ; Constitutional Hermeneutics.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

2 PLURALISMO JURÍDICO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO ....................... 17

2.1 A globalização e a crise do Estado-nação .................................................... 18

2.2 O neoconstitucionalismo ................................................................................ 27

2.2.1 O reconhecimento da Constituição como efetiva norma jurídica ............... 28

2.2.1.1 A controvérsia Hesse-Lassale ................................................................ 28

2.2.1.2 A crise do Liberalismo e o surgimento do Estado Social ........................ 32

2.2.1.3 A desconstrução e a reconstrução do positivismo jurídico ..................... 35

2.2.1.4 O neoconstitucionalismo ......................................................................... 36

2.2.1.5 A redemocratização e a Constituição de 1988 ....................................... 38

2.3 A influência do direito internacional no direito nacional – o

transconsitucionalismo ......................................................................................... 44

3 ARGUMENTAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO............ 70

4 OS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS .............................................................. 92

4.1 A legitimidade democrática dos tribunais constitucionais ............................. 98

4.2 Espécies de tribunais constitucionais ......................................................... 110

4.2.1 O modelo norte-americano ...................................................................... 111

4.2.2 O modelo austríaco .................................................................................. 114

4.2.3 O modelo francês ..................................................................................... 116

4.3 O Supremo Tribunal Federal ....................................................................... 118

5 A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA GERAL ...................................................... 128

5.1 A linguagem do direito ................................................................................ 131

5.2 A hermenêutica tradicional ......................................................................... 140

5.2.1 Subjetivismo e objetivismo ....................................................................... 141

5.2.2 Categorias de interpretação ......................................................................145

5.2.1 Interpretação legislativa e interpretação autêntica ................................... 146

5.2.2.2 Interpretação administrativa ...................................................................150

5.2.2.3 Interpretação judicial ............................................................................. 155

5.2.2.4 Interpretação doutrinária ....................................................................... 158

5.2.3 Interpretação declarativa, restritiva e extensiva ....................................... 163

5.2.4 Elementos clássicos de interpretação ...................................................... 170

5.2.4.1 Elemento gramatical ..............................................................................170

5.2.4.2 Elemento histórico ................................................................................. 173

5.2.4.3 Elemento sistemático ............................................................................ 176

5.2.4.4 Elemento teleológico ..............................................................................178

5.2.5 Interpretação evolutiva ..............................................................................181

5.2.6 Interpretação e integração. Analogia. Costumes ..................................... 182

5.2.6.1 Analogia ................................................................................................ 183

5.2.6.2 O costume ............................................................................................. 188

5.2.6.3 Princípios gerais do direito .................................................................... 192

6. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ........................................................ 195

6.1 O sistema constitucional e a positivação dos valores ................................. 196

6.2 Peculiaridades das normas constitucionais ................................................ 203

6.3 Aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais ................................. 208

6.3.1 Doutrina estrangeira ................................................................................. 211

6.3.1.1 Classificação de Cooley ........................................................................ 211

6.3.1.2 Classificação de Crisafulli ..................................................................... 212

6.3.1.3 Classificação de Zagrebelski ................................................................ 212

6.3.2 Doutrina nacional ..................................................................................... 213

6.3.2.1 Classificação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho ............................... 213

6.3.2.2 Classificação de José Afonso da Silva ................................................. 214

6.3.2.3 Classificação de Maria Helena Diniz ..................................................... 219

6.3.2.4 Classificação de Celso Bastos e Carlos Ayres Britto ............................ 220

6.3.2.5 Classificação de Luís Roberto Barroso ................................................. 221

6.4 A divisão das normas constitucionais em regras e princípios ..................... 221

6.4.1 Jean Boulanger ........................................................................................ 225

6.4.2 Emilio Betti ............................................................................................... 226

6.4.3 Crisafulli ................................................................................................... 227

6.4.4 Domenico Farias ...................................................................................... 228

6.4.5 Friedrich Müller ……………………………………………………………….. 228

6.4.6 Ronald Dworkin e Robert Alexy – a visão contemporânea sobre regras e

princípios constitucionais ................................................................................... 229

6.4.7 A crítica da doutrina nacional à teoria de Dworkin e Alexy ...................... 238

6.4.7.1 A crítica de Humberto Bergmann Ávila ................................................. 239

6.4.7.2 A crítica de Virgílio Afonso da Silva ...................................................... 244

6.4.7.3 A crítica de Lênio Luiz Streck ................................................................ 246

6.4.7.4 A crítica de Inocêncio Mártires Coelho ................................................. 247

6.5. Os elementos tradicionais de interpretação aplicados às normas

constitucionais .................................................................................................... 249

6.6 Interpretação constitucional evolutiva ......................................................... 258

6.7 Analogia constitucional ................................................................................ 263

6.8 Costume constitucional ............................................................................... 269

6.9 Mutação constitucional ................................................................................ 273

6.10 A abertura das normas constitucionais ..................................................... 277

6.11 Métodos típicos de interpretação constitucional ....................................... 278

6.11.1 Os métodos de interpretação constitucional .......................................... 279

6.11.1.1 O método jurídico ................................................................................ 280

6.11.1.2 O método tópico-problemático ............................................................ 280

6.11.1.3 O método hermenêutico-concretizador ............................................... 281

6.11.1.4 O método científico-espiritual .............................................................. 281

6.11.1.5 O método normativo-estruturante ....................................................... 281

6.11.1.6 O método comparativo ........................................................................ 282

6.11.2 Princípios de interpretação constitucional .............................................. 282

6.11.2.1 Princípio da unidade da Constituição .................................................. 283

6.11.2.2 Princípio do efeito integrador .............................................................. 284

6.11.2.3 Princípio da máxima efetividade ......................................................... 285

6.11.2.4 Princípio da conformidade funcional ................................................... 285

6.11.2.5 Princípio da concordância prática ....................................................... 286

6.11.2.6 Princípio da força normativa da Constituição ...................................... 287

6.11.2.7 Princípio da interpretação conforme a Constituição ........................... 287

6.11.3 A crítica de Virgílio Afonso da Silva ...................................................... 288

6.12 Técnicas específicas de interpretação constitucional pelos tribunais

constitucionais .................................................................................................... 297

6.12.1 A regra da proporcionalidade ................................................................. 299

6.12.2 Interpretação conforme a Constituição ..................................................303

6.12.3 Declaração parcial de inconstitucionalidade .......................................... 304

6.12.4 Sentenças aditivas ................................................................................. 306

6.12.5 Sentenças substitutivas ......................................................................... 308

6.12.6 Sentenças exortativas ............................................................................ 309

6.12.7 O apelo ao legislador ............................................................................. 310

6.12.8 A modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade ........... 311

7 CONCLUSÃO ................................................................................................. 314

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 322

10

1 INTRODUÇÃO

Ao contrário do que reza a máxima consagrada no passado, cada vez mais

questionada na atualidade, in claris cessat interpretatio, a eventual clareza, aqui

entendida como alta densidade normativa, de determinada norma jurídica não

torna prescindível a atividade interpretativa. A razão para tanto é clara e intuitiva:

a constatação da clareza da norma ou, mais precisamente, de sua maior ou

menor densidade normativa, bem como a verificação de qual norma, dentre todas

as que compõem determinado ordenamento jurídico, há de incidir sobre

determinado caso concreto já constituem, em si mesmas, atos de interpretação.

Não há, pois, direito sem interpretação. Toda norma jurídica precisa ser

interpretada.

Essa posição, no entanto, não é pacífica nem unânime, havendo

considerável número de autores que questionam a necessidade de se

interpretarem enunciados jurídicos de sentido mais claro.

Não resta dúvida de que existem normas jurídicas cuja estrutura e

composição (ou seja, os termos de que é constituída) apresentam maior grau de

precisão do que outras. Sintática e morfologicamente, a norma é constituída de

termos, que por sua vez correspondem a conceitos, cujo grau de abstração é,

obviamente, variável. Um conceito como “arma de fogo”, por exemplo, tem grau

de abstração muito mais restrito do que “liberdade” ou “dignidade da pessoa

humana”.

A incidência do Direito sobre a realidade – em outras palavras, a aplicação

do direito – passa por três momentos distintos: 1º) a elaboração de dispositivos

normativos ou textos legais (mediante processos legislativos previstos nos

ordenamentos jurídicos de cada país, Estado ou comunidade); 2º) a atividade de

interpretação desses dispositivos – que consiste tanto na seleção dos dispositivos

legais aplicáveis a uma situação concreta quanto na atribuição de sentidos a tais

dispositivos, ou seja, a extração de uma norma jurídica aplicável a determinado

caso concreto a partir dos aludidos dispositivos; e 3º) a aplicação, propriamente

dita, da norma jurídica extraída de tais dispositivos à realidade fática sobre a qual

a referida norma há de incidir. Criação, interpretação e aplicação, portanto.

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Se a interpretação é, por definição, a atividade de atribuir sentido a um

determinado texto, para, a partir dele, extrair a norma jurídica aplicável a um

problema concreto, a interpretação de normas constitucionais, marcadas por

características e peculiaridades que as distinguem das demais normas jurídicas,

apresenta dificuldades ainda mais profundas, uma vez que, ao contrário das

normas infraconstitucionais, aquelas trazem em seu bojo uma carga extrajurídica,

na medida em que as Constituições são documentos tanto políticos quanto

jurídicos.

Em razão dessa natureza mista, política e jurídica a um só tempo, a própria

estrutura de algumas normas constitucionais é distinta daquela ordinariamente

encontrada nas normas infraconstitucionais. As constituições, enquanto

documentos jurídico-políticos, trazem em seu bojo (e, portanto, nos dispositivos

que as compõem) mais do que simples normas de conduta voltadas à solução de

conflitos sociais. As normas constitucionais, mais do que simplesmente traçar as

configurações das instituições políticas de um Estado, preveem, na quadra atual,

programas governamentais, objetivos a serem perseguidos pelo Poder Público,

aspirações à transformação da realidade social.

Assim, desde a sua origem, em 1787, com a promulgação da Constituição

norte-americana, as constituições escritas, ao mesmo tempo em que retratam a

realidade sobre a qual incidem, refletindo os valores da sociedade a partir da qual

emana o Poder Constituinte que elabora o texto constitucional, também buscam

conformá-la. Portanto, desde o surgimento das constituições escritas, já é

possível constatar uma distinção fundamental na própria estrutura das normas

constitucionais, em relação àquelas que lhes são hierarquicamente inferiores. A

natureza mista (política e jurídica) de tais normas, bem como os objetivos que

lhes são inerentes, obrigam a que, em muitos casos, sua estrutura seja mais

aberta, bem como que seu grau de abstração seja mais elevado1.

Essa circunstância, que marca as constituições escritas desde seu

nascimento, tornou-se ainda mais evidente e relevante a partir da superação do

Estado Liberal e da ascensão do Estado de Bem-Estar Social. A partir do

momento em que as constituições superaram o papel de meros documentos

1 Evidentemente, todas as Constituições, em especial as analíticas, trazem em seu bojo normas que, em sua

estrutura, não se diferenciam das demais normas do ordenamento jurídico, prescrevendo condutas e suas respectivas consequências jurídicas. Daí porque parcela significativa da doutrina, tanto nacional quanto estrangeira, traça relevantes distinções entre regras e princípios.

12

limitadores dos arbítrios dos poderes públicos em face dos cidadãos; a partir do

momento em que deixaram de ser apenas garantidoras dos chamados direitos

fundamentais de primeira dimensão – condição que exigia, dos poderes públicos,

uma postura omissiva, de inércia, de não interferência nas questões da vida

privada (uma postura, em suma, de Estado mínimo) – e passaram a impor aos

governos o dever de não apenas garantir, como também concretizar, os

chamados direitos fundamentais de segunda, e, posteriormente, também de

terceira dimensão (direitos sociais e transindividuais, respectivamente), o que

exigiu, dos órgãos públicos, também uma postura comissiva, de efetiva ação

perante a sociedade; em suma, a partir da superação do modelo liberal pelo de

um Estado Social/prestacional, e da radical transformação das relações entre

Estado e sociedade resultante dessa superação, a própria função das

constituições nas sociedades sofreu profundas alterações.

Essas alterações se tornaram ainda mais agudas após o fim da Segunda

Guerra Mundial, em 1945, cujas consequências levaram à definitiva superação do

positivismo jurídico até então consagrado (mas já antes disso objeto de

consistentes questionamentos), o que resultou na reaproximação entre o direito e

a moral, no reconhecimento de efetiva normatividade dos textos constitucionais

(com o fortalecimento de seu aspecto jurídico, até então mitigado pela prevalência

da esfera política das normas constitucionais) e no deslocamento, para o centro

axiológico dos ordenamentos jurídicos, dos princípios constitucionais e dos

direitos fundamentais, sobretudo aqueles voltados à garantia e efetividade da

chamada dignidade da pessoa humana.

Nesse quadro, a interpretação constitucional, já por essência e desde seu

início marcada por peculiaridades em relação à interpretação jurídica geral,

tornou-se uma atividade ainda mais específica, caracterizada por métodos

próprios, inaplicáveis à interpretação do restante do ordenamento jurídico.

A consagração de normas jurídicas de natureza principiológica nas

constituições (os princípios constitucionais) não apenas tornou mais complexa e

criativa a atividade de interpretação por parte do Poder Judiciário, como também

levou ao fortalecimento desse Poder em relação ao Legislativo e ao Executivo.

Ocorreu um deslocamento do cerne da decisão judicial, que deixou de

tomar a norma positivada como um dado definitivo, que já traz em si os elementos

decisórios fundamentais, a ser meramente “descobertos” e expostos pelo juiz. O

13

foco passou a ser a atividade criadora do magistrado, que toma por ponto de

partida a norma posta, mas nela não se exaure. Aos elementos já constantes do

dispositivo, o aplicador acrescenta outros não encontrados no texto legal para a

construção da regra de decisão a ser empregada no caso concreto. Esse

deslocamento é o resultado da flexibilidade hermenêutica maior que a estrutura

da norma-princípio apresenta em contraste com a norma-regra.

Deu-se, assim, a passagem de uma atividade meramente reveladora de

(um supostamente preexistente) sentido a uma atividade construtora de sentido.

Da interpretação à argumentação, da norma posta à decisão, da lei à jurisdição –

e ao consequente fortalecimento dos agentes desta, notadamente das cortes

constitucionais.

Diante dessa nova realidade, desenvolveram-se técnicas e princípios de

uma hermenêutica tida por parcela considerável da doutrina como autenticamente

constitucional. Consolida-se na atualidade um modelo de interpretação que, sem

se apartar dos cânones hermenêuticos tradicionais, a estes acresce elementos

que buscam solucionar os problemas oriundos da natureza estruturalmente

distinta das normas constitucionais (tais como os conflitos de direitos

fundamentais), para os quais o modelo subsuntivo se mostra insuficiente.

A existência de uma interpretação puramente constitucional não é pacífica,

havendo quem enxergue, nas chamadas novas técnicas de interpretação

constitucional, apenas um refinamento (ou uma remodelagem sem alteração

substancial) das já tradicionais técnicas hermenêuticas.

Esse quadro, já bastante complexo, deve ainda ser analisado à luz do

chamado transconstitucionalismo, fenômeno que ganha maior importância a cada

dia tanto em sede doutrinária quanto na seara jurisprudencial.

Nesse tocante, como um dos pilares do reconhecimento de uma

interpretação autenticamente constitucional é o status hierarquicamente superior

das normas constitucionais em determinado ordenamento jurídico, é necessário

analisar a validade da manutenção da ideia (de origem kelseniana) de

constituição enquanto norma superior a todas as demais (e, portanto, com

natureza de fundamento último de validade e chave de fechamento do

ordenamento jurídico como um todo), numa realidade em que, para assegurar a

efetividade dos direitos fundamentais, constroem-se sistemas jurídicos

supranacionais (além de um sistema global) de proteção a esses direitos,

14

sistemas estes que interagem e dialogam com os ordenamentos jurídicos

nacionais, sem que o critério hierárquico esteja no cerne das preocupações

dogmáticas concernentes a tais interações e diálogos – situação que coloca em

xeque paradigmas consagrados como o da soberania nacional.

Em outras palavras, se uma das premissas para o reconhecimento de uma

interpretação autenticamente constitucional é o status superior das normas

constitucionais, há que se refletir se a existência de um diálogo e de um sistema

de influência mútua entre diversos ordenamentos jurídicos, que não raro se

entrelaçam e interpenetram, não torna contestável justamente essa premissa e,

por conseguinte, a própria existência de uma interpretação tida por puramente

constitucional.

O objetivo do presente trabalho, portanto, consiste na verificação da

existência de uma interpretação autenticamente constitucional, com

características próprias que a tornam autônoma em relação à interpretação

jurídica geral.

Desde já externamos nosso entendimento de que a interpretação

constitucional consubstancia um método hermenêutico autônomo em relação à

interpretação jurídica geral, conquanto constitua um desenvolvimento que se dá

justamente a partir desta. Não poderia ser de outro modo, uma vez que as

normas constitucionais, a par de sua especificidade, não deixam de ser normas

jurídicas. Suas peculiaridades em relação às normas infraconstitucionais, no

entanto, são tão profundas e marcantes, que a interpretação constitucional se

reveste de características próprias, circunstância que lhe confere autonomia.

Impõem-se, desde logo, dois esclarecimentos terminológicos.

O primeiro: como é sabido, a ideia de norma jurídica não se confunde com

a de texto legal. As normas consistem nos sentidos elaborados a partir da

interpretação dos dispositivos normativos. São o resultado da interpretação. Já os

textos legais são o ponto de partida da interpretação. Assim, a rigor, quando a

doutrina e a jurisprudência tratam das diferenças entre as normas constitucionais

e as normas infraconstitucionais, não raro as referências concernem antes aos

dispositivos normativos a partir dos quais tais normas são construídas, do que

propriamente às normas.

Existem, efetivamente, diferenças fundamentais entre normas (o resultado

do processo interpretativo) constitucionais e infraconstitucionais. Contudo, com

15

frequência os debates travados e os argumentos desenvolvidos acerca da matéria

usam o vocábulo norma para se referir aos dispositivos legais a partir dos quais

as normas são extraídas.

Desse modo, é possível afirmar tanto que há uma diferença, estrutural e

material, entre dispositivos normativos constitucionais e infraconstitucionais, como

que há distinção entre normas constitucionais e infraconstitucionais. Trata-se,

aqui, de duas realidades distintas.

No entanto, uma vez que é usual e corriqueiro o emprego da terminologia

norma, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, para a análise da

interpretação jurídica e da interpretação constitucional, inclusive em situações em

que seria mais adequada a referência a dispositivos legais ou dispositivos

normativos, faremos uso contextual do vocábulo norma, a fim de manter

proximidade com os textos e as obras que concernem à matéria, e que serão

objeto de análise ao longo deste trabalho.

O segundo esclarecimento: o objetivo do presente trabalho é demonstrar a

existência de distinções significativas entre a interpretação das normas

constitucionais e das normas infraconstitucionais. Deixamos claro, desde o início

do trabalho, que a interpretação constitucional é uma espécie de interpretação

jurídica, na medida em que as normas constitucionais, a par de suas

especificidades e particularidades, são efetivas normas jurídicas. Assim, ao

traçarmos distinções entre as técnicas interpretativas aplicáveis às normas

constitucionais e inconstitucionais, não negaremos a natureza jurídica da

interpretação constitucional. Por isso, usaremos a expressão interpretação

jurídica geral para fazer referência aos cânones hermenêuticos clássicos ou

tradicionais, ou seja, à interpretação das normas infraconstitucionais, e a

expressão interpretação jurídica constitucional para nos referirmos às técnicas de

interpretação autenticamente constitucional.

A fim de demonstrarmos a existência de uma interpretação autenticamente

constitucional e para situarmos essa espécie de interpretação na ambiência do

constitucionalismo contemporâneo, apontaremos, inicialmente, as características

do chamado neoconstitucionalismo, contextualizando-o na atual realidade dos

Estados nacionais, cuja soberania sofreu profundas alterações diante do

fenômeno da globalização (capítulo 2).

16

A seguir, trataremos das distinções fundamentais entre argumentação,

interpretação e aplicação do direito (capítulo 3) e buscaremos delimitar o papel

exercido pelos atuais tribunais constitucionais na concretização das

determinações constitucionais, destacando, nesse tocante, a atuação do Supremo

Tribunal Federal (capítulo 4).

Estabelecidas tais premissas, passaremos à análise dos cânones

hermenêuticos tradicionais, ou seja, da interpretação jurídica geral, cotejando-os

com as chamadas peculiaridades da interpretação jurídica constitucional.

Buscaremos, nesse tocante, evidenciar as singularidades que, a nosso ver,

permitem que se compreenda a interpretação jurídica constitucional como uma

categoria hermenêutica autônoma, que tem por ponto de partida a interpretação

jurídica geral, sendo um desenvolvimento desta. Procuraremos demonstrar em

que consiste essa autonomia à luz da realidade contemporânea, marcada pelo

pluralismo e pela globalização (capítulos 5 e 6).

Em suma, o objetivo do presente trabalho é demonstrar a existência de

uma interpretação autenticamente constitucional, decorrente das singularidades

materiais e estruturais ínsitas às normas das atuais constituições (que são frutos

do neoconstitucionalismo e do momento pós-positivista que marca o direito neste

início de século XXI), situando-a no contexto das sociedades contemporâneas,

marcadas pelo pluralismo jurídico e pela globalização.

17

2 PLURALISMO JURÍDICO NO DIREITO CONTEMPORÂNEIO

Para que se compreenda a efetiva dimensão da interpretação

constitucional no direito contemporâneo, é necessário dimensionar o papel que as

constituições desempenham na atualidade, especialmente à luz das significativas

mudanças pelas quais as sociedades passaram nas últimas décadas.

Três fenômenos fundamentais contribuíram para a remodelagem do

parâmetro normativo fundado nas ideias de soberania nacional e Estado-nação,

consolidada a partir da Paz de Westfália, em 1648: a globalização, o

neoconstitucionalismo e (como consequência desses dois fatores) a influência

cada vez maior do direito internacional sobre os ordenamentos jurídicos

nacionais.

A conjunção desses três fenômenos altera substancialmente a relação que

os textos constitucionais mantêm com os ordenamentos jurídicos que a estes se

subordinam, na medida em que a consagrada ideia da pirâmide kelseniana (que

elenca a constituição como norma positivada máxima do sistema, para o qual

serve como chave de fechamento e fundamento geral, estando abaixo apenas de

uma norma hipotética fundamental não positivada) se mostra inadequada para

lidar com a pluralidade de ordens jurídicas que passam a incidir sobre um mesmo

problema, dentro de um determinado território. Isso não significa a negação da

superioridade hierárquica das constituições no plano interno dos Estados, vale

dizer, do bojo de um determinado ordenamento jurídico nacional.

A especial proteção aos direitos humanos e fundamentais (ideia fundante

do chamando neoconstitucionalismo) enseja a criação de sistemas

supranacionais e globais de proteção desses direitos (e, por conseguinte, de

respectivas ordens jurídicas e instituições igualmente supranacionais e globais),

com os quais os ordenamentos internos de cada Estado dialogam e interagem.

Essa conexão entre ordenamentos internos (com suas respectivas conexões) e

sistemas jurídicos externos a tais ordenamentos leva a uma superação das

tradicionais teorias relativas às fontes do direito, e mais do que isso, torna

necessária uma reformulação da concepção de constituição enquanto norma

18

máxima e incontestável de determinado sistema – e, por conseguinte, da própria

ideia de soberania.

Daí porque o neoconstitucionalismo abre as portas para o

transconstitucionalismo, vale dizer, um constitucionalismo de fronteiras mais

difusas do que aquelas impostas pelos limites territoriais dos Estados-nação,

fundados estes na concepção clássica de soberania nacional.

Esse transconstitucionalismo, como se verá, torna impositiva a existência

de diálogos entre ordenamentos jurídicos nacionais e supranacionais, o que leva

a um inevitável redimensionamento do papel das constituições na garantia,

proteção e efetivação dos direitos fundamentais.

Evidentemente, esse quadro influencia sobremaneira a interpretação das

normas constitucionais, uma vez que, embora a Constituição não perca sua

natureza de norma hierarquicamente superior de um determinado sistema

jurídico, impõe-se um diálogo entre a Constituição e diplomas normativos

supranacionais (por exemplo, tratados internacionais de direitos humanos), bem

como entre cortes constitucionais nacionais e instâncias decisórias (tribunais)

supranacionais (regionais ou globais).

Desse modo, globalização, neoconstitucionalismo e a influência do direito

internacional no direito constitucional são elementos cuja análise, ainda que

breve, é indispensável como premissa a uma correta abordagem do fenômeno da

interpretação constitucional contemporânea, que se dá, hodiernamente, num

contexto de transconstitucionalismo.

2.1 A globalização e a crise do Estado-nação

O fenômeno da globalização, de grande relevo para o cerne do presente

trabalho, pode ser visto sob inúmeros ângulos e, por conseguinte, recebe diversas

definições. Isso ocorre em razão da pluralidade de campos em que esse

fenômeno se verifica (jurídico, econômico, social, cultural etc.), bem como das

incontáveis formas de sua análise (que, notadamente nos campos político e

econômico, frequentemente são indissociáveis das concepções pessoais e

ideológicas daqueles que se dedicam ao seu estudo).

19

A globalização, em qualquer de suas concepções, guarda íntima relação

com a ideia de soberania e, de acordo com a maioria da doutrina2, leva à própria

reformulação dessa ideia. Assim, não se pode compreender a globalização sem

que se compreenda a soberania.

A concepção tradicional de soberania é a de um poder único,

incontrastável, que se sobrepõe a outros poderes no território de um Estado. Essa

ideia, que se consolida no século XVI3, caracteriza o Estado moderno e constitui o

elemento fundamental de distinção entre este e as chamadas formas antigas de

Estado.

A fragmentação do poder, que caracterizou a Idade Média e o modelo

feudal, levou a um anseio por unidade política, principalmente por parte dos

senhores feudais, proprietários de terras, cada vez mais numerosos e

descontentes com o estado de guerra constante e a instabilidade dos monarcas,

circunstâncias que atrapalhavam a economia.

Essa busca por unidade se concretiza na Paz de Westfália, uma série de

acordos assinados em 1648, nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück, que

encerraram, de forma praticamente simultânea, a Guerra dos 30 anos (1618-

1648) e a Guerra dos 80 anos (1568-1648). Esses acordos, ou tratados,

documentam o surgimento de um novo modelo de Estado cuja característica

fundamental é a unidade territorial dotada de um poder soberano.

Ainda hoje, no entanto, a elaboração de um conceito de soberania revela

dificuldades, dada a pluralidade de ângulos a partir dos quais é possível observar

o fenômeno4. Mozar Costa de Oliveira elenca nada menos do que treze conceitos

possíveis, fundados em premissas e parâmetros distintos5, o que revela a

2 Embora majoritária, a corrente que defende que a globalização alterou o conceito fundamental de

soberania não é absoluta. José Augusto Fontoura Costa, por exemplo, afirma que “não se pode, como por vezes ocorre, falar em transformação do conceito clássico de soberania. Como conceito clássico, não se modifica. Pode ter sua aplicação ou utilidade contestadas, mas se mantém inalterado. Seu caráter perpétuo e absoluto, atribuído por Bodin, não foi extirpado desse conceito com a Revolução Francesa. Da mesma forma, a noção hobbesiana de alma artificial, atribuída no pacto social, assim como a inalienabilidade e indivisibilidade, apontadas por Rousseau, permanecem como importantes noções para a compreensão do sentido da soberania” (COSTA, José Augusto Fontoura, Globalização e fim do Estado, in DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (org.), Globalização & Soberania. Curitiba: Juruá, 2011, p. 41). 3 A doutrina, de modo geral, costuma classificar as formas de Estado na seguinte sequência cronológica:

Estado Antigo – Estado Grego – Estado Romano – Estado Medieval – Estado Moderno. Apenas este último é dotado do atributo da soberania. 4 Tal como ocorre em relação ao conceito de globalização.

5 Soberania como conteúdo político (ligado aos serviços públicos); como independência em relação a outros

Estados; como realização dos direitos humanos; como resultado de conquista prática; como poder sobre

20

dificuldade do tema – dificuldade esta constatada já por Jean Bodin, pioneiro na

sistematização do estudo sobre a soberania, a partir de duas obras: o Método

para a fácil compreensão da história (1566) e os Seis Livros da República (1576)6.

Uma vez que nosso objetivo não é desenvolver um estudo sobre o instituto

da soberania, adotaremos, como premissa para o presente trabalho, o conceito

de soberania – em sua forma tradicional – exposto por Paulo Bonavides:

Considerável número de publicistas compreende nos dias presentes a soberania como um conceito histórico e relativo.

Histórico, porquanto a Antiguidade o desconheceu em suas formas de organização política. Haja vista o exemplo da polis

grega, do Estado-cidade da Grécia clássica. A soberania surge apenas com o advento do Estado moderno, sem que nada por outra parte lhe assegure, de futuro, a continuidade.

Relativo, uma vez que tomado de início por elemento essencial do Estado – conforme sucedeu ainda entre juristas do século XIX – raro o autor hoje que após os trabalhos exaustivos de Jellinek ainda se ocupa da soberania sob o prisma do direito internacional, como de um dado essencial constitutivo do Estado. Há Estados soberanos e Estados não soberanos. Do ponto de vista externo, a soberania é apenas qualidade do poder, que a organização estatal poderá ostentar ou deixar de ostentar.

Do ponto de vista interno, porém, a soberania, como conceito jurídico e social, se apresenta menos controvertida, visto que é da essência do ordenamento estatal uma superioridade e supremacia, a qual, resumindo já a noção de soberania, faz que o poder do Estado se sobreponha incontrastavelmente aos demais poderes sociais, que lhes ficam subordinados. A soberania assim entendida como soberania interna fixa a noção de predomínio que o ordenamento estatal exerce num certo território e numa determinada população sobre os demais ordenamentos sociais. Aparece então o Estado como portador de uma vontade suprema e soberana – a suprema potestas – que deflui de seu papel privilegiado de ordenamento político monopolizador da coação incondicionada na sociedade. Estado ou poder estatal e soberania assim concebidos, debaixo desse pressuposto, coincidem

amplamente. Onde houver Estado haverá pois soberania.7

recursos naturais e de autodeterminação; como grau de independência; como qualidade do Estado, se há território, comunidade humana e governo próprio; como poder limitado pelo Direito das Gentes; como independência nacional; como competência de poderes, recebida do Direito das Gentes; como notável poder de controle interior; e como função primordial do partido único, ou propriedade do Estado como sujeito do Direito das Gentes (concepção marxista-leninista). (OLIVEIRA, Mozar Costa de. Soberania – à busca de um conceito jurídico, in DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (coord.). Globalização & Soberania, p. 76-83. 6 “A primeira exposição sistemática da soberania é normalmente atribuída ao jurista francês Jean Bodin

(1529/30 – 1596), que reclama justamente da falta de uma clara definição desse conceito. Há, de fato, a necessidade de formular a definição de soberania, porque não existiu nem jurisconsulto nem filósofo político que a tenha definido, embora seja o pronto principal e mais importante a ser entendido no tratado sobre a República (República I, 8, p. 179)” (BARROS, Alberto Ribeiro. A teoria da soberania de Jean Bodin. São Paulo: Unimarco: FAPESP. 2001, p. 27). 7 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 132-133.

21

Embora haja autores que identifiquem os conceitos de soberania e poder,

Rubens Ricupero, a nosso ver com razão, traça a seguinte distinção:

Soberania é o atributo de o Estado estabelecer, em determinado território, ordem que dependa dele, não de alguma autoridade que lhe é superior. Poder é a capacidade do Estado de impor sua vontade a outros países, obrigando-os a agirem de certo modo ou a absterem-se de fazê-lo. Quem tem mais poder dispõe de maior possibilidade de afirmar a soberania, que não é nem nunca foi absoluta. Existirão, em nossos dias, mais limitações à soberania decorrentes de regras multilaterais ou da necessidade de atrair recursos financeiros. Em compensação, é mais fácil a um Estado minúsculo, como Luxemburgo (menos de 400 mil habitantes), ou pequeno, como a Noruega (menos de 4 milhões), realizar-se mediante altos níveis de riqueza e bem-estar, sem correr o risco de ser engolido por vizinho mais poderoso. Por conseguinte, tanto se pode dizer que diminuiu a soberania, por causa das limitações aceitas em tratados, como que aumentou, pela maior segurança que desfrutam os menores, em comparação

com as épocas de uso mais agressivo e unilateral do poder.8

Soberania e poder, portanto, malgrado a proximidade dos conceitos, não

são sinônimos. Não obstante, as considerações de Ricupero acerca do aumento

da soberania têm valia apenas em relação ao âmbito jurídico, uma vez que o

aumento do poderio econômico de grandes conglomerados empresariais

transnacionais, como resultado da globalização, levou ao surgimento de novos

polos de poder, que têm influência na realidade política dos Estados (ainda

formalmente) soberanos.

De qualquer modo, é certo que a soberania, em sua acepção clássica,

pressupõe um poder superior, predominante e incontrastável no território de

determinado Estado, poder este que se manifesta tanto interna quanto

externamente, como sintetiza Zagrebelsky:

Nessa ideia de soberania – entendida originariamente como situação eficiente de uma força material empenhada em construir e garantir sua supremacia e unicidade na esfera política – se encontrava implícito, in nuce, o princípio da exclusão e beligerância perante o alheio. (...) Desde a perspectiva interna, a soberania indicava o incomensurável que é o Estado diante de quaisquer outros sujeitos e, portanto, a impossibilidade de entrar em relações jurídicas com eles. Perante o Estado soberano não poderiam existir mais que relações de sujeição. Desde a perspectiva externa, os Estados se apresentavam como fortalezas

fechadas, protegidas pelo princípio da não ingerência.9

8 RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: Senac, 2001, p. 46.

9 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 5ª ed. Madri: Trotta, 2003, p. 10.

22

Essa formulação tradicional de soberania, que pressupõe, na sua essência,

a concentração de poder, foi alvo de questionamentos mesmo antes da crise pela

qual o conceito passa modernamente, notadamente em razão do

constitucionalismo e do pluralismo, como aponta Alcindo Gonçalves:

Ao longo da história, resistências ao conceito de soberania foram sendo colocadas. Duas delas merecem destaque: uma, ligada mais ao aspecto jurídico, refere-se ao constitucionalismo (lutando contra o Estado absoluto), e o federalismo a ele associado; outra, de características mais políticas, seria representada pelo pluralismo. O constitucionalismo visa combater, via o Estado misto e a separação dos poderes, toda a concentração e unificação do poder, e a procurar reparti-lo entre os diferentes órgãos, de maneira a que o “poder controle o poder”. Da mesma forma, o Estado federativo (despontando o modelo americano) é incompatível com o conceito original de soberania. Seu ponto de partida é outro: a supremacia da lei (a Constituição), que delimita as competências dos Estados federados e do Estado central.

A teoria pluralista investe contra o princípio da unidade do Estado (base da soberania), insistindo em que, na realidade, o contexto social apresenta uma notável pluralidade de grupos em competição ou em conflito para condicionar o poder político, sendo que os indivíduos vivem em associações grupos diferentes, com

capacidade de impor suas próprias opiniões.10

Contudo, o maior impacto que o conceito tradicional de soberania sofreu, e

que levou a uma crise do instituto, gerando, inclusive, uma crise na própria ideia

de Estado-nação, foi o fenômeno da globalização. É ainda Alcindo Gonçalves

quem esclarece:

Ao longo do século XX, o conceito político-jurídico de soberania sofre transformações, seja no plano teórico, com o avanço das teorias constitucionalistas, seja na prática, com a crise do Estado moderno, cada vez mais incapaz de se apresentar como centro único e autônomo do poder. De um lado, há a realidade crescente do pluralismo das sociedades democráticas; de outro, o novo caráter dado às relações internacionais retira o poder soberano do Estado, na medida que são fortalecidas a interdependência jurídica e econômica entre eles. As comunidades supranacionais são uma realidade, e com elas surgem Cortes de Justiça, definindo e confirmando a forma como o direito supranacional deve ser aplicado, ao mesmo tempo em que é reduzido o poder de promover políticas macroeconômicas, enquanto alianças militares reduzem a capacidade de cada Estado de organizar suas forças armadas.

10

GONÇALVES, Alcindo. Soberania, globalização e direitos humanos, in DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (coord.). Globalização & Soberania, p. 17.

23

Mas é do avanço do mercado mundial, aliado e expresso pela globalização, que vem o mais forte ataque ao conceito de soberania e de Estado-nação, sua expressão histórica. As empresas multinacionais detêm um poder de decisão próprio que não está sujeito ou condicionado por controles estatais clássicos, enquanto o avanço tecnológico das comunicações e dos transportes propicia as condições para o livre fluxo de capitais, de mercadorias e da produção em si mesma. Os novos meios de comunicação de massa possibilitam não apenas a informação instantânea e em tempo real, como também contribuem para a formação de uma “opinião pública mundial” que exerce, frequentemente com sucesso, pressão sobre os Estados

independentes.11

A crise12 ou necessidade de revisão13 do conceito de soberania, como

decorrência da globalização, acarretará consequências relevantes para a

interpretação constitucional, notadamente porque a premissa da norma

constitucional como absolutamente incontrastável e hierarquicamente superior a

todas as demais normas de determinado sistema jurídico exigirá reavaliação, à

luz da circunstância de que, para um mesmo problema jurídico, diferentes ordens

jurídicas, incidentes de forma concomitante sobre esse problema, poderão

apresentar respostas distintas, sendo necessário um diálogo entre essas ordens,

e não um enfrentamento baseado apenas no critério hierárquico14.

O fato é que o fenômeno da globalização, ao impor uma reformulação da

ideia de soberania, influencia sobremaneira na estrutura normativa de um Estado,

11

GONÇALVES, Alcindo. Soberania, globalização e direitos humanos, in DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (coord.). Globalização & Soberania, p. 18. 12

O termo “crise”, no contexto apresentado, remete a uma alteração substancial nas características fundamentais do instituto jurídico-político da soberania. Politicamente, Gianfranco Pasquino define “crise” como “o momento de ruptura no funcionamento de um sistema”, após o qual “o sistema tomou um certo módulo de funcionamento que não se identifica mais com o que antecedeu a crise” (PASQUINO, Gianfranco. Crise. In: BOBBIO; MATTEUCCI e PASQUINO (orgs.), Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1999, p. 103. 13

Paulo Bonavides prefere referir-se à revisão do conceito de soberania, aduzindo ao “declínio” do instituto, que decorre, dentre outras razões, da “necessidade de criar uma ordem internacional, vindo essa ordem a ter um primado sobre a ordem nacional” (BONAVIDES, Paulo. Ciência Política., p. 143). Discordamos, no entanto, da ideia de um primado da ordem internacional sobre a nacional (bem como do inverso), por acreditarmos, como outros autores adiante referidos (tais como Marcelo Neves e Marcelo Figueiredo), na necessidade de um diálogo entre ordens internas e internacionais, sem que o questionamento acerca da hierarquia dessas ordens ocupe o cerne desse diálogo. 14

Conforme afirmado anteriormente, a necessidade desse diálogo entre as ordens jurídicas nacionais e supranacionais não altera o status hierárquico das constituições em face dos ordenamentos jurídicos sobre os quais incidem. As constituições permanecem hierarquicamente superiores a todas as normas infraconstitucionais, sendo ainda o fundamento de validade destas. Ocorre que a existência de ordens jurídicas e instâncias decisórias supranacionais pode gerar antinomias (reais e aparentes) em face das constituições nacionais. Tais antinomias não serão solucionadas pelo emprego do critério hierárquico, o que leva à necessidade de se repensar o papel das constituições, notadamente em termos de sua aplicabilidade – o que, por outro, não significa lhe negar status hierárquico superior nas ordens jurídicas internas.

24

notadamente na pirâmide hierárquica kelseniana, uma vez que os Estados

passam a regular seus problemas jurídicos a partir de ordens jurídicas plúrimas

(nacionais, regionais e globais), tanto em razão da existência de normas

supranacionais, quanto pela existência de instâncias decisórias também

supranacionais15.

Portanto, a despeito de toda a dificuldade que o tema apresenta, é

necessário, ainda que sinteticamente, estabelecer um (dentre os inúmeros

possíveis) conceito de globalização, e seu papel para o que parte da doutrina

denomina “o fim do Estado-nação”.

É comum que o termo “globalização” remeta à ideia de eliminação de

barreiras entre os países, e a um constante fluxo econômico, cultural e de

pessoas ao redor do globo, que tornaria opacas as divisões territoriais que

marcaram os Estados no passado. A identidade diferenciadora entre Estados e

cidadãos construída a partir do conceito de “nação” tenderia, assim, a ser

substituída (ou redimensionada) por outros parâmetros. Assim, por exemplo, o

cidadão francês tornar-se-ia, antes de mais nada, um cidadão europeu, um

membro da União Europeia (sem, no entanto, perder a nacionalidade francesa)16.

David Held e Anthony McGrew definem a globalização nos seguintes

termos: “a globalização denota a escala crescente, a magnitude progressiva, a

aceleração e o aprofundamento do impacto dos fluxos e padrões inter-regionais

de interação social”17. Ulrich Beck, por seu turno, conceitua a globalização como

“processos, em cujo andamento os Estados nacionais veem a sua soberania, sua

identidade, suas redes de comunicação, suas chances de poder e suas

orientações sofrerem a interferência cruzada de atores transnacionais”18.

15

Ao tratar da União Europeia, Marcelo Figueiredo afirma que “não é possível reconstruir a figura piramidal de Kelsen em face da realidade europeia, aliás parece impossível reconstruí-la hoje em larga medida em face das pluralidades de fontes” (FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões. Monografia: 2015, p. 25). 16

Marcelo Figueiredo faz referência aos “processos de regionalização dos espaços estatais ou, se preferir, da montagem de estruturas supranacionais que direcionam o debate para uma nova dimensão: o do constitucionalismo desvinculado dos Estados Nação, um ‘supra-constitucionalismo’ com Standards em bases comunitárias e com capacidade regulatória sobreposta (ou superposta) às dos Estados partes dos blocos comunitários” (FIGUEIREDO, Marcelo. Ob. cit., p. 29). 17

HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 14. 18

BECK, Ulrich. O que é globalização – Equívocos do globalismo. Respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 27-28.

25

Embora, obviamente, o fenômeno da globalização não se circunscreva ao

âmbito econômico, esse aspecto, que remete ao fluxo de mercadorias e capitais

entre os países, é o que recebe a maior atenção de grande parte dos estudiosos

do tema (reducionismo contra o qual muitos autores se insurgem). Uma das

possíveis razões para a atenção dispensada a esse aspecto da globalização é o

impacto evidente e imediatamente perceptível que o elemento econômico tem nas

realidades nacionais, em especial no que tange à ideia de Estado-nação.

Assim, o aumento desmedido de empresas transnacionais e o uso do

poder econômico, notadamente em países periféricos, não raro implica um

impacto significativo na agenda política desses países. Pressionados pelo poderio

econômico, governos preterem compromissos constitucionalmente impostos de

garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, em detrimento de interesses de

grandes conglomerados financeiros. Segue-se que, em Estados Democráticos de

Direito, a lógica jurídica de proteção, garantia e promoção de direitos

fundamentais de cidadãos, ainda que constitucionalmente assegurada, é

substituída por uma lógica econômica pautada nos interesses desses

conglomerados internacionais, cujo capital migra de um país ao outro, sem

compromisso de fixação em qualquer deles, com o intuito de obter o maior retorno

financeiro possível.

Nesse quadro, as decisões políticas (que envolvem, dentre outros,

aspectos jurídicos e econômicos), a ser tomadas pelos governantes que

representam o Estado soberano, acabam pautadas (ainda que informalmente) por

interesses de empresas (ou conglomerados de empresas) transnacionais, de

modo que a ideia de soberania, como poder único e incontrastável de um Estado

em seu território, passa a ser, na melhor das hipóteses, questionável.

Essa ambiência justifica a posição de autores como Kenichi Ohmae, para

quem não há espaço para o Estado-nação numa economia sem fronteiras:

A verdade perturbadora é que, em termos de economia global, os Estados-nação tornaram-se pouco mais do que atores coadjuvantes. Originalmente, em sua fase mercantilista, eles podem ter sido mecanismos independentes e terrivelmente eficientes de geração da riqueza. Mais recentemente, porém, com a economia sob o domínio mortal da lógica da política eleitoral,

26

tornaram-se – acima de tudo – mecanismos notadamente

ineficientes de distribuição de riquezas.19

Há, sem dúvida, críticos ferrenhos a certos aspectos econômicos da

globalização20, inclusive entre juristas21. Contudo, como já afirmado

anteriormente, o fenômeno não se circunscreve ao universo econômico. No que

concerne ao mundo jurídico, verifica-se, na atualidade, que a diluição das

fronteiras nacionais leva à consagração de novos mecanismos de proteção aos

direitos fundamentais (entendidos, na esfera internacional, como direitos

humanos), em especial pelo fortalecimento de sistemas regionais e globais de

proteção a esses direitos, o que, se não assegura sua observância, no mínimo

fortalece os sistemas internos dos Estados no que diz respeito a tal proteção.

Nesse sentido, como exposto adiante, a marcante influência do direito

internacional nos ordenamentos jurídicos internos, por meio do

transconstitucionalismo ou constitucionalismo em rede, notadamente no que

tange ao fortalecimento de sistemas de proteção e promoção de direitos

humanos/fundamentais, consubstancia indiscutível aspecto positivo da

globalização, fenômeno que, reitere-se, não pode ser entendido como circunscrito

à esfera econômica.

19

OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-nação – A ascensão das economias regionais. Rio de Janeiro: Campos-Elsevier, 1996, p. 6. 20

Cite-se, por exemplo, Zigmunt Baumann, para quem “a ideia de ‘universalização’ transmitia a esperança, a intenção e a determinação de se produzir a ordem; além do que os outros termos afins assinalavam, ela indicava uma ordem universal – a produção da ordem numa escala universal, verdadeiramente global. Como os outros conceitos, a ideia de universalização foi cunhada com a maré montante dos recursos das potências modernas e das ambições intelectuais modernas. Toda a família de conceitos anunciava em uníssono a vontade de tornar o mundo diferente e melhor do que fora e de expandir a mudança e a melhoria em escala global, à dimensão da espécie. Além disso, declarava a intenção de tornar semelhantes as condições de vida de todos, em toda parte, e, portanto, as oportunidades de vida para todo mundo; talvez mesmo torná-las iguais. Nada disso restou no significado da globalização, tal como formulado no discurso atual. O novo termo refere-se primordialmente aos efeitos globais, notoriamente não pretendidos e imprevistos, e não às iniciativas e empreendimentos globais” (BAUMMAN, Zigmunt. Globalização – as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 67). 21

Segundo Paulo Bonavides, “a globalização é o fascismo branco do século XXI: universaliza o egoísmo e expatria a solidariedade” (BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 56). Celso Antônio Bandeira de Mello, por seu turno, ao tratar da globalização, “este notável empreendimento de marketing, que mobilizou todas as energias de difusão disponíveis tanto pelos governos cêntricos, quanto pelas agências internacionais, como pelas organizações capitalistas em geral”, assevera que “sob o patrocínio explícito de governantes submissos, que a exibiam com orgulhosa desfaçatez, implantou-se solidamente a chamada globalização neoiberalizante” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 1085 e 1089).

27

Com efeito, o direito, na atualidade, ostenta uma natureza pluralista, que,

embora o enriqueça sobremaneira, também o torna consideravelmente mais

complexo. Essa circunstância gera consequências relevantes para a

hermenêutica constitucional, dentre as quais o fortalecimento dos tribunais

constitucionais (responsáveis, em última análise, pela compatibilização e pelo

diálogo entre as ordens jurídicas internas e transnacionais), cuja atuação passa a

se revestir de uma carga política ainda mais intensa do que a verificada quando

da derrocada do Estado Liberal e ascensão do Estado Social (que levou a uma

repolitização do Poder Judiciário).

2.2 O neoconstitucionalismo22

Não é possível proceder a um adequado estudo do fenômeno da moderna

interpretação jurídica constitucional, nem entender as razões pelas quais se

desenvolveu, em torno dessa espécie de interpretação, quase que uma ciência

própria – a hermenêutica constitucional –, inspirada na hermenêutica tradicional,

mas dela distinta, sem que antes se compreenda o papel que as Constituições

passaram a desempenhar nos ordenamentos jurídicos.

Afirmamos anteriormente que as normas constitucionais se deslocaram

para o centro do universo jurídico. Convém, no entanto, aprofundar as

considerações acerca do tema, para que fique claro como o fenômeno do

neoconstitucionalismo levou ao surgimento de normas (constitucionais) com uma

estrutura própria e, por conseguinte, à necessidade de criação de técnicas

específicas e métodos próprios para a interpretação constitucional.

Pós-positivismo, neopositivismo, neoconstitucionalismo, dentre outras, são

expressões que, embora usadas com frequência cada vez maior pela doutrina,

pela jurisprudência e pelos operadores do direito de um modo geral, ainda

carecem de um sentido definitivo, talvez pela dificuldade de conceituação de um

instituto ou mentalidade que vem se formando nas últimas décadas sem que haja

ainda o distanciamento histórico indispensável a um enfoque mais objetivo do

tema. Não é exagero afirmar que serão necessários ainda alguns anos – e

22

O presente capítulo constitui um desenvolvimento do capítulo 6 da Dissertação de Mestrado defendida por nós junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2011, sob o título A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. O texto original foi modificado e adaptado para as finalidades e objetivos do presente estudo.

28

provavelmente algumas décadas – para que o fenômeno possa ser analisado

com mais precisão.

Seja como for, é inegável que as últimas décadas foram marcadas pela

superação de uma série de paradigmas e pela reconstrução do sentido de vários

institutos jurídicos, bem como pelo descarte de inúmeras teorias que não mais

encontram amparo no atual desenvolvimento do Direito das sociedades

modernas.

É possível, portanto, ainda que sem precisão absoluta, afirmar a existência

de um novo constitucionalismo, marcado por algumas características já passíveis

de verificação. Esse novo constitucionalismo decorre inevitavelmente da evolução

do pensamento constitucional, aspecto que merece uma breve digressão.

2.2.1 O reconhecimento da Constituição como efetiva norma jurídica

A questão da normatividade da Constituição e de sua potencialidade

prescritiva envolve uma gama de aspectos distintos, num cenário plurifacetado de

transformações ocorridas nas mais diversas esferas do pensamento. Sem a

pretensão de esgotar o assunto, seguem-se alguns dos fatores mais relevantes

para a evolução e o atual perfil do pensamento constitucional.

2.2.1.1 A controvérsia Lassale-Hesse

Em célebre conferência proferida em Berlim em abril de 1862, Ferdinand

Lassale defendeu a ideia de que a essência de uma Constituição residiria na

soma dos fatores reais de poder que vigorassem no país que promulgasse essa

Constituição. É de sua lavra o conhecido conceito de “Constituição folha de

papel”23:

Eis aqui o que é, em essência, a Constituição de um país:

os somatórios dos fatores reais de poder que vigoram nesse país. Mas que relação guarda isso com o que vulgarmente se

chama Constituição, ou seja, com a Constituição jurídica? Não é difícil, senhores, compreender a relação que os dois conceitos guardam entre si.

Colhem-se estes fatores reais de poder, registram-se em uma folha de papel, se lhes dá expressão escrita, e a partir deste

23

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2004, p. 48.

29

momento, incorporados a um papel, já não simples fatores reais de poder, mas que se erigiram em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado.

Lassale ainda afirma em seu discurso:

Assim sendo, quando se pode dizer que uma Constituição escrita é boa e duradoura?

A resposta é clara e se origina logicamente por quanto deixamos exposto: quando esta Constituição escrita corresponde à Constituição real, a qual tem suas raízes nos fatores de poder que regem no país. Onde a Constituição escrita não corresponde à real, estoura inevitavelmente um conflito que não há maneira de evitar e no qual, passado algum tempo, mais cedo ou mais tarde, a Constituição escrita, a folha de papel, terá necessariamente de sucumbir perante o empuxo da Constituição real, das verdadeiras

forças vigentes no país.24

A conclusão a que Lassale chega é a seguinte:

Os problemas constitucionais não são, primordialmente, problemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição de um país somente reside nos fatores reais e efetivos de poder que regem nesse país; e as Constituições escritas não têm valor e nem são duradouras mais do que quando dão expressão fiel aos

fatores de poder vigentes na realidade social.25

Não é difícil perceber que a ideia de Constituição, nos moldes traçados por

Lassale, resta completamente desprovida de força normativa. Se o texto

constitucional é incapaz de se impor a fatores reais de poder, perde qualquer

caráter prescritivo, tendo uma natureza meramente declaratória. As questões

constitucionais, por conseguinte, estariam apartadas do direito, pois seriam

eminentemente políticas.

A conferência de Lassale foi posteriormente publicada sob o título Über das

Verfassungswesen (traduzida para o português sob os títulos O que é uma

Constituição?, O que é uma Constituição política ou A essência da Constituição, a

depender do tradutor). A obra ganhou notoriedade e consagração.

Contudo, em 1959, Konrad Hesse publicou A força normativa da

Constituição (Die normativeKraft der Verfassung), contestando a ideia de

“Constituição folha de papel” defendida por Lassale.

24

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição, p. 63. 25

Idem, p. 71.

30

Hesse observa que a “ideia de um efeito determinante exclusivo da

Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da

Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de

Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria

essência da Constituição”26. E acrescenta:

Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa; diferencia-se, assim, da Sociologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão somente a miserável função – indigna de qualquer ciência – de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferençá-la da Sociologia ou da Ciência

Política.27

Hesse argumenta que “essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento

se se puder admitir que a Constituição contenha, ainda que de forma limitada,

uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se

apresenta diz respeito à força normativa da Constituição. Existiria, ao lado do

poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e

sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o

fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional?”28

Observando que a “Constituição não configura, portanto, apenas expressão

de um ser, mas também de um dever ser”, Hesse distingue a Constituição real da

Constituição jurídica, asseverando que “estão em uma relação de coordenação.

Elas condicionam-se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente,

uma da outra. Ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem

significado próprio”29.

26

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 11. 27

Idem. 28

Idem. 29

Idem, p. 15.

31

Atribuindo ao próprio texto constitucional uma força conformadora da

realidade, Hesse expõe o conceito de vontade de Constituição:

Mas a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas (...). Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a

vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).30

Reconhecendo que “a interpretação tem significado decisivo para a

consolidação e preservação da força normativa da Constituição”31, Hesse destaca

novamente a relação de coordenação entre as Constituições real e jurídica,

concluindo que “uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar

mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da

proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o

limite de qualquer mutação normativa”32

Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, em sua apresentação à tradução

brasileira da obra:

Contrapondo-se às reflexões desenvolvidas por Lassale, esforça-se Hesse por demonstrar que o desfecho do embate entre os fatores reais de Poder e a Constituição não há de verificar-se, necessariamente, em desfavor desta. A Constituição não deve ser considerada a parte mais fraca. Ressalta Hesse que a Constituição não significa apenas um pedaço de papel, como definido por Lassale. Existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen), que, mesmo em caso de eventual confronto, permitem assegurar a sua força normativa. A conversão das questões jurídicas (Rechtsfragen) em questões de poder (Machtfragen) somente há de ocorrer se esses pressupostos não puderem ser safisfeitos. Sem desprezar o significado do fatores históricos, políticos e sociais para a força normativa da Constituição, confere Hesse peculiar realce à chamada vontade de Constituição (Wille zur Verfasssung). A Constituição, ensina Hesse, transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem-se presentes, na

30

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, p. 19. 31

Idem, p. 22. 32

Idem, p. 23.

32

consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – , não só a vontade de poder (Wille zur Macht) , mas também a vontade de Constituição

(Wille zur Verfassung).33

É possível afirmar que, nos dias atuais, prevalece a ideia consagrada por

Hesse de que os dispositivos constitucionais são efetivamente normas jurídicas

dotadas de imperatividade (ainda que em grau diverso, de acordo com o tipo de

norma de que se trate).

Mas o aspecto político das Constituições, que no apogeu do Estado Liberal

e por conta da consagração das teorias positivistas, perdera terreno para o

aspecto jurídico, readquiriu boa parte de sua importância com a crise do

liberalismo, conforme demonstrado a breve trecho.

Paralelamente à controvérsia Lassale-Hesse, que ganhou significativa

relevância doutrinária, sendo até hoje bastante estudada e discutida, o mundo

ocidental assistiu a uma radical transformação nas estruturas dos textos

constitucionais, transformação esta oriunda do fracasso do Estado Liberal e da

consagração da ideia de Estado Social.

2.2.1.2 A crise do Liberalismo e o surgimento do Estado Social

As Declarações de Direitos, que marcaram a ideologia constitucional e o

atual perfil das Constituições, tinham inicialmente um viés indiscutivelmente

individual. A concepção de Constituição como instrumento de proteção do

indivíduo contra o arbítrio do Estado leva à consagração, nas cartas

constitucionais, dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão34, que

impõem vedações ao Estado – daí porque também são denominados direitos

negativos.

A miséria provocada pela exploração das indústrias sobre os

trabalhadores, principalmente por conta da Revolução Industrial, demonstrou a

33

MENDES, Gilmar Ferreira, Apresentação, in HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição, p. 5. 34

A doutrina vale-se ora do vocábulo “dimensões”, ora do vocábulo “gerações”, para classificar as espécies de direitos fundamentais que surgiram ao longo do tempo. Empregaremos no presente trabalho o termo “dimensões”, uma vez que o termo “gerações” pode levar à equivocada conclusão de superação de uma geração por outra. Os direitos fundamentais de segunda dimensão, a toda evidência, não superaram os de primeira dimensão, nem foram superados pelos de terceira dimensão. Diante do fato de que todas as dimensões de direitos fundamentais são igualmente relevantes, o termo “dimensão” parece ser mais adequado do que o termo “geração”.

33

falibilidade do modelo liberal como suficiente para regular as questões sociais.

Ficou evidente que a mera abstenção estatal não bastava para que as relações

entre os particulares ficassem isentas do arbítrio, a partir de então imposto aos

indivíduos não só pelo Estado, mas também pelos detentores do capital.

As tensões sociais oriundas dessa situação propiciaram o surgimento de

uma nova espécie de Constituição, agora não mais voltada apenas à proteção

dos direitos individuais, mas também preocupada com os direitos sociais, os

chamados direitos fundamentais de segunda dimensão. Nesse contexto têm

extrema relevância histórica a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição da

República de Weimar, de 1919.

Mas a inclusão dos direitos sociais nas Constituições, muitos dos quais

previstos em normas de caráter programático, teve por consequência o

ressurgimento do debate acerca da normatividade dos dispositivos

constitucionais, bem como o fortalecimento do aspecto político das Constituições

– do que resultou indiretamente uma reavaliação dos seus aspectos jurídicos.

Nesse sentido, esclarece Paulo Bonavides35:

Quase todo o edifício jurídico das Constituições liberais erguido durante o século XIX veio abaixo. A programaticidade

dissolveu o conceito jurídico de Constituição, penosamente elaborado pelos constitucionalistas do Estado Liberal e pelos juristas do positivismo. De sorte que a eficácia das normas constitucionais volveu à tela de debate, numa inquirição de profundidade jamais dantes lograda.

O drama jurídico das Constituições contemporâneas assenta, como se vê, na dificuldade, se não, impossibilidade de passar da enunciação de princípios à disciplina, tanto quanto possível rigorosa ou rígida, de direitos acionáveis, ou seja, passar da esfera abstrata dos princípios à ordem concreta das normas.

Quando as Constituições do liberalismo, ao construírem um Estado de Direito sobre bases normativas, pareciam haver resolvido a contento, durante o século XIX, esse desafio, eis que as exigências sociais e os imperativos econômicos, configurativos de uma nova dimensão da Sociedade a inserir-se no corpo jurídico dos textos constitucionais, trouxe à luz a fragilidade de todos os resultados obtidos. As antigas Constituições, obsoletas ou ultrapassadas, viram então criar-se ao redor de si o clima da programaticidade com que os modernos princípios buscavam cristalizar um novo direito, onde afinal se operou a elaboração das Constituições do Século XX: inaugurava-se assim a segunda fase – até agora não ultrapassada – de programaticidade das Constituições. Programaticiadade que nós queremos seja ‘jurídica’ e não ‘programática’, isto é, sem positividade.

35

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 232-233.

34

Bonavides aponta a dificuldade oriunda de tal quadro36:

Desaparelhado de ferramentas teóricas com que interpretar e caracterizar os novos institutos e princípios introduzidos nas Constituições por efeito de comoções ideológicas, cuja intensidade se fez sentir acima de tudo durante o período subsequente à Primeira Grande Guerra Mundial, o velho Direito Constitucional entrou em crise.

A Constituição de Weimar foi fruto dessa agonia: o Estado liberal estava morto, mas o Estado social ainda não havia nascido. As dores da crise se fizeram mais agudas na Alemanha, entre os seus juristas, cuja obra de compreensão das realidades emergentes se condensou num texto rude e imperfeito, embora assombrosamente precursor, de que resultariam diretrizes básicas e indeclináveis para o moderno constitucionalismo social.

A queda do grau de juridicidade das Constituições nessa fase da anárquica e conturbada doutrina se reflete em programaticidade, postulados abstratos, teses doutrinárias; tudo isso ingressa copiosamente no texto das Constituições. O novo caráter da Constituição lembra de certo modo o período correspondente a fins do século XVIII, de normatividade mínima e programaticidade máxima. E o lembra, como estamos vendo, precisamente pelo fato de que deixa de ser em primeiro lugar jurídico para se tornar preponderantemente político.

O retorno à programaticidade empalidece tudo quanto dantes de conhecera em matéria de abstração constitucional, porquanto o conteúdo normativo sobre que incidem as máximas programáticas no constitucionalismo do século XX tem uma vastidão abrangedora de toda a esfera material da Sociedade.

Portanto, verifica-se que, se a inclusão dos direitos sociais nas atuais

Constituições resulta de um inevitável reconhecimento da falência do liberalismo e

da necessidade de uma maior regulamentação das questões sociais (de que é

prova, inclusive, o surgimento dos chamados direitos fundamentais de terceira

dimensão), a contraparte dessa situação consiste em certa perda de

normatividade dos preceitos constitucionais, justamente por conta do fato de que

uma série de direitos sociais, por sua própria estrutura e conteúdo, só pode ser

constitucionalmente prevista mediante normas programáticas – sendo necessário

reconhecer, ainda, que essa programaticidade, ao robustecer o aspecto político

das Constituições, acaba por mitigar em algum grau seu aspecto jurídico. Este o

dilema que se colocou para os estudiosos do Direito Constitucional do século XX

– dilema que, no final da primeira década do século XXI, ainda aparenta estar

longe de encontrar uma solução satisfatória.

36

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 233-234.

35

2.2.1.3 A desconstrução e a reconstrução do positivismo jurídico

A par de tais questões, circunstância que influiu sobremaneira no atual

perfil das Constituições foi a superação do positivismo em sua vertente

tradicional.

O positivismo jurídico, consequência da filosofia positivista de Auguste

Comte, fundamentou-se na ideia de que o Direito seria capaz de solucionar os

problemas propostos pela ciência jurídica, sem o auxílio de outros ramos da

ciência. Essa pretensão de unicidade do direito resultou num distanciamento (ao

menos aparente, e indiscutivelmente pretendido pelos positivistas) entre o direito

e a moral. O positivismo impunha-se como alternativa a um jusnaturalismo não

condizente com os rumos que a sociedade tomava.

Os horrores da Segunda Guerra Mundial revelaram o equívoco perpetrado

pelos positivistas, bem como a insuficiência da teoria juspositivista como

instrumento apto a solucionar os problemas da sociedade. Nos conhecidos

julgamentos de Nuremberg, o estrito respeito à lei então vigente foi o principal

argumento utilizado pelos carrascos nazistas para justificar as atrocidades

cometidas contra os judeus.

Rapidamente ficou claro que o apego à lei em seus aspectos meramente

formais, sem que se levassem em conta os aspectos axiológicos que norteiam as

condutas sociais, afigurava-se tão insuficiente para regular a vida em sociedade

quanto o enfoque jusnaturalista tão criticado pelos adeptos do positivismo.

Impunha-se um passo à frente.

A reaproximação entre direito e moral, a consideração de valores que, em

última análise, guardavam inegáveis traços jusnaturalistas, a reformulação da

concepção tradicional do positivismo, todos esses fatores, dentre outros, levaram

não apenas à desconstrução da teoria positivista em seu aspecto “clássico”, mas

também a uma reconstrução dessa teoria, moldada à luz dos eventos em

questão. Expressões como “neopositivismo” e “pós-positivismo” ganharam espaço

e entraram em voga, numa tentativa de explicar um “positivismo com valores” ou

“positivismo axiológico”.

É evidente que, diante da presença cada vez mais consolidada da

Constituição no cerne dos debates sobre os problemas das sociedades

36

modernas, a ascensão desse “neopositivismo” ensejaria o surgimento de um

“neoconstitucionalismo”. E, embora a proximidade histórica e o fato de que tais

teorias ainda se encontram em desenvolvimento não permitam um delineamento

peremptório acerca das características dessas novas teorias, já é possível

encontrar algum consenso no que tange a seus aspectos fundamentais.

2.2.1.4 O neoconstitucionalismo

Luís Roberto Barroso37 sintetiza com maestria as peculiaridades do

momento atual de desenvolvimento do constitucionalismo, apontando o que

entende por três marcos fundamentais, a saber: o marco histórico, o marco

filosófico e o marco teórico.

O marco histórico “foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente

na Alemanha e na Itália”38, salientando o ilustre jurista que:

A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2ª Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático.

Em relação ao marco filosófico, Barroso esclarece que “é o pós-

positivisimo. O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência de

duas grandes correntes do pensamento que oferecem paradigmas opostos para o

direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente

complementares. A quadra atual é assinalada pela superação – ou, talvez,

sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias,

agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivisimo.”39

Finalmente, em relação ao marco teórico, aponta Barroso que “três

grandes transformações subverteram o conhecimento convencional relativamente

à aplicação do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à

37

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo nº 63/64, jan./dez. 2006, p. 1-59. 38

Idem, p. 3. 39

Idem, p. 5.

37

Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de

uma nova dogmática da interpretação constitucional.”40

Desenvolvendo o aspecto concernente ao marco teórico, é possível afirmar

que a expansão da jurisdição constitucional e a nova hermenêutica constitucional

desempenham papel fundamental na atribuição de força normativa às disposições

constitucionais.

O caso brasileiro é paradigmático dessas circunstâncias, especialmente a

partir da redemocratização e da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, especialmente em sua atual

composição, vem inovando substancialmente no terreno da interpretação

constitucional, atribuindo à Carta de 1988 uma feição e uma normatividade até

então desconhecidas pela realidade brasileira. E o faz muitas vezes criando

direito, assumindo uma indiscutível função normativa.

Indiscutivelmente, o Pretório Excelso, em suas composições mais recentes,

vem atribuindo à Constituição Federal uma força expansiva até então inédita no

Brasil, sempre com o objetivo de conferir aos dispositivos constitucionais máxima

efetividade. Com efeito, a adoção de métodos interpretativos que não mais se

limitam à mera subsunção dos fatos à norma (técnica, de resto, insuficiente para

supedanear a hermenêutica de uma constituição essencialmente principiológica e

calcada nos direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana) ou ao

emprego dos elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático (tal como

propunha Savigny) foi capaz de levar os dispositivos constitucionais a patamares

inéditos de efetividade – embora, impõe-se reconhecer, o déficit de efetividade de

tais normas ainda seja elevado e preocupante.

De fato, diante desse “novo constitucionalismo” que a cada dia ganha

corpo, o papel do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição e

cúpula do Poder Judiciário brasileiro, é da mais alta relevância. E há que se

reconhecer que o Pretório Excelso não se tem furtado à tarefa que a Carta de

1988 lhe impõe, valendo-se de instrumentos que por diversas vezes ultrapassam

o direito positivo, desenvolvendo uma atividade indiscutivelmente criativa.

40

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo nº 63/64, jan./dez, p. 6.

38

Tal postura evidencia um notável desenvolvimento não só do próprio

Supremo como, também, da compreensão do texto constitucional vigente. E, se é

fato que há inegáveis momentos de exagero – a ponto de Oscar Vilhena Vieira

mencionar (e criticar) na atualidade brasileira a existência de uma

“supremocracia”41 – é também indiscutível, por outro lado, que essa postura de

maior protagonismo e de ampla criatividade do Supremo Tribunal Federal tem

contribuído para a concretização de direitos fundamentais e para o suprimento de

omissões oriundas de outras esferas do Poder Público, de modo que há um

indiscutível aspecto benéfico na atual posição do Pretório Excelso.

É de se notar, no entanto, que nem sempre o Supremo Tribunal Federal

assumiu um papel de protagonismo efetivo ao desempenhar sua função de

guardião da Constituição. Há que se reconhecer que o atual grau de

protagonismo da atuação do Pretório Excelso é inédito na história constitucional

brasileira. O papel do Supremo Tribunal Federal na atualidade, notadamente no

que concerne à sua função de intérprete final da Constituição numa realidade em

que há uma multiplicidade de ordens jurídicas entrelaçadas (o chamado

transconstitucionalismo), será analisado adiante.

2.2.1.5 A redemocratização e a Constituição de 1988

Indiscutivelmente, a promulgação da Constituição de 1988 inaugura uma

nova era no constitucionalismo brasileiro. Nesse sentido, afirma Barroso:

Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu, em menos de uma

41

Nesse sentido, o autor afirma que “nos últimos anos, o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão de ‘proteção de regras’ constitucionais, face aos potenciais ataques do sistema político, como também vem exercendo, ainda que subsidiariamente, a função de ‘criação de regras’; logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente a qualquer intérprete constitucional, com exercício de poder. Esta última atribuição, dentro de um sistema democrático, deveria ficar reservada a órgãos representativos, pois quem exerce poder em uma república deve sempre estar submetido a controles de natureza democrática” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV vol. 4, nº 2. Julho/dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322008000200005>. Acesso em 10.08.2015). O autor já sustentara alhures (Supremocracia: vícios e virtudes republicanas, Jornal Valor Econômico, edição de 06.11.2007) que a “questão fundamental é saber até quando o STF poderá suportar esta enorme pressão decorrente da incapacidade de nosso sistema político de deliberar dentro de parâmetros legais e racionais. Como a função de interpretar a Constituição é em grande medida política, dada as ambiguidades e a alta carga de valores morais abrigada pelo texto constitucional, corre-se o risco de um processo de fadiga, que leve ao esgarçamento da preciosa autoridade do STF”.

39

geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no país é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o

contrário do amor.42

A Constituição de 1988 não foi apelidada por Ulysses Guimarães de

“Constituição cidadã” à toa. Dentre todas as que marcaram a história

constitucional brasileira, é a Constituição que mais garante direitos aos cidadãos

e, mais do que isso, confere instrumentos aptos à garantia desses direitos. O

mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo, o habeas data, dentre

uma série de outros direitos e garantias, evidenciam a tônica da atual Constituição

brasileira, calcada sobretudo nos direitos humanos e no princípio da dignidade da

pessoa humana.

No que tange ao controle de constitucionalidade, o rol dos legitimados foi

substancialmente ampliado, nele sendo incluídas instituições representantes da

própria sociedade (e não mais, nesse aspecto, apenas os partidos políticos como

representantes do povo). A arguição de descumprimento de preceito fundamental

e a ação declaratória de constitucionalidade, bem como as leis regulamentadoras

dos chamados processos objetivos (as Leis nº 9.756/98, 9.868/99 e 9.882/99),

aproximam a sociedade do processo de controle de constitucionalidade. A

possibilidade da interferência do amicus curiae nos processos objetivos e a

possibilidade da realização de audiências públicas são outros meios de

concretizar essa aproximação.

A tudo isso há de se somar o fato de que as mais recentes composições do

Supremo Tribunal Federal têm adotado uma postura maximalista em relação ao

texto constitucional, colocando o Supremo não como aplicador da lei, e sim como

aplicador – e por vezes até mesmo criador – do direito. Nesse sentido, a Corte

tem alterado entendimentos consolidados durante anos, inovando

significativamente – e essa inovação tem reflexos não apenas no Judiciário, mas

também em todas as esferas do Poder Público.

42

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV vol. 4, nº 2. Julho/dezembro de 2008, p. 4.

40

Por outro lado, o STF tem adotado uma postura de maior aproximação da

sociedade, evitando o isolamento e buscando uma maior proximidade com o

conceito de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, de Peter Häberle43.

Diante de tais circunstâncias, é lícito afirmar que o sentido do texto

constitucional, na forma como vem sendo construído pelo Supremo Tribunal

Federal ao longo dos últimos anos, há de se manter em constante mutabilidade.

Não se vislumbra um ponto de chegada a ser atingido pelo Supremo na

interpretação da Constituição, e nem parece ser esta a intenção da Corte. Nem

poderia ser de outro modo, tendo em vista a própria natureza da Constituição de

1988, que, como marco da redemocratização, buscou abrigar direitos e interesses

de diversos matizes e setores da sociedade, tornando a Constituição uma carta

de compromisso e de convergência desses interesses. Mais do que isso, o amplo

rol de direitos fundamentais (inclusive sociais) e de normas programáticas e

principiológicas torna a Constituição um ponto de partida para a atuação dos

Poderes Públicos, e não um ponto de chegada. O princípio democrático que

exsurge do texto constitucional, assim, busca garantir a todos os membros da

sociedade a possibilidade de buscar suas finalidades pessoais, estabelecendo, no

seio de uma sociedade plural, as bases de uma vida comum na qual as mais

diversas potencialidades individuais possam ser buscadas e realizadas.

A tarefa do Supremo Tribunal Federal, no sentido de harmonizar todos

esses direitos e interesses, nem sempre coincidentes e não raro conflitantes entre

si, se revela bastante complexa e evidencia a necessidade do emprego de

sofisticadas técnicas argumentativas, as quais por vezes levam a uma atividade

intensamente criativa no campo hermenêutico.

Convém, no entanto, analisar com maior proximidade os aspectos desse

“novo Tribunal” que se apresenta à sociedade.

Conforme afirmado, as mais recentes composições do Supremo Tribunal

Federal, ancoradas nos preceitos do novo constitucionalismo e as mais modernas

técnicas de hermenêutica constitucional, vêm dando soluções inovadoras a

questões que até então recebiam respostas juridicamente mais ortodoxas.

43

“A análise até aqui desenvolvida demonstra que a interpretação constitucional não é um ‘evento exclusivamente estatal’, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático. A esse processo tem acesso potencialmente todas as forças da comunidade política” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 23.

41

A intenção da Corte é clara nesse sentido: o Supremo vem buscando se

afirmar como verdadeiro ator social, buscando se afastar da vetusta ideia de

“boca da lei” que norteia a conduta do Judiciário desde os tempos de

Montesquieu.

A adoção de um maior protagonismo frente a tais questões tem suscitado

críticas por conta de um eventualmente acerbado “ativismo judicial” – expressão

bastante em voga, mas amiúde empregada com sentidos diversos – que, por

vezes, resvala no princípio da Separação de Poderes44.

Certo é, no entanto, que a atual postura do Supremo tem dado concreção a

uma série de dispositivos constitucionais cuja eficácia vinha sendo nulificada

justamente por conta da conduta de seus destinatários (os poderes públicos a

quem a Constituição impôs deveres a ser cumpridos em benefício da sociedade),

que não se sentiam efetivamente obrigados a lhes dar cumprimento.

É evidente que essa conduta mais ativa por parte do Supremo, se resolve

uma série de problemas, suscita diversas outras questões. Nada há de novo em

tal situação. Sendo forçosamente dialéticas as forças sociais que se entrechocam

no cotidiano de sociedades complexas, sendo multifacetados os interesses e

conflitos daí decorrentes, não surpreende que a criação do direito, ainda que

sobre uma base relativamente estável – a Constituição – se apresente como

fenômeno em constante mutação.

A análise de algumas situações concretas evidencia o quanto a

hermenêutica constitucional evoluiu nos últimos anos, bem como a complexidade

das questões que decorrem de tal situação. Citem-se, à guisa de exemplo, as

decisões proferidas nos julgamentos do Habeas Corpus nº 82.959, dos Mandados

de Injunção ns. 670, 708 e 712 e do Recurso Extraordinário nº 197.917.

No julgamento do Habea corpus nº 82.959, em fevereiro de 2006, a Corte

alterou entendimento sustentado durante dezesseis anos, relativo à

constitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, que, à

época, previa a integralidade do regime fechado para o cumprimento das penas

44

Tal fenômeno decorre da chamada “politização do Judiciário” ou “judicialização da política”, consistente na circunstância de o Poder Judiciário, chamado a suprir a inércia dos Poderes Legislativo e Executivo na área das políticas públicas, especial no que concerne à concretização de direitos fundamentais, o que leva, por vezes, à substituição da discricionariedade do legislador e do administrador público pela discricionariedade do julgador na escolha dos rumos que as aludidas políticas públicas devem seguir, o que implicaria, para os aludidos críticos, uma violação ao princípio da separação de Poderes.

42

aplicadas em decorrência de crimes hediondos e assemelhados. O Supremo

passou a entender que o regime integral fechado consubstancia uma violação do

princípio constitucional da individualização da pena, sendo, portanto,

inconstitucional.

A partir de março de 2006, as duas Turmas do Supremo passaram a julgar

monocraticamente os habeas corpus referentes à mesma matéria, julgando

procedentes inclusive diversas Reclamações interpostas em razão de

entendimentos dissonantes por parte de instâncias inferiores – malgrado não

tenha sido atribuída à decisão efeito erga omnes.

Como consequência da pacificação desse entendimento, que gerou uma

distorção – todos os crimes, hediondos ou não passaram a ter a progressão de

regime em patamares idênticos, a saber, um sexto do cumprimento da pena – o

Congresso Nacional alterou a Lei dos Crimes Hediondos, acatando o

entendimento do STF, mas determinando, por outro lado, que a progressão do

regime no caso dos crimes hediondos tivesse um patamar mais severo do que a

prevista para os crimes comuns.

No que concerne ao julgamento conjunto dos Mandados de Injunção ns.

670, 708 e 712, concluído em 25 de outubro de 2007, a decisão proferida de

modo uniforme para as três ações implicou uma substancial alteração no que

tange ao entendimento até então vigente no Supremo Tribunal Federal quanto

aos efeitos da decisão proferida em ações dessa natureza.

Até então, o Supremo acolhia a tese de que, em relação às omissões do

Poder Público, a decisão tinha o único efeito de declarar a mora inconstitucional

do ente omisso, eventualmente notificando o ente acerca de sua inércia.

A postura do STF sempre foi severamente criticada pela doutrina, a ponto

de José Afonso da Silva afirmar que interpretação dada pelo Supremo ao

mandado de injunção “praticamente o torna sem sentido ou, pelo menos,

muitíssimo esvaziado”45.

A partir das considerações do Ministro Eros Roberto Grau, de que a ideia

de “separação de Poderes” na verdade corresponde à de “divisão de funções”,

sendo que o Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo, é dotado de uma

45

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 451.

43

função normativa constitucionalmente atribuída46, o Supremo, em decisão

polêmica que ainda hoje é alvo de questionamentos doutrinários, supriu a

omissão do ente federal, que não criara legislação infraconstitucional específica

reguladora da greve dos funcionários públicos, passando a valer a decisão

proferida nos supracitados mandados de injunção como se legislação

efetivamente fosse, até que sobrevenha a legislação supridora da mora

inconstitucional do ente federativo em questão47.

Finalmente, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917, em junho

de 2002, o Supremo, ao tratar da questão da redução do número de vereadores

no Município de Mira Estrela, acolheu o argumento invocado pelo Ministro Gilmar

Mendes, no sentido de que “se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita,

sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos

idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias”48, dando efeito

transcendente aos motivos determinantes subjacentes à decisão declaratória de

inconstitucionalidade.

Assim, embora tal julgamento tenha se dado em sede de controle difuso de

constitucionalidade, o STF, visando suprir lacuna no texto constitucional acerca

do número mínimo e máximo de vereadores por cidade, elaborou uma verdadeira

norma geral, válida para todos os municípios do país, traçando um parâmetro

aritmético que estabelece uma relação entre o número de habitantes de cada

município e os respectivos números mínimo e máximo de vereadores.

Tal decisão consubstancia inequívoca norma geral, expressão da função

normativa a que se refere Eros Grau, proferida em sede de controle difuso,

representando, por conseguinte, expressiva inovação hermenêutica.

46

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Afirma o autor: “A separação dos poderes constitui um dos mitos mais eficazes do Estado liberal (...) o Legislativo não é titular de monopólio senão da função legislativa, parcela da função normativa, e não de toda esta, como a recepção irrefletida da teoria da ‘separação dos poderes’, à primeira vista, indica. (...). Logo, quando o Executivo e o Judiciário emanam atos normativos de caráter não legislativo (...) não o fazem no exercício de função legislativa, mas sim no desenvolvimento de função normativa.” (p. 225, 244 e 248). 47

Em termos doutrinários, pode-se afirmar que, até 25.10.2007, o STF adotava a posição não concretista em relação aos efeitos da decisão no mandado de injunção, passando, a partir de então, a adotar a posição concretista geral direta. A crítica feita a essa mudança de paradigma, a nosso ver procedente, se dá no sentido de que, entre esses dois extremos, há outras posições acerca dos efeitos da decisão no mandado de injunção (concretista individual, concretista indireta etc.) que não implicariam o verdadeiro exercício legiferante por parte do Supremo, que pode ser constatado na aludida decisão. 48

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847>, acesso em 05.02.2014.

44

Inúmeros outros exemplos poderiam ser invocados, mas os já apontados

são mais que suficientes para demonstrar uma radical transformação no papel

que o Supremo vem desempenhando na sociedade ao longo dos últimos anos.

O cotejo do atual desempenho do STF com sua postura desde sua criação

torna clara uma evolução vertiginosa – evolução esta que, como já afirmado,

parece não ter a pretensão de alcançar um ponto de definitividade (nem a

Constituição de 1988 o permitiria, por sua própria natureza), mas de permanecer

numa construção contínua, em constante evolução, mantendo o sentido da

Constituição sempre atualizado.

2.3 A influência do direito internacional no direito nacional – o

transconstitucionalismo

Como exposto no item 2.1, a globalização alterou radicalmente as relações

não só econômicas, como também sociais, culturais e tecnológicas, dentre outros

campos do conhecimento, além de facilitar o trânsito físico das pessoas por todo

o globo.

Sendo o direito uma ciência humana e uma ferramenta de regulação das

relações sociais, é evidente que a globalização levou a significativas alterações

no universo jurídico, notadamente no que concerne à proteção de direitos em um

mundo cujas barreiras entre os países praticamente despareceram. Relações

comerciais, trabalhistas, contratuais etc. são entabuladas entre indivíduos e

empresas de diferentes Estados e, mais do que isso, entre indivíduos e empresa

e os próprios Estados. A rede regulatória dessas relações, portanto, se expande e

ultrapassa os limites territoriais dos países.

A “forte internacionalização e globalização das relações jurídicas em um

mundo cada vez mais segmentado em organizações internacionais, tribunais

nacionais, regionais, supranacionais, internacionais, setor público, privado,

empresarial, cada um deles emitindo um grande número de normas jurídicas que

devem ser interpretadas e aplicada para além da figura tradicional do Estado”49

exige, do direito, novas soluções para problemas que os ordenamentos internos

dos países, isoladamente, não são mais capazes de enfrentar.

49

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 15.

45

Da centralidade dos direitos humanos, marco do novo constitucionalismo,

surge, antes de mais nada, uma concepção desses direitos como passíveis de

proteção em múltiplas esferas. Assim, um mesmo direito pode receber proteção

de determinada Constituição e, simultaneamente, de tratados internacionais e

instâncias decisórias supranacionais.

Marcelo Figueiredo observa que “a dimensão internacional (...) é somente

uma de muitas possíveis dimensões de matéria de ordem constitucional (mas não

necessariamente proveniente de uma Constituição), mas ainda assim proteção

constitucional de direitos humanos, por exemplo”50. E cita o caso europeu, no qual

a proteção de certos direitos chega a envolver quatro instâncias decisórias

distintas, apontando, assim, para a necessidade de um diálogo entre tais

instâncias:

Tome-se o caso do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), dos Tribunais Constitucionais e do Tribunal ou Cortes Supremas da Europa, e ainda da União Europeia e de sua Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CEDH), e sua inter-relação com o Convênio Europeu de Direitos Humanos (CvEDH).

Imagine a complexa relação que se estabelece entre todas essas ordens, somente para ficar no caso da Europa.

Tem-se só aqui uma complexa relação entre quatro (4) tribunais, o que permite só aqui visualizar que os sujeitos desse necessário “diálogo” jurisdicional sobre os direitos europeus são várias partes: o diálogo, nessa medida, nem sempre será bilateral,

mas frequentemente multilateral.51

Assim, se o constitucionalismo, como técnica de contenção do poder

estatal por meio da vinculação deste a um documento jurídico-político positivado,

que, ao estabelecer expressamente os poderes estatais, circunscrevia-os e

limitava-os, surge no contexto do Estado-nação, a ambiência do

neoconstitucionalismo, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, é a da

superação da ideia de uma única ordem jurídica, bem como da pluralidade de

ordenamentos e instâncias decisórias, notadamente no que diz respeito à

proteção dos direitos humanos.

Marcelo Neves, nesse sentido, introduz o conceito de

transconstitucionalismo, que “aponta exatamente para o desenvolvimento de

problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas. Um

50

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 16. 51

Idem, p. 16-17.

46

problema transconstitucional implica uma questão que poderá envolver tribunais

estatais, internacionais, supranacionais e transnacionais (arbitrais), assim como

instituições jurídicas locais nativas, na busca de sua solução”52. Neves destaca

ainda, como característica dessa proliferação/pluralização de ordens jurídicas

incidentes sobre um mesmo problema concreto, a “pretensão dessas ordens

jurídicas de se afirmarem impreterivelmente, seja como ordens jurídicas que

prescindem do Estado, seja como ordens jurídicas que prevalecem contra os

Estados, pondo em cheque o próprio princípio da soberania estatal”. É nessa

ambiência, afirma, que se instaura o problema das Constituições tranversais além

do Estado53.

Embora o fenômeno da globalização, e a consequente pluralidade de

sistemas normativos (internos e internacionais) passíveis de incidência em um

mesmo problema jurídico54, não sejam fenômeno recente (em termos mercantis,

pode-se apontar como embrião da globalização o movimento de expansão

marítima levado a cabo especialmente por portugueses e espanhóis durante os

séculos XV e XVI, em busca de novos mercados e terras), é indiscutível o impulso

que se verifica, em relação aos direitos humanos, ao término da Segunda Guerra

Mundial, em 1945, quando a comunidade internacional conheceu a extensão da

barbárie nazista e a insuficiência dos sistemas internos dos países de proteção

aos direitos fundamentais ficou evidente55.

Segundo Marcelo Figueiredo, cada vez mais as constituições são

interpretadas como pertencentes a sistemas que extrapolam as realidades

nacionais, o que vem tornando difusa a distinção entre as esferas nacionais e

supranacionais56.

52

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Introdução, p. XXII. 53

Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 83. 54

“O transconstitucionalismo não toma uma única ordem jurídica ou um tipo determinado de ordem como ponto de partida ou ultima ratio. (...) Aponta, antes, para a necessidade de construção de ‘pontes de transição’, da promoção de ‘conversações constitucionais’, do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas ordens jurídicas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e locais” (idem, p. XXV). 55

Marcelo Figueiredo afirma, em relação à internacionalização do direito constitucional (ou constitucionalização do direito internacional) que “os direitos humanos são o exemplo mais eloquente deste movimento internacional e seus diversos sistemas. Há como uma ‘cultura dos direitos humanos’ que se espalha por intermédio dos diversos tratados, normas e tribunais para sua defesa por todo o globo” (FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões., p. 101). 56

“Em efecto, la clásica distinción entre el ámbito doméstico o nacional y la esfera internacional que em el pasado era clara, parece cada vez más difusa e incierta. Las conexiones formales e informales cada vez más

47

Flávia Piovesan elenca como precedentes históricos da atual sistemática

de proteção internacional dos direitos humanos o Direito Humanitário, a Liga das

Nações e a Organização Internacional do Trabalho57.

O Direito Humanitário, também conhecido como Direito Internacional de

Guerra, tinha por objetivo assegurar direitos fundamentais dos soldados e

populações envolvidos em conflitos bélicos. Sobre o Direito Humanitário, Jorge

Miranda esclarece: “Remontando à Convenção de 1864, tem como fontes

principais as quatro Convenções de Genebra de 1949 e os seus princípios devem

aplicar-se hoje quer às guerras internacionais, quer às guerras civis e outros

conflitos armados. A proteção humanitária refere-se a situações de extrema

necessidade, integráveis no chamado Direito internacional de guerra, e em que

avulta o confronto com um poder exterior (...). Sob este aspecto, aproxima-se da

proteção internacional dos direitos do homem (...)”58.

A Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho foram

criadas após o término da Primeira Guerra Mundial. A Liga das Nações surgiu

como resposta aos horrores de uma guerra que atingiu uma escala mundial, e

tinha por objetivo promover a paz e a segurança internacionais. Já a Organização

Mundial do Trabalho surgiu como uma tentativa de estabelecer parâmetros

internacionais para as condições de trabalho, fazendo-o por meio de convenções

internacionais.

Esses três precedentes históricos sinalizam uma mudança significativa nas

relações internacionais, na medida em que seus objetos não se voltam às

relações entre os Estados (enquanto unidades políticas), mas têm por centro de

interesse os direitos fundamentais relativos aos indivíduos que integram os

Estados. Duas consequências da adoção dessa nova concepção de direito

presentes entre ambs ‘esferas’, sobre todo em regiones más integradas es creciente (es el caso de Europa, más que em América Latina). Las Constituciones nacionales – para utilizar el ejemplo europeo – son interpretadas, cada vez más, como pertenecientes a um sistema como el europeo, más integrado (de derechos humanos, especialmente, con sus Standards). En este contexto, incluso el derecho internacional de los derechos humanos y sus prácticas no son contradictorios o incompatibles con las normas de derecho domestico o nacional. La tendência hacia una mayor integración y cooperación latinoamericana en nuestra región, no obstante los problemas que conocemos, que termina por dividirlas en ‘bloques’ regionales, es inevitable, y hasta cierto punto positiva, por lo menos en grandes temas alusivos a la democracia social, al desarrollo y a los derechos humanos” (FIGUEIREDO, Marcelo. El constitucionalismo contemporáneo. Homenaje a Héctor Fix Zamudio. In Revista Peruana de Derecho Público – Año 16 – nº 30 – Enero-junio 2015, p. 52). 57

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 114. 58

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra, 2008, p. 192-193.

48

internacional são inevitáveis: a relativização do conceito de soberania e a

aceitação do indivíduo como sujeito de Direito Internacional (rompendo com a

tradição de se considerar apenas os Estados como sujeitos desse ramo do

direito) – consequências estas que começaram a ser esboçadas a partir dos

mencionados precedentes históricos, consolidando-se de forma peremptória a

partir do término da Segunda Guerra Mundial.

Com efeito, o caráter internacional dos direitos humanos, enquanto direitos

inerentes à própria condição humana, assim como seu imediato corolário – a

necessidade de proteção de tais direitos em âmbito internacional, dada sua

universalidade, que faz com que sua defesa extrapole os interesses internos dos

países, levando, inclusive, a uma reformulação do conceito de soberania –

embora já tivesse sido reconhecido pelos mencionados precedentes históricos,

ganhou relevo sobretudo a partir do término da Segunda Guerra Mundial, quando

os julgamentos dos criminosos nazistas pelo Tribunal de Nuremberg expuseram

ao mundo a amplitude da barbárie perpetrada não contra exércitos inimigos, mas

contra populações indefesas.

Os julgamentos de Nuremberg evidenciaram quão falível era a crença na

capacidade do positivismo jurídico de regular a contento as demandas da

sociedade, na medida em que o argumento principal da defesa dos criminosos

nazistas consistiu na alegação de cumprimento da legislação vigente – em suma,

de observância ao primado da legalidade59. Os fatos então apurados despertaram

a atenção da comunidade mundial para a circunstância de que certos direitos são

inerentes à condição humana, a par de sua positivação.

Mais que isso, consolidou-se a percepção de que a existência de um

sistema global de proteção poderia ter impedido que as violações dos direitos

59

Emblemático, nesse sentido, é o julgamento de Adolf Eichmann, analisado a fundo por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém, na qual a autora cunha a consagrada expressão “banalidade do mal”. Com efeito, Arendt demonstra que, ao invés do monstro imoral que o público e os juízes esperavam encontrar, a figura de Eichmann apequena-se na de um burocrata medíocre e desprovido de vida interior, que se limitava a obedecer as ordens que lhe eram dadas sem lhes aplicar qualquer julgamento moral – ainda que tais ordens significassem a morte sistemática de milhares de pessoas indefesas. Nas palavras da autora: “(...) quando falo da banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento. Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. E essa aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente nunca teria matado seu superior para ficar com seu posto. Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo.” (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 310.)

49

humanos constatadas ao término da guerra chegassem a patamares tão

alarmantes.

Reconheceu-se, por conseguinte, ser necessária a criação de um sistema

global de proteção dos direitos humanos, capaz de assegurar tais direitos a

despeito (e para além) das fronteiras nacionais. O corolário do reconhecimento da

universalidade dos direitos humanos foi a criação de um sistema internacional de

monitoramento, conhecido como international accountability.

Como reação imediata aos horrores da guerra, os governos do Reino

Unido, da França e da URSS celebraram um acordo (ao qual uma série de

Estados integrantes das Nações Unidas aderiram) no qual foi determina a criação

de um Tribunal para os julgamentos de crimes de guerra, contra a paz e contra a

humanidade. Era o Tribunal de Nuremberg, cujos procedimentos foram fixados

pelo chamado Acordo de Londres.

Também como decorrência da Segunda Guerra Mundial, a criação da

Organização das Nações Unidas inaugura um novo momento da ordem jurídica

internacional.

Um dos mais relevantes passos nesse sentido consistiu na elaboração da

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Todavia, instaurou-se

acalorado debate acerca de sua força vinculante, uma vez que a Declaração não

era um tratado.

A consolidação do sistema protetivo só ocorreu de fato em 1966, com a

elaboração dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, os quais, juntamente com a Declaração de 1948,

compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, consubstanciam o

sustentáculo de todo o sistema de proteção que, a partir de então, efetivamente

se desenvolveu.

É importante notar que a globalização da proteção internacional dos

direitos humanos não teve o objetivo de substituir ou se sobrepor às ordens

jurídicas internas ou regionais, mas complementá-las de forma subsidiária, como,

de resto, ocorre também com os sistemas regionais. Com efeito, a proteção dos

direitos humanos incumbe, em primeiro lugar, aos Estados e às suas ordens

jurídicas internas, cabendo à comunidade internacional (tanto no âmbito regional

como na esfera global) atuar subsidiariamente, especialmente quando a proteção

interna se revela insuficiente ou ineficaz.

50

Tais circunstâncias, ao lado da própria natureza universal e indivisível dos

direitos sobre os quais tais sistemas versam, foram os fundamentos da

elaboração de dois sistemas de proteção de caráter supranacional – o sistema

global, fundado principalmente na Carta Internacional dos Direitos Humanos, e o

sistema regional, atualmente consolidado em três subsistemas – o europeu, o

interamericano e o africano – havendo, ainda, a aspiração à criação dos sistemas

regionais árabe e asiático, ainda em suas fases iniciais de implementação.

Pretende-se que o sistema global, os sistemas regionais e os sistemas

internos dos Estados convivam harmoniosamente, sendo aqueles subsidiários e

complementares destes, o que, no entanto, não impede a ocorrência de

antinomias entre os sistemas.

Há, portanto, em relação aos direitos humanos, um sistema global de

proteção (do qual a Organização das Nações Unidas, criada em 1945, é o órgão

mais importante60, e que tem por documento fundamental a chamada Carta

Internacional dos Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal de 1948

e pelos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, ambos de 1966, que “judicializaram” a Declaração), além de sistemas

regionais de proteção. Estes, embora também marcados pela supranacionalidade,

têm alcance mais restrito do que o sistema global, na medida em que se voltam à

proteção dos direitos humanos num espaço territorial delimitado, numa

determinada região do globo.

Assim, como bem observa Marcelo Neves, “uma tendência teórica

paradigmática aponta para o surgimento de um constitucionalismo internacional

ou supranacional no plano global”61.

Os sistemas global e regional não apresentam conflitos hierárquicos, mas

trabalham lado a lado, um complementando o outro. Uma vez que o sistema

global tem por objeto uma realidade mais abrangente, seus parâmetros se

pautam por uma maior generalidade, cabendo aos sistemas regionais – porque

voltados a um campo mais restrito e, por conseguinte, mais suscetível de

regulamentação específica – atuar de forma mais detalhada.

60

Merece destaque, ainda, nesse sistema, o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma em 1998. 61

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 85.

51

Com efeito, os sistemas regionais são pensados tendo em vista os

problemas específicos de determinada região, o que lhes possibilita ser mais

minuciosos do que o sistema global na busca de soluções.

Uma vez que os sistemas se complementam, inexiste uma real dicotomia

entre eles (o que não implica a impossibilidade da ocorrência de antinomias),

cabendo a quem tiver um direito violado buscar o instrumento que lhe seja mais

favorável. Ainda assim esse modelo em que sistemas normativos múltiplos

dialogam e interagem não está isento do risco da contaminação ideológica, como

observa Marcelo Neves:

No plano da concretização e realização, observa-se que o Conselho de Segurança e as grandes potências recorrem à retórica dos direitos humanos principalmente para justificar a sua prática interventiva com relação a Estados mais fracos na constelação internacional de poder. Evidentemente, tal uso da força simbólica tem um caráter manipulativo e serve negativamente ao incremento da força normativa dos direitos humanos. A esse respeito, cabe levantar ‘a suspeita de que também os direitos humanos servem de pretexto para intervir em relações políticas que só podem ser resolvidas responsavelmente

– seja democraticamente ou não – no plano nacional.62

Esta a razão pela qual Neves faz referência a um “imperialismo dos direitos

humanos”63, cuja pretensão de universalidade há de ser compatibilizada com o

respeito ao pluralismo cultural dos diversos povos do globo.

Há três grandes sistemas regionais de proteção – o europeu, o

interamericano e o africano. Henry Steiner acrescenta ainda que “há um incipiente

sistema árabe e a proposta de criação de um sistema regional asiático”64. Cada

sistema regional conta com institutos, órgãos e mecanismos de proteção e

monitoramento próprios, apresentando cada qual sua própria dinâmica, atinente

às particularidades e circunstâncias regionais. Outrossim, não se pode

desconsiderar a influência que o sistema europeu, mais antigo, consolidado e

bem estruturado que o interamericano e o africano, exerce sobre estes.

62

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 95-96. 63

Idem, p. 96. 64

STEINER, Henry. Regional arrangments: general introduction, apud PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 251.

52

A efetividade dos sistemas regionais é maior nas regiões em que a

supranacionalidade se encontra mais desenvolvida, sendo menor nas regiões em

que a interdependência entre os países é menor.

O campo da proteção e efetividade dos direitos humanos, portanto, tem

grande relevância para a internacionalização do direito, mas não é, por óbvio, a

única esfera do universo jurídico em que o fenômeno se verifica. Ao contrário, é

possível afirmar que o fenômeno, a cada dia, se torna mais amplo, permeando,

em maior ou menor grau, praticamente todos os campos do direito.

Nessa nova realidade, o papel das Constituições dos Estados nacionais,

enquanto normas de fechamento do ordenamento jurídico e normas superiores a

todas as demais incidentes sobre um determinado território (de um Estado

soberano), há de ser revisto.

Marcelo Neves destaca que a emergência dessas ordens jurídicas

transnacionais “em formas distintas do direito internacional público clássico”65,

observando ainda que “o que intriga a ‘ciência’ jurídica tradicional é a pretensão

dessas novas ordens jurídicas de se afirmarem impreterivelmente, seja como

ordens jurídicas que prescindem do Estado, seja como ordens jurídicas que

prevalecem contra os Estados, pondo em cheque o próprio princípio da soberania

estatal”66. Neves observa que nessa ambiência as Constituições, num primeiro

momento, perdem sua proeminência, entrelaçando-se no entanto, a seguir, com

as ordens supranacionais, no que denomina um diálogo transversal entre a

Constituição e essas ordens:

Embora as Constituições estatais modernas já tenham surgido como mecanismos estruturais da racionalidade transversal entre direito e política, a semântica do constitucionalismo transversal somente tornou-se significativa em decorrência dos novos problemas com os quais a atual ordem internacional e as emergentes ordens supranacionais e transnacionais estão confrontadas cada vez mais intensamente. A esse respeito, podem ser designados como exemplares os âmbitos da política de segurança, do comércio mundial, do direito ambiental e dos direitos humanos. Nesse contexto, a Constituição estatal é posta, incialmente, no segundo plano, mas, em outro momento, entrelaça-se novamente com as constelações internacionais,

supranacionais e transnacionais.67

65

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 83. 66

Idem, p. 83. 67

Idem, p. 83.

53

Ainda que, como visto, desde o pós-Segunda Guerra o chamado direito

internacional dos direitos humanos tenha recebido forte impulso, com a

internacionalização da proteção desses direitos, a compreensão da

internacionalização do Direito Constitucional, até como consequência da

internacionalização de outras esferas do direito, é relativamente recente.

Segundo Marcelo Figueiredo, “o processo de internacionalização do direito

constitucional, que se complementa pela ‘internalização/constitucionalização’ do

direito internacional é, de certo modo, uma novidade para o constitucionalismo

atual. As expressões ‘rede constitucional’, constitucionalismo multi-nível, ou em

inglês, ‘multi-level constitucionalism’, bem demonstram esse fato”68. Figueiredo

acrescenta ainda que:

O sistema jurídico internacional e o sistema jurídico interno, por outro lado, não constituem unidades separadas, mas integradas.

Em rigor podemos afirmar que hoje em dia o direito internacional integra-se de tal maneira (no ou ao) direito nacional por intermédio das mais variadas formas que os próprios objetivos do direito constitucional nacional não poderiam ser atingidos sem a participação do Estado nas organizações internacionais mais reconhecidas.

Trata-se de um movimento bi ou multilateral. Os Estados comprometem-se internacionalmente perante várias organizações, como a ONU, a FAO, a OIT, a OMS por exemplo.

Ao fazê-lo, em larga medida passam a incorporar, quer por força da própria Constituição, quer por força de vinculação a tratados internacionais, quer pela mera adesão a tais organizações, direitos e deveres oponíveis por seus cidadãos em variadas perspectivas.

Assim se vai longe o tempo em que as relações internacionais eram pautadas somente pelo Ministério das Relações Exteriores. Hoje, as Constituições reconhecem e protegem a participação de seus cidadãos, de seus parlamentos, de organizações governamentais ou não governamentais em organizações transnacionais em um processo cada vez mais

integrado.69

A partir do entrelaçamento de ordens jurídicas de matizes diversas

(nacionais, transnacionais, regionais, globais etc.), incidentes sobre um mesmo

problema concreto, constrói-se um diálogo com o objetivo de superar eventuais

antinomias entre esses diversos sistemas, sendo que os atores de cada um

desses sistemas observam a si mesmos (e aos sistemas de que fazem parte)

68

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 21. 69

Idem, p. 21-22.

54

como centrais, e os demais sistemas como periféricos – o que não implica

necessariamente o reconhecimento de um escalonamento hierárquico entre

esses sistemas, e enseja, por outro lado, o diálogo a que nos referimos, pautado,

no mais das vezes, por órgãos do Poder Judiciário:

Isso significa dizer que não só a sociedade mundial, mas também o seu sistema jurídico é multicêntrico, de tal maneira que, na perspectiva do centro (juízes e tribunais) de uma ordem jurídica, o centro de uma outra ordem jurídica constitui uma periferia. Nesse sentido, por exemplo, para o Judiciário brasileiro, tanto os juízes de outros Estados quanto os tribunais de ordens jurídicas internacionais, supranacionais e transnacionais, quando suas decisões são por ele levadas em conta, apresentam-se como periferia e vice-versa. E, a esse respeito, podemos partir de qualquer tipo de ordem jurídica com pretensão de autonomia. Essa situação importa relações de observação mútua, no contexto da qual se desenvolvem formas de aprendizado e intercâmbio, sem que se possa definir o primado definitivo de uma das ordens, uma ultima ratio jurídica.

Nesse sentido, fala-se de “conversação” ou “diálogo” entre cortes, que podem se desenvolver em vários níveis: por exemplo, entre o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (supranacional) e os tribunais dos Estados-membros, entre o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (internacional) e as cortes nacionais ou o TJCE, entre cortes nacionais etc. Essa “conversação” (que constitui, a rigor, comunicações transversais perpassando fronteiras entre ordens jurídicas) não deve levar a uma ideia de cooperação permanente entre ordens jurídicas, pois são frequentes os conflitos entre perspectivas jurídicas diversas. No limiar, toda “conversação” entre cortes carrega em si o potencial de disputa. O problema é como solucionar essas

disputas sem a imposição top down na relação entre ordens.70

Além de o critério hierárquico se mostrar insuficiente para a solução de

eventuais contradições entre os sistemas, a interpretação das normas do direito

interno deverá ser feita de forma a compatibilizar, tanto quanto possível, seu

conteúdo com os sistemas supranacionais que interagem com o sistema estatal, à

luz do princípio da interpretação consistente, oriundo do direito europeu (mas

aplicável a qualquer espécie de diálogo transnacional), assim definido por André

Lipp Pinto Bastos Lupi:

Aceita-se em geral que o direito interno deva ser interpretado tanto quanto possível num modo que se conforme às obrigações internacionais do Estado. Logo, quando um "decisor" nacional depara-se com uma escolha entre uma interpretação do direito interno que levaria o Estado a uma situação de violação do

70

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 117-118.

55

Pacto e outra que permitiria o cumprimento do Pacto pelo Estado,

deve, pelo Direito Internacional, escolher esta última.71

O princípio da interpretação consistente deve ser interpretado

conjuntamente com o princípio da boa-fé que rege as relações internacionais, nos

termos expostos por Flávia Piovesan:

[A] primeira regra a ser fixada é a de que os tratados internacionais só se aplicam aos Estados-partes, ou seja, aos Estados que expressamente consentiram em sua adoção. Os tratados não podem criar obrigações para os Estados que neles não consentiram, a menos que preceitos constantes do tratado tenham sido incorporados pelo costume internacional Como dispõe a Convenção de Viena: “Todo tratado em vigor é obrigatório em relação às partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. Acrescenta o art. 27 da Convenção: “Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado”. Consagra-se, assim, o princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir plena observância ao tratado de que é parte, na medida em que, no livre exercício de sua soberania, o Estado contraiu obrigações jurídicas no plano

internacional.72

Assim, a interação entre os sistemas nacionais e supranacionais há de se

dar sem a preponderância do critério hierárquico para a solução de antinomias,

vale dizer, por meio da busca de soluções de consenso que visem harmonizar e

compatibilizar as soluções dadas pelos diversos sistemas para um mesmo

problema concreto, evitando-se, tanto quanto possível, resultados hermenêuticos

conflitantes.

Há, também na ambiência desse diálogo, técnicas processuais adotadas

pelo Judiciário, que instrumentalizam de forma bastante evidente o

entrelaçamento entre os diversos sistemas jurídicos. São o que Marcelo

Figueiredo denomina técnicas de colaboração, dentre as quais destaca o controle

de convencionalidade e a interpretação conforme:

O primeiro ocorre quando, seja por provocação da parte,

seja de ofício, o juiz é chamado a controlar o respeito às normas de um tratado ou convênio internacional.

Já o segundo - visto como um critério de interpretação - que deve ser empregado pelo juiz ao aplicar o Direito. Na Comunidade Europeia está previsto no artigo 10 de seu Tratado,

71

LUPI, André Luís Pinto Bastos. O transjudicialismo e as Cortes Brasileiras - Sinalizações dogmáticas e

preocupações zetéticas", Revista Eletrônica Direito e Política, UNIVALI, Itajaí, volume 4, nº 3, 2009, p. 298.

72 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 45.

56

que contempla a obrigação para o Estado membro de adotar todas as medidas idôneas para assegurar a execução dos

compromissos derivados do Tratado e dos atos da União.73

O controle de convencionalidade, em especial no que concerne a países

que não integram a Comunidade Europeia (como o Brasil), é um relevante

instrumento de interação entre as ordens nacionais e supranacionais. O caso

brasileiro é emblemático, tendo em vista a inserção, no artigo 5º da Constituição

Federal de 1988, do § 3º, pela Emenda Constitucional nº 45/2004, e a decisão

proferida em 2008 pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº

466.343/SP, que alterou paradigma consolidado naquela Corte desde os anos 70

acerca do status hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos no

ordenamento jurídico brasileiro.

Com efeito, a partir do momento em que o Direito Internacional passa a

integrar uma determinada ordem jurídica estatal, surge como corolário, a par do

controle de constitucionalidade74, também o controle de convencionalidade,

A expressão controle de convencionalidade, no entanto, congrega mais de

um sentido possível.

André de Carvalho Ramos, por exemplo, afirma que “a doutrina admite o

crivo direto e abstrato de leis internas em face da normatividade internacional de

direitos humanos, na medida em que sua aplicação possa constituir violação de

um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos”, acrescentando

ainda que “[e]ssa análise constitui-se em verdadeira fórmula de controle de

convencionalidade, desvinculada da existência de um litígio concreto entre o

Estado e uma pretensa vítima. Com isso, assegura-se a análise de uma lei

quando há possibilidade de sua aplicação com a consequente violação de direitos

humanos protegidos”75.

Sob essa ótica, o controle de convencionalidade consistiria tanto num

mecanismo preventivo – na medida em que limita a atuação de Poderes

Legislativos internos, cuja atividade há de se pautar pelo respeito aos tratados de

direitos humanos ratificados pelo Estado a que pertencem – quanto um aparato

73

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões., p. 90-91. 74

Existentes, como é sabido, nos Estados que adotam constituições rígidas. 75

RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. São Paulo: Renovar, 2004, p. 169-170.

57

repressivo – empregado, na definição de André de Carvalho Ramos, pelos

sistemas regionais de proteção dos direitos humanos76.

Valério de Oliveira Mazzuoli oferece um conceito distinto, salientando que

“os autores que, antes de nós, fizeram referência à expressão ‘controle de

convencionalidade’, versaram o assunto sob outro ângulo, notadamente o da

responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos em

razão de atos do Poder Legislativo. Nesse sentido, o controle de

convencionalidade seria o método a impedir o Parlamento local de adotar uma lei

que viole (mesmo que abstratamente) direitos humanos previstos em tratados

internacionais já ratificados pelo Estado. Em outras palavras, seria a técnica

legislativa pela qual o Parlamento, tendo em conta um tratado de direitos

humanos em vigor no País, deixaria de adotar uma lei que com dito tratado

conflitasse, afim de não dar causa à responsabilidade internacional do Estado por

ato do Poder Legislativo. Também já se empregou a expressão ‘controle de

convencionalidade’ para aferir a compatibilidade das normas locais diante das

normas internacionais de direitos humanos, não pela via judiciária interna (tal

como estamos a desenvolver aqui) mas pelos mecanismos internacionais

(unilaterais ou coletivos) de apuração do respeito por parte de um Estado de suas

obrigações internacionais”77.

Mazzuoli oferece uma concepção distinta de controle de

convencionalidade, tomada sob a ótica interna e não internacional, ainda que

amparada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, fazendo-o nos

seguintes termos:

(...) Não se trata de técnica legislativa de compatibilização dos trabalhos do Parlamento com os instrumentos de direitos humanos ratificados pelo governo, nem de mecanismo internacional de apuração dos atos do Estado em relação ao cumprimento de suas obrigações internacionais, mas sim de meio judicial de declaração de invalidade de leis incompatíveis com tais tratados, tanto por via de exceção (controle difuso ou concreto) como por meio de ação direta (controle concentrado ou abstrato) (...) É ainda importante frisar que esse controle de convencionalidade por parte dos tribunais internos, da maneira

76

Nesse sentido, André de Carvalho Ramos, na obra mencionada, desenvolve um estudo sobre com os sistemas europeu e interamericano se valem do controle de convencionalidade para coibir violações a direitos humanos consagrados em tratados internacionais (in Responsabilidade internacional por violação de direitos humanos, p. 170-174). 77

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 179-180.

58

como estamos a defender neste estudo, tem sido recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões o Brasil se comprometeu (desde 1998, pelo Decreto Legislativo n. 89) a respeitar e a fielmente cumprir. Assim, no que tange ao sistema interamericano de direitos humanos, é importante frisar que o Poder Judiciário, no exercício do controle de convencionalidade, tem ainda o dever de levar em conta não somente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mas também a interpretação que dela faz a Corte Interamericana,

intérprete última e mais autorizada do Pacto de San Jose.78

Assim, a teoria de Valério de Oliveira Mazzuoli distingue-se da de André de

Carvalho Ramos por preconizar um controle interno da convencionalidade das

leis, “que é complementar e coadjuvante (jamais subsidiário) do conhecido

controle de constitucionalidade”79, podendo ser tanto difuso quanto concentrado –

reconhecendo, ainda, que tal controle não se restringe aos órgãos internos (e

nisso se distingue do controle de constitucionalidade), podendo ser manuseado

por este e pelos sistemas supranacionais de controle. Afirma ainda o autor:

Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade (...) deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados (de direitos humanos ou não) aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para este deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internacionais devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos (...).

Para realizar o controle de convencionalidade (...) das normas de direito interno os tribunais locais não requerem qualquer autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a ter também caráter difuso (...). Em outras palavras, os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar o que elas dizem.

80

Entendimento similar é adotado por Antônio Augusto Cançado Trindade,

que, no entanto, não emprega a expressão “controle de convencionalidade”:

Cabe, pois, naturalmente aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram atribuídos

78

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, p. 182-183. 79

Idem, p. 208. 80

Idem, p. 208-209.

59

pelos tratados e instrumentos de direitos humanos respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos dos Estados, assegurar a implementação em nível nacional das normas internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel em um sistema integrado como o da proteção do ser humano. Os órgãos de supervisão internacionais, por sua vez, controlam a compatibilidade da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações convencionais, para determinação dos elementos factuais a serem avaliados para o propósito da aplicação das disposições pertinentes dos tratados

de direitos humanos.81

Desse modo, não resta dúvida que a existência de tratados internacionais

ratificados por um Estado – notadamente os tratados internacionais que versam

sobre direitos humanos – há de moldar a atuação dos Poderes Legislativos (em

todas as suas esferas) a fim de conformar a atividade legiferante aos preceitos de

Direito Internacional previamente internalizados, tendo em vista a cada vez mais

profunda interação entre as esferas internas e internacional, o que,

indiscutivelmente, afeta a atividade judicante, como bem observam Jânia Maria

Lopes Saldanha e Sadi Flores Machado:

Assim como os juízes nacionais se internacionalizam, porque chamados a aplicar os textos internacionais, os juízes “regionais e internacionais”, cada vez mais, são demandados para resolver casos não só entre os Estados ou organismos internacionais, mas casos que envolvam indivíduos, vítimas de violações de direitos humanos, em como autores de delitos elevados à categoria de internacionais. Essa possibilidade tornou-se factível sobretudo depois do reconhecimento de que os

indivíduos são sujeitos de direito internacional.82

Em tal ambiente, a inobservância, por parte dos Parlamentos internos, de

tratados internacionais já ratificados pelos Estados a que pertencem

consubstanciaria inequívoca violação ao já mencionado princípio da boa-fé que

norteia as relações internacionais, ensejando a responsabilização do Estado em

âmbito internacional.

81

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, V. 1. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 417. 82

SALDANHA, Jânia Maria Lopes e MACHADO, Sadi Flores. O papel da jurisdição na efetivação dos direitos humanos: o cosmopolitismo para além do constitucional e do internacional, a partir do diálogo entre Têmis, Marco Pólo e o Barão Cosme de Rondó. In MOURA, Lenice S. Moreira de. O novo constitucionalismo na era pós-positivista – homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 157.

60

Por tais razões, o controle de convencionalidade (a despeito de eventuais

debates sobre seus delineamentos), em especial na sua modalidade de controle

prévio, afigura-se relevante aparato para os Estados.

A se adotar uma concepção mais ampla de controle de convencionalidade,

no sentido de que a internacionalização dos tratados internacionais implicaria não

apenas uma limitação à atuação dos Poderes Legislativos internos de cada país,

mas também tornaria jurisdicizáveis direitos garantidos em tais tratados,

viabilizando a atuação do Poder Judiciário, a proteção aos direitos humanos resta

protegida de forma mais robusta.

Marcos do controle de convencionalidade, no âmbito do sistema

interamericano de proteção dos direitos humanos, são os casos de Barrios Altos

(2001) e Almonacid Arellano (2006). Como esclarece Flávia Piovesan:

No Caso Barrios Altos, em virtude da promulgação e aplicação de leis de anistia (uma que concede anistia geral aos militares, policiais e civis, e outra que dispõe sobre a interpretação e alcance da anistia), o Peru foi condenado a reabrir investigações judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao “massacre de Barrios Altos”, de forma a derrogar ou tornar sem efeito as leis de anistia mencionadas. Referido massacre envolveu a execução de quinze pessoas por agentes policiais. O Peru foi condenado, ainda, à reparação integral e adequada dos danos materiais e morais sofridos pelos familiares das vítimas. Concluiu a Corte que as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam, assim, um ilícito internacional, e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária. Essa decisão apresentou um elevado impacto na anulação de leis de anistia e na consolidação do direito à verdade, pelo qual os familiares das vítimas e a sociedade como um todo têm o direito de ser informados das violações, realçando o dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar violações aos direitos humanos. No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano em face do Chile, cujo objeto era a validade do Decreto-Lei n. 2.191/78 – que perdoava os crimes cometidos entre 1973 e 1978 durante o regime Pinochet – à luz das obrigações decorrentes da Convenção Americana de Direitos Humanos. Decidiu a Corte pela invalidade do mencionado decreto-lei de “autoanistia”, por implicar a denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-humanidade. A Corte consolidou, assim, o entendimento de que leis de anistia são incompatíveis com a Convenção Americana, por afrontarem direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, obstando o acesso à justiça, o direito à verdade e a responsabilização por

61

graves violações de direitos humanos (como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias e o

desaparecimento forçado).83

De acordo com Cançado Trindade, tais sentenças “constituem uma

decisiva contribuição do Tribunal ao fim das auto-anistias e ao primado definitivo

do Direito. Tais leis de auto-anistia não são verdadeiras leis, não passam de uma

aberração jurídica, uma afronta à recta ratio. Não há que passar despercebido

que essa construção judicial emancipadora da pessoa humana vis-à-vis seu

próprio Estado tornou-se possível graças ao exercício do direito de petição

individual internacional, mediante o qual as vítimas e seus familiares se afirmam

como verdadeiros sujeitos do Direito Internacional contemporâneo, dotados de

plena capacidade jurídico-processual”.84

À luz da realidade brasileira, é possível afirmar que o julgamento do RE nº

466.343-1/SP pelo Supremo Tribunal Federal, em 2008, inaugura o controle de

convencionalidade no Brasil – na medida em que o cotejo entre a norma

internacional (o Pacto de São José da Costa Rica) e a norma interna (as normas

infraconstitucionais que buscam regular o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição

Federal) levou o Supremo Tribunal Federal a privilegiar a aplicação do tratado em

detrimento dos dispositivos internos do ordenamento jurídico brasileiro.

Indiscutivelmente, o controle de convencionalidade constitui uma forma de

diálogo entre o ordenamento jurídico nacional e o ordenamento supranacional,

independentemente da “internalização” do Pacto de São José da Costa Rica no

ordenamento brasileiro.

Verifica-se, portanto, que é principalmente (mas não só) no campo dos

direitos fundamentais/direitos humanos que se revela de forma mais evidente a

profunda necessidade desse diálogo entre as diversas ordens, ante a pluralidade

de respostas, nem sempre coincidentes entre si, que essas ordens podem

fornecer para um mesmo problema jurídico-constitucional que envolva direitos

83

PIOVESAN, Flávia. Direito humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 278-279. 84

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O fim das “leis” de auto-anistia. Correio Braziliense, 18.12.2008. Acesso a partir de <http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=193>, em 05.02.2015. O Brasil, no entanto não adotou entendimento similar no que concerne à Lei nº 6.683/1979, promulgada pelo então Presidente Figueiredo, que determinou a anistia para os crimes cometidos no período da ditadura. No julgamento da ADPF 153, que questionava a validade de tal lei com argumentos similares àqueles empregados nos casos de Barrios Altos e Almonacid Arellano, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a validade da lei e sua integração à ordem constitucional inaugurada em 1988 (acesso em 05.02.2015, a partir de <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960>).

62

dessa natureza. Nessa seara, o apelo singelo ao critério hierárquico será

insuficiente para a busca da solução mais adequada à superação de eventuais (e

por vezes inevitáveis) antinomias, à luz da prevalência do critério pro homine que

marca tais direitos85.

Embora essa pluralidade de instâncias decisórias leve à necessidade de

um diálogo entre os diversos sistemas normativos (nacionais, supranacionais

etc.), notadamente no processo de estabelecimento da norma de decisão cujo

teor trará, necessariamente, a solução de eventuais antinomias entre esses

sistemas, não é apenas a esse processo de identificação da norma aplicável que

se limita o diálogo transconstitucional.

Com efeito, cada vez mais consolida-se a prática de um diálogo

jurisprudencial marcado por influxos recíprocos de decisões proferidas por Cortes

desses distintos sistemas normativos, em especial pela invocação de argumentos

usados em instâncias transnacionais como razões de decidir em instâncias

nacionais. Segundo Marcelo Figueiredo,

Recentemente observamos o desenvolvimento de um verdadeiro diálogo constitucional de caráter sobretudo entre juízes constitucionais de diversos países.

Não há dúvida que tribunais (especialmente constitucionais) e cortes supremas de todo o mundo começaram a se engajar em um crescente diálogo constitucional envolvendo não só uma mútua cooperação, mas inclusive um intercâmbio acadêmico.

Cremos que a maioria dos tribunais ou cortes constitucionais existentes considera a possibilidade de utilizar sentenças e decisões estrangeiras porque os benefícios na

utilização do direito comparado são muitos.86

O uso de precedentes estrangeiros por juízes nacionais não é novidade,

como aponta Giuseppe de Vergottini - que, no entanto, distingue a influência,

fenômeno unilateral, da interação, processo que, segundo o autor, implica uma

inspiração recíproca entre instâncias decisórias distintas87.

85

“Ao raciocinar na linha de ‘duas’ ordens jurídicas independentes, ainda que parcialmente sobrepostas, as relações que intercedem entre o direito internacional e o direito interno dos Estados terão forçosamente de ser qualificadas de ‘coordenação funcional’, mais do que de hierarquia no quadro do direito internacional” (FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 34). 86

FIGUEIREDO, Marcelo. Ob. cit., p. 71. 87

VERGOTTINI, Giuseppe de. Mas Allá del diálogo entre Tribunales – comparación y relación entre jurisdicciones. Madri: S. L. Civitas Ediciones, 2011, p. 43-44.

63

Marcelo Figueiredo, nesse tocante, reafirma que “as ideias constitucionais

circulam no mundo também através da difusão de decisões dos Tribunais, sejam

elas oriundas de juízes internacionais (Tribunais Internacionais), sejam elas

oriundas mesmo de juízes de direito nacionais ou constitucionais, membros de

Tribunais ou Cortes Constitucionais”88, acrescentando:

A tese de Vergottini é clara: o fluxo cognoscitivo da jurisprudência pode reforçar o processo de convergência e aproximação entre sistemas jurídicos.

A circulação de decisões judiciais faz nascer uma autêntica interação entre tribunais.

Às vezes há incorporação expressa da decisão de outro Tribunal de outro país, outras vezes o precedente estrangeiro tem uma influência indireta. Desse conjunto de circunstâncias nasce a

tese do diálogo entre tribunais.89

Assim, o recurso a decisões judiciais estrangeiras, como elemento de

construção da decisão do juiz nacional, em especial no que concerne às cortes e

juízes constitucionais, consubstancia inequivocamente uma forma de diálogo

transnacional, vale dizer, entre ordens jurídicas distintas, seja de dois Estados

soberanos, seja de um Estado e de uma instância decisória transnacional (entre,

por exemplo, o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos).

A esse respeito, André Ramos Tavares afirma que “o tema referente à

utilização de jurisprudência constitucional de outro país tem recebido maior

atenção e preocupação nos últimos anos”90, destacando que “foi com algumas

decisões da Suprema Corte norte-americana (...) que o tema geral do uso de

elementos estrangeiros começou a tomar corpo”91. Tavares destaca que a

discussão ganhou corpo a partir do caso Roper vs. Simmons (2005), e denomina

modelos de incidência da jurisprudência constitucional estrangeira em

determinada Justiça Constitucional92 as possibilidades de utilização da

jurisprudência estrangeira pela Justiça Constitucional de um determinado país,

apontando, apontando a existência de cinco desses modelos de incidência93.

88

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 85. 89

Idem, p. 85-86. 90

TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 111. 91

Idem. 92

Idem, p. 120. 93

Idem, p. 122-134.

64

O modelo de submissão é o de deferência máxima, total à jurisprudência

constitucional estrangeira, que “pode representar, em realidade, uma forma de

neocolonialismo”94 e poderia implicar, a longo prazo, “a importação plena do

sistema constitucional estrangeiro, por meio das decisões constitucionais”95, o que

levaria à inoperância do ordenamento jurídico nacional e a Justiça Constitucional

seria mera importadora de decisões estrangeiras, deixando assim de produzir

decisões com conteúdo próprio.

O modelo de repulsa resulta da aversão a qualquer fonte jurisprudencial

estrangeira. Tavares invoca o exemplo da Suprema Corte norte-americana que,

até recentemente, mostrava-se refratária à influência de qualquer decisão judicial

estrangeira em seus julgados. “Esse modelo rechaça abertamente a utilização de

elementos não nacionais (pode ser denominado também modelo de rejeição).

Pela sua própria dinâmica interna, prevalece um referencial de suposta

autossuficiência. Em realidade, esse modelo acaba conduzindo a uma versão

extrema de provincialismo”96.

No chamado modelo decorativo o emprego da jurisprudência estrangeira

se mostra meramente retórico e simbólico, sem que haja efetiva relação entre o

conteúdo da decisão estrangeira e a decisão nacional:

Há uma mera referência desnecessária, referência morta, a elementos não nacionais, como meio de impor soluções previamente engendradas, uma forma de demonstrar conhecimento e autoridade. São usos que efetivamente não têm qualquer deferência ou preocupação dialógica com o material referido. Por esse motivo deve ser concebido como um modelo de referência não decisiva para a tomada de decisão. Prevalecem, aqui, as citações estrangeiras, de maneira textual, sem qualquer demonstração de pertinência, de pesquisa estrangeira ampla, de diálogo com o material colhido.

Esse modelo se aproxima do modelo de rejeição, utilizando-se do elemento não nacional de maneira meramente decorativa (meras referências mortas) como reforço de argumento de uma decisão tomada anteriormente à citação estrangeira. Ao elemento estrangeiro, portanto, não se empresta caráter efetivo, ignorando mesmo suas possibilidades e as perspectivas de uma

real abertura a outros modelos.97

94

TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional, p. 124. 95

Idem. 96

Idem, p. 127. 97

Idem, p. 127-128.

65

Tavares denomina modelo de unilateralismo “o modelo oficialmente ‘cego’

às decisões constitucionais estrangeiras, sem desaprovar, contudo, seu uso”, um

modelo que “simplesmente não se refere à jurisprudência constitucional

estrangeira, sem expressamente, contudo, considerar o procedimento

inadequado”98.

Finalmente, o modelo de interlocução consiste na “abertura para a

compreensão, discussão, reflexão e eventual aproveitamento dessas decisões e

de suas razões de decidir, mas considerando a perspectiva, particularidade e

nacionalidade (dentro da dogmática vigente) do caso apresentado para

julgamento”99. Trata-se, portanto, de um modelo de efetiva influência do direito

estrangeiro sem que haja, por outro lado, por parte do juiz nacional,

desconsideração das particularidades do problema concreto à luz do direito

nacional. Não há, assim, a mera assimilação acrítica de elementos do direito

estrangeiro, mas sua efetiva incorporação contextualizada.

Isso significa, portanto, que não há uma mera deferência à jurisprudência estrangeira, mas sim a tokmada de conhecimento de sua existência para eventual utilização determinante no contexto da solução nacional. Determinante, aqui, não deve ser, pois, como submissão ao material estrangeiro. Trata-se do que a doutrina norte-americana identifica como “autoridade persuasiva”, mas que significa, dentro do processo de tomada de decisão, a possibilidade de se tornar, conjuntamente com outros elementos e por uma série de fatores outros, determinante, decisiva para a

decisão final.100

Segundo Tavares, o julgamento do Habeas Corpus nº 82.424/RS, em

2003, constitui exemplo desse modelo de interlocução. “A farta jurisprudência

constitucional estrangeira referida, bem como outros elementos estrangeiros,

parecem ter sido determinantes para a conclusão final da Suprema Corte

brasileira”101.

98

TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional, p. 128. 99

Idem, p. 129. 100

Idem. 101

Idem, p. 130.

66

Virgílio Afonso da Silva assevera que “a jurisprudência do STF é altamente

permeável a argumentos utilizados em alguns tribunais de outros países, mas

ignora por completo a jurisprudência dos tribunais de países vizinhos”102.

Marcelo Figueiredo, em sentido diverso, entende que “de uma maneira

geral o Supremo Tribunal Federal é a priori refratário à recepção ou à

jurisprudência de Tribunais, Cortes Internacionais ou mesmo supranacionais. Há

como que um certo autismo, talvez reminiscência de um modelo de Suprema

Corte de corte norte-americano muito mais centrada no controle de

constitucionalidade clássico (inicialmente nos moldes norte-americanos e depois

europeu”103. Figueiredo observa, no entanto, que essa postura refratária do

Supremo Tribunal Federal “parece ir aos poucos cedendo em face da evolução

gigantesca do direito internacional e de suas várias facetas (das organizações

internacionais, dos direitos humanos, da supranacionalidade etc.), de um lado e,

de outro, porque não, em razão da própria mudança (renovação) de sua

composição ao longo dos últimos anos”104.

Figueiredo critica a timidez da posição do Supremo Tribunal Federal em

relação às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição

o Brasil reconhece desde 1998, salientando que “ainda é um fato relativamente

ocasional encontrar repercussão no Supremo Tribunal Federal das decisões

internacionais de direitos humanos oriundas de órgãos em relação aos quais o

Brasil reconhecea jurisdição”105 – reconhecendo, porém, que o julgamento do

Recurso Extraordinário nº 466.343/SP “abriu uma nova fase que viabiliza um

diálogo possível entre o Supremo Tribunal Federal e outras Cortes ou Tribunais

internacionais”106.

Verifica-se, no entanto, um crescente uso de decisões estrangeiras pelo

Supremo Tribunal Federal como um dos elementos de construção dos raciocínios

que levam à fundamentação de suas decisões. Alguns exemplos107 o ilustram.

102

SILVA, Virgílio Afonso da. Integração e diálogo constitucional na América do Sul, in PIOVESAN, Flávia e VON BOGDANDI, Armin. Direitos humanos, democracia e integração jurídica na América do Sul. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 515. 103

FIGUEIREDO, Marcelo. O direito constitucional transnacional e algumas de suas dimensões, p. 107. 104

Idem. 105

Idem, p. 139. 106

Idem, p. 143. 107

Relacionados por Marcelo Figueiredo (ob. cit., p. 146-153).

67

No julgamento da Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental nº 103-7/DF, ocorrido em 2008, que analisou a

constitucionalidade de dispositivos da Lei de Imprensa, o Ministro Menezes

Direito, em seu voto-vogal, fez diversas referências a decisões da Suprema Corte

norte-americana e da Corte Constitucional alemã. No mesmo julgamento, o

Ministro Celso de Mello usou como argumentos de seu voto decisões do Tribunal

Constitucional espanhol e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

No Recurso Extraordinário nº 511.961/SP, julgado em 2009, que versou

sobre a exigência de curso superior para o exercício da profissão de jornalista, o

Ministro Gilmar Mendes invocou a jurisprudência da Corte Interamericana de

Direitos Humanos e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

No julgamento do Habeas Corpus nº 107.731 (Extn)/PE, realizado em

2011, ao analisar a competência da Justiça Militar para julgar o crime de

falsificação de carteira de inscrição e registro de aquaviário, o Ministro Ayres

Britto, ao formular seu voto, analisa as Constituições portuguesa, colombiana,

paraguaia, mexicana e uruguaia, além da legislação desses países e da decisão

proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Palamara

Iribarne x Chile” em 2005.

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ,

julgada em maio de 2011, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal

determinou que as uniões estáveis homoafetivas devem ser reconhecidas como

famílias/entidades familiares, a decisão alude à jurisprudência da Corte

Interamericana de Direitos Humanos (notadamente aos casos “Loayza Tamayo x

Peru”, “Cantoral Benavides x Peru” e “Gutiérrez Soler x Colômbia”).

Na análise do já mencionado Habeas Corpus nº 82.959-7/SP, em 2006, o

Supremo fez inúmeras referências ao direito norte-americano, tanto à sua

doutrina quanto à sua jurisprudência, e a decisões da Corte Constitucional alemã.

Verifica-se, assim, que a tradicional resistência do Supremo Tribunal

Federal ao influxo das decisões não só estrangeiras, como também

transnacionais, vem sendo superada pelo cada vez mais frequente recurso a

decisões de cortes não só estrangeiras, como também transnacionais, como

elementos a serem usados na construção dos argumentos que levam à

fundamentação de suas decisões, mesmo nos casos em que não se aplica ao

problema concreto (nacional), diretamente, qualquer tratado internacional de

68

direitos humanos. Vale dizer, mesmo naqueles casos em que, em tese, a solução

não exige o recurso a sistemas jurídicos transnacionais.

Nas situações em que, ao contrário, se constata de forma bastante

evidente a incidência de uma pluralidade de fontes normativas sobre um mesmo

problema concreto (por exemplo, no Recurso Extraordinário nº 466.343/SP), o

diálogo transnacional entre sistemas jurídicos e Cortes Constitucionais se mostra

ainda mais claro e muitas vezes inevitável, mormente à luz da necessidade da

realização de um controle de convencionalidade por parte de determinada Corte

Constitucional nacional.

A conjuntura até aqui exposta não deixa dúvida alguma quanto à

superação da clássica pirâmide kelseniana, uma vez que esse entrelaçamento de

fontes jurídicas de origens territorialmente diversas e esse fluxo multilateral de

influências decisórias exigem a construção de uma norma de decisão para um

problema concreto que leve em conta todos os elementos desse complexo

quadro.

Nessa ambiência, a ideia de uma constituição como topo único do sistema

normativo, como norma hierarquicamente superior a todas as demais, como

expressão de uma soberania cujas características essenciais, como visto, se

alteraram drasticamente, se mostra insuficiente para a solução dos complexos

problemas concretos oriundos da incidência dessa pluralirdade de ordens

jurídicas e instâncias decisórias sobre um mesmo problema concreto,

notadamente quando este envolve direitos fundamentais (e a eventual colisão

entre eles).

Repita-se, no entanto, que a circunstância de a constituição não se

encontrar isolada no topo do ordenamento jurídico não lhe retira a condição de

norma superior e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico

nacional que lhe seja hierarquicamente inferior. O que buscamos demonstrar é

que, para além da ordem jurídica interna, a constituição precisa interagir com os

ordenamentos e as instâncias decisórias supranacionais, numa relação cujas

tensões não se resolvem por meio do critério hierárquico.

Desse modo, a ideia de uma interpretação autenticamente constitucional

há de ser pensada à luz dessa nova, complexa e cada vez mais consolidada

realidade. Dito de outro modo, na interpretação constitucional, a constituição deve

ser entendida como o ápice hierárquico de um determinado sistema normativo

69

que obrigatoriamente dialoga com outros sistemas normativos, sendo, por isso,

insuficiente, quando não de todo inadequado, o recurso ao critério hierárquico

para a superação de eventuais antinomias.

Em suma, a interpretação constitucional, e suas peculiaridades em relação

à interpretação tradicional (das demais espécies normativas) deverão ser

(re)pensadas à luz do constitucionalismo multinível, da rede constitucional, do

transconstitucionalismo.

70

3 ARGUMENTAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

Parece assente na doutrina que a ascensão do neoconstitucionalismo (no

bojo do qual se consolidou a ideia de transconstitucionalismo ou

constitucionalismo em rede, desenvolvida no capítulo anterior) levou à

reformulação (para alguns autores mais enfáticos, mesmo à superação) de certos

paradigmas da hermenêutica jurídica, que, tradicionalmente centrada no problema

da interpretação, passou a dispensar especial atenção à questão da

argumentação.

Essa mudança paradigmática decorreu sobretudo da constatação de que o

fenômeno da subsunção, pressuposto das tradicionais teorias acerca da

interpretação jurídica, mostrou-se insuficiente para solucionar os problemas da

aplicação de princípios, notadamente dos princípios constitucionais, aos casos

concretos, em especial àqueles em que há conflitos entre direitos fundamentais

(também chamados de casos difíceis). A técnica da ponderação de princípios

constitucionais abre um espaço hermenêutico inexistente na subsunção, e a

construção de uma norma de decisão, a ser aplicada no caso concreto, passa a

abranger problemas complexos que a concepção tradicional de uma atribuição de

sentido à norma positivada por meio da interpretação não é capaz de solucionar.

Desse modo, o advento do neoconstitucionalismo e dos princípios

constitucionais (entendidos não apenas como efetivas normas jurídicas, dotadas,

pois, de força normativa, como visto anteriormente) e a maior liberdade do

julgador, ínsita à construção da solução do problema concreto a ser enfrentado,

deslocam as preocupações de considerável parte da doutrina do campo da

interpretação para o terreno da argumentação. Daí porque Tércio Sampaio Ferraz

Jr. afirma que a expressão teoria da interpretação, na atualidade, “quase se

substitui pela teoria da argumentação jurídica”108, resultado de uma crise do

paradigma do direito legislado:

A subsunção é, aos poucos, sobrepujada pela ponderação de princípios, pois os juízes não aplicam apenas a

108

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, p. XI.

71

legislação, mas fazem constantes referências aos princípios jurídicos. Antes, os princípios eram invocados para integrar o direito, isto é, apenas nos casos de lacunas (nesse sentido deles fala a nossa Lei de Introdução). Com isso, à primeira vista, parece que o juiz, agora, tem uma liberdade muito maior para reconstruir e até construir o direito, que antes era assumido como um dado. Mesmo porque o rol de princípios admitidos não se limita a princípios expressos na legislação ordinária e constitucional, mas ao “descobertos” a partir das exigências decisórias. Não que isso não ocorresse no passado. Mas era algo revelado pela doutrina por força de exigências sistematizadoras do material obrigacional contido no ordenamento, e não pela jurisprudência como suporte direto da decisão do caso concreto.

Em consequência, passamos da centralidade da lei para a centralidade da jurisdição, jurisdição entendida em sentido amplo: os tribunais judiciais, tribunais de arbitragem, agências administrativas com poder judicante (com tribunais e conselhos administrativos), órgãos da administração direta (que dizem o direito por meio de sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias,

resoluções, pareceres normativos).109

Na hermenêutica jurídica tradicional, a interpretação precede a aplicação

do direito, o que implica “uma espécie de controle das consequências possíveis

de sua incidência sobre a realidade antes que elas ocorram”110. Diante disso,

afirma o autor, “o sentido normativo de um comportamento (roubar; furtar;

prevaricar, corromper; contratar; doar; herdar; produzir um fato gerador de tributo

etc.) vem, assim, desde o seu aparecimento, ‘domesticado’, isto é, dotado de um

sentido reconhecível. Disso se encarrega o intérprete”, observando que “essa

verdadeira astúcia da razão dogmática descarta ou ao menos enfraquece o

subjetivismo das decisões políticas”111.

Interpretar, nesses termos, é capacitar-se para apontar o alcance do direito em vista de possíveis conflitos concretos (interpretação extensiva, restritiva, analógica). O que, aliás, o jurista faz, ao torná-los conflitos abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos, em termos de significados juridicamente reconhecíveis.

Hoje, a sensação é de uma espécie de crise desse paradigma, o paradigma do direito legislado e codificado, o que pode ser obervado mediante algumas percepções do trabalho cotidiano do jurista.

Por exemplo, até bem recentemente, um livro de dogmática de direito constitucional não se referia à jurisprudência. Hoje, manuais e dissertações são repletos de menções jurisprudenciais. Nas faculdades de direito, a pesquisa de jurisprudência começa a sobrepor-se à doutrinária.

109

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O direito, entre o futuro e o passado, p. XIV. 110

Idem, p. XIII. 111

Idem, p. XIV.

72

A subsunção é, aos poucos, sobrepujada pela ponderação de princípios, pois os juízes não aplicam apenas a legislação, mas fazem constantes referências aos princípios jurídicos. Antes, os princípios eram invocados para integrar o direito, isto é, apenas nos casos de lacunas (nesse sentido deles fala a nossa Lei de Introdução). Com isso, à primeira vista, parece que o juiz, agora, tem uma liberdade muito maior para reconstruir e até construir o direito, que antes era assumido como um dado. Mesmo porque o rol de princípios admitidos não se limita a princípios expressos na legislação ordinária e constitucional, mas são “descobertos” a partir das exigências decisórias. Não que isso não ocorresse no passado. Mas era algo revelado pela doutrina por força de exigências sistematizadoras do material obrigacional contido no ordenamento, e não pela jurisprudência como suporte direto da decisão do caso concreto.

Em consequência, passamos da centralidade da lei para a centralidade da jurisdição, jurisdição entendida em sentido amplo: os tribunais judiciais, tribunais de arbitragem, agências administrativas com poder judicante (com tribunais e conselhos administrativos), órgãos da administração direta (que dizem o direito por meio de sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias, resoluções, pareceres normativos).

Por isso a tensão se desloca do legislador/doutrina dogmática para juiz/doutrina dogmática. O problema da aplicação, da justificação da decisão jurídica ganha uma importância inédita. Os problemas da identificação do direito e da sua interpretação passam a gravitar em torno das justificações da decisão, que são transformados em dados preceptivos ao lado de outros (os legislativos e até com vantagem sobre eles). E um sintoma disso é

a assimilação do conceito de interpretação à argumentação.112

A crítica ao raciocínio positivista, que busca apartar o direito e a moral, leva

ao surgimento de “um constitucionalismo principialista e argumentativo, de clara

matriz anglo-saxônica, que não só parte para um ataque à argumentação

positivista (...) mas se endereça também para uma concepção de argumentação

jurídica que vem sendo chamada de neoconstitucionalista”113.

Interpretação e argumentação, contudo, não são campos apartados da

ciência jurídica. Antes se entrelaçam, embora sejam ramos autônomos Paul

Ricoer, a nosso ver acertadamente, defende a existência de uma relação

dialética, e não de contradição, entre interpretação e argumentação (similar à

relação existente entre compreender e explicar)114. Oscar Vilhena Vieira, por seu

112

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O direito, entre o futuro e o passado, p. XIV-XVI. 113

Idem, p. XVI. 114

“A questão prioritária é agora saber e é preciso ter uma concepção puramente contraditória da polaridade interpretação/argumentação ou se, como eu acredito, devemos tentar elaborar uma versão propriamente dialética desta polaridade. (...) uma hermenêutica jurídica centrada sobre a temática do debate requer uma concepção dialética das relações entre interpretação e argumentação. Fui encorajado nesta empresa pela analogia que me pareceu existir, no plano jurídico, entre o par compreender/explicar” (RICOER, Paul. Interpretação e/ou argumentação. Disponível em: <HTTP://puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/c2ricoeu.html > Acesso em 10.10.2015).

73

turno, ao tratar da dificuldade da interpretação dos princípios constitucionais,

dotados de forte carga valorativa e dimensão política, salienta a necessidade do

uso de métodos argumentativos de interpretação para uma adequada atribuição

de sentido aos dispositivos constitucionais de textura aberta:

Caso se aceite a ideia da Constituição como “reserva de justiça”, como ponto de encontro entre a moralidade política e o direito positivo, então seus intérpretes e aplicadores serão obrigados a utilizar métodos jurídicos e argumentativos de interpretação toda vez que se virem frente a um caso regido por princípios não plenamente densificados pelo processo de positivação constituinte, toda vez que tiverem que decidir se uma determinada reforma favorece ou desfavorece a realização do princípio da separação dos Poderes ou dos direitos fundamentais.

115

Vieira destaca, especialmente no que tange à interpretação das cláusulas

pétreas elencadas no § 4º do art. 60 da Constituição brasileira, a necessidade do

emprego de uma argumentação racional:

Se, para a densificação dos princípios e direitos elencados no art. 60, § 4º, e incisos, o recurso ao próprio texto constitucional é insuficiente, ainda que necessário, o intérprete constitucional está obrigado a buscar o conteúdo desses preceitos a partir de um processo de interpretação que, embora tome por base o texto constitucional, a doutrina e eventuais precedentes, não negligencie a necessidade de recorrer ao discurso da filosofia política, à argumentação racional.

Por argumentação racional compreenda-se um procedimento discursivo destituído de qualquer forma de coerção que não o constrangimento do melhor argumento, em que todos os participantes se reconheçam reciprocamente como seres iguais, autônomos e racionais. Se aceitarmos a premissa de parte da teoria política e jurídica contemporânea de que a moralidade política não mais pode se fundar sobre preceitos materiais predeterminados, aos juízes não cabe escolher arbitrariamente o conteúdo que irão emprestar aos valores protegidos constitucionalmente de forma aberta, mas argumentar livremente sobre qual o sentido mais adequado para dar eficácia aos princípios de justiça incorporados pela Constituição. Trata-se de situar o processo de decisão judicial num ambiente que atenda aos seguintes princípios: 1) respeito recíproco entre aqueles que participam do diálogo; 2) inexistência de coerção que não a coerção do melhor argumento; 3) suficiente e livre fluxo de informação entre os atores; e 4) o empenho em alcançar a decisão mais acertada, a que melhor atenda à ideia de justiça.

116

115

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 237. 116

Idem, p. 236-237.

74

O recurso à argumentação racional, portanto, não constitui uma carta

branca para que o intérprete construa qualquer sentido possível e imaginável a

partir dos dispositivos positivados, ainda que estes tenham textura aberta e

estrutura principiológica. A par das dificuldades, um controle da argumentação é

perfeitamente possível. A esse respeito, Luís Roberto Barroso afirma:

Após um primeiro momento de perplexidade, os iniciantes no estudo do Direito passam a encarar com naturalidade um fenômeno que causa estranheza a uma pessoa leiga: a existência de decisões em sentidos opostos acerca de uma mesma matéria, posições doutrinárias divergentes e até mesmo votos conflitantes em um mesmo julgado. Isto é: considerados os mesmos fatos e os mesmos elementos normativos, pessoas diferentes poderão chegar a conclusões diversas. A principal questão formulada pela chamada teoria da argumentação pode ser facilmente visualizada nesse ambiente: se há diversas possibilidades interpretativas acerca de uma mesma hipótese, qual delas é a correta? Ou, mais humildemente, ainda que não se possa falar de uma decisão correta, qual (ou quais) delas é (são) capaz(es) de apresentar uma fundamentação racional consistente? Como verificar se uma

determinada argumentação é melhor do que outra?117

Barroso sintetiza as diversas teorias existentes acerca do controle da

argumentação elencando três parâmetros elementares desse controle, a saber:

“Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de apresentar

fundamentos normativos (implícitos que sejam) que a apoiem e lhe deem

sustentação”118. Ou seja, a argumentação deve ser fundada no direito, não pode

perder seu caráter jurídico. Não pode, em suma, fundar-se em concepções

pessoais de bom senso e justiça.

Em segundo lugar, os critérios adotados na decisão devem ser

universalizáveis, ou seja, por força do princípio da isonomia, “espera-se que os

critérios empregados para a solução de um determinado caso concreto possam

ser transformados em regra geral para situações semelhantes”119.

Finalmente, conclui Barroso, “um último parâmetro capaz de balizar de

alguma forma a argumentação jurídica, especialmente a constitucional, é formado

por dois conjuntos de princípios: o primeiro, composto de princípios instrumentais

ou específicos de interpretação constitucional; o segundo, por princípios materiais

117

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 362-363. 118

Idem, p. 363. 119

Idem, p. 365.

75

propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da

ordem constitucional”120.

Ambas as categorias de princípios orientam a atividade do intérprete, de tal maneira que, diante de várias soluções igualmente plausíveis, deverá ele percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, tão intensamente quanto possível, à luz dos outros elementos em questão, o estado ideal

pretendido pelos princípios materiais.121

Parece-nos que o segundo parâmetro pode ser entendido como

pertencente ao terceiro, na medida em que o princípio da igualdade constitui

justamente um dos princípios constitucionais materiais aos quais Barroso faz

referência. De qualquer modo, vale destacar as seguintes considerações do autor,

que evidenciam a natureza da relação entre interpretação e argumentação:

Os três parâmetros de argumentação expostos acima estão relacionados com um dos problemas suscitados pela teoria da argumentação, talvez o principal deles: a verificação da correção ou validade de uma argumentação que, consideradas determinadas premissas fáticas e a incidência de certas normas, conclui que uma consequência jurídica dever ser aplicada ao caso concreto. Isto é: cuida-se aqui do momento final da aplicação do direito, quando os fatos já foram identificados e as normas pertinentes, selecionadas. Isso não significa, porém, que esses dois momentos anteriores – seleção de fatos e de enunciados

normativos – sejam autoevidentes. Ao contrário.122

Assim, se a teoria da interpretação, em sua forma tradicional, fundada

primordialmente na lei e na ideia de subsunção, tem por fulcro a identificação

do(s) dispositivo(s) normativo(s) aplicável(is) a um caso concreto e a atribuição de

sentido a tal(is) dispositivo(s), que leva à construção da norma de decisão, a

teoria da argumentação volta-se, sobretudo, à decisão judicial e à questão da

justificação dessa decisão, em especial ao reconhecimento de sua legitimidade,

face à pluralidade de soluções possíveis a partir de uma espécie de norma mais

abstrata e dotada de menor densidade normativa (os princípios constitucionais e

as normas programáticas), e ainda, à luz da nova realidade do constitucionalismo,

na qual uma pluralidade de ordens jurídicas, nacionais e supranacionais, se

120

Idem, p. 365. 121

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 365-366. 122

Idem, p. 366.

76

entrelaçam e dialogam entre si, incidindo simultameamente, e nem sempre de

modo uniforme, sobre um mesmo problema jurídico.

Nessa ambiência, que confere ampla margem de liberdade ao aplicador do

direito no momento da elaboração da norma de decisão, a adequada justificação

da decisão tomada, a demonstração de sua conformidade com o(s)

ordenamento(s) vigente(s) (e suas complexidades) se afigura imprescindível.

Isso porque a justificação da decisão no raciocínio subsuntivo constitui

tarefa mais simples do que a justificação que se deve desenvolver no raciocínio

neoconstitucionalista-principiológico. Daí a importância de que, neste último, o

caminho percorrido pelo aplicador para chegar à solução do problema concreto

seja demonstrado com clareza, a fim de permitir o que Barroso chama de controle

da argumentação.

A superação do modelo subsuntivo-positivista por um modelo ponderativo-

principialista viabilizou a solução de problemas jurídicos que a técnica da

subsunção é incapaz de resolver – tais como os conflitos entre dois direitos

fundamentais igualmente relevantes e vigentes em um mesmo ordenamento

jurídico, por meio da técnica da ponderação de princípios, que será explicada

detalhadamente no capítulo 6.

A ponderação de princípios, no entanto, não deixa de apresentar seus

próprios problemas e desafios.

No modelo liberal de Estado, a proteção dos chamados direitos

fundamentais de primeira dimensão (direitos de liberdade) tornava exigível do

poder público – inclusive por meio de recurso ao Judiciário, quando necessário –

uma postura negativa, de inércia. A lei era, na ambiência do Estado mínimo, a

baliza a partir da qual era possível controlar e evitar o arbítrio dos governantes.

Também a interpretação constitucional seguia essa lógica. Assim, “para efeito de

uma hermenêutica constitucional voltada para o Estado de Direito concebido

como um estado mínimo, reduzido em suas funções, a interpretação tinha uma

orientação de bloqueio – interpretação de bloqueio – conforme princípios de

legalidade e estrita legalidade como peças fundantes da constitucionalidade”123.

Essa interpretação de bloqueio tanto justifica como se fundamenta na concepção

de Montesquieu de um juiz “boca da lei”, um juiz cuja função era precipuamente

123

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri: Manole, 2014, p. 40.

77

revelar, na interpretação, um sentido já preexistente no texto a partir do qual se

elabora a norma de decisão. A liberdade criativa do juiz, nessa seara, quando não

inexistente, é reduzida ao mínimo.

Essa lógica, a par de suas fragilidades, é ao menos admissível no âmbito

de um Estado mínimo, fundado na concepção liberal, em face do qual a

sociedade não exige (e o direito não impõe) o cumprimento de prestações

positivas. Dito de outro modo, para a garantia das liberdades individuais e da

vedação do arbítrio estatal por meio da restrição da atuação dos governantes –

portanto, de um não agir a não ser em patamares mínimos para viabilizar a vida

em sociedade, provendo segurança, estrutura e, acima de tudo, a proteção do

patrimônio privado dos cidadãos –, o balizamento a ser feito pelo Judiciário das

condutas governamentais, a partir do direito positivado, consiste em atividade

plenamente realizável por meio da técnica da subsunção.

Contudo, a derrocada do Estado Liberal e a ascensão de um novo modelo

de Estado – o Estado Social – trouxe consigo uma nova espécie de Constituição,

que passou a impor ao Poder Público deveres em relação à sociedade, deveres

estes consubstanciados antes em finalidades a ser alcançadas do que no

estabelecimento dos meios para atingi-las.

A atribuição legal/constitucional de um dever finalístico, sem o

estabelecimento dos meios pelos quais tal dever deverá ser cumprido, abre para

o aplicador da lei – o administrador – uma variedade imensa de caminhos

estratégicos a ser escolhidos, adotados e concretizados para o atingimento das

finalidades impostas. O problema, nesse sentido, desloca-se do campo jurídico

para o político, para as escolhas que deverão ser feitas à luz das limitações

circunstanciais e orçamentárias da máquina pública, com o objetivo de cumprir as

promessas constitucionais.

Assim, quando o art. 196 da Constituição brasileira, por exemplo,

estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante

políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de

outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua

promoção, proteção e recuperação”, a obrigação constitucionalmente imposta

corresponde a uma finalidade, mas o dispositivo não aponta quais caminhos o

Estado deverá percorrer para atingir esse fim. Desse modo, o dispositivo atribui

78

ao Estado a liberdade de conformar sua atuação no sentido da concretização

dessa obrigação.

O inchaço do Estado Social, no entanto, com a atribuição de inúmeros

deveres perante a sociedade, sem que aquelas obrigações já consignadas no

modelo liberal – garantia das liberdades individuais, da segurança, da proteção à

propriedade etc. – deixem de ser exigidas (o que implica, portanto, um acúmulo

ainda maior de obrigações), dificulta a concretização em grau satisfatório de todos

esses deveres. A situação se torna ainda mais complexa em casos como o

brasileiro, cuja Constituição traz extenso rol expresso de direitos fundamentais, de

primeira, segunda e terceira dimensões (individuais, sociais e difusos).

O deslocamento dos direitos fundamentais para o centro dos sistemas

jurídicos e a complexidade dos problemas e interesses de uma sociedade plural

fazem com que, muitas vezes, direitos fundamentais, aos quais as Constituições

atribuem mesmo grau de relevância, entrem em conflito.

O não cumprimento dos deveres constitucionalmente atribuídos ao poder

público, por outro lado, impõe ao Judiciário, quando instado a se manifestar

acerca da violação desses deveres, a árdua tarefa de analisar a atuação política

do administrador (e, em certas situações, do legislador), e fornecer uma resposta

jurídica – ou seja, embasada no direito e em especial na Constituição – para o

problema que lhe é apresentado. Do mesmo modo, o choque entre dois direitos

fundamentais igualmente relevantes e constitucionalmente assegurados gera,

para o órgão julgador, um problema de difícil solução.

As situações apresentadas, evidentemente, não encontram solução jurídica

na técnica da subsunção.

Em relação ao cumprimento das promessas constitucionais, a apreciação

pelo Judiciário das escolhas do administrador, ainda que fundamentadas

necessariamente no direito, perpassam o campo político. A Constituição, assim, é

um ponto de convergência entre o direito e a política124, e a natureza das normas

constitucionais, que congregam esses dois aspectos, não permite que a solução

de um problema concreto, ainda que sob a ótica do direito, exclua qualquer deles.

124

“O processo político não é um processo liberto da Constituição” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental’ da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 27).

79

Marcelo Neves se vale do conceito de acoplamento estrutural formulado

por Niklas Luhmann125 para tratar da relação entre direito e política, destacando

que a Constituição consiste num acoplamento estrutural entre esses dois

sistemas:

A esse respeito, Niklas Luhmann (...) desenvolveu o

conceito sociológico de acoplamento estrutural. Esse acoplamento serviria à promoção e filtragem de influências e instigações recíprocas entre sistemas autônomos diversos, de maneira duradoura, estável e concentrada, vinculando-os no plano de suas respectivas estruturas, sem que nenhum desses sistemas perca a sua respectiva autonomia. Os acoplamentos estruturais são filtros que excluem certas influências e facilitam outras. Há uma relação simultânea de independência e dependência entre os sistemas acoplados estruturalmente. As estruturas de um sistema passam a ser, mediante os acoplamentos estruturais, relevantes e mesmo indispensáveis à reprodução das estruturas de um outro sistema e

vice-versa.126

Assim, os acoplamentos estruturais “constituem fundamentalmente

mecanismos de interpenetração concentrados e duradouros entre sistemas

sociais”127. Os textos constitucionais são, para Neves, mecanismos dessa

natureza:

Ao mesmo tempo que possibilita a diferenciação entre política e direito, a Constituição atua como acoplamento estrutural entre esses dois sistemas funcionais da sociedade moderna. A Constituição, por um lado, torna o código-diferença “lícito/ilícito” relevante para o sistema político; isso implica que as exigências do Estado de Direito e dos direitos fundamentais passam a constituir contornos estruturais da reprodução dos processos políticos de busca pelo poder e de tomada de decisões coletivamente vinculantes, inclusive na medida em que decisões majoritárias democraticamente deliberadas podem ser declaradas inconstitucionais. Por outro lado, torna o código-diferença “poder/não poder” ou, em termos contemporâneos,

“governo/oposição” relevante para o sistema jurídico.128

125

“Numa espécie de resumo intermediário, poder-se-ia especificar que o conceito de acoplamento estrutural aponta, com elevada capacidade de delimitação, que se trata de um pequeno espectro de seleção de efeitos possíveis sobre o sistema; levando, por um lado, a que no sistema se realize um ganho muito alto de complexidade e, por outro, que as possibilidades de influenciar o sistema, a partir do meio, sejam drasticamente reduzidas, a não ser que se trate de efeitos de destruição: a destruição sempre é possível” (LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 136). 126

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 35. 127

Idem, p. 37. 128

Idem, p. 56-57.

80

Entendida como acoplamento estrutural entre direito e política, a

Constituição inviabiliza que um dos sistemas se subordine ao outro,

“desenvolvendo uma relação horizontal ou ortogonal entre ambos”, o que “faz

com que ela possa ser vista tanto como instância do sistema político quanto como

instituto do sistema jurídico”129, ou ainda, como “ponte de transição” entre esses

dois sistemas, “de tal maneira que pode desenvolver-se uma racionalidade

transversal específica”130.

A decisão judicial em relação às promessas constitucionais, portanto,

abarca uma dimensão política que a hermenêutica tradicional, em especial a

técnica da subsunção, não resolve adequadamente.

Na construção da norma de decisão, a hermenêutica “clássica”, fundada

nos elementos colacionados por Savigny, e fundada no que Tércio Sampaio

Ferraz Jr. chama, como visto anteriormente, de interpretação de bloqueio, se

mostra insuficiente, sendo necessários, em tal situação, “procedimentos

argumentativos de legitimação de aspirações sociais à luz da Constituição. Essa

argumentação de legitimação significa que certas aspirações se tornariam metas

privilegiadas até mesmo acima ou para além de uma conformidade constitucional

estritamente formal. Elas fariam parte, por assim dizer, da pretensão de

realização inerente à própria Constituição”131.

A ideia subjacente a esse procedimento de legitimação de que constituições instauram uma pretensão de se verem atendidas expectativas de realização e concreção só pode ser atendida, juridicamente, na medida em que se introduziu na hermenêutica constitucional uma consideração de ordem axiológica. Ou seja, pressupondo-se que uma constituição apresenta, no seu corpo normativo, um sistema de concreção de valores, a aplicação das suas normas, por via interpretativa, torna-se uma realização de valores. Com isso, o procedimento argumentativo de captação do sentido do conteúdo das normas torna-se realização valorativa conforme procedimentos próprios da análise e da ponderação de

valores.132

Há, portanto, um marcante elemento político na busca da solução do

problema por parte do aplicador da norma, na medida em que as Constituições do

Estado Social trazem em seu bojo uma carga valorativa, principiológica e

129

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, p. 58. 130

Idem, p. 62. 131

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 47. 132

Idem, p. 47.

81

prospectiva, consubstanciada tanto nos princípios constitucionais, cuja estrutura é

substancialmente distinta da das regras, quanto nas chamadas normas

programáticas, que estabelecem programas de governo, objetivos a ser

alcançados (sem que a própria Constituição estabeleça, como já mencionado, os

meios para a consecução desses objetivos). Assim, segundo Ferraz Jr., o

problema hermenêutico não se volta à mera subsunção do fato à norma, mas à

própria conformação política desse fato:

Quando se opõem procedimentos interpretativos de bloqueio e procedimentos de legitimação, o que entra em pauta é um problema de como captar o sentido das constituições no momento em que, concebidas estas como sistemas de valores, a aplicação do direito se transforma em um instrumento de realização política, com base na qual a legislação procurara concretizar princípios e programas imediatamente agasalhados pelo texto constitucional. Ou seja, a questão deixa de ser um problema de correta subsunção do fato à norma – com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e valorativa – para tornar-se um problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação

conforme um projeto ideológico.133

Assim, a passagem do Estado Liberal (cujas Constituições, ao limitarem os

poderes do Estado, pressupunham uma distinção entre Estado e sociedade) para

o Estado Social, moldado por Constituições principiológicas, programáticas e

ideologicamente orientadas (constituições dirigentes na expressão de J. J. Gomes

Canotilho), implica uma substancial transformação na própria atribuição de

sentido às normas constitucionais. “Agora, as tarefas postas ao Estado não só se

multiplicaram, mas também se modificaram. Exige-se do Estado a

responsabilidade pela conformação social adequada da sociedade, ou seja,

colocam-se para ele outras funções que não se coadunam plenamente com os

tradicionais limites do Estado de Direito”134 – nem, por conseguinte, às limitações

ínsitas à lógica da subsunção.

Uma vez que, como dito, as Constituições dos Estados Sociais impõem

deveres finalísticos aos Estados, sem, no entanto, determinar os meios que

deverão ser usados pelos poderes públicos para cumprir tais deveres, as normas

que estabelecem tais deveres consubstanciam normas incompletas, ou, nas

palavras de Ferraz Jr., “os preceitos dirigidos à participação e à prestação positiva

133

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 48. 134

Idem, p. 49.

82

do Estado social são leges imperfectae, isto é, não são imediatamente realizáveis

sem uma atuação do próprio hermeneuta que deve, então, prover uma

identificação possível para a consecução de finalidades”, de modo que “cabe ao

intérprete direcionar a configuração da ordem social desejada, a partir da qual se

dará o controle da constitucionalidade”135.

Nessa situação, evidentemente, o controle da constitucionalidade das

escolhas políticas se revela particularmente complexo, uma vez que, dentro do

campo das possibilidades constitucionalmente admitidas para a consecução de

tais objetivos, abre-se larga margem de subjetividade ao aplicador/concretizador

da norma, que, como afirmado, só se completa por meio da atividade

interpretativa.

Uma vez que as atuais Constituições impõem uma ampla gama de

prestações positivas aos Estados, cujos orçamentos via de regra são insuficientes

para o atendimento adequado (ou mesmo minimamente suficiente) de todas as

demandas sociais constitucionalmente impostas, o não atingimento a contento

dos objetivos impostos, embora constitua inequívoca inconstitucionalidade, não

raro se deve a circunstâncias alheias à vontade do aplicador da(s) norma(s)

constitucional(is). Esta é a razão pela qual Canotilho, no prefácio da segunda

edição de seu clássico Constituição dirigente e vinculação do legislador, chegou a

afirmar que “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for

entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só,

operar transformações emancipatórias”136.

Dito de outro modo, a mera positivação no texto constitucional de uma

gama expressa de direitos fundamentais não constitui garantia de sua efetiva

proteção e realização, mormente quando a realidade concreta e as limitações

orçamentárias impõem obstáculos à realização adequada de todas as obrigações

constitucionais. Por isso, Bobbio observa que “o problema grave de nosso tempo,

com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o

de protegê-los”137.

135

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 51. 136

CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. Prefácio, p. XXIX-XXX. 137

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25.

83

Diante da inércia dos Poderes Legislativo e Executivo na concretização

desses direitos, o recurso ao Judiciário nem sempre levará à solução do

problema, e a própria aferição, por parte do julgador, acerca da conduta do

legislador e/ou administrador, na aplicação da lei, se mostrará uma tarefa eivada

de complexidades.

Figure-se, por exemplo, o já mencionado artigo 196 da Constituição

Federal de 1988, que impõe ao Estado o dever de prover o direito (a todos

assegurado) à saúde, mediante a adoção de determinadas políticas públicas. À

luz dos inúmeros outros direitos fundamentais que a Constituição garante aos

cidadãos (moradia, emprego, alimentação etc.), todos cuja concreção exige o

investimento de considerável parcela do orçamento público, o cumprimento de

forma insuficente daquele dever – que é o que usualmente ocorre (o Poder

Público fornece hospitais, medicamentos e tratamentos, mas não na medida e no

grau adequados às necessidades da população) – leva o Judiciário a reconhecer

uma espécie de mora dos Poderes Públicos em face da sociedade. Como, porém,

solucionar essa mora? Atendendo à demanda individual levada ao Judiciário?

Provendo “políticas públicas” em substituição àquelas adotadas pelos

representantes eleitos pelo povo, sem garantia de que a escolha subjetiva do

julgador acerca da melhor forma de cumprir o objetivo constitucionalmente

imposto seja mais eficiente do que a escolha subjetiva levada a cabo, ainda que

de forma insuficiente, no momento anterior?

O exemplo – que vale para qualquer norma programática da Constituição –

deixa evidente o elevadíssimo risco do subjetivismo na atribuição de sentidos, por

parte do Judiciário, a normas estruturalmente abertas, com maior carga de

abstração (e, por conseguinte, com menor densidade normativa), tais como os

princípios constitucionais.

Instaura-se, assim, um conflito bastante evidente entre dois valores caros

às modernas constituições: a segurança jurídica, de um lado, e a justiça, do outro.

A segurança jurídica, como valor que confere certo grau de previsibilidade

às decisões judiciais e, assim, permite que os diversos atores sociais organizem a

sociedade e nela organizem suas relações, é preservada pelo uso de regras

(inclusive de matriz constitucional), de maior densidade normativa e plenamente

empregáveis pela técnica da subsunção. Contudo, o apego cego e acrítico às

normas pode gerar injustiças, o que, por si só, implicaria inconstitucionalidade

84

(uma vez que, no caso brasileiro, o Poder Constituinte optou por positivar, como

norma programática, a busca por uma sociedade livre, justa e solidária, nos

termos do art. 3º da Constituição). Assim, a abertura semântica e a baixa

densidade normativa dos princípios constitucionais fazem com que estes

funcionem como ferramentas de calibragem do sistema, evitando que injustiças

sejam cometidas.

Da proeminência dos princípios no ordenamento jurídico, afirma Tércio

Sampaio Ferraz Jr., “resulta uma concepção de direito como uma prática social

confiada aos juízes, uma prática de interpretação e argumentação de que se

devem dar conta todos os operadores do direito e que põe em questão a distinção

entre ser e dever ser, o direito como fato e como norma”138.

Evidentemente, essa abertura propiciada pelos princípios constitucionais,

por sua própria estrutura, aumenta consideravelmente o risco do subjetivismo do

aplicador da norma (o que vale tanto para o legislador, quanto para o

administrador e o julgador). No campo da política, o maior risco é de que a

discricionariedade atribuída ao governante democraticamente eleito seja

substituída pela discricionariedade do julgador, que, ao menos no caso brasileiro,

não haure sua legitimidade do voto popular, e sim da lei (e do atendimento dos

pressupostos por esta criados para o exercício da magistratura).

No caso de conflitos entre direitos fundamentais, a técnica da ponderação,

que será explicada com mais vagar adiante, está consideravelmente sujeita ao

risco do subjetivismo e da contaminação ideológica do aplicador, na medida em

que a abertura semântica dos princípios constitucionais permite que linhas

argumentativas diametralmente opostas sejam desenvolvidas e defendidas com

base nas mesmas normas.

Exemplo claro disso se encontra no julgamento da ADPF nº 186/DF,

ocorrido em abril de 2012, no qual o STF reconheceu a constitucionalidade dos

atos da Universidade de Brasília (UnB), do Conselho de Ensino, Pesquisa e

Extensão da Universidade de Brasília (CEPE) e do Centro de Promoção de

Eventos da Universidade de Brasília (CESPE), que instituíram o sistema de cotas

étnico-raciais no processo de seleção para ingresso de estudantes nas referidas

instituições. O partido político Democratas (DEM), que propôs a ação, alegou,

138

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 73.

85

dentre outros fundamentos, a violação ao princípio constitucional da igualdade,

como fundamento da inconstitucionalidade da medida. O STF, ao decidir pela

constitucionalidade dos atos praticados pelas referidas instituições, baseou-se no

mesmo princípio da igualdade139. O uso do mesmo princípio constitucional para a

defesa dos dois pontos de vista diametralmente opostos fica evidente no item I da

ementa do julgamento, verbis:

I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas

particulares.140

Diante de um princípio constitucional (princípio da igualdade) de densidade

normativa tão ampla que permite a construção de argumentos opostos e

absolutamente incompatíveis entre si (“o sistema de cotas contraria o princípio da

igualdade” versus “o sistema de cotas prestigia o princípio da igualdade”), o valor

segurança jurídica se encontra em considerável risco, na medida em que o valor

justiça, que servirá como baliza do aplicador do direito no caso concreto, é

altamente impregnado pela subjetividade desse aplicador.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. não reconhece a existência dessa dicotomia

entre segurança jurídica e justiça, sustentando que “falar da justiça como um valor

eminente, ao qual a segurança se opõe como um outro valor, é entrar em um jogo

de contraposições de entidades diferentes. Afinal, justiça pode ser entendida

como um valor, mas segurança é um direito fundamental”141. Assim, a justiça só

139

Discussão similar, também tendo por objeto o princípio constitucional a igualdade, foi travada na ADI nº 3.197-RJ, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) contra a Lei Estadual nº 4.151/2003, que estabelecera o sistema de cotas para ingresso na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Essa ação não chegou a ser julgada em razão do reconhecimento, por parte do STF, da perda de seu objeto, decorrente da revogação daquela lei pela Lei nº 5.346/2008. Os principais argumentos invocados na referida ADI, no entanto, podem ser encontrados in VIEIRA, Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais – Uma Leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 336-378. 140

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693> Acesso em 02.10.2015. 141

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 123.

86

se realizaria a partir da concretização dos direitos fundamentais, donde a

dicotomia apontada seria inviável142.

Não nos parece, contudo, que a distinção ontológica apontada pelo autor

inviabilize a existência de uma tensão entre segurança jurídica e justiça. Ainda

que se concorde que a segurança é um direito fundamental143, a subjetividade

ínsita à ideia de justiça pode levar a diferentes resultados a partir de uma mesma

disposição normativa, e a possibilidade de resultados diversos se amplia na

medida em que as disposições têm textura mais aberta (portanto, com um

espectro hermenêutico mais largo), como ocorre com os princípios e também em

relação a normas que imantam valores como justiça.

Desse modo, se, como afirma Ferraz Jr., “falar de justiça como uma

aspiração constitucional não pode significar outra coisa que sua realização

142

“A oposição entre justiça e segurança remonta a Radbruch, ao afirmar que, diante da impossibilidade de se certificar o que é justo, cabia a quem de direito competente estabelecer o que é jurídico. Não é o caso de entrar nessa discussão, mas é importante assinalar que o direito é um sistema que sempre se apresenta como sistema justo e, por consequência, razoável (adequado a seus fins), o que exige uma certeza na sua positivação. Na verdade, falar da justiça como um valor eminente, ao qual a segurança se opõe como um outro valor, é entrar em um jogo de contraposições de entidades diferentes. Afinal, justiça pode ser entendida como um valor, mas segurança é um direito fundamental, como o é a liberdade, a vida, a propriedade, a igualdade. Nesse sentido é um engano supor a justiça como uma entidade absoluta, em oposição a direitos fundamentais. Entende-se, assim, que a justiça não seja, nem mesmo na CF, à luz do seu Preâmbulo, uma entidade à parte, eminente no sentido de externamente superior aos direitos. Com efeito, falar da justiça como uma aspiração constitucional não pode significar outra coisa que sua realização enquanto realização dos direitos fundamentais. Realização processual, no sentido de que a justiça ocorre na concretização dos direitos.” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Argumentação jurídica, p. 123-124). A posição do autor não nos convence, por duas razões fundamentais: primeiro, porque o fato de o direito sempre se apresentar como um sistema justo, ou, dito de outro modo, como um sistema que se pretende justo, não implica necessariamente o atingimento desse ideal. Segundo, porque a própria ideia de justiça é dotada de alto grau de subjetividade. Por exemplo, o art. 168-A, do Código Penal, tipifica o crime de apropriação indébita previdenciária. Seu § 2º determina que “é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”. Não há previsão similar para o crime de furto simples (art. 155 do Código Penal), socialmente menos danoso. Poder-se-ia, a partir do cotejo entre esses dois dispositivos, questionar a ideia de direito como um sistema justo, a partir de determinada concepção de justiça. O mesmo pode ser dito a respeito da chamada prisão especial, prevista no inciso VII do art. 295 do Código de Processo Penal (“Serão recolhidos a cartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: VII – os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República”). A partir, repita-se, de uma determinada concepção de justiça, é possível argumentar que quem teve acesso ao ensino anterior, tendo, por isso, maiores oportunidades perante a sociedade, não deveria ser tratado com mais benevolência do que aqueles que, em precárias condições sociais, estariam, em tese, mais expostos à possibilidade de seduzidos para a realidade do crime. Nessa hipótese, justiça poderia significar justamente o oposto do que o ordenamento jurídico estabelece. 143

E nem se poderia deixar de concordar com isso, tendo em vista que a segurança é expressamente elencada no rol de direitos fundamentais do caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988.

87

enquanto realização de direitos fundamentais”144, não se pode, por outro lado,

perder de vista que a própria norma de decisão construída para a realização

desses direitos, fundada no valor justiça, pode assumir formas distintas e mesmo

antagônicas, como o demonstra o julgamento da ADPF 186/DF. Dito de outro

modo, os parâmetros do que é justiça podem variar de aplicador para aplicador, e,

por conseguinte, levar a resultados os mais diversos.

A circunstância de inúmeros direitos fundamentais restarem positivados na

forma de princípios constitucionais e normas programáticas contribui também

para a ampliação do campo de possibilidades no momento do estabelecimento da

norma de decisão. Finalmente, numa sociedade plural, cuja constituição

estabelece expressamente um amplo rol de direitos fundamentais, eventualmente

colidentes entre si (ex. a liberdade de expressão versus o direito à privacidade, ou

a livre iniciativa versus a proteção ao meio ambiente e aos direitos trabalhistas), a

afirmação de que a justiça corresponde à realização de direitos fundamentais

parece desconsiderar as inúmeras complexidades que envolvem não apenas a

concretização desses direitos, mas a ponderação entre eles quando se instaura

um conflito entre dois direitos fundamentais.

Reafirmamos, portanto, que justiça e segurança jurídica são valores145 que,

embora devam nortear de forma conjunta qualquer atividade hermenêutica, não

raro apresentam pontos de tensão entre si. A atividade do intérprete e do

aplicador, assim, deve buscar compatibilizar esses valores146, sem privilegiar um

144

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Ob. cit., p. 128. 145

Como já afirmado, não discordamos do entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Jr. no sentido de que segurança é um direito fundamental, nem poderíamos, dado o expresso assento constitucional desse direito no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988. A despeito disso, parece-nos que, além de um direito fundamental, garantido em diversas dimensões (das quais a segurança jurídica é apenas uma), a segurança jurídica também é um valor consagrado em diversas normas do texto constitucional. 146

Parte considerável da doutrina entende que a segurança jurídica constitui um princípio. Nesse sentido, por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello sustenta que o princípio da segurança jurídica, “se acaso não é o maior de todos os princípios gerais de direito, como acreditamos que efetivamente o seja, por certo é um dos maiores dentre eles” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, p. 89). Ainda segundo o autor, “a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores consequências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o princípio da ‘segurança, jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles. (...) Esta ‘segurança jurídica’ coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro: é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente – e não

88

estrito apego às regras a ponto de levar a injustiças (sobrepondo, assim, a

segurança jurídica ao ideal de justiça que emana do texto constitucional), nem

tampouco alargar o espectro semântico dos princípios a ponto de a subjetividade

do intérprete/aplicador eliminar qualquer vestígio de previsibilidade do

ordenamento (de modo que o ideal de justiça – sempre subjetivo – sobrepuje de

modo absoluto a segurança jurídica). É fundamental encontrar um meio-termo de

modo a privilegiar ambos os valores, na medida do possível.

O problema da subjetividade do aplicador da norma, inerente a todos os

campos da ciência jurídica, ganha especial relevo no que tange aos princípios

constitucionais, que têm elevado grau de abstração e baixa densidade normativa,

conferindo, por isso, liberdade ainda maior ao intérprete da norma147.

Luís Roberto Barroso, nesse sentido, observa que “além de não ser neutro,

o direito não tem a objetividade proclamada pelo raciocínio lógico-formal de

subsunção dos fatos à norma. Ao revés, é a indeterminação dos conteúdos

normativos uma marca do direito. Mesmo o emprego dos mecanismos do direito

posto conduz a resultados conflitantes, diante das possibilidades abertas pelo

texto, circunstância que se torna mais ostensiva quando se trate de normas

constitucionais”148. Barroso destaca ainda a impossibilidade de se chegar à plena

objetividade do julgador quando da elaboração da norma de decisão:

A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-

aleatoriamente, ao mero sabor do acaso –, comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas” (ob. cit., p. 127). 147

Não desenvolveremos, no presente trabalho, um estudo voltado à teoria crítica do direito, campo no qual se estuda a função ideológica do direito como instrumento de manutenção do status quo e ferramenta de poder travestida de saber científico. Embora tal campo, fascinante, traga relevantes contribuições no que concerne à subjetividade do intérprete e do aplicador do direito, tal direcionamento faria com que fugíssemos ao foco do presente estudo, razão pela qual a questão da subjetividade será analisada ainda no âmbito de uma teoria da interpretação ou da argumentação jurídica. 148

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 280.

89

á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável

e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto.149

Alem da objetividade, Barroso destaca também a importância da

neutralidade do julgador, entendida como imparcialidade e impessoalidade, e que

implica um problema mais complexo, na medida em que, nos casos que envolvam

a escolha entre valores e alternativas possíveis, “mesmo quando não atue em

nome dos interesses de classe ou estamentais, mesmo quando não milite em

favor do próprio interesse, o intérprete estará sempre promovendo as suas

próprias crenças, a sua visão de mundo, o seu senso de justiça”150:

Idealmente, o intérprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo possível conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual, o criminoso, o miserável ou o mentalmente deficiente. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libertá-lo de seus preconceitos, de suas opções políticas pessoais e oferecer-lhe como referência um conceito idealizado e asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo do próprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos. Em sentido pleno, não há neutralidade

possível.151

É impossível, pois, ao intérprete, esquivar-se de uma pré-compreensão

acerca dos fatos, que, como o próprio nome indica, precede a atividade

hermenêutica por estar no próprio ser do intérprete. Essa pré-compreensão é

constituída por sua formação, sua memória, sua cultura e seus valores, dos quais

ele não pode se apartar. Desse modo, um intérprete neutro, que aborde o

problema jurídico e as normas existentes no sistema para sua solução, é uma

utopia inatingível.

Martin Heidegger afirma que “a interpretação de algo como algo funda-se,

essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A

interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de

pressuposições. (...) Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como

149

Idem, p. 288. 150

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 289. 151

Idem, p. 290.

90

sendo aquilo que a interpretação necessariamente já ‘põe’, ou seja, que é

preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia”152.

Hans-Georg Gadamer explica que a interpretação “começa sempre com

conceitos prévios que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente

todo esse constante reprojetar que perfaz o movimento de sentido do

compreender e do interpretar, é que constitui o processo que Heidegger

descreve”153. Contudo, observa, “face a qualquer texto, nossa tarefa é não

introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos linguísticos”154. Ao

contrário, “o que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do

texto”155.

Portanto, é impossível ao intérprete/aplicador escapar das pré-

compreensões que defluem de sua memória, de sua cultura, de sua formação

enquanto ser humano. Ainda assim, sua visão prévia de mundo, por mais

subjetiva que seja, há de ser balizada pelo ordenamento jurídico. Por exemplo, no

julgamento de uma questão que envolva o direito fundamental à vida, em especial

se esse direito estiver em conflito com outro(s) direito(s) fundamental(is)156, um

juiz que tiver arraigadas convicções religiosas não poderá se esquivar de seus

próprios valores pessoais, que serão, de algum modo, externados em sua

decisão. Esta, no entanto, não poderá ser fundamentada em sua visão de mundo,

mas no ordenamento jurídico. A laicidade do Estado brasileiro impedirá, assim,

que esse hipotético juiz invoque, por exemplo, argumentos religiosos para

fundamentar sua decisão. Não obstante, sua concepção filosófica do que vem a

ser vida estará presente em sua decisão.

No ambiente do neoconstitucionalismo, as questões constitucionais

frequentemente extrapolam o universo do direito e mesmo da política. Assim, no

julgamento da ADI nº 3.510 e da ADPF nº 54, os ministros do STF tiveram de

estabelecer um conceito de vida, como premissa de suas decisões. Do mesmo

modo, no julgamento do famoso caso Ellwanger (Habeas Corpus nº 82.424), foi

152

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 207. 153

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 42. 154

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I, p. 403. 155

Idem, p. 404. 156

Dois exemplos recentes da jurisprudência do STF se encaixam nessa situação: a ADI nº 3.510, julgada em 2008, que tinha por objeto o art. 5º da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), dispositivo este que disciplina o uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e de pesquisa; e a ADPF nº 54, julgada em 2012, na qual se analisou a possibilidade de aborto do feto anencéfalo.

91

necessário estabelecer um conceito de raça, como premissa para decidir se a

conduta do impetrante poderia ou não ser tipificada como crime de racismo.

Nesses casos, fica bastante claro que a solução das controvérsias não se

restringe a uma análise puramente jurídica dos fatos sociais e do ordenamento.

Convicções pessoais, visões de mundo, concepções filosóficas, valores

individuais e subjetivismos serão, em alguma medida, elementos que integrarão a

norma de decisão. O ordenamento jurídico, em especial a constituição, será,

nessa seara, a baliza de aferição da legitimidade (aqui entendida como

conformidade ao direito) das decisões judiciais.

Essa aferição, esse controle de argumentação que confere legitimidade à

decisão judicial, se reveste de maior complexidade no ambiente do

transconstitucionalismo ou constitucionalismo multinível, na medida em que a

decisão há de buscar conformidade não só com a constituição do Estado, mas

também com a pluralidade de ordenamentos incidentes sobre o caso concreto. A

construção do raciocínio que leva à norma de decisão, portanto, deverá

harmonizar as diversas normas incidentes sobre o problema, com a superação de

eventuais antinomias.

É a partir dessa justificação, da demonstração de adequação ao direito

vigente (em seus múltiplos níveis) que a decisão judicial se revelará não um ato

de arbítrio, mas uma expressão do próprio Estado Democrático de Direito.

Evidentemente, no âmbito do neoconstitucionalismo e do

constitucionalismo multinível, avulta a importância dos tribunais constitucionais, a

quem incumbe precipuamente a proteção dos direitos fundamentais

constitucionalmente garantidos. A função dessas cortes na atual quadra, bem

como a sua relevância para a interpretação constitucional, é o tema do capítulo

que se segue.

92

4 OS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS

Buscamos demonstrar até aqui que, no momento atual, os ordenamentos

jurídicos não se encontram mais isolados na ambiência territorial dos Estados

nacionais, mas interagem com uma pluralidade significativa de ordens jurídicas

supranacionais, com as quais dialogam e se entrelaçam na busca de soluções

dos problemas jurídicos, sem que a superação de eventuais antinomias se dê

pelo emprego do critério hierárquico, insuficiente, como visto, para superar

eventuais contradições decorrentes da incidência de mais de uma ordem jurídica

sobre um mesmo problema concreto.

Nesse ambiente de transconstitucionalismo ou constitucionalismo

multinível, tentamos situar as premissas básicas do que se denomina, na

atualidade, neoconstitucionalismo, que pode ser traduzido, sinteticamente, como

um constitucionalismo que se afastou do positivismo puro (cuja inadequação para

a solução de problemas jurídicos concretos se evidenciou nos julgamentos do

Tribunal de Nuremberg), promovendo um (re)encontro do direito com a moral e

trazendo os direitos humanos – aqueles inerentes a qualquer ser humano pelo só

fato de sua humanidade, o “direito a ter direitos”, na formulação de Hannah Arendt

– para a centralidade do ordenamento jurídico.

Ainda no âmbito do neoconstitucionalismo, a consagração dos direitos

humanos como centro dos ordenamentos jurídicos e a necessidade de sua

proteção por parte do Poder Público levaram ao reconhecimento, em nível inédito,

da força normativa dos textos constitucionais, o que fortaleceu sobremaneira os

princípios constitucionais.

Característica fundamental do novo constitucionalismo – e, por

conseguinte, de considerável parte das Constituições atuais – é a tentativa de

acomodação de direitos fundamentais os mais diversos, resultantes do pluralismo

que marca as sociedades atuais, em um mesmo documento constitucional.

Direitos estes que, muitas vezes, se revelam em conflito à luz de determinada

situação concreta, tal como ocorre em relação ao direito à livre manifestação do

pensamento versus o direito à intimidade e à privacidade, ou em relação ao direito

à livre iniciativa versus os direitos trabalhistas e a proteção do direito ambiental.

93

A existência de conflitos entre direitos fundamentais, resultante, como visto,

da tentativa de acomodação de interesses dos diversos setores de uma

sociedade plural no bojo de uma mesma Constituição (cujo viés democrático leva

à pretensão da proteção dos direitos de todos os membros da sociedade,

respeitadas suas diferenças e peculiaridades), não se resolve pelo fenômeno da

subsunção, insuficiente, como já demonstrado, para superar antinomias

porventura existentes na solução de um problema concreto sobre o qual incidem

múltiplas ordens jurídicas. Quando se trata de princípios constitucionais, e de

direitos fundamentais positivados sob a estrutura principiológica (por exemplo, o

princípio da igualdade), os critérios de superação de antinomias elencados por

Savigny e adotados por longo tempo pela doutrina tradicional se mostram falhos.

A textura aberta das normas (principiológicas) que consagram tais direitos dificulta

consideravelmente a solução das aludidas antinomias.

Diante desse quadro, mais do que a mera interpretação das normas, vale

dizer, da atribuição de sentido aos dispositivos normativos para a construção da

norma de decisão, avulta a importância da argumentação que leva à elaboração

dessa decisão, mormente nos casos em que a decisão do magistrado entra em

choque com eventuais escolhas dos representantes eleitos do povo.

Procuramos demonstrar que a transição do Estado Liberal para o Estado

Social implicou uma significativa alteração na própria estrutura das normas

garantidoras de direitos fundamentais, notadamente no que concerne aos direitos

sociais. Os dispositivos constitucionais, nesse sentido, voltam-se antes ao

estabelecimento de finalidades sociais a serem atingidas do que à positivação dos

meios que os Poderes Públicos deverão empregar para alcançar os resultados

constitucionalmente estabelecidos.

Nesse sentido, a transição para o Estado Social leva a uma inevitável

reaproximação entre o direito e a política, na medida em que os dispositivos

constitucionais voltados à proteção e concretização de direitos sociais, por terem

natureza finalística ou programática, são dotados de uma dimensão política

inexistente, ao menos nessa amplitude, nas normas infraconstitucionais que se

94

limitam a regular condutas e a prescrever as consequências jurídicas para a

inobservância de seus ditames157.

Os dispositivos constitucionais, como visto, atribuem objetivos sem

estabelecer os meios para que tais objetivos sejam alcançados. Essa

circunstância permite que os representantes eleitos do povo (Poderes Legislativo

e Executivo) escolham com ampla liberdade os caminhos para a consecução das

obrigações que lhes são constitucionalmente impostas. Por outro lado, o Poder

Judiciário, ao analisar a conduta dos demais Poderes na busca de realização das

promessas constitucionais, também tem, por força da textura aberta dos

dispositivos constitucionais que consagram direitos fundamentais (muitos dos

quais estruturados na forma de princípios), ampla margem hermenêutica.

Contudo, o Judiciário, ao contrário dos demais Poderes, não é formado por

representantes eleitos do povo. A legitimidade de suas decisões se estabelece,

por isso, a partir da demonstração da conformidade da decisão tomada com os

dispositivos legais e constitucionais incidentes sobre o problema concreto, o que

evidencia a relevância da fundamentação da decisão, vale dizer, da

argumentação a partir da qual se construiu a norma de decisão. Donde se revela

a necessidade de existência de mecanismos de controle da argumentação,

anteriormente mencionados.

Embora a quadra atual seja marcada, ao menos no direito ocidental, pela

prevalência e centralidade dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, há

que se atentar para a já mencionada advertência feita por Norberto Bobbio, de

que “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não

era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”158.

Com efeito, embora as ideias de Kant, resgatadas por Hannah Arendt no

pós-Segunda Guerra, se encontrem em teoria consolidadas e mesmo positivadas,

157

Não desconsideramos o fato de que toda norma jurídica é dotada, em maior ou menor grau, de uma carga política, assim como também de uma dimensão ideológica. Todo dispositivo normativo, seja constitucional ou infraconstitucional, é uma projeção de determinados valores da sociedade, de uma específica forma de se pensar (e regular) a realidade. Assim ocorre, por exemplo, com a tipificação penal da bigamia (art. 235 do Código Penal), ou com as normas processuais penais que estabelecem as regras para as saídas temporárias durante o cumprimento da pena – típico exemplo de política carcerária. A dimensão política a que nos referimos ao tratar dos direitos fundamentais sociais constitucionalmente assegurados, no entanto, é mais ampla, evidente e imediatamente perceptível no próprio corpo da norma do que a verificada nos exemplos infraconstitucionais, o que gera consequências inclusive na forma de sua interpretação e aplicação e, por corolário, no controle judicial da atuação do Legislativo e do Executivo em relação a tais dispositivos. 158

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 25.

95

inclusive, na maioria dos casos, em nível constitucional, nos Estados ocidentais

da atualidade, não se pode deixar de reconhecer, principalmente (mas não

apenas) nas nações periféricas, o tremendo descompasso existente entre as

promessas constitucionais e sua realização.

Nesse cenário, a relevância dos tribunais ou cortes constitucionais, como

guardiões da efetividade das Constituições (e, por corolário, dos direitos

fundamentais nelas insculpidos), avulta de modo bastante evidente. A esse

respeito, Marcos César Botelho assevera que “o papel assumido pelas Cortes

Constitucionais em defesa da Constituição ressalta a importância de sua atuação

na estrutura política e social de um determinado país”159.

Isso ocorre porque de nada adiantaria a positivação, e mesmo a

constitucionalização, de direitos humanos/fundamentais, se o Estado não

dispusesse de meios para assegurá-los, para promover sua proteção, para tornar

impositiva sua observância e para adotar as medidas cabíveis nos casos de

descumprimento das promessas constitucionais que os garantem e asseguram.

Se houvesse a mera promessa constitucional de observância de tais

direitos, sem a correlativa existência de mecanismos jurídicos aptos a assegurar

sua promoção e proteção, as Constituições, no que tange aos direitos

fundamentais, não passariam da “folha de papel” a que alude Lassale. Os direitos

fundamentais constitucionalmente assegurados não seriam mais do que um

ornamento retórico desprovido de efetivo conteúdo, uma promessa tão bela

quanto vazia, uma simbologia em última análise desprovida de qualquer sentido

real.

Assim, a efetiva existência de direitos fundamentais numa determinada

realidade exige, mais do que sua retórica constitucionalização, também a previsão

(constitucional) das ferramentas e dos instrumentos necessários para a garantia e

efetivação desses direitos.

Uma vez que os tribunais constitucionais assumem, na atualidade, a

função de guardiões da Constituição160, sua relevância, para a garantia e

efetividade dos direitos fundamentais, se mostra absolutamente inconteste. Nesse

159

BOTELHO, Marcos César. A legitimidade da jurisdição constitucional no pensamento de Jürgen Habermas. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 191. 160

A Constituição Federal de 1988 é emblemática nesse sentido, na medida em que expressamente preconiza, no caput de seu art. 102, que compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente a guarda da Constituição.

96

tocante, André Ramos Tavares observa que “se se entende por política a criação

do Direito, também aí se verifica que não apenas a legislação cumpre esse papel,

mas igualmente a jurisdição, ao menos porque cria a norma jurídica para o caso

concreto”161.

Em sistemas jurídicos como o brasileiro, no qual coexistem os controles

concreto e abstrato de constitucionalidade, todos os magistrados têm

competência para, ao menos no que concerne ao controle concreto, interpretar os

dispositivos constitucionais e adequar o ordenamento infraconstitucional à

Constituição. Ainda assim, não se podem desconsiderar as relevantíssimas

distinções entre as funções exercidas pelo magistrado ordinário e aquelas

inerentes às Cortes ou Tribunais Constitucionais.

O controle abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos, por

não buscar a solução de uma lide específica, mas o saneamento do ordenamento

jurídico (com a eventual retirada deste de normas incompatíveis com a

Constituição), reveste-se de características próprias que fazem com que os

processos por meio do qual esse controle se realize sejam considerados

processos objetivos, desprovidos, pois, de partes no sentido tradicional do termo,

e sujeitos, por sua natureza, a uma lógica própria em relação à teoria geral do

processo.

Segundo Giancarlo Rolla, “três elementos sublinham a especialidade do

processo perante o Tribunal Constitucional”162:

Enquanto o processo constitucional tende a privilegiar os

interesses do ordenamento em detrimento das partes, no entanto, seria errado negar que por trás da objetividade do julgamento também se oculta a vontade de proteger os direitos individuais violados pelo uso indevido por parte do legislador acerca do do critério político. Por outro lado, a proteção do ordenamento e a proteção das diferentes posições de sujeito não são mutuamente excludentes, mas representam dois aspectos complementares, quando se considera que o ordenamento é sempre mais objetivo e justo, quanto maior e mais forte seja a defesa dos direitos.

Em segundo lugar, o processo constitucional – diferentemente de outros processos de natureza jurisdicional – se caracteriza por uma significativa elasticidade das regras processuais. Não tanto porque faltem normas significativas sobre o processo constitucional, mas porque o juiz constitucional

161

TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional, p. 55. 162

ROLLA, Giancarlo. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de Mexico, 2002, p. 33.

97

desfruta de uma notável elasticidade em matéria de interpretação e aplicação das regras processuais.

Em virtude de tal discricionariedade, pode inovar o próprio ordenamento acerca da práxis precedente, assim como derrogar a norma vigente com a finalidade de obter da melhor forma possível o resultado institucional perseguido, consistente na plena atuação dos valores constitucionais: em outras palavras, diversos elementos da disciplina processual se submetem à apreciação prudente do Tribunal Constitucional.

Em tereceiro lugar, o juiz constitucional – além de ser um juiz, no sentido de que aplica a norma (constitucional) a uma questão específica e concreta (representada por uma questão de constitucionalidade) – realiza uma função eminentemente interpretativa, devendo individualizar entre os muitos significados normativos possíveis aquele mais adequado e coerente com as disposições constitucionais e com outras disposições legais. Obviamente, ao realizar tal operação, o juiz constitucional deve se era a uma regra de self restraint, já que, se é o intérprete privilegiado das disposições de nível constitucional, não pode esquecer que a interpretação das normas legais pertence à autornomia dos juízes, e em particular na competência

nomofilática própria da Corte Suprema.163

A jurisdição constitucional, em especial no que se refere à atividade

interpretativa dos tribunais constitucionais, é marcada por um grau de liberdade

no ato de interpretação substancialmente mais amplo do que o verificado na

jurisdição ordinária, fundalmentalmente por conta das peculiaridades inerentes às

normas constitucionais.

Princípios constitucionais e normas programáticas, em razão de sua textura

aberta e de sua baixa densidade normativa apresentam, como já mencionado, um

amplo espectro normativo, ou seja, o campo semântico de possibilidades de

atribuição de sentidos possíveis a tais dispositivos é significativamente mais

amplo do que o encontrado nos dispositivos infraconstitucionais que preveem

condutas e situações mais concretas, bem como suas respectivas consequências

jurídicas.

Some-se a tais circunstâncias a já mencionada função de “guardião da

Constituição” de que se revestem as cortes constitucionais164, inexistente, ao

menos de forma expressa165, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário.

163

ROLLA, Giancarlo. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales, p. 33-34. 164

No Brasil, como apontado anteriormente, essa função, atribuída ao Supremo Tribunal Federal, se encontra explicitada no caput do art. 102 da Constituição Federal de 1988. 165

Evidentemente, todo julgamento levado a cabo por qualquer membro do Poder Judiciário há de estar em conformidade com os ditames constitucionais, o que ocorre inclusive por meio do controle concreto de constitucionalidade. A função de guardião da Constituição a que nos referimos concerne tanto ao controle abstrato de constitucionalidade quanto à tarefa, não atribuída a outros órgãos do Judiciário além do STF, de dar a última palavra acerca do sentido de determinado dispositivo constitucional, bem como de zelar pela

98

Finalmente, no que tange aos diálogos entre ordens jurídicas plúrimas,

nacionais e supranacionais, amiúde incidentes sobre um mesmo problema

jurídico concreto, a atuação das Cortes Constitucionais se afigura mais profunda e

intensa do que a da jurisdição ordinária166.

Assim, as diferenças existentes entre um tribunal constitucional e os

demais órgãos do Poder Judiciário se mostram bastante claras e evidenciam a

função inerente à própria ideia do tribunal constitucional, função esta que, ao

transcender a esfera dos conflitos individuais, ultrapassa o âmbito exclusivamente

jurídico, adentrando também no campo político. Também por isso, é ínsita à

função do juiz constitucional uma atuação mais criativa, de efetiva construção do

direito, do que no caso do juiz ordinário.

Bem por isso, afirma Giancarlo Rolla, “as relações entre justiça

constitucional e poder político representam um ponto delicado, mas comum a

todos os ordenamentos contemporâneos que introduziram formas de controle de

legitimidade constitucional das leis”167.

4.1 A legitimidade democrática dos tribunais constitucionais

Uma vez que, como já apontado anteriormente, a constituição funciona

como acoplamento estrutural entre direito e política168, é evidente que a atuação

das cortes constitucionais será marcada por uma natureza tanto jurídica quanto

política. As decisões constitucionais são forçosamente compostas por elementos

que extrapolam o direito e alcançam o terreno da política.

higidez do sistema normativo como um todo, dele extirpando, mediante o aludido controle abstrato, os dispositivos legais incompatíveis com a Constituição. 166

O controle de convencionalidade, do qual o exemplo mais emblemático é o Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, julgado pelo STF, demonstra com clareza a relevância da jurisdição constitucional na ambiência do transconstitucionalismo ou do constitucionalismo multinível. 167

ROLLA, Giancarlo. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales, p. 35. 168

“A Constituição é o primeiro e principal elemento na interface entre política e direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte originário – energia política em estado quase puro, emanada da soberania popular – em poder constituído, que são as instituições do Estado, sujeitas à legalidade jurídica, à rule of Law” (BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, Disponível em: <https://www4.planalto.gov.br/revistajuridica/vol-12-n-96-fev-mai-2010/menu-vertical/artigos/artigos.2010-06-09.1628631230/?sear> Acesso em: 10.10.2015 - p. 17).

99

As constituições dos Estados Sociais, como visto, atribuem aos poderes

públicos o dever de cumprir uma série de incumbências, de prestações positivas

em face da sociedade (em oposição às prestações negativas almejadas pelos

ideólogos do Estado Liberal, que buscavam a consolidação de um Estado

mínimo, ausente tanto quanto possível da esfera das relações privadas). Essas

incumbências são externadas nos textos constitucionais na forma de disposições

finalísticas, o que, como já afirmamos, enseja ampla margem de escolha dos

meios possíveis para o atingimento das finalidades constitucionalmente

positivadas.

A essa ampla liberdade conferida ao legislador/administrador, corresponde,

por outro lado, largo espectro hermenêutico ao julgador quando da atribuição de

sentido aos dispositivos constitucionais. Dito de outro modo, essa flexibilidade

hermenêutica, por decorrer da estrutura dos dispositivos normativos, acaba por

ser conferida a quem quer que tenha a atribuição de interpretá-los. Nessa

ambiência, é natural que surjam interpretações díspares a respeito de um mesmo

dispositivo ou grupo de dispositivos, notadamente entre órgãos dos Poderes

Legislativo e Executivo, de um lado, e do Poder Judiciário, de outro.

Essa tensão se verifica entre membros do Poder Público

democraticamente eleitos para concretizar as determinações constitucionais

(Legislativo e Executivo) e órgãos desse mesmo Poder Público que, conquanto

não eleitos por meio do voto, têm um compromisso institucional com a

manutenção do Estado de Direito e do princípio da legalidade. No caso da justiça

constitucional, a natureza híbrida (jurídico-política) dos dispositivos

constitucionais, cuja proteção e guarda é confiada às cortes constitucionais, a

quem incumbe atribuir o sentido final de tais dispositivos (“dar a última palavra”

sobre eles), torna inevitável o surgimento de atritos. Essa possibilidade, mais do

que meramente presente, há de ser entendida como ínsita a qualquer sistema

que congregue Estado Social (com direitos fundamentais constitucionalmente

assegurados) e justiça constitucional, e, por conseguinte, inevitável. Como afirma

Giancarlo Rolla,

A possibilidade de enfrentamentos é, em nossa opinião, conatural à própria decisão de introduzir no ordenamento um órgão supremo, expressamente habilitado, de um lado, para julgar a constitucionalidade das leis, e, de outro, para garantir a distribuição das competências e a articulação dos poderes

100

estabelecidos pela Carta Constitucional. A possibilidade de enfrentamentos é conatural à opção de se opor um “contrapoder” jurídico à atividade política do legislador, de prever uma mediação jurisdicional para resolver conflitos de competência entre os

poderes políticos.169

Evidentemente, na medida em que esse enfrentamento se dá entre

representantes eleitos pelo voto popular, de um lado, e magistrados investidos em

seus cargos públicos por procedimentos que, embora previstos

constitucionalmente, não contam (diretamente) com o elemento da representação

popular170, uma eventual decisão judicial (mesmo que emanada de um tribunal

constitucional) que adote um entendimento dissonante daquele defendido pelos

representantes democraticamente escolhidos pelo povo suscitará inevitáveis

questionamentos acerca de sua legitimidade, notadamente à luz do princípio

democrático.

O tema da chamada objeção contramajoritária se mostra particularmente

sensível em relação ao controle abstrato de constitucionalidade, ou seja, à

possibilidade de retirada, por parte do Poder Judiciário, de dispositivo inserido no

ordenamento jurídico pelo Poder Legislativo, representante, em tese, da vontade

popular – a denominada função de legislador negativo do tribunal

constitucional171, tal como fora idealizada por Kelsen:

A anulação de uma lei se produz essencialmente como aplicação das normas da Constituição. A livre criação que caracteriza a legislação está aqui quase completamente ausente. Enquanto o legislador só está preso pela Constituição no que

169

ROLLA, Giancarlo. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales, p. 35. 170

Indiretamente, o procedimento para a escolha de magistrados de Cortes Constitucionais se encontra previsto na própria Constituição, documento elaborado pelos representantes eleitos do povo. 171

“É certo que a declaração de inconstitucionalidade em tese encerra, como sabemos, um juízo de exclusão, o qual, fundado na competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, tem por finalidade remover do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as consequências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Essa competência excepcional – que extrai a sua autoridade da própria Carta Política – converte o Supremo Tribunal Federal, por isso mesmo, em verdadeiro legislador negativo. Por ser esta – a de legislador negativo – a condição institucional da Suprema Corte no processo de controle normativo abstrato, não se lhe pode imputar o poder – absolutamente anômalo e exorbitante dos limites da fiscalização concentrada de constitucionalidade – de, a partir da supressão seletiva de fragmentos do discurso normativo inscrito no ato estatal questionado, proceder, em última análise, especialmente nos termos em que requerida a presente medida cautelar, à criação de outra regra legal, substancialmente divorciada do conteúdo material que lhe deu o legislador” (voto do Ministro Celso de Mello na ADI-MC nº 1.063-DF, disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346801> Acesso em 12.10.2015.

101

concerne a seu procedimento – e, de forma totalmente excepcional, no que concerne ao conteúdodas leis que deve editar, e mesmo assim, apenas por princípios ou diretivas gerais – a atividade do legislador negativo, da jurisdição constitucional, é absolutamente determinada pela Constituição. E é precisamente nisso que sua função se parece com a de qualquer outro tribunal em geral: ela é principalmente aplicação e somente em pequena medida criação do drieito. É, por conseguinte, efetivamente

jurisdicional.172

A jurisdição constitucional, nessa seara, sofre vigorosa crítica de

considerável número de estudiosos que questionam a ausência de legitimação

democrática dos tribunais constitucionais173. A crítica concernente à objeção

contramajoritária (também chamada por alguns de dificuldade contramajoritária) é

sintetizada com precisão por Luís Roberto Barroso:

Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político. Essa possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária. A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais. Ao lado dessas, há, igualmente, críticas de cunho ideológico, que veem no Judiciário uma instância tradicionalmente conservadora das distribuições de poder e de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicialização funcionaria como uma reação das

172

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 153. 173

Há extensa literatura que investiga o fundamento democrático da jurisdição constitucional, da qual podem ser mencionadas, exemplificativamente, as seguintes obras: ELY, J. H., Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980; BICKEL, A., The least dangerous branch. 2. ed. Indianapolis: Bobbs-merril Co., 1986; BLACK JR., C., The people and the court. New York: Macmillan, 1960; DWORKIN, R., Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997; NINO, C. S. La Constitución de la Democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997; PALOMBELLA, G. Constitución y soberania: el sentido de la democracia constitucional. Trad. José C. González. Granada: Comares, 2000; HABERMAS, J., Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003; GARCÍA DE ENTERRÍA, E. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. 4. ed. Madrid: Civitas, 2006; GARGARELLA, R. La justicia frente al gobierno: sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Barcelona: Ariel, 1996; VIEIRA, Oscar Vilhena, A Constituição como reserva de justiça. Revista Lua Nova, São Paulo, 1997, e VIEIRA, Oscar Vilhena, A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. BARROSO, Luís Roberto, Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/constituicao_democracia_e_supremacia_judicial.pdf> Acesso em 10.10.2015.

102

elites tradicionais contra a democratização, um antídoto contra a

participação popular e a política majoritária.174

A premissa da objeção contramajoritária, no entanto, funda-se, a nosso ver,

em um equívoco grave, conquanto bastante corriqueiro, acerca do conceito de

democracia, amiúde identificado erroneamente – e de modo bastante simplista –

com a vontade da maioria.

Nos Estados modernos, fundados em constituições que têm por centro a

promoção e a garantia dos direitos fundamentais, é usual a identificação

praticamente automática entre democracia e vontade da maioria (oriunda da

etimologia da palavra grega demokratía, que significa, em tradução literal,

“governo do povo”). Ainda que a ideia de democracia corresponda efetivamente,

em sua essência, à concepção de “governo do povo” (o que, de resto, é

estabelecido de forma peremptória no parágrafo único do art. 1º da Constituição

de 1988), não há, por outro lado, nos atuais Estados Constitucionais, identidade

absoluta entre “governo do povo” e “vontade da maioria”, justamente em razão da

prevalência dos direitos fundamentais, cuja proteção e garantia hão de ser

asseguradas a todos os membros da sociedade, aí incluídas as minorias,

independentemente de eventuais manifestações ou pretensões da maioria em

sentido contrário.

A ideia atual de democracia, portanto, não se exaure na constatação da

superioridade numérica em determinado processo eleitoral. A democracia,

modernamente, é composta também por um feixe de valores, no cerne dos quais

se encontram os direitos fundamentais e a própria igualdade (de todos os

membros da sociedade) como valores supremos. A mera superioridade numérica

levaria, assim, a uma “ditadura da maioria”, uma vez que a esta seria permitido

oprimir as minorias175.

Não se pode desconsiderar a circunstância de que a democracia

representativa, única viável nas sociedades complexas da atualidade, padece de

um reconhecido déficit de representatividade que, por si só, seria mais do que

174

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, p. 12. 175

Uma vertente da teoria crítica do direito chega a questionar a própria natureza democrática tanto do ordenamento jurídico quanto da própria Constituição. Para essa vertente, as leis e as Constituições não passam de instrumento de manutenção do status quo e, por conseguinte, ferramenta usada pelos detentores do poder para oprimir o povo. Embora fascinante, o tema foge ao escopo do presente estudo, razão pela qual optamos por não desenvolvê-lo neste trabalho.

103

suficiente para colocar em cheque o simplismo da ideia de uma “vontade da

maioria” em detrimento dos direitos das minorias.

Mais do que isso, contudo, há de se reconhecer que o feixe de valores (e

de princípios constitucionais) que buscam amparo no princípio democrático

insculpido no parágrafo único do art. 1º da Constituição não pode ser excluído da

proteção decorrente da força normativa da Constituição. Dito de outro modo, cabe

ao tribunal constitucional, na qualidade de guardião da Constituição (e, portanto,

de garantidor da efetividade das normas constitucionais) agir quando provocado a

se manifestar acerca de inconstitucionalidades que ameacem os preceitos

garantidores do ideal democrático.

O ideal democrático das sociedades plurais, portanto, toma os textos

constitucionais como ponto de partida e não ponto de chegada176. As

constituições, nesse sentido, são instrumentos que tanto estabelecem as

premissas de uma vida comum em sociedade, como buscam fixar as condições

para que, no seio dessa realidade comum, projetos de vida variados e

potencialidades de diversos matizes encontrem plena possibilidade de

realização177.

Sob essa ótica, deve-se afastar o entendimento de que a atuação da

justiça constitucional, também no que concerne à promoção de políticas públicas,

implicaria desrespeito ao princípio democrático. Ao contrário, a promoção e a

proteção do feixe de dispositivos constitucionais que asseguram, dentre outros

direitos fundamentais, a igualdade, consagra, e não mitiga, a democracia, ainda

que o tribunal constitucional não seja formado por membros eleitos

democraticamente. Essa concepção de democracia, decorrente do

reconhecimento da estrutura pluridimensional do princípio democrático a que

176

“(...) a democracia e o constitucionalismo são o ponto de partida – e não o ponto de chegada – para a organização de uma sociedade que promova o pluralismo, o respeito pelos direitos humanos e a justiça social” (BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira. Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 2). 177

“As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, sem que nenhum deles tenha força suficiente para impor uma dominação exclusiva e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado – essas sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo, estabelecem a Constituição não com o papel de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida comum, mas sim de realizar as condições de possibilidade de construção dessa vida comum” (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho ductil, p. 13).

104

aludem Canotilho e Vital Moreira178, não faria sentido se a democracia se

limitasse à singela regra da maioria, sem preocupação com a igualdade de todos

perante a sociedade e a busca pela igualdade material. E apenas essa visão

puramente numérico-quantitativa e indiscutivelmente simplória poderia justificar

uma negação à justiça constitucional da competência para proteger e garantir

direitos fundamentais (fortalecendo, assim, o ideal democrático).

Portanto, como afirma Barroso, a jurisdição constitucional “é um espaço de

legitimação discursiva ou argumentativa das decisões políticas, que coexiste com

a legitimação majoritária, servindo-lhe de ‘contraponto e complemento’”179.

Se se verifica, na quadra atual, uma ampliação do campo de atribuições da

justiça constitucional, tal se dá por decorrência da ampliação do rol de deveres do

Estado para com a sociedade, da expansão do campo de proteção dos direitos

fundamentais (constitucionalmente assegurados) e das novas complexidades

inerentes ao pluralismo das sociedades modernas. Nas palavras de Vital Moreira,

“o alargamento dos interesses constitucionalmente protegidos e a necessidade de

protecção do pluralismo político e social constitucionalmente garantido requerem

um alargamento do âmbito da justiça constitucional”180.

É evidente que o reconhecimento de que a atuação da justiça

constitucional no campo da promoção e garantia das políticas públicas não

implica qualquer violação ao princípio democrático (antes o assegura) não resulta

numa carta branca para que o tribunal constitucional desconsidere o papel

institucional dos demais Poderes na realização e concretização das promessas

178

“A articulação das duas dimensões do princípio democrático justifica a sua compreensão como um princípio normativo multiforme. Tal como a organização da economia aponta, no plano constitucional, para um sistema econômico complexo, também a conformação do princípio democrático se caracteriza tendo em conta a sua estrutura pluridimensional. Primeiramente, a Democracia surge como um processo de democratização, entendido como processo de aprofundamento democrático da ordem política, econômica, social e cultural. Depois, o princípio democrático recolhe as duas dimensões historicamente consideradas como antitéticas: por um Aldo, acolhe os mais importantes elementos da teoria democrática-representativa (órgãos representativos, eleições periódicas, pluralismo partidário, separação de poderes); por outro lado, dá guarida a algumas das exigências fundamentais da teoria participativa (alargamento do princípio democrático a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural, incorporação de participação popular directa, reconhecimento de partidos e associações como relevantes agentes de dinamização democrática etc.)” (CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 195). 179

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, p. 15. 180

MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional, p. 6. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030212.html?impressao=1> Acesso em 02.10.2015.

105

constitucionais, atribuição que, por força da mesma Constituição (que confere ao

Judiciário o dever de proteger os direitos fundamentais, a igualdade e a

democracia), recai justamente sobre esses Poderes. Afinal, também a separação

de poderes181 é princípio constitucionalmente assegurado.

Como estabelecer, portanto, o ponto a partir do qual a justiça constitucional

extrapola seu adequado âmbito de atuação e invade a esfera atinente aos demais

Poderes?

Novamente, é Barroso quem fornece satisfatoriamente uma resposta para

essa indagação:

As constituições contemporâneas, como já se assinalou, desempenham dois grandes papéis: (i) o de condensar os valores políticos nucleares da sociedade, os consensos mínimos quanto a suas instituições e quanto aos direitos fundamentais nela consagrados; e (ii) o de disciplinar o processo político democrático, propiciando o governo da maioria, a participação da minoria e a alternância no poder. Pois este é o grande papel de um tribunal constitucional, do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os direitos fundamentais, bem como resguardar as regras do jogo democrático. Eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos elementos essenciais da Constituição se dará a favor e não contra a democracia.

Nas demais situações – isto é, quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou os procedimentos democráticos –, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua própria valoração política. Isso deve ser feito não só por razões ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões proferidas em casos individuais. Os membros do Judiciário não devem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida –, supondo-se experts em todas as matérias. Por fim, o fato de a última palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciário não o transforma no único – nem no principal – foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar

que o poder emana do povo, não dos juízes.182

181

A par da conhecida imprecisão da expressão separação de poderes, é com essa equivocada nomenclatura que a Constituição prevê, em seu art. 60, § 4º, a divisão de funções dos Poderes estabelecidos no art. 2º. 182

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, p. 15-16.

106

Fundamental, pois, para que a jurisdição constitucional não implique

violação tanto ao princípio democrático quanto ao princípio da separação de

poderes, é a limitação de sua atuação, no campo da concretização de políticas

públicas, à garantia de efetividade e à proteção dos direitos fundamentais e da

própria democracia (aqui entendida como a vontade da maioria, preservados,

protegidos e respeitados os direitos fundamentais das minorias)183. Nesse

tocante, Vital Moreira salienta a importância do princípio da maioria como

balizador da atuação dos tribunais constitucionais:

Se o princípio da maioria deixou de ser motivo de rejeição da justiça constitucional — pelo contrário! —, ele não deixou de ser relevante para definir os parâmetros e delimitar os poderes do juiz constitucional.

Dele decorre uma exigência fundamental da jurisdição constitucional, que consiste em não usurpar o papel do legislador ordinário, expressão da maioria de governo, substituindo-se àquele nas escolhas constitucionalmente admissíveis.

Se o juiz constitucional não deve autolimitar-se nas suas funções de fiscalização da constitucionalidade, deve em contrapartida observar precipuamente os limites aos seus poderes que decorrem da Constituição ou são inerentes à fiscalização da constitucionalidade.

A ideia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe compete substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Constituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de poderes. É à maioria democraticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. Ele é um contralegislador, não um legislador. Como diz um autor, a tarefa do juiz constitucional só começa quando o querer político — a lex ferenda — já se

transformou em dever-ser jurídico — a lex lata.184

Mais do que esse reconhecimento do campo material a que se deve

circunscrever a atuação das Cortes Constitucionais na aferição do desempenho

dos demais Poderes no que concerne às políticas públicas e à concretização dos

direitos fundamentais, a legitimidade de tal atuação à luz dos ditames

183

Embora seja conhecida a inadequação da expressão “separação de poderes”, pouco condizente, inclusive, com as ideias propaladas por Montesquieu no célebre Livro 11 do Espírito das Leis, dela faremos uso não só por sua consagração doutrinária (a par de sua imprecisão), mas também em respeito à opção do Poder Constituinte Originário, que elencou esse “princípio” como cláusula pétrea no § 4º do art. 60 da Constituição de 1988. 184

MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional, p. 10. Acesso a partir de: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030212.html?impressao=1> Acesso em 02.10.2015.

107

constitucionais é aferida principalmente pela obrigação, positivada em nível

constitucional (art. 97 da Constituição de 1988), de justificativa da decisão tomada

pelo Judiciário. Essa necessidade, que, pelo imperativo constitucional, se faz

presente em toda e qualquer decisão judicial, assume especial relevo na atuação

da justiça constitucional em face das políticas públicas e no controle abstrato da

constitucionalidade. Segundo Marco César Botelho,

O papel das Cortes Constitucionais não pode estar fechado, ensimesmado, sob pena de se tornarem elas o mais autocrático dos poderes. É de se ressaltar que a exigência de fundamentação das decisões judiciais não torna a Corte Constitucional mais democrática, quando não há abertura à sociedade de intérpretes, pois fundamentação sem controle pode ser comparada como uma bolha que, possuidora de forma visível, não permite ao observador a apreensão de seu conteúdo por ser

ele inexistente.185

Mauro Cappelletti, nesse tocante, salienta que a necessidade de o Poder

Judiciário fundamentar juridicamente suas decisões o torna, de certo modo, mais

“aberto” à sociedade do que o Poder Legislativo, cujas decisões políticas não são

expressamente fundamentadas (vale dizer, as razões das decisões políticas não

são expressa e formalmente apresentadas ao povo):

Particularmente, de forma diversa dos legisladores, os tribunais superiores são normalmente chamados a explicar por escrito e, assim, abertamente ao público, as razões das suas decisões, obrigação que assumiu a dignidade de garantia constitucional em alguns países, como a Itália. Essa praxe bem se pode considerar como um contínuo esforço de convencer o público da legitimidade de tais decisões, embora na verdade ultrapasse frequentemente sua finalidade, por ter a pretensão de apresentar as decisões judiciais como fruto de mera lógica, como puras “declarações” do direito. De qualquer modo, mantém o seu valor enquanto tentativa de assegurar ao público que as decisões dos tribunais não resultam de capricho ou idiossincrasias e predileções subjetivas dos juízes, representando, sim, o seu empenho em se manterem fiéis ao sentimento de equidade e justiça da comunidade. Assim, mediante tal praxe, os tribunais superiores sujeitam-se a um grau de “exposição” ao público e de controle por parte da coletividade, que também os pode tornar, de forma indireta, bem mais “responsáveis” perante a comunidade do que muitos entes e organismos administrativos (provavelmente a maioria desses), não expostos a tal fiscalização continuada do

público.186

185

BOTELHO, Marcos César. A legitimidade da jurisdição constitucional no pensamento de Jürgen Habermas, p. 212. 186

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editora, 1993, p. 98-99.

108

Portanto, a adequada fundamentação da decisão judicial, bem como o

respeito aos campos institucionais constitucionalmente atribuídos a cada Poder,

tornam a atuação das Cortes Constitucionais um elemento imprescindível à

realização do ideal democrático. Essa atuação, em outras palavras, ao garantir a

efetividade dos dispositivos constitucionais, não só não implica qualquer

mitigação ao princípio democrático, como também o fortalece e protege187.

O problema da objeção contramajoritária, por si só bastante complexo,

torna-se ainda mais dramático em relação às constituições que mantêm em seu

bojo um núcleo intangível e imutável, tal como ocorre com as cláusulas pétreas

insculpidas no § 4º do art. 60 da Constituição brasileira.

A escolha política de inserir determinados tópicos no corpo de uma

constituição rígida, para salvaguardar certos temas caros ao Estado que o Poder

Constituinte Originário inaugura das paixões momentâneas e de momentos de

crise, já é, por si só, problemática à luz do princípio democrático188. Embora

constitucionalismo e democracia não sejam antagônicos (antes se complementam

no Estado Democrático de Direito), é inegável a existência de uma tensão entre o

princípio democrático, que, como expressão da soberania popular, é

manifestação do poder (“todo poder emana do povo”, nos termos do § único do

art. 1º da Constituição de 1988), e o constitucionalismo, que é uma técnica de

contenção do poder189. Como afirma Gustavo Binenbojm:

As democracias constitucionais vivem, entretanto, sob o influxo de uma tensão permanente e visceral, gerada pela lógica de suas próprias regras básicas de funcionamento. É que assim

187

“É certo que cabe ao Tribunal vigiar a produção do direito em conformidade com os pressupostos normativos do processo democrático. Todavia, não se pode negar seu papel na estrutura do Estado Democrático de Direito. Pois cabe à jurisdição constitucional a tarefa de preservar a relação existente entre o programa normativo (interpretação constitucional) e o âmbito normativo (realidade constitucional). Por essa razão, quando a Corte Constitucional abre-se à práxis argumentativa, faz a ligação necessária entre a interpretação constitucional e a realidade constitucional, sem, contudo, afastar-se da responsabilidade de ‘dar a última palavra’. Esse vínculo entre o programa normativo e o âmbito normativo apresenta, inclusive, similaridades com o discurso de fundamentação e aplicação proposto por Klaus Günhter e abraçado por Habermas” (Botelho, Marcos César. A legitimidade da jurisdição constitucional no pensamento de Jürgen Habermas, p. 217-218). 188

“Se o princípio fundante da democracia é a igualdade e a autonomia de todos, qualquer mecanismo que suspenda uma decisão decorrente do processo de deliberação majoritária será, a priori, inaceitável” (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 56). 189

“Esta é a contradição original do constitucionalismo americano: um governo por consentimento da maioria, em que, no entanto, a minoria deve ser protegida com base na Constituição” (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça, p. 71).

109

como o ideal democrático se funda na noção de soberania popular, fonte última do poder político, a ideia essencial que

permeia o constitucionalismo é a de limitação de poder.190

A questão da objeção contramajoritária, já ínsita à própria ideia do

constitucionalismo (em especial no que tange às Constituições dos Estados

Sociais, pelas razões já apontadas), se agrava em relação às chamadas

cláusulas pétreas, ou seja, ao núcleo duro, imodificável, do texto constitucional.

São dispositivos constitucionais que regularão a vida em sociedade de sucessivas

gerações, sem que estas tenham o direito de alterar esse núcleo essencial da

Constituição, ainda que os valores da sociedade se transformem tão radicalmente

que o texto constitucional acabe por se revelar desatualizado191. O problema é

especialmente complexo em realidades como a brasileira, cuja Constituição, ao

mesmo tempo em que eleva os direitos fundamentais à condição de cláusulas

pétreas (art. 60, § 4º, inciso IV), elenca um extenso rol desses direitos

(principalmente, mas não apenas, em seu art. 5º). A prolixidade, sabe-se, é

inimiga da perenidade do texto constitucional. O excessivo detalhamento acelera

a desatualização do texto em face da realidade. Nesse sentido, a completa

impossibilidade de alteração das cláusulas pétreas representa, no mínimo, um

sério perigo para a democracia, na medida em que tais cláusulas retirarão

parcialmente o direito das futuras gerações de autorregularem a vida em

sociedade.

Fugiria ao escopo do presente trabalho aprofundar as teorias

desenvolvidas para a superação desse paradoxo, das quais podemos mencionar

as de John Hawls192 e John Hart Ely193, dentre inúmeras outras. Oscar Vilhena

Vieira, em posição similar à de Luís Roberto Barroso sobre o tema, afirma que “se

as limitações materiais ao poder de reforma derem proteção especial a direitos,

princípios e instituições que além de essenciais à formação de uma vontade

190

BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira. Legitimidade democrática e instrumentos de realização, p. 2. 191

O que tornaria necessário, em situações extremas, a ruptura com a ordem constitucional, e a invocação do Poder Constituinte Originário para a criação de uma nova Constituição. 192

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 193

ELY, John Hart. Democracy and Distrut. Cambridge: Harvard University Press, 1980.

110

democrática constituam uma verdadeira reserva de justiça constitucional, não se

colocarão como uma afronta à democracia”194.

Assim, para Vieira, o Judiciário, ao interpretar as cláusulas pétreas, deverá

aceitar a ideia de constituição como reserva de justiça, ou seja, como “ponto de

encontro entre a moralidade política e o direito positivo”195. Desse modo, “ao

impedir a abolição ou erosão dos princípios fundantes da ordem constitucional,

entendida como reserva de justiça, e de seus elementos habilitadores da

perpetuação do processo político democrático, a corte estará, paradoxalmente,

favorecendo a democracia”196:

Interpretadas adequadamente, as cláusulas super-constitucionais não constituirão um obstáculo à democracia, mas servirão como um instrumento que, num momento de reformulação da ordem constitucional, permitirão a continuidade do sistema político, habilitando cada geração a escolher seu próprio destino, sem, no entanto, estar constitucionalmente

autorizada a furtar esse mesmo direito às gerações futuras.197

Portanto, seja sob a ótica da proteção dos direitos fundamentais, seja a

partir da ideia da reserva de justiça constitucional, a atuação dos tribunais

constitucionais não implicará qualquer violação ao princípio democrático. Ao

contrário, será, como procuramos demonstrar, uma ferramenta para o seu

fortalecimento.

4.2 Espécies de tribunais constitucionais

Em relação aos modelos de justiça constitucional, ou seja, de órgãos

responsáveis pela preservação da integridade constitucional de ordenamentos

jurídicos nacionais, podem-se apontar, a partir das matrizes de controle de

constitucionalidade, dois sistemas-padrão de controle repressivo de

constitucionalidade, identificados pela doutrina como sistema norte-americano e

sistema austríaco (ou europeu), e de um sistema de controle preventivo de

constitucionalidade, tradicionalmente identificado com o sistema francês (embora 194

VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça, in Lua Nova – Revista de Cultura e Política nº 42-97, p. 61. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0102-644519970003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10.09.2015. 195

VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça, p. 90. 196

Idem, p. 92. 197

Idem, p. 97.

111

essa identificação esteja desatualizada)198. Assim, a despeito das inúmeras

variantes que se desenvolvem a partir desses sistemas, são três os modelos

fundamentais de justiça constitucional: o modelo norte-americano, o modelo

austríaco e o modelo francês199.

No âmbito do controle repressivo, doutrinariamente o sistema norte-

americano corresponde ao que se denomina controle difuso e o sistema

austríaco, ao chamado controle concentrado. Como afirma Gilmar Ferreira

Mendes, “essas concepções aparentemente excludentes acabaram por ensejar o

surgimento dos modelos mistos, com combinações de elementos dos dois

sistemas básicos (v.g., o sistema brasileiro e o sistema português)”200:

O controle concentrado de constitucionalidade (austríaco ou europeu) defere a atribuição para o julgamento das questões constitucionais a um órgão jurisdicional superior ou a uma Corte Constitucional. O controle de constitucionalidade concentrado tem ampla variedade de organização, podendo a própria Corte Constitucional ser composta por membros vitalícios ou por membros detentores de mandato, em geral, com prazo bastante

alargado.201

O Supremo Tribunal Federal, que, no Brasil, exerce a função de tribunal

constitucional, atua por meio de um sistema repressivo misto de controle de

constitucionalidade, que congrega características dos sistemas norte-americano e

austríaco.

Embora não seja o objetivo do presente trabalho traçar uma análise

aprofundada desses modelos, entendemos ser relevante, para o estudo da

interpretação constitucional na atual quadra do neoconstitucionalismo/

transconstitucionalismo, expor sinteticamente suas características principais.

198

Conforme se verá, na atualidade é equivocada a dicotomia entre um controle repressivo de constitucionalidade, subdividido entre sistema austríaco e norte-americano, e um controle preventivo de constitucionalidade, que corresponderia ao sistema francês, na medida em que a legislação francesa, nos últimos anos, tem criado mecanismos de controle repressivo de constitucionalidade. Contudo, uma vez que considerável parte da doutrina ainda admite dogmaticamente esses três sistemas, será empregada a terminologia tradicionalmente usada nessa classificação, destacando-se oportunamente, no entanto, a imprecisão da identificação do sistema francês com um controle puramente preventivo, ideia esta que, como afirmado, não mais corresponde à realidade. 199

Classificação adotada, dentre diversos outros autores, por Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, p. 320). 200

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1008. 201

Idem, p. 1008.

112

4.2.1 O modelo norte-americano

Os Estados Unidos foram o país pioneiro na concepção de uma

Constituição rígida e escrita, pressuposto para a existência de um sistema de

controle de constitucionalidade. Com efeito, a Constituição norte-americana de

1787 é considerada a primeira constituição escrita da história, no sentido moderno

com que esse termo é empregado.

Em 1787, quando da promulgação da Constituição norte-americana, seu

art. III já previu, em sua seção 1, a existência de uma Suprema Corte, como

cúpula do Poder Judiciário do país que então nascia.

A origem anglo-saxã do direito norte-americano, fundado na common law,

levou à elaboração de uma constituição sintética (razão maior de sua

durabilidade). O controle de constitucionalidade exercido pela Suprema Corte, de

natureza repressiva, não tem seus termos positivados no texto constitucional. Ao

contrário, foi construído por meio da jurisprudência daquela Corte, a partir da qual

se elaborou a doutrina da judicial review, segundo a qual os atos dos Poderes

Legislativo e Executivo estão sujeitos à revisão por parte do Poder Judiciário.

A doutrina, de forma praticamente uníssona, identifica o voto do Chief

Justice John Marshall no julgamento do caso Marbury x Madison, em 1803, como

o momento inaugural da judicial review. Segundo Marshall,

Assim, se uma lei está em oposição com a Constituição; se aplicadas ambas a um caso particular, o tribunal se vê na contingência de decidir a questão em conformidade com a lei, desrespeitando a Constituição, ou consoante a Constituição, desrespeitando a lei; o tribunal deverá determinar qual destas regras em conflito regerá o caso. Esta é a verdadeira essência da função judicial.

Se, pois, os tribunais têm por missão atender à Constituição e observá-la e se a Constituição é superior a qualquer resolução ordinária da legislatura, a Constituição, e nunca essa resolução ordinária, governará o caso a que ambas se

aplicam.202

202

“So if the Law be in opposition to the constitution; if both the law and the constitution apply to a particular case, so that the court must either decide that case conformably to the law, disregardingthe constitution; or conformably to the constitution, disregarding the law; the court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty. If, then, the courts are to regard the constitution, and the constitution is superior to any ordinary act of the legislature, the constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply” (apud SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos – principais decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 35-36).

113

Em que pese essa quase unanimidade acerca da origem da judicial

review203, Elival da Silva Ramos observa que

Não parece haver dúvida, de toda sorte, que anteriormente a 1803 (ano em que foi julgado Marbury v. Madison), a Suprema Corte já houvera declarado inconstitucional legislação estadual, registrando-se enunciações precedentes do judicial review, outrossim, no âmbito das cortes estaduais e das cortes federais inferiores, em relação a leis estaduais e federais reputadas contrárias a normas constitucionais estaduais ou federais. Não obstante a jurisprudência das cortes estadunidenses em relação ao princípio do judicial review possa ter-se iniciado anteriormente ao caso Marbury v. Madison, o certo é que, quer pela amplitude e consistência da fundamentação apresentada pelo Chief Justice Marshall, quer pela repercussão alcançada, esse deve ser considerado o leading case do controle de

constitucionalidade das leis nos Estados Unidos da América.204

O modelo norte-americano é marcado pelo controle difuso e concreto da

constitucionalidade das leis e atos normativos. O voto de Marshall é explícito no

sentido de que cabe aos tribunais (e não apenas à Suprema Corte) esse controle,

adotando, por conseguinte, “a difusão da atividade de fiscalização de

constituionalidade por todo o aparato judiciário”205.

Trata-se, ainda, de um controle concreto, na medida em que o modelo

norte-americano não admite a análise em abstrato, ou em tese, com efeito erga

omnes, de lei ou ato normativo em face da Constituição. O direito estadunidense

não prevê uma ação originária (como a ação direta de inconstitucionalidade ou a

ação declaratória de constitucionalidade, existentes no direito brasileiro) por meio

da qual se faria o controle abstrato da constitucionalidade de dispositivos

infraconstitucionais206.

203

“É deste período a maior contribuição americana ao direito constitucional: o princípio da supremacia do Judiciário ou o poder jurisdicional de controle de constitucionalidade das leis. Coube a Marshall firmá-lo de maneira duradoura no famoso caso Marbury vs Madison, objeto de copiosa bibliografia” (RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional americano. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 35). 204

RAMOS, Elival da Silva. Controle de constitucionalidade no Brasil e perspectivas de evolução. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 105. 205

“Enquanto sistema jurisdicional de controle, o sistema de padrão estadunidense adota a difusão da atividade de fiscalização de constitucionalidade por todo o aparato judiciário, ou seja, qualquer juiz ou tribunal, estadual ou federal, respeitadas as regras de distribuição de competência, pode exercê-la. A razão de ser da difusão do controle de constitucionalidade americano está intimamente relacionada à maneira liberal de enxergar a questão da inconstitucionalidade, reduzida a um simples problema técnico-jurídico de conflito de normas” (RAMOS, Elival da Silva. Ob. cit., p. 115) 206

“Sob o aspecto modal ou instrumental, no sistema-tipo de padrão estadunidense a questão de constitucionalidade é suscitada da maneira mais natural possível, que não abra o flanco para impugnações que coloquem em dúvida o exercício de função jurisdicional típica. Assim é que, nesse sistema de controle,

114

Contudo, a mencionada inexistência de efeitos erga omnes não retira a

força das decisões proferidas em sede de controle (concreto) de

constitucionalidade do Judiciário estadunidense, notadamente da Suprema Corte,

tendo em vista que, no sistema da common law, o precedente jurisprudencial

constitui uma das principais fontes do direito. A chamada regra do stare decisis,

ou regra da força do precedente, inerente à própria tradição do common law,

confere, assim, mesmo no controle difuso e concreto (cujos efeitos da decisão

são, ao menos em tese, inter partes), relevância não encontrada em situações

similares ocorridas no sistema da civil law.

4.2.2 O modelo austríaco

Contrariamente ao modelo norte-americano de controle de

constitucionalidade, cujo surgimento, como visto, deu-se pela jurisprudência da

Suprema Corte, com o leading case Marbury v. Madison de 1803 (decisão na

qual, especialmente a partir do voto do Chief Justice Marshal, se delinearam as

características de um controle difuso e concreto de constitucionalidade), o modelo

austríaco, também chamado de europeu, surgiu a partir da criação de um Tribunal

Constitucional, pela Constituição austríaca de 1920, amparada precipuamente na

doutrina de Hans Kelsen.

Portanto, até o início do século XX, a concepção de um controle de

constitucionalidade das leis por parte do Judiciário era estranha aos países

europeus, dada a ideia culturalmente consolidada de supremacia do Parlamento,

que inviabilizava a assimilação de qualquer sistema de controle com

características similares ao judicial review.

Foi Kelsen quem concebeu um Tribunal Constitucional incumbido

primordialmente (e, ao contrário do que ocorre no controle difuso, exclusivamente

– tratando-se, pois, de um controle concentrado da constitucionalidade) da

proteção das normas constitucionais, por meio do controle abstrato da

o poder judiciário ‘não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento’; nenhum juiz ou tribunal ‘se manifestará sobre a validade de uma lei, senão quando isso for absolutamente necessário para a decisão do caso concreto’; ‘o exame sobre a inconstitucionalidade representa questão prejudicial, e não a questão principal debatida na causa’, e, por isso, ‘o juiz não a decide principaliter, mas incidenter tantum, pois ela não figura nunca como objeto do processo e dispositivo da sentença’” (RAMOS, Elival da Silva. Ob. cit., p. 116).

115

constitucionalidade das leis e atos normativos infraconstitucionais. Mais do que

conceber teoricamente o Tribunal Constitucional, Kelsen colaborou com a

redação da Constituição da Áustria, participando assim da criação desse tribunal,

pensado como único órgão competente para exercer o controle de

constitucionalidade dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo (um controle,

portanto, concentrado nesse Tribunal). Como esclarece Elival da Silva Ramos,

O sistema de controle de constitucionalidade europeu, idealizado por Kelsen e encarnado nas disposições pertinentes da Constituição austríaca de 1920, importou na superação da supremacia do Parlamento pelo princípio da supremacia da Constituição; mas, em atenção às peculiaridades histórico-ideológicas do Velho Continente, não se admitiu que os juízes e tribunais ordinários pudessem manejar o poder de fiscalização, atribuído a um tribunal especial, situado fora do Poder Judiciário e devotado, primacialmente, à função de guardião da Constituição.

Essa a razão mais profunda da proposta kelseniana de concentração de controle de constitucionalidade em um único tribunal, a Corte Constitucional, muito embora não tivesse escapado à percepção do fundador da Escola de Viena a profunda diferença que existe, em termos de segurança jurídica e coerência das decisões, entre o controle difuso estadunidense, estruturado em consonância com o princípio do stare decisis, e o controle difuso eventualmente praticado em um país de civil law, em que a jurisprudência, mesmo dos tribunais superiores, não possui, em

regra, força vinculante.207

Ao contrário do que ocorre no controle concreto de constitucionalidade,

cujos efeitos, em princípio, não extrapolam o estatuto jurídico das partes

processuais (o efeito da decisão se dá inter partes), no controle abstrato,

justamente por atingir o dispositivo cuja constitucionalidade se questiona em sua

essência, como objeto (e não incidente) da decisão, os efeitos da decisão são

erga omnes. Na concepção kelseniana, “se se decide confiar esse controle a uma

autoridade única, torna-se possível abandonar a limitação da anulação ao caso

concreto e adotar o sistema da anulação total, isto é, para todos os casos em que

a norma deveria ter sido aplicada”208. A ideia subjacente à criação do Tribunal

Constitucional, portanto, não é a solução de casos concretos, e sim o saneamento

do ordenamento jurídico com a retirada de lei ou ato normativo incompatível com

a constituição.

207

RAMOS, Elival da Silva. Controle de constitucionalidade no Brasil e perspectivas de evolução, p. 145-146. 208

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional, p. 144.

116

Fundamental é, pois, para Kelsen, a concentração da jurisdição

constitucional em um único órgão, pois, como o jurista austríaco já havia afirmado

em sua Teoria Pura, “se a Constituição conferisse a toda e qualquer pessoa

competência para decidir esta questão, dificilmente poderia surgir uma lei que

vinculasse os súditos do Direito e os órgãos jurídicos. Devendo evitar-se uma tal

situação, a Constituição apenas pode conferir competência para tal a um

determinado órgão jurídico”209.

A partir de 1975, a legislação austríaca passou a admitir a interposição de

um recurso constitucional dirigido diretamente ao Tribunal Constitucional por

particulares, a quem foi conferida, portanto, a prerrogativa de recorrer ao Tribunal

para questionar a constitucionalidade de atos normativos que violem direitos

individuais. Ainda assim, observa Paulo Bonavides, “a doutrina austríaca dos

idealizadores do controle de constitucionalidade permanece viva. Tem, como há

sessenta anos, expositores lúcidos cuja lição é a mesma de Kelsen e do texto

constitucional onde positivou ele sua compreensão da matéria”210

4.2.3 O modelo francês

Os modelos norte-americano e austríaco (ou europeu) de controle de

constitucionalidade, a par de suas significativas diferenças, têm em comum o fato

de incidirem sobre dispositivos normativos já vigentes, vale dizer, presentes e

atuantes no bojo dos ordenamentos jurídicos aos quais pertencem. Trata-se,

portanto, nos dois casos, de um controle repressivo de constitucionalidade.

O modelo francês, por seu turno, em sua concepção clássica ou tradicional,

consubstancia um controle prévio ao efetivo ingresso da lei ou ato normativo na

ordem jurídica, razão pela qual a doutrina o denomina controle preventivo ou, na

expressão usada por Jorge Miranda, “modelo de fiscalização política”211, porque

levada a cabo por órgão que não integra o Poder Judiciário.

209

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 288. 210

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 301. 211

Jorge Miranda faz referência ao “modelo de fiscalização política, que, algo impropriamente, pode denominar-se francês (por remontar à ‘juria constitucional’ de Sieyès e ao Senado Conservador napoleónico e hoje se traduzir no Conselho Constitucional da Constituição de 1958 e que pode também entender-se ser o que prevalece, de harmonia com uma concepção jurídica diversa, nas Constituições marxistas-leninistas, excepto na Jugoslávia) – ou de fiscalização por órgão político, ainda quando adopta processo

117

A desconfiança da sociedade francesa em relação ao Judiciário, cujos

membros tradicionalmente se opunham a reformas administrativas da monarquia,

e a crença na lei como manifestação da vontade popular, oriunda da Revolução

Francesa de 1789, no seio da qual grassavam as ideias de Rousseau (relativas à

supremacia da lei e, por conseguinte, do Parlamento) e Montesquieu (em especial

no que tange à separação de poderes e ao juiz “boca da lei”), explicam a histórica

hostilidade da doutrina francesa à ideia do controle de constitucionalidade. O

reconhecimento da lei como expressão máxima da soberania popular – e, por

conseguinte, da vontade do povo soberano – levava à conclusão de que a

inconstitucionalidade era uma impossibilidade.

Diante desse quadro, informa Elival da Silva Ramos, “o princípio da

supremacia do Parlamento, viga-mestra do edifício do Estado de Direito (État

legal) francês, somente passou a ser questionado com a instituição do Conselho

Constitucional, ex vi da Constituição de 1958”212.

O Conselho Constitucional, na qualidade de órgão administrativo, não

pertencente ao Poder Judiciário, analisa previamente a constitucionalidade de um

projeto de lei antes de sua definitiva transformação em lei, vale dizer, antes de

seu ingresso efetivo no ordenamento jurídico. Essa função de controle do

Parlamento, originalmente atribuída ao Conselho pela Constituição de 1958, por si

só já consubstanciou a superação da já apontada resistência histórica a qualquer

espécie de questionamento da lei. Como esclarece Ramos, a missão do Conselho

Constitucional “era a de fazer cumprir a Constituição, mas, particularmente, no

que toca à partilha de competências normativas, de modo a conter o Parlamento,

outrora um Poder incontrolável, no campo material que lhe fora assinalado. O

constitucionalismo francês experimentou, por conseguinte, uma autêntica

inversão de sinais em relação ao Parlamento, que, de intérprete maior da vontade

nacional, passou a ser visto como a principal ameaça ao modelo de distribuição

de competências normativas vinculadas diretamente à Constituição”213.

Embora a doutrina ainda faça a divisão entre controle preventivo e

repressivo nos termos aqui expostos, há que se reconhecer que a ampliação de

jurisdicionalizado, e fiscalização necessariamente concentrada, seja preventiva ou a posteriori” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editores, 2008, p. 320-322). 212

RAMOS, Elival da Silva. Controle de constitucionalidade no Brasil e perspectivas de evolução, p. 129. 213

Idem, p. 130.

118

atribuições do Conselho Constitucional não mais permite que essa classificação

dicotômica, embora tradicional, seja acolhida de forma absoluta e sem restrições.

Nesse sentido, a lei de revisão constitucional “de modernisation des

institutions de la Vème Republique” nº 2008-724, promulgada em 23 de julho de

2008, tornou possível o controle repressivo de constitucionalidade pelo Conselho

Constitucional, a partir do uso da exception d’inconstitucionnalité. Nesse sentido,

esclarece Inocêncio Mártires Coelho:

Fruto, talvez, dessa autoafirmação do Conselho Constitucional francês, a partir de março de 2010, por força da Lei Constitucional n. 2008-274, de 23/7/08, autodeclarada modernização das instituições da Quinta República, e da Lei Orgânica n. 2009-1.523, de 10/12/09, que regulamenta essa alteração constitucional, o controle de constitucionalidade na França – antes apenas preventivo, limitado, tímido e, quando suscitado, compreendido como fase do processo legislativo ou meio de modo de aperfeiçoar as leis – agora passa a ser também repressivo e de maior espectro, deixando para trás um modelo que o doutro Cappelletti dizia ser decidamente “rudimentar” à luz de

uma pesquisa comparativa.214

Nos termos da mencionada legislação, a declaração de

inconstitucionalidade, pelo Conselho Constitucional, de qualquer dispositivo legal

(seja por provocação do Conselho de Estado ou da Corte de Cassação), levará à

sua retirada do ordenamento jurídico, com efeito erga omnes, embora não

retroativos (ex nunc), e com efeito vinculante para as demais autoridades

administrativas e judiciárias.

Em suma, a despeito da doutrinária classificação dicotômica entre sistemas

repressivo e preventivo de controle de constitucionalidade, o Conselho

Constitucional francês, a despeito de sua tradicional inserção dogmática nessa

segunda categoria, há de ser entendido, na atualidade, como um sistema misto,

que congrega os controles repressivo e preventivo. Por essa razão, Vital Moreira

afirma que “o Conselho Constitucional (...) parece evoluir seguramente no sentido

de se transformar num verdadeiro tribunal constitucional”215.

214

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 33. 215

“Mesmo na França, o país mais tradicionalmente avesso ao controlo jurisdicional de constitucionalidade das leis, o Conselho Constitucional, originariamente criado para impedir o parlamento de invadir a esfera de poder regulamentar autónomo reconhecido ao Governo pela Constituição de 1958, parece evoluir seguramente no sentido de se transformar num verdadeiro tribunal constitucional, ao mesmo tempo que surgem propostas doutrinais de alargar aos tribunais comuns esses poder” (MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites a partir da justiça constitucional”, p. 1,

119

Também o modelo brasileiro, nesse sentido, é misto, embora em termos

distintos do modelo francês, como demonstrado a seguir.

4.3 O Supremo Tribunal Federal

O modelo brasileiro de justiça constitucional congrega características dos

modelos norte-americano e austríaco, sendo, por isso, considerado um modelo

misto, não por conter elementos de controle preventivo e repressivo (como ocorre

no modelo fracês atual)216, e sim por ser responsável tanto pelo controle abstrato

de normas, à moda do Tribunal Constitucional austríaco, quanto pela palavra final

no controle concreto, funcionando como instância recursal a ser acessada por

meio de recurso extraordinário.

Essa natureza mista do Supremo Tribunal Federal resulta num modelo

complexo e problemático, uma vez que, ao lado da relevantíssima função de

tribunal constitucional, responsável pelo julgamento dos processos objetivos de

controle abstrato de constitucionalidade (ADI’s, ADC’s, ADPF’s etc.), o STF

assume o papel de terceira instância recursal, razão pela qual processos de

pouca ou nenhuma relevância acabam por resultar em incontáveis recursos

extraordinários cuja análise consome tempo e recursos materiais e humanos.

Embora a estrutura do Supremo Tribunal Federal tenha se inspirado na

Suprema Corte norte-americana, as diferenças históricas e culturais entre os dois

acesso a partir de: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030212.html?impressao=1> Acesso em 04.10.2015. 216

No Brasil, o controle preventivo de constitucionalidade é realizado não pelo Poder Judiciário, e sim pelos Poderes Legislativo e Executivo, durante o trâmite dos processos legislativos. Assim, as casas do Parlamento (Câmara dos Deputados e Senado Federal) possuem suas respectivas Comissões de Constituição e Justiça, responsáveis por analisar a conformidade dos projetos de lei com a Constituição antes que sejam levados a plenário para debates. O Presidente da República, por sua vez, tem, ao final da chamada fase constitutiva do processo legislativo, a prerrogativa (dir-se-ia mesmo o dever) de vetar o projeto de lei já aprovado pelas duas casas, se verificar a inconstitucionalidade de algum dispositivo ou da própria lei como um todo. De qualquer modo, o Poder Judiciário não participa desse controle preventivo, salvo na excepcional hipótese de julgamento de mandado de segurança impetrado por parlamentar visando a observância do devido processo legislativo, conforme farta jurisprudência do STF ("O STF admite a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo. Precedentes do STF: MS 20.257/DF, min. Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, min. Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/DF, Min. Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, min. Celso de Mello, DJ de 15-9-2003; MS 24.593/DF, min. Maurício Corrêa, DJ de 8-8-2003; MS 24.576/DF, min. Ellen Gracie,DJ de 12-9-2003; MS 24.356/DF, min. Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003." (MS 24.667-AgR, rel. min. Carlos Velloso, julgamento em 4-12-2003, Plenário, DJ de 23-4-2004.) No mesmo sentido: MS 32.033, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, julgamento em 20-6-2013, Plenário, DJE de 18-2-2014).

120

países fazem com que a atuação do STF se afaste bastante do modelo que o

inspirou, mesmo no caso do controle concreto de constitucionalidade.

A Suprema Corte estadunidense recebe anualmente cerca de dez mil

petições, mas julga, em média, de 75 a 80 processos por ano217. No ano de 2014,

o STF proferiu 114.437 decisões, das quais 92.578 foram decisões finais218.

Mesmo que se levem em considerações as mencionadas diferenças históricas e

culturais, a disparidade entre as duas cortes é espantosa. Vale lembrar que o

número de ministros do STF (onze) é ligeiramente superior ao de juízes da

Suprema Corte (nove)219.

Evidentemente, o julgamento de quase 115 mil processos no período de

um ano, por um colegiado de 11 magistrados, revela a inadequação do modelo de

justiça constitucional adotado no Brasil.

Grande parte do problema decorre do fato de que o sistema brasileiro,

embora (inicialmente) inspirado no norte-americano, não “importou”, por assim

dizer, juntamente com o modelo estadunidense de justiça constitucional, a técnica

do stare decisis, ou seja, da força do precedente jurisprudencial, fundamental

para o sucesso do modelo decisório adotado pela Suprema Corte. Sem dúvida, a

ideia da força dos precedentes judiciais é mais facilmente assimilável em países

que, como os Estados Unidos, adotam o sistema da common law, do que nos

país cuja tradição remonta ao direito romano, que são, por tal circunstância, mais

apegados ao direito positivado.

A Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe duas inovações que, se não

solucionam, ao menos amenizam a peculiar situação do controle concreto de

constitucionalidade brasileiro: o instituto processual da repercussão geral (§ 3º do

art. 102 da Constituição220) e a figura da súmula vinculante (art. 103-A da

Constituição221). Tais instrumentos, embora não constituam uma panaceia para

217

Como informa o site da Suprema Corte, “The Court receives approximately 10,000 petitions for a writ of certiorari each year. The Court grants and hears oral argument in about 75-80 cases” (disponível em: <http://www.supremecourt.gov/faq.aspx#faqgi9> Acesso em 20.10.2015). 218

Conforme <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=decisoesgeral> Acesso em 20.10.2015. 219

Atualmente, o site da Suprema Corte norte-americana apresenta em sua composição 12 juízes (disponível em: <http://www.supremecourt.gov/about/biographies.aspx> Acesso em 20.10.2015). 220

“§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.” 221

“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a

121

todos os problemas gerados pela peculiar estrutura do STF, indiscutivelmente

podem atenuar a enxurrada de processos repetitivos e não raro irrelevantes que

chegam ao Supremo.

Impende notar que o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro

não apresenta estrutura mista desde seus primórdios. Com efeito, a cumulação

de competências típicas tanto do sistema estadunidense quanto do sistema

austríaco não se configura desde a origem do STF. Ao contrário, consolidou-se ao

longo do tempo. Historicamente, o Supremo Tribunal Federal adotou, num

primeiro momento, modelo similar ao norte-americano (embora com

singularidades próprias), sendo necessário o transcurso de mais de um século e

meio até que assimilasse características do modelo austríaco. Nem poderia ser

de outro modo, já que a existência do STF precede a própria criação do controle

abstrato de constitucionalidade.

Embora o Brasil contasse com um Tribunal voltado à uniformização da

jurisprudência nacional desde 1808 – a Casa de Suplicação do Brasil, criada com

a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil –, o Supremo Tribunal Federal somente

foi instituído em 11 de outubro de 1890, pelo Decreto nº 848, sofrendo forte

influência das Cortes europeias. Por ocasião de sua criação, a influência norte-

americana no direito brasileiro ainda era incipiente, como anota Álvaro Ricardo de

Souza Cruz222:

O positivisimo de Augusto Comte, a influência do pensamento político de Benjamim Constant e o Código Civil Napoleônico também marcaram profundamente o modo de pensar do jurista brasileiro, fazendo-se presente como corrente majoritária no início do séc. XX.

Assim, a influência norte-americana e de sua Suprema Corte eram extremamente limitadas.

Rui Barbosa era uma exceção notória nesse quadro de ignorância do Direito americano. (...)

Parece mais razoável a perspectiva de Baleeiro (1968), pela qual a influência do gênio de Barbosa somou-se à pressão positivista do Exército, desejoso de uma instituição capaz de colocar freios aos excessos do Legislativo (...)

Acredita-se que os homens do Governo Provisório tinham modelado o Supremo Tribunal Federal à imagem da Suprema

partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” 222

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Breve histórico do Supremo Tribunal Federal e do controle de constitucionalidade brasileiro, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição, Del Rey, Belo Horizonte, 2004, p. 201-268.

122

Corte americana muito mais como um instrumento de conservação do regime e de controle dos atos do Parlamento. Isso se explica porque as idéias republicanas eram concepções muito minoritárias naquele período.

(...) O Supremo Tribunal Federal foi concebido como

instituição que deveria garantir a Constituição – leia-se República, mesmo contra eventuais maiorias parlamentares que apoiassem o retorno da Monarquia.

Constata-se, assim, que o objetivo primordial da criação do STF – a

preservação da República223 – atendia antes a um interesse dos então detentores

do Poder, do que à função de garantia dos cidadãos contra os arbítrios estatais

ou de proteção do texto constitucional. Tanto que Cruz admite que “o Supremo

nascera como óbice a um contragolpe monárquico”224, embora reconheça, logo a

seguir, que:

Todavia, se de um lado o Supremo Tribunal Federal exerceu um papel consolidador da forma republicana de governo, certamente também desempenhou na época notável papel de guardião dos direitos fundamentais, vindo a contrariar por

diversas vezes o Poder Executivo.225

Portanto, já se vislumbra, desde a criação do STF, uma função de guardião

da Constituição, embora à época tal função fosse marcada pela timidez e por um

forte apego ao positivismo – o que, sem dúvida, limitava sua atividade

interpretativa.

O STF manteve-se em funcionamento durante toda a ditadura de Getúlio

Vargas, embora a Carta de 1937 tenha implicado uma notável diminuição de seus

poderes, mormente no que tange ao controle de constitucionalidade, já que a

decisão proferida pelo Supremo poderia ficar sem efeito por decisão do

Congresso Nacional. A dissolução do Congresso fez com que tal competência

ficasse nas mãos do próprio Vargas.

Esse período é marcado por momentos de completa submissão do STF

aos ditames do Executivo, ainda que frente a graves violações de direitos

fundamentais. O exemplo mais notório e citado pela doutrina é o do Habeas

Corpus nº 26.155, tendo por paciente Maria Prestes (também conhecida como

223

“A Proclamação da República em 1889 foi decisiva para a introdução do controle de constitucionalidade no Brasil” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 54). 224

Idem, p. 211. 225

Idem, p. 212.

123

Olga Benário), no qual os Ministros do Supremo, embora plenamente cientes de

que a não concessão do writ implicaria a morte da paciente sob o regime nazista,

deixaram de conhecer o pedido, sob o argumento de que “a mesma paciente é

estrangeira e sua permanência no país compromete a segurança nacional”, e de

que “em casos tais não há como invocar a garantia do habeas corpus”226.

A Constituição de 1946 devolveu ao controle de constitucionalidade o perfil

originalmente traçado pela Carta de 1934, o que, no entanto, não implicou uma

maior interferência do Supremo nas chamadas questões políticas. Exemplo disso

é o cancelamento do registro do Partido Comunista Brasileiro, em 1947, que

ensejou a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas no ano

seguinte, sendo sistematicamente indeferidos todos os habeas corpus interpostos

pelos parlamentares cassados na ocasião227.

O regime militar que se instaurou no país a partir do golpe de 1964 e

perdurou até a eleição de Tancredo Neves (dilatando-se, em termos

constitucionais, até a promulgação da Constituição de 1988) trouxe, além dos

“simulacros” constitucionais de 1967 e 1969, importantes alterações no regime do

controle de constitucionalidade brasileiro – como o controle abstrato de normas

estaduais e federais implantado pela Emenda Constitucional nº 16/65.

O aumento do número de Ministros do STF, de onze para dezesseis, por

meio do Ato Institucional nº 2, teve o nítido intento de fortalecer a influência do

governo militar sobre as decisões do Supremo, com a nomeação de cinco novos

Ministros indicados pelo novo governo (e, por conseguinte, com ideias, valores e

interesses com este harmonizados).

Novamente, é Álvaro Ricardo de Souza Cruz quem sintetiza o quadro que

então se apresentava228:

A introdução da via direta de controle concentrado da constitucionalidade das leis traduzia apreço da ‘Revolução’ para com o Supremo Tribunal Federal.

226

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC26155.pdf>, acesso em 15.12.2014. 227

Ver, nesse sentido, o habeas corpus nº 29.736 e o Recurso Extraordinário nº 12.369 – disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagina=principalStf, acesso em 15.12.2014. 228

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Breve histórico do Supremo Tribunal Federal e do controle de constitucionalidade brasileiro, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição, p. 231-232.

124

No entanto, tal não se afigura assim, muito pelo contrário. O regime militar, pelo AI-2, acabara de impor a suspensão das garantias constitucionais da magistratura relativas à inamovibilidade, vitaliciedade e estabilidade, bem como majorava o número de Ministros do Tribunal. Ademais, consignara como único legitimado à propositura da representação de inconstitucionalidade o Procurador-Geral da República que, à época, nada mais era que elemento institucional da ditadura.

Quatro meses depois, em 5 de fevereiro de 1966, a ditadura editou o Ato Institucional n. 3, que excluía da apreciação qualquer ato praticado com fundamento nos Atos Institucionais e Complementares da ‘Revolução’ (art. 6º), dando, então, a real dimensão do controle da constitucionalidade das leis naquele período.

(...) O Supremo não reagiu. Ao contrário, acatou a imposição

da ditadura, respeitando as normas do AI-3, sem discutir sua legitimidade, chegando mesmo a reconhecer a superioridade hierárquica dos atos institucionais no Ordenamento Jurídico nacional.

A conclusão a que o autor chega, especialmente no tocante ao controle de

constitucionalidade, é de imensa relevância para o objeto do presente estudo,

uma vez que evidencia um movimento nítido de afastamento da até então

tradicional postura de apego ao positivismo por parte do Supremo:

Tudo isso somado conduz à conclusão que também o controle abstrato de constitucionalidade das leis nasceu no Brasil sob o signo dos interesses governamentais, posto que o mesmo ocorrera em 1981, na via difusa, por receio de suporte parlamentar a qualquer movimentação dos monarquistas, ou seja, por detrás do discurso de fortalecimento do Supremo, o regime militar acrescia ao Ordenamento Jurídico um instrumento de repressão do Estado.

Todavia, não estava ainda o Supremo inteiramente subjugado.

No dia 10 de dezembro de 1968, já sob o manto da Carta de 1967, o Supremo viria a ordenar a liberdade de dezenas de estudantes ligados à UNE (União Nacional do Estudantes) que se manifestavam contra a arbitrariedade do governo.

A decisão praticamente desconsiderava o art. 150 daquele texto, que vedava a apreciação do Judiciário de crimes praticados contra a “Segurança Nacional”.

A “insubordinação do Supremo”, bem como a recusa do Congresso Nacional em processar o deputado Márcio Moreira Alves, somadas a um quadro de manifestações pacíficas ou não

(guerrilha), levaram ao recrudescimento máximo do regime.229

229

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Breve histórico do Supremo Tribunal Federal e do controle de constitucionalidade brasileiro, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição, p. 233-234.

125

Recrudescimento este que resultou no Ato Institucional nº 5, de 13 de

dezembro de 1968, de triste memória. O Ato Institucional nº 6, de 1º de setembro

de 1969, reduziria o número de Ministros do STF novamente para onze, por meio

da aposentadoria dos três Ministros mais resistentes à barbárie perpetrada pelos

militares (Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal), à qual se

seguiram as aposentadorias voluntárias de Antônio Carlos Lafayette de Andrade e

Antônio Gonçalves de Oliveira, em manifestação de repúdio à conduta dos

militares para com a Corte. Diante de tal quadro, assevera Álvaro Ricardo de

Souza Cruz que o “Supremo permaneceu como mero fantoche do regime militar,

praticamente até sua exaustão”230.

O histórico até aqui traçado evidencia momentos de maior ou menor

submissão do STF ao Executivo, momentos de louvável coragem e de

vergonhosa covardia, momentos, em suma, nos quais se verifica uma variação do

papel do STF enquanto guardião da Constituição.

Contudo, em todos esses momentos uma circunstância manteve-se

inalterada: quando presente o respeito à Constituição e às leis, este sempre se

deu de forma estrita, sem um alargamento hermenêutico que ultrapassasse o

chamado “direito posto”. Nesses momentos o STF, espelhando a cultura jurídica

de então, se pautou por um apego ao texto da lei (que não se confunde com

apego ao direito) por vezes excessivo.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 é o ponto de partida para

uma mudança – a princípio sutil, mas cada vez mais intensa – nessa mentalidade.

Com efeito, embora em termos formais a redemocratização do País não

tenha implicado alterações significativas na estrutura do Supremo Tribunal

Federal, é indiscutível que a promulgação da Carta de 1988 foi o primeiro passo

de um processo – ainda em andamento – de radical mudança da posição do STF

na sociedade.

A quadra atual é marcada não apenas pela imensa criatividade do STF na

aplicação do direito, notadamente a partir dos princípios constitucionais, como

também pela absorção, pelos tribunais constitucionais, de questões a princípio

estranhas ao direito.

230

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Breve histórico do Supremo Tribunal Federal e do controle de constitucionalidade brasileiro, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da Constituição, p. 235.

126

Assim, no já mencionado caso Ellwanger (Habeas Corpus nº 82.424),

coube ao STF determinar “juridicamente” o que é raça (como premissa da

controvérsia acerca da possibilidade de caracterização do antissemitismo como

crime de racismo); no julgamento da ADPF nº 54, em que se discutiu a

possibilidade jurídica da prática de aborto no caso de fetos anencéfalos, coube ao

Supremo a complexa tarefa de estabelecer um conceito de vida, sem o qual não

seria possível julgar a controvérsia levada a juízo.

Vida e raça são, pois, expressões cujos sentidos precisaram ser

determinados para a construção da norma de decisão nesses casos, o que

evidencia a já apontada reaproximação do direito com outros campos do

conhecimento humano (e demonstra com bastante clareza a inviabilidade da

pureza metodológica do direito em face desses outros campos, como pretendia o

positivismo kelseniano).

Esses dois exemplos – dentre inúmeros outros, em especial nos casos em

que há conflitos entre direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, os

chamados casos difíceis – revelam não só a reaproximação entre o direito e a

moral e o que se tem denominado politização do direito ou judicialização da

política, como também demonstram que, no reconhecimento daquilo que Oscar

Vilhena Vieira chamou de reserva de justiça, como premissa da concretização das

normas constitucionais, a atual atividade dos tribunais constitucionais exige o

emprego de novas técnicas decisórias, mais sofisticadas, criativas e complexas

do que o tradicional método subsuntivo.

Essas novas técnicas têm marcado a atuação não só do STF, mas de

vários tribunais constitucionais, consubstanciando verdadeiros instrumentos de

realização da vontade constitucional.

A existência de técnicas e modelos decisórios próprios dos tribunais

constitucionais, não empregados pela jurisdição ordinária, reforça a tese de que

há, efetivamente, uma interpretação autenticamente constitucional, na medida em

que apenas a ambiência constitucional e a estrutura peculiar (principiológica,

axiológica e carregada de uma dimensão política) de certas normas

constitucionais justificam o emprego dessas técnicas.

De fato, não se trata de uma escolha da jurisdição ordinária não fazer uso

dessas técnicas. Elas simplesmente não fariam sentido, não teriam utilidade, em

outro ambiente que não o da interpretação das normas constitucionais. Na

127

interpretação da legislação ordinária, a hermenêutica tradicional é suficiente para

a solução dos problemas jurídicos, o que não ocorre em relação às normas

constitucionais.

Nos capítulos seguintes, buscaremos demonstrar quais são as diferenças

fundamentais entre a interpretação jurídica geral e a interpretação jurídica

constitucional, evidenciando que, conquanto esta seja uma decorrência ou um

desenvolvimento daquela, tal desenvolvimento se reveste de tão profundas

particularidades que tornam a interpretação jurídica constitucional um método

hermenêutico próprio, autônomo em relação à interpretação jurídica geral.

128

5 A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA GERAL

As considerações até aqui expostas evidenciam que, à luz da atual

estrutura das constituições, principiológicas, axiológicas, programáticas, insertas

na ambiência de um neoconstitucionalismo pós-positivista, e diante da pluralidade

de ordens jurídicas, nacionais e transnacionais, incidentes sobre um mesmo

problema concreto – resultado da globalização e da internacionalização do direito

constitucional (ou constitucionalização do direito internacional), os tradicionais

métodos hermenêuticos são insuficientes para a solução das controvérsias

jurídicas, notadamente quando envolvem dispositivos constitucionais, princípios e

direitos fundamentais.

Em razão disso, vem se consolidando na doutrina a ideia da existência de

uma interpretação autenticamente constitucional, que denominanos, no presente

trabalho, interpretação jurídica constitucional, com características próprias e

metodologia distinta da interpretação jurídica geral, ou interpretação ordinária – a

interpretação do ordenamento jurídico infraconstitucional.

A mera afirmação da existência dessa espécie própria de interpretação, no

entanto, embora encontre acolhimento cada vez maior, não é pacífica na doutrina,

havendo mesmo quem não veja diferença significativa entre a interpretação

constitucional e a interpretação jurídica em geral.

Nesse tocante, Virgílio Afonso da Silva defende que “os difundidos

‘princípios de interpretação constitucional’ não desempenham papel relevante na

interpretação constitucional”, bem como que “alguns deles em nada se

diferenciam dos cânones tradicionais de interpretação”231, negando, pois, com tal

argumento, a existência de uma interpretação autenticamente constitucional232.

No mesmo sentido, Maria Lúcia Amaral contesta a existência de uma

interpretação constitucional, afirmando: “(...) o que é que pode haver de especial

no universo de interpretação da Constituição? Em bom rigor, de especial não há

231

SILVA, Vigílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico, in SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 121. 232

Não deixa de ser curioso que o autor defenda tal argumento numa obra por ele organizada e intitulada Interpretação constitucional.

129

nada. O que há é qualquer coisa que releva do domínio da intensidade e não do

domínio da especialidade”233.

Adotando entendimento diverso, com o qual concordamos parcialmente,

Paulo Ferreira da Cunha observa que o não reconhecimento de uma

especificidade na hermenêutica constitucional implicaria, em última análise, a

subordinação da Constituição ao direito infraconstitucional, na medida em que a

atribuição de sentidos às normas constitucionais decorreria de um “paradigma

interpretativo geral do direito (parado no tempo positivista-normativismo e não

porejado pela própria renovação hermenêutica exigida pelos novos

constitucionalistas)”:

Há autores para quem a Hermenêutica Constitucional parece ser um caso plácido e nada especial de uma clássica (melhor: tradicional e tradicionalista) interpretação jurídica geral. A plena assunção de um tal postulado levaria, logicamente, à submissão da Constituição à lei ou a outros fenómenos jurídicos sub ou infraconstitucionais. Porquanto, sendo a Constituição a sua interpretação, ao conceber-se a interpretação constitucional como algo de inespecífico – e, assim, subordinado a um paradigma interpretativo geral do direito (parado no tempo positivista-normativista e não porejado pela própria renovação hermenêutica exigida pelos novos constitucionalistas) – é a subordinação da Constituição ao direito infraconstitucional que se está a implicar. Pelo contrário, partilhamos a opinião dos que consideram que, ocupando a Constituição o topo da normatividade e da fenoménica do Direito, tal proeminência evidencia também centralidade, implicando assim a constitucionalidade de todo o Direito e obrigando quer à filtragem constitucional (em última análise, pelo controlo da constitucionalidade), quer à necessária conclusão de que não há hermenêutica jurídica que não implique hermenêutica constitucional. Invertendo-se, portanto, o pólo hermenêutico: do mesmo modo que o Código Civil perde a sua centralidade evidencia-se o “triunfo do direito constitucional”, na expressão de

Luís Roberto Barroso (...).234

Assim, como se vê, para Cunha, a existência de uma hermenêutica

puramente constitucional não apenas deixa de remeter a interpretação das

normas constitucionais aos cânones hermenêuticos tradicionais, o que, segundo o

autor, implicaria uma subordinação da constituição à ordem infraconstitucional

(ou, dito de outro modo, a uma interpretação da constituição segundo a lei), como

ainda, ao contrário, subordina a interpretação das normas infraconstitucionais aos

233

AMARAL, Maria Lúcia. A Forma da República. Uma Introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 112. 234

CUNHA, Paulo Ferreira da. Hermenêutica constitucional - entre Savigny e o neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 2-3.

130

parâmetros da própria interpretação constitucional. Desse modo, a atribuição de

sentido a uma norma infraconstitucional – a um dispositivo do Código Civil, por

exemplo – implicaria tanto o emprego dos elementos coligidos por Savigny quanto

um cotejo do aludido dispositivo com o conteúdo da Constituição – o que, de

resto, constitui a ideia central do próprio controle de constitucionalidade.

Desse modo, afirma Cunha, “sempre deverá o aplicador do Direito ter os

olhos (e o coração) na Constituição: para a aplicar directamente, para avaliar

(prima facie) da constitucionalidade de qualquer norma infraconstitucional, e para

a aplicar segundo a Constituição, respeitando os seus valores e tendo em mira os

seus fins”235.

Como já afirmamos, entendemos que a hermenêutica constitucional

consubstancia um refinamento, um desenvolvimento da hermenêutica tradicional,

que é tomada como ponto de partida para a elaboração das técnicas

interpretativas autenticamente constitucionais. Com efeito, à luz das

peculiaridades que marcam as normas constitucionais, tanto no que concerne à

sua estrutura quanto no que diz respeito ao seu conteúdo (sua dimensão política,

axiológica etc.), a insuficiência do modelo subsuntivo para a solução dos

problemas constitucionais, notadamente para o que Dworkin chama de hard

cases, é patente. Desse modo, o que há não é uma negação das técnicas

tradicionais, mas uma evolução, um desenvolvimento dessas técnicas.

Posição similar à que adotamos é a de Willis Santiago Guerra, exposta nos

seguintes termos:

Praticar a “interpretação constitucional” é diferente de interpretar a Constituição de acordo com os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, em época em que as matrizes do pensamento jurídico assentavam-se em bases privatísticas.

(...) A intelecção do texto constitucional também se dá, em um primeiro momento, recorrendo aos tradicionais métodos filológico, sistemático, teleológico, etc. Apenas haverá de ir além, empregar outros recursos argumentativos, quando com o emprego do instrumental clássico da hermenêutica jurídica não se obtiver como resultado da operação exegética uma “interpretação conforme a Constituição”, a verfassungskonforme Auslegung dos alemães, que é uma interpretação de acordo com as opções

valorativas básicas expressas no texto constitucional.236

235

CUNHA, Paulo Ferreira da. Hermenêutica constitucional - entre Savigny e o neoconstitucionalismo, p. 4. 236

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 149.

131

Buscaremos demonstrar a existência de uma interpretação autenticamente

constitucional por meio comparação da aplicação dos elementos hermenêuticos

tradicionais, colacionados por Savigny em seu clássico Sistema, tanto em relação

às normas infraconstitucionais como em relação às normas constitucionais. Além

disso, aprofundaremos as considerações já expostas acerca da natureza peculiar

das normas constitucionais, estruturalmente divididas pela doutrina nas categorias

de regras e princípios. Por fim, abordaremos as técnicas empregadas pelos

Tribunais Constitucionais para a solução dos problemas que envolvem as normas

constitucionais, técnicas estas que, à luz da peculiaridade estrutural dessas

normas, não encontram, a nosso juízo, aplicabilidade na esfera

infraconstitucional.

No entanto, para proceder a uma adequada análise das diferenças, a

nosso ver bastante significativas, entre a interpretação jurídica em geral e a

interpretação constitucional, faz-se necessário o estabelecimento de algumas

premissas, concernentes à própria linguagem do direito.

5.1 A linguagem do direito

Como já apontado de início, hermenêutica, interpretação e aplicação não

são expressões sinônimas. A hermenêutica é a ciência dedicada ao estudo dos

métodos e princípios caracterizadores do processo de interpretação. A palavra

deriva da figura do deus olímpico Hermes, que, na mitologia grega, figura como

mensageiro dos deuses, transmitindo a vontade destes aos homens (sendo,

portanto, um intermediário entre homens e deuses)237.

O processo de interpretação, por seu turno, constitui a atividade intelectual

de identificação da(s) norma(s) aplicável(is) a um caso concreto e de atribuição de

sentido aos termos que compõem essa(s) norma(s). A aplicação, por seu turno,

consiste em momento posterior ao da interpretação, ou seja, na concretização da

norma após a determinação de seu sentido238.

237

“A ideia de que a língua dos deuses é inacessível aos homens é antiga. Moisés era capaz de falar com Deus, mas precisava de Aarão para se comunicar com o povo. Hermes, na mitologia grega, era um intermediário entre os deuses e os homens, de onde vem a palavra hermenêutica. A dogmática hermenêutica, já dissemos, faz a lei falar” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1991, p. 280). 238

“A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. (...) Do exposto ressalta o erro dos que

132

André Ramos Tavares observa que a interpretação “não é uma atividade

descritiva, mas sim construtiva: não se ‘extrai’ o significado do enunciado

normativo”, pois “a interpretação é ‘atribuição’ de conteúdo, sentido e objetivo, por

parte daquele que procede na delicada tarefa hermenêutica”239.

A despeito da pretensão da hermenêutica de sistematizar as regras de

interpretação do direito, a atividade interpretativa é dotada de tamanha

complexidade que a sistematização científica desse processo mental apresenta

enormes dificuldades.

Essa complexidade decorre, antes de mais nada, das características que

marcam o próprio discurso jurídico, vale dizer, do modo pelo qual a linguagem

jurídica se constitui.

A linguagem jurídica – a linguagem técnica empregada pelo direito

enquanto ciência – é construída a partir da linguagem cotidiana, da qual haure

não só palavras como também expressões inteiras, ora lhes reconhecendo

significado similar ao do uso cotidiano, ora atribuindo-lhes um sentido técnico

específico, inerente à realidade jurídica (e não coincidente com a realidade

empírica a partir da qual o sentido original do termo é extraído). Daí a observação

de Sainz Moreno de que há, ao invés de uma linguagem jurídica, um uso jurídico

da linguagem ordinária240. A dificuldade inerente a tal situação é assim sintetizada

por Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

Ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. Este uso oscila entre o aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, a sua significação normativa. Os dois aspectos podem coincidir, mas nem sempre isso ocorre. O legislador, nestes termos, usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas frequentemente lhes atribui um sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada. Esse sentido técnico não é absolutamente independente, mas está ligado de algum modo ao sentido comum, sendo por isso passível de dúvidas que emergem da tensão entre

ambos.241

pretendem substituir uma palavra pela outra; almejam, ao invés de Hermenêutica, Interpretação. Esta é a aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 1). 239

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 100. 240

SAINZ MORENO, Fernando. Conceptos jurídicos, interpretacion y discrecionalidad administrativa. Madri: Civitas, 1976, p. 101. 241

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Dominação, Decisão, p. 231.

133

Como afirmado, “a linguagem do Direito deve ser a linguagem coloquial,

comum”242. A linguagem é um sistema puramente arbitrário, uma vez que os

signos linguísticos são meras convenções, que não guardam nenhuma relação

essencial com os objetos a que se referem. Daí porque Gordillo afirma, com

razão, que as palavras são meros rótulos que se colocam nas coisas243. Não

obstante, a natureza prescritiva (e não meramente descritiva) da linguagem

jurídica torna essa espécie de linguagem capaz de moldar e mudar a realidade

social. Como observa Lourival Vilanova, “altera-se o mundo físico mediante o

trabalho e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social

mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas

do Direito”244. A linguagem é produto cultural, fruto do tempo e do local – portanto,

do contexto – em que é produzida, razão pela qual afirma Vilanova que “a sintaxe

e o estilo linguístico do direito positivo vinculam-se aos contextos culturais, de que

a linguagem é uma parte integrante”245.

A construção da linguagem jurídica se dá, portanto, a partir da linguagem

coloquial ou ordinária. Marcos Vinícius Filgueiras Júnior reconhece a imprecisão e

a ambiguidade como características ínsitas à linguagem natural:

A linguagem é normalmente classificada em linguagem natural (ou ordinária), e linguagem técnica (ou formal). A primeira é o sistema representativo utilizado pela comunicação humana, que é nitidamente convencional, isto é, um sistema estabelecido por meio de acordo entre os grupos sociais e comunidades. É, decerto, uma linguagem por natureza de textura aberta, contendo signos de multiplicidades significativas, com imprecisões decorrentes de vários fatores, dentre os quais se destaca a interferência da significação emotiva das palavras, a vagueza e a ambiguidade. Por outro lado, a linguagem técnica busca traduzir uma precisão lógica, que afaste evocações ideológicas e cargas emotivas. É o caso da linguagem matemática, cujo símbolo “2” representa uma quantidade de unidades invariáveis, ou, então, da

linguagem da química, quando expressa fórmulas precisas.246

242

CONCEIÇÃO, Márcia Dominguez Nigro. Conceitos indeterminados na Constituição: requisitos da relevância e urgência (art. 62 da CF). São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 19. 243

GORDILLO, Augustín. Tratado de Derecho Administrativo Buenos Aires: Macchi, 1974, p. I.1. 244

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 42. 245

VILANOVA, Lourival. Ob. cit., p. 66. 246

FILGUEIRAS JÚNIOR, Marcos Vinícius. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 30-31.

134

A linguagem jurídica, segundo o autor, congrega tanto características da

linguagem natural quanto da linguagem técnica, razão pela qual o direito suporta

as limitações de ambas:

Pois bem, o Direito detém características de ambas linguagens, muito embora predominem as características da linguagem natural. Se, por um lado, o direito, para promover as comunicações dos comandos aos seus destinatários, se vale da língua efetivamente falada em um determinado território, por um determinado povo, estará, então, neste caso, se valendo da linguagem natural; por outro, a linguagem normativa inerente ao Direito é criada com a finalidade de criar institutos dotados de técnica e precisão, para dirimir as controvérsias. Assim, quando o Direito fala em contrato, ato jurídico, posse, doação, imputabilidade, deseja fixar precisos limites para tais institutos de modo a criar, literalmente, entes técnicos, formais, que possam limitar ou restringir a presença ideológica na aplicação desses institutos. Por essa razão, o Direito sofre com as limitações de

ambas as linguagens.247

Diante dessa circunstância, conclui o autor, “admitir que o Direito se utiliza

da linguagem natural significa admitir, por via de consequência, a possibilidade da

indeterminação em razão da linguagem”248.

A indeterminação é ínsita à linguagem, seja ela jurídica ou coloquial. Carrió

destaca a textura aberta da linguagem ordinária ou natural, marcada, ainda, pela

ambiguidade e pela vaguidade (ou vagueza)249. O mesmo autor destaca ainda a

existência de três zonas de determinação dos signos linguísticos: a zona de

intensidade luminosa, na qual não há dúvida acerca da aplicabilidade do vocábulo

à realidade sobre a qual incide; a zona de obscuridade circundante, em relação à

qual há, em sentido inverso ao da anterior, certeza acerca da não aplicabilidade

do vocábulo, e, por fim, a zona de penumbra, na qual a aplicabilidade do vocábulo

à realidade é incerta250. É nessa zona de penumbra que se insere a

indeterminação dos signos linguísticos.

Se a indeterminação é ínsita à linguagem, e se esta é a matéria-prima a

partir da qual se constrói o direito251, é evidente que a linguagem jurídica também

247

FILGUEIRAS JÚNIOR, Marcos Vinícius. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa, p. 31. 248

Idem, p. 32. 249

CARRIÓ, Genaro. Algunas palabras sobre las palabras de La ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1971, p. 21. 250

CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguage. 4ªed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 33. 251

“O direito é um fato social, um de cujos componentes é a linguagem. A linguagem jurídica é o suporte material das normas” (VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p. 64).

135

é marcada pela indeterminação. Tal circunstância intensifica-se à luz do fato de

que a natureza prescritiva do direito, bem como sua natureza de ferramenta de

controle social, tornam a linguagem jurídica marcada pela generalidade e pela

abstração – elementos que intensificam ainda mais a indeterminação da

linguagem. Nesse sentido, Márcia Dominguez Nigro Conceição observa que essa

indeterminação, no nível encontrado na linguagem jurídica, favorece a função

projetiva da lei:

O texto legal, aqui compreendido em sentido lato, sob qualquer forma de manifestação escrita – lei, regulamento, ordem – é uma necessidade imposta pelas relações humanas, cujo controle lhe compete. Por essa função de prescrever comportamentos gerais, são pertinentes à linguagem do texto legal as características da generalidade e abstração.

Este binômio – generalidade e abstração – são traços essenciais observados pelo legislador que não é onisciente, sendo-lhe impossível prever todas as situações fáticas que possam estar presentes nas hipóteses de incidência das leis. Essa impossibilidade de total previsão sobre os fatos, intervenientes nas relações reguladas pelo Direito, advém do dinamismo social, traduzido em constantes alterações das circunstâncias fáticas sociais, políticas, científicas, econômicas e outras.

Em não podendo singularizar, em um determinado momento, um destinatário e uma situação, pesa a favor do legislador a introdução na lei dos termos vagos, imprecisos ou indeterminados, advindos da linguagem comum. Isto porque eles podem albergar um maior número de casos, sendo passíveis de determinação no momento da sua aplicação a um caso concreto, por meio da interpretação (...).

Na realidade, a indeterminação ou fluidez, elasticidade, como citam outros autores, favorece à função projetiva da lei, podendo atingir seus destinatários no momento de sua emanação

ou no futuro.252

Assim, vocábulos como parente, cidadão e casa, cujos sentidos empíricos

são conhecidos por todos, adquirem significados próprios, características e

especificidades únicas quando no bojo do discurso jurídico.

Não há uma regra preestabelecida que determine em que circunstâncias o

vocábulo há de ser entendido, em âmbito jurídico, com o mesmo sentido que tem

na linguagem comum, e em quais circunstâncias receberá um sentido

particularizado no universo jurídico. Revela-se, já aqui, uma primeira dificuldade

no estabelecimento do sentido das normas jurídicas. Esta é, por sinal, a razão

252

CONCEIÇÃO, Márcia Dominguez Nigro. Conceitos indeterminados na Constituição: requisitos da relevância e urgência (art. 62 da CF), p. 32-33.

136

pela qual Tércio Sampaio Ferraz Jr. afirma que “a determinação do sentido básico

envolve dificuldades que não se resolvem apenas com a invocação da norma

reconhecida como válida. É mister, então, encontrar regras para a determinação

do sentido das palavras ou signos linguísticos”253.

Não se olvide, ainda, a relevância da subjetividade do intérprete no

resultado final do processo interpretativo. Sendo a interpretação uma atividade

intelectiva, fruto de um processo racional, mas sempre e inevitavelmente

subjetivo, suas vivências e memórias (das quais seu vocabulário é fruto)

influenciam decisivamente na atribuição de sentido aos termos linguísticos

integrantes da norma jurídica. Assim, bem observa Carlos Maximiliano que “o

conceito de clareza é relativo: o que a um parece evidente, antolha-se obscuro e

dúbio a outro, por ser este menos atilado e culto, ou por examinar o texto sob um

prisma diferente ou diversa orientação”254.

Outra circunstância que acentua a dificuldade da interpretação jurídica é a

diferença que pode haver entre os significados possíveis de um mesmo termo,

não apenas no cotejo entre o sentido coloquial e o técnico (jurídico) do termo,

mas entre os significados existentes na própria linguagem jurídica, a depender do

ramo do direito de que se trate.

Emblemático, nesse tocante, é a possibilidade de sentidos atribuíveis ao

termo funcionário público. O artigo 327 do Código Penal traz a seguinte redação:

Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. § 1º Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. § 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

Já o artigo 3º da Lei nº 10.261/1968, do Estado de São Paulo, conhecida

como Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo,

estabelece:

253

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Dominação, Decisão, p. 232. 254

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 30.

137

Art. 3º. Funcionário público, para os fins deste Estatuto, é a pessoa legalmente investida em cargo público.

Nota-se, antes de mais nada, que os dois dispositivos buscam extrair um

conceito da expressão (ou do termo, ou ainda, do signo linguístico) “funcionário

público”. Nem o caput do art. 327 do Código Penal, nem o art. 3º da Lei Estadual

nº 10.261/68 descrevem condutas, mas buscam delimitar o conceito de

funcionário público para, posteriormente, construir suas respectivas incidências

normativas. E mencionam expressamente que o fazem para suas respectivas

finalidades e ambiências (“para os efeitos penais” / “para os fins deste

Estatuto”)255. Não bastasse, o § 1º do art. 327 do Código Penal acresce ainda

uma definição de funcionário público por equiparação.

O art. 327 do Código Penal, ao se referir, em seu caput, a “cargo, emprego

ou função pública”, se aproxima do conceito de servidor público que se extrai do

art. 37 da Constituição Federal (que não se vale da expressão funcionário,

preferindo referir-se a servidor público), mormente em seu inciso I. O mesmo não

ocorre com o art. 3º da lei paulista, que se refere tão somente a “cargo público”.

Não há dúvida, portanto, de que a expressão funcionário público recebe

atribuições de sentido distintas em dois subsistemas jurídicos (ou seja, no âmbito

penal e na esfera administrativa). Ambos subsistemas, no entanto, fazem parte do

sistema jurídico como um todo, vale dizer, em ambos os casos é utilizada a

linguagem jurídica, a linguagem técnica do direito.

Disso decorre que a variação de sentidos não existe apenas entre o

sentido coloquial da expressão “funcionário público” e dos possíveis sentidos

técnicos atribuíveis a essa expressão. A variação ocorre ainda no bojo da própria

linguagem técnica. Como afirma Carlos Maximiliano:

Preceito preliminar e fundamental da Hermenêutica é o que manda definir, de modo preciso, o caráter especial da norma e a matéria de que é objeto, e indicar o ramo do Direito a que a mesma pertence, visto variarem o critério de interpretação e as regras aplicáveis em geral, conforme a espécie jurídica de que se trata. (...)

255

É interessante observar que o artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.713/1939, que “dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União” tem redação praticamente idêntica à do artigo 3º da lei paulista, com a única diferença de que não consta, no decreto-lei, a expressão “para os fins deste Estatuto”.

138

As disposições de Direito Público não se interpretam do mesmo modo que as do Direito Privado; e em um e outro ainda os preceitos variam conforme o ramo particular a que pertencem as normas: os utilizáveis no Constitucional diferem dos empregados no Criminal; no Comercial não se procede exatamente como no Civil, e, no seio deste, ainda a exegese dos contratos e das leis

excepcionais se exercita mediante regras especiais.256

Finalmente, não se pode desconsiderar que, como a interpretação é o

resultado de um processo de adequação de símbolos linguísticos a uma

determinada realidade, e esta é mutável, a atribuição de um determinado sentido

a um termo ou expressão não leva a um resultado definitivo, mas ao

estabelecimento de um sentido transitório, ou seja, válido para aquelas

determinadas circunstâncias de tempo e local, bem como para as circunstâncias

sociais, culturais e pessoais do próprio intérprete.

A esse respeito, Luís Roberto Barroso observa que “toda interpretação é

produto de uma época, de uma conjuntura, que abrange os fatos, as

circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um”257, razão

pela qual “a interpretação não é um fenômeno absoluto ou atemporal. Ela espelha

o nível de conhecimento e a realidade de cada época, bem como as crenças e

valores do intérprete, sejam os do contexto social em que esteja inserido, sejam

os de sua própria individualidade”258. No mesmo sentido, Carlos Maximiliano

assevera que “o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do

Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente

decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita.

Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito”259.

Ademais, não se pode desconsiderar que a interpretação consiste em

atividade pragmática, voltada à solução de problemas concretos, cujo resultado

não pode ser avaliado em termos de verdadeiro/falso, uma vez que o próprio

resultado da interpretação de uma mesma norma pode variar ao longo do tempo,

sem que o “novo” resultado implique o reconhecimento da falsidade (ou mesmo

256

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 364. 257

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 1. 258

Idem, p. 2. 259

MAXIMILIANO, Carlos. Ob. cit., p. 10.

139

equivocidade) do resultado primitivo, válido para as circunstâncias de tempo e

local no qual fora produzido260.

Diante das dificuldades inerentes à atividade interpretativa, ou seja, à

atribuição de sentidos aos preceitos jurídicos para a construção da norma jurídica,

a doutrina reconhece a existência de métodos “clássicos” ou tradicionais de

interpretação. E as normas constitucionais, embora marcadas por peculiaridades

que as distinguem das demais normas jurídicas – peculiaridades estas que

demandam técnicas e métodos próprios de interpretação (a chamada

interpretação constitucional) –, não deixam de constituir espécie do gênero norma

jurídica. Sujeitam-se, portanto, aos métodos tradicionais de interpretação, mas a

estes não se limitam. A hermenêutica tradicional é o ponto comum entre as

normas infraconstitucionais e as constitucionais, sendo, para aquelas, ponto de

chegada (ou seja, métodos eficientes para a solução dos problemas jurídicos na

ambiência infraconstitucional), e para estas, ponto de partida (ou seja, alicerce a

partir do qual se construirá uma hermenêutica especificamente constitucional,

oriunda das necessidades impostas pela estrutura e pelo conteúdo das normas

constitucionais). Em outras palavras, a interpretação jurídica constitucional,

embora parta dos mesmos métodos da interpretação jurídica geral, nestes não se

exaure e segue além, exigindo, para um adequado desenvolvimento do processo

interpretativo, a adoção de uma metodologia própria.

Assim, antes que se passe à análise dos métodos específicos da

interpretação jurídica constitucional, é importante abordar os métodos tradicionais

de interpretação – a interpretação jurídica geral. Tais métodos são aplicáveis

também, em um primeiro momento, às normas constitucionais, uma vez que estas

são, antes de mais nada, normas jurídicas.

Repita-se, no entanto, que afirmar que os métodos hermenêuticos

tradicionais se aplicam às normas constitucionais não implica reconhecer a

260

“Ademais, a interpretação é essencialmente uma atividade prática, voltada à solução de situações concretas (ainda que hipoteticamente construídas). (...) Ainda quando o próprio Direito contemple métodos admissíveis para sua interpretação, essas normas serão instrumentais, vale dizer, normas sobre as demais normas. “Por fim, há de se assinalar que, em matéria de interpretação jurídica, inexiste a valência verdadeiro/falso, pertencente às ciências exatas. Ao contrário, o Direito é uma ciência convencional e, assim, admite a mutação de sua própria interpretação, sem que a anterior pudesse ser considerada verdadeira e, doravante, passasse a ser falsa” (TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 100-101).

140

inexistência de distinções entre a interpretação jurídica geral e a interpretação

jurídica constitucional.

5.2 A hermenêutica tradicional

É intuitivo que o fenômeno da interpretação das normas jurídicas surge

com as próprias normas. A partir do momento em que estas se estabelecem, é

necessário um processo interpretativo para a verificação de sua aplicabilidade

com o fim de solucionar problemas concretos. Contudo, tanto o ato de interpretar

como o desenvolvimento de técnicas interpretativas precede, em muito, o

surgimento da hermenêutica como ciência, o que só ocorre no século XIX. Como

afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

Muito embora o desenvolvimento de técnicas interpretativas do direito seja bastante antigo e já esteja presente na jurisprudência romana e até na retórica grega (...), a consciência de que a questão hermenêutica é um objeto teórico, ou seja, a tematização da interpretação como um problema científico, a exigir, mais do que meras técnicas, método (isto é, cânones intersubjetivos capazes de definir a verdade do saber), é relativamente recente. Ela nos conduz ao século XIX como o período em que a interpretação deixa de ser questão de técnica apenas (como agir?) para constituir um problema teórico (que é

interpretar e qual o seu fundamento?).261

A partir do momento em que a hermenêutica se consolidou como ciência

(tendo por objeto o fenômeno da interpretação), a sistematização e as reflexões

sobre o processo interpretativo sedimentaram alguns conceitos, classificações e

debates, hoje clássicos e tradicionais, que marcaram e continuam a marcar o

estudo da interpretação das normas jurídicas, sejam elas infraconstitucionais ou

constitucionais – embora, quanto a estas, a ascensão do que hoje alguns

denominam neoconstitucionalismo tenha levado à formulação de uma

metodologia e de uma principiologia próprias.

Assim, sob essa ótica tradicional, dentre as várias sistematizações e

classificações possíveis, pode-se analisar a interpretação: i) a partir de seu

fundamento (subjetivismo x objetivismo); ii) a partir do intérprete (interpretação

legislativa ou autêntica, administrativa, judicial e doutrinária; iii) a partir de seus

261

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Dominação, Decisão, p. 240.

141

efeitos (interpretação declarativa, restritiva e extensiva); e, finalmente, a partir dos

chamados elementos clássicos de interpretação (elemento gramatical, histórico,

sistemático e teleológico), consignados por Savigny em seu Sistema dil diritto

romano attuale (de 1840)262.

5.2.1 Subjetivismo e objetivismo

No que tange ao fundamento, ou seja, ao ponto de partida da

interpretação, duas grandes linhas de pensamento se consolidaram, já no século

XIX: os subjetivistas, para quem a interpretação consistia na identificação da

voluntas legislatoris ou mens legislatoris, ou seja, a vontade oculta do legislador

histórico, a ser revelada por meio do processo interpretativo; e, de outro lado, os

objetivistas, segundo os quais a interpretação voltava-se à revelação da voluntas

legis ou mens legis, ou seja, a vontade objetiva e autônoma da lei263.

262

A classificação constante do presente trabalho adota, em parte, os critérios sugeridos por Luís Roberto Barroso (in Interpretação e aplicação da Constituição, p. 116) e, em parte, aqueles empregados por Paulo Bonavides (in Curso de Direito Constitucional, p. 438 e seguintes). 263

“Essa oscilação entre um fator subjetivo – o pensamento do legislador – e outro objetivo – o ‘espírito do povo’ – torna-se assim um ponto nuclear para entender-se o desenvolvimento da ciência jurídica como teoria da interpretação. Em meados do século XIX ocorre, assim, na França e na Alemanha, uma polêmica. De um lado, aqueles que defendiam uma doutrina restritiva da interpretação, cuja base seria a vontade do legislador, a partir da qual, com o auxílio de análises linguísticas e de métodos lógicos de inferência, seria possível construir o sentido da lei (‘Jurisprudência dos Conceitos’, na Alemanha, e ‘Escola da Exegese’, na França). De outro lado, foram aparecendo aqueles que sustentavam que o sentido da lei repousa em fatores objetivos, como os interesses em jogo na sociedade (‘Jurisprudência dos Interesses’, na Alemanha), até que, já no final do século XIX e início do século XX, uma forte oposição ao ‘conceptualismo’ desemboca na chamada escola da ‘libre recherche scientifique’ (livre pesquisa científica) e da ‘Freirechtsbewegung’ (movimento do direito livre) que exigiam que o intérprete buscasse o sentido da lei na vida, nas necessidades e nos interesses práticos. Desenvolvem-se, neste período, métodos voltados para a busca do fim imanente do direito (método teleológico) ou de seus valores fundantes (método axiológico) ou de suas condicionantes sociais (método sociológico) ou de seus processos de transformação (método axiológico-evolutivo) ou de sua gênese (método histórico) etc. “(...) Em função disso podemos cindir a doutrina em duas correntes que, embora na se distinguindo com essa nitidez, podem ser separadas didaticamente conforme o reconhecimento ou da vontade do legislador ou da vontade da lei como sede do sentido das normas. Chamemos a primeira de doutrina subjetivista, a segunda de objetivista. A doutrina subjetivista insiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmático (a noção de dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado da vontade do emissor da norma lhe é fundamental) é basicamente uma compreensão do pensamento do legislador; portanto interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da norma pela positivação da vontade legislativa), ressaltando-se, em consonância, o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas que lhe são apropriadas (método histórico). Já para a doutrina objetivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (o dogma é um arbitrário social), independente até certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o momento atual de sua vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos

142

A doutrina subjetivista buscava identificar o sentido da norma na vontade

do legislador (voluntas legislatoris ou mens legislatoris) no momento da criação da

norma jurídica. A interpretação da norma, assim, deveria levar em conta as

intenções do legislador no momento do surgimento da norma no ordenamento

jurídico, bem como, por conseguinte, as circunstâncias históricas e culturais

existentes em tal momento.

Segundo Paulo Bonavides,

À posição subjetivista pertence a corrente dos intérpretes clássicos do direito, os juristas que, abraçados primeiro à tradição romana, vieram, sobretudo no século XIX, a sistematizar regras de hermenêutica jurídica. Nessa direção a nota interpretativa dominante se voltava sempre para o legislador de preferência à lei. Tratava-se de um agudo esforço para determinar a mens legis, entendida como a vontade oculta do autor da proposição normativa, vontade que ao intérprete incumbiria revelar com

fidelidade.264

Bonavides aponta como expoentes do subjetivismo Windscheid,

Regelsberger, Enneccerus, Bierling, Heck, Beling, Stammler, Petrascheck e

Nawiasky, bem como, no campo do Direito Constitucional, Giacometti, Luechinger

e Von Tiefenbacher265.

A doutrina objetivista, por seu turno, perscruta não a vontade do legislador

histórico no momento de criação da norma, mas a vontade da lei em si, vale dizer,

seu sentido há de ser aferido à luz da realidade concreta (suas circunstâncias de

tempo e local) sobre a qual ela vai incidir. Em outras palavras, a voluntas legis ou

mens legis, sem maiores preocupações com o que pretendeu o legislador no

momento da criação da norma.

Ainda de acordo com Paulo Bonavides,

A tese básica da corrente objetivista gira, no dizer de Karl Engisch, ao redor da lei, do texto, “da palavra que se fez vontade”. A lei que se desprende do legislador não só se formula como adquire autonomia para seguir com seu conteúdo um curso autônomo, amoldando-se, na totalidade e unidade do sistema jurídico, àquelas exigências impostas segundo as circunstâncias e necessidades do processo de evolução do direito.

aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas à sua captação (método sociológico)” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 241-242). 264

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 452. 265

BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 453.

143

Entendem os adeptos do método objetivo que “a lei é mais sábia que o legislador” e que a chamada vontade do legislador, de que fazem tanto cabedal os subjetivistas, outra coisa não é senão

a lei publicada.266

Luís Roberto Barroso observa que “o debate [entre subjetivistas e

objetivistas], de certa forma, encontra-se superado pela convergência da quase-

totalidade da doutrina para a linha objetiva”267, posição compartilhada também

pelo Tribunal Constitucional alemão, como apontado por Hesse:

O Tribunal Constitucional também adotou expressamente essa doutrina. O Tribunal, com efeito, mesmo não claramente, opta pela “teoria objetiva” da interpretação, como evidencia essa passagem de um dos seus julgados: “Fundamental para interpretar um preceito legal é a vontade objetiva do legislador manifestada através desse preceito, tal como se deduz do texto e do contexto da disposição legal. Não é fundamental, ao contrário, a ideia subjetiva dos órgãos que participam no processo legislativo, ou alguns dos seus membros, acerca do significado da disposição. O processo de criação de um preceito só adquire relevância interpretativa na medida em que venha a confirmar a correção da interpretação feita segundo os aludidos princípios ou na medida em que resolva dúvidas que não podem ser eliminadas apenas com base no mencionado procedimento”. A esse motivo, em palavras do Tribunal, servem as várias modalidades de interpretação: “a interpretação a partir do texto da norma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemática), de sua finalidade (interpretação teleológica) e do seu processo de criação (interpretação histórica), compondo uma atividade em cujo âmbito esses elementos de interpretação se apoiam e se complementam mutuamente a fim de, por exemplo, poder extrair conclusões sobre o significado literal ou a finalidade da norma a partir da sua conexão sistemática ou do seu processo

de criação.268

Barroso, por sua vez, também adota de forma explícita a posição

objetivista:

De fato, uma vez posta em vigor, a lei se desprende do complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores. Isso é tanto mais verdade quanto mais se distancie no tempo o início da vigência da lei. O intérprete, ensinou Ferrara, deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris. Não é, propriamente, que a vontade subjetiva do legislador de ocasião seja inteiramente indiferente. O que remarcam os objetivistas é que ela não é determinante e deve concorrer com outros todos fatores relevantes. Com agudeza, e

266

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 454. 267

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 113. 268

HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 104-105.

144

não sem certa ironia, Raúl Canosa Usera observa que a preponderância entre a vontade do legislador ou da lei dependerá,

sempre, de uma terceira vontade: a do intérprete atual.269

O reconhecimento praticamente unânime da prevalência da mens legis

sobre a mens legislatoris afigura-se inevitável à luz da velocidade com que a

realidade da pós-modernidade se transforma, velocidade esta que, em muitas

situações, tornaria o direito positivado desatualizado – e, por conseguinte, incapaz

de solucionar problemas concretos (que é a sua razão de ser), caso adotada a

posição subjetivista. Figure-se, a título de exemplo, o advento da internet e de

todas as complexas questões que daí decorrem – a revolução nas comunicações,

o gravíssimo problema do cyberbully, a forma de tributação das negociações on-

line etc. Se a posição subjetivista privilegia o elemento histórico, constituindo,

assim, “interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da

norma pela positivação da vontade legislativa)”270, sua adoção gera o sério risco

de que diversas questões e controvérsias oriundas da chamada Revolução Digital

(em especial a partir dos anos 1990271) recebam tratamento inadequado por parte

do direito (o que, por óbvio, não significa que tais questões seriam relegadas a um

vácuo normativo, uma vez que, como é sabido, as lacunas existem na lei, mas

não no direito).

Por seu turno, a posição objetivista, “como uma compreensão ex nunc

(desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o momento atual de sua

vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos estruturais em que

a norma ocorre e as técnicas apropriadas à sua captação”272, mostra

potencialidade muito maior para manter atuais os possíveis sentidos a ser

extraídos a partir da norma, revelando-se, assim, um método mais adequado para

lidar com a, por vezes estonteante, velocidade com que as sociedades atuais se

transformam.

A despeito da já quase pacífica superação da dicotomia entre subjetivistas

e objetivistas, Barroso observa que “curiosamente, essa discussão foi reavivada

269

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 113-114. 270

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 242. 271

Quando a internet deixou de ser usada exclusivamente pela indústria bélica norte-americana e passou a ser usada pela quase totalidade das sociedades do mundo, por meio da World Wide Web. 272

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Ob. cit., p. 242.

145

ao longo das últimas décadas nos Estados Unidos, contrapondo originalistas e

não-originalistas”:

Após dois períodos sucessivos em que a Suprema Corte apresentou um perfil nitidamente progressista, afirmativo de novos direitos e de proteção das minorias, articulou-se um amplo movimento de reação conservadora. Cognominado de “originalismo”, funda-se ele na tese de que o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, abstendo-se de impor suas próprias crenças ou preferências.

Para os originalistas, o ativismo judicial, as construções jurídicas desenvolvidas pelo Judiciário para acudir a situações não contempladas na letra expressa da Constituição, são antidemocráticas. Consoante o raciocínio que desenvolvem, em um governo representativo, onde deve prevalecer a vontade da maioria, expressa através da eleição dos agentes públicos do Legislativo e do Executivo, o controle exercido pelo Judiciário sobre os atos dos dois outros Poderes apresenta uma dificuldade contramajoritária (a countermajoritarian difficulty). E somente pode legitimar-se nos limites expressos e estreitos do texto

constitucional.273

A controvérsia entre originalistas e não-originalistas, no entanto, nos

termos em que foi apontada por Barroso ao tratar da realidade norte-americana,

concerne à interpretação constitucional, e não às regras gerais de interpretação.

Em relação a estas, releva destacar a já mencionada prevalência atual, de modo

praticamente absoluto, da doutrina objetivista (mens legis ou voluntas legis) sobre

a subjetivista (mens legislatoris ou voluntas legislatoris). A prevalência do

objetivismo sobre o subjetivismo minimiza o risco de “engessamento” das normas

no tempo (o que as tornaria – ao menos parte delas – imprestáveis para a solução

de conflitos sociais).

5.2.2 Categorias de interpretação

Analisando-se a interpretação a partir de seus intérpretes (ou, como prefere

Paulo Bonavides, a partir de suas fontes274), é possível classificar a interpretação

como legislativa, autêntica, administrativa, judicial e doutrinária275.

273

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 114-115. 274

Bonavides, no entanto, não inclui na sua classificação a interpretação administrativa: “Tocante às fontes, sujeitos ou agentes, há as seguintes espécies de interpretação: autêntica (do legislador), judiciária (do juiz) e doutrinária (do jurista)” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 438).

146

5.2.2.1 Interpretação legislativa e interpretação autêntica

Interpretação autêntica é aquela feita pelo próprio legislador, por meio de

uma norma, a respeito de outra norma anteriormente exarada por esse mesmo

legislador.

Segundo Carlos Maximiliano, “denomina-se autêntica a interpretação,

quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela

declara”276. Trata-se, portanto, de interpretação de uma norma jurídica feita por

meio de outra norma jurídica, emanada do mesmo Poder (via de regra, o Poder

Legislativo277), tendo a segunda o objetivo de auxiliar a interpretação da primeira.

Ainda de acordo com Maximiliano,

A interpretação autêntica foi outrora a de maior prestígio, única em certas épocas. O Imperador Justiniano repelia qualquer outra exegese, isto é, a que não procedesse dele próprio. Generalizou-se o preceito seguinte: “Interpretar incumbe àquele a quem compete fazer a lei.” Ejus est interpretari legem cujus est

condere.278

Há certa controvérsia doutrinária acerca da identificação entre as

interpretações legislativa e autêntica, havendo autores que as entendem como

duas espécies distintas de interpretação, e outros que sustentam tratar-se de dois

termos sinônimos para designar a mesma espécie interpretativa.

Para Paulo Bonavides, interpretação legislativa e autêntica constituem uma

única categoria:

A interpretação autêntica é aquela ministrada pelo legislador mesmo; o órgão legislativo elabora uma segunda norma com o propósito de esclarecer especificamente o significado e o alcance da norma antecedente, havida por obscura ou ambígua.

É forma rara de interpretação. Alguns juristas, como Savigny, se recusam a admiti-la. Entendem ordinariamente que a

275

No tocante a seus intérpretes, Carlos Maximiliano apresenta uma classificação dicotômica, reconhecendo apenas as categorias de interpretação autêntica e doutrinal, nas quais insere as demais espécies apontadas no presente trabalho. 276

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 71. 277

Há outras possibilidades, v.g., uma lei delegada, promulgada pelo Presidente da República, que vise aclarar o sentido (portanto, interpretar) de dispositivo de outra lei delegada promulgada também pelo Presidente, dentro, é claro, dos limites da delegação concedida pelo Congresso Nacional nos termos do art. 68 da Constituição Federal. 278

MAXIMILIANO, Carlos. Ob. cit., p. 73.

147

lei interpretativa representa uma nova lei, de todo o ponto distinta daquela preexistente, não havendo portanto como falar no caso de interpretação. Há, todavia, os que discrepam desse ponto de vista, com asseverar que a lei de interpretação não cria um novo direito,

mas elucida o direito já contido na proposição anterior.279

O próprio Carlos Maximiliano é exemplo de jurista que se recusa a admitir a

existência da interpretação autêntica em sentido estrito280:

Não há propriamente interpretação autêntica; se o Poder Legislativo declara o sentido e o alcance de um texto, o seu ato, embora reprodutivo e explicativo de outro anterior, é uma verdadeira norma jurídica, e só por isso tem força obrigatória, ainda que ofereça exegese incorreta, em desacordo com os preceitos basilares da Hermenêutica. É feita a lei, seja qual for a sua espécie, a fim de concretizar o Direito, torná-lo claro, expressivo, visível, positivo; se o não consegue por defeito de redação, falta-lhe o seu primeiro requisito, e a que lhe explica o conteúdo é a que realiza o objetivo colimado; portanto constitui uma lei nova, mais do que a precedente, que resultara quase inútil, falha na prática. Por outro lado, é quase impossível fazer uma norma exclusivamente interpretativa, simples declaração do sentido e alcance de outra; em verdade, o que se apresenta com esse caráter, é uma nova regra, semelhante à primeira e desta modificadora de modo quase imperceptível. “É, de fato, o estabelecimento de direito novo, com o acréscimo de determinar que seja considerado como contido já em um texto anterior” (3). Nada mais difícil do que caracterizar as normas simplesmente explicativas, isto é, distinguir a mera interpretação da verdadeira

inovação, no campo do Direito.281

Desse modo, a interpretação legislativa (ou autêntica) implica uma nova

manifestação do Poder Legislativo, com o intuito de aclarar eventuais

obscuridades contidas em manifestação anterior.

279

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 438. 280

Embora, conclui-se, o autor admita sua existência ao menos em sentido amplo, uma vez que a define, como visto, ao afirmar que “denomina-se autêntica a interpretação, quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara”, acrescentando ainda que “opera-se a exegese autêntica, em regra, por meio de disposição geral, e, ainda que defeituosa, injusta, em desacordo com o verdadeiro espírito do texto primitivo, prevalece enquanto não a revoga o Poder Legislativo; é obrigatória, deve ser observada por autoridades e particulares. Entretanto, só se aplica aos casos futuros, não vigora desde a data do ato interpretado, respeita os direitos adquiridos em consequência da maneira de entender um dispositivo por parte do Judiciário, ou do Executivo. Nos países onde o princípio – fulminador da retroatividade das leis se acha inserto na Constituição, ele adquire excepcional amplitude, expunge as restrições comuns entre os povos que adotam a mesma regra como doutrina par ser observada pelos tribunais, ou preceito positivo, porém ordinário, sem força para vincular o parlamento. No Brasil e nos Estados Unidos nem as próprias Câmaras se isentam do dever imperioso de não entender texto algum em sentido retroativo” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 71-72). 281

MAXIMILIANO, Carlos. Ob. cit., p. 75.

148

Dentre as linhas de pensamento apontadas por Bonavides, entendemos

mais acertada a que admite a existência da chamada interpretação autêntica. Os

exemplos invocados anteriormente – ou seja, o artigo 327 do Código Penal e o

artigo 3º da Lei nº 10.261/1968 – não constituem uma norma nova, mas parte da

norma a ser construída a partir de outros dispositivos em conjunto com estes.

É sabido que a norma não se confunde com o dispositivo legal a partir do

qual ela é construída. Assim, por exemplo, a norma aplicável ao caso concreto de

um funcionário público acusado de se apropriar, em proveito próprio, de verbas

públicas, é construída a partir da conjugação dos arts. 312 (que descreve a

conduta a ser praticada pelo funcionário público) e 327 (que estabelece o que é

funcionário público para fins penais) do Código Penal. O dispositivo interpretativo

(o art. 327) é parte integrante da norma extraída do ordenamento para aplicação

no caso concreto – o que, evidentemente, não implica a desnecessidade de sua

interpretação. Não se deve confundir, no entanto, a interpretação conjunta de

mais de um dispositivo legal com a interpretação de mais de uma norma.

Ainda que se trate de norma interpretativa criada posteriormente à norma

“interpretada”, parece-nos exagerada em radicalismo a posição de Carlos

Maximiliano. Uma norma promulgada a título de “interpretação autêntica” pode

eventualmente colocar fim a alguma controvérsia judicial acerca do sentido da

norma “interpretada”, sem que esta seja tida, até o surgimento da norma

interpretativa, por norma “quase inútil, falha na prática”, como assevera o

prestigiado autor.

Barroso, ao contrário de Bonavides, elenca as categorias legislativa e

autêntica como espécies distintas. Isso porque, ao tratar do tema, ainda que sob a

epígrafe dos “conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação”,

Barroso trata especificamente da interpretação constitucional. Desse modo, a

interpretação legislativa, a seu ver, constitui a atividade interpretativa levada a

cabo por órgãos do Poder Legislativo:

A interpretação da Constituição é exercida por órgãos dos três Poderes estatais. Assim se passa, em primeiro lugar, para delimitação de sua própria esfera de competências. Ademais, cada um deles precisa determinar o conteúdo, de normas constitucionais no desempenho de suas atividades. A interpretação constitucional legislativa impõe-se em diversas situações, dentre as quais é possível destacar a que se realiza (a) para a própria estruturação do Poder Legislativo, de seus órgãos e

149

comissões; (b) na observância do processo legislativo, aí incluídos a adequação de cada espécie normativa e os procedimentos para sua edição; (c) na apreciação de vetos do chefe do Executivo fundados em motivo de inconstitucionalidade. A interpretação constitucional pelas Casas do Congresso, por Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais é indispensável para que exercitem sua atividade legislativa nos limites da Lei Maior, e, talvez mais importante, para que legislem de forma a realizar os

fins constitucionais.282

A interpretação autêntica, no âmbito da interpretação constitucional,

identifica-se, por sua vez, na obra de Barroso, com o que Bonavides (ao tratar da

interpretação geral de normas) denomina interpretação legislativa (ou autêntica):

É controvertida a possibilidade de interpretação autêntica da Constituição. Aliás, é controvertida a própria existência da categoria interpretação autêntica, como tal entendida a que emana do próprio órgão que elaborou o ato cujo sentido e alcance ela declara. Pela interpretação autêntica se edita uma norma interpretativa de outra preexistente. A maior parte da doutrina, tanto brasileira quanto portuguesa, admite a interpretação constitucional autêntica, desde que se faça pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.

A rigor, a interpretação constitucional, para ser verdadeiramente autêntica, na conformidade da definição, teria de emanar da mesma fonte instituidora: o poder constituinte originário. Isso, normalmente, não será possível, pois, uma vez concluída sua obra, o poder constituinte originário se exaure, ou melhor dizendo, volta ao seu estado latente e difuso. De modo que não se pode falar em interpretação constitucional verdadeiramente

autêntica.283

Sob a ótica da interpretação jurídica em geral, a interpretação autêntica se

identifica, efetivamente, com a interpretação legislativa, uma vez que, por

definição, trata-se de fenômeno jurídico da mesma natureza (lei) emanado pelo

mesmo órgão (o Poder Legislativo) do qual se originou o ato cuja

complementação foi necessária, concomitantemente (como no exemplo dos arts.

312 e 327 do Código Penal) ou posteriormente (caso em que, em tese, a

complementação retroagiria ao momento de criação da lei complementada284).

282

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 116-117. 283

Idem, p. 118-119. 284

“A discussão, todavia, tem pouca relevância no Brasil. É que um dos traços que distinguem a interpretação autêntica é o seu caráter retroativo, remontando à data de vigência da lei que está sendo interpretada. Ora bem: entre nós isso não é possível. Por força do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, combinado com o art. 60, § 4º, nem mesmo as emendas constitucionais podem afetar as situações já definitivamente constituídas e incorporadas ao patrimônio de seu titular. Ou seja: em qualquer caso os efeitos se produzirão ex nunc” (BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 119).

150

Distinta é a situação, no entanto, quando a complementação da norma vem

por meio de atos administrativos do Poder Executivo, mesmo que dotados de

caráter normativo (como resoluções e portarias). Nesse caso, ocorre a chamada

interpretação administrativa285.

5.2.2.2 Interpretação administrativa

Quando a interpretação das normas provém de atos da Administração

Pública, mesmo que estes tenham natureza geral e abstrata (ou seja, força

normativa), tais como resoluções e portarias, não há que se falar em interpretação

legislativa, e sim em interpretação administrativa.

É o que ocorre, por exemplo, em relação à Lei nº 10.833/2003, que trata da

Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins, cujo art. 3º

determina, em seu inciso II:

Art. 3º. Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a: (...) II - bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o art. 2º da Lei nº 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da TIPI;

Publicada a lei, instaurou-se dúvida acerca do que poderia ou não ser

considerado insumo, nos termos do inciso II do aludido art. 3º. A controvérsia foi

afastada por meio da Instrução Normativa SRF nº 404/2004, cujo art. 8º

estabelece, em seu § 4º:

§ 4º Para os efeitos da alínea "b" do inciso I do caput, entende-se como insumos: I - utilizados na fabricação ou produção de bens destinados à venda: a) a matéria-prima, o produto intermediário, o material de embalagem e quaisquer outros bens que sofram alterações, tais

285

“Portanto, só uma Assembleia Constituinte fornece a exegese obrigatória do estatuto supremo; as Câmaras, a da lei em geral, e o Executivo, dos regulamentos, avisos, instruções e portarias. O regulamento pode esclarecer o sentido da lei e completá-lo; mas não tem o valor de interpretação autêntica a oferecida por aquele, ou por qualquer outro ato ministerial” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 71).

151

como o desgaste, o dano ou a perda de propriedades físicas ou químicas, em função da ação diretamente exercida sobre o produto em fabricação, desde que não estejam incluídas no ativo imobilizado; b) os serviços prestados por pessoa jurídica domiciliada no País, aplicados ou consumidos na produção ou fabricação do produto; II - utilizados na prestação de serviços: a) os bens aplicados ou consumidos na prestação de serviços, desde que não estejam incluídos no ativo imobilizado; e b) os serviços prestados por pessoa jurídica domiciliada no País, aplicados ou consumidos na prestação do serviço.

A Instrução Normativa, emanada da Secretaria da Receita Federal,

constitui um ato administrativo cujos elementos complementam aqueles

constantes da lei anteriormente mencionada. Ainda que se trate de ato normativo,

a Instrução Normativa não se equipara a lei e, por óbvio, não emana do mesmo

Poder que gerou a lei cujas normas restaram complementadas. Não se pode

falar, portanto, de interpretação autêntica, nem tampouco de interpretação

legislativa.

A situação apontada constitui exemplo de interpretação administrativa, ou

seja, emanada do Poder Executivo. Mas não é apenas na complementação de

leis de sentido obscuro ou impreciso que se resume a atividade interpretativa da

Administração Pública (a interpretação administrativa).

A sedimentação da ideia de Estado de Direito levou ao primado da lei (lex

scripta) como parâmetro de orientação para a conduta não só dos cidadãos, mas

também, com a superação dos regimes absolutistas e o reconhecimento dos

primeiros direitos fundamentais (ditos de primeira dimensão – direitos de

liberdade dos cidadãos em face do Estado, como proteção a eventuais arbítrios

dos governantes), para a conduta também dos entes públicos.

A vinculação do Poder Executivo à legalidade, expressamente consagrada

na Constituição Federal (art. 37, caput), fundamenta-se, antes de mais nada, na

ideia de divisão (e não separação, como por vezes se afirma286) dos poderes

estatais, preconizada por Montesquieu, em seu Espírito das Leis (1748).

286

Apesar da evidente imprecisão da expressão “separação de poderes”, amiúde apontada pela doutrina, e que não consta da obra de Montesquieu (que se refere à divisão dos Poderes) – uma vez que o poder, como expressão da soberania de um Estado, é uno e indivisível; e, além disso, todos os “Poderes” (Legislativo, Executivo e Judiciário) exercem funções típicas e atípicas (ou seja, típicas dos outros Poderes), inexistindo uma compartimentalização estanque de atribuições, donde seria incoerente falar-se em separação – é de se ver que a própria Constituição Federal adota a inadequada expressão, no inciso IV do § 4º de seu art. 60, elencando a “separação de poderes” como cláusula pétrea.

152

A limitação da atuação de cada um dos Poderes, que, segundo

Montesquieu, impossibilitaria o arbítrio estatal em face dos cidadãos, decorreria

do fato de que o Poder Legislativo cria a lei, mas não a executa; cabe ao Poder

Executivo a tarefa de governar nos limites das leis criadas pelo Legislativo, de

modo a executá-las sem tê-las criado; o Judiciário, por fim, tem o dever de

fiscalizar a fiel observância da lei tanto pelos cidadãos como – a partir do

momento em que se passou a reconhecer a possibilidade de responsabilização

dos governantes por seus atos – pelo próprio Poder Público287.

A consolidação da ideia de que o Poder Executivo governa com base em

normas criadas por outro Poder (o Legislativo) gera duas consequências

imediatas:

A primeira consequência é a absoluta submissão da Administração Pública

à lei, consignada no princípio da legalidade, insculpido no caput do art. 37 da

Constituição Federal. Sobre esse princípio, afirma Celso Antônio Bandeira de

Mello:

Com efeito, enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da ideia de que a Administração só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.

Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei, editada, pois, pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social –, garantir que a atuação do

287

“Eis aqui pois a constituição fundamental do Governo de que falamos. Sendo o seu corpo legislativo composto de duas partes, uma acorrentará a outra pela mútua ‘faculdade de impedir’. Ambas serão amarradas pelo Poder Executivo, o qual o será, a seu turno, pelo Legislativo. Esses três poderes deveriam originar um impasse, uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são compelidos a caminhar, eles haverão de caminhar em concerto” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 180-181).

153

Executivo nada mais seja do que a concretização dessa vontade

geral.288

Clássica é a distinção entre a aplicabilidade do princípio da legalidade para

os órgãos da Administração Pública (direta e indireta), cujo fundamento, como

mencionado, se encontra no caput do art. 37 da Constituição Federal (“A

administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de

legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”) e para os

cidadãos, cujo fundamento está no inciso II do art. 5º da Carta Magna (“ninguém

será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”).

Afirma-se, assim, que enquanto o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe

expressamente (legalidade), a Administração Pública só pode fazer o que a lei

expressamente autoriza (estrita legalidade)289. Na conhecidíssima lição de Hely

Lopes Meirelles, “na Administração Pública não há liberdade nem vontade

pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não

proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”290.

Embora consagrada há muito na doutrina administrativista, essa posição

restritiva quanto à (falta de) liberdade da Administração Pública vem sendo

questionada por autores mais modernos, como Gustavo Binenbojm, que assim se

manifesta sobre o tema:

O ofício administrativo, todavia, não se reduz – e, como visto linhas atrás, jamais se reduziu – à mera aplicação mecanicista da lei. A própria origem pretoriana e autovinculativa do direito administrativo por obra do Conselho de Estado francês, e os amplos espaços discricionários deixados pela lei para serem preenchidos pelo administrador, já comprometeriam, a rigor, essa noção de que a Administração não age por vontade própria, senão que se limita a cumprir a vontade previamente manifestada pelo legislador. Em verdade, mesmo a atividade de interpretação da lei, já dizia Kelsen, comporta sempre uma margem autônoma de criação, daí se poder afirmar que mesmo os ditos regulamentos de execução expressam também algum conteúdo volitivo da

Administração Pública.291

288

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, p. 102-103. 289

“O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ob. cit., p. 108). 290

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 41ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 88. 291

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 34.

154

Como já visto, a partir de meados do século XIX, a figura do Estado

ausente das relações particulares, consagrada desde o século XVI com a

ascensão do Estado Liberal, é substituída pela de um Estado prestacional, de um

Estado-providência – o chamado Estado de Bem-Estar Social, Estado Social ou

Welfare State –, incumbido de prover e assegurar direitos fundamentais aos

cidadãos, notadamente por meio de ações coletivas e políticas públicas. Essas

novas atribuições do Estado Social emanam de normas de estrutura distinta

daquelas que meramente preveem condutas, uma vez que elencam finalidades a

ser alcançadas pelos governantes.

Assim é que os quatro objetivos fundamentais da República brasileira,

elencados no art. 3º da Constituição Federal (“I – construir uma sociedade livre,

justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza

e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover

o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de descriminação”), impostos, pois, como finalidades, podem ser

buscados pelo Poder Público pelos mais variados caminhos. Mesmo normas

destinadas a garantir direitos fundamentais específicos, como o art. 196 da

Constituição, que assegura o direito à saúde (“A saúde é direito de todos e dever

do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à

redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”),

apontam apenas a finalidade a ser alcançada pelos governantes, sem estabelecer

os caminhos para a consecução de tais objetivos.

Nessas circunstâncias, é evidente que a concepção de um Estado que

pode fazer apenas e tão somente o que a lei lhe permite deve ser adotada com

reservas. É claro que o estabelecimento da finalidade pode ser entendido como

autorização legal para agir (donde, poder-se-ia concluir, a Administração ainda

estaria a fazer apenas o que a lei lhe autoriza). Contudo, o silêncio acerca dos

meios para alcançar as finalidades indiscutivelmente amplia o rol de

possibilidades de ação do ente público. Assim, a clássica lição de Hely Lopes

Meirelles, nos termos em que fora exposta pelo ilustre administrativista (“na

Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na

administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na

155

Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”), ainda que não

reste de todo refutada, há de ser, pelo menos, entendida em seu devido contexto.

A vinculação à finalidade, pois, não implica a inexistência de liberdade, nem de

vontade pessoal. Estas se revelarão nos meios escolhidos pela Administração

para o alcance dos objetivos propugnados, os quais, é certo, deverão ter clara

relação com a finalidade perseguida, sob pena de violação do princípio da

legalidade.

Se a primeira consequência do advento do Estado de Direito é a

submissão da Administração Pública à lei e ao princípio da legalidade, a segunda

consequência, que surge como corolário da primeira, é a necessidade de que o

governante público interprete as normas que servem de fundamento à sua

atuação. É esta, portanto, a chamada interpretação administrativa, que, como

apontado, sofreu profunda alteração com a derrocada do Estado Liberal e o

advento do Estado Social.

Além disso, como analisado anteriormente, a crise do positivismo jurídico e

a ascensão do chamado neoconstitucionalismo, a partir do final da Segunda

Guerra Mundial em 1945, deslocaram os textos constitucionais para o epicentro

do mundo jurídico. O progressivo fortalecimento da juridicidade das normas

constitucionais, a relevância que passou a ser atribuída aos princípios

constitucionais e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como norte

interpretativo do ordenamento jurídico como um todo, levaram ao surgimento de

novas técnicas de interpretação, aplicáveis às normas constitucionais, técnicas

estas que o Poder Executivo, no desempenho de suas atividades, não pode

desconsiderar. Inclusive porque, no caso brasileiro, ao executar os ditames da

legislação, o Executivo necessariamente deve fazê-lo à luz dos princípios

constitucionais elencados no caput do art. 37 da Constituição Federal (legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) – podendo mesmo, em

situações extremas, deixar de dar cumprimento a lei tida por inconstitucional292.

5.2.2.3 Interpretação judicial

292

Nesse sentido: “Lei inconstitucional. Poder Executivo. Negativa de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional” (STJ, REsp nº 23.121, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 8.11.1993).

156

Interpretação judicial é a atribuição de sentidos às normas jurídicas levada

a cabo por juízes e tribunais para a solução de casos concretos, no exercício da

jurisdição. Evidentemente, na escala hierárquica do Poder Judiciário, as decisões

dos órgãos superiores têm maior relevância e capacidade de influência (em

outras decisões) do que as dos órgãos judiciais inferiores, mesmo sem a adoção,

no Brasil, do sistema do stare decisis293.

Já se superou há muito a ideia, popularizada por Montesquieu, de que o

juiz consistiria mera “boca da lei”, ou seja, mero aplicador de uma norma cujo

sentido restaria aclarado em seu próprio conteúdo. A histórica desconfiança

francesa em relação aos magistrados, por sua proximidade em relação aos

monarcas, justificava a posição – antes ideológica do que científica294 - de

Montesquieu, segundo a qual os juízes “são apenas a boca que pronuncia as

palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o

rigor”295.

Essa posição, que pressupõe um sentido unívoco nas normas (pois o

reconhecimento da pluralidade de sentidos possíveis tornaria necessária a

atividade interpretativa, impensável para um “ser inanimado” cuja única função é

repetir o que já consta da lei), foi refutada muito antes do estabelecimento de uma

efetiva jurisdição constitucional (cuja margem de criação por meio da

interpretação, como se verá adiante, é muito mais ampla do que na jurisdição

tradicional, dada a própria estrutura das normas constitucionais). Mesmo Kelsen,

em sua Teoria Pura, admite uma margem de criação no ato interpretativo do juiz:

Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do Direito ou juris-“dição” (“declaração” do Direito) nesse sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso

293

“A interpretação judiciária ou jurisprudencial procede dos juízes e tribunais, do usus fori, das sentenças e arestos que aplicam a norma jurídica aos casos concretos, sendo tanto mais importante quanto mais alta for a competência da instância donde emana” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 439). 294

Não deixa de ser curioso – e tal circunstância não passou despercebida pelos críticos de Montesquieu – que a célebre teoria da tripartição de poderes estatais tenha sido elaborada por Montesquieu a partir da análise da realidade política da Inglaterra, cujo sistema parlamentarista (no qual a aproximação entre Executivo e Legislativo mitiga consideravelmente a tão impropriamente chamada “separação” de poderes) já se encontrava em avançado estágio de consolidação histórica por ocasião da publicação d’O Espírito das Leis (1748). 295

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis, p. 178.

157

concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo, mas um caráter constitutivo. (...) Somente a falta de compreensão da função normativa da decisão judicial, o preconceito de que o direito apenas consta de normas gerais, a ignorância da norma jurídica individual, obscureceu o fato de que a decisão judicial é tão-só a continuação do processo de criação jurídica e conduziu ao erro de ver nela apenas a função

declarativa.296

Além disso, na parte final de sua Teoria Pura, Kelsen afirma textualmente

que o juiz “é um criador de Direito e também ele é, nesta função, relativamente

livre”297, donde não há de restar dúvida acerca do reconhecimento, por parte do

jurista alemão, da existência de um grau de liberdade (significativamente menor

do que o atribuído ao legislador, é certo) na interpretação das normas.

A interpretação judicial ganha especial relevo nos ordenamentos jurídicos

marcados pela unicidade de jurisdição, como é o caso do brasileiro, que adota o

sistema da chamada Jurisdição Una por força do inciso XXXV do art. 5º da

Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão

ou ameaça a direito”. Depreende-se desse dispositivo a supremacia das decisões

judiciais, ou seja, do entendimento do Poder Judiciário (em face dos demais

Poderes) sobre qualquer matéria. Em outras palavras, nesse sistema apenas as

decisões judiciais fazem coisa julgada, no sentido de não poderem ser revistas

por outro Poder298.

Ao sistema de Jurisdição Una contrapõe-se o do chamado Contencioso

Administrativo, originário da França299, no qual existem duas jurisdições distintas:

a chamada jurisdição comum, a cargo do Poder Judiciário, e a jurisdição

administrativa, formada por tribunais administrativos300, cujas decisões (em

296

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 264-265. 297

Idem, p. 393. 298

Não que não exista, no sistema da jurisdição una, a “coisa julgada administrativa”. Contudo, apesar dessa nomenclatura, essa “coisa julgada” significa tão somente a imutabilidade da decisão na própria seara administrativa, ou seja, a impossibilidade de que a Administração Pública reveja sua decisão, o que não significa que esta não possa ser revista pelo Poder Judiciário – cujas decisões, uma vez transitadas em julgado, são efetivamente imodificáveis (salvo as excepcionalíssimas hipóteses de “relativização da coisa julgada”, que não têm interesse para o presente trabalho). 299

Fruto do Ancien Regime, no qual o Rei, como instância recursal última, criou uma divisão entre jurisdição administrativa e jurisdição de questões privadas, o sistema sofreu substancial alteração em 1789, com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotando, a partir de então, a feição que o caracteriza até os dias atuais. 300

São três os tribunais administrativos que compõem o sistema do Contencioso Administrativo francês: os Tribunais Administrativos, as Cortes Administrativas de Apelação e, como órgão máximo do sistema, como última instância administrativa decisória, o Conselho de Estado.

158

âmbito administrativo) fazem efetiva coisa julgada e não podem ser revistas, nem

mesmo pelo Poder Judiciário.

No sistema de Jurisdição Una, adotado pela Constituição brasileira, a

interpretação judicial ganha especial relevo, uma vez que a fixação judicial do

sentido da norma, uma vez transitada a decisão judicial que a contém, é de

observância obrigatória pelos demais Poderes, inclusive pelo próprio Poder

Legislativo (ao menos até que a promulgação de outra norma altere a realidade

jurídica já estabelecida pela decisão judicial transitada em julgado).

Se a interpretação jurídica, por sua natureza, contém um espaço de criação

na atribuição de sentido à norma, o deslocamento das normas constitucionais

para o centro do ordenamento jurídico e o advento de uma “era dos direitos

fundamentais e dos princípios constitucionais”, de estrutura distinta das normas

de conduta infraconstitucionais, notadamente por sua textura mais aberta,

ampliaram sobremaneira o campo de possibilidades criativas do ato interpretativo

– razão pela qual Barroso, ao tratar das distinções entre interpretação e

aplicação, observa que, na seara da interpretação constitucional, há de se

observar também o fenômeno da construção – como será visto com mais vagar

por ocasião do estudo da interpretação constitucional301.

5.2.2.4. Interpretação doutrinária

A interpretação doutrinária é aquela levada a efeito por estudiosos,

doutrinadores e teóricos do direito, por meio de artigos, livros, pareceres, teses,

palestras etc. Ao contrário da decisão judicial, cuja manifestação interpretativa

resulta num ato de poder, dotado de coercitividade, a interpretação doutrinária se

revela antes como ato de conhecimento do que como manifestação de poder.

Segundo Barroso:

301

“A interpretação constitucional exige, ainda, a especificação de um outro conceito relevante, que é o de construção. Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 103-104).

159

A interpretação doutrinária não se dirige, diretamente, à aplicação das normas constitucionais, mas, sim, a fornecer subsídios para os órgãos encarregados de realizá-la. Trata-se do produto do trabalho intelectual de jurisconsultos, professores e escritores em geral. Também os advogados, elaborando teses jurídicas e ousando criativamente na defesa dos interesses que patrocinam, prestam importante contribuição de cunho

doutrinário.302

Embora desprovida de coercitividade, a interpretação doutrinária tem

grande relevância para as demais espécies interpretativas, na medida em que,

com frequência, fornece subsídios e argumentos para o desenvolvimento das

justificativas das decisões judiciais, administrativas e mesmo legislativas303.

Kelsen aborda a questão em outros termos, propondo uma dicotomia entre

interpretação autêntica e interpretação doutrinária, pela qual identifica na primeira

um ato tanto de conhecimento quanto de vontade (ou um ato de conhecimento

combinado com um ato de vontade) e na segunda um mero ato de conhecimento:

Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com esse ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda.

Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica.

A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando esta interpretação assuma a forma de uma lei ou de um tratado de Direito internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um caso concreto mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado como interpretação autêntica represente a produção de uma norma geral. Mas autêntica, isto é, criadora de Direito é-o a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute

uma sanção.304

302

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 118. 303

“A autoridade dessa interpretação depende naturalmente do grau de reputação intelectual e da força lógica dos argumentos expendidos pelos seus autores, podendo, aliás, desempenhar indiretamente um relevantíssimo papel na complementação das sobreditas formas interpretativas” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 439-440. 304

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 394.

160

Para Kelsen, portanto, independentemente de a aplicação da norma

resultar em um ato de natureza geral (por exemplo, um tratado internacional) ou

em um ato que afete apenas uma pessoa (v.g. uma sentença judicial), estar-se-á

diante de uma interpretação autêntica. O que a caracteriza, segundo o autor, é

que seja realizada por um órgão aplicador do Direito:

Da interpretação através de um órgão aplicador do Direito distingue-se toda e qualquer outra interpretação pelo fato de não

ser autêntica, isto é, pelo fato de não criar Direito.305

Constata-se, desde já, que a definição de interpretação autêntica de Kelsen

difere substancialmente daquelas apontadas no item anterior, uma vez que

admite como autênticas quaisquer interpretações emanadas de órgãos capazes

de aplicar o Direito, ou seja, fundamental é que se trate, mais do que uma mera

manifestação de conhecimento, também de uma manifestação de poder.

Kelsen classifica na outra ponta dessa dicotomia, sob a epígrafe de

interpretação doutrinária (ou, na expressão de que se vale com maior frequência,

interpretação da ciência jurídica), aquelas manifestações não dotadas de poder

coercitivo – nos termos usados pelo autor, as manifestações que constituem

apenas um ato de conhecimento (que, ao contrário das interpretações levadas a

cabo pelos órgãos aplicadores do Direito, não seguem combinadas com um ato

de vontade):

Sobretudo, porém, tem de distinguir-se rigorosamente a interpretação do Direito feita pela ciência jurídica, como não autêntica, da interpretação realizada pelos órgãos jurídicos.

A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada Jurisprudência dos Conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito. O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo; e essa função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente.

A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma

305

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 395.

161

jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesmas reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem

jurídica, é competente para aplicar o Direito.306

Tércio Sampaio Ferraz Jr. faz vigorosa crítica à posição de Kelsen em

relação à interpretação doutrinária, observando que o mestre austríaco “coloca a

questão de saber se é possível uma teoria científica da interpretação jurídica, que

nos permita falar da verdade de uma interpretação, em oposição à falsidade”307:

Kelsen, evidentemente, não desconhece e até reconhece que tais atos de vontade estejam baseados em atos cognitivos. Até por dever de ofício, um juiz, por exemplo, tem que fundamentar sua sentença e dar à fundamentação uma coerência. Para isso certamente faz uso de seus conhecimentos doutrinários. Não obstante, observa Kelsen, se houver um desequilíbrio entre o ato de vontade e o de conhecimento, prevalece aquele e não esse. Assim, se uma sentença não for clara ou o raciocínio interpretativo contiver enganos ou contradições, havendo recurso para a autoridade superior, a redefinição do sentido antes interpretado é produto de um novo ato de vontade e não de raciocínio. Mesmo o recurso e sua fundamentação tem sua força não no conhecimento mas no direito, conferido pela lei processual à parte insatisfeita, de recorrer. Portanto, segundo Kelsen, ainda que se tivesse a impressão de que tudo gira em torno de argumentos e raciocínios e que são atos de conhecimento que conferem, afinal, o sentido aceito por todos, esta aceitação tem, na verdade, seu fundamento em atos de vontade competentes.

O que ocorre, então, quando a interpretação é mero ato de conhecimento? Não seria possível descobrir-lhe um fundamento, por exemplo, a verdade, que lhe permitisse adquirir a qualidade de

obter aquela aceitação geral?308

Ferraz Jr. observa que, para Kelsen, os conteúdos normativos têm

natureza linguística, sendo por isso plurívocos. A manifestação de vontade

(competente) fixa um sentido dentre os possíveis, o que, segundo Kelsen, não é

possível no caso da interpretação doutrinária. Uma vez que os conteúdos

normativos são plurívocos, caberia ao doutrinador, como cientista do direito

apenas demonstrar essa plurivocidade. Caso a ciência jurídica interpretasse a

norma de modo a apontar apenas um dos sentidos possíveis, “estaria criando

uma ilusão, a ficção da univocidade das palavras da norma”309, o que tornaria a

interpretação não mais uma manifestação científica, e sim um ato político:

306

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 395-396. 307

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 236. 308

Idem, p. 237. 309

Idem, p. 238.

162

A interpretação doutrinária é ciência até o ponto em que denuncia a equivocidade resultante da plurivocidade. Daí para frente, o que se faz realmente é política, é tentativa de persuadir alguém de que esta e não aquela é a melhor saída, a mais favorável, dentro de um contexto ideológico, para uma estrutura de poder. Tudo o que existe, portanto, quando a interpretação doutrinária se apresenta como verdadeira porque descobre o sentido unívoco do conteúdo normativo, é, no máximo, uma proposta política que se esconde sob a capa de uma pretensa

cientificidade.310

Fica claro que Kelsen confere pouca relevância à interpretação doutrinária,

uma vez que não lhe atribui qualquer valor se o resultado da interpretação for –

como amiúde o é – a indicação de um sentido determinado como mais adequado

em relação ao demais sentidos possíveis da norma. Como observa Ferraz Jr.,

Esta coerência de Kelsen com seus princípios metódicos, porém, nos deixa sem armas. Sua renúncia pode ter um sentido heroico, de fidelidade à ciência, mas deixa sem fundamento a maior parte das atividades dogmáticas, às quais dizem respeito à hermenêutica. E ademais não explica a diferença entre a mera opinião, não técnica, sobre o conteúdo de uma lei, exarada por alguém que sequer tenha estudado Direito e a opinião do doutrinador, que busca, com os meios da razão jurídica, o sentido da norma. A diferença, em termos de aceitação, resta meramente política. Ou seja, para Kelsen, é possível denunciar, de um ângulo filosófico (zetético), os limites da hermenêutica, mas não é possível fundar uma teoria dogmática da interpretação.

Com isso, porém, Kelsen frustra um dos objetivos fundamentais do saber dogmático, desde que ele foi configurado como um conhecimento racional do direito. Ainda que lhe atribuamos um caráter de tecnologia, de saber tecnológico, a sua produção teórica fica sem fundamento, aparecendo como mero arbítrio. Não teria, pois, realmente, nenhum valor racional procurar um fundamento teórico para a atividade metódica da doutrina, quando esta busca e atinge o sentido unívoco das palavras da lei? Seria um contrassenso falar em verdade hermenêutica?

Enfrentar esta questão constitui o que chamaríamos,

então, de o desafio kelseniano.311

Carlos Maximiliano, por seu turno, divide o que chama de interpretação

doutrinal em judiciária e doutrinal propriamente dita, adotando, desse modo, uma

definição de interpretação doutrinária (ou doutrinal) substancialmente diversa

daquela adotada por Kelsen (uma vez que tanto a manifestação de poder quanto

310

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 238. 311

Idem, p. 238-239.

163

a manifestação de pensamento podem, para Maximiliano, se enquadrar na

categoria de interpretação doutrinal):

Rigorosamente, só a doutrinal merece o nome de interpretação, no sentido técnico do vocábulo; porque esta deve ser, na essência, um ato livre do intelecto humano. Divide-se em judiciária ou usual, e doutrinal propriamente dita, privada ou científica, ambas obtidas pelos mesmos processos e resultantes da aplicação das mesmas regras. A primeira origina-se nos tribunais, a segunda é o produto das lucubrações dos particulares, das pesquisas dos eruditos – communis opinio doctorum. Uma e outra adquirem grande prestígio quando uniformes, duradouras, e confirmadas ou defendidas por jurisconsultos de valor, com assento no pretório, ou brilhantes advogados, catedráticos, escritores.

Também os precedentes parlamentares, isto é, a maneira uniforme de ser pelo Congresso entendido e aplicado um

dispositivo, constituem um elemento de interpretação doutrinal.312

Portanto, ao contrário de Kelsen, que aponta a competência para a

aplicação do direito (pelos órgãos dotados de poderes para tanto) como

diferencial entre a interpretação autêntica e a interpretação doutrinária,

Maximiliano classifica a interpretação judicial como subespécie da interpretação

doutrinária (ou doutrinal, como a denomina), bem como, em certa medida,

algumas atividades interpretativas levadas a cabo pelo Legislativo (os

precedentes parlamentares)313.

5.2.3 Interpretação declarativa, restritiva e extensiva

Analisada a partir dos seus efeitos314, a interpretação pode ser declarativa,

restritiva e extensiva.

312

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 76-77. 313

É curioso notar, no entanto, que, ao tratar das interpretações autêntica e doutrinal em sua obra, dedicando-lhes um único capítulo – e adotando assim uma dicotomia que remete a Kelsen – Maximiliano, já no início do referido capítulo, afirma que “A interpretação é uma só. Entretanto se lhe atribuem várias denominações conforme o órgão de que precede; ou se origina em uma fonte jurídica, o que lhe dá força coativa; ou se apresenta como um produto livre da reflexão. Chamam-lhe autêntica, no primeiro caso; doutrinal no segundo. Aquela domina pela autoridade, esta pelo convencimento; uma vincula o juiz, tem a outra um valor persuasivo” (ob. cit., p. 71). É impossível não perceber a contradição entre essa primeira definição de interpretação doutrinal, que inaugura o capítulo, e a definição acima epigrafada, substancialmente diversa, com a qual o autor encerra o mesmo capítulo. Não fica esclarecido se, para o autor, a interpretação judiciária constitui espécie de interpretação doutrinal ou autêntica. 314

Ou, na classificação de Paulo Bonavides, a partir dos resultados da interpretação (in Curso de Direito Constitucional, p. 444).

164

Verifica-se a interpretação declarativa quando o intérprete se atém aos

limites das possibilidades semânticas da norma interpretada, privilegiando, desse

modo, os elementos lógico e gramatical da norma (cum in verbis nulla ambiguitas

est, non debet admitti voluntatis quaestio).

Tércio Sampaio Ferraz Jr., que usa a nomenclatura interpretação

especificadora, esclarece que:

Uma interpretação especificadora parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra do seu enunciado. Tendo em vista a criação de condições para que os conflitos sejam decidíveis com um mínimo de perturbação social (questão de decidibilidade), a hermenêutica se vê pragmaticamente dominada por um princípio de economia de pensamento. Postula, assim, que para elucidar o conteúdo da norma não é necessário sempre ir até o fim das suas possibilidades significativas, mas até o ponto em que os problemas pareçam razoavelmente decidíveis. Era este, provavelmente, o propósito de um famoso aforismo jurídico, hoje

menos citado, segundo o qual “in claris cessat interpretatio”. 315

Contudo, como já afirmado, a máxima lembrada pelo autor (in claris cessat

interpretatio) espelha uma incongruência, uma vez que a pretendida clareza

inexiste316. O próprio autor reconhece que “é óbvio que a possibilidade dessa

clareza literal é uma ilusão. Que significa, então, uma interpretação

especificadora, que se limita a reconhecer que o sentido literal da norma é

claro?”317

Essa ideia de clareza, portanto, como algo que torna desnecessário

estender ou restringir os limites semânticos da norma (ou, colocado de outro

modo, o que o legislador efetivamente quis dizer), precisa ser compreendida não

como desnecessidade de interpretação (desnecessidade esta que, como temos

reiteradamente afirmado, não existe nem mesmo nos dispositivos mais literais), e

sim como adequação do termo às realidades potenciais que pretende descrever.

Em outras palavras, a adequada compreensão do alcance do termo prescinde de

qualquer dilatação da intenção dedutível do legislador, seja para ampliá-la, seja

para restringi-la318.

315

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 267. 316

Além disso, como mencionamos no início deste trabalho, a própria conclusão acerca da clareza da norma já é o resultado de um processo interpretativo. 317

Idem, p. 267. 318

Carlos Maximiliano, em breve referência a Reuterskioeld, aponta que “alguém preferiu as expressões felizes – positiva extensão, negativa extensão” (in Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 164).

165

Tércio Sampaio (apud Oliveira Ascenção) invoca o pertinente exemplo do

termo culpa, na expressão “culpa de terceiro”, para os fins de apuração da

responsabilidade civil por danos:

Ora, a palavra culpa mesmo na técnica jurídica é ambígua, pois se define ora como negligência, ora como dolo, ora ambos, ora como característica da reprobabilidade pessoal do agente. Todas são possíveis. Embora, num caso concreto, o aplicador da lei tenha de identificar uma delas, o intérprete dirá que o sentido de culpa no texto do artigo 1.520, embora abrangente, é claro: não se há de

excluir em tese nenhuma das conotações.319

Portanto, a despeito da pluralidade de sentidos possíveis para o termo

culpa, todos esses sentidos estão potencialmente contidos no próprio termo, de

modo que a escolha por um deles não implica qualquer dilatação das

potencialidades semânticas da norma na qual o termo está inserido. Dito de outro

modo, a interpretação não ultrapassa as fronteiras da norma, sendo considerada,

portanto, declarativa ou especificadora.

Não é o que ocorre quando se conclui que o legislador, ao se manifestar

(ao criar a norma), disse mais ou menos do que pretendia, ou seja, que o texto a

partir do qual se extrai a norma ficou além ou aquém da vontade do legislador.

Quando isso ocorre, a interpretação é feita com o intuito de calibrar a

exteriorização formal da vontade do legislador (o dispositivo legal) com o que se

supõe ter sido sua intenção ao regular a hipótese descrita na lei. Nessa situação,

pode-se concluir que o legislador foi além do que efetivamente pretendia (lex plus

scripsit quam voluit), ou que, ao contrário, ficou aquém de suas intenções (lex

minus scripsit quam voluit). Na primeira hipótese, a interpretação terá por objetivo

restringir a manifestação formal do legislador, ante a constatação de que tal

manifestação extrapolou a vontade legislativa original – a interpretação, nesse

caso, é chamada de restritiva. Na segunda hipótese, a interpretação ampliará o

espectro da norma, alargando seu conteúdo para que este coincida com que se

supõe tenha sido a vontade do legislador – a interpretação é considerada, nesse

sentido, extensiva.

319

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 267. A referência ao art. 1.520 concerne ao Código Civil de 1916. Norma similar se encontra no art. 930 do Código Civil de 2002.

166

Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e na medida do sentido lógico. A imperfeição linguística, expõe Ferrara, pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. No primeiro caso, impõe-se uma interpretação restritiva (ou estrita), onde a expressão literal da norma precisa ser limitada para exprimir seu verdadeiro sentido (lex plus scrpisit, minus voluit). No segundo caso, será necessária uma interpretação extensiva, com o alargamento do sentido da lei, pois este ultrapassa a expressão literal da norma (lex minus

scripsit quam voluit).320

Exemplo de interpretação extensiva é o sentido a ser atribuído ao caput do

art. 5º da Constituição Federal, no qual consta que são garantidos “aos brasileiros

e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Feita uma interpretação

declarativa ou especificadora, chegar-se-ia à conclusão de que estrangeiros não

residentes no País não encontrariam a garantia e a proteção dos direitos

elencados no caput do dispositivo.

Evidentemente, essa exegese não pode ser admitida, sob pena de

negação tanto da lógica quanto da tábua de valores que caracterizam a

Constituição brasileira, marcada política, filosófica e juridicamente (art. 1º, inciso

III) pelo primado da dignidade da pessoa humana.

As Constituições do pós-Segunda Guerra são marcadas pela centralidade

dos direitos humanos (positivados em direitos fundamentais nas ordens jurídicas

internas dos países), os quais, com base nas ideias de Kant321 resgatadas por

Hannah Arendt322, passaram a ser reconhecidos como inerentes a qualquer

pessoa pela simples condição de sua humanidade.

Uma vez que os direitos fundamentais são modernamente identificados

com os próprios direitos humanos (em sua manifestação formal nos

ordenamentos internos dos países), não faria sentido atribuir a proteção a tais

direitos apenas aos estrangeiros residentes no país, vale dizer, excluindo-se

aqueles transitoriamente de passagem. Essa exegese contraria o próprio espírito

da Constituição brasileira, não podendo, desse modo, ser adotada.

Destarte, à expressão “estrangeiros residentes no País” há de ser conferida

uma interpretação extensiva, a fim de que a proteção constante do caput do art. 320

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 121. 321

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Barcarolla, 2009. 322

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

167

5º não exclua os estrangeiros não residentes no Brasil. Trata-se, portanto, de

reconhecer que, como diz Barroso, o legislador (nesse caso constituinte) disse

menos quando queria dizer mais. Essa conclusão deriva, como apontado, da

interpretação da Constituição em sua completude, no que Savigny chamava

(como visto a seguir) de interpretação sistemática ou elemento sistemático da

interpretação323.

Outro exemplo – também de índole constitucional – de interpretação

extensiva se encontra no § 4º do art. 60 da Constituição, que, ao elencar, em seus

quatro incisos, o rol de cláusulas pétreas, a parte imodificável da Constituição

mesmo por meio de emendas constitucionais, atribui tal status, em seu inciso IV,

aos “direitos e garantias individuais”.

Uma interpretação especificadora ou declarativa, que não permitisse ir

além do texto da norma, excluiria da proteção contra modificações via emendas

constitucionais todos os direitos fundamentais de segunda e terceira dimensão

323

“Uma primeira tentativa de interpretação mais extensiva guarda relação com a definição de estrangeiro residente e não residente, de tal sorte que, seja em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, isonomia e universalidade (fundamento aqui adotado), seja a aplicação do princípio (próximo, mas não idêntico) do in dubio pro libertate, que impõe a interpretação mais favorável ao indivíduo em detrimento do Estado, como estrangeiros residentes são compreendidos todos os que, não sendo brasileiros natos ou naturalizados, encontram-se, pelo menos temporariamente, no País, guardando, portanto, algum vínculo de certa duração. Este é o caso, por exemplo, do estrangeiro que trabalha no Brasil, reside com familiares ou mesmo aquele beneficiado com visto de duração superior a do turista ou de outra pessoa que ingresse no País de forma eventual, por exemplo, para visitar amigos ou parentes, exercer atividades profissionais de curta duração, entre outras. “Hipótese distinta é a da extensão da titularidade de direitos fundamentais a qualquer estrangeiro, ainda que não residente, mesmo nos casos em que tal não decorra diretamente de disposição constitucional expressa. Nesse contexto, há que invocar o princípio da universalidade, que, fortemente ancorado no princípio da dignidade da pessoa humana e no âmbito da sua assim designada função interpretativa, na dúvida, implica uma presunção de que a titularidade de um direito fundamental é atribuída a todas as pessoas. A tese de que em face da ausência de disposição constitucional expressa os estrangeiros não residentes não poderiam ser titulares de direitos fundamentais, podendo apenas gozar dos direitos que lhes fossem atribuídos por lei, visto a ‘consciente omissão’ por parte do constituinte de 1988 apenas poderia ser corrigida por emenda constitucional, não pode prevalecer em face do inequívoco (ainda que implícito) reconhecimento do princípio da universalidade, de acordo com a exegese imposta pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Além disso, a recusa da titularidade de direitos fundamentais aos estrangeiros não residentes, que, salvo nas hipóteses expressamente estabelecidas pela Constituição, poderiam contar apenas com uma tutela legal (portanto, dependente do legislador infraconstitucional) viola frontalmente o disposto no art. 4º, inciso II, da CF, que, com relação à atuação do Brasil no plano das relações internacionais, estabelece que deverá ser assegurada a prevalência dos direitos humanos , posição que inclusive encontra respaldo em diversos julgados do STF. Ainda neste contexto, por se cuidar de aspecto relativo aos estrangeiros de um modo geral, é preciso destacar que eventual ilegalidade da permanência no Brasil por si só não afasta a titularidade de direitos fundamentais, embora não impeça (respeitados os direitos, inclusive o do devido processo legal) eventuais sanções, incluindo a deportação ou mesmo a extradição” (SARLET, Ingo W. Comentário ao art. 5º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 191-192.

168

(direitos sociais, políticos, relativos à nacionalidade, ao desenvolvimento etc.),

restringindo a proteção aos direitos fundamentais individuais. Levada ao extremo,

a literalidade da norma não permitiria sequer abranger os direitos individuais

elencados em outros dispositivos da Constituição que não o próprio art. 5º. Num e

noutro caso, a interpretação proposta é incompatível com o espírito da

Constituição, repita-se, escorado na dignidade da pessoa humana e na

prevalência dos direitos fundamentais.

Torna-se, assim, necessária uma exegese ampliativa da norma, ou seja,

uma interpretação extensiva, que compreenda, na expressão “direitos e garantias

individuais”, todos aqueles direitos fundamentais previstos no texto

constitucional324.

A função da interpretação extensiva, portanto, é calibrar a amplitude da

norma, adequando-a ao que se presume seja a efetiva vontade do legislador no

que concerne à regulação da situação imperfeitamente descrita no texto legal.

A interpretação extensiva não se confunde com a analogia, que não é uma

espécie de interpretação, e sim de integração das normas jurídicas325. Na

interpretação extensiva, como visto, o sentido da norma é ampliado para que se

alcance uma hipótese que se supõe que já deveria ter sido abrangida pelo

legislador – supõe-se, assim, que o legislador falhou ao não dar à norma a

amplitude que pretendia. No caso da analogia, uma norma prevista para

determinada situação é usada para outra, com a qual esta não guarda qualquer

relação. Assim, ao contrário da interpretação extensiva, na analogia não há uma

norma que regule a situação concreta, sendo, por isso, utilizada uma norma que,

324

“Todavia, parece-nos correta a doutrina majoritária ao salientar que o constituinte de 1988 conferiu o status de cláusulas pétreas aos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira ‘dimensão’, sejam eles direitos de defesa ou prestacionais. Isso porque o sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais, cuja eficácia reforçada se revela na aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º), bem como na sua proteção reforçada quanto a ação erosiva do constituinte reformador (art. 60, § 4º, IV), caracteriza-se pela unicidade. Com efeito, de uma leitura sistêmica da Constituição de 1988 não se verifica hierarquia ou destaque conferido aos direitos de defesa em detrimento dos direitos prestacionais, ou de direitos de uma dimensão em prejuízo das demais. Ao contrário, percebe-se uma fina sintonia entre o constituinte de 1988 e a tese da indivisibilidade e a interdependência das dimensões de direitos fundamentais, a qual vem gozando de primazia no direito internacional dos direitos humanos” (SARLET, Ingo Wolfgang e BRANDÃO, Rodrigo. Comentário ao art. 60, § 4º, IV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1135-1136. 325

Uma vez que o objeto do presente trabalho é a interpretação, com destaque para a interpretação constitucional, as formas de integração não serão objeto de estudo, sob pena de perda do foco do tema cujo desenvolvimento se pretende.

169

em princípio, não tem aplicabilidade alguma naquela situação. Trata-se, portanto,

como já afirmado, não de uma técnica de interpretação, mas de integração326.

A legislação não fornece subsídios que orientem a adoção de uma ou outra

forma de interpretação (declarativa, restritiva ou extensiva), tarefa que fica a cargo

da doutrina e da jurisprudência. Barroso observa que:

A doutrina, de forma um tanto casuística, procura catalogar as hipóteses de interpretação restritiva e extensiva. Há certo consenso de que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras gerais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal. Comportam interpretação extensiva as normas que asseguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos.

A jurisprudência é oscilante e assistemática na matéria. Há casos em que a norma constitucional atributiva de um benefício é interpretada restritivamente. Foi o que se passou no tocante à anistia política concedida pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988, que aproveitava aos punidos durante o regime militar, aos quais assegurou as promoções a que teriam direito durante o período em que estiveram afastados por atos de exceção. A norma não esclarecia se se incluíam tanto as promoções por antiguidade quanto as por merecimento. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal oscilou, até se firmar na exclusão da promoção por merecimento, interpretando restritivamente o texto

constitucional.327

Portanto, essa inexistência de regras determinantes de uma ou outra

espécie de interpretação não raro leva ao subjetivismo do julgador na escolha da

espécie a ser empregada, a despeito da existência de algumas orientações gerais

apontadas pela doutrina. Fundamental é que a escolha do intérprete entre

restringir, ampliar ou manter inalterada a amplitude da norma tenha por objetivo

aplicá-la do modo mais adequado à concretização de sua essência328.

326

“Na interpretação restritiva partimos de uma norma e a estendemos a casos que estão compreendidos implicitamente na sua letra ou explicitamente no seu espírito. Na analogia e na indução amplificadora o caso é omisso tanto na letra quanto no espírito de qualquer norma do ordenamento” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 276). 327

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 121-122. O autor aponta ainda, como exemplos de interpretação restritiva feita pelo STF, os sentidos atribuídos pelo Pretório Excelso aos arts. 129, IX e 86, § 4º, da Constituição Federal (p. 123-124). 328

“Embora não se trate de processos diferentes e, sim, de efeitos dessemelhantes, todavia a distinção entre extensiva e restritiva conserva importância prática: ainda convém mantê-la, desde que haja o cuidado de atribuir aos termos tradicionais significado compatível com as ideias modernas, se não preferirem substituí-los por outros mais precisos, como seriam exegese ampla e restrita, por exemplo. Realiza-se a primeira quando, em havendo dúvida razoável sobre a aplicabilidade de um texto, por extensão, ao caso em apreço, resolvem pela afirmativa; a segunda, ao verificar-se hipótese contrária, isto é, quando optam pela não aplicabilidade. Entretanto, em uma e outra emergência a escolha entre a amplitude e a estrutura depende do dever primordial de não tornar irrealizável o objetivo da regra em apreço. Tanto a exegese

170

5.2.4 Elementos clássicos de interpretação

Os chamados elementos clássicos da interpretação das normas jurídicas

(ou métodos clássicos, como preferem alguns) foram compilados por Friedrich

Carl Von Savigny em seu Sistema de Direito Romano Atual, de 1840, e

consistiam, de início, em três: o elemento gramatical, o elemento sistemático e o

elemento histórico. A estes, posteriormente foi acrescentado o elemento

teleológico, completando-se, assim, o quadro dos quatro elementos clássicos da

interpretação jurídica, usualmente apresentado da seguinte forma: gramatical,

histórico, sistemático e teleológico329.

Ainda que alguns autores se refiram a tais elementos como métodos de

interpretação, preferimos a terminologia elementos, que não deixa dúvida quanto

à circunstância – de resto reconhecida praticamente pela totalidade da doutrina –

de que o uso de um elemento na atividade interpretativa não afasta o emprego de

qualquer dos outros. Daí a inadequação do uso da terminologia interpretação

gramatical, sistemática, histórica e teleológica – que poderia equivocadamente

sugerir a adoção de apenas uma forma de interpretação em detrimento das

demais (problema que o uso do termo método também pode ensejar, ainda que

em menor grau).

Assim, a atividade interpretativa é realizada com o emprego de todos os

elementos clássicos de interpretação, concomitantemente, ainda que, em cada

caso, um ou mais elementos possam ter primazia em relação aos outros.

5.2.4.1 Elemento gramatical

rigorosa como a liberal se inspiram na letra e no espírito e razão da lei; tomam cuidado com os males que o texto se propôs evitar ou combater, e com o bem que deveria proporcionar. “Não existe, portanto, preceito absoluto. Ao contrário mais do que as regras precisas influem as circunstâncias ambientes e o fator teleológico. Até mesmo depois de firmada a preferência por um dos efeitos, ainda será força aquilatar o grau de amplitude, ou de precisão; o seu apreçamento depende de sub-regras e, sobretudo, do critério jurídico do intérprete: por exemplo, as leis fiscais suportam só exegese estrita, porém as exceções a seus preceitos, as isenções de impostos, reclamam rigor maior” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 165-166). O autor, a seguir (p. 166-167), traça diversas diretrizes a orientar a escolha do intérprete por uma interpretação extensiva ou restritiva, cuja exposição fugiria ao cerne do presente estudo. 329

Carlos Maximiliano divide os elementos clássicos da interpretação em gramatical (que prefere denominar filológico) e lógico (ob. cit., p. 86). Paulo Bonavides, por sua vez, refere-se a dois métodos, o lógico-sistemático e o histórico teleológico (Curso de Direito Constitucional, p. 445-446).

171

O elemento gramatical é o ponto de partida de toda atividade interpretativa.

A descoberta do conteúdo semântico dos termos que compõem o dispositivo legal

a ser aplicado a um caso concreto é o primeiro passo – embora, por óbvio, nunca

o único – da atribuição de sentidos que resultará, ao término do processo

interpretativo, no estabelecimento da norma a ser aplicada ao caso.

Assim, ao dar início ao processo interpretativo, o intérprete deve, antes de

mais nada, perscrutar os sentidos semânticos possíveis dos termos que

compõem a norma, encontrando aquele que melhor se adapta ao caso concreto

sobre o qual a norma incidirá330. Trata-se do primeiro momento do processo

interpretativo. Como afirma Francesco Ferrara:

A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efetivamente, o texto da lei forma o substrato de que deve partir o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as

regras gramaticais.331

Embora o direito se valha de uma linguagem técnica, construída com base

nas suas próprias necessidades e finalidades, esta é construída a partir da

linguagem cotidiana, razão pela qual se deve procurar, sempre que possível, o

sentido comum das palavras, ao se proceder à interpretação das normas.

O elemento gramatical, no entanto, é absolutamente insuficiente para levar

a uma interpretação adequada de qualquer norma, como bem o demonstra

anedótico episódio lembrado por Luís Roberto Barroso:

Em passagem deliciosamente espirituosa, o ex-Ministro Luiz Gallotti, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar um recurso extraordinário naquela eg. Corte, assinalou: “De todas, a interpretação literal é a pior. Foi por ela que Clélia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o

330

“Portanto, o primeiro esforço de quem pretende compreender pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender a linguagem empregada. Daí se originou o processo verbal, ou filológico, de exegese. Atende à forma exterior do texto; preocupa-se com as acepções várias dos vocábulos; graças ao manejo relativamente perfeito e ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem, procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 87-88). 331

FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. 2ª ed. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1963, p. 139.

172

compromisso” (citado de memória, sem acesso ao texto do

acórdão, que, aparentemente, não foi publicado).332

A insuficiência do elemento gramatical se evidencia ainda na circunstância

de que escolher um dentre os sentidos possíveis de um signo linguístico – ou de

um termo jurídico –, assim como delimitar o alcance de determinada expressão à

luz de uma situação concreta, constituem não só o ponto de partida, mas uma das

etapas do processo decisório, razão pela qual Tércio Sampaio Ferraz Jr. observa,

com precisão, que essa análise se limita a revelar e expor o problema, sem, no

entanto, resolvê-lo333.

Evidentemente, ainda que se trate de elemento insuficiente para uma

exegese válida, sua importância é indiscutível, não apenas como ponto de

partida, mas também, e de modo igualmente importante, como limite da atividade

do intérprete, mesmo nos casos – adiante analisados – de conceitos jurídicos

indeterminados. Por maior que seja a indeterminação do termo, por mais que haja

zonas cinzentas nas quais a possibilidade de subsunção do fato à norma suscite

dúvidas, sempre há, superada essa zona cinzenta, um ambiente no qual se

constata a total inaplicabilidade da norma.

Assim, podem-se atribuir inúmeros sentidos aos termos casa, propriedade,

funcionário público etc., mas há situações que não serão abrangidas por esses

termos independentemente do esforço argumentativo do intérprete. Pode, por

exemplo, haver discussão se o escritório de um profissional liberal se subsume ao

conceito de casa. Contudo, não há argumentação possível para incluir nesse

conceito a situação de um indivíduo que esteja em um espaço público. É possível

discutir se um simulacro de arma de fogo pode ser considerado “arma” para os

fins da qualificadora prevista no inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal;

332

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 128 (nota de rodapé nº 91). 333

“É óbvio que as exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem estas dúvidas. A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical, não significa, pois, o recurso a meras regras de concordância, mas sim a regras da decidibilidade. Por exemplo, se a norma em tela é cláusula de um contrato, aparecem regras como a que recomenda que se veja antes a intenção dos contraentes e não a letra da prescrição, que se observe a própria conduta dos contraentes, ou seja, o modo como estavam executando o pactuado, que, na dúvida, se interprete em favor de quem se obriga e não de quem obriga o outro etc. No fundo, pois, a chamada interpretação gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e demonstrar o problema, não para resolvê-lo. A letra da norma, assim, é apenas o ponto de partida da atividade hermenêutica. Como interpretar juridicamente é produzir uma paráfrase, a interpretação gramatical obriga o jurista a tomar consciência da letra da lei e estar atento às equivocidades proporcionadas pelo uso das línguas naturais e suas imperfeitas regras de conexão léxica” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 261).

173

contudo, não há dúvida de que a fotografia de uma arma de fogo não se

enquadraria na qualificadora em questão.

Portanto, o signo linguístico, por mais amplas que sejam suas

possibilidades interpretativas, sempre terá, além de zonas cinzentas que

suscitarão dúvidas (zonas de penumbra), uma zona de certeza positiva (em que

não haverá dúvida acerca da incidência da norma) e uma zona de certeza

negativa (na qual será indubitável, ao revés, a não incidência da norma).

Desse modo, o elemento gramatical do processo interpretativo há de ser

complementado pelos demais elementos clássicos de interpretação colacionados

por Savigny.

5.2.4.2 Elemento histórico

O elemento histórico consiste, em primeiro lugar, na análise das

circunstâncias de tempo e espaço em que foi editada a norma, a fim de que se

compreenda sua real dimensão e, a partir daí, se desvende seu sentido. A

identificação histórica não apenas dos valores que emanavam da sociedade

quando promulgada a norma, mas também da ambiência de sua edição – ou, dito

de outro modo, da natureza dos problemas que o legislador buscou solucionar

com a criação da norma – são fundamentais para a correta apreensão da occasio

legis, assim definida por Carlos Maximiliano:

Nas palavras transcritas já está caracterizada a Occasio legis: complexo de circunstâncias específicas atinentes ao objeto da norma, que constituíram o impulso exterior à emanação do texto; causas mediatas e imediatas, razão política e jurídica, fundamento dos dispositivos, necessidades que levaram a promulgá-los; fatos contemporâneos da elaboração; momento histórico, ambiente social, condições culturais e psicológicas sob as quais a lei surgiu e que diretamente contribuíram para a promulgação; conjunto de motivos ocasionais que serviram de justificação ou pretexto para regular a hipótese; enfim o mal que se pretendeu corrigir e o modo como se projetou remediá-lo, ou, melhor, as relações de fato que o legislador quis organizar

juridicamente.334

334

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 121-122.

174

Nessa investigação incluem-se os debates legislativos, exposições de

motivos da edição da lei, a existência ou não de fatos sociais relevantes que

deram ensejo à sua promulgação335 etc.

Contudo, a análise do elemento histórico não se circunscreve apenas ao

momento em que a norma a ser interpretada foi editada, podendo retroagir

inclusive às feições anteriores do instituto jurídico nela insculpido, e até mesmo à

história mais antiga tanto deste quanto de institutos que eventualmente o

precederam.

Por razões óbvias, o elemento histórico tem mais relevo nos países que

adotam o sistema da common law, no qual os precedentes judiciais têm um peso

maior no estabelecimento de parâmetros decisórios, do que no sistema da civil

law, cujo apego à tradição e à jurisprudência é bem menor.

Paulo Bonavides não trata do elemento histórico, preferindo referir-se ao

que denomina método histórico-teleológico, uma vez que, a seu ver, a mera

análise histórica, dissociada de uma investigação acerca da finalidade da norma,

seria inútil para a interpretação jurídica:

Por um de seus elementos – o histórico – o método traça toda a história da proposição legislativa, desce no tempo a investigar a ambiência em que se originou a lei, procura enfim encontrar o legislador histórico, como diz Burckhardt, a saber, as pessoas que realmente participaram na elaboração da lei, trazendo à luz os intervenientes fatores políticos, econômicos e sociais, configurativos da occasio legis.

Seu emprego insulado serviria ao historiador, não ao jurista; esclareceria negócios jurídicos, não leis. Daqui a necessidade de associá-lo ou vinculá-lo intimamente ao elemento teleológico, que indaga acerca do fim especial da norma, que só

335

É fenômeno bastante conhecido – e bastante lamentável, na maioria das vezes – a edição de leis como respostas a fatos sociais que causam profundo impacto ou comoção, gerando revolta na sociedade e fazendo com que a classe política (notadamente membros do Poder Legislativo) tome decisões de forma açodada, prescindindo dos necessários debates parlamentares e da reflexão que a edição de uma lei bem elaborada exige. É o que se verifica, por exemplo, sempre que um crime bárbaro choca a sociedade. Não houvesse a vedação constitucional a tais medidas, tanto a pena de morte quanto a redução da maioridade penal teriam grandes chances de se tornar realidades no Brasil, ante o clamor popular e o notório despreparo do Legislativo para lidar com momentos de grave comoção nacional. Nem sempre, no entanto, esse fenômeno resulta em consequências negativas. A Emenda Constitucional nº 76/2013, que alterou os arts. 55 e 56 da Constituição de 1988, para deles retirar a expressão “voto secreto”, foi o resultado do inconformismo do povo com a absolvição, pela Câmara dos Deputados, em votação secreta ocorrida em setembro de 2013, do deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO), já condenado criminalmente e expulso do partido político a que pertencia. O clamor popular levou à alteração das normas constitucionais, dando maior transparência aos processos de cassação de parlamentares. Poucos meses depois, em fevereiro de 2014, o mesmo parlamentar foi novamente julgado pela Câmara dos Deputados, em outro processo administrativo, e, com a votação sendo realizada sem a proteção do voto secreto, o mandato do parlamentar foi cassado.

175

se alcança talvez mediante aquele mergulho preconizado por Windscheid, ou seja, quando o intérprete, “debaixo da consideração de todos os momentos acessíveis, se imagina da forma mais plena possível na alma do legislador” (“sich unter Beachtung aller erreichbaren Moment möglichst vollständing in die Seele des Gesetzgebers hineinzudenken”).

Os fins que o intérprete intenta determinar, mediante o critério teleológico, tanto se acham fora como dentro das proposições legislativas, sendo igualmente importante na pluridimensionalidade desse método estabelecer a vinculação histórica, a que já nos reportamos, visto que esta consente uma captação mais precisa do sentido da norma. A conexão histórico-teleológica prosperou consideravelmente na moderna hermenêutica jurídica, sobretudo em consequência de seu emprego pelos juristas da chamada escola da jurisprudência de

interesses.336

Como já mencionado, o elemento histórico não goza de grande prestígio

entre os juristas dos países que, como o Brasil, adotam o sistema romano-

germânico337. Não obstante, esse elemento se mostra mais relevante na

interpretação constitucional do que propriamente na interpretação jurídica em

geral, em razão das peculiaridades das normas constitucionais em relação ao

restante do ordenamento – como se verá adiante.

Ainda assim, mesmo na interpretação jurídica, a investigação do elemento

histórico da norma pode fornecer relevantes subsídios para o estabelecimento do

sentido mais apropriado à sua aplicação, desde que, é claro, não redunde no

originalismo mencionado anteriormente. Com efeito, a atenção ao elemento

histórico não pode se transformar em desmedido apego, sob pena de prevalência

da voluntas legislatoris sobre a voluntas legis, o que, como já mencionado,

implicaria o engessamento da norma e sua consequente inaplicabilidade, à

medida em que as transformações sociais fossem afastando mais e mais a

realidade do sentido original da norma, até torná-la de toda inútil.

Uma vez que, assim como o gramatical, o elemento histórico é um

daqueles a ser analisados no processo interpretativo, juntamente com os demais,

apenas uma primazia desproporcional a esse elemento, em detrimento dos

outros, poderia levar a uma interpretação que transformasse a norma num

anacronismo incapaz de solucionar o problema concreto.

336

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 446. 337

“A própria Occasio legis, além de constituir um dos elementos mais fracos da Hermenêutica hodierna, antolha-se-nos menos aplicável a disposições vetustas; seu valor decresce à medida que o tempo transcorre após o surgir da regra, escrita ou consuetudinária” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 123).

176

5.2.4.3 Elemento sistemático

O ordenamento jurídico é um sistema, geralmente formado por

subsistemas, estes e aquele organizados a partir das normas jurídicas e dos

dispositivos legais que as compõem. Como sistema, o ordenamento consiste

numa unidade e assim deve ser compreendido338. Daí decorre que é necessário

interpretar a norma não de forma isolada, destacando-a do(s) sistema(s) em que

se insere, mas sim como parte de um conjunto. Assim, o sentido e o alcance da

norma só poderão ser efetivamente averiguados se esta for entendida no contexto

em que se insere. A ideia de sistema é fundamental para que se busquem na

ordem jurídica como um todo coesão e coerência339.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. esclarece que o elemento sistemático há de ser

observado “quando se enfrentam as questões de compatibilidade num todo

estrutural”340:

A primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca se deve isolar o preceito nem no seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil etc.) e muito menos na sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos). De modo geral, por exemplo, a questão de saber se uma lei pode, sem limitações, criar restrições à atividade comercial e industrial de empresas estrangeiras, leva o intérprete a buscar, no todo (sistemático) do ordenamento, uma noção padrão de empresa nacional e seu fundamento nas normas constitucionais. Assim, diante de uma lei que de fato estabelecesse tais restrições, é preciso saber se a constituição, ao estabelecer a igualdade de todos perante a lei e discriminar, ela própria, alguns casos em que o princípio se vê excepcionado (por exemplo, a propriedade e administração de empresas de TV, rádio e jornalísticas é vedada a estrangeiros), cria algum princípio geral sobre as exceções autorizadas. Portanto, se se puder dizer que, quando a constituição excepciona a regra geral da igualdade, elege como

338

“Assim, o direito positivo se não é, tende a ser um sistema. Não é mero agregado de proposições normativas, simples justaposição de preceitos, caótico feixe de normas. A própria finalidade que tem de ordenar racionalmente a conduta humana sujeita-o às exigências da racionalidade, de que a lógica é a expressão mais depurada. É da ordem da práxis, sem deixar de pertencer à ‘razão prática’” (VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p. 86-87). 339

“A interpretação sistemática decorre da consideração de que o direito é um ordenamento e, mais do que isso, um verdadeiro sistema de normas. A partir dessa concepção tem-se que o Direito não tolera contradições, devendo ser considerado como um conjunto coeso e coerente” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 101). 340

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 262.

177

qualidades da empresa a nacionalidade de proprietários e dirigentes, a nacionalidade do capital, a nacionalidade dos trabalhadores, a nacionalidade da orientação intelectual e tecnológica, a interpretação sistemática dirá que nenhuma lei (por pressuposto, subordinada à constituição) poderá criar uma nova qualidade (por exemplo a nacionalidade da matéria-prima utilizada na produção) para restringir a atividade de empresas

estrangeiras.341

O exemplo invocado pelo autor destaca a importância da ideia de

supremacia constitucional no elemento sistemático da atividade interpretativa.

Uma vez que no escalonamento hierárquico dos atuais ordenamentos jurídicos,

toda a legislação infraconstitucional há de manter conformidade com a

Constituição escrita, é inconcebível, na atualidade, que se pense na interpretação

de qualquer dispositivo sem que se analise sua conformidade com os ditames

constitucionais.

Paulo Bonavides, como já apontado, ao tratar dos métodos clássicos de

interpretação, não segue à risca a teoria de Savigny, adotando um critério distinto,

no qual elenca o já apontado método histórico-teleológico, bem como o método

lógico-sistemático:

A interpretação sistemática veio completar a interpretação lógica, representando, por conseguinte, um alargamento das potencialidades cognitivas contidas naquela forma de interpretação assente na ratio; ambas entraram assim a propor a categoria hermenêutica denominada lógico-formal.

A interpretação começa naturalmente onde se concebe a norma como parte de um sistema – a ordem jurídica, que compõe um todo ou unidade subjetiva, única a emprestar-lhe o verdadeiro sentido, impossível de obter-se se a considerássemos insulada, individualizada, fora, portanto, do contexto das leis e das conexões

lógicas do sistema.342

Carlos Maximiliano, por sua vez, diferencia expressamente o que denomina

processo lógico e processo sistemático. Para o autor, o processo lógico

consiste em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento exterior, com aplicar ao dispositivo em apreço um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à Lógica geral. Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto,

por meio do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta.343

341

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 262-263. 342

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 445. 343

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 100.

178

Distinto é – ao menos aparentemente – o processo sistemático, que,

segundo o autor, consiste “em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com

outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo

objeto”344.

Essa distinção entre os dois processos não é, contudo, tão nítida, uma vez

que, ao definir o elemento lógico, Maximiliano faz expressa referência ao “estudo

das normas em si, ou em conjunto”345.

Indiscutível é a proximidade dos dois elementos – lógico e sistemático

(sendo esta a razão pela qual Bonavides os entende como partes de um único

método, como visto). Uma vez que, como já apontado, nenhum dos elementos da

interpretação pode ser tomado isoladamente para o desenvolvimento dessa

atividade, a escolha por uma ou outra posição não leva a resultados distintos no

campo prático.

5.2.4.4 Elemento teleológico

O elemento teleológico concerne aos fins da norma, ou seja, à finalidade

que a edição da norma pretende alcançar.

A investigação dos objetivos pretendidos pelo legislador por ocasião da

criação da norma evidencia uma relação próxima do elemento teleológico com o

elemento histórico, circunstância que não passa despercebida pela doutrina.

Carlos Maximiliano destaca a aproximação entre a occasio legis e a ratio juris346,

destacada também por Luís Roberto Barroso:

A interpretação histórica cuida, como se assinalou, da occasio legis, isto é, da circunstância histórica que gerou o nascimento da lei e que constitui sua finalidade imediata. É certo, todavia, que a modificação de tais circunstâncias ou mesmo a sua cessação não exercem qualquer influência sobre o valor jurídico da norma. Daí a necessidade de se trabalhar um outro conceito – o de ratio legis –, que constitui o fundamento racional da norma e redefine ao longo do tempo a finalidade nela contida. A ratio legis é uma “força vivente móvel” que anima a disposição e a acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade de

344

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 104. 345

Idem, p. 100. 346

Idem, p. 174.

179

uma norma, portanto, não é perene, e pode evoluir sem

modificação de seu texto.347

Paulo Bonavides também reconhece a íntima vinculação entre os dois

elementos, uma vez que, como já apontado, refere-se ao método histórico-

teleológico sem apartar um elemento do outro:

Os fins que o intérprete intenta determinar, mediante o critério teleológico, tanto se acham fora como dentro das proposições legislativas, sendo igualmente importante na pluridimensionalidade desse método estabelecer a vinculação histórica, a que já nos reportamos, visto que esta consente uma captação mais precisa do sentido da norma. A conexão histórico-teleológica prosperou consideravelmente na moderna hermenêutica jurídica, sobretudo em consequência de seu emprego pelos juristas da chamada escola da jurisprudência de

interesses.348

É presumível que toda norma é criada com uma finalidade, e perscrutar

essa finalidade constitui um dos métodos, ou elementos, empregados para

desvendar o sentido da norma a ser aplicada.

A própria legislação brasileira endossa esse raciocínio. Com efeito, o art. 5º

do Decreto-lei nº 4.657/1942 (a Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro,

portanto, uma regra de sobredireito) estabelece que “na aplicação da lei, o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Ora, a determinação para que o juiz atenda aos fins sociais da norma nada mais é

que a imposição legal da observância do elemento teleológico no momento do ato

interpretativo. Barroso, no entanto, faz a seguinte observação:

Nem sempre é fácil, todavia, desentranhar com clareza a finalidade da norma. À falta de melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Marcelo Caetano, a segurança, a

justiça e o bem-estar social.349

O emprego do elemento teleológico para a elucidação do sentido da norma

não implica a prevalência da doutrina subjetivista (a busca da voluntas legislatoris

sobre a doutrina objetivista (a investigação da voluntas legis), em primeiro lugar,

por se tratar de um de vários elementos de interpretação – e é o uso conjunto

347

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 139. 348

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 446. 349

BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 140.

180

desses elementos, e não de apenas este ou aquele, que levará à apuração do

sentido da norma; em segundo lugar, a pesquisa do objetivo da norma por

ocasião de sua criação não tem o intuito de congelar no tempo a intenção do

legislador, intuito este que constitui o resultado da posição subjetivista levada aos

seus extremos, como fazem os originalistas norte-americanos. Dito de outro

modo, a constatação da finalidade da norma por ocasião de sua edição não leva à

vinculação do intérprete aos valores vigentes naquela ocasião; em terceiro lugar,

uma vez que a finalidade da norma não se confunde com a vontade histórica do

legislador (voluntas legis), é justamente a conjugação da occasio legis com a ratio

juris que permite a ocorrência da chamada interpretação evolutiva, que não

apenas evita a imutabilidade do sentido da norma ao longo do tempo (o que

resultaria em sua progressiva e inevitável inutilidade, à medida em que a

sociedade evoluísse e a realidade se afastasse da situação que a norma intentara

regular), como também garante sua adaptabilidade frente às mudanças sociais.

Todos os elementos de interpretação têm relevância para o deslinde do

sentido da norma. Contudo, a doutrina costuma destacar o valor dos elementos

sistemático e teleológico na atividade interpretativa. Barroso afirma que “o método

sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo”350.

Maximiliano, por sua vez, afirma que o direito é “uma ciência primariamente

normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na

essência, teleológica”351. O elemento gramatical, embora não lhe seja atribuída tal

importância, e a despeito da sua patente insuficiência (quando isoladamente

empregado), consiste no ponto de partida sem o qual as análises sistemática e

finalística da norma seriam impossíveis. É ao elemento histórico que a doutrina

atribui a menor importância, a ponto de Maximiliano afirmar que “a própria

Occasio legis, além de constituir um dos elementos mais fracos das Hermenêutica

hodierna, antolha-se-nos menos aplicável a disposições vetustas; seu valor

decresce à medida que o tempo transcorre após o surgir da regra, escrita ou

consuetudinária”352.

350

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 136. 351

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 124. 352

Idem, p. 123.

181

5.2.5 Interpretação evolutiva

A interpretação evolutiva é consequência direta da prevalência da voluntas

legis sobre a voluntas legislatoris. Significa que a interpretação há de se amoldar

aos valores da sociedade sobre a qual a norma incide, o que implica a

possibilidade de mudança de sentido da norma sem alteração do seu texto.

Segundo Miguel Reale, “as normas valem em razão da realidade de que

participam, adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas

inalteradas as suas estruturas formais”353.

As expressões “doença mental” e “mulher honesta”, constantes,

respectivamente, dos arts. 26, 215 e 219 do Código Penal (estes dois últimos, em

sua antiga redação354), são exemplos de expressões que receberam interpretação

evolutiva, porque os sentidos inicialmente atribuídos a tais termos tornaram-se

anacrônicos com o passar do tempo e a evolução social.

A expressão “doença mental” há de receber o sentido atribuído pela ciência

médica, mesmo no âmbito do direito, podendo sofrer alterações de acordo com os

avanços dessa ciência. Cite-se, à guisa de exemplo, que apenas no dia 17 de

maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade de

sua lista internacional de doenças. Até então, a homossexualidade era

considerada uma patologia mental.

Quanto à expressão “mulher honesta”, oriunda da redação original do

Código Penal desde 1940 (e mantida na reforma de 1984), durante décadas foi

adotada pela doutrina e pela jurisprudência com o sentido de “mulher virgem”.

Apenas esta gozava da proteção contra os delitos de natureza sexual definidos

nos arts. 215 e 219 do Código Penal. Refletindo os valores típicos da época,

Nelson Hungria ensinava que a expressão “mulher honesta” designava “não

somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista moral, é irrepreensível, senão

também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigidos

pelos bons costumes”355.

353

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 594. 354

A Lei nº 11.106/2005 substituiu a expressão “mulher honesta” por “mulher” nos dois dispositivos. 355

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 8. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 139.

182

Com o passar do tempo, o requisito da virgindade foi flexibilizado pela

jurisprudência. Por exemplo, em decisão proferida no ano de 2002, o STJ

consignou que

A expressão “mulher honesta”, como sujeito passivo do crime de posse sexual mediante fraude, deve ser entendida como a mulher que possui certa dignidade e decência, conservando os valores elementares do pudor, não sendo necessário, portanto, a abstinência ou o desconhecimento a respeito da prática sexual.

(g.n.)356

Posteriormente, a evolução da sociedade levou à reforma do texto dos arts.

215 e 219 do Código Penal. Com a superação dos valores machistas vigentes na

sociedade por ocasião da prolação das normas, e com a conquista cada vez mais

consolidada da igualdade entre homens e mulheres constitucionalmente garantida

a partir da Constituição de 1988, o anacronismo dos dispositivos foi superado com

a edição da Lei nº 11.106/2005, que retirou o adjetivo “honesta” de seus textos,

estendendo assim a proteção legal a todas as mulheres, independentemente de

qualquer julgamento moral de suas condutas.

Contudo, mesmo antes dessa relevante alteração legislativa, a própria

sociedade já alterara seus valores em relação à ideia de “mulher honesta” dos

anos 40 do século XX, o que levou, como visto, a uma alteração de sentido da

expressão contida nas referidas normas penais, alteração esta promovida por

meio de interpretação evolutiva.

5.2.6 Interpretação e integração. Analogia. Costumes

Como mencionado anteriormente, a interpretação não se confunde com a

integração, processo empregado para o suprimento das lacunas no ordenamento

jurídico.

Costuma-se afirmar que não existem lacunas no direito, apenas na lei.

Com efeito, sustenta-se que, ainda que não haja uma norma específica para

regular uma determinada situação, a solução há de ser haurida da própria ordem

jurídica.

356

STJ, HC nº 21129-BA 2002/0026118-0, publ. 16.09.2002.

183

Karl Engish define a lacuna como “uma incompletude insatisfatória no seio

de um todo. Aplicado ao Direito, o conceito de lacuna significa que se trata de

uma incompletude insatisfatória no seio do todo jurídico”357.

O suprimento das lacunas jurídicas se dá por meio da integração

analógica, ou simplesmente analogia.

5.2.6.1 Analogia

A analogia é técnica empregada para o suprimento de uma lacuna, da

inexistência da norma no sistema. Não se trata, pois, de espécie de interpretação,

pois não se interpreta o que não existe, e sim de modo de integração das normas

jurídicas. O recurso à analogia é consequência da impossibilidade de admitir a

inexistência de solução para um caso concreto a partir do ordenamento jurídico

como um todo. Ainda que não haja norma específica para a solução de um

problema jurídico específico, supõe-se que o sistema, analisado em sua

totalidade, guarda em seu bojo a viabilidade de resolução de qualquer problema

jurídico. Admitir a existência de uma lacuna insolúvel implicaria admitir a

inexistência de coerência e unidade no ordenamento. A atividade interpretativa,

ao contrário, tem por premissa o reconhecimento do direito como unidade358.

Como afirma Karl Engish,

Na medida em que a interpretação baste para responder às questões jurídicas, o Direito não será, pois, lacunoso. Pelo contrário, a “analogia” possui já uma função integradora. Ela não

exclui as lacunas, mas fecha-as ou colmata-as.359

Engish reconhece a existência de lacunas voluntárias e involuntárias360,

mas assevera, peremptoriamente (embora reconheça a existência de doutrina em

357

ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 276. 358

“A possibilidade de analogia parte exatamente desse pressuposto, ou seja, da coerência do Direito. Assim, a unidade do Direito é um pressuposto com que deve atuar o intérprete, não podendo desempenhar sua atividade sem admiti-a, sob pena de mal desempenhar sua função” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 101) 359

Idem, p. 280. 360

No mesmo sentido, afirma Luís Roberto Barroso: “As lacunas na legislação podem ser de várias espécies, inclusive intencionais – frutos da omissão deliberada do legislador – e involuntárias, quando ocorrem por deficiência do legislador ou pela superveniência de situações inexistentes à época da edição da norma” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 141).

184

sentido oposto), que os conceitos jurídicos indeterminados não constituem

exemplo de lacuna voluntária:

Ela [a analogia] não exclui as lacunas, mas fecha-as ou colmata-as. O mesmo vale dizer daquelas considerações jurídicas que se apoiam nos “princípios gerais do Direito”. E também quando o legislador consciente e propositadamente deixou uma questão jurídica “em aberto” para decisão, uma questão que ele “deixou ao parecer da ciência e da prática” (tal como é o caso, v. gr., segundo a expressa declaração de motivos anteposta ao Código Penal, da tentativa inadequada (impossível) de um acto criminoso), teremos de falar duma lacuna. Nestes termos, existem não só lacunas involuntárias como também lacunas voluntárias. Inversamente, em minha opinião, já não deveria falar-se de lacuna quando o legislador, através de conceitos normativos indeterminados, ou ainda através de cláusulas gerais e cláusulas discricionárias, reconhece à decisão uma certa margem de variabilidade (difrerentemente, em todo caso, PH HECK). Com efeito, aqui apenas nos encontramos perante afrouxamentos planeados da vinculação legal, para efeitos, designadamente, de ajustamento da decisão às circunstâncias particulares do caso concreto e às concepções variáveis da comunidade jurídica. Além disso, são sempre aqui prefixadas pela lei à autoridade que decide certas linhas de orientação e certos limites. (...) Aceita-se em todo o caso que a linha de fronteira entre a aplicação do Direito secundum legem e o preenchimento de lacunas praeter legem se torna pouco nítida nas cláusulas gerais e nas cláusulas discricionárias. Por último, decerto que é uma questão terminológica a maior ou menor

extensão do conceito de lacuna.361

O emprego da analogia para a solução de um problema jurídico, assim,

consiste no uso de uma norma jurídica destinada a regular outra hipótese legal,

com a qual guarde algum elemento de similaridade, em uma ambiência para a

qual tal norma não fora prevista. Segundo Maria Helena Diniz, a analogia

“consiste em aplicar, a um caso não regulado de modo direto ou específico por

uma norma jurídica, uma prescrição normativa para uma hipótese distinta, mas

semelhante ao caso não contemplado, fundando-se na identidade do motivo da

norma e não na identidade do fato”362.

Carlos Maximiliano observa com precisão que a analogia pressupõe “uma

hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva” 363:

A Analogia ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em dispositivo nenhum, e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins; a

361

ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 280-281. 362

DINIZ, Maria Helena. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 140-141. 363

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 173.

185

interpretação extensiva completa a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito explícito, embora não compreendida na letra deste.

Os dois efeitos diferem, quanto aos pressupostos, aos fins e ao resultado: a analogia pressupõe falta de dispositivo expresso, a interpretação pressupõe a existência do mesmo; a primeira tem por escopo a pesquisa de uma ideia superior aplicável também ao caso não contemplado no texto; a segunda busca o sentido amplo de um preceito estabelecido; aquela de fato revela uma norma nova, esta apenas esclarece a antiga; numa o que se estende é o princípio; na outra, na interpretação, e a própria regra que se dilata.

Em resumo: a interpretação revela o que a regra legal exprime, o que da mesma decorre diretamente, se a examinam com inteligência e espírito liberal; a analogia serve-se dos elementos de um dispositivo e com o seu auxílio formula preceito novo, quase nada diverso do existente, para resolver hipótese não prevista de modo explícito, nem implícito, em norma alguma.

Identificam-se a analogia e a exegese ampla, quanto a uma particularidade, têm um ponto em comum: uma e outra servem para resolver casos não expressos pelas palavras da

lei.364

Paulo Bonavides usa a expressão interpretação analógica365, mas

imediatamente aponta a sua inadequação:

Vejamos a seguir a chamada interpretação analógica. Em rigor não há interpretação analógica, mas um processo de integração por analogia. Tudo está contido no sistema jurídico. Somente graças a essa unidade é que se permite falar em interpretação analógica, visto que o aplicador da lei, tendo recurso à analogia, em verdade não cria um novo direito nem se coloca na posição de legislador, mas tão somente cumpre a tarefa de descobrir ou explicitar um direito latente, que já existe no interior do sistema. A teoria da analogia, segundo Nawiasky, é apenas um método de preenchimento de lacunas.

Com efeito, uma controvérsia demanda solução; em faltando, porém, a norma precisa que regule a espécie contemplada, o intérprete vale-se da disposição contida numa regra legal aplicável a casos semelhantes ou matérias análogas e por essa via opera e confirma a máxima da coesão e unidade lógica do sistema jurídico (logische Geschlossenheit des Rechtes).

A interpretação propriamente dita transcorre num quadro mais restrito ou limitado – secundum legem – de modo que aquilo que não puder ser extraído da lei considera-se como não legislado. Mas o intérprete tem saltado além desses limites, para uma interpretação analógica (praeter legem) e livre (eventualmente contra legem).

A verdadeira interpretação para alguns é no entanto aquela que se contem nos limites da lei (secundum legem).

364

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 175. 365

Em Direito Penal, a doutrina e jurisprudência costumam distinguir a analogia da interpretação analógica, denominação dada à interpretação extensiva naquela seara. No âmbito penal, a analogia é expressamente vedada, sob pena de violação do princípio da legalidade insculpido no art. 5º, inciso II da Constituição Federal. Já a interpretação analógica, por consistir numa operação intelectual de revelação do sentido da lei, é admitida.

186

Quando passa porém da lei e invoca institutos afins, já não seria em rigor interpretação senão analogia (praeter legem). Se, enfim, conclui em sentido contrário à lei, é criação jurídica, com o intérprete se arvorando tacitamente em substituto do legislador ao desempenhar, como usurpador, funções de manifesto teor legislativo, que lhe não foram cometidas, e só por um abuso ou excesso de linguagem se poderia ainda nesse caso falar de interpretação. Como assinalamos, ao invés do intérprete, teríamos então a presença do legislador. Há contudo juristas que entendem, como Burckhardt, que todo intérprete legisla, o que não procede, conforme veremos.

A interpretação analógica distingue-se da interpretação extensiva, posto que com ela mantenha estreitos pontos de contacto. A primeira patenteia sempre uma lacuna, uma ausência de norma expressa, de modo que ao intérprete se faculta buscar “um novo direito” com apoio na identidade de fundamento. Já na interpretação extensiva existe a norma, que embora deficiente ou

imperfeita, contém uma disposição aplicável.366

A jurisprudência, por vezes, principalmente na esfera penal, também usa a

expressão “interpretação analógica” como sinônimo de interpretação extensiva,

embora, como bem observou Bonavides, não haja, a rigor, uma interpretação

analógica:

3. Não se pode confundir analogia com interpretação analógica ou extensiva. A analogia é técnica de integração, vale dizer, recurso de que se vale o operador do direito diante de uma lacuna no ordenamento jurídico. Já a interpretação, seja ela extensiva ou analógica, objetiva desvendar o sentido e o alcance da norma, para então definir-lhe, com certeza, a sua extensão. A norma existe, sendo o método interpretativo necessário, apenas, para precisar-lhe os contornos. (STJ, REsp nº 121428 RJ 1997/0014040-7)

A legislação brasileira determina expressamente que o juiz, na qualidade

de aplicador do direito, se valha da analogia no caso de omissão legislativa. Diz o

art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº

4.657/1942) que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a

analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

Nem sempre, porém, o emprego da analogia consiste na aplicação de uma

norma jurídica específica, criada para regular a situação “a”, a uma situação “b”,

com a qual guarde tal ou qual similaridade. É possível que a solução seja

buscada na ordem jurídica como um todo, por meio da conjugação de diversos

dispositivos esparsos, justamente por não haver um único que seja aplicável,

366

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 442-443.

187

mesmo que por analogia, para a solução do problema que se busca. A primeira

hipótese – em que uma norma jurídica é usada por analogia – é denominada pela

doutrina de analogia legis; à segunda hipótese, quando a solução é buscada no

sistema, dá-se o nome de analogia juris. Karl Engish traça a distinção entre

analogia da lei e analogia do Direito:

Distingue-se tradicionalmente entre analogia da lei e analogia do Direito. São estes mais ou menos os termos da distinção: Ao passo que a analogia da lei parte de uma regra jurídica isolada (...) e dela retira um pensamento fundamental aplicável a casos semelhantes, a analogia do Direito parte “duma pluralidade de normas jurídicas” (assim ENNECCERUS). Um exemplo de analogia do Direito surge, v. gr., quando, de uma série de preceitos individuais do Código Civil que impõe a obrigação de indenizar por uma conduta culposa em face da contraparte contratual, na fase de contratação (...), se deriva o princípio geral de que logo a simples iniciação das negociações fundamenta um dever de cuidado entre as partes cuja violação induz em responsabilidade por perdas e danos (a chamada responsabilidade por culpa in contrahendo). Vê-se claramente que a distinção entre analogia da lei e analogia do Direito, assim entendida, no fundo apenas se refere à base de indução usada na elaboração do pensamento fundamental, base essa que num caso é mais restrita e no outro é mais ampla. Com razão se poderia,

pois, dizer que apenas se trata aqui de uma diferença de grau.367

Num e noutro caso, a analogia não implica criação de direito, uma vez que

a solução encontrada, seja na lei, seja no sistema, já existe, ao menos em estado

latente, no ordenamento jurídico.

A analogia é empregada com frequência nos âmbitos do Direito Civil368 e

do Direito Penal – sendo permitida, nessa última seara, apenas a chamada

analogia in bonam partem, ou seja, benéfica ao acusado369.

367

ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 295-296. 368

Maria Helena Diniz observa que “na seara do direito civil larga é a aplicação da analogia”, colacionando inúmeros exemplos de seu emprego (DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito, p. 149-150). 369

Exemplificativamente: TJ-SP - Agravo de Execução Penal EP 990092873334 SP (TJ-SP). Data de publicação: 26/03/2010. Ementa: “EXECUÇÃO PENAL - PEDIDO DE LIVRAMENTO CONDICIONAL - PENAL INFERIOR A DOIS ANOS -RÉU REINCIDENTE - APLICAÇÃO DA ANALOGIA INBONAM PARTEM DO ARTIGO 83 DO CÓDIGO PENAL - CONCESSÃO - CABIMENTO. Em virtude da ausência da lacuna legislativa para concessão de benefícios penais ao reeducando, reincidente e condenado a pena inferior a dois anos, aplica-se a analogia in bonam partem do artigo 83 do Código Penal para conceder-lhe o benefício do livramento condicional”; TRF-1 - APELAÇÃO CRIMINAL ACR 39340 MG 0039340-56.2005.4.01.3800 (TRF-1) Data de publicação: 09/11/2010. Ementa: “PENAL. MOEDA FALSA ( CP : ART. 289, § 1º). DOSIMETRIA DA PENA.APLICAÇÃO DA ANALOGIA IN BONAM PARTEM. DIMINUIÇÃO DA PENA PREVISTA NO CRIME DE FURTO ( CP : ART. 155, § 2º). IMPOSSIBILIDADE. PENA-BASE. MANUTENÇÃO COMO DEFINITIVA. REFLEXOS NA PENA DE MULTA. APELO PROVIDO. 1. A analogia pressupõe, para o seu uso, uma lacuna involuntária (art. 4º da LICC ). Precedentes do Col. STJ. 2. Não se pode pretender aaplicação da analogia, com o ajuste de cominações legais de tipos penais diversos, ainda que in bonam partem, de forma a abranger hipótese não

188

5.2.6.2 O costume

O costume também é elencado no art. 4º do Decreto-lei nº 4.657/1942

como fonte supletiva das lacunas jurídicas. Consiste nos usos e práticas adotados

rotineiramente no mundo jurídico, cuja reiteração lhes confere natureza de fonte

do direito, transformando-os em normas de direito consuetudinário.

Nota distintiva do costume em relação à lei é a dificuldade de localização

de sua origem, no espaço e no tempo. Ao contrário da lei, cujo momento de

ingresso no universo jurídico é plenamente identificável, o costume consolida-se

ao longo do tempo, surge de forma espontânea e involuntária370, consistindo na

transformação de um hábito social em um hábito jurídico, como apontado por

Miguel Reale:

A origem da lei, portanto, não sofre qualquer dúvida, porquanto o órgão, que tem competência para editá-la, já está anteriormente previsto, com sua linha de atividade claramente demarcada no espaço e no tempo.

O Direito costumeiro, ao contrário, não tem origem certa, nem se localiza ou é suscetível de localizar-se de maneira predeterminada. Geralmente não sabemos onde e como surge determinado uso ou hábito social, que, aos poucos, se converte em hábito jurídico, em uso jurídico.

O Direito costumeiro nasce por toda parte, de maneira anônima, ao passo que a lei, desde a sua origem, se reveste de

segurança e de certeza.371

A informalidade do processo de consolidação do costume torna, inclusive,

seu conteúdo menos nítido do que o da norma posta, dada a impossibilidade de

verificação imediata tanto de seu real alcance quanto do momento de seu

surgimento.

mencionada no dispositivo legal, até porque, na esfera penal, deve-se adotar o fundamento constitucional. 3. A composição feita na sentença extrapola a atividade judicatória, porquanto o nosso ordenamento jurídico não confere ao magistrado a criação de uma norma jurídica inexistente no direito positivo, decorrente da colagem de tipos penais diversos. 4. Apelação do MPF provida para tornar definitiva a pena-base imposta ao réu, com reflexos na pena de multa” (A partir de: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=APLICA%C3%87%C3%83O+DA+ANALOGIA+IN+BONAM+PARTEM> Acesso em 28.01.2015). 370

“Ao mencionarmos as fontes internacionais fizemos referência ao costume. Isso nos conduz a um segundo grupo de fontes, de objetividade menor, posto que a formulação de suas normas exige um procedimento difuso, que não se reduz a um ato básico, como é a promulgação. Um costume, por exemplo, não se promulga: ele se cria, se forma, se impõe sem que neste processo se possa localizar um ato sancionador” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Ob. cit., p. 217). 371

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 155-156.

189

A doutrina372 costuma apontar a necessidade de dois elementos para a

caracterização do costume jurídico: o uso e a convicção jurídica, “sendo portanto

a norma jurídica que deriva da longa prática uniforme, constante, pública e geral

de determinado ato com convicção de sua obrigatoriedade”373. Em suma, para

considerável parte da doutrina, o que distingue o costume, em termos jurídicos,

do mero uso (social) é a convicção da obrigatoriedade de sua observância.

A despeito desse entendimento consolidado, Tércio Sampaio Ferraz Jr.

observa, com argúcia, que adotar o critério da convicção da obrigatoriedade para

distinguir o mero uso do costume jurídico resulta em uma tautologia:

O costume é uma forma típica de fonte do direito nos quadros da chamada dominação tradicional no sentido de Weber. Baseia-se, nestes termos, na crença da tradição, sob a qual está o argumento de que algo deve ser feito, e deve sê-lo porque sempre o foi. A autoridade do costume repousa, pois, nesta força conferida ao tempo e ao uso contínuo como reveladores de normas, as normas consuetudinárias. Aqui também há de se distinguir entre costume como regra estrutural e norma costumeira como elemento do sistema do ordenamento.

A doutrina discute o costume, procurando estabelecer-lhe a origem dessa força compulsória. Fala-se, via de regra, em dois requisitos: o uso continuado e a convicção da obrigatoriedade (opinio necessitatis sive obligationis). Com isso quer-se distinguir o simples uso do costume. Há socialmente condutas que se repetem (por exemplo, acender a luz quando está escuro, tomar três refeições ao dia, vestir-se conforme a moda etc.) que, não trazendo a nota da convicção social da obrigatoriedade, não são costumes. A noção, contudo, é imprecisa. A convicção do caráter normativo do costume não pode ser explicada pela convicção do seu caráter obrigatório. Isto seria uma tautologia, como se disséssemos que uma prescrição é um enunciado que

prescreve.374

Se a convicção da obrigatoriedade não basta para distinguir o costume

jurídico do simples uso, como proceder a essa distinção? Após refutar as

hipóteses de “expectativa de reação quando um uso continuado é contrariado, o

que provoca uma desaprovação acompanhada de sanções sociais difusas ou faz

com que se recorra ao juízo de uma autoridade”, e de apelo à ordem jurídica

como um todo (“A convicção da obrigatoriedade repousaria na própria ordem que,

372

Maria Helena Diniz elenca, nesse sentido: Storn, Windscheid, Gierke, Clóvis Beviláqua, Vicente Ráo e Washington de Barros Monteiro (in Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interpretada, p. 124-125. 373

Idem, p. 125. 374

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 217.

190

globalmente, confere a certos usos o reconhecimento necessário”375), por

entendê-las inaceitáveis como fundamento da convicção da obrigatoriedade, o

autor busca na noção (sociológica) de institucionalização a solução para o

problema, entendida como expectativa de consenso e engajamento pelo silêncio

em torno de determinada prática:

A opinio necessitatis tem algo a ver com consenso social. Não se trata, porém, de uma relação direta, isto é, opinio necessitatis como manifestação expressa de uma adesão, pois, muitas vezes, como se observa, o consenso explícito gera controvérsia e esgota rapidamente seu potencial (vide, por exemplo, o efeito contraditório das pesquisas de opinião pública em véspera de eleição). A convicção da obrigatoriedade tem antes fundamento numa expectativa de consenso, melhor dito, na suposição bem-sucedida de que todos concordam, o que pressupõe, na verdade, uma capacidade social limitada para conceder atenção a tudo que ocorre. É isto que explica o engajamento pelo silêncio. Nesse sentido, a institucionalização é um mecanismo social que nos permite avaliar com sucesso a expectativa geral. (...) A convicção geral da obrigatoriedade, a opinio necessitatis, tem fundamento na institucionalização assim entendida. Ela repousa neste silêncio que presumidamente se rompe quando se quebra um uso

reiterado.376

Ainda que se trate de uma fonte do direito, o costume não tem a mesma

força da norma escrita. Como bem observa Maria Helena Diniz:

Porém, com o art. 4º da atual Lei de Introdução, situa-se o costume imediatamente abaixo da lei, pois o magistrado só poderá recorrer a ele quando se esgotarem todas as potencialidades legais para preencher a lacuna. O costume é uma fonte jurídica,

porém em plano secundário.377

A autora observa ainda que o costume “se forma pela prática dos

interessados, pela prática judiciária e pela doutrina”378. A prática dos interessados

constitui os usos sociais, os quais, somados à já apontada opinio necessitatis,

transformam o hábito e o costume em direito consuetudinário. A prática dos

tribunais consiste na atividade jurisprudencial. Tem maior revelo, para o presente

estudo, a jurisprudência constitucional, adiante analisada. Finalmente, a doutrina

375

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 217. 376

Idem, p. 218. 377

DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito, p. 124. 378

Idem, p. 125.

191

pode consolidar o costume na medida de sua capacidade de influenciar a

aplicação do direito pelo Judiciário379.

Distinguem-se, doutrinariamente, três categorias de costume: (i) o costume

secundum legem; (ii) o costume praeter legem; e (iii) o costume contra legem.

O costume secundum legem é aquele previsto em lei. É o caso dos arts.

1.297, § 1º, 569, II, 597, 615 e 965, I, todos do Código Civil380.

O costume praeter legem é aquele voltado ao suprimento da omissão

legislativa, tendo, pois, caráter subsidiário à lei. É o caso do art. 4º do Decreto-lei

nº 4.657/942, que determina expressamente o uso, pelo juiz, dos costumes,

quando a lei for omissa, e quando o recurso à analogia não bastar para o

suprimento da lacuna381.

Finalmente, o costume contra legem é aquele que contraria frontalmente o

direito positivo382. Trata-se, em princípio, de revogação da norma positivada pelo

direito consuetudinário, prática que não é admitida nem pela doutrina, nem pela

jurisprudência, como observa Carlos Maximiliano:

O contra legem, o costume implicitamente revogatório dos textos positivos, consuetudo abrogatoria, apesar dos esforços de uma corrente ultra-adiantada de doutrina jurídica, ainda não encontra apoio nos pretórios, nem tampouco em cátedras universitárias: deve ser posto à margem; assim exige a letra do art. 4º da Introdução do Código Civil: “A lei só se revoga, ou derroga por outra lei”. Consuetudinis ususque longoevi non vilis auctoritas est: verum non usque adeo sui valitura momento, ut aut rationem vincat, aut legem: “Não é pequena a autoridade do

379

“Deveras, é nos tratados que os juristas apresentam sua interpretação das normas e soluções prováveis para casos não contemplados por lei; logo, se suas ideias forem aceitas pelos seus contemporâneos, fixam-se em doutrina, que irá inspirar juízes e tribunais” (DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito, p. 125). 380

A enumeração desses artigos é feita por Maria Helena Diniz (ob. cit., p. 126). 381

O costume praeter legem “é invocado, quando malsucedida a argumentação analógica, nas hipóteses de lacuna, por exemplo, a função natural do cheque é ser um meio de pagamento à vista. Se emitido sem fundos, poder do Banco sacado, ficará quem o emitiu sujeito à sanção penal. Entretanto, muitas pessoas vêm, reiterada e ininterruptamente, emitindo-o não como uma mera ordem de pagamento, mas como garantia de dívida, para desconto futuro, na convicção de que esse procedimento não constitui crime. Tal costume de emitir cheque pós-data, baseado em hábito da época, realizado constante e uniformemente e na convicção de que se trata de uma norma de direito civil, com se se tratasse de um sucedâneo de uma letra de câmbio ou de uma promessa de pagamento, faz com que o magistrado se utilize dessa norma consuetudinária como fonte supletiva da lei, declarando a inexistência do crime” (DINIZ, Maria Helena. Ob. cit., p. 126-127). 382

“A grande maioria dos autores rejeita o costume contra legem por entendê-lo incompatível com a tarefa do Estado e com o princípio de que as leis só se revogam por outras. Realmente, poder-se-á afirmar que a problemática do costume contra legem é de natureza política e não jurídica, pois se trata de uma questão de colisão de poderes” (DINIZ, Maria Helena. Ob. cit., p. 127-128).

192

costume e do uso diuturno; contudo não prevalecerá a ponto de

sobrepor-se à razão ou à lei”.383

Em sentido contrário, Maria Helena Diniz admite sua eficácia, apenas, no

entanto, de modo excepcional:

Poder-se-á admitir a eficácia do costume contra legem em certos casos excepcionais de lacuna, mediante a aplicação do art. 5º da Lei de Introdução, mas não sua força ab-rogatória, revogando uma lei. Em princípio, o costume não pode contrariar a lei, pois esta só se modifica ou se revoga por outra da mesma hierarquia ou de hierarquia superior (LICC, art. 2º). Todavia, no direito brasileiro há casos em que os juízes aplicaram o costume contra legem (RT, 132:660-2; RTJ, 54:63), resolvendo, no caso sub judice, apenas, uma lacuna ontológica, p. ex., sem que com isso haja alguma

revogação legal.384

Entendemos inviável a eficácia do costume contra legem mesmo em

situações excepcionais, pelas razões apontadas pela doutrina que, em peso,

rejeita tal hipótese: a revogação ou ab-rogação de uma norma jurídica positivada

não se pode dar por meio do costume, nem mesmo em casos isolados, pois tais

fenômenos só podem resultar de outra norma igualmente positivada,

hierarquicamente igual ou superior à norma que se pretende revogar ou ab-rogar.

O costume tem grande relevância na interpretação constitucional,

principalmente nos países que adotam o constitucionalismo anglo-saxão, nos

quais o precedente judicial tem maior força do que naqueles que seguem a

tradição romanística – o que será analisado oportunamente.

5.2.6.3 Os princípios gerais do Direito

Importa, ainda que de forma breve, mencionar os princípios gerais do

Direito, a partir dos quais, com a cristalização da ideia de princípios

constitucionais (como espécie do gênero normas constitucionais, do qual fazem

parte, ainda, como espécie, as regras), consolida-se relevante categoria jurídica,

com íntima relação com o objeto do presente estudo, uma vez que é inviável a

ideia de uma principiologia constitucional sem que se admita, como corolário

383

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 156. 384

DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito, p. 127.

193

fundamental, a existência de termos vagos, abertos e amplos no texto

constitucional, aptos a viabilizar essa principiologia385.

Os princípios gerais de Direito, contudo, não se confundem com os

princípios constitucionais – ainda que aqueles possam vir a ser convertidos

nestes.

Ainda que tal denominação peque pela imprecisão, André Ramos Tavares

observa que “parcela ponderável da doutrina continua, ainda, denominando

alguns princípios inseridos na Constituição como princípios gerais de Direito,

utilizando-se, pois, de terminologia capaz de gerar alguma confusão dada, a

carga histórica que cerca a noção propugnada”386.

Nesse sentido, Joaquim Arce Flórez-Valdés define os princípios gerais de

direito como “as ideias fundamentais sobre a organização jurídica de uma

comunidade, emanadas da consciência social, que cumprem funções

fundamentadora, interpretativa e supletiva a respeito de seu ordenamento

jurídico”387. Esses princípios, pois, constituiriam os objetivos fundamentais do

ordenamento jurídico, guardando assim íntima relação com o já estudado

elemento teleológico da interpretação.

Uma vez que os objetivos fundamentais de determinada ordem jurídica se

encontram, na atualidade, expressamente consignados nos documentos

constitucionais das sociedades, não surpreende a identificação, feita por parte da

doutrina, entre os princípios gerais de Direito e aqueles valores que, como visto,

não só emanam do texto constitucional, como nele estão expressamente

positivados como resultado da superação do positivismo jurídico ocorrida no pós-

Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, esclarece André Ramos Tavares:

Não é difícil compreender, pois, a razão pela qual se identificam, em parcela da doutrina, aqueles valores, de que se vinha tratando, com os denominados “princípios gerais de Direito”, incluindo a ideia de que “deve ser na Constituição onde mais propriamente hão de figurar incluídos, sem qualquer conotação, pois, que identifique, nessa categoria, os princípios do Direito Natural. (...)

É preciso, contudo, esclarecer que, embora não haja um consenso em torno da noção de princípios gerais do Direito como

385

Essa textura aberta constitui, como se verá adiante, um dos fatores mais relevantes para a caracterização da distinção entre uma interpretação “ordinária” e uma interpretação autenticamente constitucional. 386

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 139. 387

FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce. Los princípios generales Del Derecho. Madri: Civistas, 1990, p. 79.

194

princípios constitucionais, e menos ainda quanto a seu exato conteúdo, a verdade é que os valores supremos estão incrustados nesses princípios gerais de Direito, como visto, embora não haja, é certo, consenso em torno de sua enumeração. Contudo, não são apenas os princípios gerais de Direito que perfazem os chamados “preceitos constitucionais fundamentais”. Estes, como já sublinhado, são tanto princípios como regras, todos, contudo, marcados pela nota da fundamentalidade, que é encontrada por

referência a esses valores supremos.388

De qualquer modo, há que se distinguir os princípios gerais de Direito

daqueles princípios constitucionais conformadores não só da ordem jurídica

infraconstitucional, como também norteadores da interpretação jurídica como um

todo. Até porque, como apontado na doutrina epigrafada, com a qual

concordamos, as normas fundamentais de determinado ordenamento jurídico não

se restringem a princípios constitucionais (malgrado sua relevância), sendo

encontradas, ainda, em regras constitucionais (sendo regras e princípios

subespécies do gênero normas jurídicas, especialmente normas constitucionais,

conforme adiante especificado).

Estabelecidas, assim, as premissas basilares da hermenêutica tradicional,

válidas para as normas jurídicas como um todo (e, portanto, em certa medida

também para as normas constitucionais, uma vez que, como temos afirmado

desde o início, a hermenêutica constitucional nada mais é do que um

desdobramento ou desenvolvimento realizado a partir desses postulados

hermenêuticos tradicionais, adaptados, porém, às peculiaridades das normas

constitucionais, adiante especificadas), impende cotejar o método “clássico” com

as apregoadas inovações que, segundo considerável parte da doutrina, tornam a

interpretação jurídica constitucional um campo do conhecimento distinto da

interpretação jurídica geral (e que, de acordo com outra parte da doutrina – da

qual discordamos – não constituem efetivas “inovações”).

388

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 140.

195

6 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Como temos afirmado desde o início deste trabalho, as normas

constitucionais ostentam particularidades não encontradas no ordenamento

jurídico ordinário ou infraconstitucional, particularidades estas que levaram à

construção de uma hermenêutica própria (cuja existência é contestada por parte

da doutrina).

Ainda que a interpretação constitucional seja uma espécie de interpretação

jurídica389 – devendo, pois, se submeter aos princípios e métodos de

interpretação basilares a qualquer norma jurídica – as normas constitucionais têm

estrutura e conteúdo próprios, que as tornam substancialmente diversas das

demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Sua própria rigidez, ou

seja, a maior dificuldade de sua alteração em relação às normas

infraconstitucionais390, evidencia a relevância da atividade interpretativa como

forma de constante atualização da constituição391. A estrutura e o conteúdo

389

A hermenêutica jurídico-constitucional, contudo, não ignora os processos que presidem a interpretação jurídica em geral. Nesse sentido, sua natureza é idêntica à da interpretação jurídica” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 102). 390

Oscar Vilhena Vieira lembra, no entanto, que a Constituição brasileira de 1988, em razão de sua natureza compromissória e da tentativa de acomodar no corpo constitucional interesses os mais diversos, acabou por prever um sistema bastante simplificado de reforma do texto constitucional: “Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais vista na história legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 também sofreu forte impacto de interesses corporativos. Constituiu-se a partir de um compromisso maximizador entre os diversos setores da sociedade e do Estado que detinham poder naquele momento. Ao invés de um compromisso apenas em torno de regras fundamentais – sob as quais se deveria desenvolver o sistema político – e dos direitos fundamentais, houve um compromisso imediato sobre várias questões substantivas secundárias, em que diversos setores organizados da sociedade, através de largo processo de barganha, alcançaram a constitucionalização de interesses e demandas substantivas. Ao lado de uma detalhada e avançada carta de direitos e garantias – que engloba direitos civis, políticos, econômicos e sociais, além de uma ampla proteção de grupos mais vulneráveis, como idosos, crianças e índios –, a Constituição realizou poucas alterações nas instituições responsáveis pela promoção e garantia desses direitos, o que tem gerado bastante contraste entre os direitos constitucionalmente estabelecidos e sua sistemática violação” (VILHENA, Oscar Vieira. A Constituição e sua reserva de justiça, p. 27). 391

“O emprego de novos métodos da hermenêutica jurídica tradicional fez possível uma considerável e silenciosa mudança de sentido das normas constitucionais, sem necessidade de substituí-las expressamente ou sequer alterá-las pelas vias formais da emenda constitucionais. (...) “Quanto mais rígida a Constituição, quanto mais dificultosos os obstáculos erguidos à sua reforma, mais avulta a importância da interpretação, mais flexíveis e maleáveis devem ser seus métodos interpretativos, em ordem a fazer possível uma perfeita acomodação do estatuto básico às exigências do meio político e social. Do contrário, com a Constituição petrificada, teríamos a rápida acumulação de elementos de crise, que sempre prosperam e rompem, por vias extraconstitucionais, o dique de formalismos e artifícios teóricos levantados nos textos pela técnica das Constituições. Desaconselhada a

196

singulares do texto constitucional, aliados à superioridade hierárquica da

constituição392 e à – hoje reconhecida – normatividade das normas

constitucionais, tornam fundamental, como já visto, o desenvolvimento de

técnicas próprias de interpretação constitucional, que devem ser usadas não em

lugar de, mas conjuntamente com as tradicionais técnicas de interpretação.

Nesse sentido, releva, antes de mais nada, destacar, de modo mais

detalhado, em que, afinal, as normas constitucionais diferem das demais normas

jurídicas.

6.1 O sistema constitucional e a positivação dos valores

Os documentos constitucionais não são apanhados aleatórios de normas

colacionadas ao acaso. Como em toda codificação (e a constituição não deixa de

ser uma codificação, conquanto hierarquicamente superior), subjaz a todo texto

constitucional a ideia de sistema.

Essa ideia, aliás, permeia todo o Direito, e não apenas os documentos

constitucionais. Jorge Miranda afirma que “o Direito é ordenamento ou conjunto

significativo e não conjunção resultante de vigência simultânea: é coerência ou,

talvez mais rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor

incorporado em regra”393. Daí a importância, ressaltada anteriormente, do

elemento sistemático no processo interpretativo.

O que torna a constituição um sistema singular dentro da rede de sistemas

que compõem o ordenamento jurídico como um todo é, além da sua superior

hierarquia (que faz com que a interpretação das normas dos sistemas

hierarquicamente inferiores, como o civil, o penal, o processual etc. deva ser

realizada em consonância também com o sistema constitucional), a circunstância

de que as constituições abarcam os valores fundamentais das sociedades sobre

as quais suas normas incidem (valores estes, de resto, a partir dos quais tais

operação constituinte direta, em razão dos traumas que pode acarretar, ou bloqueado pela rigidez do processo revisor o apelo ao poder constituinte, só resta a via hermenêutica como a mais desimpedida de obstáculos à preservação da ordem constitucional. Ocorre então a mudança tácita da Constituição por obra de intérpretes” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 458-459). 392

Superioridade hierárquica em relação ao ordenamento jurídico interno do Estado nacional, pois, como visto anteriormente, a atual pluralidade de fontes normativas obriga a um diálogo entre a Constituição e as ordens normativas e instâncias decisórias supranacionais. 393

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. 2, p. 198.

197

normas são geradas, numa dinâmica bilateral). Assim, lembra André Ramos

Tavares, “a Constituição, por ser fundamento das demais normas, ancora os

principais valores a serem absorvidos e resgatados em sua necessária

desenvoltura ulterior, pelo restante das normas integrantes do sistema jurídico”394.

Mauro Cappelletti, nesse sentido, destaca a incessante tentativa do homem

“de criar ou descobrir uma ‘hierarquia’ de leis, de garanti-la. É a própria ânsia – ou

um seu aspecto – de sair do contingente, de ‘fazer parar o tempo’, de vencer, em

suma, o humano destino de perene transformação e de morte: as leis mudam,

mas permanece a Lei; permanecem os Valores Fundamentais”395.

Nessa busca por valores fundamentais que superariam a corrosão do

tempo, Cappelletti identifica três momentos distintos:

As Constituições modernas, normas prevalentemente “de valor”, são, precisamente, o primeiro momento daquela tentativa. Nas suas mesmo necessariamente vagas, ambíguas, imprecisas e programáticas fórmulas, está a primeira poderosa tentativa de lapidar a pedra informe de “valores”, individuais e sociais (...).

O segundo momento está no caráter “rígido” daquelas Constituições, as quais se impõem, exatamente, com a força de “normas prevalentes”.

Mas a verdadeira, a grande novidade está no terceiro momento, ou seja, na tentativa de transformar a imprecisão e a imóvel elasticidade daquelas fórmulas e a inefetividade daquela prevalência em uma efetiva, dinâmica e permanente “concretização”, através da obra de um intérprete qualificado (...) o especial juiz constitucional. Aqui, verdadeiramente, o gênio dos homens atingiu o seu vértice; a aspiração ao eterno, uma aspiração que renasce perenemente de suas próprias cinzas, encontra aqui a sua concreta conciliação com a realidade; a eternidade dos valores, aquela eternidade que a história mostrou ser impossível e também sempre suprema utopia da humanidade,

concretiza-se através do trabalho atuante do juiz.396

É de se notar, no entanto, que a expressa positivação, em seara

constitucional, de valores tidos por fundamentais em uma sociedade, constitui

fenômeno relativamente recente na trajetória do constitucionalismo. Com efeito,

embora as modernas constituições, principalmente a partir da segunda metade do

século XX, tragam em seus textos valores formalmente positivados, o que, como

já visto, consiste em etapa fundamental da sua jurisdicização, impende

394

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 130. 395

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editora, 1992, p. 11. 396

Idem, p. 12.

198

reconhecer o ineditismo de tal fenômeno, bem como a circunstância de,

historicamente, tratar-se de algo recente.

Já foi apontado anteriormente que a superação do positivismo jurídico

implicou, dentre outras consequências, o reconhecimento da normatividade dos

dispositivos constitucionais e a reaproximação entre direito e moral, em especial

por meio dos princípios constitucionais. O aspecto moral do direito, na atualidade,

constitui justamente a tábua de valores fundamentais que, presentes na

sociedade, passam a receber proteção do Poder Público (servindo, por outro lado,

de bússola à atuação deste) por meio da positivação, vale dizer, de sua expressa

inserção nos textos constitucionais.

Essa positivação constitucional dos valores consagra o que a doutrina

passou a denominar Constituição material, como explica André Ramos Tavares:

As Constituições, em tempos mais remotos, eram entendidas apenas como documentos de divisão e estruturação do poder, com a respectiva delimitação de competências, tal como ocorreu com as leis constitucionais que organizaram a Terceira República francesa.

A função de traçar valores para o ordenamento jurídico ou não era normalmente adjudicada à Constituição, ou nela se encontrava implícita, ou, ainda, era considerada como derivada de algo anterior ao Direito positivo, ou simplesmente era outorgada à legislação posterior.

Contudo, nas Constituições que emergiram após a II Grande Guerra, já é possível assinalar conteúdos materiais nesses Documentos Básicos. Trata-se do que se convencionou denominar “Constituição material”, que, contudo, não se incorporou à realidade atual sem ter sido alvo de contundentes

críticas.397

O autor cita as restrições formuladas por Carl Schmitt à “tirania dos

valores”, e por Hans Kelsen ao uso de termos vagos e abertos, notadamente no

que tange ao controle de constitucionalidade398, destacando, no entanto, que, a

397

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 132. 398

“Assim é que CARL SCHMITT, ao identificar esse viés, tachou-o de ‘tirania dos valores’, que conduziria, consoante sua visão, à derrocada do Estado Legislativo e à instauração do ‘Estado jurisdicional’.

“É conhecida a restrição aportada por KELSEN quanto a incorporar em textos constitucionais os denominados conceitos vagos, abertos à livre construção interpretativa, em especial quando usados para permitir o controle jurisdicional da constitucionalidade. Tratar-se-ia, para o mestre, de estabelecer balizas ‘flutuantes’ para a atividade do legislador, já que dependentes do critério a ser adotado futuramente pelo Tribunal.

“Assim é que, pela posição kelseniana, o ordenamento jurídico mantém uma relação de suprainfraordenação segundo a qual as normas são identificáveis como tais desde que hajam sido produzidas de acordo com as normas superiores, e não por serem dotadas de determinado sentido ou conteúdo valorativo” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 132-133).

199

despeito da resistência ao fenômeno encontrada em parte da doutrina, “a quase

totalidade dos sistemas constitucionais – senão todos – tem incorporado

expressamente determinados valores, que passaram a permear todas as demais

leis e atos normativos estatais, sob pena de atribuir a estes a pecha de

ilegitimidade”399.

Releva destacar, nesse tocante, a vigorosa crítica feita por Lênio Luiz

Streck ao fenômeno denominado por esse autor de panprincipiologismo. O autor

se insurge contra a equiparação dos princípios aos valores da sociedade, cujo

conteúdo, alega, não é conhecido de forma precisa. Assim, princípios seriam

criados ao sabor da necessidade, o que implicaria uma exacerbação do

subjetivismo do aplicador do direito, não autorizada pelo ordenamento jurídico:

Por fim, é relevante dizer, ainda, que as posturas voluntaristas do Direito acabaram por dar azo a uma verdadeira fábrica de princípios, fenômeno ao qual dei o nome de “panprincipiologismo”, que fragiliza sobremodo o grau de autonomia que deve ter o Direito na contermporaneidade. Essa crítica é ratificada por Luigi Ferrajoli, para quem a proliferação de princípios não passa de argumentações morais, que conduzem inexoravelmente à fragilização do Direito.

Parece, assim, que o maior problema reside na “equiparação” dos princípios aos “valores”. Efetivamente, parcela considerável dos juristas optou por considerar os princípios constitucionais como um sucedâneo dos princípios gerais do

direito400

ou como sendo o “suporte dos valores da sociedade” (o que seria isso, ninguém sabe e tampouco houve alguém que se arriscasse a dizê-lo). Um dos chavões com que a discussão vem sendo posta é que, no novo constitucionalismo, ocorreu a “positivação dos valores”. Esse anúncio facilita a “criação” (sic), em um segundo momento, de todo tipo de “princípio” (sic), como se o paradigma do Estado Democrático de Direito fosse a “pedra filosofal da legitimidade principiológica”, da qual pudessem ser retirados tantos princípios quanto necessários para solver os

casos difíceis ou “corrigir” (sic) as incertezas da linguagem.401

399

Idem, p. 133. 400

Paulo Bonavides é um dos autores que identificam nos princípios constitucionais o sucedâneo dos princípios gerais do direito. Com efeito, Bonavides afirma que “a constitucionalização dos princípios compreende duas fases distintas: a fase programática e a fase não programática, de concreção e objetividade. Na primeira, a normatividade constitucional dos princípios é mínima. Na segunda, máxima. Ali, pairam ainda numa região abstrata e têm aplicabilidade diferida; aqui, ocupam um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata. É unicamente nesta última fase que se faz exequível colocar no mesmo plano discursivo, em termos de identidade, os princípios gerais, os princípios constitucionais e as disposições de princípio” (BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 274. Destaques nossos). 401

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 146-147.

200

Para o autor, não faz sentido atribuir aos princípios constitucionais a

qualidade de “positivação de valores”, dada a inter-relação existente entre regras

e princípios:

Portanto, é equivocado pensar que os princípios constitucionais representam a positivação dos valores. O Direito é um sistema formado por regras (preceitos) e princípios. Ambos são normas. A diferença entre a regra e o princípio é que este está contido naquela, atravessando-a, resgatando o mundo prático. Na medida em que o mundo prático não pode ser dito no todo – porque sempre sobra algo – o princípio traz à tona o sentido que resulta desse ponto de encontro entre texto e realidade, em que um não subsiste sem o outro (aqui, o antidualismo entra como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno).

A regra não subsiste sem o princípio. Do mesmo modo, não há princípio que possa ser aplicado sem o “atravessamento” de uma regra. A regra não explica; a regra esconde. O princípio desnuda a capa de sentido imposta pela regra (pelo enunciado, que pretende impor um universo significativo autossuficiente). O

princípio é a enunciação do que está enunciado.402

A despeito do vigor com que Lênio Streck ataca a equiparação dogmática

entre princípios e valores, assim como a ideia de que os princípios constituem

valores positivados, a posição tão severamente criticada pelo autor é acatada

pela quase totalidade da doutrina dedicada ao tema, à qual nos filiamos sem

qualquer ressalva.

Como visto no item anterior, a inserção dos valores nos textos

constitucionais sepultou o ideal positivista de apartamento dos campos moral e

jurídico, notadamente porque constituiu o primeiro passo para o reconhecimento

da juridicidade dos princípios constitucionais – daí porque, afirma Raúl Canosa

Usera, “a inovação consiste, pois, na declaração formal que uma Constituição

realiza de sua inspiração ideológica”403.

Esses valores, que defluem do texto constitucional, revelam-se geralmente

sob a forma de princípios constitucionais, não raro vazados em termos vagos e

abertos, assim (arbitrariamente) selecionados com pretensão à maior perenidade

possível, a fim de sobreviverem às turbulências jurídico-políticas das atuais

realidades em constante transformação. Canotilho dá a esses dispositivos a

denominação de princípios estruturantes, asseverando, nesse sentido, que “há

402

Idem, p. 145. 403

USERA, Raúl Canosa. Interpretación Constitucional y Fórmula Política, p. 151, apud TAVARES, André Ramos, Curso de Direito Constitucional, p. 133.

201

elementos de direito constitucional (princípios estruturantes) que devem

permanecer estáveis, sob pena de a constituição deixar de ser uma ordem

jurídica fundamental do Estado para se dissolver na dinâmica das forças

políticas”404. André Ramos Tavares, por seu turno, destaca a relevância dessas

normas constitucionais na conformação da própria identidade da Constituição, a

ponto de afirmar que tais normas constituem a alma da Constituição – conquanto,

acertadamente, não lhes atribua a qualidade da imutabilidade:

Pode-se afirmar que os preceitos fundamentais de uma Constituição cumprem exatamente o papel de lhe conferir identidade própria. Constituem, em seu conjunto, a alma da Constituição. E, embora se permita a mudança ou até a supressão de alguns desses preceitos, pela via reformadora (já que nem todos se encontram, como se verá, acobertados pela garantia explícita da intangibilidade reformadora), pode-se seguramente afirmar que uma alteração mais extensa provocaria a mudança da

própria concepção de Constituição até então vigente.405

Insta observar, no entanto, que o autor não atribui tal função

exclusivamente aos princípios constitucionais (malgrado reconheça a relevância

destes), conferindo ainda às regras constitucionais relevância similar, desde que

em seu adequado contexto, vale dizer, desde que concernentes ao que a doutrina

entende por Constituição material – sem desconsiderar, no entanto, os valores

materiais consignados sob o modelo de regras constitucionais ainda que essas

não expressem peremptoriamente facetas da chamada Constituição material:

Os valores superiores de determinado ordenamento jurídico estão vertidos tanto na forma principiológica (e aqui se têm os princípios constitucionais fundamentais) como na forma de regramento (trata-se de algumas regras jurídicas incorporadas à Constituição e que lhes conferem tonalidade própria juntamente com aqueles princípios fundamentais, sendo por isso igualmente consideradas fundamentais).

Os valores formulados por meio de princípios consignam tanto valores materiais quanto os valores superiores da Constituição formal (princípio do Estado de Direito e princípio da soberania popular). Os valores superiores formulados na forma de meras regras estabelecem, em geral, valores materiais.

Os denominados valores básicos (materiais ou não) podem estar vertidos tanto em princípios quanto em regras. Os valores superiores são aquelas ideias basilares, informadoras de todo ordenamento jurídico, vale dizer, presentes, pressupostas ou

404

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 148. 405

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 137-138.

202

desenvolvidas em todas as normas existentes. É por isso que, não obstante todas as normas se refiram, em última análise, a esses valores, a realidade é que nem todas serão fundamentais, apenas assim se considerando aquelas que exprimam diretamente as ideias básicas do ordenamento, cuja essência se designa pela

expressão de valores supremos.406

É possível concluir, assim, que os valores constitucionais tanto podem

estar expressamente consignados em dispositivos constitucionais, sejam eles

regras ou princípios, como também podem defluir de tais dispositivos, cujo

conteúdo constitui a exteriorização dos princípios em questão.

De qualquer modo, é indiscutível que as constituições da atualidade são

marcadas por uma forte carga ideológica, uma vez que trazem em seu bojo não

apenas normas de organização dos Poderes e do Estado, mas também propostas

para o futuro, programas a serem cumpridos e objetivos a serem perseguidos

pelos entes públicos. Há, pois, um evidente conteúdo axiológico nas constituições

modernas, conteúdo este emanado não apenas (como apontado por André

Ramos Tavares), mas principalmente, na forma de princípios constitucionais.

Estes, diante de seu maior grau de abstração e generalidade, bem como de sua

textura aberta, abrem grande margem ao intérprete, dentre outras razões, porque

as finalidades propugnadas em tais normas podem ser alcançadas por inúmeros

caminhos distintos.

Mais do que isso, as próprias finalidades elencadas nos textos

constitucionais são marcadas por acentuado grau de indeterminação. É certo que

há uma zona de certeza negativa em relação a toda norma, não importa o quão

abstrata e genérica ela seja – numa sociedade em que o Poder Público

institucionalizasse o racismo e a escravidão, o comando de “construir uma

sociedade livre, justa e solidária” restaria indubitavelmente descumprido. Mas, por

outro lado, se os próprios caminhos para se alcançar uma sociedade livre, justa e

solidária são diversos, igualmente plúrimas são as concepções do que vem a ser,

afinal, uma sociedade marcada pela liberdade, pela justiça e pela solidariedade.

Em suma, os valores insculpidos nas modernas Constituições são, também

eles, positivados sob o signo da indeterminação.

Esta é uma das razões pelas quais a norma constitucional, em termos

formais e estruturais, apresenta peculiaridades e singularidades inexistentes na

406

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 137-138.

203

legislação infraconstitucional. Estabelecer as diferenças essenciais entre as

normas constitucionais e as infraconstitucionais constitui o objeto do capítulo

seguinte.

6.2 Peculiaridades das normas constitucionais

A interpretação jurídica constitucional consubstancia uma atividade diversa

da interpretação jurídica geral, dadas as peculiaridades estruturais e materiais das

normas constitucionais. Isso, como já visto, não implica uma negação das

técnicas tradicionais de interpretação, e sim um ir além destas, tomá-las como

ponto de partida e não de chegada, sem, no entanto, negá-las. Oscar Vilhena

Vieira observa que, “sendo as Constituições o ponto de encontro entre a

moralidade e o Direito, os meios tradicionais de interpretação jurídica se

demonstrarão, muitas vezes, insuficientes”407, acrescentando ainda que:

A superconstitucionalização de princípios organizadores da ordem política – como democracia, separação de Poderes e a própria Federação – assim como a positivação de direitos fundamentais impõem aos magistrados a necessidade de ir além dos métodos tradicionais de interpretação. Neste caso, os magistrados serão constantemente obrigados a recorrer a processos de argumentação, ponderação e racionalização, destinados a capturar o sentido jurídico de preceitos éticos incorporados pela Constituição.

408

Assim, interpretar a Constituição é acrescentar elementos hermenêuticos

àqueles já empregados tradicionalmente na interpretação das normas jurídicas

em geral, sem abrir mão da técnica tradicional de interpretação.

Como já apontado anteriormente, Luís Roberto Barroso, ao distinguir os

conceitos de interpretação e aplicação das normas, aponta a necessidade de

observância de um terceiro conceito, para que se proceda ao estudo da

interpretação constitucional propriamente dita – o conceito de construção:

A interpretação constitucional exige, ainda, a especificação de um outro conceito relevante, que é o de construção. Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações

407

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça, p. 232-233. 408

Idem, p. 233.

204

que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas.

409

Inocêncio Mártires Coelho, a esse respeito, assevera que “a Constituição –

pela sua natureza, estrutura e finalidade – apresenta-se como um sistema aberto

de regras e de princípios, os quais, em razão mesmo dessa abertura e

indeterminação, necessitam da mediação de agentes qualificados, como os

legisladores e juízes, sem cujo trabalho exegético, em cada caso concreto, não se

opera a sua transformação de disposição em norma e, assim, a sua passagem da

condição de normatividade potencial à de normatividade efetiva”410.

Segundo Barroso, embora sejam normas jurídicas, as normas

constitucionais se distinguem das demais normas jurídicas por quatro

peculiaridades essenciais: “a) a superioridade hierárquica; b) a natureza da

linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político”411.

A superioridade hierárquica das normas constitucionais em relação às

demais normas do ordenamento jurídico, segundo Barroso, “é a nota mais

essencial no processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei

Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento”412.

No que tange à natureza da linguagem constitucional, “própria à veiculação

de normas principiológicas e esquemáticas, faz com que estas apresentem maior

abertura, maior grau de abstração e, consequentemente, menor densidade

jurídica”413.

De parte isso, é bem de ver que o conteúdo de grande parte das disposições constitucionais refoge à estrutura típica das normas dos demais ramos do direito. A vida jurídica, como se sabe, concretiza-se em um conjunto de ordens e proibições. O direito, como técnica de disciplina da vida coletiva, destina-se, fundamentalmente, a reger comportamentos, em função de valores cuja preservação foi tida por conveniente. As normas que realizam essa finalidade denominam-se normas de conduta, que representam a maior porção do direito positivo. Essas regras

409

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 103-104. 410

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, p. 30. 411

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 107. 412

Idem, p. 107. 413

Idem, p. 107.

205

possuem uma composição dúplice, assim fotografável: preveem um fato e a ele atribuem uma determinada consequência jurídica.

Existe, por certo, na Constituição certa quantidade de normas dessa natureza, prescrevendo comportamentos e gerando direitos e obrigações. Todavia, o texto constitucional também é sede de outra categoria de normas, que são as normas de organização. Não se destinam elas a disciplinar condutas de indivíduos e grupos; têm um caráter instrumental e precedem, logicamente, a incidência das demais. É que, além de estruturarem organicamente o Estado, os preceitos dessa natureza disciplinam a própria criação e aplicação das normas de

conduta.414

Além destas, as Constituições trazem também, segundo o autor, normas

programáticas, que, por estabelecerem princípios e fixarem programas de ação,

“não conferem direito subjetivo em sua versão positiva de exigibilidade de

determinada prestação. Todavia, fazem nascer um direito subjetivo negativo de

exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os

seus ditames. Por via de consequência, as potencialidades que oferecem são

distintas e o intérprete e aplicador da norma tem de ser atento a isso”415.

Finalmente, a natureza política das normas constitucionais decorre do fato

de que o poder constituinte “representa um momento pré-jurídico e, quando

exercido em contexto democrático, expressa um momento de especial

aglutinação e civismo do povo de um Estado”416. Barroso observa, no entanto,

que:

A despeito do seu caráter político, a Constituição materializa a tentativa de conversão do poder político em poder jurídico. Seu objeto é um esforço de juridicização do fenômeno político. Mas não se pode pretender objetividade plena ou total distanciamento das paixões em um domínio onde se cuida da partilha do poder em nível horizontal e vertical e onde se distribuem competências de governo, administrativas, tributárias, além da complexa delimitação dos direitos dos cidadãos e suas relações entre si e com o Poder Público. Porque assim é, a jurisdição constitucional, por mais técnica e apegada ao direito que

possa e deva ser, jamais se libertará de uma dimensão política”417

.

414

Idem, p. 108-109. 415

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 109-110. 416

Idem, p. 110-111. 417

Idem, p. 111.

206

A esse não libertar-se da dimensão política418, contudo, Barroso faz a

seguinte e apropriada ressalva:

A interpretação da Constituição, a despeito do caráter político do objeto e dos agentes que a levam a efeito, é uma tarefa jurídica, e não política. Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser cega ou indiferente às consequências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Mas somente pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo ordenamento. Contra o direito o juiz não deve decidir jamais. Em caso de conflito entre o direito e a

política, o juiz está vinculado ao direito.419

Portanto, a superioridade hierárquica, a natureza da linguagem, o conteúdo

específico e o caráter político das normas constitucionais as apartam das demais

normas jurídicas (infraconstitucionais) e tornam inadequadas, porque insuficientes

para desvendar-lhes apropriadamente o sentido, as técnicas tradicionais de

interpretação. Em razão disso, desenvolveram-se métodos próprios de

interpretação das normas constitucionais.

André Ramos Tavares destaca, como singularidades da norma

constitucional, “a supremacia da Constituição, a utilização de normas abstratas,

de princípios, o tratamento dos direitos fundamentais e dos poderes e a

regulamentação da esfera política”420.

Paulo Bonavides também destaca a superioridade hierárquica das normas

constitucionais – “já pela natureza de que algumas se revestem

(constitucionalidade material), já pela natureza do instrumento a que se vinculam

e aderem (constitucionalidade formal)”421 – bem como sua natureza política. No

entanto, contrariando a posição de Barroso, a que aderimos e que é, de resto,

418

Já afirmamos anteriormente que as normas infraconstitucionais também possuem uma dimensão política – a carga política é inerente a qualquer norma jurídica – a qual, porém, na ambiência da legislação ordinária, não tem o mesmo alcance nem o mesmo grau que se verificam nas normas constitucionais. Aqui faria sentido a afirmação de Maria Lúcia Amaral, que, ao defender a inexistência de uma interpretação especificamente constitucional, afirmara, como visto que “o que há é qualquer coisa que releva do domínio da intensidade e não do domínio da especialidade” (AMARAL, Maria Lúcia. A Forma da República. Uma Introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 112). Se a afirmação é inadmissível no cotejo entre normas constitucionais e infraconstitucional, afigura-se pertinente na análise de um único aspecto desse comparativo, a saber, a dimensão política que, existente nas duas categorias normativas, apresentaria diferenças no “domínio da intensidade”. 419

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 112. 420

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 103. 421

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 460.

207

adotada pela maioria absoluta da doutrina, Bonavides rejeita a existência de

técnicas interpretativas especificamente constitucionais:

As relações que a norma constitucional, pela sua natureza mesma, costuma disciplinar, são de preponderante conteúdo político e social e por isso mesmo sujeitas a um influxo político considerável, senão essencial, o qual se reflete diretamente sobre a norma, bem como sobre o método interpretativo aplicável.

Não vamos tão longe aqui a ponto de postular uma técnica interpretativa especial para as leis constitucionais, nem preconizar os meios e regras de interpretação que não sejam aquelas válidas para todos os ramos do Direito, cuja unidade básica não podemos ignorar nem perder de vista (doutra forma não se justificaria o longo exórdio que consagramos à teoria da interpretação e seus distintos métodos), mas nem por isso devemos admitir se possa dar à norma constitucional, salvo violentando-lhe o sentido e a natureza, uma interpretação de todo silogística, indiferente à plasticidade que lhe é inerente, e a única aliás a permitir acomodá-la a fins, cujo teor axiológico assenta nos princípios com que a

ideologia tutela o próprio ordenamento jurídico.422

Bonavides, no entanto, destaca que “quanto mais rígida a Constituição,

quanto mais dificultosos os obstáculos erguidos a sua reforma, mais avulta a

importância da interpretação, mais flexíveis e maleáveis devem ser os seus

métodos interpretativos, em ordem a fazer possível uma perfeita acomodação do

estatuto básico às exigências do meio político e social”423. Assim, ainda que não

reconheça uma especificidade na interpretação especificamente constitucional, o

renomado jurista defende que, ao interpretar a Constituição, o intérprete deve se

valer de métodos “mais flexíveis e maleáveis”.

J. J. Gomes Canotilho destaca a dificuldade inerente à determinação do

sentido das normas constitucionais, justamente em razão de sua estrutura,

substancialmente diversa da estrutura das normas infraconstitucionais. Observa o

mestre português que as normas constitucionais são construídas a partir de

elementos linguísticos polissêmicos, vagos e, não raro, valorativos – o que não

ocorre nas demais espécies normativas. Tal circunstância, evidentemente,

dificulta sobremaneira a atribuição de sentido a tais normas:

A investigação do conteúdo semântico das normas constitucionais implica uma operação de determinação (= operação de densificação, operação de mediação semântica) particularmente difícil no direito constitucional. Em primeiro lugar,

422

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 461. 423

Idem, p. 458.

208

os elementos linguísticos das normas constitucionais são, muitas vezes, polissêmicos ou plurissignificativos (exs.: os conceitos de Estado, povo, lei, trabalho, têm vários sentidos na constituição).

Os enunciados linguísticos são, noutros casos, vagos (= conceitos vagos, conceitos indeterminados), havendo, ao lado de “objectos” que cabem inequivocamente no âmbito conceitual (= candidatos positivos) e ao lado de objectos que estão claramente excluídos do âmbito intencional do conceito (= candidatos negativos), outros objectos em relação aos quais existem sérias dúvidas quanto à sua caracterização (= candidatos neutrais). Exemplo típico é o conceito de “independência nacional” (...). A isso acresce o facto de os conceitos utilizados pela constituição serem muitas vezes conceitos de valor (exs.: dignidade da pessoa humana, independência nacional, dignidade social), isto é, conceitos com “abertura de valoração” e que, por isso mesmo, têm de ser preenchidos, em grande medida, pelos órgãos ou agentes de concretização das normas. Por último, os preceitos constitucionais contêm, em certos casos, conceitos de prognose, o que implica a antecipação de consequências futuras, dificilmente deductíveis da simples mediação do conteúdo semântico. Ex.:

“grave ameaça... da ordem constitucional”.424

Antes, contudo, que se passe ao estudo desses métodos, impende

relacionar algumas considerações doutrinárias que evidenciam outras

peculiaridades das normas constitucionais em relação às normas

infraconstitucionais, notadamente quanto à sua estrutura e conteúdo, e que têm

grande relevo para a moderna interpretação constitucional – em especial por

ressaltarem distinções fundamentais entre as duas categorias normativas, o que

inviabiliza que um mesmo método hermenêutico seja empregado, com iguais

resultados, para normas constitucionais e infraconstitucionais.

6.3 Aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais

As normas constitucionais, em razão de sua própria estrutura, têm

aplicabilidade distinta da legislação comum.

As normas jurídicas infraconstitucionais, por regularem condutas de modo

menos abstrato e mais detalhado, são interpretadas por meio de um processo

intelectivo denominado subsunção, que consiste na análise dos elementos do

caso concreto e de sua adequação à hipótese descrita na norma, por meio de um

raciocínio silogístico no qual a norma constitui a premissa maior, o caso concreto,

a premissa menor. O enquadramento do caso concreto (premissa menor) na

424

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1217.

209

hipótese normativa (premissa maior) leva, assim, à conclusão acerca da aplicação

da consequência jurídica prevista na norma àquele caso concreto425.

Não é difícil constatar que a subsunção de um homicídio à hipótese

normativa descrita no art. 121 do Código Penal constitui uma atividade

interpretativa que não enseja maiores dificuldades. A estrutura e o conteúdo das

normas constitucionais, no entanto, não permite que essa operação seja realizada

de forma tão simples.

Muitas normas constitucionais, como já apontado, não estabelecem

condutas, e sim diretrizes, não raro fazendo uso de termos dotados de alto grau

de abstração. Desse modo, verificar se uma determinada conduta governamental

atende ao objetivo constitucional previsto no inciso I do art. 3º da Constituição

(“construir uma sociedade livre, justa e solidária”) constitui operação muito mais

complexa – inclusive porque, ao contrário do que ocorre com a subsunção em

geral, a avaliação muitas vezes implica a análise não de uma ação

individualizada, mas de um conjunto de ações.

Além disso, as normas constitucionais não têm uma única estrutura formal.

Por consequência, sua aplicabilidade e eficácia nem sempre são as mesmas,

ainda que se trate de normas contidas no mesmo texto constitucional.

Vale observar que aplicabilidade e eficácia são conceitos que, embora

muito próximos, não são sinônimos. Aplicabilidade, explica José Afonso da Silva

(um tanto tautologicamente), “exprime uma possibilidade de aplicação. Esta

consiste na atuação concreta da norma”426. A aplicação, afirma Carlos

Maximiliano, “consiste no enquadrar um caso concreto em uma norma jurídica

adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e

indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por

objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse

humano”427.

425

“Na subsunção, como agora a encaramos, trata-se primariamente da sotoposição de um caso individual à hipótese ou tipo legal e não diretamente da subordinação ou enquadramento de um grupo de casos ou de uma espécie de casos” (ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 94-95). 426

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 51. O autor comete outra tautologia sobre a mesma definição na introdução da obra, ao afirmar que “a aplicabilidade é a qualidade do que é aplicável, e a norma constitucional só é aplicável na medida em que é capaz de produzir efeitos jurídicos, e nos limites dessa capacidade” (ob. cit., p. 17). 427

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 5.

210

José Afonso da Silva, ao definir eficácia, aponta para a existência de dois

sentidos da palavra, o social e o jurídico:

Eficácia do Direito: toma-se a expressão em dois sentidos: A eficácia social designa uma efetiva conduta acorde com a prevista pela norma; refere-se ao fato de que a norma é realmente obedecida e aplicada; nesse sentido, a eficácia da norma diz respeito, como diz Kelsen, ao “fato real de que ela é efetivamente aplicada e seguida, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos”. É o que tecnicamente se chama efetividade da norma. Eficácia é a capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nela traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo

legislador.428

À eficácia social, portanto, corresponde o que, no universo jurídico, se

costuma designar por efetividade. Daí porque, observa o autor, é possível que

uma norma ostente eficácia jurídica sem ter eficácia social:

Os dois sentidos da palavra eficácia, acima apontados, são, pois, diversos. Uma norma pode ter eficácia jurídica sem ser socialmente eficaz, isto é, pode gerar certos efeitos jurídicos, como por exemplo, o de revogar normas anteriores, e não ser efetivamente cumprida no plano social. Mas percebe-se que, apesar disso, os sentidos são conexos, como já anotamos

antes.429

Tércio Sampaio Ferraz Jr. afirma que a eficácia “é uma qualidade da norma

que se refere à sua adequação em vista da produção concreta de efeitos”430,

adotando posicionamento similar ao de José Afonso da Silva no que tange a uma

dicotomia entre eficácia social e jurídica, embora opte por classificar a eficácia em

eficácia semântica e eficácia sintática:

A eficácia tem a ver com a produção de efeitos. Diz-se eficaz a norma: a) que tem condições fáticas de atuar, posto que ela é adequada em relação à realidade; b) que tem condições fáticas de atuar, posto que estão presentes os elementos normativos para adequá-la à produção de efeitos concretos. A contrario sensu, ineficaz é a norma, nos dois sentidos, inadequada. Estes dois sentidos podem existir simultaneamente ou não. Assim, quando uma lei determina que entrará em vigor imediatamente, havendo, porém, necessidade de sua regulamentação, enquanto esta não

428

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 65-66. 429

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 66. 430

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 181.

211

for decretada, a lei será ineficaz no sentido (b). Decretada a regulamentação, pode correr, no entanto, que a lei permaneça inadequada à realidade que ela pretende disciplinar, por razões fáticas. Por exemplo, a lei determina a obrigatoriedade do uso de determinado aparelho para a proteção do trabalhador no exercício do seu trabalho, mas o aparelho não existe no mercado nem há previsão de sua produção adequada para dar condições à sua utilização. Para efeito de diferença terminológica chamaremos o sentido (a) de eficácia semântica e o sentido (b) de eficácia

sintática.431

Portanto, se a eficácia, sob a ótica jurídica, é a capacidade da norma de

produzir efeitos jurídicos, e a aplicabilidade consiste na potencialidade de

aplicação (ou seja, de atuação concreta) da norma, pode-se concluir que eficácia

e aplicabilidade são fenômenos distintos, ainda que muito próximos. Boa parte da

doutrina, no entanto, usa uma e outra expressão indiferentemente432.

De qualquer modo, a par das questões semânticas, a questão da

aplicabilidade das normas constitucionais se mostra mais intrincada do que o

problema de aplicabilidade das normas infraconstitucionais, uma vez que a

estrutura normativa da Constituição é distinta da legislação, sendo bem mais

complexa.

Diante disso, a doutrina tem se esforçado para elaborar classificações

acerca da aplicabilidade das normas constitucionais, capazes de categorizar

cientificamente tais normas, sob a ótica da aplicabilidade – ou, se se preferir, da

eficácia. Há intensa controvérsia doutrinária nesse sentido. Destacamos, a seguir,

as principais linhas de pensamento acerca da matéria.

6.3.1 Doutrina estrangeira

6.3.1.1 Classificação de Cooley

431

Idem, p. 181. 432

Nesse sentido, é curioso notar que, embora a clássica obra de José Afonso da Silva sobre o tema tenha o título de Aplicabilidade das Normas Constitucionais, a classificação feita pelo autor adota a nomenclatura de normas de eficácia plena, contida e limitada. Isso não significa, no entanto, que o autor não reconheça que os termos não são sinônimos – tanto que afirma na obra que a eficácia jurídica das normas constitui a base de sua aplicabilidade (“É preciso, portanto, dar um passo a mais na caracterização das normas constitucionais, do ponto de vista de sua eficácia jurídica, que constitui a base de sua aplicabilidade” – ob. cit., p. 81).

212

Thomas Cooley divide as normas constitucionais em self-executing e not

self-executing433. Segundo André Ramos Tavares:

Uma norma constitucional afigura-se como self-executing ou autoexequível se prover (ao destinatário) todos os meios necessários para que o direito ou comando previsto seja aproveitado ou protegido.

Caso contrário, ter-se-á uma norma não autoexequível ou not self-executing, a qual, em razão da inexistência de meios (referências normativas) suficientes para sua efetiva aplicação, quedará em um estado de dormência, no máximo, quiçá, como uma força moral, até que a legislação infraconstitucional lhe

conceda as provisões capazes de torná-la aplicável.434

A classificação dicotômica de Cooley teve grande influência na doutrina

brasileira, como se verá adiante.

6.3.1.2 Classificação de Crisafulli

Partindo da premissa de que todas as normas constitucionais são cogentes

(precettive), Vezio Crisafulli as divide em normas autoaplicáveis ou de eficácia

plena (immediatamente precettive) e normas dependentes de complementação,

ou de eficácia limitada. Estas últimas subdividem-se em normas de legislação e

normas programáticas435.

Como aponta André Ramos Tavares, “a importância de sua doutrina está

na insistência do autor em caracerizar, todas as normas, por definição, como

precettive e, ainda, immediatamente precettive, consistindo a diferença na

especial natureza do preceito contidos nas normas programáticas e, ainda, nos

efeitos especiais que dela derivam”436.

6.3.1.3 Classificação de Zagrebelsky

Gustavo Zabrebelsky também adota uma classificação dicotômica,

separando as normas constitucionais em normas de eficácia direta e normas de

433

COOLEY, Thomas. A Treatise on the Constitutional Limitations Witch Rest Upon the Legislative Power of the States of the American Union. 5ª ed. Boston: Little, Brown & Co., 1883, p. 98. 434

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 115. 435

CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue Disposizioni di Principio. Milão, Giuffrè, 1952, p. 104. 436

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 115.

213

eficácia indireta. Estas podem ser normas de eficácia diferida, normas de princípio

e normas programáticas437.

Para o autor, as normas de eficácia direta apresentam estrutura completa o

bastante para valer como regra concreta. As normas de eficácia indireta, por seu

turno, “necessitam ser atuadas ou concretizadas por meio de uma ulterior

atividade normativa”438.

As normas de eficácia direta diferida são as normas de organização, que

precisam ser complementadas por meio de legislação posterior. Normas de

princípio são as que estabelecem orientações gerais, tendo seu alcance

delimitado pelo legislador, o que não significa, no entanto, que não possam ser

concretizadas diretamente (Zagrebelsky aponta como exemplo o princípio da

ampla defesa439). Finalmente, as normas programáticas são aquelas que

estabelecem programas de ação para os entes públicos.

6.3.2 Doutrina nacional

6.3.2.1 Classificação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Ao tratar da aplicabilidade das normas constitucionais, Manoel Gonçalves

Ferreira Filho se ampara na doutrina clássica de Rui Barbosa, o qual, segundo o

autor, buscava “arrimo em Cooley, Story e outros constitucionalistas norte-

americanos”440. Adotando classificação dicotômica similar à de Cooley, Ferreira

Filho divide as normas constitucionais em “normas exequíveis por si sós (normas

auto-executáveis) e as normas não exequíveis por si sós”441.

As normas exequíveis por si sós independem, para sua aplicação, de

qualquer complementação. São, portanto, normas completas. As normas não

exequíveis por si sós, por outro lado, “precisam receber, antes de poderem ser

aplicadas, a complementação, seja quanto à hipótese, seja quanto ao

dispositivo”442.

437

ZAGREBELSKY, Gustavo. Manuale di Diritto Constituzionale, v. 1. Turim: UTET, 1987, p. 104. 438

Idem, p. 104. 439

ZAGREBELSKY, Gustavo. Manuale di Diritto Constituzionale, v. 1, p. 107. 440

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 389. 441

Idem, p. 389. 442

Idem, p. 389.

214

Ferreira Filho adverte, porém, que a completude não é um critério absoluto

de aplicabilidade da norma:

Entretanto, se a completude é o critério essencial de aplicabilidade de uma norma, não é um critério absoluto. O ordenamento jurídico às vezes prevê a aplicabilidade de normas incompletas. É o que faz a Constituição brasileira a propósito das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º), ou a respeito de princípios (art. 37, caput, por exemplo). Nesse caso, ela está “delegando” ao aplicador a complementação do que não está definido, ou suficientemente definido. Assim, para retomar o exemplo do art. 5º, LXXI, da Lei Magna de 1988, à falta do dispositivo coube ao Supremo Tribunal Federal definir a consequência do deferimento do mandado de injunção, assimilando-o grosso modo à inconstitucionalidade por

omissão.443

À classificação dúplice de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, contrapõe-se à

classificação tríplice de José Afonso da Silva, ensejadora de controvérsia

doutrinária que será analisada no próximo item.

6.3.2.2 Classificação de José Afonso da Silva

José Afonso da Silva é autor de obra clássica sobre o tema, Aplicabilidade

das normas constitucionais, publicada em 1967, e reiteradamente reeditada até

os dias atuais.

Inspirado em Crisafulli444, José Afonso da Silva elenca três categorias

distintas de normas constitucionais: (i) normas constitucionais de eficácia plena;

(ii) normas constitucionais de eficácia contida; e (iii) normas constitucionais de

eficácia limitada.

As normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que, desde a

entrada em vigor da Constituição, produzem a totalidade de seus efeitos, ou têm a

possibilidade de produzi-los, independendo de qualquer espécie de

complementação infraconstitucional. É o caso, por exemplo, do inciso LXVIII do

art. 5º da Constituição, que determina que “conceder-se-á habeas corpus sempre

443

Idem, p. 390. 444

Inspiração que não implica adoção absoluta de sua teoria. De fato, José Afonso da Silva afirma peremptoriamente, referindo-se (em nota de rodapé) ao autor italiano, que “é insuficiente, ao nosso ver, separá-las [as normas constitucionais] em dois grupos, como insinuam certos autores: a) normas constitucionais de eficácia plena, que seriam aquelas de imediata aplicação; b) normas constitucionais de eficácia limitada, distinguindo-se estas, ainda, em: 1) normas de legislação e 2) normas programáticas” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 82).

215

que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua

liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Do mesmo modo, as normas constitucionais de eficácia contida têm

aplicabilidade imediata e irrestrita desde a sua promulgação. Admitem, no

entanto, ao contrário das normas de eficácia plena, a limitação de seu alcance por

meio da atuação do legislador infraconstitucional. Exemplo amiúde lembrado pela

doutrina de norma dessa espécie é o inciso XIII do art. 5º da Constituição,

segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,

atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Trata-se, pois, de

uma norma de aplicabilidade imediata, na medida em que não é necessária

qualquer complementação infraconstitucional para a produção de seus efeitos. A

segunda parte do dispositivo (“atendidas as qualificações que a lei estabelecer”)

implica uma faculdade, não uma obrigação do legislador, de estabelecer

qualificações profissionais como requisitos para o exercício de certas profissões.

Uma vez que o faça, no entanto, o âmbito de incidência da norma resta reduzido.

É o que ocorre com a exigência legal de aprovação em exame da Ordem dos

Advogados do Brasil para o exercício da advocacia.

As normas de eficácia contida recebem outras nomenclaturas por parte da

doutrina, como normas de eficácia contível ou normas de eficácia restringível445.

Essas nomenclaturas, no entanto, referem-se à mesma espécie de norma referida

por José Afonso da Silva como de eficácia contida, e descrevem suas

características de modo similar446.

Finalmente, as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas

que, ao entrar em vigor, não produzem todos os seus efeitos, o que só ocorrerá

após complementação por parte do legislador infraconstitucional. São, pois,

normas incompletas, cuja plenitude fica na dependência de regulamentação. O

autor procede a uma subdivisão das normas de eficácia limitada em normas

declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e normas declaratórias de

princípios programáticos.

445

Michel Temer, por exemplo, usa a expressão normas constitucionais de eficácia redutível ou restringível para descrever o mesmo fenômeno. 446

“Autores há que sugerem normas de eficácia ‘contível’, em lugar de normas de eficácia ‘contida’, porque elas contêm a possibilidade de ser contidas, e o ‘contível’ é que exprimiria melhor essa potencialidade, enquanto que o ‘contida’, passado, revelaria já o efeito da contenção. Outros preferem falar em norma restringível, passível de restrição. O fato importante, contudo, é que se reconhece o fenômeno que queríamos apontar” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 85).

216

As normas declaratórias de princípios institutivos “contêm esquemas

gerais, um como que início de estruturação de instituições, órgãos e entidades,

pelo quê também poderiam chamar-se normas de princípio orgânico ou

organizativo”447. Têm por escopo, assim, dar corpo a tais instituições, órgãos e

entidades, dependendo, para isso, da complementação (regulamentação) legal.

Exemplo dessa espécie de norma é o § 2º do art. 18 da Constituição (“Os

Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou

reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar”).

As normas constitucionais de princípio programático, usualmente

chamadas de normas programáticas, são aquelas que contêm programas de

natureza política, cujo conteúdo – vale dizer, os meios pelos quais se chegará aos

resultados elencados como programas em tais normas – deverá ser preenchido

na seara infraconstitucional. A Constituição brasileira tem inúmeras normas dessa

natureza, podendo-se citar, como exemplos, os arts. 3º, 170, 196, 205 etc.

José Afonso da Silva observa que “as constituições contemporâneas

constituem documentos jurídicos de compromisso entre o liberalismo capitalista e

o intervencionismo”448, circunstância que evidencia a relevância das normas

programáticas, na medida em que estas “procuram dizer para onde e como se

vai, buscando atribuir fins ao Estado, esvaziado pelo liberalismo econômico”449.

São, pois, normas que “revelam um compromisso entre as forças políticas liberais

e tradicionais e as reivindicações populares de justiça social”450

A despeito do reconhecimento da existência de normas de eficácia

limitada, notadamente as programáticas, o autor ressalta com veemência que

todas as normas constitucionais, independentemente de sua espécie, possuem

eficácia e normatividade, ainda que em graus diversos. Refutando a doutrina que

nega juridicidade a normas dessa natureza451, o autor demonstra que a estrutura

447

SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 123. 448

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 135. 449

Idem, p. 141. 450

Idem, p. 145-146. 451

“Não poucos autores negam juridicidade às normas constitucionais programáticas. Seriam normas sem conteúdo imperativo, por impraticabilidade. (...) Essa tese, hoje combatida seriamente, é responsável pela caracterização como programática de toda norma constitucional incômoda. Seria fácil, assim, descartar-se da incidência de uma regra, bastando tachá-la de programática e, com isso, nos termos de tal doutrina, o princípio seria posto de lado. “Sua juridicidade, contudo, deve ser afirmada só pelo ‘fato de constarem de um texto de lei’, sendo de repelir a pretensa injuricidade de regras pertencentes a uma constituição, e especialmente a uma constituição rígida” (SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 153).

217

incompleta das normas programáticas não implica, ao contrário do que afirmam

alguns, ausência de juridicidade ou imperatividade:

Ora, se elas impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos, privados ou públicos, se ditam comportamentos públicos em razão dos interesses a serem regulados, nisso claramente se encontra seu caráter imperativo – imperatividade que se afere nos limites e sua eficácia, mas sempre imperatividade. Por outro lado, esses comportamentos e comandos, delas resultantes, criam uma situação não apenas de expectativa, mas de vantagem efetiva, ainda que diminuta, em favor de todos aqueles sujeitos que se acham em condições de se beneficiar com a vantagem de sua aplicação e observância. Decorre disso um vínculo jurídico inequívoco, que constitui o enlace entre os sujeitos da relação nelas fundada, caracterizando

a bilateralidade atributiva essencial a toda regra de direito.452

De fato, ainda que não prescrevam um determinado comportamento a ser

observado, as normas programáticas, na medida em que traçam programas,

impõem objetivos, delineiam finalidades, trazem em seu bojo a implícita vedação

à adoção de quaisquer condutas (sejam legislativas ou governamentais lato

sensu) que contrariem ou afrontem os valores que emanam de sua dicção. Há,

pois, um grau, ainda que diminuto, em comparação às demais normas, de

coercitividade e imperatividade nas normas programáticas. De resto, diante da

atual quadra, na qual as Constituições são efetivamente reconhecidas como

documentos jurídicos, não faria sentido reconhecer juridicidade a parte das

normas do documento constitucional, e não reconhecê-la a outras.

A divisão tríplice de José Afonso da Silva453 encontrou (e continua a

encontrar) grande aceitação no universo jurídico brasileiro. Não obstante (e

452

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 154. 453

Desenvolvida com profundidade ao longo de toda a obra, a teoria pode ser sintetizada, nas palavras do autor, no seguinte excerto: “Parece-nos necessário discriminar ainda mais, a fim de fazer-se uma separação de certas normas que preveem uma legislação futura mas não podem ser enquadradas entre as de eficácia limitada. Em vez, pois, de dividir as normas constitucionais, quanto à eficácia e aplicabilidade, em dois grupos, achamos mais adequado considerá-las sob tríplice característica, discriminando-as em três categorias: I – normas constitucionais de eficácia plena; II – normas constitucionais de eficácia contida; III – normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. Na primeira categoria incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas que incidem imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas preveem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites,

218

provavelmente em razão dela) sua importância, a posição do autor é alvo de

críticas por relevante parte da doutrina454. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por

exemplo, questiona a tríplice classificação de José Afonso da Silva:

A distinção, feita por José Afonso da Silva, entre “normas de eficácia plena” e “normas de eficácia contida” não separa duas espécies de norma quanto à eficácia, mas duas subespécies de normas em que está presente a plenitude da eficácia. Rigorosamente, a lição de José Afonso da Silva levaria, dentro da lógica, a distinguir duas espécies de normas quanto à eficácia e à aplicabilidade: as normas plenamente eficazes e de aplicação desde a vigência e as normas de eficácia limitada e aplicabilidade reduzida. E a subdivisão das primeiras em: normas plenamente eficazes propriamente ditas (as que ao ver de José Afonso da Silva não poderiam ter o seu alcance restringido pelo legislador) e as normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata mas

restringível pelo legislador.455

A essa crítica, José Afonso da Silva oferece a seguinte resposta:

É observação que também não muda a essência das coisas, pois o essencial é que se reconhece a existência da diferença entre ambas, seja como gêneros diferentes, seja como espécies do mesmo gênero; nem a lógica formal aplicada pelo ilustre professor melhora muito, pois, para estremar uma das espécies da outra, ele teve de utilizar a expressão “normas plenamente eficazes propriamente ditas”, o que significa que, se são “propriamente ditas”, é porque essa espécie representa a natureza essencial do gênero, enquanto a outra, que não é

“propriamente dita”, é algo de essência diversa.456

dadas certas circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado. Por isso, pode-se dizer que as normas de eficácia plena sejam de aplicabilidade direta, imediata e integral sobre os interesses objeto de sua regulamentação jurídica, enquanto as normas de eficácia limitada são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não-essenciais, ou, melhor, não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valores-meios e condicionantes, como melhor se esclarecerá depois. As normas de eficácia contida também são de aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, porque sujeitas a restrições previstas ou dependentes de regulamentação que limite sua eficácia e aplicabilidade” (SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 82-83). 454

No próprio apêndice de sua obra, José Afonso da Silva colaciona as críticas feitas por Virgílio Afonso da Silva e Wilson Steinmetz, apresentando suas respostas a ambas. Dada a profundidade de tais críticas, deixamos de analisá-las, porquanto a questão da aplicabilidade das normas constitucionais não constitui o cerne do presente estudo e tal análise, que consumiria não poucas linhas, implicaria um desvio do foco deste trabalho. 455

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Sistema Financeiro Nacional. Limitação de juros. Comentários ao art. 192, in Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 140. 456

SILVA, José Afonso da.Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 85. Nota de rodapé nº 67.

219

Há que se reconhecer a procedência da crítica feita por Manoel Gonçalves

Ferreira Filho – exposta, a nosso ver, em outros termos e de forma mais

adequada em seu Curso457 – uma vez que, como bem afirma esse autor, entre as

normas de eficácia plena e as de eficácia contida não há, de fato, distinção

essencial no que tange à aplicabilidade, na medida em que ambas são, desde

logo, plenamente aplicáveis. A circunstância de a distinção entre elas residir na

possibilidade ou potencialidade de restrição das segundas confirma a posição de

Ferreira Filho. Com efeito, uma vez que a restrição é uma potencialidade,

enquanto esta não ocorrer, não haverá distinção estrutural alguma entre as

normas de eficácia plena e as de eficácia contida.

6.3.2.3 Classificação de Maria Helena Diniz

Maria Helena Diniz classifica as normas constitucionais em: (i) normas

constitucionais de eficácia absoluta; (ii) normas constitucionais com eficácia

plena; (iii) normas constitucionais com eficácia relativa restringível; e (iv) normas

constitucionais com eficácia relativa dependente de complementação

legislativa458.

As normas com eficácia absoluta são “as intangíveis; contra elas nem

mesmo há o poder de emendar”459. São, segundo a autora, as cláusulas pétreas

(art. 60, § 4º) e os dispositivos que amparam a federação.

As normas com eficácia plena correspondem às normas de eficácia plena

na classificação de José Afonso da Silva – são aquelas que, desde seu ingresso

no ordenamento jurídico, apresentam total aplicabilidade, sem necessitar de

qualquer complementação em nível infraconstitucional.

Do mesmo modo, as normas com eficácia relativa restringível

correspondem “às de eficácia contida de José Afonso da Silva, mas, aceitando a 457

“Como é fácil apreender, a trilogia, quando limitada à questão da aplicabilidade, se reduz ao dualismo clássico. Realmente, as normas de eficácia plena e as normas de eficácia “contida” são normas exequíveis por si mesmas, enquanto a última espécie – as normas de eficácia limitada – corresponde às normas não exequíveis por si mesmas. Ora, manda a lógica que duas espécies (a primeira e a segunda) não sejam separadas quanto à aplicabilidade, quando, no que toca a esta, são iguais. A diferença entre normas de eficácia plena e normas de eficácia contida não está na aplicabilidade, portanto, e sim na possibilidade ou não de ser restringido o seu alcance pelo legislador infraconstitucional, o que nada tem que ver com a aplicabilidade das normas constitucionais” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 391). 458

DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 98. 459

Idem, p. 98.

220

lição de Michel Temer, preferimos denominá-las normas constitucionais de

eficácia redutível ou restringível”460. Têm, pois, plena e imediata aplicabilidade,

mas essa aplicabilidade pode ser restringida (daí a nomenclatura adotada pela

autora) pelo legislador infraconstitucional.

Finalmente, as normas com eficácia relativa dependente de

complementação legislativa correspondem às normas de eficácia limitada, na

classificação de José Afonso da Silva.

Constata-se, assim, que a classificação dada pela autora aproxima-se

bastante daquela elaborada por José Afonso da Silva, à qual Diniz acrescenta

uma quarta categoria, a das normas de eficácia absoluta, que se diferenciam das

de eficácia plena em razão de sua imutabilidade.

6.3.2.4 Classificação de Celso Bastos e Carlos Ayres Britto

Celso Bastos e Carlos Ayres Britto dividem as normas constitucionais em

normas de aplicação (irregulamentáveis e regulamentáveis) e normas de

integração (completáveis e restringíveis)461. André Ramos Tavares observa que

“será o imediatismo da aplicação de determinada norma o cerne da classificação

adotada por BASTOS e BRITTO”462.

Segundo os autores, as normas de aplicação são aquelas que têm “por

nota caracterizadora o não deixar interstício entre o seu desígnio e o

desencadeamento dos efeitos a que dão azo”463. Dividem-se em

irregulamentáveis, que não abrem viabilidade para qualquer espécie de

regulamentação, e regulamentáveis, que admitem complementação em âmbito

infraconstitucional, não para que adquiram aplicabilidade (que já possuem), mas

para que a legislação as complemente.

Já as normas de integração são aquelas cuja aplicabilidade não se

configura de imediato, uma vez que “têm por traço distintivo a abertura de espaço

entre o seu desiderato e o efetivo desencadear de seus efeitos”464. Tais normas

460

Idem, p. 101. 461

BASTOS, Celso e BRITTO, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 34. 462

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 119. 463

BASTOS, Celso e BRITTO, Carlos Ayres. Ob. cit., p. 37-38. 464

Idem, p. 48.

221

subdividem-se em normas completáveis, que exigem complementação por meio

da legislação infraconstitucional para que adquiram aplicabilidade, e normas

restringíveis, que demandam regulamentação em sentido oposto, para restringir

seu âmbito de incidência. Segundo os autores, a estrutura dessa última espécie

se afigura “como se o Constituinte não houvesse querido internar-se pelas

diversas exceções a serem aportadas ao bem jurídico ou ao princípio com cujo

asseguramento se preocupou, transferindo tal mister para o legislador comum”465.

Em ambos os casos, seja para complementar, seja para restringir sua esfera de

incidência, tais normas exigem regulamentação por meio da atuação do legislador

infraconstitucional.

6.3.2.5 Classificação de Luís Roberto Barroso

Luís Roberto Barroso, em relação ao conteúdo das normas constitucionais,

elenca três categorias: (i) normas constitucionais de organização; (ii) normas

constitucionais definidoras de direitos; (iii) normas constitucionais

programáticas466.

Segundo Barroso, as normas constitucionais de organização “têm por

objeto estruturar e disciplinar o poder político. Elas se dirigem, na generalidade

dos casos, aos próprios Poderes do Estado e seus agentes”467.

Por sua vez, as normas constitucionais definidoras de direitos “são as que

tipicamente geram direitos subjetivos, investindo o jurisdicionado no poder de

exigir do Estado – ou de outro eventual destinatário da norma – prestações

positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas

consagrados”468. Barroso agrupa os direitos subjetivos constitucionais em quatro

grandes categorias: (i) direitos individuais (ii) direitos políticos; (iii) direitos sociais;

e (iv) direitos difusos.

465

Idem, p. 50. 466

BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar 2008, p. 201. 467

Idem, p. 201. 468

Idem, p. 202.

222

Finalmente, as normas constitucionais programáticas “traçam fins sociais a

serem alcançados pela atuação futura dos poderes públicos”469. Segundo

Barroso, essas normas,

Por sua natureza, não geram para os jurisdicionados a possibilidade de exigir comportamentos comissivos, mas investem-nos na faculdade de demandar dos órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas. Vale dizer: não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram-nos em sua feição negativa. São dessa categoria as regras que preconizam a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII), o apoio à cultura (art. 215), o fomento às práticas desportivas (art. 217), o incentivo à pesquisa (art. 218), dentre outras. Modernamente, já se sustenta a operatividade positiva de tais normas, no caso de repercutirem sobre direitos materialmente fundamentais, como por exemplo os

que se referem ao mínimo existencial.470

Portanto, para o autor, as normas constitucionais organizam o poder

político, definem direitos fundamentais e estabelecem princípios fundamentais ou

fins públicos relevantes.

Barroso observa que a classificação em questão concerne exclusivamente

às normas materialmente constitucionais, não valendo para as normas

formalmente constitucionais, ou seja, aquelas que, embora presentes no corpo da

Constituição, tratam de matéria infraconstitucional – em relação às quais o autor

faz rigorosa e, a nosso ver, acertada crítica471.

Ainda que os demais autores cujas classificações elencamos não façam

essa ressalva, entendemos que, mesmo implicitamente, tais classificações

concernem ao conteúdo das normas constitucionais, de modo que, mesmo

naquelas em que é possível adequar normas formalmente constitucionais à

categoria (como é o caso da classificação de José Afonso da Silva), tal

469

Idem, p. 203. 470

BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 203. 471

“Como é de conhecimento geral, as Constituições contemporâneas, em razão de fatores diversos, fazem incluir em seus textos inúmeras normas que não têm conteúdo constitucional, vale dizer, não organizam o poder político, não definem direitos fundamentais, nem tampouco estabelecem princípios fundamentais ou fins públicos relevantes. Essas normas que aderem à Constituição sem tratar de matéria constitucional dizem-se normas apenas formalmente constitucionais. Esta é, de resto, uma das patologias da Constituição brasileira de 1988, na qual se constitucionalizaram inúmeras questões que deveriam ter sido relegadas à legislação infraconstitucional, isto é, ao processo político ordinário e majoritário. Tal fato traz em si inconveniências diversas, restringindo desnecessariamente as decisões majoritárias e atravancando providências indispensáveis à evolução social e normativa” (BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 204).

223

adequação é irrelevante para a aferição da natureza e estrutura das normas

efetivamente – ou seja, materialmente – constitucionais.

Em síntese, no que concerne à eficácia e aplicabilidade das normas

constitucionais, pode-se concluir que, a despeito das inúmeras variantes

classificatórias apontadas, todas têm um ponto comum: reconhecem, dentro da

categoria das normas constitucionais, distintos graus de eficácia e aplicabilidade,

o que não ocorre em relação às normas infraconstitucionais, em relação às quais

não há subdivisão a partir de tais parâmetros. Evidencia-se, assim, uma diferença

estrutural entre normas infraconstitucionais e constitucionais.

Esta não é, contudo, a única distinção entre as duas categorias normativas.

Fundamental é observar que as normas constitucionais ainda se dividem em

regras e princípios, o que não ocorre com a legislação ordinária.

6.4 A divisão das normas constitucionais em regras e princípios

Ainda no que tange à estrutura das normas constitucionais, relevante

doutrina construiu-se e consolidou-se em torno de uma classificação dicotômica,

que divide as normas constitucionais – o termo “normas”, aqui, entendido como

gênero – em duas espécies, a saber: regras e princípios.

A consagração dessa dicotomia, para fins de efetiva interpretação e

aplicação das normas constitucionais, só tem relevância se aceito o pressuposto,

anteriormente examinado, de que todas as normas constitucionais,

independentemente da estrutura que adotem, são dotadas de normatividade.

Paulo Bonavides observa que os princípios constitucionais decorrem dos

princípios gerais de Direito, “cuja penetração na Lei das Leis logo os converte em

princípios constitucionais de primeiro grau, de suma relevância”472 – relevância

esta decorrente do fato de que “os princípios, uma vez constitucionalizados, se

fazem a chave de todo o sistema normativo”473.

Segundo Bonavides, “a juridicidade dos princípios passa por três distintas

fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista”474.

472

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 259. 473

Idem, p. 258. 474

Idem, p. 259.

224

Na primeira fase, a jusnaturalista, apenas a dimensão axiológica dos

princípios era reconhecida. Não dispunham os princípios, então, de qualquer

normatividade.

Enfim, a corrente jusnaturalista concebe os princípios gerais de Direito, segundo assinala Flórez-Valdés, em forma de “axiomas jurídicos” ou normas estabelecidas pela reta razão. São, assim, normas universais de bem obrar. São os princípios de justiça, constitutivos de um Direito ideal. São, em definitivo, “um conjunto de verdades objetivas derivadas da lei divina e humana”.

O ideal de justiça, no entendimento dos autores jusnaturalistas, impregna a essência dos princípios gerais de Direito. Todavia, a “formulação axiomática” de tais princípios,

conforme observa Enterría, os arrastou ao descrédito.475

A fase positivista da teoria dos princípios coincide com a decadência do

jusnaturalismo e o advento do positivismo jurídico e da Escola Histórica do Direito,

em fins do século XIX e início do século XX. Os princípios, a partir de então,

passam a figurar nos Códigos “como fonte normativa subsidiária”476, servindo,

pois, de fundamento para o direito positivo.

Contudo, a positivação dos princípios não levou ao reconhecimento de sua

normatividade. Como observa Bonavides, “o juspositivismo, ao fazer dos

princípios na ordem constitucional meras pautas programáticas supralegais, tem

assinalado, via de regra, a sua carência de normatividade, estabelecendo,

portanto, a sua irrelevância jurídica”477.

Chega-se, enfim, à fase pós-positivista. Conforme destacado

anteriormente, o fim da II Guerra Mundial e a divulgação dos horrores causados

pelo regime nazista, somados à “defesa da legalidade” invocada pelos criminosos

de guerra no Tribunal de Nuremberg, levaram à derrocada do juspositivismo,

fundado, dentre outros valores, na ideia do afastamento entre o direito e a moral.

A partir do momento em que ocorre a reaproximação entre o direito e a

moral, a força de princípios até então tidos como “pautas axiológicas”,

desprovidas de valor efetivamente jurídico, se renova, e a ideia de juridicidade

desses princípios, não apesar da, mas em razão da sua carga valorativa, se

revigora e conquista espaço no universo jurídico.

475

Idem, p. 261-262. 476

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 262. 477

Idem, p. 263.

225

Contudo, essa transição não se deu de forma súbita, nem de um momento

para o outro.

A cristalização da teoria – hoje consolidada – da classificação das normas

constitucionais em regras e princípios, consagrada pela conjugação das obras de

Ronald Dworkin e Robert Alexy, é o resultado de um longo processo teórico, que

entendemos necessário abordar, tendo em vista a relevância da questão dos

princípios constitucionais para o cerne do presente estudo478.

Impende, assim, apontar, ainda que de forma breve, a trajetória que os

princípios seguiram, da mera axiologia à efetiva normatividade.

6.4.1 Jean Boulanger

Segundo Paulo Bonavides, “antes de Alexy e Dworkin, Boulanger, na

mesma senda inovadora, (...) já distinguia regras e princípios, mas primeiro

advertia, citando Japiot, que ‘os princípios haurem parte de sua majestade no

mistério que os envolve’”479.

Boulanger aponta, desde logo, a diferença entre os graus de relevância (e

de generalidade na linguagem) existentes entre regras e princípios:

Há entre princípio e regra jurídica não somente uma disparidade de importância, mas uma diferença de natureza. Uma vez mais o vocabulário é a fonte de confusão: a generalidade da regra jurídica não se deve entender da mesma maneira que a generalidade de

um princípio.480

Assim, para o autor, enquanto uma regra jurídica “é especial na medida em

que rege tão-somente atos ou fatos, ou seja, é editada contemplando uma

478

“A par da reviravolta antipositivista de Dworkin, num momento culminante para o advento do pós-positivismo, urge, tocante aos princípios, acompanhar a escalada e o desdobramento da doutrina, desde a tibieza inicial de Betti e Esser em reconhecer-lhes a normatividade, até as posições mais recentes e definidas do constitucionalismo contemporâneo e seus precursores, que erigiram os princípios a categorias de normas, numa reflexão profunda e aperfeiçoadora” (BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 266). 479

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 266. 480

BOULANGER, Jean. Principes généraux Du Droit et Droit Positif, in Le Droit Privé Français au Milieu du XXe. Siècle, Études offertes à Georges Ripert, t. I. Paris: Librairie Générale de Droti et de Jurisprudence, 1950, p. 51.

226

situação jurídica determinada”481, o princípio jurídico, ao contrário, “é geral porque

comporta uma série indefinida de aplicações”482.

Assim, os princípios, para Boulanger, diferem das regras na medida em

que são “um indispensável elemento de fecundação da ordem jurídica positiva”483,

servindo, ainda, de base a construções jurídica ulteriores:

Uma vez afirmados e aplicados na jurisprudência, os princípios são os materiais graças aos quais pode a doutrina edificar, com segurança, construções jurídicas. No sentido em que nós entendemos o termo, que não peca por excesso de precisão, as construções jurídicas têm os princípios por armadura (...). Os princípios existem, ainda que não se exprimam ou não se reflitam em textos de lei. Mas a jurisprudência se limita a declará-los; ela não os cria. O enunciado de um princípio não escrito é a

manifestação do espírito de uma legislação.484

6.4.2 Emilio Betti

Representante da hermenêutica tradicional, que relutava em atribuir

normatividade aos princípios, Emilio Betti afirmava que os princípios servem à

norma, mas não constituem, em si mesmos, normas perfeitas e acabadas.

Segundo Betti, há uma antinomia insuperável

[...] de um lado, entre a exigência, que todo preceito jurídico levanta de ser formulado em termos normativos, de tal sorte que permita uma interpretação jurídica e uma construção dogmática e, doutra parte, a repugnância que os princípios opõem a uma formulação preceptiva exata, enquanto afirmam orientações e ideais de política legislativa, capazes de indefinida, quase diria,

inexaurível virtualidade.485

Paulo Bonavides observa que “a posição dúbia e vacilante de Betti acerca

da normatividade dos princípios outra coisa não configura senão um dos aspectos

mais evidentes e palpáveis da crise da Velha Hermenêutica”486.

481

Idem, p. 56. 482

Idem, p. 56. 483

Idem, p. 63. 484

BOULANGER, Jean. Principes généraux Du Droit et Droit Positif, in Le Droit Privé Français au Milieu du XXe. Siècle, Études offertes à Georges Ripert, t. I, p. 66-67. 485

BETTI, Emilio. Teoria Generale della Interpretazione, p. 846 (apud Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, p. 269). 486

BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 270.

227

6.4.3 Crisafulli

Segundo Paulo Bonavides, “pertence Crisafulli à classe de juristas que

mais contribuíram para consolidar a doutrina da normatividade dos princípios”487.

Vezio Crisafulli não apenas atribui aos princípios normatividade, como ainda lhes

reconhece hierarquia superior no ordenamento, ao afirmar que princípio é “toda

norma jurídica considerada como determinante de outra ou outras que lhe são

subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o

preceito em direções mais particulares”488.

Crisafulli reconhece ainda nos princípios uma “eficácia interpretativa,

consequência direta da função construtiva que os caracteriza dinamicamente

entre as normas do sistema”489.

6.4.4. Domenico Farias

Domenico Farias, além de reconhecer a natureza de norma jurídica dos

princípios, aponta ainda a qualidade da fecundidade a eles inerente, uma vez que

os princípios “são a alma e o fundamento de outras normas. Substancialmente, é

a ideia de fecundidade do princípio aquela que se acrescenta à de mera

generalidade”490. De tal fecundidade, afirma o autor, decorrem duas funções dos

princípios, a interpretativa e a integrativa:

A forma jurídica mais definida mediante a qual a fecundidade dos princípios se apresenta é, em primeiro lugar, a função interpretativa e integrativa. O recurso aos princípios se impõe ao jurista para orientar a interpretação das leis de teor obscuro ou para suprir-lhes o silêncio. Antes ainda das Cartas Constitucionais, ou, melhor, antes que, sob o influxo do jusnaturalismo iluminista, máximas jurídicas muito genéricas se difundissem nas codificações, o recurso aos princípios era já

uma necessidade para interpretar e integrar as leis.491

A partir das funções normativas e interpretativas apontadas por Domenico

Farias, Paulo Bonavides traça a escalada dos princípios da categoria de

487

Idem, p. 272. 488

CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue disposizioni di principi, p. 15. 489

CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue disposizioni di principi, p. 17. 490

FARIAS, Domenico. Idealità e indeterminatezza dei principi constituzionali. Milão: Giuffrè, 1981, p. 163. 491

Idem, p. 163.

228

princípios gerais ao status de princípios constitucionais, ou seja, à sua positivação

nos textos constitucionais, destacando, no entanto, a existência de duas fases

distintas de constitucionalização, uma programática e uma não programática:

Partindo-se da função interpretativa e integrativa dos princípios – cristalizada no conceito de sua fecundidade – é possível chegar, numa escala de densidade normativa, ao grau mais alto a que eles já subiram na própria esfera do Direito Positivo: o grau constitucional.

Mas a constitucionalização dos princípios compreende duas fases distintas: a fase programática e a fase não programática, de concreção e objetividade.

Na primeira, a normatividade constitucional dos princípios é mínima; na segunda, máxima. Ali, pairam ainda numa região abstrata e têm aplicabilidade diferida; aqui, ocupam um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata.

É unicamente nesta última fase que se faz exequível colocar no mesmo plano discursivo, em termos de identidade, os princípios gerais, os princípios constitucionais e as disposições de

princípio.492

6.4.5 Friderich Müller

Desenvolvida no contexto do pós-Segunda Guerra, no qual, como visto

anteriormente, os parâmetros do positivismo jurídico foram postos em cheque, a

teoria estruturante de Friedrich Müller constitui relevante contraponto à Teoria

Pura de Kelsen, e, no que tange à interpretação (e em especial à interpretação

constitucional), contribui significativamente para o fortalecimento do papel do

intérprete, com o (então) inovador conceito de concretização fundada na práxis,

em que a norma jurídica figura como resultado da interação entre o texto

normativo e a realidade concreta – ou, nos termos empregados pelo autor, entre o

programa normativo (o texto) e o âmbito normativo (os dados de realidade), de

cuja conjugação o intérprete extrai a norma aplicável ao caso. Müller assume,

pois, uma posição francamente pós-positivista:

A teoria estruturante do direito não é apenas uma nova concepção – é uma concepção inovadora da teoria do direito. Resulta, pela primeira vez, de um conceito pós-positivista de uma norma jurídica: a norma jurídica não se encontra já pronta nos textos legais; nestes se encontram apenas formas primárias, os textos normativos. A norma só será produzida em cada processo

492

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 274.

229

particular de solução jurídica de um caso, em cada decisão judicial.

Além disso, é parte constitutiva da norma o âmbito normativo, isto é, o conjunto parcial de todos os fatos relevantes (âmbito fático) como elemento que sustenta a decisão jurídica como direito. Assim, sendo, a antiquíssima dicotomia entre “Ser e/contra Dever-Ser” finalmente é superada do ponto de vista pragmático e operacional. A “norma jurídica” torna-se, dessa forma, um conceito complexo, composto do âmbito normativo e do programa normativo (isto é, do resultado da interpretação de todos os dados linguísticos). “Concretização” da norma não significa tornar “mais concreta” uma norma jurídica geral, que já estaria no texto legal. A concretização é, realisticamente considerada, a construção da norma jurídica no caso concreto. A norma jurídica não existe, como vimos, ante casum, mas só se constrói in casu. A norma é a formulação geral da decisão jurídica; a formulação individual (isto é, o teor da decisão) chama-se norma de decisão

(que é também um texto).493

Paulo Bonavides entende que a teoria estruturante de Müller, ao lado da de

Ronald Dworkin (a seguir analisada), “são momentos culminantes de uma

reviravolta na região da doutrina, de que resultam para a compreensão dos

princípios jurídicos importantes mudanças e variações acerca do entendimento de

sua natureza”494, na medida em que ambas contribuem significativamente para o

reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais495.

6.4.6 Ronald Dworkin e Robert Alexy – a visão contemporânea sobre as regras e

princípios constitucionais

493

MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 290-291. 494

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 276. 495

“Com efeito, ambos [Müller e Dworkin] já se colocam na faixa histórica do pós-positivismo, cujas teses mais fecundas e representativas encabeçam verdadeiramente; Müller, com o normativismo de sua teoria estruturante do Direito, intentando ultrapassar pelas vias conceituais de uma concepção material o formalismo normativista de Kelsen; Dworkin, com a conexidade Direito/Moral, buscando abalar e desterrar da Ciência Jurídica o positivismo de Hart.

“Assim como Müller, na Alemanha, rompe com a tradição de Kelsen, Jellinek, Laband e Gerber, já Dworkin, no mundo anglo-americano, levanta a cátedra de Harvard contra a de Oxford, onde até então a filosofia jurídica de Hart conservava intangível a inspiração positivista de Bentham e Austin. “São momentos culminantes de uma reviravolta na região da doutrina, de que resultam para a compreensão dos princípios jurídicos importantes mudanças e variações acerca do entendimento de sua natureza; admitidos definitivamente por normas, são normas-valores com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos; e por isso mesmo providos, nos sistemas jurídicos, do mais alto peso, por constituírem a prova de eficácia suprema. Essa norma não pode deixar de ser o princípio. “Mas aqui fica para trás, já de todo anacrônica, a dualidade, ou, mais precisamente, o confronto princípio versus norma, uma vez que pelo novo discurso metodológico a norma é conceitualmente elevada à categoria de gênero, do qual as espécies vêm a ser o princípio e a regra” (BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 276).

230

A trajetória demonstrada nos tópicos anteriores revela a caminhada dos

princípios, especialmente dos princípios constitucionais, rumo à centralidade dos

ordenamentos jurídicos, bem como o progressivo reconhecimento de sua

normatividade e juridicidade. Fundamentais, para a consolidação desse novo

entendimento acerca dos princípios constitucionais, foram as obras de Dworkin e

Alexy, acerca das quais comenta Luís Roberto Barroso:

Após longo processo evolutivo, consolidou-se na teoria do Direito a ideia de que as normas jurídicas são um gênero que comporta, em meio a outras classificações, duas grandes espécies: as regras e os princípios. Tal distinção tem especial relevância no tocante às normas constitucionais. O reconhecimento da distinção qualitativa entre essas duas categorias e a atribuição de normatividade aos princípios são elementos essenciais do pensamento jurídico contemporâneo. Os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a leitura moral do Direito.

Antes mesmo da formulação mais sofisticada da teoria dos princípios, diversos autores já haviam se dado conta da relevância do papel que a eles cabia desempenhar no sistema. A percepção do fenômeno, todavia, não era suficiente, por si só, para tornar operacional e efetiva a distinção entre princípios e regras. Foi somente a partir dos escritos seminais de Ronald Dworkin, difundidos no Brasil a partir do final da década de 80 e ao longo da década de 90, que o tema teve um desenvolvimento dogmático mais apurado. Na sequência histórica, Robert Alexy ordenou a teoria dos princípios em categorias mais próximas da perspectiva romano-germânica do Direito. As duas obras precursoras desses autores – Levando os direitos a sério e Teoria dos direitos fundamentais – deflagraram uma verdadeira explosão de estudos

sobre o tema, no Brasil e alhures.496

Virgílio Afonso da Silva também reconhece o impulso que a teoria dos

princípios constitucionais recebeu a partir da obra desses dois autores, ao afirmar

que “ainda que a distinção entre princípios e regras não seja recente, não há

dúvida de que a grande discussão sobre esse problema ganhou a força atual com

as obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy”497. Paulo Bonavides, por seu turno,

observa que Dworkin foi um dos primeiros autores a admitir a normatividade dos

496

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional, p. 204-205. 497

SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais I (2003), p. 614.

231

princípios, bem como que as insuficiências de sua teoria foram supridas pela obra

de Alexy498.

Inviável, pois, na atualidade, discutir a distinção entre regras e princípios,

como espécies da categoria norma jurídica, sem considerar as teorias formuladas

por esses dois autores – teorias estas, vale lembrar, que guardam bastante

proximidade em seus conteúdos499, como visto a seguir.

Ronald Dworkin publicou Levando os direitos a sério em 1977, como

contraponto ao positivismo jurídico, notadamente àquela versão do positivismo

defendida por Herbert Hart. Segundo Dworkin, o modelo positivista baseia-se na

ideia de que o sistema jurídico é formado apenas por regras. Há, porém, casos

concretos em que o aplicador do direito não consegue identificar a norma

aplicável à situação – são o que Dworkin denomina casos complexos. Nessas

situações, o modelo positivista não consegue fornecer uma resposta satisfatória

para a solução do problema concreto500.

A resolução dos casos complexos, segundo Dworkin, se dá a partir da

distinção entre regras e princípios. Embora sejam ambos espécies do gênero

norma jurídica, distinguem-se no que concerne à sua aplicabilidade:

A diferença entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a

decisão.501

498

“Vejamos, a seguir, abreviadamente, o pensamento de Dworkin acerca dos princípios, cuja normatividade foi, conforme temos reiteradamente assinalado, dos primeiros em admiti-la com toda a consistência e solidez conceitual, posto que com as insuficiências e imperfeições restritivas corrigidas por Alexy, ao fazer o necessário e indeclinável enriquecimento dos conteúdos materiais dos princípios, cujo raio de abrangência ele alargou, com maior rigor científico. A teoria dos princípios, depois de acalmados os debates acerca da normatividade que lhes é inerente, se converteu no coração das Constituições” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 281). 499

“Alexy instituiu a distinção entre regras e princípios, que, na essência, é a mesma de Dworkin. Conjugou as duas modalidades debaixo do conceito de normas” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 277). Entendemos, no entanto, ser mais correto afirmar que a teoria de Alexy constitui um desdobramento e uma evolução das ideias de Dworkin. 500

“Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 36). 501

DWORKIN, Ronald. Ob. cit., p. 39.

232

Os princípios, no entanto, não seguem essa lógica de aplicação. A

incidência de princípios sobre uma realidade concreta não se dá com base no

raciocínio do “tudo ou nada”, na dicotomia validade x invalidade da regra. Isso

porque, além de haver princípios cuja estrutura é substancialmente diversa da das

regras502, os princípios têm uma dimensão de peso inexistente nas regras:

Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo uma outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso tem ele ou quão importante ele é.

As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes (...). Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância

maior.503

Reside aí uma das fundamentais distinções entre regras e princípios, na

teoria de Dworkin – a forma pela qual se solucionam os conflitos entre duas

regras e os conflitos entre dois princípios. Havendo um conflito entre duas regras,

como não há nessa espécie de norma a dimensão do peso ou da importância, a

502

“A distinção lógica entre regras e princípios aparece mais claramente quando consideramos princípios que nem mesmo se assemelham a regras. Consideremos a proposição que aparece em ‘(d)’ nos extratos da decisão Henningsen: ‘o fabricante tem uma obrigação especial no que diz respeito à fabricação, promoção e venda de carros’. Essa formulação não pretende definir os deveres específicos que essa obrigação específica acarreta, nem nos informa que direitos os compradores de automóveis adquirem em consequência dela. Simplesmente afirma – este é um elo importante no caso Henningsen – que os fabricantes de carros devem observar padrões mais elevados do que os de outros fabricantes e estão menos autorizados a basear-se no princípio competitivo da liberdade de contrato. Isso não significa que nunca possam apoiar-se nesse princípio ou que os tribunais tenham o poder de reescrever à vontade os contratos de compra de automóveis; significa apenas que, se uma cláusula específica parecer injusta ou onerosa, os tribunais têm menos razões para fazê-la cumprir do que se a cláusula disser respeito à compra de gravatas. A ‘obrigação especial’ conta a favor, mas em si mesma ela não compele a uma decisão que recuse fazer valer os termos de um contrato de compra de um automóvel” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 42). 503

DWORKIN, Ronald. Ob. cit., p. 43.

233

solução do conflito se dá pelo critério da validade – apenas uma das normas

poderá ser tida como válida:

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes. (Nosso sistema jurídico [norte-americano] utiliza

essas duas técnicas.)504

Portanto, para Dworkin, enquanto os conflitos entre duas regras

incompatíveis se soluciona com base na dimensão da validade, reconhecendo-se

uma regra como válida e a outra, por incompatível com a primeira, como

invalidade (ou seja, aplicabilidade “à maneira do tudo-ou-nada”, nas palavras do

autor), os conflitos entre dois princípios, a solução decorre não do

questionamento da validade dos princípios, e sim do seu peso ou importância

naquela específica situação concreta. Em outras palavras, o princípio que se

revelar mais importante, ou com maior peso, para aquela situação específica, o

que não significa afirmar que aquela prevalência sempre se repetirá. Ao contrário,

em situação distinta na qual colidam os mesmos princípios, aquele tido por menos

importante na primeira situação poderá, agora, ser reconhecido como o de maior

peso.

A teoria de Robert Alexy, por sua vez, exposta na sua Teoria dos Direitos

Fundamentais, publicada em 1984, constitui um desdobramento e um

aprofundamento da distinção entre princípios e regras traçada por Dworkin.

Alexy aponta a existência de três teses possíveis para explicar a distinção

entre regras e princípios: a primeira sustenta a impossibilidade da distinção,

diante da diversidade de normas jurídicas existentes; de acordo com a segunda

tese, a diferença entre normas e princípios seria uma diferença de grau, servindo

como parâmetro de distinção principalmente o grau de generalidade entre regras

e princípios; finalmente, a terceira tese, que Alexy entende mais acertada,

504

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 43.

234

sustenta que existe uma diferença qualitativa entre regras e princípios505. Essa

diferença, segundo Alexy, reside na circunstância de que os princípios, ao

contrário das regras, são o que o autor chama de mandamentos de otimização:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de

grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.506

Outra distinção fundamental entre regras e princípios, para Alexy, se revela

na forma de resolução entre conflitos entre duas normas e colisões entre dois

princípios. Segundo o autor, “o conflito entre regras só pode ser solucionado se se

introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou

se pelo menos uma das regras for declarada inválida”507. Inexistindo a cláusula de

exceção mencionada por Alexy, o conflito entre regras só se resolve com a

declaração de invalidade de uma delas, uma vez que não há graduação possível

para a validade jurídica508.

505

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 89-90. 506

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 91. 507

Idem, p. 92. 508

“Se esse tipo de solução [a cláusula de exceção] não for possível, pelo menos uma das regras tem que ser declarada inválida e, com isso, extirpada do ordenamento jurídico. Ao contrário do que ocorre com o conceito de validade social ou de importância da norma, o conceito de validade jurídica não é graduável. Ou uma norma jurídica é válida, ou não é. Se uma regra é válida e aplicável a um caso concreto, isso significa que também sua consequência jurídica é válida. Não importa a forma como sejam fundamentados, não é possível que dois juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si sejam validos. Em um determinado caso, se se constata a aplicabilidade de duas regras com consequências jurídicas contraditórias entre si, e essa contradição não pode ser eliminada por meio da introdução de uma cláusula de exceção, então, pelo menos uma das regras deve ser declarada inválida. “A constatação de que pelo menos uma das regras deve ser declarada inválida quando uma cláusula de exceção não é possível em um conflito entre regras nada diz sobre qual das regras deverá ser tratada dessa forma. Esse problema pode ser solucionado por meio de regras como lex posterior derogat legi priorie lex specialis derogat legi generali, mas é também possível proceder de acordo com a importância de cada regra em conflito. O fundamental é: a decisão é uma decisão sobre validade” (ALEXY, Robert. Ob. cit., p. 92-93).

235

Essa solução não serve para as colisões entre princípios, uma vez que tais

conflitos não usam o parâmetro da validade para chegar à solução do problema.

Ao contrário, segundo Alexy, a validade dos princípios é condição para que

entrem em colisão (pois apenas os princípios válidos podem colidir). O que

ocorre, no caso dos princípios, é que um deles há de ceder em relação ao outro,

inexistindo – assim como na teoria de Dworkin – uma valoração apriorística

acerca de qual princípio há de prevalecer. A conclusão a ser alcançada, nesse

sentido, há de tomar por base as circunstâncias do caso concreto, de modo que,

também para Alexy, a mesma colisão entre princípios pode levar a resultados

distintos, a depender das circunstâncias do caso concreto no qual se constate a

colisão:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro em determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além

dessa dimensão, na dimensão do peso.509

Assim, a colisão entre princípios inviabiliza que ambos sejam realizados em

sua plenitude (daí porque devem ser realizados na maior medida possível), razão

pela qual a solução dessa colisão passa por um sopesamento entre os dois

princípios conflitantes. Alexy elabora uma lei de colisão, assim formulada: “As

condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro

constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica

do princípio que tem precedência”510.

Essa diferença estrutural entre regras e princípios, bem como as distintas

formas de solução de conflitos entre regras e colisões entre conflitos, revela um

caráter prima facie dos princípios, inexistente nas regras, uma vez que estas são

509

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 93-94. 510

Idem, p. 99.

236

mandamentos definitivos. Como os mandamentos contidos nos princípios podem

ter sua amplitude alterada em razão da frequente necessidade de sopesamento

de princípios colidentes, não se lhes pode atribuir natureza definitiva, e sim, como

afirma Alexy, apenas prima facie:

Uma primeira característica importante que decorre do que foi dito até agora é o distinto caráter prima facie das regras e dos princípios. Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contrarrazão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas.

O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra

prescreve.511

Portanto, ao estabelecer deveres definitivos, a regra deixa clara a extensão

de sua prescrição, que deve ser cumprida de forma plena. Já o grau de realização

dos princípios não é aprioristicamente definido, ficando dependente das

circunstâncias fáticas dentro das quais deverá ser realizado na maior medida

possível.

Alexy aponta ainda – e refuta – três principais objeções ao seu conceito de

princípio: “A primeira sustenta que há colisões entre princípios que podem ser

resolvidas por meio da declaração de invalidade de um deles; a segunda, que

existem princípios absolutos, que nunca podem ser colocados em uma relação de

preferência em face de outros princípios; e a terceira, que o conceito de princípio

é muito amplo e, por isso, inútil, porque abarcaria todo e qualquer interesse que

possa ser introduzido por um processo de sopesamento”512.

À primeira objeção, segundo a qual seria possível a solução de certas

colisões de princípios por meio da declaração da invalidade de um deles, Alexy

responde que “o conceito de colisão entre princípios pressupõe a validade dos

511

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 104-105. 512

Idem, p. 109-110.

237

princípios colidentes. Por isso, a referência à possibilidade de se classificar

princípios como inválidos não atinge o teorema da colisão, apenas torna mais

claro um de seus pressupostos”513. Dito de outro modo, não é possível superar a

colisão de princípios com base na invalidade de um deles porque, segundo o

autor, a validade de ambos é pressuposto para a própria colisão514.

Em relação aos princípios absolutos, Alexy refuta sua existência,

especialmente num ordenamento jurídico no qual haja direitos fundamentais

positivados. Segundo o autor, a admissão da existência de princípios absolutos

tornaria necessário reformular a própria definição de princípio:

Se existem princípios absolutos, então, a definição de princípios deve ser modificada, pois se um princípio tem precedência em relação a todos os outros em casos de colisão, até mesmo em relação ao princípio que estabelece que as regras devem ser seguidas, nesse caso, isso significa que sua realização não conhece nenhum limite jurídico, apenas limites fáticos. Diante disso, o teorema da colisão não seria aplicável.

É fácil argumentar contra a existência de princípios absolutos em um ordenamento jurídico que inclua direitos fundamentais. Princípios podem se referir a interesses coletivos ou a direitos individuais. Se um princípio se refere a interesses coletivos e é absoluto, as normas de direitos fundamentais não podem estabelecer limites jurídicos a ele. Assim, até onde o princípio absoluto alcançar não pode haver direitos fundamentais. Se o princípio absoluto garante direitos individuais, a ausência de limites desse princípio levaria à seguinte situação contraditória: em caso de colisão, os direitos de cada indivíduo, fundamentados pelo princípio absoluto, teriam que ceder em favor dos direitos de todos os indivíduos, também fundamentados pelo princípio absoluto. Diante disso, ou os princípios absolutos não são compatíveis com direitos individuais, ou os direitos individuais que sejam fundamentados pelos princípios absolutos não podem ser

garantidos a mais de um sujeito de direito.515

Finalmente, no que concerne à última objeção, de que o conceito de

princípio é inútil porque muito amplo, abrangendo, assim, qualquer interesse 513

Idem, p. 110. 514

Prova desse argumento de Alexy se encontra, incidentalmente, no exemplo dado por Virgílio Afonso da Silva para refutar a possibilidade – defendida por Humberto Bergmann Ávila e Inocêncio Mártires Coelho – de solução da colisão de conflitos por meio do critério de validade/invalidade de um dos princípios: “Assim, se um juiz proíbe a publicação de um determinado livro, por entendê-lo incompatível com a proteção constitucional à honra de alguém, isso não significa que a liberdade de expressão tenha sido tratada como ‘não pertencente ao ordenamento jurídico’. Ao contrário, o juiz só pode decidir pela prevalência de um princípio sobre outro se pressupor que ambos fazem - e continuarão a fazer - parte do ordenamento jurídico. Prevalecer não se confunde, portanto, com pertencer” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais I (2003), p. 622). As análises da doutrina brasileira acerca da distinção entre regras e princípios formulada por Dworkin e Alexy serão estudadas com mais vagar no capítulo seguinte. 515

Idem, p. 111.

238

passível de sopesamento, Alexy defende, um tanto superficialmente516, que

“princípios podem se referir tanto a direitos individuais quanto a interesses

coletivos”517, razão pela qual se deve adotar um conceito amplo de princípio, em

contraposição à teoria de Dworkin, para quem, segundo Alexy, “princípios são

apenas aquelas normas que podem ser utilizadas como razões para direitos

individuais. Normas que se refiram a interesses coletivos são por ele

denominadas como ‘políticas’”518.

Para os fins do presente trabalho, têm especial relevo às críticas feitas pela

doutrina brasileira à teoria de Dworkin e Alexy, uma vez que, como se verá

oportunamente, o Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição

constitucional, faz constante referência à dicotomia entre regras e princípios nos

termos elencados por tais autores, sem apartar essa teoria, no entanto, da

doutrina clássica brasileira acerca dos princípios, malgrado a incompatibilidade

entre as duas linhas de pensamento519 – e, mais do que isso, sem estabelecer as

premissas para o desenvolvimento dos argumentos de fundamentação de suas

decisões (dito de outro modo: sem estabelecer qual critério diferenciador de

regras e princípios adota para desenvolver seus argumentos).

6.4.7 A crítica da doutrina nacional à teoria de Dworkin e Alexy

A despeito das restrições anteriormente mencionadas à teoria de Dworkin,

desenvolvida e aprimorada por Alexy, não resta dúvida de que a distinção entre

regras e princípios como espécies do gênero norma jurídica conquistou lugar de

grande destaque na doutrina constitucionalista, a ponto de Paulo Bonavides

afirmar, acerca da contribuição de Dworkin e Alexy, que “a teoria dos princípios,

516

Concordamos, aqui, com a análise feita por Paulo Bonavides: “Esta é a mais fraca das objeções, e a ela pouca ou nenhuma atenção lhe concede o formulador da nova teoria dos princípios, salvo para patentear sua divergência com Dworkin, que entende de maneira restritiva os princípios, fazendo dos bens coletivos meras policies, ao contrário de Alexy, que alarga o conceito e insere neste os referidos bens. Em Dworkin os princípios entendem unicamente com os direitos individuais, o que já não acontece com Alexy, cujo conceito tem mais amplitude” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 281). 517

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 114. 518

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 116. 519

Como será visto no tópico seguinte, enquanto a doutrina nacional fundamenta a distinção entre regras e princípios no conteúdo das normas jurídicas, a teoria de Dworkin e Alexy parte da estrutura das normas para estabelecer tal distinção, o que torna impossível fundir as duas teorias numa só, dadas as suas incompatibilidades metodológicas. Não obstante, como se verá a seguir, boa parte da doutrina brasileira ainda insiste na infrutífera tentativa dessa fusão.

239

depois de acalmados os debates acerca da normatividade que lhes é inerente, se

converteu no coração das Constituições”520.

A teoria dos princípios, nos moldes desenvolvidos por Dworkin e Alexy,

também teve significativo impacto na doutrina e na jurisprudência nacionais,

notadamente no âmbito da jurisdição constitucional concretizada pelo Supremo

Tribunal Federal. Ocorre, no entanto, que, antes de Dworkin e Alexy, já se

consolidara na doutrina pátria uma definição de princípios que toma por base

parâmetro distinto daqueles usados pela referida teoria. Em outras palavras,

enquanto a moderna teoria dos princípios traça a divisão entre regras e princípios

(ambos espécies do gênero norma) a partir da estrutura formal da norma jurídica,

a tradicional doutrina brasileira estabelece essa distinção com base no conteúdo

da norma. Tais critérios de distinção, como se verá adiante, são incompatíveis

entre si. Daí a necessidade de apontar as principais considerações doutrinárias

feitas a respeito dessa distinção pela doutrina pátria.

Nesse sentido, destacam-se, dentre inúmeros trabalhos nacionais

publicados a respeito do tema, as doutrinas de Humberto Bergmann Ávila, Virgílio

Afonso da Silva Lênio Luiz Streck e Inocêncio Mártires Coelho.

6.4.7.1 A crítica de Humberto Bergmann Ávila

Em sua Teoria dos princípios, Humberto Bergmann Ávila propõe uma

reestruturação dos fundamentos a partir dos quais se faz a distinção entre

princípios em regras, sem, no entanto, negar essa dicotomia521. Reelabora-a,

contudo, a ponto de admitir tanto que princípios estabelecem condutas, quanto

que conflitos de regras podem ser solucionados por meio de ponderação522. Ávila

520

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 281. 521

Limitando essa dicotomia, no entanto, ao que denomina de normas de primeiro grau (regras e princípios), elaborando, contudo, uma terceira categoria, a dos postulados normativos, classificados pelo autor como normas de segundo grau – conforme visto a seguir. 522

“Este trabalho procura, pois, contribuir para uma melhor definição e aplicação dos princípios e das regras. Sua finalidade é clara: manter a distinção entre princípios e regras, mas estruturá-los sob fundamentos diversos dos comumente empregados pela doutrina. Demonstrar-se-á, de um lado, que os princípios não apenas explicitam valores, mas, indiretamente, estabelecem espécies precisas de comportamentos; e, de outro, que a instituição de condutas pelas regras também pode ser objeto de ponderação, embora o comportamento preliminarmente previsto dependa do preenchimento de algumas condições para ser superado” (ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 25).

240

refuta, ainda, a qualidade de mandamentos de otimização atribuída aos princípios

por Dworkin e Alexy523.

Ao abordar a teoria de Dworkin e Alexy, Ávila pondera, acertadamente, que

“a distinção elaborada por Dworkin não consiste numa distinção de grau, mas

numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios

classificatórios, em vez de comparativos, como afirma Robert Alexy”524.

A primeira premissa de que parte Ávila para a construção de sua teoria é

inquestionável: as normas jurídicas se constroem a partir dos textos normativos,

mas com eles não se confundem525. Uma vez que a norma não se confunde com

o texto normativo, é a partir da interpretação que será possível atribuir à norma a

qualidade de regra ou princípio. Nas palavras do autor, “a qualificação de

determinadas normas como princípios ou como regras depende da colaboração

constitutiva do intérprete”526.

Ávila conceitua regras e princípios nos seguintes termos:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente retrospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como

necessária à sua promoção.527

523

“É preciso, ainda, lembrar que os princípios, eles próprios, não são mandados de otimização. Com efeito, como lembra Aarnio, o mandado consiste numa proposição normativa sobre os princípios e, como tal, atua como uma regra (norma hipotético-condicional): será ou não cumprido. Um mandado de otimização não pode ser aplicado mais ou menos. Ou se otimiza, ou não se otimiza. O mandado de otimização diz respeito, portanto, ao uso de um princípio: o conteúdo de um princípio deve ser otimizado no procedimento de ponderação. O próprio Alexy passou a aceitar a distinção entre comandos para otimizar e comandos para serem otimizados” (idem, p. 63). 524

ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 37. 525

“Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte” (ÁVILA, Humberto Bergmann. Ob. cit, p. 30). 526

Idem, p. 35. 527

Idem, p. 78-79.

241

Ao lado das regras e dos princípios, Ávila elenca uma terceira categoria

normativa, os postulados normativos. Princípios e regras, para o autor, são

normas de primeiro grau, uma vez que são normas sujeitas a aplicação; os

postulados normativos, por sua vez, são normas de segundo grau, uma vez que

orientam a aplicação das normas e dos princípios528. Há, na teoria de Ávila, duas

espécies de postulados: “os postulados meramente hermenêuticos, destinados a

compreensão geral do Direito e os postulados aplicativos, cuja função é estruturar

a sua aplicação concreta”529.

Mais polêmica do que a classificação das normas em três espécies

normativas – regras, princípios e postulados – ao invés da largamente aceita

classificação dúplice de Dworkin e Alexy, é a posição de Ávila acerca das

possibilidades de solução de conflitos entre regras e colisões entre princípios.

Em sua tentativa de reformular o que denomina de “critério do modo final

de aplicação”530, que corresponderia às posições de Dworkin e Alexy acerca da

dicotomia entre regras e princípios, Ávila afirma que “o modo de aplicação não

está determinado pelo texto objeto de interpretação, mas é decorrente de

conexões axiológicas que são construídas (ou, no mínimo, coerentemente

intensificadas) pelo intérprete, que pode inverter o modo de aplicação inicialmente

havido como elementar”531.

Mais explicitamente, Ávila afirma, de maneira textual, que “em alguns

casos as regras entram em conflito sem que percam sua validade, e a solução

para o conflito depende da atribuição de peso maior a uma delas”532, bem como

528

“A interpretação de qualquer objeto cultural submete-se a algumas condições essenciais, sem as quais o objeto não pode ser sequer apreendido. A essas condições essenciais dá-se o nome de postulados. Há os postulados meramente hermenêuticos, destinados à compreensão em geral do Direito e os postulados aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta. (...) “Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas” (ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 122). 529

Idem, p. 122. 530

Idem, p. 44. 531

Idem, p. 44-45. 532

Idem, p. 52-53.

242

que “a atividade de ponderação de razões não é privativa da aplicação dos

princípios, mas é qualidade geral de qualquer aplicação de normas”, de modo que

“a ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras”533.

Ávila infirma ainda a teoria de Dworkin e Alexy ao afirmar que “não é

coerente afirmar que somente os princípios possuem uma dimensão de peso”534,

uma vez que essa dimensão resulta da interpretação do aplicador da lei, sendo,

por conseguinte, inerente a todas as normas jurídicas:

Em segundo lugar, há incorreção quando se enfatiza que os princípios possuem uma dimensão de peso. A dimensão de peso não é algo que já esteja incorporado a um tipo de norma. As normas não regulam sua própria aplicação. Não são, pois, os princípios que possuem uma dimensão de peso: às razões e aos fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância. A maioria dos princípios nada diz sobre o peso das razões. É a decisão que atribui aos princípios um peso em função das circunstâncias do caso concreto. A citada dimensão de peso (dimension of weight) não é, então, atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e dos fins a que eles fazem referência, cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. Vale dizer, a dimensão de peso não é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma diferença lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo valorativo do

aplicador.535

O autor invoca, como exemplo do que seria uma dimensão de peso de

regras, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 73.662-9-MG,

na qual a presunção absoluta de violência, contida no art. 224 do Código Penal no

caso de estupro de vítima menor de 14 anos, foi afastada em razão das

circunstâncias do caso concreto – o que demonstraria que nem sempre as regras

são aplicadas com base no critério do “tudo ou nada”, como afirma Dworkin.

Assim, segundo o autor,

o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um caso em que a vítima tinha 12 anos, atribuiu tamanha relevância a circunstâncias particulares não previstas pela norma, como a aquiescência da vítima ou a aparência física e mental de pessoa mais velha, que terminou por entender, preliminarmente, como não configurado o tipo penal, apesar de os requisitos normativos expressos estarem presentes. Isso significa que a aplicação revelou que aquela

533

Idem, p. 58. 534

Idem, p. 59. 535

ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 59.

243

obrigação, havida como absoluta, foi superada por razões

contrárias não previstas pela própria ou outra regra.536

Essa posição de Ávila é refutada por Virgílio Afonso da Silva, que

apresenta três argumentos, a nosso ver irretocáveis, para sustentar a

inviabilidade de uma ponderação entre regras. Em primeiro lugar, o autor afirma

que “não é possível argumentar contra uma construção teórica recorrendo ao

simples fato de que esse ou aquele tribunal decidiu de forma diversa. Decisões

que contrariam teorias (...) existem aos montes, e não é preciso procurar muito

para achá-las. Apontar problemas em uma teoria exige que problemas internos a

ela sejam demonstrados”537, o que, por óbvio, Ávila não faz no exemplo em

questão.

Em segundo lugar, prossegue o autor, “poder-se-ia argumentar que uma

decisão que não tenha respeitado a clara norma extraída do art. 224 do CP é,

pura e simplesmente, uma decisão contra legem. Se a decisão tiver sido, de fato,

contra legem, ela simplesmente terá desrespeitado o caráter absoluto que as

regras deveriam ter”538.

Finalmente – e esta nos parece a crítica mais contundente feita por Virgílio

Afonso da Silva à teoria de Humberto Bergmann Ávila, uma vez que não se

circunscreve ao exemplo invocado por este –, o autor observa que a teoria de

Ávila indica a possibilidade de existência de conflitos não apenas entre regras ou

entre princípios, mas também entre uma regra e um princípio. O autor observa, no

entanto (amparado na teoria de Alexy), que, nesse caso, o conflito que se instaura

não é entre um princípio e uma regra, e sim entre um princípio e outro princípio,

que fundamenta aquela regra:

Como já foi visto acima, se existem duas espécies de normas – regras e princípios – é perfeitamente plausível supor, com as relativizações expostas anteriormente, que não existam apenas conflitos entre regras e colisões entre princípios, mas também colisões entre uma regra e um princípio. Como também já foi visto acima, a solução para tais conflitos é um ponto polêmico na teoria de Alexy. No caso da solução por ele proposta percebeu-se que não se exclui a necessidade de sopesamento nos casos de colisões entre uma regra e um princípio. Mas esse sopesamento, como o próprio Alexy também sustenta, ocorre não entre a regra e

536

Idem, p. 45. 537

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 58. 538

Idem, p. 58.

244

o princípio colidentes, mas entre o princípio em questão e o

princípio que sustenta a regra que com ele colide.539

A posição de Virgílio Afonso da Silva acerca da teoria de Humberto

Bergmann Ávila nos parece, como mencionamos acima, irretocável. Ainda que

reconheçamos a viabilidade da dicotomia apresentada por Ávila acerca das

normas de primeiro grau (regras e princípios) e normas de segundo grau

(postulados normativos)540, não nos parece que, ao esmiuçar as características

das regras e dos princípios, notadamente no que tange às formas de solução dos

conflitos entre as normas, Ávila tenha apresentado uma teoria capaz de

questionar validamente a classificação dicotômica proposta por Alexy.

6.4.7.2 A crítica de Virgílio Afonso da Silva

Mais consistente, a nosso ver, do que a posição de Humberto Bergmann

Ávila, é a crítica feita por Virgílio Afonso da Silva, não à teoria de Dworkin e Alexy,

mas à forma deturpada com que tal teoria encontrou acomodação na doutrina

nacional, que fundiu a classificação de regras e princípios daqueles autores,

fundada na estrutura das normas jurídicas, à posição doutrinária tradicional

brasileira, que distingue as regras dos princípios a partir do conteúdo das normas.

O autor observa, com precisão, que os dois parâmetros classificatórios – o de

Dworkin/Alexy e o da doutrina tradicional brasileira – são incompatíveis entre si, o

539

Idem, p. 58. 540

Nesse tocante, Virgílio Afonso da Silva tem posição mais rigorosa do que a nossa, uma vez que, a seu ver, “as críticas de Humberto Ávila aos pressupostos teóricos do presente trabalho, sobretudo na teoria dos princípios, não são convincentes. É claro que é sempre possível – e muitas vezes desejável – refinar uma classificação e seus conceitos. Mas há dois requisitos essenciais aos quais não se pode deixar de dar a devida atenção. O primeiro deles é mais que óbvio: refinamentos só fazem sentido se teoricamente procedentes. Não me pareceu, pela análise feita acima, que as propostas de refinamentos de Ávila sejam procedentes. O segundo requisito é também trivial, mas muitas vezes passa despercebido: refinar e desenvolver classificações mais gerais só faz sentido na medida em que o objeto do estudo assim exige e, sobretudo, se tais refinamentos tiverem como resultado um ganho em clareza analítico-conceitual. Tampouco parece ser o caso. Isso ficará mais claro adiante, quando for analisada a regra da proporcionalidade, que Ávila classifica como um ‘postulado normativo aplicativo’. Mas não somente a adição dessa categoria não traz ganhos em clareza analítico-conceitual. Também as redefinições que Ávila sugere para os conceitos de regra e princípio mais confundem do que esclarecem a distinção. Confundem sobretudo por inserirem um sem-número de elementos nas definições, que, além de dificultarem sobremaneira sua intelecção, não são elementos imprescindíveis à correta e suficiente distinção entre os dois conceitos” (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p. 62-63). O autor acrescenta, nesse sentido, que “em muitos casos as propostas de Ávila não são meros refinamentos, mas rejeições dos pressupostos que aqui são tomados como corretos” (idem, p. 63), com o que concordamos inteiramente.

245

que inviabiliza sua fusão. Não obstante, parte da doutrina tem procedido a essa

amálgama de duas teorias cuja incompatibilidade é patente. Esclarece o autor:

O termo princípio é plurívoco. Isso, em si, não significa nenhum problema. Problemas só surgem a partir do momento em que o jurista deixa de perceber esse fato e passa a usar o termo como se todos os autores que a ele fazem referência o fizessem de forma unívoca. É o que tem acontecido com a recepção da teoria dos direitos fundamentais de Alexy no Brasil. Não são poucos os trabalhos – e não somente na área constitucional – que têm usado a distinção de Alexy entre princípios e regras como ponto de partida. O grande problema é que, a despeito de se partir dessa distinção, no correr desses trabalhos o termo princípio continua a ser usado no sentido tradicional, seja por meio da clássica definição de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual princípios são “mandamentos nucleares” ou “disposições fundamentais” de um sistema, ou ainda da definição de Canotilho e Vidal Moreira, que definem princípios como “núcleos de condensações”.

Como já referido, o problema não reside na existência de diversas definições. Nem é o caso de se discutir qual definição é a mais correta. Mas se se parte, por exemplo, da definição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que expressa bem o que o jurista brasileiro costuma entender por princípio, é preciso rejeitar a distinção de Alexy. Isso porque o conceito de princípio, na teoria de Alexy, é um conceito que não faz referência à fundamentalidade da norma em questão. Como visto acima, uma norma é um princípio não por ser fundamental, mas por ter a estrutura de um mandamento de otimização. Por isso, um princípio também pode ser um “mandamento nuclear do sistema”, mas pode também não o ser, já que uma norma é um princípio apenas e em razão de sua estrutura normativa e não de sua fundamentalidade. O mesmo vale para as regras. Pode haver regras que sejam disposições fundamentais do sistema, mas isso é irrelevante para sua classificação.

Isso fica claro quando alguns autores, a despeito de usarem a distinção de Alexy como ponto de partida, elaboram classificações de princípios constitucionais que inserem, na categoria dos princípios, normas que, se coerentes com a forma de distinção proposta por Alexy, deveriam ser consideradas como

regras.541

Como já afirmara o autor em artigo publicado anteriormente, “a

nomenclatura pode variar um pouco de autor para autor (...), mas a ideia costuma

ser a mesma: princípios seriam as normas mais fundamentais do sistema,

enquanto que as regras costumam ser definidas como uma concretização desses

princípios e teriam, por isso, caráter mais instrumental e menos fundamental”542.

Reitera o autor que o conceito de princípio de Alexy “nada diz sobre a

541

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre os particulares. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 35-36. 542

SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, p. 612.

246

fundamentalidade da norma”543, e destaca o principal problema dessa mescla

indevida de teorias incompatíveis entre si:

Muito do que as classificações tradicionais chamam de princípio, deveria ser, se seguirmos a forma de distinção proposta por Alexy, chamado de regra. Assim, falar em princípio do nulla poena sine lege, em princípio da legalidade, em princípio da anterioridade, entre outros, só faz sentido para as teorias tradicionais. Se se adotam os critérios propostos por Alexy, essas normas são regras, não princípios. Todavia, mesmo quando se diz adotar a concepção de Alexy, ninguém ousa deixar esses "mandamentos fundamentais" de fora das classificações dos

princípios para incluí-los na categoria das regras.544

O problema apontado por Virgílio Afonso da Silva não se restringe à

doutrina. Também a jurisprudência, inclusive no âmbito da jurisdição

constitucional, mescla as duas teorias, malgrado sua evidente incompatibilidade,

o que, por óbvio, causa imenso prejuízo à qualidade argumentativa da

fundamentação de decisões judiciais da maior relevância.

A nosso ver, a crítica formulada pelo autor ao uso indiscriminado dos

critérios estrutural e material para a distinção entre regras e princípios é

absolutamente procedente, razão pela qual a ela aderimos sem qualquer

ressalva.

6.4.7.3 A crítica de Lênio Luiz Streck

Como visto anteriormente, Lênio Luiz Streck formula severa crítica à tese

de que os princípios constituem a positivação de valores, bem como ao que

entende ser um uso indiscriminado da ideia de princípios para solucionar qualquer

problema que não encontre solução evidente no ordenamento jurídico –

fenômeno ao qual dá o nome de panprincipalismo.

Também já se apontou que Streck defende uma inter-relação entre normas

e princípios, ao afirmar que “a regra não subsiste sem o princípio. Do mesmo

modo, não há princípio que possa ser aplicado sem o ‘atravessamento’ de uma

regra”545. Mais do que isso, o autor afirma textualmente que “os princípios não se

constituem em álibis teóricos para suplantar problemas metodológicos oriundos

543

Idem, p. 612. 544

SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mito e equívocos acerca de uma distinção, p. 613. 545

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise, p. 145.

247

da ‘insuficiência’ das regras. Não são, pois, ‘mandados de otimização’ ou

postulados interpretativos”546, apontando a razão pela qual considera equivocada

a formulação da teoria dos princípios de Alexy:

Enquanto as insuficiências provocadas pela limitação própria das regras eram “superadas” pelas teorias da argumentação e correlatas (mas sempre ainda atreladas a teses axiológico-subjetivas), através do manuseio das incertezas (inerentes) da linguagem, o paradigma que supera esse modelo, sustentado no novo constitucionalismo, passa a ter na aplicação dos princípios – e não na sua ponderação como quer, por exemplo, Alexy – o modo de alcançar respostas adequadas constitucionalmente (respostas hermeneuticamente corretas), além de evitar a descontextualização do direito, cindindo o que é incindível: fato e direito, texto e norma, palavra e coisa, interpretação e aplicação, enfim, tantos dualismos que sustentam o modelo positivista-metafísico do direito. Na verdade, Alexy confunde texto e norma, deixando de lado a necessária problematização da aplicação, esquecendo-se, assim, do caso concreto. A teoria da argumentação proposta por Alexy busca uma espécie de ultra ou transracionalidade, alcançável a partir de fórmulas aptas a realizar o que ele denomina de ponderação de

princípios.547

6.4.7.4 A crítica de Inocêncio Mártires Coelho

Inocêncio Mártires Coelho, em grande medida inspirado na posição de

Humberto Bergmann Ávila, entende que inexistem efetivas colisões entre

princípios, apenas “momentâneos estados de tensão ou mal-estar

hermenêutico”548, superáveis com facilidade no momento da aplicação do Direito:

No campo da aplicação dos princípios, ao contrário, a maioria entende que não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas espécies normativas – por sua própria natureza, finalidade e formulação – parece não se prestarem a provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do direito.

Daí a precisa observação de Humberto Ávila de que a própria ideia de “conflito” deve ser repensada, pois, se o conteúdo normativo de um princípio “depende” de complementação (positiva) e limitação (negativa) decorrentes da relação dialética que mantém com outros princípios, parece inconcebível a ocorrência de efetivas “colisões” entre eles. Tratar-se-ia, prossegue, de um conflito aparente e não uniforme, já que a ideia

546

Idem, p. 144. 547

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise, p. 146. 548

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, p. 123.

248

de conflito pressupõe a identidade de hipóteses e campos materiais de aplicação entre as normas eventualmente contrapostas, o que no caso dos princípios está previamente afastado, pois eles são definidos justamente em função de não terem uma hipótese e uma consequência abstratamente determinadas. Destarte, conclui esse autor, o problema que surge na aplicação dos princípios reside muito mais em saber qual deles

será aplicado e qual a relação que mantêm entre si.549

Não nos parece acertado o entendimento do autor. Com efeito, uma vez

que se admita a carga valorativa dos princípios550, e que se reconheça a

existência de interesses (e, por consequência, em certos casos, valores

positivados a fim de protegê-los) contrapostos no bojo do mesmo documento

constitucional – o que acontece amiúde, por exemplo, no caso da Constituição

brasileira de 1988 – não faz sentido afirmar que a inexistência de descrições de

condutas nas normas tidas como princípios leva à inexistência de conflitos, ou de

conflitos meramente aparentes, que seriam solucionados, ou, em termos mais

precisos, elucidados, no momento da aplicação. O raciocínio do autor, embora

escorado em Humberto Ávila, parece desconsiderar um dos principais, se não o

principal, argumento de seu inspirador – o reconhecimento da inexistência de

identidade entre o texto normativo e a norma que dele se extrai a partir do

problema concreto. Ademais, a solução da colisão de princípios não passa por

“saber qual deles será aplicado”, mas sim, em que medida cada um deles o será.

A despeito das críticas formuladas pela doutrina, acima apontadas (dentre

inúmeras outras), a classificação de Dworkin e Alexy alcançou grande

consagração na doutrina, tanto pátria quanto estrangeira, e, no Brasil, é

reiteradamente empregada pela jurisprudência, notadamente na seara da

jurisdição constitucional, ainda que de forma assistemática e imprecisa.

Destacamos, desde logo, nossa adesão ao critério estrutural, delineado por

Dworkin e Alexy, de distinção entre regras e princípios constitucionais, uma vez

que o critério material, adotado pela doutrina tradicional brasileira, não apresenta,

a nosso ver, técnicas adequadas para a solução dos conflitos entre direitos

549

COELHO, Inocêncio Mártires. Ob. cit., p. 123. 550

Já apontamos, anteriormente, que tal admissão, embora majoritária, não é absoluta, como o demonstram os argumentos de Lênio Luiz Streck, anteriormente reproduzidos.

249

fundamentais de igual valor (sem que se caia no subjetivismo do julgador551) ou

entre princípios constitucionais.

6.5 Os elementos tradicionais de interpretação aplicados às normas

constitucionais

Os debates doutrinários até aqui expostos não deixam dúvida alguma de

que, a despeito das controvérsias e das discordâncias entre os autores

mencionados, uma circunstância é absolutamente unânime: normas

constitucionais e infraconstitucionais possuem estruturas distintas.

Diante da singular natureza e da peculiar estrutura das normas

constitucionais, é possível falar em aplicabilidade a tais normas dos elementos

clássicos de interpretação compilados por Savigny em seu Sistema de 1840?

Entendemos que sim, desde que respeitadas as particularidades (de conteúdo e

estrutura) das normas constitucionais em seu cotejo com as demais normas

jurídicas. Ate porque, como já mencionado anteriormente, as técnicas da

interpretação jurídica constitucional antes complementam do que afastam as

técnicas da interpretação jurídica geral.

Reiteramos a ideia central deste trabalho: embora não tenhamos dúvida de

que os elementos coligidos por Savigny são aplicáveis também às normas

constitucionais, inclusive aos princípios constitucionais e às normas

programáticas, essa aplicabilidade, vale dizer, o emprego de tais elementos,

constitui o início do processo interpretativo dessas categorias normativas, o

primeiro passo para a delimitação do sentido atribuível ao(s) dispositivo(s)

normativo(s) e para a subsequente construção da norma de decisão para o

problema jurídico concreto. Nisso reside a distinção fundamental entre a

interpretação jurídica geral e a interpretação jurídica constitucional – os elementos

em questão são suficientes para a construção do sentido da norma na seara

infraconstitucional, mas não bastam para a atribuição de sentido à norma

551

Não desconhecemos, é certo, que o risco do subjetivismo existe também em relação ao critério estrutural de distinção, como de resto em qualquer espécie de interpretação, seja ela constitucional ou infraconstitucional, ou, indo até mais além, seja ela jurídica ou não. Ainda assim, o critério estrutural nos parece mais resistente às tentações do subjetivismo do que o critério material, razão pela qual o adotamos.

250

constitucional, notadamente no que tange aos princípios constitucionais, aos

direitos fundamentais e às normas programáticas552.

Como já visto, é clássica a doutrina de Savigny acerca dos elementos de

interpretação, que são: o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

Embora a interpretação jurídica constitucional se valha de técnicas

próprias, estas não prescindem do emprego de tais elementos, uma vez que, a

despeito de suas peculiaridades, trata-se, ainda, de interpretação jurídica. Assim,

os elementos colacionados por Savigny devem ser observados no processo de

interpretação jurídica constitucional, atentando o intérprete, porém, para as

peculiaridades próprias das normas constitucionais.

O elemento gramatical, como destacado anteriormente, constitui o primeiro

passo da atividade interpretativa. O mesmo ocorre, evidentemente, na

interpretação constitucional.

Como visto no tópico anterior, a interpretação jurídica constitucional se

pauta por uma lógica particularizada, porque as normas constitucionais (em

especial as materialmente constitucionais) ostentam uma estrutura própria,

marcada muitas vezes pela indeterminação dos termos. Nesse sentido, adverte

Barroso:

Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitucional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa abertura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os fins, também estarão os meios legitimados para atingi-los; (b) se a letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a menos; (c) o devido processo legal abriga a ideia de procedimento adequado e de razoabilidade substantiva. Desnecessário enfatizar que tal característica amplia a discricionariedade do intérprete, que há de adicionar um componente subjetivo resultante de sua própria valoração para integrar o sentido dos comandos constitucionais. Como já se reconheceu anteriormente, na interpretação jurídica, em geral, e na interpretação constitucional, em particular, jamais será possível obter racionalidade e objetividade plenas.

Todavia, a mesma linguagem que confere abertura ao intérprete há de figurar como limite máximo de sua atividade criadora. As palavras têm sentidos mínimos que devem ser

552

Evidentemente, e como já mencionado, quando a norma constitucional tem a natureza de regra, a interpretação se dá pelo fenômeno da subsunção em termos idênticos ao de qualquer norma infraconstitucional. Outra não é, aliás, a posição de Alexy, ao traçar a distinção entre princípios e regras constitucionais – posição à qual aderimos.

251

respeitados, sob risco de se perverter o seu papel de transmissoras de ideias e significados. É a interpretação gramatical ou literal que delimite o espaço dentro do qual o intérprete vai operar, embora isso possa significar zonas de

hermenêutica muito extensas.553

No caso da Constituição de 1988, aumenta a dificuldade de interpretação o

fato de o texto constitucional ser o resultado final de um radical processo de

transformação social, vale dizer, da superação de um período de ditadura, no qual

a doutrina da segurança nacional ditava os rumos seguidos pelos governantes, e

de sua substituição por um período de redemocratização, marcado por um Estado

voltado precipuamente à doutrina dos direitos fundamentais e da dignidade da

pessoa humana.

Nessa ambiência, o processo constituinte, que teve início com a Emenda

Constitucional nº 26/1985, por meio da qual foi convocada a Assembleia Nacional

Constituinte, e se concluiu com a promulgação da Constituição Federal, em 05 de

outubro de 1988, caracterizou-se pelo amplo debate levado a efeito por todos os

setores da sociedade, que, após mais de duas décadas de silêncio, queriam não

apenas participar do processo de formação da nova Constituição, como também

garantir a positivação (em nível constitucional) de seus valores e interesses.

Evidentemente, a pluralidade de interesses defendidos pelos respectivos

representantes das mais diversas camadas sociais não coincidiam e muitas vezes

entravam abertamente em conflito. Como resultado, a Constituição abarca em seu

corpo interesses não raro conflitantes (como, por exemplo, a garantia da livre

iniciativa e a proteção do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores), o que

torna sobremaneira dificultoso o processo de interpretação de seus dispositivos.

Desse modo, mesmo o elemento gramatical, ainda que não se trate de termos

vagos ou indeterminados, apresenta em muitos momentos dificuldades de

interpretação.

Esta é a razão por que Barroso, ao tratar da Constituição brasileira, afirma

que a democratização do processo constituinte leva a um processo dialético cujo

resultado não apresenta linguagem uniforme:

É corrente, na prática jurisprudencial americana, que as palavras em uma Constituição são empregadas em seu sentido comum. No

553

BARROSO, Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 129-130.

252

fundo, é o desejável, pois tratando-se de um documento simbolicamente emanado do povo e destinado a traçar as regras fundamentais de convivência, seus termos devem ser entendidos em sentido habitual. Essa afirmativa não é universalmente válida, todavia, sobretudo à vista do constitucionalismo mais analítico que sucedeu à Carta americana de 1787. O problema da linguagem constitucional se agravou com a democratização do processo constituinte. De fato, as Constituições mais recentes, e, especialmente, a Constituição brasileira de 1988, são geradas em meio a amplo processo dialético de discussão, participação e composição política. Como consequência, dificilmente apresentam

uma linguagem jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa.554

É importante observar que, embora o direito se valha de uma linguagem

técnica própria, haurida, porém, da linguagem cotidiana, a doutrina adverte que,

no que tange à dicção constitucional, sempre que possível deve ser atribuído à

linguagem empregada na Constituição seu sentido mais corriqueiro. Celso

Bastos, nesse tocante, observa que “a Constituição não tolera o vocabulário

técnico”555. André Ramos Tavares assevera que “a interpretação da Constituição

deve operar, sempre, o mais próximo possível de seu povo. Portanto, a linguagem

deve ser-lhe próxima, vale dizer, há de se privilegiar o emprego da linguagem

comum”556.

Essa orientação, salienta André Ramos Tavares, guarda afinidade com a

tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, defendida por Peter

Häberle em clássica obra do mesmo nome, na qual o autor alemão defende que a

interpretação constitucional não se circunscreve aos seus intérpretes oficiais (o

que Kelsen chama de aplicadores do direito), mas, pelo contrário, consubstancia

o fruto da interpretação de toda a sociedade sobres as normas constitucionais,

uma vez que é o corpo social, como um todo, quem efetivamente “vive” a

Constituição e, por conseguinte, constrói seu sentido. Segundo Häberle, “todo

aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse

contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma”557.

Por isso, “a interpretação constitucional não é um evento ‘exclusivamente estatal’,

554

BARROSO, Luís Roberto. , Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 128. 555

BASTOS, Celso. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997, p. 112. 556

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 105. 557

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 15.

253

seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático. A esse processo têm

acesso potencialmente todas as forças da comunidade política”558.

Já afirmamos anteriormente que o elemento histórico, embora não goze de

prestígio na doutrina e na jurisprudência de países que, como o Brasil, adotam o

sistema da civil law, tem maior importância quando se trata da interpretação

constitucional, mormente por conta da natureza política das normas

constitucionais, que atribui a estas um outro nível de relevância e de peso social.

Como afirma Barroso:

Sem embargo dessa visão crítica, o elemento histórico desempenha na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na interpretação das leis. Isso se torna especialmente verdadeiro em relação a Constituições ainda recentes. Fórmulas e institutos aparentemente incompreensíveis encontram explicitação na identificação de sua causa histórica. Aliás, o Preâmbulo das Constituições é frequentemente um esforço de prolongar no tempo o espírito do momento constituinte. Em veemente defesa da interpretação histórica em matéria constitucional, Pietro Merola Chierchia sustenta que o que se interpreta na norma na é apenas o seu conteúdo aparente, mas todo o substrato de valores históricos, políticos e ideológicos que estão na origem da Constituição. Não se trata da vontade individual ou somada dos constituintes, mas, sim, da vontade social de que aqueles foram portadores, entendida com síntese de valores, sentimentos e aspirações comuns, traduzidos, no plano

normativo, nos princípios constitucionais.559

O emprego do elemento histórico não pode levar ao apego desmedido, sob

pena de imobilizar o sentido da norma àquele existente no momento de sua

edição (a voluntas legislatoris). É o risco decorrente do originalismo que ganhou

espaço na jurisprudência norte-americana das últimas décadas, e que se mostra

de todo inadequado para a solução de questões jurídicas, independentemente de

se tratar de um sistema baseado numa constituição sintética (como no caso norte-

americano) ou numa constituição analítica (como no Brasil).

Esse risco é ainda maior no caso das normas constitucionais, cuja natureza

aspira a uma permanência bem mais ampla nos ordenamentos jurídicos do que a

das normas infraconstitucionais. O conteúdo político das normas constitucionais,

somado à sua hierarquia superior e à sua textura aberta, alertam para o risco da

558

Idem, p. 23. 559

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 134.

254

prevalência desmedida da historicidade da norma em detrimento dos demais

elementos de interpretação.

A objeção contramajoritária suscitada pela doutrina norte-americana se

mostra ainda mais relevante na ambiência constitucional. Ainda que certas

normas devam permanecer protegidas das circunstâncias transitórias e das

paixões dos momentos de convulsão social, essa proteção há de ser selecionada

com todo o critério e de modo absolutamente excepcional (daí a limitação da

petrificação das normas apenas aos quatro incisos constantes do § 4º do art. 60

da Constituição brasileira), de modo a não engessar as gerações futuras na tábua

de valores estabelecidas pelo Poder Constituinte de um determinado momento

histórico. Do contrário, corre-se o risco de se repetir a peculiar situação já

verificada na Suprema Corte norte-americana e relatada por Luís Roberto

Barroso:

Claro que há limites a serem impostos à interpretação histórica. Nem mesmo o constituinte originário pode ter a pretensão de aprisionar o futuro. A patologia da interpretação histórica é o originalismo, ao qual já se fez referência anteriormente. John Hart Ely, professor americano autor de um livro clássico, sustenta, com propriedade, que tal movimento – de certa forma abrangido no conceito mais amplo de interpretativismo – não é compatível com os princípios democráticos. A defesa da ideia de subordinação de todas as gerações futuras à vontade que aprovou a Constituição contrasta com a ideia de Jefferson, generalizadamente aceita, de que a Constituição deve ser reafirmada a cada geração, sendo, consequentemente, um patrimônio dos vivos.

Um exemplo caricato de interpretação histórica não evolutiva, pelo apego ao originalismo, foi dado pela Suprema Corte americana no julgamento de Olmstead vs. United States, onde o Chief Justice Taft considerou que a interceptação telefônica não violava a 4ª Emenda (que veda provas ilegais e buscas e apreensões sem ordem judicial) porque, quando seu

texto foi redigido, em 1791, não existia telefone.560

O elemento sistemático da interpretação ganha relevo no âmbito da

interpretação constitucional, na medida em que a Constituição ocupa o topo da

pirâmide hierárquica das normas jurídicas. Essa circunstância torna necessário

que toda norma infraconstitucional seja interpretada como parte de um sistema

560

BARROSO, Luis Roberto, Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 135.

255

que tem a constituição como primeiro fundamento formal561, ou seja, a

interpretação da norma infraconstitucional parte da verificação ou do pressuposto

de sua conformidade com a constituição.

A própria existência de uma constituição escrita e hierarquicamente

superior às demais normas do ordenamento reforça a ideia de sistema e, por

conseguinte, da própria interpretação sistêmica das normas infraconstitucionais.

Além disso, a posição da constituição dentro do ordenamento jurídico –

como parte de um sistema, portanto – também influencia sobremaneira a própria

interpretação das normas constitucionais. E a estrutura de suas normas,

substancialmente diversa da conformação das normas infraconstitucionais, torna

ainda mais relevante a observância do texto constitucional como um conjunto de

dispositivos que devem ser interpretados harmonicamente e de modo

contextualizado.

Não se pode desconsiderar, ainda, que a constituição, além de fazer parte

de um sistema (normativo) em cujo ápice se encontra, consiste, ela mesma, num

sistema próprio, porquanto é formada por um conjunto específico de normas às

quais o legislador constituinte decidiu atribuir status próprio, elaborando, assim,

um corpo de dispositivos que, além de ser ele próprio um sistema, dialoga com

outro sistema – o do ordenamento jurídico – do qual faz parte e no qual se

encontra em posição de destaque562. Isso gera consequências para a própria

interpretação constitucional, uma vez que tal circunstância leva à consagração de

um princípio específico da interpretação constitucional, o da unidade da

Constituição.

Desse modo, a interpretação sistemática, sob a ótica constitucional, tem

dupla dimensão: (i) as normas constitucionais devem ser interpretadas como

parte de um todo que é a Constituição, considerada em si mesma um sistema; (ii)

as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas em conformidade com a

Constituição, que também integra o sistema mais amplo do ordenamento jurídico,

561

Trata-se do primeiro fundamento formal porque, a se adotar a posição exposta por Hans Kelsen em sua Teoria Pura, também a Constituição busca seu fundamento em outra norma, não escrita, a norma hipotética fundamental. 562

Além de, enquanto sistema, dialogar com o ordenamento jurídico ao qual confere fundamento (este também um sistema), a constituição, como já visto, dialoga também com os sistemas supranacionais, compostos tanto por ordenamentos próprios quanto por instâncias decisórias próprias.

256

no qual ostenta o mais elevado grau hierárquico de todas as normas que o

compõem.

Sobre o tema, esclarece Barroso que:

No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, encontra-se a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constituição, em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. Essa ideia de unidade interna da Lei Fundamental cunha um princípio específico, derivado da interpretação sistemática, que é o princípio da unidade da Constituição (...). A Constituição interpreta-se sobre um todo harmônico, onde nenhum dispositivo deve ser considerado isoladamente. Mesmo as regras que regem situações específicas, particulares, devem ser interpretadas de forma que não se choquem com o plano geral da Carta. Além dessa unidade interna, a Constituição é responsável pela unidade externa do sistema.

Uma Constituição, ao menos nos países que experimentaram a instabilidade institucional e viveram processos de reconstitucionalização – ou seja, quase todos os países do mundo –, convive, normalmente, com uma ordem jurídica infraconstitucional que precede a sua promulgação. Essa convivência, inclusive, é um capítulo específico do direito constitucional intertemporal e gera um importante princípio, que é o da continuidade da ordem jurídica. Ora bem: a ordem jurídica infraconstitucional é elaborada ao longo do tempo, no curso de muitas décadas, e espelha períodos históricos diversos, regimes políticos ideologicamente contrastantes e exigências particulares e contingentes de cada época. Pode parecer implausível a tarefa de encontrar coerência e sistematicidade em normas jurídicas sujeitas a influências tão aleatórias e variadas. Essa tarefa, de fato, não se viabilizaria se todas as normas, mesmo as anteriores à Constituição em vigor, não recebessem dela um novo fundamento de validade, subordinando-se aos valores e princípios nela consagrados. Só essa sofisticada operação de racionalidade pode conferir a um conjunto de remendos alinhavados ao longo do

tempo um caráter unitário e sistemático.563

Portanto, o elemento sistemático da interpretação constitucional, ou, como

preferem alguns, a interpretação sistemática da constituição, confere tanto uma

coerência interna à constituição, na análise conjunta de seus dispositivos, quanto

uma coerência externa à ordem jurídica como um todo, uma vez que toda a

legislação infraconstitucional há de ser entendida como recepcionada pela

constituição e, por conseguinte, compatível com seus ditames (e esse

entendimento, por óbvio, só pode decorrer da interpretação de tais normas à luz

do texto constitucional – ou seja, uma interpretação sistemática).

563

BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 136-137.

257

No que concerne ao elemento teleológico, a própria estrutura das normas

constitucionais atribui a esse elemento características distintas das normas

infraconstitucionais, o quecontribui sobremaneira para o resultado final do

processo interpretativo.

Ao contrário da legislação infraconstitucional, voltada precipuamente à

elaboração de normas de conduta, as constituições, como já afirmado, são

documentos tanto jurídicos quanto políticos. Por isso, parte de suas normas

apresentam uma estrutura diferente das demais564. No caso de constituições que

adotaram o modelo do Estado Social, como a Constituição brasileira de 1988, é

comum que haja em seu bojo dispositivos que explicitam os objetivos a ser

perseguidos pelo Estado que fundam (normas, portanto, de natureza

programática ou dirigente).

A Constituição de 1988 foi explícita ao elencar, em seu art. 3º, os objetivos

da República brasileira:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Trata-se, na classificação de José Afonso da Silva, de normas

programáticas, cujo conteúdo não descreve propriamente uma conduta e suas

consequências jurídicas, mas sim estabelece um programa a ser seguido pelo

Estado. Vale dizer, os objetivos elencados no art. 3º da Constituição de 1988

espelham o país que a Constituição espera que seja construído.

Assim, ao contrário das normas infraconstitucionais, cujas finalidades nem

sempre estão expostas, sendo necessária uma exegese para, antes de mais

nada, descobrir-lhes o intuito, é possível, a partir do pressuposto de que toda

atividade estatal há de ser desenvolvida com vistas a atingir os objetivos previstos

564

A se adotar a divisão estrutural das normas constitucionais, nos termos propostos por Alexy, entre princípios e regras constitucionais, impende reconhecer que a estrutura das regras, mesmo quando constitucionais, é similar à das normas de conduta infraconstitucionais, havendo, por conseguinte, similaridade (não identidade, pois mesmo as regras constitucionais apresentam hierarquia superior, dimensão política e carga axiológica singulares) na atividade interpretativa nessas duas esferas.

258

no art. 3º da Constituição, concluir que a interpretação das normas constitucionais

há de resultar num sentido que coincida, antes de mais nada, com tais objetivos.

Observe-se, ainda, que o art. 3º não é o único dispositivo da Constituição a

elencar objetivos e finalidades. Também o fazem os dispositivos que elencam

princípios a ser observados em setores específicos da atividade estatal, como o

art. 4º, que elenca os princípios que devem ser observados pela República

brasileira em suas relações internacionais, e o art. 170, cujo caput esclarece que

“a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e da livre iniciativa, tem

por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”,

observados os princípios elencados nos incisos I a IX do referido artigo – para

mencionar dois exemplos, dentre vários, de normas constitucionais em que as

finalidades restam expressas, de forma mais ou menos evidente.

6.6 Interpretação constitucional evolutiva

Como visto anteriormente, a interpretação evolutiva constitui método

fundamental para a preservação da utilidade das normas jurídicas, uma vez que

permite a atualização dos sentidos dos termos jurídicos sem que seja necessária

uma alteração formal do dispositivo legal.

As normas constitucionais têm uma pretensão de permanência superior à

da legislação comum, e, ao menos no que tange às normas materialmente

constitucionais, seu conteúdo tem relevância maior e mais abrangente do que as

normas infraconstitucionais. Assim, a interpretação constitucional evolutiva

constitui relevante ferramenta de atualização do texto constitucional, sem

necessidade de modificação formal dos dispositivos constitucionais – o que, não é

demais lembrar, exige procedimento legislativo mais rigoroso do que a mera

alteração da legislação infraconstitucional, uma vez que a Constituição só pode

ser alterada via emendas constitucionais (arts. 59, inciso I e 60 da Constituição

Federal de 1988).

Evidentemente, a estrutura aberta das normas constitucionais e a presença

de termos polissêmicos no texto da constituição facilitam o desenvolvimento de

uma interpretação evolutiva. Nesse sentido, afirma Luís Roberto Barroso que

259

Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituída – como um movimento revolucionário ou a convocação do poder constituinte originário – duas são as possibilidades legítimas de mutação ou transição constitucional: (a) através de uma reforma do texto, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou (b) através do recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que estavam presentes na mente dos constituintes.

Essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significados variados ao longo do tempo. Por vezes, uma emenda constitucional, introduzindo modificação em algum subsistema constitucional, pode alterar a compreensão de

conceitos e institutos já existentes.565

Barroso destaca ainda a timidez da jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal no que tange ao emprego da interpretação evolutiva, sem deixar de

salientar, no entanto, que por vezes os tribunais a empregam de forma bastante

criativa:

Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante. Aliás, em lugar de evolução, frequentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos autoritários.

Não obstante isto, existem alguns precedentes interessantes de aplicação evolutiva da Lei Fundamental, pela intervenção criativa dos tribunais, isto é, através de construções constitucionais. Dentre elas se destaca sempre a chamada doutrina brasileira do “habeas corpus”, consubstanciada na extensão do instituto a outras situações de ilegalidade e abuso de poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção. Foi igualmente por construção pretoriana que se criaram regras de proteção à mulher, notadamente a que vivia maritalmente com um homem, sem ser casada. A Constituição de 1988 bem espelhou esta longa evolução, consignando em seu texto, no art. 226, § 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei

facilitar sua conversão em casamento”.566

565

BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 146. 566

BARROSO, Luís Roberto, Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 147-148.

260

A jurisprudência constitucional, no entanto, tem avançado a olhos vistos em

relação à interpretação evolutiva nos últimos anos. Há normas cujo conteúdo

perderia o sentido, com o passar do tempo, caso não fosse empregada essa

forma de interpretação. É o caso, por exemplo, da alínea “d” do inciso VI do art.

150 da Constituição Federal, que institui a imunidade tributária sobre “livros,

jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.

O objetivo da norma em questão – a ratio legis – é claro: a garantia de

efetividade ao direito fundamental à informação. A proteção não se volta ao

suporte físico (o livro, o jornal, o periódico), e sim ao seu conteúdo, cuja

divulgação o legislador constituinte intenta facilitar. Como afirma Paulo Caliendo:

A imunidade de livros, jornais e periódicos visa à proteção de valores fundamentais e a promoção de direitos fundamentais do contribuinte. Não se trata de mera proteção de um objeto físico denominado de “livro”, mas de um bem jurídico maior: “direito fundamental à educação, à cultura, ao conhecimento ou à informação”. O livro em si é mero instrumento que veicula, carrega e porta um conteúdo a ser transmitido ao receptor.

Protege-se um bem corpóreo para atingir-se a proteção de um direito subjetivo público ao conhecimento. A compreensão do disposto no dispositivo somente pode ocorrer analisando o seu conteúdo finalístico e não apenas literal ou gramatical. A interpretação dada ao argumento deve ser extensiva e não

simplesmente restritiva.567

Ocorre que o mercado editorial vem sofrendo radical transformação nos

últimos anos, com a substituição do livro físico não apenas por CD-ROM’s e

DVD’s, mas também por arquivos digitais (o livro digital). Como o valor que o texto

constitucional visa proteger não é o suporte material em si, mas o seu conteúdo, é

evidente que a imunidade há de alcançar os novos meios pelos quais as obras

são divulgadas, sob pena de gradual afastamento da norma de sua própria ratio,

até que, em determinado ponto do futuro, ela alcance a plena inutilidade.

Embora tanto a doutrina quanto a jurisprudência se mostrem divididas

sobre o tema, parece-nos mais razoável o entendimento de que as novas mídias

de divulgação do conhecimento devem ser abarcadas pela imunidade

constitucional. Como afirma Paulo Caliendo, “não se trata de proteger todos os

produtos de informática (softwares ou hardwares), mas tão somente aqueles

567

CALIENDO, Paulo. Comentário ao art. 150, VI, “d”. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. STRECK, Lênio L. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1660.

261

conteúdos que são transmitidos pelo suporte físico diverso do papel”568. Nesse

sentido:

IMUNIDADE. LIVROS. QUICKITIONARY. CF/88. ART. 150, INC. VI, ALÍNEA D. Hoje, o livro ainda é conhecido por ser impresso e ter como suporte material o papel. Rapidamente, porém, o suporte material vem sendo substituído por componentes eletrônicos, cada vez mais sofisticados, de modo que, em breve, o papel será tão primitivo, quanto são hoje a pele de animal, a madeira e a pedra. A imunidade, assim, não se limita ao livro como objeto, mas transcende a sua materialidade, tingindo o próprio valor imanente ao seu conceito. A Constituição não tornou imune a impostos o livro-objeto, mas o livro-valor. E o valor do livro está justamente em ser um instrumento do saber, do ensino, da cultura, da pesquisa, da divulgação de ideias e difusão de ideais, e meio de manifestação do pensamento e da própria personalidade do ser humano. É por tudo isso que representa, que o livro está imune a impostos, e não porque apresenta o formato de algumas centenas de folhas impressas e encadernadas. Diante disso, qualquer suporte físico, não importa a aparência que tenha, desde que revel os valores que são imanentes ao livro, é livro, e como livro, estará imune a impostos, por força do art. 150, VI, d, da Constituição. O denominado quickitionary, embora não se apresente no formato tradicional do livro, tem conteúdo de livro e desempenha exclusivamente a função de um livro. Não há razão alguma para que seja excluído da imunidade que a Constituição reserva para o livro, pois tudo que desempenha a função de livro afastados os preconceitos, só pode ser livro” (AMS 2000.70.00.002338-5/PR, 2ª Turma, rel. Juiz Vilson Darós, v.u., DJU de 3.10.2001, p. 727).

Luís Roberto Barroso destaca interessante exemplo de interpretação

evolutiva produzida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul569:

“À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição

568

Idem, p. 1662. Embora o autor descreva o fenômeno sob a epígrafe de “interpretação extensiva”, parece-nos que a hipótese se amolda melhor ao conceito de “interpretação evolutiva”. Com efeito, não há como sustentar que, quando da promulgação da Constituição de 1988, o legislador constituinte “disse menos do que pretendia”, deixando, por isso, de mencionar no texto do dispositivo CD-ROM’s, DVD’s e livros digitais. Tais mídias não existiam naquela ocasião. Assim, o legislador constituinte disse exatamente o que pretendia dizer. A inadequação do dispositivo constitucional em face da realidade subsequente – a atual – é consequência não da manifestação imperfeita do legislador constituinte por ocasião do surgimento da norma, e sim do avanço da tecnologia e do “estado da arte”. A interpretação que recalibra o sistema, portanto, readequando-o à realidade sobre a qual deve incidir, e preservando a ratio legis, é indiscutivelmente evolutiva e não extensiva. 569

CALIENDO, Paulo. Comentário ao art. 150, VI, “d”. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. STRECK, Lênio L. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013,, p. 148-149.

262

institucionalizada com rótulos como ‘acompanhantes’, ‘massagistas’, motéis etc., que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, haja vista que tal conduta, já há muito tolerada, com grande sofisticação, é divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não o serão os de origem

mais modesta e mais deficiente economicamente.”570

Não se pode desconsiderar, no entanto, que a interpretação

evolutiva não constitui um “cheque em branco” para o intérprete, que precisa se

ater não apenas aos limites semânticos do texto normativo, mas também a toda a

principiologia da constituição, é dizer, ao seu espírito. Assim, a interpretação

evolutiva há de encontrar seu lastro no próprio sistema constitucional, cujos

valores não pode desconsiderar571.

Há grande proximidade entre a interpretação evolutiva e a chamada

mutação constitucional, mas os termos não são sinônimos. Com efeito, a

interpretação evolutiva constitui uma das espécies de mutação constitucional,

mas não a única, como esclarece Kildare Gonçalves Carvalho:

Consoante o chinês Hsü Dau-Lin, um dos pioneiros a escrever sobre o tema, em 1932, na Alemanha, a mutação da Constituição significa uma separação entre o preceito constitucional e a realidade, que é mais ampla que a normatividade constitucional. São por ele identificadas quatro classes de mutação constitucional: 1) mutação constitucional mediante prática que não vulnera formalmente a Constituição escrita; 2) mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3) mutação constitucional em razão da prática que contradiz a Constituição; 4)

mutação constitucional mediante interpretação.572

Portanto, malgrado a similaridade entre os dois institutos, estes não se

confundem nem são sinônimos, uma vez que a interpretação evolutiva constitui

uma espécie do gênero mutação constitucional. Evidentemente, tendo em vista o

570

ADV, 20:313, Ap. Cr. 70.000.586.263, TJRS, 16 fev. 2000, rel. Des. Aramis Nassif. 571

“Naturalmente, a interpretação evolutiva, sem reforma da Constituição, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo próprio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas, devendo estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 149). 572

CARVALHO, Kildare Gonçalves. . Direito Constitucional, Volume 1 – Teoria do Estado e da Constituição, p. 358.

263

escopo do presente trabalho, é justamente esse aspecto da mutação

constitucional – a interpretação evolutiva – que nos interessa, o que não significa,

contudo, reconhecer identidade onde existe, na verdade, relação de gênero-

espécie.

Luís Roberto Barroso, nesse tocante, assevera que “a mutação

constitucional se realiza por via da interpretação feita por órgãos estatais ou por

meio dos costumes e práticas políticas socialmente aceitas”573, destacando a

existência de três modalidades de mutação constitucional: (i) mudança

constitucional pela interpretação; (ii) mutação constitucional pela atuação do

legislador; e (iii) mutação constitucional pela via do costume574.

Portanto, se a interpretação evolutiva é fenômeno comum às normas

infraconstitucionais e constitucionais, as demais modalidades de alteração do

sentido normativo sem mudança de texto são ínsitas às normas constitucionais, o

que reforça a especificidade destas em relação àquelas.

6.7 Analogia constitucional

A analogia, como visto anteriormente, consiste no emprego de uma norma

jurídica (analogia legis) ou de um conjunto de normas do sistema (analogia juris)

para a solução de um problema jurídico para o qual não há legislação específica.

Trata-se, pois, de uma forma de integração e não de interpretação. Trata-se, pois,

de um instrumento voltado ao suprimento de lacunas na lei (o que não se

confunde com a existência de lacunas no direito).

Tendo em vista as características singulares da constituição, sua natureza

jurídico-política, bem como o fato de que suas normas não têm por finalidade

regular todas as condutas sociais, e sim servir de fundamento para as normas

que, em nível infraconstitucional, realizam tal tarefa, é no mínimo controvertida a

existência das lacunas constitucionais. A lacuna, no contexto constitucional,

poderia significar simplesmente que o legislador constituinte optou por relegar à

legislação infraconstitucional a regulamentação da matéria.

573

BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit.,p. 127-128. 574

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 128-136.

264

Se a existência da lacuna constitucional é controversa, também o é, por

corolário, a viabilidade da analogia constitucional.

Luís Roberto Barroso reconhece a existência da controvérsia, mas se

posiciona no sentido da possibilidade de existência tanto de lacunas

constitucionais quanto da analogia constitucional:

Há alguma controvérsia acerca da existência de lacunas constitucionais. De fato, há plausibilidade na suposição de que, onde o constituinte foi omisso ou silente, é porque não quis cuidar da matéria, relegando-a à legislação infraconstitucional. Sem dúvida alguma, a lacuna pode expressar uma opção política. Mas nem sempre é assim. Captando a evidência, Karl Loewenstein distingue, com propriedade, entre a lacuna constitucional descoberta e oculta.

Admitida a possibilidade da existência de lacuna constitucional, torna-se necessário recorrer aos dois principais meios de integração da ordem jurídica: a analogia e o costume. A analogia consiste na aplicação de uma regra jurídica concebida para uma dada situação de fato a uma outra situação semelhante, mas que não fora prevista pelo legislador. Diz-se tratar-se de analogia legis quando é possível recorrer a uma regra específica apta a incidir sobre a hipótese, e de analogia iuris quando a solução precisa ser buscada no sistema como um todo, por não haver nenhuma regra diretamente pertinente. Naturalmente, não será possível, em matéria constitucional, buscar a integração analógica na legislação infraconstitucional. Ou o constituinte atribuiu o tratamento da matéria à lei ordinária – e não se estará diante de uma lacuna –, ou a solução do vazio normativo terá de ser buscada nos princípios da própria Constituição. A rigor, o caráter vago e abrangente da norma constitucional torna mais corriqueiro o uso de construções constitucionais do emprego da

analogia.575

Barroso adverte ainda que não se confundem as lacunas constitucionais –

“que são situações constitucionalmente relevantes não previstas – e as omissões

legislativas – que são situações previstas no texto constitucional, mas

dependentes da intermediação do legislador ordinário para produção da plenitude

de seus efeitos”576, destacando ainda a necessidade de se distinguir a lacuna do

silêncio eloquente577.

O silêncio eloquente da norma, quando efetivamente constatado, delimita o

alcance da norma, como bem observou o Ministro Moreira Alves:

575

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo,., p. 141-142. 576

Idem, p. 143. 577

Idem, p. 143.

265

Sucede, porém, que só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam de “silêncio eloquente” (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal,

não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia.578

Concordamos com a posição de Barroso, no sentido da admissibilidade da

lacuna constitucional mesmo em situações nas quais o silêncio do legislador

constituinte não consubstancia uma escolha política nem um silêncio eloquente –

posição, de resto, compartilhada pelo mestre português Canotilho, que considera

interpretação e integração apenas “etapas graduais de ‘obtenção’ do direito

constitucional”579.

A Constituição, com efeito, é um documento pensado para perdurar no

tempo. Se a legislação ordinária, cuja mutabilidade é maior do que o texto

constitucional, apresenta dificuldades para acompanhar o avanço da realidade

concreta, a dificuldade sofrida pelo texto constitucional nessa situação se mostra

ainda maior, porque a) a Constituição traz em sua própria essência a ideia de

uma durabilidade ainda maior; e b) como decorrência disso, apresenta maior

rigidez no que tange à sua alterabilidade. Assim, a velocidade com que a

sociedade evolui não raro cria situações que não poderiam, em hipótese alguma,

ser concebidas por ocasião de sua promulgação. Basta pensar nas incontáveis

questões oriundas do surgimento da Internet, ferramenta que revolucionou a

578

RTJ, 139: 965, 1992, P. 967, re 130.555-SP, rel. Min. Moreira Alves. Apud BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 143. 579

“A integração existe quando determinadas situações: (1) que se devem considerar constitucionalmente reguladas, (2) não estão previstas (3) e não podem ser cobertas pela interpretação, mesmo extensiva, de preceitos constitucionais (considerados na sua letra e no seu ratio).

“Interpretação e integração consideram-se hoje como dois momentos da captação ou obtenção do direito, isto é, não se trata de dois procedimentos qualitativamente diferentes, mas apenas de etapas graduais de ‘obtenção’ do direito constitucional. A relativização das diferenças entre processo interpretativo e processo integrativo é particularmente frisante quando se trata de estabelecer limites entre uma interpretação extensiva e uma integração analógica. Realça-se também que nos princípios da analogia existe sempre uma certa ambivalência funcional, pois, por um lado, são princípios de interpretação da lei e, por outro, são meios de preenchimento de sentido da mesma lei. Com efeito, em face do caráter incompleto, fragmentário e aberto do direito constitucional, o intérprete é colocado perante dupla tarefa: (1) em primeiro lugar, fixar o âmbito e o conteúdo de regulação da norma (ou normas) a aplicar (determinação do âmbito normativo); (2) em segundo lugar, se a situação de facto, carecedora de ‘decisão’ (legislativa, governamental ou jurisprudencial), não se encontrar regulada no complexo normativo-constitucional, ele deve complementar a lei constitucional preenchendo ou colmatando as suas lacunas.

Uma lacuna normativo-constitucional só existe quando se verifica uma incompletude contrária ao ‘plano’ de ordenação constitucional. Dito por outras palavras: a lacuna constitucional autônoma surge quando se constata a ausência, no complexo normativo-constitucional, de uma disciplina jurídica, mas esta pode deduzir-se a partir do plano regulativo da constituição e da teleologia da regulamentação constitucional” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1234-1235).

266

comunicação mundial e que era inimaginável por ocasião da promulgação da

Constituição Federal de 1988 – ou, buscando um exemplo mais extremo, da

Constituição norte-americana de 1787.

É claro que a circunstância de a Constituição norte-americana ser sintética

facilita sua durabilidade. A Constituição brasileira, por razões históricas e culturais

já apontadas, não tem essa vantagem, e a ânsia do legislador constituinte de

1987 de constitucionalizar uma quantidade descomunal de temas, muitas vezes

de forma impropriamente minuciosa para um texto constitucional – fruto do

momento histórico-político pelo qual o Brasil passava, mas também da tradição

constitucional brasileira (e de sua tendência à prolixidade) – dificulta

sobremaneira a sobrevivência e a atualização do texto constitucional.

De resto, o próprio Supremo Tribunal Federal não raro faz uso da analogia,

como no julgamento conjunto da ADI nº 4.227 e da ADPF nº 132, ocorrido em

maio de 2011, por meio do qual o Pretório Excelso, valendo-se da técnica da

interpretação conforme a Constituição dada ao art. 1723 do Código Civil,

equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis “entre homem e mulher”

(como consta do dispositivo), para fins de reconhecimento das uniões afetivas

como entidades familiares.

Consta do acórdão do referido julgamento:

DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do

reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.580

Em seu voto, o Ministro Lewandowski, divergindo dos colegas cujos votos o

antecederam581, não admitiu a classificação da união homoafetiva como união

estável, tendo em vista a expressa dicção do § 3º do art. 226 da Constituição

Federal (repetida no art. 1.723 do Código Civil), que faz referência à “união

estável entre o homem e a mulher”. O dispositivo, segundo Lewandowski, permite

580

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=628633&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20ADPF%20/%20132> Acesso em 28.01.2015. 581

Os Ministros Ayres Britto (Relator), Luiz Fux e Carmem Lúcia.

267

identificar “pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo

casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina

monoparental”582:

É exatamente o que estabelece, como parâmetro, a nossa Carta Republicana, no citado art. 226, § 3º, averbando que se trata de uma a união “entre o homem e a mulher”, ou seja, uma relação duradoura desenvolvida entre pessoas de gênero distinto, à qual se assegura a conversão em casamento, nos termos da lei (grifei).

Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união

entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental. Esta, relembro, como decorre de expressa disposição constitucional, corresponde à que é formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Não se trata, evidentemente, de interpretar a Carta Magna

à luz do direito ordinário - o que configuraria prática proscrita segundo os mais elementares princípios de hermenêutica constitucional – mas, como afirmou o Min. Menezes Direito, ao debruçar-se sobre o tema, no RE acima mencionado, cuida-se de integrar os conceitos explicitados na Lei Maior com o Direito de

Família, por indicação do próprio legislador constituinte.583

Entendeu o Ministro ser inviável, naquelas circunstâncias, que se fizesse

uma interpretação extensiva do dispositivo, “diante dos limites formais e materiais

que a Lei Maior estabelece no tocante a tais procedimentos”584. Portanto –

constatou –, o caso das uniões homoafetivas consiste numa quarta modalidade

de entidade familiar, não prevista no § 3º do art. 226 da Constituição.

Diante disso, inevitável o reconhecimento da existência de uma lacuna no

texto constitucional. Assim, para não deixar as uniões homoafetivas ao

desamparo da proteção legal (e constitucional), Lewandowski propõe a aplicação

da integração analógica, uma vez que o rol de entidades familiares previsto no §

3º do art. 226 da Constituição não é numerus clausus:

Para conceituar-se, juridicamente, a relação duradoura e ostensiva entre pessoas do mesmo sexo, já que não há previsão normativa expressa a ampará-la, seja na Constituição, seja na legislação ordinária, cumpre que se lance mão da integração analógica.

582

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277RL.pdf> Acesso em 28.01.2015. P.4. 583

Idem. P. 4-5. 584

Idem, p. 6

268

Como se sabe, ante a ausência de regramento legal

específico, pode o intérprete empregar a técnica da integração, mediante o emprego da analogia, com o fim de colmatar as lacunas porventura existentes no ordenamento legal, aplicando, no que couber, a disciplina normativa mais próxima à espécie que lhe cabe examinar, mesmo porque o Direito, como é curial, não convive com a anomia.

(...) Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido

taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional.

O que se pretende, ao empregar-se o instrumento

metodológico da integração, não é, à evidência, substituir a vontade do constituinte por outra arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência de um vácuo normativo, procurar reger uma realidade social superveniente a essa vontade, ainda que de forma provisória, ou seja, até que o Parlamento lhe

dê o adequado tratamento legislativo.585

Lewandowski faz questão de salientar sua discordância em relação aos

votos que o precederam, reafirmando, peremptoriamente, que as uniões

homoafetivas não encontram previsão legal no art. 226 da Constituição, não se

tratando, pois, do caso de uma interpretação extensiva, e sim de uma integração

analógica realizada a fim de preservar os princípios constitucionais da igualdade e

da dignidade humana, integração esta necessária diante da existência de uma

lacuna:

Convém esclarecer que não se está, aqui, a reconhecer uma “união estável homoafetiva”, por interpretação extensiva do § 3º do art. 226, mas uma “união homoafetiva estável”, mediante um processo de integração analógica. Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitucional.

Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar

que, embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a existência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as relações afetivas públicas

e duradouras que se formam entre pessoas do mesmo sexo.586

585

Idem, p. 8, 12-13. 586

Idem, p. 13-14.

269

O exemplo invocado não deixa dúvidas de que é perfeitamente possível a

existência de lacunas constitucionais, se não por outra razão, porque o texto

constitucional se pretende duradouro; sendo a realidade não só mutável, mas

também, na quadra atual, mutável a uma velocidade vertiginosa, o surgimento de

lacunas é fenômeno não só possível como, no caso de constituições prolixas

como a brasileira, até mesmo previsível; assim, nem toda lacuna constitucional

pode ser considerada uma opção política ou caso de silêncio eloquente do

legislador constituinte.

Sendo assim, parece-nos inevitável concluir pela viabilidade da chamada

analogia constitucional.

6.8 O costume constitucional

O costume, como já visto, atua como fonte subsidiária do direito e como

mecanismo de suprimento de lacunas na lei. No caso brasileiro, há expressa

determinação legal nesse sentido (art. 4º do Decreto-lei nº 4.657/1942).

Em âmbito constitucional, o costume assume grande relevância nos países

que adotam o sistema da common law, como a Inglaterra e os Estados Unidos da

América. No caso do sistema inglês, que não possui uma Constituição escrita, o

costume é elemento fundamental do universo jurídico. Tanto é assim que as

Constituições não escritas, como a inglesa, são chamadas pela doutrina de

Constituições costumeiras587 ou consuetudinárias. Gilmar Mendes e Paulo

Gustavo Gonet Branco destacam que:

As constituições não escritas (...) não se encontram em um documento único e solene; são compostas por costumes, pela jurisprudência e também por instrumentos escritos, mas dispersos, inclusive no tempo. (...)

A Constituição não escrita tende a se amoldar à classe das constituições históricas (consuetudinárias), erigidas sobre a cumulação no tempo de costumes políticos, que regulam a vida do

Estado e os direitos básicos dos que nele se encontram.588

587

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 90. 588

MENDES, Gilmar F. e GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional, p. 61.

270

Também em âmbito constitucional, para que o costume se configure como

efetiva fonte de direito, é necessária a presença dos requisitos do uso reiterado e

da convicção da obrigatoriedade (a opinio necessitatis).

Observa Gustav Radbruch que o direito inglês “não foi interrompido

abruptamente pela recepção do Direito romano, como no Continente”589, razão

pela qual os universos jurídicos romanístico e anglo-saxão se desenvolveram em

direções bastante distintas:

Assim, a cultura jurídica da civilização ocidental se divide em dois âmbitos totalmente diferentes do Direito: os países que recepcionaram o Direito romano e as codificações criadas mais tarde segundo a imagem do Código Justiniano, e, por outro lado, os países do case Law anglo-saxão. No primeiro caso, o legislador é o autor do Direito; no segundo, o juiz. Lá, a criação jurídica ascende do princípio jurídico para o caso concreto; aqui, do caso concreto para o princípio jurídico. Lá se cria o Direito em razão das leis e do espírito das leis; aqui, em razão da vida jurídica e da natureza da coisa. Ambas as culturas jurídicas do mundo civilizado são tão diferentes entre si que, até mesmo a tradução adequada dos termos jurídicos de um para a linguagem do outro âmbito

jurídico, é quase impossível.590

O costume, portanto, tem especial relevância na realidade inglesa,

compondo, inclusive, o que se considera a parte não escrita da Constituição da

Inglaterra.

Contudo, mesmo no caso de países que adotam o sistema anglo-saxão,

mas que, ao contrário da Inglaterra, têm uma constituição escrita, como é o caso

dos Estados Unidos, o costume se mostra igualmente relevante, o que se

evidencia na força dos precedentes judiciais e no valor atribuído ao stare decisis.

A despeito de os Estados Unidos, ao contrário da Inglaterra, se fundarem

em uma Constituição escrita (a primeira Constituição escrita, por sinal), constata-

se que, em ambos os países, o direito busca o seu fundamento, antes de mais

nada, no caso concreto e não no texto legal. Assim, o case law (o direito

589

RADBRUCH, Gustav. O Espírito do Direito Inglês e a Jurisprudência Anglo-Americana. São Paulo: Lumen Juris, 2010, p. 31-32. Acrescenta o autor que “antes da recepção do Corpus Juris, a Inglaterra permaneceu a salvo, não sem mérito próprio pelo capricho da história, e, sim, em razão da luta consciente e da defesa eficaz. Simbolicamente há no ápice dessa luta a palavra com a qual foi negada, na Assembleia de Merton, em 1236, a introdução da legitimação de filhos havidos fora do casamento com base no Direito romano canônico: Omnes comites et barones una voce responderunt, quod nolunt leges Angliae mutare quae hucusque usitatae sunt et approbatae. As corporações laicas se negaram a modificar as leis do país até então aplicadas” (ob. cit., p. 32). 590

RADBRUCH, Gustav. O espírito do direito inglês e a jurisprudência anglo-americana, p. 33-34.

271

jurisprudencial) assume uma dimensão jamais encontrada nos países de tradição

romanística.

No caso brasileiro, o apego à norma positivada mitiga consideravelmente o

relevo atribuído ao costume constitucional, mormente porque na Constituição não

há, como na legislação infraconstitucional, normas que tratem expressamente do

costume (muito embora a principiologia da Constituição seja, indiscutivelmente,

uma força integradora do direito)591. Isso não implica, no entanto, sua irrelevância

no sistema constitucional inspirado na civil law. Ainda que nesse sistema o

costume constitucional não tenha o mesmo peso que tem nos países que adotam

a common law, sua utilidade, inclusive em âmbito constitucional, é incontestável.

Como afirma Luís Roberto Barroso:

Nos sistemas constitucionais escritos e rígidos, como o brasileiro, o costume não é fonte originária de qualquer norma constitucional. As Constituições, em geral, a ele não fazem menção, e há quem sustente, com certo radicalismo, que somente os órgãos de representação popular podem legitimamente produzir normas jurídicas obrigatórias. A verdade, todavia, é que o costume constitucional tem duplo e relevante papel, quer para a integração da ordem constitucional em caso de lacuna, quer como

fonte auxiliar da interpretação constitucional. 592

Discordamos parcialmente do autor no que tange à afirmação de que o

costume não é fonte de normas constitucionais nos sistemas constitucionais

escritos e rígidos. Conforme apontamos, o traço distintivo da maior ou menor

relevância do costume na seara constitucional está não no fato de a Constituição

ser escrita e rígida – a Constituição norte-americana de 1787 tem essas duas

características – e sim na adoção do sistema românico ou anglo-saxão. Nos

Estados Unidos da América, país que conta com uma constituição escrita e rígida,

cujo universo jurídico, no entanto, decorre da cultura inglesa, em razão de seu

passado colonial, o costume constitucional tem imensa relevância, notadamente

pela força dos precedentes jurisprudenciais (como visto anteriormente, Maria

591

Hoje já não há mais qualquer dúvida de que o Decreto-lei nº 4.657/1942 se aplica a todos os ramos do direito e não só ao Direito Civil – tanto que a Lei nº 12.376/2010 alterou a epígrafe original “Lei de Introdução ao Código Civil” para “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”. Entendemos, no entanto, que, ainda que se trate de norma de sobredireito, o referido Decreto-lei não pode nortear a interpretação constitucional, sob pena de se interpretar a Constituição a partir da lei e não o contrário. Dito de outro modo, é no mínimo controversa a aplicabilidade do art. 4º do Decreto-lei nº 4.657/1942 à atividade interpretativa que vise atribuir sentido a normas constitucionais. 592

BARROSO, Luís Roberto BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo,, p. 144.

272

Helena Diniz afirma que o costume “se forma pela prática dos interessados, pela

prática judiciária e pela doutrina”593, consistindo a prática dos tribunais na

produção jurisprudencial).

Reportamo-nos, anteriormente, às categorias de costume secundum

legem, praeter legem e contra legem. Do mesmo modo, a doutrina aponta a

existência de costumes secundum constituitionem, praeter constituitionem e

contra constituitionem.

O costume secundum constituitionem consiste nas práticas não

positivadas, marcadas pela reiteração e pela convicção da obrigatoriedade, que

estejam de acordo com a constituição. Geralmente não há normas constitucionais

que se reportem ao uso do costume. Ainda assim, a doutrina aceita sua existência

sem maiores controvérsias. O mesmo ocorre com o costume praeter

constituitionem, já que é justamente a falta da norma constitucional que enseja o

recurso ao costume. Mais controversa, no entanto, é a aceitação do costume

contra constituitionem. De fato, nessa hipótese ocorre sem dúvida uma prática

inconstitucional, que, embora tida por inaceitável pela doutrina, não raro se

verifica na realidade, como exemplifica Luís Roberto Barroso:

A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum constituitionem e praeter constituitionem, mas rejeita, por inadmissível, o costume constitucional contra constituitionem. É natural que seja assim. A realidade, contudo, oferece situações renitentes ou rotineiras em que a norma constitucional é inobservada, sem que se mobilizem os mecanismos de sanção. São exemplos desse fato a persistência de omissões legislativas, o desrespeito reiterado das normas orçamentárias, inclusive as que estabelecem limites de despesas com pessoal e tetos remuneratórios, e a discutível legitimidade do voto de lideranças. Exemplo de costume praeter constituitionem é o descumprimento, pelo Poder Executivo, de leis que repute inconstitucionais, comportamento que não tem base constitucional expressa, mas é

consagrado pelo uso.594

Outro exemplo a ser dado de costume contra constituitionem é a existência

meramente simbólica de constituições em regimes ditatoriais nos quais, como

afirmava Lassale, o texto constitucional não passa de uma “folha de papel”,

bastante apenas para fundamentar um simulacro de Estado de Direito não

593

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro interpretada. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 125. 594

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 145.

273

condizente com a realidade que se constata. Foi o que aconteceu no período

entre 1964 e 1985 no Brasil, quando a ditadura militar governou por meio de Atos

Institucionais, que desconsideravam e, frequentemente, violavam frontalmente os

ditames constitucionais595.

A despeito da inegável existência de práticas informais que contrariam o

texto constitucional, entendemos não ser possível atribuir, ao costume contra

constituitionem, a natureza de fonte normativa. Nesse sentido, Canotilho

esclarece que a hipótese é, pura e simplesmente, de costume inconstitucional,

incapaz (como o próprio costume contra legem) de alterar a realidade

constitucional positivada:

Tivemos já oportunidade de referir que um exemplo de costume constitucional contra constituitionem foi o dos chamados bill de indemnidade, mediante os quais o poder executivo legitimava os poderes legislativos durante os períodos de ditadura. Todavia, a não ser para quem reconheça a legitimidade de um costume contra constituitionem e lhe confira eficácia e valor correspondentes ao da própria constituição, o costume contra constituitionem não deixa de ser um costume inconstitucional. A constitucionalização desse costume só poderá efetuar-se através da revisão constitucional, e desde que não viole os limites

materiais do art. 288º.596

Embora o autor conclua que, “a admitir-se um direito constitucional não

escrito, no qual se integre o direito consuetudinário, este apenas poderá ser um

costume secundum constituitionem”597, entendemos plenamente possível e

admissível a existência do costume praeter constituitionem, do qual o exemplo

trazido por Barroso – do descumprimento, por parte do chefe do Executivo, de

norma tida por inconstitucional – é emblemático.

6.9 A mutação constitucional

595

O exemplo não passou despercebido a Luís Roberto Barroso: “Embora se deva distinguir o costume, que é um conceito jurídico, da mera prática, que é uma situação de fato, é pertinente observar que muitas vezes a Constituição formal desempenha um papel puramente simbólico, quando não escamoteador. Assim se passou com a Constituição brasileira de 1937 e, em significativa medida, com as de 1967-69. Há casos em que o Texto Constitucional é uma pura hipótese, sendo a realidade da Constituição muito mais representada pelas praxes e costumes que cercam a sua aplicação. A Constituição material, efetiva, de um Estado pode mais facilmente ser identificada nos costumes e praxe constitucionais do que no texto propriamente dito” (ob. cit., p. 145). 596

CANOTILHO, Joaquim José G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 862. 597

Idem, p. 862.

274

Uma das consequências da estrutura diferenciada, “aberta”, da norma

constitucional, de sua pretensão de perenidade e de sua posição hierárquica

superior no ordenamento (que implica um processo mais rigoroso de modificação

do texto constitucional) é a potencialidade de alteração de seu sentido sem

modificação formal do texto a partir do qual é construída, a fim de que a

constituição se mantenha atualizada e em sintonia com a realidade sobre a qual

incide. A essa alteração informal dá-se o nome de mutação constitucional.

Como já apontado no item 6.6, Kildare Gonçaves Carvalho faz referência à

doutrina do jurista chinês Hsü Dau-Lin, que aponta quatro possibilidades de

mutação constitucional: (i) mutação por prática que não vulnera formalmente a

Constituição escrita; (ii) mutação por impossibilidade do exercício de determinada

atribuição constitucional; (iii) mutação em razão de prática que contraria a

Constituição; e (iv) mutação por meio da interpretação598. É esta última que

interessa para os fins do presente trabalho.

Kildare Gonçalves Carvalho observa que “as mutações constitucionais

abrigam dois tipos: as que não violentam a Constituição e que, portanto, não se

revelam inconstitucionais, e as que contrariam o texto constitucional – mutações

inconstitucionais”599.

Exemplos das primeiras são a interpretação jurisdicional que renova o sentido do texto da Constituição, sem violá-lo, e a ação do Poder Legislativo, pela edição de lei integrativa da Constituição, e a do Poder Executivo na aplicação das normas ou execução das normas e de sua execução, e os costumes capazes de operar mudanças na esfera constitucional, sem alteração do texto.

Já as mutações inconstitucionais que, portanto, importam em violação da Constituição, assumem variada forma, dando-se como exemplos, segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz, “as leis, os atos administrativos de finalidade administrativa ou política e a interpretação judicial contrários à Constituição, o costume e as práticas inconstitucionais, inclusive os chamados golpes de

Estado.600

Também apontamos anteriormente, ao tratarmos da interpretação

evolutiva, que esta é uma das modalidades de mutação constitucional, mas não a

598

Apud CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional, Volume 1 – Teoria do Estado e da Constituição. 20ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 358. 599

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional, Volume 1 – Teoria do Estado e da Constituição, p. 358. 600

Idem, p. 358.

275

única. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso aponta três modalidades possíveis de

mutação constitucional: a mutação a partir da interpretação, a partir da atuação do

legislador e, finalmente, a partir dos costumes601:

A mutação constitucional por via da interpretação (...) consiste na mudança de sentido da norma, em contraste com entendimento preexistente. Como só existe norma interpretada, a mutação constitucional ocorrerá quando se estiver diante da alteração de uma interpretação previamente dada. No caso da interpretação judicial, haverá mutação constitucional quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vier a atribuir a determinada norma constitucional sentido diverso do que fixara anteriormente, seja pela mudança da realidade social ou por uma nova percepção do direito. (...)

Haverá mutação constitucional por via legislativa quando, por ato normativo primário, procurar-se modificar a interpretação que tenha sido dada a alguma norma constitucional. (...)

O costume, muitas vezes, trará em si a interpretação informal da Constituição; de outras, terá um papel atualizador de seu texto, à vista de situações não previstas expressamente; em alguns casos, ainda, estará em contradição com a norma constitucional. Diante de tais possibilidades, a doutrina identifica três modalidades de costume: secundum legem ou interpretativo,

praeter legem ou integrativo e contra legem ou derrogatório.602

Ainda segundo Barroso, “a mutação constitucional em razão de uma nova

percepção do Direito ocorrerá quando se alterarem os valores de determinada

sociedade. A ideia do bem, do justo, do ético varia com o tempo. Um exemplo: a

discriminação em razão da idade, que antes era tolerada, deixou de ser”603:

A mutação constitucional dar-se-á, também, em razão do impacto de alterações da realidade sobre o sentido, o alcance ou a validade de uma norma. O que antes era legítimo pode deixar de ser. E vice-versa. Um exemplo: a ação afirmativa em favor de determinado grupo social poderá justificar-se em um momento

histórico e perder o seu fundamento de validade em outro.604

Destarte, a mudança na percepção do direito, ou na própria realidade,

podem ensejar, pela via da interpretação, uma alteração de sentido de

dispositivos constitucionais sem que haja reforma expressa desses dispositivos,

ocorrendo, assim, uma mutação constitucional por via interpretativa.

601

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo, p. 127-136. 602

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo, p. 131-135. 603

Idem, p. 137. 604

Idem, p. 138.

276

Tal como ocorre com a interpretação como um todo, também no campo da

mutação constitucional há que se cuidar para que o subjetivismo do julgador não

extrapole as possibilidades semânticas que o dispositivo interpretado oferece.

Nesse sentido, o recente julgamento da Reclamação nº 4.335/AC,

concluído em 20 de março de 2014605, constitui peculiar exemplo dos riscos do

voluntarismo exacerbado do julgador, mormente no que tange aos votos do

ministro relator Gilmar Mendes e do (então ainda) ministro Eros Grau. Os dois

magistrados, sob o argumento de ocorrência de “mutação constitucional” em

relação ao art. 52, inciso X, da Constituição Federal, atribuiu a tal dispositivo um

sentido a nosso ver absolutamente incompatível com o campo semântico

propiciado pelos termos do dispositivo.

O aludido julgamento versou sobre a inobservância, por magistrado de

primeira instância, de decisão proferida em controle concreto de

constitucionalidade no Habeas Corpus nº 82.959, em que o STF reconheceu a

inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, cuja redação vigente à

época vedava a progressão de regime penitenciário a apenas por crimes

hediondos e equiparados.

Em seu voto, o ministro relator Gilmar Mendes, reiterando entendimento já

esposado anteriormente em sede doutrinária606, assim se manifestou sobre a

“necessidade de atualização” do sentido do inciso X do art. 52 da Constituição

Federal, que atribui ao Senado Federal a competência para “suspender a

execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão

definitiva do Supremo Tribunal Federal” no controle concreto de

constitucionalidade:

É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.

(...)

605

Disponível em:< http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630101> Acesso em 22.10.2015. 606

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional”, RIL, 162/165.

277

Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 - publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art.31, (2), publicação a cargo do Ministro da Justiça).

O teor desse voto foi integralmente endossado pelo ministro Eros Grau.

Felizmente os demais membros do Supremo não acolheram tal entendimento, o

qual, a nosso ver, extrapola de forma gritante o campo de possibilidades

semânticas dadas pelo inciso X do art. 52 da Constituição607.

6.10 A abertura das normas constitucionais

Como visto, as normas constitucionais apresentam estrutura

substancialmente diversa das demais normas do ordenamento jurídico, em

especial – mas não só – no que concerne aos princípios constitucionais.

Indiscutivelmente, as normas constitucionais ostentam grau de abstração

muito superior ao das normas infraconstitucionais. Como afirma André Ramos

Tavares, “a abstratividade ou abertura das normas releva-se pelos vocábulos

607

O ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto, sintetiza com uma clareza que pareceu escapar aos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau que “almeja-se, na verdade, deslocar uma competência atribuída pelos constituintes a determinado Poder para outro. Não me parece, contudo, seja possível materializar-se tal desiderato, mesmo porque os próprios teóricos da mutação constitucional reconhecem que esse fenômeno possui limites”. Também merece destaque o seguinte argumento, exposto pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto: “Eu também não acho boa a solução constitucional de submeter uma decisão do Supremo Tribunal Federal a uma deliberação política do Congresso Nacional. Não acho uma solução feliz. Mas é a que, a meu ver, consta da Constituição. (...)Portanto, o Supremo acha que esse modelo deve mudar. Porém, como ele está previsto textualmente na Constituição, e nós não somos poder constituinte originário, nem tampouco derivado, eu acho que se pode doutrinariamente concitar o Congresso Nacional a agir. Porém, penso não ser possível interpretar um Texto Constitucional, como nenhum texto, contra a sua literalidade, contra as possibilidades semânticas que ele oferece, porque, se assim fosse, nós nos tornaríamos donos da razão e donos da verdade em todo e qualquer caso, e o constituinte seria irrelevante”.

278

vagos, pelas palavras imprecisas empregadas pelo constituinte, e que

necessitam, inegavelmente, de um preenchimento ou integração para tornarem-

se compreensíveis e imediatamente aplicáveis”608.

Celso Bastos, por seu turno, assevera que “A norma constitucional, muito

frequentemente, apresenta-se como uma petição de princípios ou mesmo como

uma norma programática sem conteúdo preciso ou delimitado”609.

Tal circunstância, sem dúvida, torna mais complexa a tarefa do intérprete, a

ponto de se considerar incompleta a norma constitucional, por sua própria

estrutura, em comparação com as demais normas. André Ramos Tavares chega

a falar em positivação parcial da norma constitucional:

Como decorrência da reconhecida “abertura e amplitude da Constituição” surgem dificuldades interpretativas quantitativa e qualitativamente superiores àquelas constatadas nos demais segmentos jurídicos.

Como primeira consequência dessa característica linguística das normas de uma Constituição tem-se o agigantamento da tarefa dos intérpretes e, com isso, de sua liberdade em identificar determinado conteúdo ou sentido para a norma positivada.

É possível afirmar, inclusive, que se trata de uma positivação parcial da norma, uma vez que o conteúdo, encontrando-se em aberto, terá complementação por parte do intérprete, que, nessa medida, aproveitará a força normativa do

Direito.610

Também sob esse aspecto, as normas constitucionais apresentam

peculiaridades não encontradas na legislação infraconstitucional, o que, por óbvio,

gera consequências no que tange ao modo de interpretação dessas normas.

Daí porque a maioria da doutrina tem reconhecido a existência de métodos

e princípios típicos da interpretação constitucional, ou seja, inaplicáveis às normas

de conduta encontradas no ordenamento jurídico infraconstitucional.

6.11 Métodos típicos da interpretação constitucional

Segundo Canotilho, “interpretar uma norma constitucional consiste em

atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos na

608

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 105. 609

BASTOS, Celso. Hermenêutica e interpretação constitucional, p. 54. 610

TAVARES, André Ramos. Curso de Interpretação Constitucional, p. 106.

279

constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-

constitucionalmente fundada”611. O autor sugere três dimensões da interpretação

constitucional:

(1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na “adscrição” de um significado a um enunciado ou disposição linguística (“texto da norma”); (3) o

produto do acto de interpretar é o significado atribuído.612

A interpretação jurídica constitucional é um desdobramento dos métodos

hermenêuticos tradicionais, desenvolvidos à luz do positivismo e da concepção de

centralidade do direito privado. Buscamos demonstrar, ainda, que os tradicionais

elementos hermenêuticos, colacionados por Savigny, têm plena aplicabilidade no

campo da interpretação jurídica constitucional, para o qual servem como ponto de

partida. Apesar disso, as normas constitucionais gozam de características

próprias, não encontradas na legislação infraconstitucional. O deslocamento das

normas constitucionais para o centro do universo jurídico, com o fortalecimento da

ideia de sua juridicidade – sem que com isso se tenha perdido (embora se tenha,

indiscutivelmente, redimensionado) sua natureza essencialmente política – tornou

necessário o desenvolvimento de métodos próprios de aferição dos sentidos das

normas constitucionais.

Esta é a razão pela qual Canotilho afirma que a interpretação constitucional

não é um método, mas “um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e

pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas,

metodológicas, epistemológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente

complementares”613. Assim, os métodos de interpretação constitucional antes se

complementam do que se contrapõem.

Canotilho aponta a existência de seis métodos próprios de interpretação da

Constituição614, a seguir elencados.

6.11.1 Métodos de interpretação constitucional

611

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1200. 612

Idem. 613

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1210. 614

Idem, p. 1210-1215.

280

6.11.1.1 O método jurídico

Canotilho denomina método jurídico o método hermenêutico clássico, o

qual, partindo da premissa de que a Constituição é uma lei, consiste no emprego

dos elementos hermenêuticos clássicos, cuja articulação “conduzir-nos-á a uma

interpretação jurídica (= método jurídico) da constituição em que o princípio da

legalidade (= normatividade) constitucional é fundamentalmente salvaguardado

pela dupla relevância atribuída ao texto”615, como ponto de partida e limite da

atividade interpretativa.

6.11.1.2 O método tópico-problemático

Esse método, segundo o autor, se baseia em três premissas fundamentais:

primeira, o caráter prático da interpretação constitucional, cujo objetivo é a

solução de problemas concretos; segunda, o caráter aberto, fragmentário ou

indeterminado das normas constitucionais; e terceira, a preferência pela

discussão do problema como consequência da textura aberta das normas

constitucionais “que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas

mesmo”616.

A interpretação da constituição reconduzir-se-ia, assim, a um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através do qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema concreto. Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários tópoi ou pontos de vista, sujeitos à prova das opiniões pró ou contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional, a interpretação mais conivente para o problema. A tópica seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático. Os vários tópicos teriam como função: (i) servir de auxiliar de orientação para o intérprete; (ii) constituir um guia de discussão dos problemas; (iii) permitir a decisão do problema jurídico em

discussão.617

615

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1211. 616

Idem. 617

Idem. É relevante a advertência feita por Canotilho em relação à tópica: “A concretização do texto constitucional a partir dos tópoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretação é uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite

281

6.11.1.3 O método hermenêutico-concretizador

Neste método, destaca-se o papel criativo do intérprete, que, por meio da

pré-compreensão do sentido da norma, oriunda da subjetividade daquele, alcança

o sentido (compreensão) da norma a partir do contexto em que esta será

pragmaticamente aplicada, ou seja, a partir de mediações entre o texto (a partir

do qual exsurge a norma) e o contexto no qual esta será aplicada. Canotilho

aponta a semelhança entre esse método e o tópico-problemático, salientando, no

entanto, que “enquanto o último pressupõe ou admite o primado do problema

perante a norma, o primeiro [o método hermenêutico-concretizador] assenta no

pressuposto do primado do texto constitucional em face do problema”618.

6.11.1.4 O método científico-espiritual

Tal método se baseia na busca do sentido da norma a partir dos valores

subjacentes ao texto constitucional. Segundo Canotilho, “o recurso à ordem de

valores obriga a uma ‘captação espiritual’ do conteúdo axiológico último da ordem

constitucional”619.

6.11.1.5 O método normativo-estruturante

De acordo com esse método, a atribuição de sentido à norma parte do

pressuposto de que o texto do dispositivo a ser interpretado constitui apenas parte

da norma, a ser complementada por um “pedaço de realidade social” a que o

autor chama de “domínio normativo”. Assim, “a concretização normativa deve

considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado

pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal

da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da

investigação do referente normativo (domínio ou região normativa)”620.

indeclinável (Hesse) que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema (F. Müller)” (ob. cit., p. 1212). 618

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1212. 619

Idem, p. 1213. 620

Idem.

282

Canotilho observa, em outro ponto de sua obra, que a conjugação entre o

programa da norma e o domínio da norma gera como consequência a

normatividade constitucional:

Componentes fundamentais da norma são o programa normativo e o domínio normativo e, por isso, a norma só pode compreender-se como uma articulação destas duas dimensões.

O programa normativo é o resultado de um processo parcial de concretização (inserido, por conseguinte, num processo global de concretização) assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo. Daí que se tenha considerado o enunciado linguístico da norma como ponto de partida do processo de concretização (dados linguísticos). Por sua vez, o sector normativo é o resultado de um segundo processo parcial de concretização assente sobretudo na análise dos elementos empíricos (dados reais, ou seja, dados da realidade recortados pela norma). Desta forma a norma jurídico-constitucional é um modelo de ordenação orientado para uma concretização material, constituído por uma medida de ordenação, expressa através de enunciados linguísticos, e por um “campo” de dados reais (factos jurídicos, factos materiais).

Da compreensão da norma constitucional como estrutura formada por duas componentes – o “programa da norma” e o “domínio da norma” – deriva o sentido de normatividade constitucional: normatividade não é uma “qualidade” estática do texto da norma ou das normas mas o efeito global da norma num processo estrutural e dinâmico entre o programa normativo e o sector normativo. Este processo produz, portanto, um efeito que se chama normativo, ou, para dizermos melhor, a normatividade é o efeito global da norma (com as duas componentes atrás

referidas) num determinado processo de concretização.621

6.11.1.6 O método comparativo

Consiste na análise comparativa de institutos jurídicos em diversos

ordenamentos, com o objetivo de fixar o sentido de determinados signos

linguísticos que compõem normas constitucionais. Segundo Canotilho, “essa

comparação assume, em geral, uma natureza valorativa, ou seja, reconduz-se a

uma comparação jurídica valorativa no âmbito do Estado Constitucional. Através

dela, é possível estabelecer a comunicação entre várias constituições (Häberle) e

descobrir critério da melhor solução para determinados problemas concretos”622.

6.11.2 Princípios de interpretação constitucional

621

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1216-1217. 622

CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1214.

283

A par dos métodos de interpretação especificamente constitucional, a

doutrina tem se esforçado para estabelecer um catálogo de princípios de

interpretação constitucional. Encontra grande acolhida na doutrina623,

notadamente a nacional624, o catálogo formulado por Konrad Hesse em seu

manual de direito constitucional625, idêntico àquele adotado por J. J. Gomes

Canotilho626. Tais autores (assim como aqueles que os seguem)627 elencam seis

princípios de interpretação constitucional, a saber:

6.11.2.1 Princípio da unidade da Constituição

De acordo com o princípio da unidade da Constituição, as normas

constitucionais devem ser interpretadas sempre sob a ótica do sistema

constitucional. Em outras palavras, não é possível interpretar nenhuma norma

constitucional isoladamente, uma vez que a constituição, enquanto documento

político-jurídico, forma um sistema cujas normas devem receber um sentido que

lhe preserve a integridade e a coerência interna.

Essa unidade sistêmica, para parte da doutrina, ainda se articula no sentido

do reconhecimento de uma hierarquia de suas próprias normas. Tércio Sampaio

Ferraz Jr., nesse tocante, afirma que o príncípio da unidade impõe que se

entenda a constituição “como um articulado de sentido (...) doutrinado por uma

lógica interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica”628,

hierarquia esta firmada pelo conteúdo de certas normas, notadamente as que

623

“Este catálogo que os autores recortam de forma diversa tornou-se um ponto de referência obrigatório da teoria da interpretação constitucional” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1223). 624

Conforme informa Virgílio Afonso da Silva, em Interpretação constitucional e sincretismo metodológico (in SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 120). O autor formula severa crítica à própria existência de princípios de interpretação especificamente constitucional, asseverando que “alguns deles em nada se diferenciam dos cânones tradicionais de interpretação” (p. 121). Tal crítica será analisada a seguir. 625

Conforme informa Virgílio Afonso da Silva, in Interpretação constitucional e sincretismo metodológico (in SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 117. 626

CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1123-1226. 627

A despeito de sua consagração na doutrina nacional, esse elenco de princípios não é unânime e encontra variações. Luís Roberto Barroso, por exemplo, elenca como princípios de interpretação especificamente constitucional: 1) princípio da supremacia da Constituição; 2) princípio da presunção de constitucionalidade de leis e atos do Poder Público; 3) princípio da interpretação conforme a Constituição; 4) princípio da unidade da Constituição; 5) princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; 6) princípio da efetividade (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 161-275). 628

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 78.

284

fixam e asseguram direitos fundamentais, que, por isso, prevaleceriam sobre as

demais normas constitucionais629.

Esse princípio ganha especial relevância quando se constata que as

constituições atuais – e a Constituição brasileira de 1988 é emblemática nesse

sentido – trazem em seu bojo normas cujo conteúdo é o resultado do esforço de

diversos setores da sociedade cujos interesses nem sempre seguem na mesma

direção, sendo, ao contrário, muitas vezes contrapostos (como ocorre com o

princípio da livre iniciativa e a proteção dos trabalhadores). Assim, num sistema

formado por valores não raro colidentes, a necessidade de uma atividade

interpretativa voltada à conciliação de tais valores se mostra inafastável. Nas

palavras de Luís Roberto Barroso, “o papel do princípio da unidade é o de

reconhecer as tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas

constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas.

Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou ‘otimização’ das normas, na

medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo

a eficácia de qualquer delas”630.

6.11.2.2. Princípio do efeito integrador

Segundo Canotilho, esse princípio é com frequência associado ao princípio

da unidade da Constituição, e, em sua formulação mais simples, significa que “na

629

“Uma das regras fundamentais da hermenêutica constitucional exige que o intérprete postule a unidade da Constituição. Esta regra da unidade nos obriga a vê-la como um articulado de sentido. Tal articulado, na sua dimensão analítica, é doutrinado por uma lógica interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou seja, uma constituição, da mesma forma que o ordenamento em geral também conhece, do ângulo hermenêutico, a estrutura da ordem escalonada. O escalonamento é para a dogmática jurídica condição da unidade, que, por sua vez, garante ao ato interpretativo o respeito aos valores da segurança e da certeza conforme a tradição constitucionalista e, sem esta unidade, a constituição corre o risco de se tornar instrumento de arbítrio. A noção de hierarquia, sobretudo numa época em que as constituições perdem o caráter de conjunto de normas genéricas, para adquirir o caráter e complexidade quantitativa e qualitativa de disposições de toda ordem, passa a ser um importante pressuposto hermenêutico. Hierarquia significa que todas as disposições constitucionais não estão todas postas horizontalmente umas ao lado das outras, mas também verticalmente. Falamos, assim, em sistema escalonado, isto é, disposições coordenadas e inter-relacionadas que se condicionam reciprocamente em escalões sucessivos. Assim, por exemplo, é de se reconhecer, no complexo constitucional, a presença do cerne fixo material representado pelos direitos fundamentais e sua prevalência sobre as demais normas, bem como a diferença entre normas que agasalham princípios, normas que instituem princípios, normas que pressupõem princípios, normas que têm mero sentido técnico de organização, que instauram vedações, estatuem objetivos, estabelecem condições etc.” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 78-79). 630

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 200.

285

resolução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se primazia aos

critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o

reforço da unidade política”631.

6.11.2.3. Princípio da máxima efetividade

Também conhecido como princípio da eficiência ou princípio da

interpretação efetiva, significa que a atividade interpretativa há de resultar no

sentido que atribua a maior eficácia possível à norma constitucional. Canotilho

assevera que “embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das

normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos

fundamentais (no caso de dúvida deve preferir-se a interpretação que reconheça

maior eficácia aos direitos fundamentais)”632. Esse princípio não consta do

catálogo elencado por Hesse e, segundo Virgílio Afonso da Silva, “parece ter

chegado à literatura brasileira pela obra de Canotilho”633.

6.11.2.4 Princípio da conformidade funcional

O princípio tem por objetivo impedir que a interpretação das normas

constitucionais resulte em subversão da repartição de competências atribuídas

pela constituição aos órgãos públicos, notadamente àqueles responsáveis pela

atribuição de sentido às normas da constituição (tribunais constitucionais).

Canotilho observa que “o órgão (ou órgãos) encarregado da interpretação da lei

constitucional não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o

esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido”, salientando,

no entanto, que, na atualidade, o princípio tende “a ser considerado mais como

um princípio autônomo de competência do que como um princípio de

interpretação da constituição”634.

O princípio constitui argumento voltado a conter eventuais excessos do

ativismo judicial, notadamente quando este parte dos tribunais constitucionais, os

631

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1224. 632

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1224. 633

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 131. 634

CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1224-1225.

286

quais, não raro, extrapolam em seus julgados o aspecto jurídico das questões

submetidas à sua apreciação. O princípio da conformidade funcional, assim, visa

evitar que a discricionariedade do administrador – representante eleito do povo –

seja substituída pela discricionariedade do julgador, num movimento voluntarista

que transpõe os limites da decisão jurídica, tornando-a política635.

Segundo Virgílio Afonso da Silva, “no Brasil, ainda que não explicitamente,

o STF segue à risca essa ideia de conformidade funcional, que, aliada a uma

interpretação anacrônica e estanque da separação de poderes, serve

perfeitamente para justificar a omissão do Tribunal em casos de grande

relevância política”636.

6.11.2.5 Princípio da concordância prática

De acordo com o princípio da concordância prática, também denominado

princípio da harmonização, a interpretação das normas constitucionais, em

especial aquelas que tratam de direitos fundamentais, há de ser realizada de

modo a acomodar todos os direitos fundamentais sem que haja, no caso de

eventual colisão, o sacrifício total de algum desses direitos. Impõe-se, assim, na

hipótese de conflito entre dois direitos fundamentais, interpretar a constituição de

635

Não desconsideramos, por óbvio, o fato de que decisões jurídicas relativas a questões constitucionais não raro – pelo contrário, muito frequentemente – contêm uma inevitável carga política. Contudo, há, indiscutivelmente, setores do campo político que não podem ser alcançados pela decisão jurídica, sob pena de subversão das competências atribuídas constitucionalmente aos Poderes constituídos do Estado. Assim, ao afirmarmos que “a decisão jurídica se torna política”, queremos com isso dizer que ocorre, por parte do Judiciário, uma invasão na esfera das competências dos Poderes Executivo e Legislativo. É evidente que não há uma linha delimitatória precisa entre essas esferas de competência, de modo que a conclusão sobre a ocorrência ou não de um transbordamento de atribuições dependerá sempre da casuística. 636

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 129. Discordamos do autor, no entanto, no que concerne à alegação de rejeição, por parte do STF, de uma postura mais ativa. Nesse sentido, afirma o autor: “Serve também, por exemplo, para justificar a rejeição de instrumentos que pudessem dar a esse Tribunal uma feição mais ativa, como o mandado de injunção, já que, para o STF, o judiciário pode somente ser legislador negativo, nunca positivo” (p. 129). A 1ª edição da obra data do ano de 2005 (a segunda tiragem dessa primeira impressão, da qual retiramos o excerto acima, data de abril de 2007). A obra se mostra desatualizada, notadamente no que concerne ao exemplo do mandado de injunção, uma vez que, no julgamento conjunto dos Mandados de Injunção nºs 708/DF, 712/PA e 670/ES, ocorrido em outubro de 2007, o STF alterou seu entendimento acerca dos efeitos das decisões proferidas nos mandados de injunção, abandonando a posição não concretista até então adotada (e que é a mencionada pelo autor no texto) e adotando a posição concretista geral. Nos últimos anos, o STF vem, por meio de diversas técnicas e mecanismos interpretativos, ampliando seu espectro decisório e conquistando maior espaço na seara política, o que, evidentemente, intensifica as críticas ao seu “ativismo judicial” – justamente o que o princípio da conformidade funcional busca evitar.

287

modo a garantir uma eficácia ótima das normas garantidoras desses dois direitos,

e, ainda que haja a prevalência de um deles, esta não deve levar à completa

exclusão do outro.

6.11.2.6 Princípio da força normativa da Constituição

Esse princípio toma por fundamento a ideia de que a interpretação

constitucional deve privilegiar os sentidos que contribuam para o que Canotilho

chama de “uma eficácia ótima da lei fundamental”637, ou seja, aqueles sentidos

que possibilitem, na maior medida possível, o reconhecimento da juridicidade das

normas constitucionais, o fortalecimento da ideia de norma constitucional

enquanto norma jurídica dotada de coercitividade.

6.11.2.7 Princípio da interpretação conforme a Constituição

Elencado por Canotilho, trata-se de princípio que tem por objetivo

assegurar que, na interpretação de normas infraconstitucionais marcadas pela

polissemia – dando, assim, espaço à atribuição de vários sentidos distintos

possíveis – o sentido escolhido seja aquele que esteja em conformidade com o

texto constitucional. Trata-se, pois, segundo Virgílio Afonso da Silva, não

propriamente de um princípio de interpretação constitucional638, uma vez que se

volta à interpretação de normas infraconstitucionais, à luz, porém, do sentido que

melhor seja adequado à Constituição. O princípio comporta, segundo Canotilho,

três dimensões:

Essa formulação comporta várias dimensões: (1) o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas inconstitucionais; (2) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma

637

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1226. 638

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 132.

288

interpretação conforme a constituição, mesmo através dessa interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais. Quando estiverem em causa duas ou mais interpretações – todas em conformidade com a Constituição – deverá procurar-se a interpretação

considerada como a melhor orientada para a Constituição.639

Luís Roberto Barroso observa, com argúcia, que a interpretação conforme

a Constituição sugere “a necessidade de buscar uma interpretação que não seja a

que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo”640, uma vez que “se o sentido

mais evidente que resulta do texto interpretado for compatível com a constituição,

dificilmente haverá necessidade de se recorrer a um princípio cuja finalidade

última é a de salvar uma norma ameaçada”641. Entendimento similar é esposado

por Jorge Miranda:

A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Constituição, quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força

conformadora da Lei Fundamental.642

Na qualidade de princípio que confere à norma infraconstitucional um

sentido conformado ao texto constitucional, o princípio da interpretação conforme

se revela, ainda, um mecanismo de controle de constitucionalidade, como, aliás,

já reconheceu expressamente o STF643.

6.11.3 A crítica de Virgílio Afonso da Silva

639

CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1226-1227. 640

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 189. 641

Idem, p. 190. 642

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. 2, p. 232. 643

“O mesmo ocorre quando Corte dessa natureza (constitucional), aplicando a interpretação conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipótese, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto – Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), o que implica dizer que o tribunal constitucional elimina – e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição” (RT – CDC e CP, 1: 314, 1992, P. 330, Rep. n. 1417-7, rel. Min. Moreira Alves, j. 09.12.1987).

289

O valor de qualquer teoria científica, mesmo no ramo das ciências

humanas, não reside, por óbvio, na autoridade de quem a cria, e sim na força

interna da própria teoria de resistir aos questionamentos feitos à sua validade.

Nesse sentido, embora, como já afirmado, o elenco de princípios de

interpretação especificamente constitucional tenha encontrado calorosa acolhida

pela quase totalidade da doutrina brasileira, sua consagração não restou imune a

críticas.

Relevante, a esse respeito, é a crítica formulada por Virgílio Afonso da

Silva, que questiona não apenas o caráter supostamente inovador de tais

princípios em relação aos métodos hermenêuticos tradicionais, como também a

ideia de que tal elenco corresponderia a um consenso na doutrina alemã, ou

mesmo a uma proposta de teoria geral da interpretação constitucional na obra de

Konrad Hesse.

O autor afirma que “não há indícios de que Hesse quisesse criar uma teoria

geral da interpretação constitucional. O título do seu manual, por si só, já aponta

para uma confirmação disso. Trata-se de um curso de direito constitucional

alemão”644, observando ainda que “uma lista semelhante [de princípios de

interpretação constitucional] é difícil de ser encontrada em outras obras de direito

constitucional alemão”645. Segundo o autor, “os difundidos ‘princípios de

interpretação constitucional’ não desempenham papel relevante na interpretação

da constituição”, e “alguns dele em nada se diferenciam dos cânones tradicionais

de interpretação”646.

Em relação ao princípio da unidade da Constituição, o autor indaga: “o que

há de exclusivamente constitucional no chamado princípio da unidade da

constituição? Ou ainda, o que há de realmente superador nele?”, argumentando

que “não é somente a constituição que compõe uma unidade coordenada”647, e

que esse princípio “parece em nada se diferenciar daquilo que há pelo menos

século e meio se vem chamando de ‘interpretação sistemática’”, sendo, pois,

644

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 118. 645

Idem. 646

Idem, p. 121. 647

Idem, p. 126.

290

“uma reafirmação de um dos cânones clássicos da interpretação e a confirmação

de que ele também vale no âmbito constitucional”648.

Quanto ao princípio da concordância prática, o autor afirma que sua ideia

“está estreitamente ligada à ideia de proporcionalidade, pois exige que, na

solução de problemas constitucionais, deve-se procurar acomodar os direitos

fundamentais de forma a que todos possam ter uma eficácia ótima”649. Segundo a

crítica, “não há, na ideia de concordância prática, uma estrutura previamente

definida para alcançar esses fins, ao contrário da regra da proporcionalidade, que,

com suas três sub-regras, oferece uma forma racional e estruturada para a

solução de colisões de direitos fundamentais”650.

Já em relação ao princípio da conformidade funcional – concebido, como

visto, para conter excessos decorrentes do ativismo judicial –, a crítica é

formulada nos seguintes termos:

O conceito de conformidade funcional e a ideia de contraposição entre legislação negativa e positiva fariam talvez algum sentido se a Constituição Brasileira tivesse consagrado apenas os chamados direitos fundamentais clássicos, também chamados de “direitos negativos”, como faz a Constituição Alemã. Como esse não é o caso, fica difícil justificar o papel do STF como mero limite negativo à atividade legislativa. Se a Constituição impõe prestações positivas ao legislador e se o STF é o guardião da Constituição por excelência, como justificar a omissão do segundo diante da inércia do primeiro? Somente com o apego a uma concepção estanque de separação de poderes, que remonta à época da Revolução Francesa, mas que não faz mais sentido há muito tempo. A ideia de conformidade funcional, nesse contexto, parece mais apta a consolidar essa visão anacrônica de separação de poderes – e não somente entre judiciário e legislativo, mas entre todos os poderes – que ser u instrumento

“moderno” de interpretação constitucional.651

No que tange ao princípio do efeito integrador, este, segundo o autor, “não

passa de uma aplicação do princípio da unidade da constituição, e, portanto, da

648

Idem, p. 127. 649

Idem, p. 127. 650

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 127-128. 651

Idem, p. 130. Em importante nota de rodapé a tais considerações, o autor esclarece que “Defender uma postura diferente do STF nos casos de direitos a prestações positivas não significa, contudo, exigir que o STF substitua o legislador em todos os casos de omissão. Isso implicaria transformá-lo em definidor de políticas públicas, o que não é seu papel. O exigível, contudo, seria uma posição ativa do Tribunal no sentido de cobrar – ou de iniciar – um diálogo constitucional entre os poderes.”

291

interpretação sistemática, em conjunto com a ideia de força normativa da

constituição”652.

A validade do princípio da máxima efetividade653 é assim questionada:

A mim me parece, em primeiro lugar, que a ideia de máxima efetividade já está contida tanto na ideia de concordância prática quanto – e principalmente – na ideia de força normativa da constituição, como se verá abaixo. Essa é, aliás, uma constante nesse catálogo de princípios de interpretação constitucional aqui analisado: muitos dos princípios se assemelham de tal forma que fica difícil perceber a differentia specifica de cada um deles – isto é, a característica que os distinguiria dos outros princípios e que justificaria sua existência como princípios autônomos. Além disso, no caso da “máxima efetividade” pode-se dizer que seria difícil, nos dias de hoje, preferir uma interpretação de algum dispositivo constitucional que lhe confira uma efetividade mínima. Pode-se, claro, afirmar que a ideia de “máxima efetividade” faz sentido como ideia regulativa, isto é, que aponta para uma determinada direção a ser seguida, mesmo que esse máximo nem sempre possa ser alcançado. Nesse caso, então, seria mais aconselhável que se falasse em “efetividade ótima”, pois esse seria um conceito que já inclui a possibilidade do conflito entre normas e a real ideia-

guia para sua solução, isso é, a otimização.654

Quanto ao princípio da força normativa da Constituição, sua definição655,

segundo o autor, “parece um resumo do que já se disse sobre ‘concordância

prática’ e ‘máxima efetividade’. A única diferença, ao mesmo tempo significativa e

contraditória, é a preferência por uma ‘eficácia ótima’ em vez de uma ‘eficácia

máxima’”656.

Finalmente, no que concerne à interpretação conforme a Constituição, o

autor salienta que não se trata de princípio de interpretação constitucional, uma

652

Idem, p. 130. 653

Que, como apontado anteriormente, figura no elenco de Canotilho, mas não no de Hesse. 654

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 131. 655

“Segundo o princípio da força normativa da constituição na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a ‘actualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1226). 656

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 132. O autor acrescenta: “Significativa porque mais correta e compatível com a ideia de colisão entre direitos fundamentais. E contraditória pelo mesmo motivo, pois se o conceito de ‘efetividade ótima’ é compatível com a ideia de colisão de direitos, é, ao mesmo tempo, incompatível com uma das interpretações que se faz da ideia de unidade da constituição, caso a colisão de direitos seja solucionada dando preferência a um dos direitos em detrimento de outros” (ob. cit., p. 132).

292

vez que “não é a constituição que deve ser interpretada em conformidade com ela

mesma, mas as leis infraconstitucionais. A interpretação conforme a constituição

pode ter algum significado, então, como um critério para a interpretação das leis,

mas não para a interpretação constitucional”657.

Tais críticas, conquanto bem fundamentadas e consistentes, não podem,

no entanto, ser acolhidas sem ressalvas. De fato, em alguns aspectos o elenco de

princípios de interpretação constitucional apresenta falhas, sobretudo em razão

de certas redundâncias metodológicas constatadas entre os princípios

colacionados. Contudo, nem todos os argumentos formulados por Virgílio Afonso

da Silva são imunes a questionamentos. A procedência desses argumentos pode

levar ao questionamento da ideia que temos defendido desde o início deste

trabalho, ou seja, a de que existe uma distinção fundamental entre a interpretação

jurídica geral e a interpretação jurídica constitucional, tendo esta autonomia em

relação àquela – entendimento que alguns dos argumentos expostos pelo autor

parecem contrariar.

Observamos, nesse sentido, antes de mais nada, que o fato de Hesse não

ter pretendido criar uma teoria geral da interpretação constitucional, assim como a

circunstância de o catálogo compilado por Hesse não ser encontrado em outros

autores alemães, nada diz acerca da validade (ou invalidade) desse catálogo. A

acolhida pela doutrina brasileira (e não só desta, como demonstra a obra de

Canotilho) desse rol de princípios não guarda qualquer relação com a pretensão

de Hesse quanto a sua obra. Em suma, não nos parece que o questionamento

acerca da origem do catálogo tenha alguma relevância para a análise de sua

consistência científica658.

As objeções formuladas ao conteúdo dos princípios elencados por Hesse e

Canotilho também devem ser acolhidas com ressalvas.

Em relação ao argumento de que o princípio da unidade da constituição em

nada difere da “interpretação sistemática” tal como concebida por Savigny, uma

vez que “não é somente a constituição que compõe uma unidade que exigiria uma

657

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 132-133. 658

Poder-se-ia, sob tal ótica, questionar a relevância da teoria de Ferdinand Lassale acerca da “Constituição folha de papel”, pelo fato de ter origem em uma palestra e não em uma obra direcionada ao estabelecimento de uma teoria geral da constituição.

293

interpretação coordenada”659, entendemos que a questão formulada pelo autor –

“o que há de exclusivamente constitucional no chamado princípio da unidade da

constituição? Ou, ainda, o que há de realmente superador nele?”660 – encontra

sua resposta na própria estrutura das atuais constituições.

Como já demonstrado anteriormente, as constituições atuais, em sua

maioria, consistem em cartas de compromisso entre os diversos setores das

sociedades modernas, cada vez mais marcadas pela pluralidade. Essa dialética

axiológica das Constituições não encontra paralelo na legislação

infraconstitucional. Ainda que os subsistemas que compõem a totalidade do

universo jurídico de um Estado sejam, também eles, sistemas, e devam, tal como

as constituições, ter as suas normas interpretadas com a consideração do que

Savigny chama de elemento sistemático, a análise desses subsistemas revela

que neles inexistem as tensões dialéticas típicas dos atuais documentos

constitucionais.

Com efeito, o Código Civil, o Código Penal, os Códigos processuais etc.,

formatados como sistemas, assim como a Constituição, exigem que suas normas

sejam interpretadas como parte do sistema que integram, sendo vedada a

interpretação isolada de qualquer dispositivo. Nisso, de fato, reside uma

semelhança entre o elemento sistemático descrito por Savigny e o princípio da

unidade da Constituição. Este, no entanto, se distingue na medida em que as

constituições, enquanto documentos marcados por valores, geralmente trazem

em seu bojo valores contrapostos, que não raro se chocam e que, por isso,

precisam ser harmonizados, o que não acontece na legislação infraconstitucional.

Assim, se a lógica do princípio da unidade da Constituição é similar à da

chamada “interpretação sistemática”, a estrutura dialética da Constituição

enquanto sistema distingue o princípio do método hermenêutico clássico ou

tradicional, uma vez que a “interpretação sistemática”, quando referente a normas

constitucionais, apresenta dificuldades que não se verificarão quando o elemento

sistemático for considerado na interpretação das normas infraconstitucionais. É

esta a razão pela qual Luís Roberto Barroso afirma, com precisão, que o princípio

da unidade da Constituição é uma especificação desse elemento sistemático:

659

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 126. 660

Idem, p. 126.

294

A ideia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta Fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga “o pluralismo e antagonismo de ideias subjacentes ao pacto fundador”.

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas ideias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. Deverá fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação constitucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais

inscritos ou decorrentes da Lei Maior.661

Entendemos, pois, que a peculiaridade estrutural da constituição e sua

natureza essencialmente dialética, consagradora de valores não raro colidentes,

atribuem ao princípio da unidade da Constituição um caráter exclusivamente

constitucional e superador, na medida em que tal princípio consiste, como afirma

Barroso, numa especificação – ou, mais precisamente, num refinamento – do

elemento sistemático da hermenêutica tradicional, mas com ele não se confunde

nem se identifica integralmente.

Tampouco nos parece acurado o argumento de que “no Brasil, ainda que

não explicitamente, o STF segue à risca essa ideia de conformidade funcional,

que, aliada a uma interpretação anacrônica e estanque da separação de poderes,

serve perfeitamente para justificar a omissão do Tribunal em casos de grande

relevância política” (...). Para o STF, o judiciário pode somente ser legislador

negativo, nunca positivo”662. A realidade brasileira parece demonstrar justamente

o contrário, e é farta a doutrina que questiona o descomedimento do STF no que

tange à sua atividade criativa e à “judicialização da política”, a ponto de Oscar

Vilhena Vieira, em posicionamento que nos parece mais condizente com o

cotidiano constitucional brasileiro, referir-se à existência, no Brasil, de uma

661

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 196. 662

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico, in SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 129.

295

supremocracia, justamente porque o fenômeno do ativismo judicial, que não é

exclusivo do Brasil, encontra, no STF, acolhida mais calorosa do que em outras

Cortes Constitucionais:

Foi apenas com a Constituição de 1988 que o Supremo deslocou-se para o centro de nosso arranjo político. Esta posição institucional vem sendo paulatinamente ocupada de forma substantiva, em face a enorme tarefa de guardar tão extensa constituição. A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos órgãos representativos, outras vezes substituindo as escolhas majoritárias. Se esta é uma atribuição comum a outros tribunais constitucionais ao redor do mundo, a distinção do Supremo é de escala e de natureza. Escala pela quantidade de temas que, no Brasil, têm natureza constitucional e são reconhecidas pela doutrina como passíveis de judicialização; de natureza, pelo fato de não haver qualquer obstáculo para que o Supremo aprecie atos do poder constituinte reformador. Neste sentido, a Suprema Corte indiana talvez seja a única que partilhe o status supremocrático do Tribunal brasileiro, muito embora tenha deixado para trás uma posição mais ativista. No exercício destas funções que lhe vem sendo atribuídas pelos distintos textos constitucionais ao longo da história republicana, ousaria dizer, emprestando a linguagem de Garapon, que, nos últimos anos, o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão de “proteção de regras” constitucionais, face aos potenciais ataques do sistema político, como também vem exercendo, ainda que subsidiariamente, a função de “criação de regras”; logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente a qualquer interprete constitucional, com exercício de poder. Esta última atribuição, dentro de um sistema democrático, deveria ficar reservada a órgãos representativos, pois quem exerce poder em uma república deve sempre estar submetido a controles de

natureza democrática.663

Finalmente, no que diz respeito à interpretação conforme a Constituição,

Virgílio Afonso da Silva tem certa razão ao afirmar que “não se está falando de

interpretação constitucional, pois não é a constituição que deve ser interpretada

em conformidade com ela mesma, mas as leis infraconstitucionais”664. Duas

observações, contudo, devem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, a

partir do momento em que se passou a reconhecer efetiva normatividade aos

preceitos constitucionais, a análise de todas as normas infraconstitucionais,

notadamente sob a ótica sistêmica, passou a expressar, no mínimo natureza

663

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia, In Revista Direito GV nº 8, Julho-Dezembro 2008, p. 445-446. 664

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico, in SILVA, Virgílio Afonso da (org.), Interpretação constitucional, p. 133.

296

dúplice – não é mais possível atribuir sentido a uma norma infraconstitucional sem

que se analise, simultaneamente, sua conformidade com os dispositivos

constitucionais. Em segundo lugar, para que se proceda a essa análise, é

imprescindível, antes da atribuição de sentido à norma infraconstitucional, o

estabelecimento do sentido da norma constitucional em relação à qual aquela

(infraconstitucional) há de demonstrar conformidade. Hesse, a esse respeito,

fornece o seguinte esclarecimento, que nos parece incontestável:

A “interpretação conforme” não coloca somente a questão relativa ao conteúdo da lei submetida a controle mas também a referente ao conteúdo da Constituição, segundo a qual essa lei deverá ser apreciada. Exige, pois, tanto a interpretação da lei quanto a da Constituição, e dado que tanto a relação material quanto a funcional vão no sentido da manutenção da lei, a interpretação conforme interpretará a norma constitucional, dentro do possível, no sentido em que o legislador a concretizou. Daí que a interpretação conforme das leis venha a ser, em seus efeitos, reflexo sobre a interpretação da Constituição, interpretação da Constituição conforme a lei. Nisso se manifesta como um princípio suplementar – cabe dizer-se mediato – da interpretação da Constituição por parte dos tribunais. Este efeito confirma ao mesmo tempo a estreita inter-relação existente entre Constituição

e lei e, com isso, a unidade do ordenamento jurídico.665

Assim, ainda que não se trate, diretamente, de um elemento de

interpretação de normas constitucionais, entendemos que a interpretação

conforme a Constituição, conquanto voltada precipuamente a preceitos

infraconstitucionais, consiste em atividade impossível de ser realizada sem que

haja uma prévia interpretação constitucional – o que, a nosso ver, justifica sua

inclusão no elenco estabelecido por Hesse e Canotilho.

Em suma, a crítica de Virgílio Afonso da Silva é procedente ao apontar

certa falta de rigor no estabelecimento de critérios que diferenciem com nitidez

alguns dos princípios de interpretação constitucional entre si. Discordamos

veementemente do autor, no entanto, no que tange à afirmação de que tais

princípios não constituem novidade alguma em relação aos cânones

hermenêuticos tradicionais, pelas razões e circunstâncias que procuramos expor

e que, a nosso ver, tornam a interpretação jurídica constitucional

substancialmente diversa da interpretação jurídica geral.

665

HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional, p. 121-122.

297

6.12 Técnicas específicas de interpretação constitucional pelos tribunais

constitucionais

Como visto, o advento do neoconstitucionalismo levou ao fortalecimento do

papel dos tribunais constitucionais na concretização dos dispositivos

constitucionais. Isso não implica qualquer violação ao princípio democrático ou ao

princípio da separação de poderes, desde que a atuação da jurisdição

constitucional respeite os limites constitucionalmente estabelecidos para sua

atuação, notadamente para a proteção dos direitos fundamentais e realização da

vontade constitucional. Nessa função e dentro de tais limites, a atuação do

tribunal constitucional antes fortalece do que mitiga o princípio democrático666. É

nesse sentido que Jorge Carpizo afirma que a jurisdição constitucional serve

também para impedir que os Poderes constituídos extrapolem suas competências

e atribuições constitucionalmente estabelecidas667.

É vedada, por outro lado, a substituição da discricionariedade política do

legislador/administrador democraticamente eleito, pela discricionariedade do

magistrado.

O juiz constitucional, que, ao menos no Brasil, não é investido em seu

cargo público em razão de processo eletivo, haure sua legitimidade tanto do

procedimento constitucionalmente (portanto, elaborado pelos representes eleitos

do povo) estabelecido para sua investidura, quanto da necessidade de

fundamentação de suas decisões, o que, como já afirmado, constitui, no direito

666

“Antes que nada, se deve tener en cuenta que la justicia constitucional ha representado la principal y más eficaz respuesta del Estado democrático a la exigencia de asegurar una tutela efectiva de los derechos fundamentales de la persona garantizados por las cartas constitucionales: por lo tanto, constitucionalismo y justicia constitucional constituyen hoy un binomio indivisible. Se admite de forma general que, para evitar que el reconocimiento de los derechos de la persona se reduzca a una declaración romántica desprovista de efectividad, se acuda a crear sistemas eficaces de garantia sustancial; como también se admite normalmente que los derechos de la persona se asocien a la actividad de los jueces consitucionales, considerando que los derechos de la persona Sean efectivamente tales – es decir, verdaderos y propios derechos, normas objetivas de rango supremo – si su tutela constituye un limite, no solo para la autoridad administrativa y judicial, sino también para el legislador” (ROLLA, Giancarlo. Justicia constitucional y derechos fundamentales, p. 41). 667

“La existencia de la jurisdicción constitucional, que incluye tribunales o cortes especializados, incluso salas generalmente calificadas de constitucionales, a pesar de sus problemas y debilidades, es hasta nuestros dias el mejor sistema que se ha creado para asegurar la supremacía de la ley fundamental como norma decidida por el Poder Constituyente, para impedir que los poderes constituídos rebasen la competencia y atribuciones que expressamente les señala la propria Constituición, y para la protección real de los derechos humanos. En una palabra, es la mejor defensa del orden constitucional” (CARPIZO, Jorge. El Tribunal Constitucional y el control de la reforma constitucional. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, vol. XLII, nº 125, maio-agosto de 2009, p. 388).

298

brasileiro, dever inescapável a todo e qualquer magistrado, por força do art. 97 da

Constituição Federal de 1988.

A textura aberta e a natureza principiológica dos dispositivos

constitucionais, especialmente daqueles que positivam e asseguram direitos

fundamentais, torna a atividade do juiz constitucional consideravelmente mais

criativa do que a do magistrado ordinário, na medida em que os dispositivos

constitucionais que estabelecem e protegem tais direitos só se completam por

meio da construção, ou seja, da complementação do texto normativo a partir de

dados de realidade. Esta é, inclusive, uma das razões pelas quais a interpretação

jurídica constitucional assume considerável grau de especificidade em relação à

interpretação jurídica geral. Em outras palavras, a interpretação jurídica

constitucional é um campo hermenêutico no qual a atividade do julgador é mais

criativa do que a verificada na interpretação jurídica geral.

Outra evidência disso é o surgimento de técnicas específicas empregadas

pelos tribunais constitucionais no controle da constitucionalidade, técnicas estas

tanto inviáveis quanto inadequadas à solução de problemas para cujo fundamento

as normas infraconstitucionais são suficientes668.

Nesse tocante, a atuação dos tribunais constitucionais tem se mostrado

bastante criativa na forma de aplicação/concretização do direito (notadamente dos

direitos fundamentais). Especificamente nos campos do controle de

constitucionalidade e da ponderação/harmonização de direitos fundamentais

eventualmente conflitantes, a jurisdição tem empregado técnicas inaplicáveis na

esfera infraconstitucional, como decorrência da substancial diferença estrutural

entre normas constitucionais e infraconstitucionais.

Destacam-se, nessa seara, o emprego da ponderação no lugar da

subsunção, o emprego da regra da proporcionalidade, a interpretação conforme a

Constituição, a declaração parcial de inconstitucionalidade, as decisões que

Humberto Nogueira Alcalá denomina sentenças atípicas669 – ou seja, as

668

“Desde há muito sentiu-se a necessidade de criar mecanismos próprios e diferenciados dos da jurisdição ordinária para as decisões emitidas pela Justiça constitucional” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 281). 669

ALCALÁ, Humberto Nogueira. El Derecho Procesal Constitucional y la Jurisdicción Constitucional em Latinoamerica y sus evoluciones, p. 522 e seguintes. Vale observar que, para o referido autor, as “sentencias de interpretación conforme” integram a categoria de sentencias atípicas. Contudo, tendo em vista o destaque que a interpretação conforme recebe por parte da doutrina nacional, optamos por considerá-la uma categoria à parte.

299

sentenças aditivas, substitutivas e exortativas670 – , o apelo ao legislador e a

possibilidade de modulação dos efeitos (temporais e pessoais) da declaração de

inconstitucionalidade.

O uso da técnica da ponderação foi analisado por ocasião do estudo das

teorias de Dworkin e Alexy. Passamos, pois, a uma breve análise das demais

técnicas mencionadas. Salientamos que algumas dessas técnicas (como a

ponderação e a regra da proporcionalidade) concernem à própria função dos

tribunais constitucionais. Outras (como a modulação de efeitos da declaração de

inconstitucionalidade) restam positivadas no ordenamento brasileiro, consistindo,

assim, numa atividade própria do Supremo Tribunal Federal.

6.12.1 A regra da proporcionalidade

Tida por alguns como princípio, por outros como regra e por outros, ainda,

como postulado671, a (regra da) proporcionalidade constitui ferramenta

fundamental para a superação de eventuais conflitos entre dois direitos

fundamentais constitucionalmente assegurados, hierarquicamente equiparados e

aos quais a Constituição atribui idêntica relevância. Essa regra não se encontra

expressamente positivada na Constituição Federal, mas é uma decorrência lógica

670

Destacamos, desde logo, a inadequação do uso do vocábulo sentença – geralmente empregado para se referir a decisões tomadas, individualmente, por juízes de primeira instância – para a designação das aludidas categorias decisórias. Dada a composição via de regra colegiada dos Tribunais Constitucionais, teria sido melhor que se falasse em acórdãos ou, simplesmente, decisões. Uma vez, porém, que a doutrina adotou o termo sentença para se referir a tais decisões, dele faremos uso, malgrado sua patente imprecisão. 671

“Na linguagem dos juristas brasileiros, de modo geral, está consagrada a expressão ‘princípio da proporcionalidade’. O mesmo ocorre na linguagem das fontes (Lei 9.784, de 29.1.1999, art. 2º, caput – é a lei que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal). Entre os juristas, porém, há exceções. Humberto Bergmann Ávila (‘A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade’, RDA 215/618 e ss.) argumenta que é conceitualmente mais apropriada a expressão ‘postulado da proporcionalidade’; e Virgílio Afonso da Silva (‘O proporcional e o razoável’, RT 798/24-27) a expressão ‘regra da proporcionalidade’. (...) De fato, se se toma como definição operativa de ‘princípio’ aquela de Robert Alexy (...) – princípio como mandamento de otimização –, então, é, por definição, incorreta a expressão ‘princípio da proporcionalidade’, porque, no marco da teoria dos princípios de Robert Alexy, a proporcionalidade é melhor classificada como regra (...). No entanto, em primeiro lugar – e dizer isso já é um truísmo –, a de Alexy não é a única definição operativa possível, e muito menos a única adotada no discurso dos juristas. (...) Em segundo lugar, há uma tendência no discurso jurídico de qualificar como ‘princípios’ normas que são havidas, por razões diversas (ora razões jurídicas, ora razões axiológicas, ora razões empíricas), como muito importantes no ou para o sistema jurídico. Essa parece ser uma explicação plausível para a preferência dos juristas brasileiros (a rigor, não só dos juristas brasileiros)” (STEINMETZ, Wilson. Princípio da proporcionalidade e atos de autonomia privada restritivos de direitos fundamentais, in SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional, p. 11-12.

300

da estrutura principiológica dos direitos fundamentais e da necessidade de

ponderação quando se verificam colisões entre esses direitos fundamentais em

situações concretas672.

A proporcionalidade é, para considerável parte da doutrina, e a nosso ver

de modo equivocado, entendida como sinônimo de razoabilidade. Não são

poucos os autores que equiparam as duas expressões ou mesmo as tratam

indistintamente.

Antes de especificar a distinção entre os dois institutos, externamos desde

logo nossa concordância com a posição de Virgílio Afonso da Silva, para quem a

proporcionalidade constitui uma regra e não um princípio.

Apontamos anteriormente a existência de (pelo menos) dois critérios

distintos para a distinção entre regras e princípios. O critério tradicionalmente

adotado pela doutrina brasileira leva em conta o conteúdo da norma, a relevância

da matéria que regula. O critério adotado por Dworkin e Alexy se baseia na

estrutura formal da norma, sem preocupação com seu conteúdo. Tais critérios,

como visto, são incompatíveis entre si.

Se for adotado o critério tradicionalmente empregado pela doutrina

brasileira, a proporcionalidade pode ser entendida como um princípio. Contudo, a

se adotar o critério elaborado por Dworkin e Alexy, a proporcionalidade não

poderá ser entendida como princípio, na medida em que não se submete ao

processo de ponderação, nem constitui um mandamento de otimização.

A distinção entre princípios e regras a partir de sua estrutura formal nos

parece mais adequada, uma vez que uma distinção pelo critério material

inviabilizaria, em determinadas situações, a ponderação em caso de conflitos com

outros “princípios”, além de gerar insegurança acerca dos critérios que

distinguiriam uma categoria de outra, razão pela qual, a nosso ver, a

proporcionalidade há de ser tratada como regra e não como princípio.

Tércio Sampaio Ferraz Jr., no entanto, reconhece uma aproximação

tamanha entre proporcionalidade e razoabilidade (unificadas na ideia do due

process of law) que chega a fazer referência a uma proporcionalidade razoável673.

Além disso, não lhes reconhece a natureza de regra, atribuindo à

672

“A exigibilidade da regra da proporcionalidade para a solução de colisões entre direitos fundamentais não decorre deste ou daquele dispositivo constitucional, mas da própria estrutura dos direitos fundamentais” (SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais 798, p. 44). 673

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, decisão, dominação, p. 112.

301

proporcionalidade e à razoabilidade a natureza de princípios de princípios674. Com

efeito, Ferraz Jr. assevera que “no Brasil, vieram a ser conotadas, na fórmula do

due process of law, em especial no substantive due process of law, as noções de

razoabilidade com o princípio germânico da proporcionalidade

(Verhältnismässigkeit)”675.

Reiteramos, no entanto, nosso entendimento de que 1) proporcionalidade e

razoabilidade não são sinônimos nem identificam o mesmo fenômeno; e 2) a

proporcionalidade constitui uma regra e não um princípio, pelas razões já

explicitadas. Como afirma Virgílio Afonso da Silva, “o chamado princípio da

proporcionalidade não pode ser considerado um princípio, pelo menos não com

base na classificação de Alexy, pois não tem como produzir efeitos em variadas

medidas, já que é aplicado de forma constante, sem variações”676.

O autor adverte ainda que, embora razoabilidade e proporcionalidade se

aproximem na linguagem cotidiana (ou, na terminologia por ele empregada,

linguagem laica), “quando se fala, em um discurso jurídico, em princípio da

razoabilidade ou em princípio ou regra da proporcionalidade, é evidente que os

termos são revestidos de uma conotação técnico-jurídica e não são mais

sinônimos, pois expressam construções jurídicas diversas. Pode-se admitir que

tenham objetivos semelhantes, mas isso não autoriza o tratamento de ambos

como sinônimos”677.

A regra da proporcionalidade se divide em três sub-regras, ou três passos

para a sua aplicação. A doutrina, pacífica nesse sentido, denomina esses passos

ou sub-regras adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Esses passos são sequenciais. Como adverte Virgílio Afonso da Silva, “a análise

da adequação precede a da necessidade que, por sua vez, precede a da

proporcionalidade em sentido estrito”678. Existe, ainda, uma relação de

subsidiariedade entre esses três momentos.

[A] aplicação da regra da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas as suas três sub-regras. Pode-se dizer que tais sub-regras relacionam-se de forma subsidiária entre si. Essa é uma importante característica, para a qual não se tem

674

Idem, p. 97. 675

Idem, p. 109. 676

SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais 798, p. 26. 677

Idem, p. 28. 678

Idem, p. 34.

302

dado a devida atenção. A impressão que muitas vezes se tem, quando se mencionam as três sub-regras da proporcionalidade, é que o juiz deve sempre proceder à análise de todas elas, quando do controle do ato considerado abusivo. Não é correto, contudo, esse pensamento. É justamente na relação de subsidiariedade acima mencionada que reside a razão de ser da divisão em sub-regras. Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade. Assim, a aplicação da regra da proporcionalidade pode esgotar-se, em alguns casos, com o simples exame da adequação do ato estatal para a promoção dos objetivos pretendidos. Em outros casos, pode ser indispensável a análise acerca de sua necessidade. Por fim, nos casos mais complexos, e somente nesses casos, deve-se

proceder à análise da proporcionalidade em sentido estrito.679

Assim, o primeiro passo para a aplicação da regra da proporcionalidade – a

sub-regra da adequação – consiste em indagar-se se o meio fornecido pelo

legislador é adequado para atingir o objetivo a que o legislador se propôs. Desse

modo, “uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização

não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido”680.

A sub-regra da necessidade, como a própria nomenclatura evidencia,

consiste na aferiação de inexistência de outro(s) meio(s) menos lesivos aos

direitos fundamentais atingidos pelo ato.

Um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M¹, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M² que, tanto quanto M¹, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M¹,

utilizada pelo Estado, não é necessária.681

Empregadas essas duas primeiras sub-regras sem que se tenha chegado à

solução do problema, impõe-se o emprego da proporcionalidade em sentido

estrito, “que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao

679

SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais 798, p. 34-35. 680

Idem, p. 36-37. 681

Idem, p. 37.

303

direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental

que com ele colide e que fundamenta a doção da medida restritiva”682.

Um exemplo extremo pode demonstrar pode demonstrar a importância dessa terceira sub-regra da proporcionalidade. Se, para combater a disseminação da Aids, o Estado decidisse que todos os cidadãos devessem fazer exame para detectar uma possível infecção pelo HIV e, além disso, prescrevesse que todos os infectados fossem encarcerados, estaríamos diante da seguinte situação: a medida seria, sem dúvida, adequada e necessária - nos termos previstos pela regra da proporcionalidade -, já que promove a realização do fim almejado e, embora seja fácil imaginar medidas alternativas que restrinjam menos a liberdade e a dignidade dos cidadãos, nenhuma dessas alternativas teria a mesma eficácia da medida citada. Somente o sopesamento que a proporcionalidade em sentido estrito exige é capaz de evitar que esse tipo de medidas descabidas seja considerado proporcional, visto que, após ponderação racional, não há como não decidir pela liberdade e dignidade humana (art. 5º e 1º, III), ainda que isso possa, em tese, implicar um nível menor de proteção à saúde

pública (art. 6º).683

Verifica-se, assim, que “o exame da terceira sub-regra – a

proporcionalidade em sentido estrito – nada mais é do que um mandamento de

ponderação ou sopesamento”684, na medida em que busca realizar dois direitos

em conflito no maior grau possível para ambos, ainda que leve à prevalência de

um deles no caso concreto.

Portanto, a regra da proporcionalidade consiste numa técnica formalmente

estruturada em três passos (ou sub-regras). Não se confunde, como já afirmado,

com a razoabilidade, que “ou é um dos vários topoi dos quais o STF se serve, ou

uma simples análise de compatibilidade entre meios e fins”685.

6.12.2 Interpretação conforme a Constituição

Como visto anteriormente, a ideia de interpretação conforme

consubstancia, antes de mais nada, um dos princípios de interpretação

682

Idem, p. 38. 683

SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais 798, p. 40-41. 684

Idem, p. 45. 685

Idem, p. 44.

304

constitucional constantes do rol elencado por Canotilho, que, conforme já

apontado, comporta três dimensões686.

Mais do que um princípio de interpretação constitucional, a interpretação

conforme a constituição é também uma técnica decisória, na medida em que

restringe a polissemia ínsita às disposições normativas. Trata-se, inclusive, de

mecanismo de controle de constitucionalidade, como o STF expressamente

reconhece687.

É certo que nem toda norma infraconstitucional, ainda que sujeita a mais

de uma interpretação, está suscetível a ter um determinado sentido fixado como o

único conformado ao texto constitucional. A técnica, como demonstrado

anteriormente, busca afastar as atribuições de sentido a determinado dispositivo

normativo que sejam incompatíveis com a Constituição, fixando, assim, o que se

poderia chamar, ainda que imprecisamente, de “a interpretação correta” do

dispositivo.

Uma vez que as principais características e controvérsias doutrinárias já

foram analisadas anteriormente, reportamo-nos às considerações externadas no

item 6.11.2.7 do presente trabalho, cuja repetição é desnecessária.

6.12.3 Declaração parcial de inconstitucionalidade

Se, no exercício do controle abstrato de constitucionalidade, a

interpretação conforme consubstancia o estabelecimento daquele sentido

compatível com os ditames constitucionais – o que implica o afastamento dos

686

“1) o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas inconstitucionais; (2) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo através dessa interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1226-1227). 687

“O mesmo ocorre quando Corte dessa natureza (constitucional), aplicando a interpretação conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipótese, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto – Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), o que implica dizer que o tribunal constitucional elimina – e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição” (RT – CDC e CP, 1: 314, 1992, P. 330, Rep. n. 1417-7, rel. Min. Moreira Alves, j. 09.12.1987).

305

outros sentidos possivelmente atribuíveis à norma infraconstitucional688 – a

declaração parcial de inconstitucionalidade segue caminho inverso, ou seja, a

decisão judicial determina que um (ou mais de um) sentido(s) que se possa(m)

extrair do campo semântico da norma é (ou são) inconstitucional(is).

Assim, na declaração parcial de inconstitucionalidade, o tribunal

constitucional, ao invés de afirmar qual é o sentido correto (isto é, compatível com

a constituição) do dispositivo, afasta os sentidos possíveis que entende serem

incompatíveis com a constituição. Segundo André Ramos Tavares, “poder-se-ia

considerar, na interpretação conforme, embutida outra modalidade, a declaração

parcial de inconstitucionalidade, sem redução do texto da norma impugnada. É

que na interpretação conforme, como visto, eliminam-se as interpretações

possíveis da norma objeto da ação que sejam incompatíveis com o sentido

constitucional, o que a aproximaria, enquanto técnica, da declaração parcial de

inconstitucionalidade sem redução de texto”689. Não obstante, o autor faz a

seguinte advertência:

Não se deve, contudo, proceder à identificação da interpretação conforme à Constituição com a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.

A interpretação conforme à Constituição não desafia o procedimento do art. 97 da Constituição, que exige que a questão seja submetida ao Pleno dos tribunais ou seu órgão especial. Assim, a interpretação conforme só se confundiria com a declaração de inconstitucionalidade sem redução no controle abstrato.

(...) Inicialmente, embora tenha o STF equiparado ambas as

modalidades, parece, posteriormente, ter-se afastado de tal orientação, o que se verifica no acórdão proferido na medida liminar da ADI 491. Assim, determinadas hipóteses contidas no âmbito da norma são declaradas inconstitucionais e, assim, nulas, o que seria inimaginável realizar-se por meio de mera interpretação conforme à Constituição.

A diferença é realmente sutil. Veja-se o ocorrido na ADI 319.

O resultado, aqui, é de procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade. Na interpretação conforme à

Constituição, o resultado é de improcedência.690

688

Em sentido contrário, André Ramos Tavares afirma que “ao fixar a interpretação conforme, o Tribunal não declara que todas as demais interpretações são inconstitucionais” (in Curso de Direito Constitucional, p. 290). 689

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 290. 690

Idem, p. 290-291.

306

Portanto, embora haja certa proximidade entre as duas técnicas decisórias,

isso não implica absoluta identidade – tanto que, como observado pelo autor, a

interpretação conforme não exige o quórum estabelecido no art. 97 da

Consitutição, por se tratar, em última análise, de uma declaração de

constitucionalidade, enquanto que a declaração parcial estabelece, ao contrário,

um campo de inconstitucionalidade, submetendo-se, por conseguinte, à exigência

contida na aludida regra.

6.12.4 Sentenças aditivas

A doutrina portuguesa classifica as decisões tomadas pelo Tribunal

Constitucional, em sede de controle de constitucionalidade, quanto a seus efeitos,

em sentenças simples e sentenças manipulativas. As primeiras correspondem à

função de legislador negativo do Tribunal Constitucional, ou seja, consistem

naquelas decisões em que, ao reconhecer a inconstitucionalidade de determinado

dispositivo legal, a decisão o retira, geralmente com efeito ex tunc, do

ordenamento jurídico.

Já as sentenças manipulativas extrapolam a função de legislador negativo,

na medida em que inovam no ordenamento jurídico. Segundo Carlos Blanco de

Morais, tais sentenças se subdividem em a) sentenças restritivas dos efeitos

temporais da decisão de inconstitucionalidade; b) sentenças interpretativas de

acolhimento ou condicionais; e c) sentenças portadoras de efeitos aditivos691.

A doutrina brasileira, no entanto, adota classificação distinta, tratando as

sentenças aditivas como sinônimas de sentenças manipulativas, e não a partir de

uma relação gênero-espécie.

Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes, ao tratar da atuação do Supremo

Tribunal Federal perante situações de omissão inconstitucional por parte do Poder

Legislativo, referindo-se ao julgamento conjunto dos Mandados de Injunção ns.

670 e 708, em 2007, assevera, em sede doutrinária, que:

Em 25 de outubro de 2007, o Tribunal, por maioria,

conheceu dos mandados de injunção ns. 670 e 708 e,

691

XAVIER, Taciana. A tutela das omissões relativas (geradas pela violação do princípio da igualdade) através do controle de constitucionalidade por ação, no sistema jurídico brasileiro. In: MORAIS, Carlos Blanco de (org.). As sentenças intermédias da justiça constitucional. Lisboa: AAFDL, 2009. p. 363.

307

reconhecendo o conflito existente entre as necessidades mínimas

de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores

públicos, de um lado, com o direito a serviços públicos adequados

e prestados de forma contínua, de outro, bem assim, tendo em

conta que ao legislador não é dado escolher se concede ou não o

direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada

configuração da sua disciplina, reconheceu a necessidade de uma

solução obrigatória da perspectiva constitucional e propôs a

solução para a omissão legislativa com a aplicação, no que

couber, da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de

greve na iniciativa privada.

Assim, o Tribunal, afastando-se da orientação inicialmente

perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência

da omissão legislativa para a edição de norma regulamentadora

específica, passou, sem assumir compromisso com o exercício de

uma típica função legislativa, a aceitar a possibilidade de uma

regulação provisória pelo próprio Judiciário.

O Tribunal adotou, portanto, uma moderada sentença de

perfil aditivo, introduzindo modificação substancial na técnica de

decisão do mandado de injunção.692

Segundo Mendes, “as sentenças aditivas ou modificativas são aceitas, em

geral, quando integram ou completam um regime previamente adotado pelo

legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora solução

constitucionalmente obrigatória”693. Constata-se, portanto, uma identidade entre

sentença aditiva e sentença modificativa no entendimento do autor.

O entendimento esposado pelo autor fora inicialmente exposto no

julgamento do Mandado de Injunção nº 708, no qual Mendes, então relator, invoca

a doutrina de Rui Medeiros:

Especialmente no que concerne à aceitação das sentenças aditivas ou modificativas, esclarece Rui Medeiros que elas são em geral aceitas quando integram ou completam um regime previamente adotado pelo legislador ou ainda quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora “solução

692

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional no Brasil: o problema da omissão legislativa inconstitucional, p. 18-19. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaArtigoDiscurso/anexo/Lituania.pdf> Acesso em 18.10.2015. 693

Idem, p. 19.

308

constitucionalmente obrigatória” (MEDEIROS, Rui, A decisão de

inconstitucionalidade, cit., p. 504).694

As sentenças aditivas, portanto, constituem uma forma de decisão que

extrapola a propalada função de legislador negativo dos Tribunais Constitucionais,

na medida em que visam suprir uma omissão inconstitucional gerada a partir da

inércia do Poder Legislativo em dar concretude a direitos constitucionalmente

assegurados. Nesse sentido, a mudança de paradigma adotada pelo STF a partir

do julgamento conjunto dos Mandados de Injunção ns. 670 e 708, em 2007,

constitui um claro exemplo dessa modalidade decisória, dentre muitos outros que

podem ser encontrados na jurisprudência do STF695.

6.12.5 Sentenças substitutivas

As sentenças aditivas não se confundem com as sentenças substitutivas,

também denominadas manipuladores, que, para além de simplesmente suprir a

omissão legislativa que gera a inconstitucionalidade, promove uma modificação

expressa do dispositivo cuja inconstitucionalidade se suscita.

A distinção entre as sentenças aditivas e as substitutivas é explicitada com

bastante clareza por Edilson Pereira Nobre Júnior:

Desde logo, tenho por oportuno distinguir as decisões aditivas, a que se detém este escrito, daquelas denominadas substitutivas ou manipuladoras. Nestas a corte constitucional não se restringe a preencher uma omissão, mas sim modifica, de maneira explícita, o preceito impugnado, patrocinando, desde logo, a inserção na norma invalidada da única norma reputada constitucionalmente legítima, a qual, no entanto, não tinha nenhuma existência no sistema jurídico antes do pronunciamento jurisdicional.

A menção aos estudiosos do tema torna fácil a compreensão da dessemelhança. Augusto Cerri (2001, p. 241, tradução nossa), com clareza, enfoca a distinção: “Ao lado da decisão aditiva, está a substitutiva: neste caso, a Corte não se limita a censurar uma omissão e, portanto, a estender (ou, se é preferido, sugere a extensão de) uma norma (ou de um princípio) que pré-existe, mas, antes disto, cria essa mesma o ‘vácuo’ legislativo com uma decisão de acolhimento”.

Acentuando a sua pouca frequência perante as aditivas, as sentenças substitutivas, no dizer de Roberto Bin e Giovanni Pitruzzela (2002, p. 425, tradução nossa), “são as decisões com

694

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=558551> Acesso em 18.10.2015. 695

Citem-se, à guisa de exemplo, as decisões proferidas nas ADI’s ns. 1.351, 1.354 e 1.923 (MC).

309

as quais a Corte declara a ilegitimidade duma disposição legislativa na parte em que prevê X ao invés de Y. Com aquelas a Corte ‘substitui’ uma locução da disposição, incompatível com a Constitui- ção, com outra, constitucionalmente correta”.

A não admissibilidade de tal prática, no solo pátrio, parece sinalizada na ADIN 1.822-4/DF (BRASIL, 1999), destinada ao ataque da expressão “um terço” dos incisos I e II do §§2º a 4º do art. 47 da Lei 9.504/97.

O Supremo Tribunal Federal reputou incabível a via eleita, anotando na respectiva ementa, quanto à inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei 9.504/97, que “a declaração de inconstitucionalidade, se acolhida como foi requerida, modificará o sistema da Lei pela alteração do seu sentido, o que importa sua impossibilidade jurídica, uma vez que o Poder Judiciário, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, só atua como

legislador negativo e não como legislador positivo.”696

Portanto, ao contrário das sentenças aditivas, que, como visto no item

anterior, têm encontrado bastante acolhida na jurisprudência brasileira, o uso das

sentenças substitutivas não tem sido admitido pelo STF no sistema brasileiro.

6.12.6 Sentenças exortativas

A doutrina italiana costuma dividir o que denomina de sentenças

constitucionais em quatro categorias: (a) sentenças exortativas (“sentenze

comandamento”); (b) sentenças interpretativas (“sentenze interpretative”); (c)

sentenças aditivas (“sentenze additive”); e (d) sentenças substitutivas (“sentenze

sostitutive”)697.

As sentenças aditivas e substitutivas foram analisadas nos itens anteriores.

As chamadas sentenças interpretativas identificam-se com o que, no Brasil, se

conhece por declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto.

As sentenças exortativas, como o próprio nome indica, a par de

reconhecerem a inconstitucionalidade de determinada lei ou dispositivo legal,

mantêém a sua eficácia até que o Poder Legislativo reforme a legislação,

sanando a inconstitucionalidade.

Foi o que o STF fez, por exemplo, no julgamento da ADI nº 2.240-7/BA,

ocorrido em 2007. Na decisão, a Corte reconheceu a inconstitucionalidade da

criação do município baiano de Luís Eduardo Magalhães, por inobservância do

696

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Sentenças aditivas e o mito do legislador negativo. Revista de Direito Público, vol. 1, nº 13, 2006, p. 121-122. 697

CUOCOLO, Fausto. Principi di diritto constituzionale, Milano: Giuffrè, 1996, p. 755. CERRI, Augusto Cerri. Corso di giustizia costituzionale, 4.ª ed., Milano: Giuffrè, 2004, p. 215 e s.

310

art. 18, § 4º da Constituição Federal. A inobservância dos requisitos

constitucionalmente impostos para a criação de novos municípios, no caso do

município de Luís Eduardo Magalhães, levou à decisão unânime acerca da

inconstitucionalidade da criação desse município. Contudo, a Corte, por maioria

de votos, e com fundamento no art. 27 da lei nº 9.868/99, manteve a vigência do

ato declarado inconstitucional pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, até que o

legislador estadual estabelecesse novo regramento sanando a

inconstitucionalidade698.

6.12.7 O apelo ao legislador

A técnica do apelo ao legislador é empregada quando o tribunal

constitucional, ao proceder ao controle de constitucionalidade, reconhece que a

norma ou ato impugnado ainda é constitucional, sendo necessária, contudo, a

atuação do legislador para que a norma ou ato não venha a se tornar

inconstitucional. A técnica foi desenvolvida a partir da jurisprudência da Corte

Constitucional alemã, como informa Gilmar Mendes:

Não raro reconhece a Corte que a lei ou a situação jurídica não se tornou “ainda” inconstitucional, conclamando o legislador a que proceda – às vezes dentro de determinado prazo – à correção ou à adequação dessa “situação ainda constitucional” (Appellentscheidung). Tanto quanto é possível precisar, a decisão proferida em 4 de maio de 1954 sobre o Estatuto do Sarre (Saarstatut) constitui o ponto de partida para o desenvolvimento da Appellentscheidung na jurisprudência da Corte Constitucional. Ficou assente, no referido julgado, que as providências legislativas empreendidas com vistas a superar o “estatuto de ocupação” – ainda que se mostrassem imperfeitas ou incompletas – contribuíam para uma gradual compatibilização da situação jurídica com a Lei Fundamental e deveriam, por isso, ser

consideradas ainda constitucionais (noch verfassungsgemäss).699

Celso Bastos afirma que, com o emprego dessa técnica, o Judiciário busca

não declarar a inconstitucionalidade de uma norma sem que antes se faça um

698

Esse “novo regramento” nunca foi criado e, ao fim do prazo concedido pelo STF, o Congresso Nacional aprovou a EC nº 59, de 18 de dezembro de 2008, que, inserido o art. 96 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou que “Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação”. 699

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional, p. 336.

311

apelo ao legislador, para que este promulgue uma norma que supra a

inconstitucionalidade:

Esta espécie de decisão perde muito de sua importância no sistema jurídico pátrio, na medida em que, uma vez reconhecida inconstitucional a norma, caberá à Corte assim pronunciá-la, o que não obsta que indique o caminho que poderia o legislador adotar na posterior regulamentação da matéria.

O tema apresenta certa relevância no caso da ação de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, a decisão contém uma exortação ao legislador para que, abandonando seu estado de inércia, ultime suas tradicionais funções, regulando determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Carta Magna. A decisão, no caso, apresenta cunho mandamental, no que é capaz de colocar em mora a ação do legislador. Assim, o Tribunal determina que o legislador proceda às providências requeridas,

limitando-se a constatar a inconstitucionalidade da omissão.700

No Brasil, pode-se apontar como exemplo do emprego dessa técnica o

julgamento proferido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 204.193-9/RS,

proposto em face do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul,

que recusara a inclusão dos maridos das recorrentes como dependentes. Em seu

voto, o Ministro Relator Carlos Velloso invocou textualmente o apelo ao legislador

para dar provimento ao recurso, argumentando que “a extensão automática da

pensão ao viúvo, em decorrência do falecimento da esposa-segurada, assim

considerado aquele como dependente desta, exige lei específica, tendo em vista

as disposições inscritas no art. 195, caput, e seu § 5º, e art. 201, V, da

Constituição Federal”701.

6.12.8 A modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade

É tradicional na doutrina o entendimento segundo o qual a

inconstitucionalidade se equipara à nulidade da lei ou ato normativo, donde

decorre a imprescritibilidade dos processos objetivos de controle de

constitucionalidade (na medida em que a inconstitucionalidade não é sanada pelo

passar do tempo) e o efeito em regra ex tunc das decisões judiciais nas quais a

inconstitucionalidade é reconhecida.

700

BASTOS, Celso. Hermenêutica e interpretação constitucional, p. 174. 701

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=239206> Acesso em 19.10.2015.

312

Contudo, no ordenamento jurídico brasileiro, a edição da Lei nº 9.868/99,

que regulamentou os aspectos processuais das ações diretas de

inconstitucionalidade e das Ações Declaratórias de constitucionalidade, afastou

essa identificação automática e (até então) necessária, na medida em que o art.

27 da lei traz a seguinte disposição:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

O dispositivo, portanto, permite a modulação temporal e pessoal dos

efeitos das decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade no

Brasil.

A modulação pessoal, ou seja, a possibilidade de que, ao restringir os

efeitos da decisão, estes possam ser restritos a (ou podem não incidir em relação

a) determinadas pessoas ou categorias de pessoas, implica, potencialmente, uma

exceção à eficácia erga omnes das decisões proferidas em controle abstrato, bem

como uma mitigação da ideia de tribunal constitucional como legislador negativo.

Como apontado anteriormente, a modulação dos efeitos da decisão pode

ser determinada numa sentença exortativa. Foi o que ocorreu no julgamento da já

citada ADI nº 2.240-7/BA, decisão na qual o STF, embora reconhecendo a

inconstitucionalidade dos atos normativos de criação do município de Luís

Eduardo Magalhães, diferiu os efeitos da decisão – ou seja, a incidência na

realidade concreta do reconhecimento da inconstitucionalidade das normas

impugnadas – para 24 meses após a sua publicação.

Todas as técnicas apontadas nos itens anteriores evidenciam as

particularidades do processo decisório concernente às normas constitucionais,

uma vez que tais técnicas não teriam utilidade na solução dos problemas jurídicos

que envolvem apenas as normas infraconstitucionais, desprovidas das

peculiaridades materiais e da estrutura principiológica daquelas.

Tais técnicas, para além de demonstrarem a relevância da atuação dos

tribunais constitucionais, robustecem ainda o argumento central do presente

313

estudo, a saber, a existência de uma especificidade ínsita à interpretação jurídica

constitucional, que – repita-se – embora tome por ponto de partida a interpretação

jurídica geral, nela não se exaure.

É patente, como se pode ver, que o espaço de criação do juiz

constitucional é substancialmente mais amplo do que o conferido pelo

ordenamento ao juiz ordinário. Nesse tocante, Gilmar Mendes afirma que:

O Supremo Tribunal Federal tem evoluído na adoção de novas técnicas de decisão no controle abstrato de constitucionalidade. Além das muito conhecidas técnicas de interpretação conforme à Constituição, de declaração de nulidade parcial sem redução de texto, ou de declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, de aferição da “lei ainda constitucional” e de apelo ao legislador, são também muito utilizadas as técnicas de limitação ou restrição de efeitos da decisão, o que possibilita a declaração de inconstitucionalidade com efeitos pro futuro a partir da decisão ou de outro momento que venha a ser determinado pelo tribunal9 .

A legislação que regulamenta a ADI e a ADC (Lei n° 9.868/99) prevê a possibilidade do Plenário do Tribunal modular os efeitos das decisões no âmbito do controle abstrato de normas (art. 27).

A utilização dessa técnica de modulação de efeitos permite ao STF declarar a inconstitucionalidade da norma: a) a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstitucionalidade ex nunc); b) a partir de algum momento posterior ao trânsito em julgado, a ser fixado pelo Tribunal (declaração de inconstitucionalidade com eficácia pro futuro); c) sem a pronúncia da nulidade da norma; e d) com efeitos retroativos, mas preservando determinadas situações. Nesse contexto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem evoluído significativamente nos últimos anos, sobretudo a partir do

advento da Lei n° 9.868/99.702

Tantas e tão profundas são as pecularidades, estruturais, materiais e

processuais, encontradas apenas e tão somente na interpretação e aplicação das

normas constitucionais, que não nos parece possível sustentar a inexistência de

uma interpretação jurídica constitucional, ainda que, como exaustivamente

reiterado, esta jamais deixe de ser uma interpretação jurídica. Até porque as

normas constitucionais são, antes de tudo e malgrado suas particularidades,

normas jurídicas.

702

MENDES, Gilmar Ferreira. Decisões importantes do Supremo Tribunal Federal, p. 3. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_br/anexo/Decisoes_importantes1.pdf> Acesso em 19.10.2015.

314

7 CONCLUSÃO

Como afirmado no início deste trabalho, há considerável número de

autores que não reconhecem a existência de uma especificidade na interpretação

constitucional, ou seja, da interpretação das normas constitucionais em relação às

normas infraconstitucionais.

Externamos, desde o início do trabalho, nosso entendimento no sentido de

que existe uma interpretação autenticamente constitucional. Dito de outro modo, a

interpretação jurídica constitucional é substancialmente distinta da interpretação

jurídica geral, embora ambas sejam espécies do gênero interpretação jurídica.

Destacamos posições doutrinárias segundo as quais a diferença entre as

duas espécies de interpretação se daria antes no campo da intensidade, e não da

especialidade; bem como o entendimento de que os chamados princípios típicos

de interpretação constitucional não diferem, em substância, dos elementos

hermenêuticos clássicos colacionados por Savigny.

Procuramos refutar tais posições, e outras similares, apontando as

distinções estruturais, de forma e conteúdo, existentes entre as normas

constitucionais e as normas infraconstitucionais.

Parece bastante evidente que dispositivos normativos que possuem

estruturas distintas não podem ser interpretados a partir dos mesmos métodos. A

própria constituição, enquanto sistema, apresenta uma estrutura sistemática muito

diversa dos sistemas infraconstitucionais, tais como o Código Civil ou o Código

Penal.

Na codificação infraconstitucional, não se vislumbram, no interior de cada

subsistema, as tensões dialéticas inevitáveis nos sistemas constitucionais das

sociedades plurais. Tampouco se verifica, nos dispositivos infraconstitucionais, a

estrutura diferenciada e as dimensões axiológica e política que marcam os

dispositivos constitucionais.

Assim, ainda que tanto a interpretação jurídica constitucional quanto a

interpretação jurídica geral sejam espécies do gênero interpretação jurídica, uma

vez que as normas constitucionais não deixam de ser normas jurídicas, as

peculiaridades materiais e estruturais destas não permitem que os problemas

315

constitucionais sejam solucionados a partir do método subsuntivo, tal como ocorre

com as normas infraconstitucionais.

Princípios constitucionais, normas programáticas e direitos fundamentais

têm estrutura própria, distinta das normas de conduta encontradas no

ordenamento infraconstitucional. Por esta razão, o conflito entre normas

constitucionais, como decorrência dessa estrutura peculiar, não se soluciona por

meio das técnicas hermenêuticas tradicionais de superação de antinomias, e sim

pelo método da ponderação, que não implica a retirada de qualquer das normas

conflitantes do ordenamento jurídico, mas a prevalência de uma delas no caso

concreto.

Esta e as demais circunstâncias delineadas ao longo do trabalho

evidenciaram que a interpretação jurídica constitucional é essencialmente distinta

da interpretação jurídica geral, ainda que a tome como ponto de partida. Este é o

ponto de congruência entre as duas modalidades interpretativas. Contudo, a

interpretação constitucional ultrapassa esse ponto de congruência e segue além.

Os autores que não veem diferença entre a interpretação jurídica geral e a

interpretação jurídica constitucional parecem centralizar suas análises apenas

nesse ponto de congruência, o que, evidentemente, é inadequado, pois, se assim

fosse, os casos difíceis a que Alexy faz referência não encontrariam solução

jurídica eficiente.

Tampouco nos convence o argumento de que se os direitos fundamentais

estivessem previstos em legislação ordinária, mesmo com estrutura

principiológica, sua interpretação não seria diferente da interpretação jurídica em

geral. Em primeiro lugar, porque a estrutura principiológica decorre de sua

natureza materialmente constitucional, ou seja, do fato de que os direitos

fundamentais se encontram em documentos jurídico-políticos que, por sua própria

natureza e estrutura, acomodam interesses não raro contrapostos e conflitantes.

Essa estrutura, tipicamente constitucional, não seria encontrada na esfera

infraconstitucional, porquanto as normas infraconstitucionais regulam condutas.

Isso não significa que não haja direitos fundamentais no ordenamento

jurídico “ordinário”. Estes, no entanto, quando previstos em documentos

meramente “legais” (e não constitucionais), são 1) especificações de direitos

fundamentais positivados constitucionalmente sob a forma principiológica; e 2)

316

positivados na forma de normas de conduta e não de princípios (e sujeitos, por

conseguinte, à subsunção e não à ponderação).

Dito de outro modo, se, como temos sustentado ao longo do trabalho, as

normas constitucionais se distinguem das infraconstitucionais, dentre outros

aspectos, por sua estrutura formal, não faz sentido contestar a existência de uma

interpretação autenticamente constitucional com o argumento de que, caso as

mesmas normas, com a mesma estrutura, estivessem na legislação ordinária, a

interpretação seria mera interpretação legal e não constitucional. Ora, se tais

direitos estivessem positivados na legislação ordinária, não teriam a estrutura

peculiar encontrada nas constituições, assumindo a “forma” de normas de

conduta, passíveis, assim, de interpretação a partir do método subsuntivo.

Em suma, os argumentos apresentados pela doutrina que nega a

existência de uma interpretação genuinamente constitucional não nos

convencem.

Por todo o exposto, parece não haver dúvida acerca da existência de uma

interpretação autenticamente constitucional, pautada por uma metodologia

própria, que, conquanto se construa a partir dos cânones hermenêuticos

tradicionais, colacionados por Savigny em seu Sistema de 1840, guarda uma

especificidade própria.

As normas constitucionais, repita-se, são dotadas de uma estrutura própria,

distinta das demais normas constantes do ordenamento jurídico. Além de se

dividirem nas categorias de regras e princípios, são marcadas por uma dimensão

política inexistente703 nas normas infraconstitucionais.

A estrutura principiológica, a forte carga axiológica, a dimensão política, a

circunstância de inexistirem normas que lhes sejam hierarquicamente superiores

na ordem jurídica704, a condição de chave de fechamento da ordem jurídica, todas

essas qualidades distinguem ontologicamente as normas constitucionais das

infraconstitucionais.

Os métodos da interpretação jurídica geral foram desenvolvidos sob a

égide do Estado Liberal, numa conjuntura em que o universo jurídico orbitava em

703

Ou, na ambiência infraconstitucional, existente de forma tão distinta que não se pode afirmar que se trata da mesma dimensão política encontrada nas normas constitucionais. 704

A norma hipotética fundamental a que alude Kelsen em sua Teoria Pura não integra o ordenamento positivo, razão pela qual, mesmo que se acolha a teoria kelseniana acerca da existência dessa norma, não se pode considerá-la formalmente parte da ordem jurídica.

317

torno do direito privado (notadamente do direito civil). Parece-nos bastante

evidente que o modelo hermenêutico desenvolvido no bojo do Estado Liberal,

voltado precipuamente ao direito privado e às relações privadas, não pode ser

entendido como o mesmo modelo hermenêutico apto a solucionar os problemas

jurídicos que ocorrem no Estado de Bem-estar Social, pautado por uma

constituição principiológica, programática e dirigente, no qual os direitos

fundamentais (e portanto a relação entre Estado e indivíduo, e não entre os

próprios indivíduos) ocupam o centro dos ordenamentos jurídicos.

As radicais diferenças entre os dois modelos – O Estado liberal e

positivista, de um lado, e o Estado Social e principalista e “dirigente”, do outro –

não permitem que, como pretende parte da doutrina, se acolha sem restrições o

entendimento de que não há uma distinção substancial entre a interpretação

jurídica ordinária e a interpretação constitucional.

As diferenças entre as normas constitucionais e as normas

infraconstitucionais são profundas, tanto em conteúdo quanto em estrutura. A

ambiência do neoconstitucionalismo é substancialmente diferente do ambiente do

positivismo jurídico, no bojo do qual a hermenêutica tradicional se desenvolveu.

Os valores das sociedades, especialmente no que concerne aos direitos

fundamentais e à relação entre Estado e indivíduo – se alteraram radicalmente. O

fenômeno da globalização levou à internacionalização do direito constitucional e à

constitucionalização do direito internacional.

Normas constitucionais ainda são normas jurídicas. Portanto, a

interpretação constitucional ainda é uma espécie de interpretação jurídica. Não é

a mesma espécie de interpretação, porém, empregada para a extração de sentido

das normas infraconstitucionais (o que temos chamado, ao longo deste trabalho,

de interpretação jurídica geral). Donde podemos concluir, com bastante

segurança, que, a despeito das opiniões em sentido contrário, existe, efetiva e

indiscutivelmente, uma interpretação autenticamente constitucional, que toma os

cânones hermenêuticos tradicionais como pontos de partida para a construção de

uma metodologia própria, apta a solucionar problemas que as normas

constitucionais – e apenas estas – geram e que não encontram solução no

emprego do método subsuntivo.

Duas observações acerca da especificidade da interpretação

constitucional, no entanto, são fundamentais.

318

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que nem todas as normas

constantes da constituição são interpretadas de forma distinta das normas

infraconstitucionais. A existência de uma interpretação autenticamente

constitucional, nos termos defendidos neste trabalho, não implica a afirmação de

que toda e qualquer norma constitucional, pelo só fato de estar na constituição,

esteja sujeita às peculiaridades da interpretação constitucional.

Uma vez que, como reiteradamente afirmado, as técnicas hermenêuticas

tradicionais são o ponto de partida para a interpretação constitucional, é evidente

que, quando as normas constitucionais assumem estrutura idêntica à das normas

infraconstitucionais – em geral, na classificação de Alexy, quando se trata de

regras e não de princípios – a técnica da subsunção é suficiente para a adequada

aplicação de tais espécies normativas.

Esta é a razão pela qual Inocêncio Mártires Coelho afirma que “mesmo

entre os maiores entusiastas da especificidade da interpretação constitucional,

jamais se encontrou alguém disposto a afirmar que todas as disposições

constitucionais – aí compreendidas as de organização e as de atribuição de

competências – e não apenas os enunciados de princípios, exigiriam métodos

e/ou critérios hermenêuticos distintos dos adotados para a interpretação das leis

em geral”705, embora assevere que “a rigor, a especificidade da interpretação

constitucional se restrinja à parte dogmática as constituições, isto é, à parte na

qual estão compendiados os direitos fundamentais, interpretando-se os preceitos

restantes de acordo com os ‘métodos’ tradicionais”706.

Assim, apenas o que o autor denomina de parte dogmática dos textos

constitucionais se sujeita a uma interpretação genuinamente constitucional.

Quando as normas, mesmo constitucionais, ostentarem a estrutura de regras, ou

seja, descreverem condutas e suas consequências jurídicas, sua interpretação se

dará pelos métodos hermenêuticos clássicos.

Embora concordemos com essa posição, uma ressalva nos parece

relevante: ainda que excepcionalmente, será possível que também as regras

constitucionais sejam interpretadas de forma distinta das normas

infraconstitucionais, não por sua estrutura aberta (até porque, nessa hipótese, a

705

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, p. 35. 706

Idem, p. 31.

319

estrutura das regras não será distinta nas esferas constitucional e legal), mas por

sua dimensão política e por sua posição hierarquicamente superior.

Exemplos disso são os votos, felizmente vencidos, dos ministros Gilmar

Mendes e Eros Grau na Reclamação nº 4.335/AC (item 5.2.9 deste trabalho).

Nesses votos, os aludidos ministros defendem a ocorrência de mutação

constitucional em relação ao sentido atribuível ao inciso X do art. 52 da

Constituição Federal de 1988. Esse dispositivo trata de uma competência do

Senado Federal, atribuindo-lhe a função de “suspender a execução, no todo ou

em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo

Tribunal Federal”.

Embora se trate de relevante norma de organização dos Poderes da

República brasileira, sendo, por conseguinte, materialmente constitucional, não se

pode afirmar que esse dispositivo tenha estrutura principiológica ou programática.

Estruturalmente, trata-se de uma regra que, por isso, deveria ser interpretada a

partir dos cânones hermenêuticos tradicionais. Ainda assim, em razão de sua

dimensão política (inexistente, no sentido aqui atribuído, nas normas

infraconstitucionais), dois ministros do STF entenderam cabível interpretá-la à luz

de uma suposta mutação constitucional – que é uma técnica de interpretação

especificamente constitucional. E, conquanto os demais ministros não tenham

acompanhado esse peculiar entendimento, de seus votos é possível inferir o

reconhecimento da possibilidade de mutação constitucional sobre regras

constitucionais. Assim, a afirmação de que a interpretação genuinamente

constitucional concerne apenas à parte dogmática da constituição, embora

correta, não pode ser entendida como regra absoluta.

Em segundo lugar, os autores que reconhecem a existência de uma

interpretação autenticamente constitucional, fazendo-o a partir das diferenças

estruturais e materiais entre normas constitucionais e infraconstitucionais,

frequentemente apontam, dentre essas diferenças entre as duas espécies de

normas, a natureza hierarquicamente superior das normas constitucionais.

Essa é uma característica inegável dos dispositivos constitucionais (nos

Estados que adotam constituições escritas e rígidas) e sem dúvida integra a

estrutura peculiar que justifica a existência de uma interpretação propriamente

constitucional. Não obstante, é preciso ter em mente sempre que essa posição

hierarquicamente privilegiada concerne à ordem jurídica interna de determinado

320

Estado. Como apontado no capítulo 3, o constitucionalismo atual vive a plenitude

da constitucionalização do direito internacional e da internacionalização do direito

constitucional.

Assim, no transconstitucionalismo ou constitucionalismo em rede que

marca o atual momento, no qual as ordens jurídicas internas dialogam com os

sistemas normativos e as instâncias decisórias supranacionais, essa hierarquia

superior não implica prevalência absoluta das normas constitucionais em toda e

qualquer situação, até porque, como procuramos demonstrar, eventualmente

sistemas nacionais e supranacionais fornecerão respostas distintas para um

mesmo problema jurídico sobre o qual incidem concomitantemente. O conflito daí

resultante há de ser solucionado, como visto, por meio do diálogo entre os

sistemas, diálogo este cujas tensões não se solucionam por meio do critério

hierárquico (inexistente entre tais searas).

Por outro lado, a constituição é o ponto de convergência (ou, nos dizeres

de Niklas Luhmann e Marcelo Neves, o acoplamento estrutural) entre o direito e a

política, e a inter-relação entre esses sistemas – inclusive para fins de aceitação

dos sistemas supranacionais nas ordens nacionais – constitui um elemento

inegavelmente político da atividade estatal. Diante disso, é relevante a função dos

tribunais constitucionais – e, por conseguinte, da interpretação constitucional – na

calibragem das tensões que surgirem entre sistemas nacionais e supranacionais,

uma vez que a tais tribunais compete a guarda e a garantia de efetividade das

normas constitucionais e, por conseguinte, a palavra final no que concerne à

interpretação constitucional. Nessa seara, destaca-se a relevância do controle de

convencionalidade.

Em síntese, essa hierarquia superior das normas constitucionais,

característica que as difere estruturalmente das normas infraconstitucionais e que,

por isso, contribui para a configuração de uma interpretação autenticamente

constitucional, há de ser compreendida em sua correta dimensão, ou seja, como

incidente apenas e tão somente no âmbito interno dos Estados e à luz dos

ordenamentos jurídicos nacionais. Inexistente a solução de eventuais tensões

entre ordens nacionais e supranacionais a partir do critério hierárquico, sobreleva

a importância dos tribunais constitucionais (e por conseguinte da própria

interpretação constitucional) para a superação de antinomias porventura

constatadas.

321

Feitas tais observações, acreditamos estar demonstrado que, a despeito

dos entendimentos em sentido contrário, o quadro exposto ao longo do presente

trabalho não deixa dúvida alguma acerca da existência de uma interpretação

especificamente constitucional, a qual, embora parta dos cânones hermenêuticos

tradicionais, neles não se esgota, dada a indiscutível insuficiência de tais cânones

para a solução dos problemas constitucionais, em razão das substanciais

diferenças estruturais e materiais entre as normas constitucionais e as demais

normas constantes do ordenamento jurídico.

322

REFERÊNCIAS

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