prÁticas pedagÓgias na educaÇÃo infantil: … · central era observar quais as estratégias os...
TRANSCRIPT
PRÁTICAS PEDAGÓGIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PENSANDO
OUTROS ELEMENTOS PARA O DEBATE
O presente painel vinculado ao subeixo 1: Didática: relação teoria /prática na formação
escolar, procura discutir, a partir da concepção de educação infantil como direito
público subjetivo, as práticas pedagógicas na educação infantil. Tendo esse objetivo
como organizador do painel, o primeiro texto procura, a partir de uma pesquisa recente
junto a alguns municípios de grande porte do sul do país, refletir tanto sobre as
estratégias que esses municípios estão adotando para atender a lei da obrigatoriedade da
educação a partir dos quatros anos; quanto às repercussões dessas estratégias na
organização e funcionamento dos centros de educação infantil, de modo particular nas
práticas pedagógicas. Seguindo as análises desse estudo, os resultados apontam para um
perigoso processo de ratificação de práticas há muito combatidas na área de educação
infantil. Dessa forma, se torna urgente, entre outras reflexões, repensar os estágios
curriculares nos cursos de pedagogias, tema desenvolvido pelo segundo trabalho que
compõe o presente painel. Dessa forma, o texto procura ponderar sobre o papel do
estágio nos cursos de Pedagogia e sua função como espaço de desconstrução de práticas
assistencialistas, higienistas e escolarizantes e, ao mesmo tempo, como espaço de
construção de estratégias didáticas que garantam a organização do tempo, dos espaços,
dos materiais e de suas ações respeitando o direito das crianças à uma educação de
qualidade. A partir dessas discussões, no terceiro texto aprofunda-se as reflexões sobre
como seria uma prática pedagógica que rompa com a forma escolar tradicional
iconoclasta e que, substitua as explicações e informações das coisas e do mundo pela
experiência do corpo com as coisas no mundo; considerando que as crianças não sabem
“menos”, antes possuem modos diferentes de saber. Assim, entende-se que em época de
definição de uma Base Nacional Comum Curricular, tais discussões são pertinentes para
se pensar a didática para educação infantil.
Palavras-Chave: Práticas Pedagógicas, Educação Infantil, Políticas Públicas.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3597ISSN 2177-336X
2
A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA PÚBLICA E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Rosânia Campos
Resumo: O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa desenvolvida junta aos três
maiores municípios dos Estados de Santa Catarina e do Rio Grande Sul, cujo objetivo
central era observar quais as estratégias os municípios estavam adotando para adequar-
se as novas exigências legais, sobretudo a obrigatoriedade da educação a partir dos
quatros anos. De modo especifico, esse artigo procura discutir quais as repercussões de
uma dessas estratégias nas práticas pedagógicas presentes nas instituições de educação
infantil. Seguindo essa perspectiva, compreender as estratégias implica não apenas
analisar as políticas, os programas e/ou as ações adotadas pelos municípios, mas
também inquirir quais as concepções, em especial, de educação infantil, sustentam essas
estratégias. Em outras palavras, nesse artigo procuramos articular/relacionar as práticas
educativas com as políticas públicas para educação infantil, a partir das considerações realizadas
por Dale (2004, p. 439) quando questiona: a) a quem é ensinado o quê, como, por quem e
em que circunstâncias? b) como, por quem e através de que estruturas, instituições e
processos são definidas essas coisas, como é que são governadas, organizadas e geridas?
c) quais são as consequências sociais e individuais destas estruturas e processos? E,
seguindo essa orientação, os resultados indicam que, no cenário atual, se faz necessário
retomar alguns princípios da educação infantil, como a defesa de ser essa etapa um
direito das famílias e das crianças, não ser essa etapa uma antecipação da escolarização
e a urgência em se superar a histórica divisão de atendimentos, caracterizados muitas
vezes pela situação econômica da família.
Palavras-chave: Políticas Públicas para educação Infantil; Educação Infantil. Prática
pedagógica
Após 26 anos da Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtien, 1990),
16 anos do Fórum de Dakar (Dakar, 2000), encerramento do Plano nacional de
Educacional (Lei N° 10.172/2001) ainda estamos distante em atingir as metas definidas
nesses encontros e na própria lei. A Educação infantil ainda configura como um grande
desafio para vários países, dentre esses, o Brasil. E, ainda que há vinte anos esse etapa já
seja reconhecida como compondo a educação básica brasileira, observamos que não
foram superadas várias concepções, tanto no contexto da prática, quanto no contexto da
política pública. E, ainda que pese os avanços teóricos, metodológicos e dos próprios
índices de atendimento nessa etapa, muitos ainda são os desafios e as lutas necessárias
para a consolidação de uma educação infantil gestada na lógica de direito para crianças
e famílias.
Esses desafios tornam-se ainda maiores quando consideramos que, muitas das
orientações emanadas dos relatórios dos organismos internacional indicam a educação
infantil como uma estratégia e não como um direito; isto é, os relatórios e documentos
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3598ISSN 2177-336X
3
orientadores, sobretudo os emitidos pelos organismos internacionais, como UNESCO,
UNICEF, BANCO MUNDIAL, difundem uma concepção de educação infantil a partir
de duas lógicas: a) antecipação escolar; b) estratégia de alívio a pobreza1. A repercussão
dessa concepção pode ser observada em várias ações e políticas desenvolvidas nos
países signatários, dentre estes o Brasil. Nesse sentido, observamos, nas últimas décadas
do século XX e a primeira do século XXI, várias modificações no âmbito legal do
direito a educação no Brasil, de modo especial, em 2006, quando foi promulgada a Lei
Nº 11.274 que alterou a redação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei Nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que passaram a estabelecer as diretrizes e bases da educação
nacional, dispondo sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental, com
matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade, a partir da data de sua publicação; e
a lei N°12.796, de 2013, que determina a obrigatoriedade da matricula a partir dos
quatros anos, sendo que o prazo para os municípios se adequarem a lei será até 2016.
Essas modificações legais tiveram grandes impactos tanto no aspecto macro, isto
é, para a gestão dos municípios, quanto nos aspectos micros, como na organização e
funcionamento da educação infantil. Desse modo, ao considerar-se esses aspectos, foi
desenvolvida um pesquisa para investigar quais as estratégias privilegiadas pelos três
maiores municípios de Santa Catarina, e pelos três maiores municípios do Rio Grande
do Sul para atenderem as exigências legais. A partir das analises dos dados dessa
pesquisa o presente artigo foi elaborado, tendo como objetivo discutir as possíveis
repercussões de uma dessas estratégias privilegiadas, processo de conveniamento, no
cotidiano da educação infantil dos respectivos municípios.
O interesse em realizar essa discussão, qual seja: articular prática educativa e
política pública emerge da constatação de que essa é ainda uma discussão escassa na
área de educação infantil. Esse fato é corroborado por uma pesquisa coordenada por
Rizzini2 referente ao levantamento de produção no período de 2004 – 2013, na qual a
autora indica que é necessário tornar mais visíveis os conhecimentos produzidos,
sobretudo, sobre e a partir das crianças pequenas, para que os debates avancem e se
traduzam em práticas sociais e políticas públicas.
Para tanto, as discussões aqui apresentadas resultam de uma pesquisa do tipo
documental, não um estudo comparado, que coletou e analisou dados estatísticos,
organizados em tabelas a partir de diferentes cruzamentos de dados, correspondentes ao
período de 2010 (último ano da implementação da obrigatoriedade do ensino de nove
anos) a 2014. Os dados foram coletados diretamente nos sites governamentais: a) IBGE;
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3599ISSN 2177-336X
4
b) INEP; c) IPEA; d) FNDE; e nos sites das respectivas secretarias municipais de
educação.
Em paralelo com a coleta e sistematização dos dados, foi realizado um
levantamento da produção documental referente a educação infantil e uma seleção de
leituras que pudesse auxiliar nas análises subsequentes. Em relação ao levantamento
documental, esse foi organizado tanto em nível nacional, via o site do Ministério da
Educação – MEC; quanto em nível internacional, a partir de documentos produzidos
pela UNESCO, Banco Mundial, UNICEF, OEA e OEI, pois entendemos que as
discussões e orientações desses organismos são fortes indutoras de políticas locais.
A partir dessas análises e do objetivo apresentado desse texto, iremos discutir os
dados relativos aos municípios com maior rede pública de educação infantil em cada
estado, que serão denominados: SC para o município de Santa Catarina, e RS para o
município do Rio Grande do Sul. Para tanto, o presente trabalho é organizado em três
seções: a) cenário atual dos municípios pesquisados e a educação infantil; b) reflexões
sobre a repercussão da estratégia em discussão na organização e no funcionamento das
instituições de educação infantil; c) reflexões finais que, pensamos, podem auxiliar na
continuidade do debate.
Os municípios da pesquisa
Conforme informado anteriormente, os municípios em análise são os maiores,
em termos habitacionais e de rede pública educativa dos respectivos estados, sendo que
para além desse aspecto, a escolha dos mesmos para desenvolvimento da pesquisa é
justificada pelo fato de que essas cidades participam do chamado “GT das capitais e
grandes cidades3” organizado pelo Ministério da Educação, no qual procura discutir
com os gestores municipais as politicas e programas em educação. Entendemos assim,
que essas cidades possuem um papel diferenciado no processo de implementação das
políticas educacionais, e que localmente acabam sendo também fontes de indução de
políticas.
Assim, em dados gerais, o estado de Santa Catarina apresenta, de acordo com o
IBGE (2010), uma população de 6.248.436 habitantes, sendo que 7,9% dessa população
é composta por crianças de 0 a 5 anos. No que se refere a educação infantil, ao se
considerar a matricula bruta em toda etapa, observamos que o estado apresenta o
percentual de 26,7% índice abaixo da média nacional que figura com 28% de
atendimento. Quando desdobramos esses números Santa Catarina apresenta taxa de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3600ISSN 2177-336X
5
34,8% de atendimento na faixa etária de 0 a 3 anos; e 81,4% na faixa etária de 4 e 5
anos, seguindo desse modo a tendência histórica e nacional, isto é, a discrepância entre
os níveis de atendimento.
O estado do Rio Grande do Sul possui um total de 10.693.929 habitantes, sendo
que 5,96 % pertencem a faixa etária de 0 a 4 anos em 2010. Em relação a educação
infantil o cenário é o seguinte: 27,70% das crianças de 0 a 3 anos, e 69,43% das crianças
da faixa etária de 4 a 5 anos evidenciando que o estado esta aquém dos níveis de
matriculas nacionais. Esses índices do estado, ainda que tenham apresentado melhoras
em relação aos anos anteriores, ainda não foi uma evolução significativa, de modo que
no desempenho na oferta da pré-escola (69,43%) o Estado ficou situado na penúltima
posição no cenário nacional (26º lugar), a frente apenas de Roraima que apresentou
67,26%.
Interessante ainda observar que, ambos os estados figuram nas primeiras
posições no ranking do IDHM4
dessa forma, Santa Catarina ocupa a 3ª posição e Rio
Grande do Sul a 6ª posição entre os entes federados. Esse cenário também observado
em relação aos municípios em estudos, que figuram como tendo IDHM alto, e a
educação como um aspecto que evolui no período de 2000 a 2010.
Não obstante, ainda que esses municípios apresentem posição privilegiada, em
relação a outros municípios do país, em termos de desenvolvimento econômico e IDHM
quando verificamos os dados em educação infantil desses municípios temos o seguinte
cenário:
Tabela 1. Total de matriculas na educação infantil na rede pública em Creches e Pré-escola e por
tempo de permanência na instituição nos dois municípios em análise– 2014
Município Creche Pré-escola
Integral Parcial Total Integral Parcial Total
SC 3585 1256 4841 1108 5564 6672
RS 2419 103 2522 1992 4065 6057
Fonte: Construção própria a partir dos dados INEP, 2014.
Conforme podemos observar é comum aos municípios a presença de
atendimento parcial, tanto na creche quanto na pré-escola, fato nada inédito posto a
oferta desses períodos sempre esteve presente na educação infantil brasileira.
Entretanto, em especial no segmento creche pública os números chamaram a atenção,
pois, pela própria constituição histórica, esse segmento sempre foi caracterizado pelo
período integral. Assim, para observarmos melhor esse quadro, os dados foram
analisados considerando o período definido pela pesquisa. Desse modo, observamos que
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3601ISSN 2177-336X
6
a parcialização está se caracterizando como uma das estratégias privilegiadas pelos
municípios, conforme podemos observar na tabela 3.
Tabela 3 – Número de Matrículas na Educação Infantil Pública em Regime Parcial e Integral
An
o
SC RS
Creche Pré-Escola Creche Pré-Escola
I P I P I P I P
2010 2.841 567 1.566 4.906 2.207 36 1.931 4.653
2011 3.450 939 1.610 4.829 2.233 113 1.908 4.243
2012 3.574 941 1.585 4.847 2.209 116 1.941 4.191
2013 3.679 1.094 1.548 4.485 2.268 85 2.268 3.823
2014 3.760 1.161 1.614 4.687 2.419 103 1.992 4.065
Fonte: Construção própria a partir dos dados do FNDE, 2014.
Os dados acima nos possibilita observar um movimento muito interessante, qual
seja, ambos os municípios ampliam suas matrículas, apresentando um incremento do
atendimento integral, tanto na creche quanto pré-escola. Esses dados podem parecer
animadores, indicando que não há um movimento efetivo de parcialização nos
municípios, entretanto, ao fazermos as análises especificas em termos de matriculas,
observamos que no município de Santa Catarina, em especial na etapa Pré-escola, houve
uma diminuição do atendimento em regime parcial na ordem de 219 matriculas, isso é,
no período em análise, foram reduzidas 219 matriculas em regime parcial. Ao mesmo
tempo, quando focamos na ampliação das matrículas em regime integral para essa
mesma etapa observamos que foram criadas 48 novas matriculas. Esse movimento é
percebido também no município do Rio Grande do Sul, que de modo similar apresenta
uma redução nas matriculas da Pré-escola em regime parcial na ordem de 588, ou seja,
no período pesquisado diminuíram 588 matriculas no regime parcial. E no regime
integral temos o total de 61 novas matriculas. Isso nos instiga a inúmeras questões, mas
talvez a mais persistente: onde ficaram essas crianças que não estão mais sendo
atendidas no regime parcial? Ao se procurar responder essa questão chegamos a outra
estratégias adotadas pelos municípios de modo privilegiado: o conveniamento com
instituições filantrópicas, associações e afins. Dessa forma, conforme poderemos
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3602ISSN 2177-336X
7
observar nos dados a seguir, essa estratégia, antiga conhecida da área de educação
infantil, parece esta fortalecida e com novas configurações.
Ao analisarmos especificamente o segmento creche temos a seguinte situação:
Tabela 4 – Número de Matrículas na Creche da Rede Municipal e Conveniada em Regime Integral
e Parcial
An
o
SC RS
Municipal Conveniada Municipal Conveniada
I P I P I P I P
2010 2.841 567 645 120 2207 36 2895 226
2011 3.450 939 620 323 2233 113 5697 349
2012 3.574 941 627 346 2209 116 6819 314
2013 3.679 1.094 506 366 2268 85 7576 275
2014 3.760 1.161 429 483 2419 103 6048 96
Fonte: elaboração própria a partir do FNDE
Muitas análises podem ser realizadas a partir desses dados, assim ao nos
determos especificamente no aspecto de ampliação de matriculas é notório que o
município do Rio Grande do Sul realizou esse feito por meio de um processo vigoroso
de conveniamento, de modo que, no período indicado, apresentou um aumento nas
matriculas públicas integrais na ordem de 0,27%; enquanto que a ampliação via
conveniamento foi na ordem de 161,69%.
Em relação ao município de Santa Catarina, ainda que esse incremento da
matrícula não tenha sido tão forte, o conveniamento também foi ampliado, mas
diferentemente do Município RS, essa ampliação ocorreu via atendimento parcial, fato
observado também no próprio atendimento nas instituições públicas.
Ainda interessante observar que no ano de 2013 ambos os municípios
apresentam uma variação significativa ampliando os atendimentos, em ambas as redes,
mas no ano de 2014 as matriculas via conveniamento sofrerem uma retração. Nesse
sentido importante lembrar que no ano anterior, em 2012, foi sancionada a Lei N°
12.722/de outubro de 2012 que regulamentava o Programa Brasil Carinhoso5, ação
financeira significativa para os municípios. Lembrando que os repasses oriundos desse
programa também podem ser repassados às instituições conveniadas. Necessário ainda
destacar que, no período da pesquisa, os municípios brasileiros também já dispunham
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3603ISSN 2177-336X
8
de outro auxílio do governo federal para ampliar suas redes, qual seja, o Programa Pró
Infância, que presta assistência técnica e financeira, ao Distrito Federal e municípios, para
construção e aquisição de equipamentos para creches e pré-escolas públicas.
Para ser possível ampliar as análises é importante também observar as
matróculas no segmento pré-escola, como demonstramos a seguir:
Tabela 5 – Número de Matrículas na Pré-escola da Rede Municipal e Conveniada em Regime
Integral e Parcial
An
o
SC RS
Municipal Conveniada Municipal Conveniada
I P I P I P I P
2010 1.566 4.906 0 0 1931 4653 1811 426
2011 1.610 4.829 0 0 1908 4243 1811 426
2012 1.585 4.847 605 393 1941 4191 5411 1385
2013 1.548 4.485 507 479 2109 3823 6269 1338
2014 1.614 4.687 427 649 1992 4065 4665 695
Fonte: Elaboração própria a partir do FNDE
Os dados referentes ao município SC indicam que, as matriculas na rede pública
não tiveram uma grande variação, entretanto alguns aspectos nos chamam atenção,
como por exemplo, quando realizamos os cálculos constatamos que no período
estudado foram criadas 48 novas matriculas em regime de atendimento integral, no
entanto, houve uma redução de 219 matriculas no período parcial, assim poderíamos
questionar onde essas crianças, antes pertencentes ao período parcial, estão sendo
atendidas? Uma das hipóteses, a exemplo do que acontece com a creche é que os
municípios estão dividindo essa tarefa com instituições conveniadas. Isso pode
observado quando nos atentamos para o número de matriculas nessas instituições. Dessa
forma, em 2010 não constava no banco do FNDE matriculas em pré-escolas
conveniadas no município SC, cenário que foi modificado, a partir de 2012, quando são
criadas 998 vagas, em regime parcial e integral, em instituições conveniadas.
Novamente interessante observar que, é a partir desse ano que os municípios podem
realizar repasses para as instituições conveniadas, conforme regulamentado pela lei N°
12.722/de outubro de 2012.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3604ISSN 2177-336X
9
No município RS movimento similar pode ser observando, assim, na rede
pública em período integral foram criadas 61 vagas em regime integral e diminuíram
588 vagas no regime parcial. Uma discrepância grande, que leva outra vez a questão:
onde estão sendo atendidas essas crianças? E, mais uma vez necessitamos ampliar as
análises, e assim observamos que no mesmo período nas instituições conveniadas houve
um acréscimo de 2854 matriculas em regime de atendimento integral, e 269 novas
matriculas em regime parcial. Interessante também perceber que de 2013 para 2014 as
matriculas configuraram um cenário diferente do que vinha sendo constatado, assim
houve uma redução de 117 vagas no atendimento integral realizado pela rede pública,
de igual modo, os dados indicam uma brusca redução nas vagas oriundas das
instituições conveniadas. Em termos numéricos temos a redução de 1.604 vagas no
atendimento integral e 643 vagas no período parcial. A ampliação ocorreu apenas no
atendimento parcial na rede pública, e foi na ordem 642 novas vagas. Mas, mesmo com
essa redução observamos que nesse município a maior parte do atendimento em regime
integral ocorre nas instituições conveniadas, e ainda, se somarmos as matriculas bruta
observamos que a diferença de matriculas entre a rede pública e as matriculas
provenientes de instituições conveniadas é de 697, ou seja, praticamente o mesmo
número de crianças é atendido na rede pública e nas instituições conveniadas.
Em síntese, muitas são as análises e interrogações possíveis a partir desses
números, mas tendo em vista o objetivo desse artigo, nossa atenção se volta, sobretudo
para o movimento de ampliação das matriculas por meio do conveniamento, estratégia
que figura como sendo uma das privilegiadas pelos municípios. E, de modo mais
específico, nos interesse pensar como esse tipo de estratégia poderá se configurar como
uma política pública municipal e poderá repercutir no cotidiano das instituições de
educação, ou dito de outro modo, nas próprias práticas pedagógicas. Procuramos refletir
sobre essa questão a seguir.
A imbricada relação entre política pública e prática pedagógica
Conforme procuramos destacar nas análises acima, parece que uma das
estratégias dos municípios para ampliar o atendimento, e atender as exigências legais, é
a ampliação das práticas de conveniamento. Essa estratégia foi amplamente incentiva na
década de 1990, quando foi fortalecida a lógica da “parceria” constituindo o terceiro
setor numa combinação de público e privado, gerando também o conceito de “público
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3605ISSN 2177-336X
10
não estatal”, saída indicada para não “ferir” a Lei da Responsabiliade Fiscal (LRF),
criada no bojo da reforma do Estado na década 1990.
Assim, as áreas com altos déficits de atendimento, como educação infantil,
receberam “incentivo para sua „comunitarização‟, apelido bonito para informar à
população (especialmente aos mais pobres) que o Estado não tinha mais condições de
ampliar o referido atendimento” (ARELARO, 2008 p.54, grifos da autora). Desse modo
é possível pensar que, a estratégia de conveniamento não é uma ação recente, no
entanto, o que observamos é que, com a lei da obrigatoriedade da matricula aos 4 anos
parece que será impulsionada essa estratégia. E, com isso o risco é que os municípios ao
optarem por esse tipo de estratégia acabem consolidando uma política na qual os
recursos públicos são cada vez mais comprometidos para manutenção dos
conveniamentos, o que gera menor recursos para manutenção e ampliação para seu
próprio sistema de ensino.
Para além dessas questões, a criação de uma “rede” alternativa a rede pública
implica em interpelar, entre outras coisas, como ocorre a regulamentação desse setor?
Na presente pesquisa observamos que, de modo geral, as secretarias possuem um setor
ou pessoas específicas para acompanharem as instituições conveniadas, no entanto,
quando observamos essa distinção questionamos: isso também não acaba reforçando
uma dicotomia ? Isto é, quando no interior da própria secretaria há separação entre
quem atende as instituições da rede municipal, e quem atende a rede conveniada isso
pode gerar duplas orientações, duplas sistematizações de trabalho.
Outrossim, historicamente a rede conveniada no país foi constituída por
instituições domiciliares, filantrópicas e comunitárias, que dentre suas características
possuem o fato de possuírem leigas no desenvolvimento das funções educativas
cotidianas; e de terem fragilidades curriculares, posto que em geral, essas instituições
sugiram no vácuo do Estado, de modo que as práticas pedagógicas são orientadas,
muitas vezes, pela lógica educativa que os adultos/as vivenciaram; o que por vezes, são
experiências de educação infantil na lógica de antecipação ou preparação para o ensino
fundamental. Em outras palavras, vários estudos nas ultimas décadas aponta para as
fragilidades pedagógicas e curriculares de muitas dessas instituições.
Importante ainda ressaltar que, por vezes, esses espaços são locais adaptados,
com infraestrutura deficitária e que, pouco oportunizam as crianças vivenciarem
diferentes experiências e descobertas. Desse modo, essas características históricas
presente nas instituições conveniadas podem fazer com que a realidade cotidiana,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3606ISSN 2177-336X
11
partilhada por adultos e crianças, escape da compreensão desses espaços como lócus
privilegiado de vivência como
um espaço que abriga ações educativas abrangentes, não apenas de
conhecimentos sistematizados e organizados por áreas, mas também de
saberes oriundos das praticas sociais, das culturas populares, das relações e
interações, dos encontros que exigem a constituição de um tempo e um
espaço de vida em comum no qual se possa compartilhar vivencias sociais e
pessoais (BARBOSA e RICHTER, 2015, p. 187).
Ao considerar-se esses aspectos, podemos então interrogar: a) a quem é ensinado
o quê, como, por quem e em que circunstâncias? Isto é, quem são as crianças que
frequentavam as instituições conveniadas? O que será privilegiado em seu processo
educativo? Qual prática pedagógica será privilegiada? De acordo com Fortunati (2009)
a concepção de criança que os adultos possuem repercute diretamente no discurso e nas
práticas pedagógicas, desse modo, trabalhar com crianças em espaços coletivos é muito
mais que atender suas necessidades fisiológicas e de proteção, é também desenvolver
uma profissionalidade e uma competência comunicativa, relacional, de observação e de
reflexão que oportuniza, ao adulto, criar situações e espaços desafiadores, com
diferentes possibilidades de exploração e vivência para as crianças. Assim, as
circunstâncias em que a educação infantil é gestada são fundamentais.
E, ainda no esforço de pensar as repercussões do conveniamento como uma
estratégia de ampliação de matriculas para educação infantil, devemos também inquerir,
ainda seguindo Dale (2004) quais são as consequências sociais e individuais destas
estruturas e processos? Essa questão, muito inquietadora nos remete novamente ao fato
de que, em geral as instituições conveniadas possuem acompanhamento das secretarias
de educação, mas não necessariamente são regulamentas por essas. Ou seja, as práticas
pedagógicas poderão ser muito diferentes das desenvolvidas nas instituições do sistema
público.
Essa diferenciação nos incomoda porque, embora ainda não possamos afirmar
que o sistema público já avançou e consolidou práticas pedagógicas que afastaram
definitivamente o “espectro da forma escolar” como denomina Freitas (2007), os
documentos orientadores, as formações e mesmo algumas leis e resoluções procuram
indicar a organização curricular e a prática pedagógica fundadas em uma abordagem
que incentiva a investigação, a descoberta, a invenção e não a “aplicação” de técnicas e
cumprimento de objetivos. E tendo em vista o caráter das instituições conveniadas, elas
podem ou não seguir essas orientações.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3607ISSN 2177-336X
12
Para continuar as reflexões
As reflexões e inquietações apresentadas nesse texto nos impelem tanto
continuar investigando como as políticas municipais estão sendo gestadas, quanto
ampliar a discussão do como, as opções políticas dos governos locais não são escolhas
aleatórias, neutras e sem repercussões no cotidiano das instituições educativas. De modo
especial, no campo da educação infantil, área que ainda procura consolidar um currículo
e uma prática pedagógica que rompa tanto com o modelo disciplinar baseado muito
mais nos resultados do que no processo, quanto com práticas forjadas a partir de
definições prévias e que impede, muitas vezes, as investigações e hipóteses infantis.
Não podemos esquecer também, que de acordo com Robertson e Verger (2012),
sob a égide da “parceria público – privado - PPP”, no âmbito da educação pública, se
observa uma crescente expansão do setor privado, no entanto, segundo os autores,
“governar a educação por meio da PPP é mais que uma questão de coordenar os
serviços de educação, envolvendo agentes públicos e privados” (ROBERTSON E
VERGER, 2012, p.1135). Antes as atuais parcerias são um,
Guarda-chuva perfeito, pois enquanto o propósito subjacente de gestão da
educação são garantidos de acordo com a lógica de mercado, dada a presença
do setor privado como responsável pela oferta, o Estado assegura o ambiente
político favorável e, o mais importante, o seu financiamento (ROBERTSON
E VERGER, 2012, p. 1143).
Desse modo, pensamos que ao procurar analisar as políticas públicas e suas
repercussões no cotidiano da educação infantil precisamos novamente retomar e
fortalecer alguns debates, como por exemplo, a urgência em se compreender que,
o modo de realizar a formação de crianças pequenas em espaços públicos de
educação coletiva significa repensar quais as concepções a defender em um
estabelecimento educacional. Ao mesmo tempo, impõe considerar quais são
suas funções, de que maneira pode organizar seus modelos de gestão e sua
proposta pedagógica, assim como instiga a se deter em qual será seu
currículo, tendo em vista a perspectiva de um longo processo de
escolarização (BARBOSA, 2009, p.08).
Notas:
1. Para uma discussão mais detalhada das análises de documentos desses organismos indicamos a tese de
doutoramento: CAMPOS, Rosânia. Educação infantil e organismos internacionais: uma análise dos
projetos em curso na América Latina e suas repercussões no contexto nacional. 2008. Tese (Doutorado).
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2008.
2. Apesar do relatório da pesquisa ser público e disponibilizado no site do Centro Internacional de
Estudos e Pesquisa sobre a Infância (CIESP), não consta data de sua publicação, mas indica o período
investigado na pesquisa, qual seja de 2004 a 2013.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3608ISSN 2177-336X
13
3. Cada ano esse GT possuem um tema em especial para o debate e informações governamentais. Em
2013 o tema do encontro foi “Política de Educação Infantil, Inclusão, Alfabetização na Idade Certa e a
Garantia dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento das Crianças do Ciclo de Alfabetização do
Ensino Fundamental”.
4. Esses dados foram computados a partir da adaptação, da metodologia do IDH Global pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e pela Fundação João Pinheiro. No cálculo, foram usadas as informações dos últimos
Censos Demográficos do IBGE.
5. O programa Brasil carinhoso compõe o “Plano Brasil sem miséria” e segue uma agenda de atenção
básica à primeira infância. E, no que diz respeito a educação esse programa garante: a) Antecipação do
custeio (Fundeb) para creches e pré-escolas de rede própria ou conveniada com o objetivo de estimular
a abertura de novas vagas pelas prefeituras, que antes levavam até um ano e meio para receber o
repasse; b) Complementação equivalente a R$ 1.362 por ano para cada criança do Bolsa Família
matriculada em creche, dinheiro que pode ser utilizado em manutenção e compra de fraldas, por
exemplo; c) Aumento em 66% do valor repassado para alimentação escolar, em creches e pré-escolas.
Referências
ARELARO, Lisete gomes. A não-transparência nas relações público-privadas: o caso
das creches conveniadas. IN ADRIÃO, Theresa e PERONI, Vera (orgs.). Público e
privado na educação: novos elementos para o debate. São Paulo: Xamã, 2008.
BARBOSA, Maria Carmen Silveira. (Org.). Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Fundamental. Práticas Cotidianas na Educação Infantil: Bases para a Reflexão sobre as
Orientações Curriculares. Brasília (DF): MEC/UFRGS, 2009.
BARBOSA, Maria Carmen Silveira e RICHTER, Sandra Regina Simonis. Campos de
Experiência: uma possibilidade para interrogar o currículo. IN. FINCO, Daniela,
BARBOSA, Maria Carmen Silveira e FARIA, Ana Lucia Goulart de Faria
(organizadoras). Campos de experiências na escola da infância: contribuições
italianas para inventar um currículo de educação infantil brasileiro. Campinas, SP:
Edicoes Leitura Critica, 2015.
DALE, Roger, Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura
Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada
para a Educação”? IN Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago.
2004.
FORTUNATI, Aldo. A educação infantil como um projeto da comunidade:
crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e a família. A
experiência de San Miniato. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2009.
FREITAS, Marcos Cezar. O coletivo infantil: o sentido da forma. IN: FARIA, Ana
Lucia Goulart (Org.). O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saberes.
São Paulo: Cortez, 2007.
RIZZINI, Irene (org.). A criança na primeira infância em foco nas pesquisas brasileiras.
Pesquisa desenvolvida pelo Centro Internacional de Estudos e Pesquisa sobre a Infância
(CIESPI ) em convênio com a PUC – Rio, em parceria com o Instituto C&A. [Disponível:
http://www.ciespi.org.br/primeira_infancia/pesquisas/pesquisas-nacionais].
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3609ISSN 2177-336X
14
RODAS POÉTICAS NO ATELIÊ: EXPERIÊNCIAS DE LINGUAGEM NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Sandra Regina Simonis Richter
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
Dulcimarta Lemos Lino
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
RESUMO
O trabalho estabelece interlocução entre o estudo da imaginação poética como
experiência de linguagem e o eixo Didática e prática de ensino, desde a temática das
Práticas pedagógicas e concepções de novas culturas escolares, para propor uma
abordagem teórico-metodológica que aproxima educação, arte e infância a partir da
interação propositiva entre adultos e crianças pequenas em rodas poéticas no tempo e
espaço do ateliê. A interlocução entre as fenomenologias de Bachelard, Merleau-Ponty
e Ricouer permite interrogar, na Educação Infantil, a fragmentação do corpo em
diferentes linguagens espelhada na lógica escolar da organização curricular por áreas do
conhecimento. A inclusão do ateliê, através de tempos e espaços compostos por rodas
poéticas, redimensiona o planejamento na Educação Infantil porque rompe com a forma
escolar e mostra que são os adultos docentes os provocados em sua potência sensível e
inteligível para que as crianças, com eles, aprendam a complexificar a sua.
Esta comunicação estabelece interlocução entre estudos realizados nos últimos
anos em torno da dimensão poética da linguagem na educação da infância e o eixo
Didática e prática de ensino, especificamente com o tema Práticas pedagógicas e
concepções de novas culturas escolares. A intenção é apresentar uma abordagem
fenomenológica que aproxima educação, arte e infância para interrogar, nos projetos
educativos na Educação Infantil, a fragmentação do corpo espelhada na lógica escolar
da organização curricular por áreas do conhecimento. Tradição iconoclasta que sustenta
a divisão do corpo em “linguagens” visual, oral, gestual, sonora, escrita. Contra essa
tendência, a proposta de planejar e organizar tempos e espaços compostos por rodas
poéticas no ateliê com crianças pequenas permite considerar que “o corpo não é primo
pobre da língua, mas seu parceiro homogêneo na permanente circulação de sentido” (LE
BRETON, 2009, p. 42).
A interrogação pelos encontros linguageiros1 entre adultos e crianças pequenas
na Educação Infantil emerge do interesse reflexivo em deter-se no fenômeno da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3610ISSN 2177-336X
15
linguagem como experiência de mundo, ou seja, como devir de diferentes modos de
adultos e crianças exercerem variações da sua potência linguageira. Tanto a infância
quanto a educação e a arte dizem respeito à temporalidade dos começos. A experiência
de começar é uma das mais densas de sentido na convivência mundana e, por isso, a
intenção que orienta o grupo de pesquisa é acolher o pensamento pedagógico que pode
emergir da confluência entre os campos da literatura, das artes plásticas e da música
para propor uma abordagem teórico-metodológica no que se refere à ação de planejar,
organizar e realizar mediações lúdicas através de rodas poéticas no espaço e tempo do
ateliê2.
A opção pela interlocução fenomenológica na pesquisa educacional emerge da
intenção reflexiva de resistir à tendência pedagógica de cindir a experiência linguageira
do corpo “fenomênico indiviso” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 476 e 479) que age no
mundo. O desafio está em ser a fenomenologia uma abordagem filosófica, “uma
maneira de pensar e não uma prerrogativa pragmática” (MACHADO, 2010, p. 14),
portanto uma possibilidade de pensar e compartilhar o encontro com as crianças em
situação nas rodas poéticas e não uma proposta de método a ser seguida no ateliê. O
interesse da pesquisa é estudar os encontros entre adultos e crianças pequenas no ateliê
como modo de promover abertura ao tempo da ação do corpo jogar com o gesto de fazer
aparecer algo no mundo e não apenas pelos resultados alcançados ou esperados.
Tal intenção desafia a pesquisa educacional perseguir outros modos de pensar a
relação entre educação, arte e infância: em dimensões e não em estruturas, conceitos,
representações. Em oposição à metafísica, o termo dimensão é aqui referido no sentido
fenomenológico que lhe dá Merleau-Ponty (1999b, p.206) ao negar a divisão metafísica
entre sensível e inteligível. A dimensionalidade esboça uma compreensão de
irredutibilidade entre sentir e pensar ao apontar que cada “sentido” é um “mundo”, no
qual o sentido de “mundo” assume “este conjunto em que cada „parte‟, quando a
tomamos por si mesma, abre de repente dimensões ilimitadas – torna-se parte total”
(MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 202). Cada “parte”, cada “sentido”, apesar de
incomunicável para as outras, faz parte do todo como rumo, como abertura imprevisível
de cada sentido para os outros sentidos. Trata-se de pensar que, para bebês e crianças
pequenas, não há sentido em fragmentar possibilidades de ação e interação no mundo a
partir da histórica cisão ocidental entre saber manual e saber intelectual (AGAMBEN,
2012), isto é, entre saber sensível e conhecimento intelectivo.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3611ISSN 2177-336X
16
Nessa abordagem, prévias concepções de “arte” e suas adjetivações em
contemporânea, moderna ou outra, não permitem pensar a potência das crianças
pequenas começarem um gesto no mundo ao definirem uma ação já determinada por
sua nomeação, ou seja, por prévias classificações e discursos. Prévias expectativas que
impedem compreender que “arte não se sabe, se faz para saber” (DERDYK, 2010, 34).
Este fazer os gregos antigos diziam poiesis.
O termo “poético” remete ao termo grego poïein, que por sua vez remete para o
sentido de fazer ou realizar como execução do ato criador e inventivo de auto-produção
que caracteriza o devir humano. Nas palavras de Morin (2002, p. 99), “todo devir está
marcado pela desordem: rupturas, cismas, desvios são as condições de criações,
nascimentos, morfogêneses”. Assim, expandimos o termo poético para além da poesia
até o sentido de produção de sentido, de energia inauguradora de sentido ou inovação
(RICOEUR, 2002), para afirmarmos com Meschonnic (2001, p. 292) que a experiência
poética emerge cada vez que “uma forma de vida transforma uma forma de linguagem e
se reciprocamente uma forma de linguagem transforma uma forma de vida”. Essa força
transformativa, capaz de multiplicar em nós sentidos, na especificidade do ato de operar
no mundo em linguagem – pois não pode operar no vazio – para criar e inventar ritmos,
imagens, significados, torna-se fonte de conhecimento insubstituível. De poiein
originaram as palavras poeta, poema e poiesis.
O poeta, o artista, quando produz, está invocando a linguagem em sua força
instauradora de sentidos para seu agir no mundo comum. É esta força expressiva e
lúdica da linguagem, e somente esta, que faz as obras serem poéticas ou artísticas.
Todos os poetas, todos os artistas, produzem obras quando nelas está um fazer operativo
na especificidade da produção de linguagem. Cada produção artística plasma solução
trazida por uma experiência produtiva de linguagem a um problema singular. Não se
trata genericamente de produzir sentidos – ou linguagem, mas de instaurar um sentido
particular que promove abertura a outros modos de perceber a convivência no mundo.
Isto é, a dimensão poética da linguagem exige compreender que cada produção artística
apresenta ou plasma uma experiência de pensamento dada pela especificidade de sua
materialidade, isto é, emerge do vocabulário das ferramentas ou da sintaxe da matéria,
dos pigmentos, do barro, da pedra, da madeira, do metal, do som, do gesto, da voz, da
palavra, do silêncio.
Nessa compreensão, torna-se importante investigar argumentos que permitam
aprender a interrogar e a enfrentar mitos e equívocos na abordagem das possibilidades e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3612ISSN 2177-336X
17
impossibilidades dos termos arte e poético na educação de crianças pequenas em
contextos de vida institucional constituída para os acolherem. Cada vez mais podemos
observar a banalidade da ideia de arte como liberdade, como “permissividade” ao
acompanhar o uso do termo em amplas justificativas para abordar infância
“poeticamente”, nas quais é geralmente vulgarizado como “criatividade” ou
“autonomia”; como “livre expressão” ou “livre imaginação”.
O que não encontramos é a explicitação da complexidade que especifica o
fenômeno poético, ou seja, sua íntima relação com a experiência lúdica – na
composição da inseparabilidade entre tensão, divertimento e alegria (HUIZINGA, 1999)
– de produzir sentidos singulares que promovam abertura a modos plurais de sentir e
pensar, ou seja, aquela que permite compartilhar uma compreensão particular do
mundo. A necessidade de jogar, de brincar,
que se manifesta em quase todas as atividades do ser humano, como a arte,
faz-se presente ainda naquela criação que nos tornou definitivamente a
espécie que somos: a linguagem. Ela que estabelece os alicerces de nosso
pensamento e organiza a realidade, que nos permite construir um universo
significativo para além do meramente físico e palpável, revela-se em sua
essência, um grande, complexo, intrincado e deslumbrante jogo (DUARTE
Jr, 2010, p. 17).
A interlocução entre as fenomenologias da imaginação poética em Gaston
Bachelard, do corpo operante em Maurice Merleau-Ponty e da ação narrativa em Paul
Ricoeur, aliada aos princípios da complexidade em Edgar Morin e Francisco Varela,
vem permitindo ao grupo de pesquisa compreender que esse jogo linguageiro emerge do
encontro de um corpo indiviso que simultaneamente age, observa, brinca, interroga e
interpreta num mundo imerso em linguagem, com pessoas que vivem em linguagem,
em um mundo culturalmente organizado e significado pela experiência linguageira.
Nesse sentido, não se trata de apresentar modelos ou julgar adequações ou
inadequações, mas reivindicar para a Educação Infantil a compreensão pedagógica da
alteridade temporal entre adultos e crianças nos modos de interpretar e participar da
vida pública.
Educação infantil e experiência de linguagem no ateliê
A entrada dos bebês e das crianças pequenas na Educação Básica coloca ao
pensamento pedagógico a exigência de refletir a tradição ocidental de conceber a
linguagem como representação de mundo, uma “ilusão objetivista bem instalada em
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3613ISSN 2177-336X
18
nós” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 240), pois a complexidade que tece a docência na
Educação Infantil exige substituir as explicações e informações das coisas e do mundo
pela experiência do corpo com as coisas no mundo. Significa considerar o ponto de vista
de quem realiza a ação, de quem toma a decisão de iniciar um gesto que dá outro rumo
às coisas. Trata-se de considerar na Educação Infantil a alteridade linguageira no
encontro entre adultos e crianças e assim afirmar que as crianças não sabem "menos":
sabem diferente (COHN, 2005).
Essa compreensão exige a intencionalidade pedagógica de voltar-se para a
experiência brincante das crianças pequenas com a linguagem como ações intimamente
comprometidas com a tensão dos ensaios, das tentativas, dos desvios, das explorações,
dos acasos e repetições ocorridos no tempo do percurso para alcançá-las, pois tais
tensões fazem parte dos processos de produção de sentidos singulares no coletivo. Diz
respeito ao esforço – à tensão – da conquista (a alegria e o divertimento) e não às
respostas previamente dadas ou o acaso das circunstâncias.
O importante, aqui, é a intencionalidade de planejar e organizar materialidades e
instrumentos, favorecendo tempos e espaços constituídos na e pela inter-relação entre as
dimensões da linguagem que se provocam reciprocamente pela constante migração de
uma forma de estesia – aisthesis – para outra. Essa provocação ou movimento tensivo
entre sensível e inteligível, talvez seja o que Janine Ribeiro (2003, p. 57) denomina de
“criação sinestésica” por seu poder de constantemente migrar de uma forma de
aisthesis, de percepção, para outra como capacidade de habitar a linguagem de muitos
modos e de traduzir um modo em outro. Para o autor, nenhuma dimensão da linguagem
pode extrair apenas de si riquezas infindáveis, pois exigem ser confrontadas por
diferentes modos de estar em linguagem (RIBEIRO, 2003).
O ateliê, como ação do grupo de pesquisa, conjuga um espaço e um tempo
experimental de linguagem, um lugar de conviver simultaneamente com diferentes
temporalidades na ação de junto viver narrativas que fecundam ideias ao instaurarem
gestos transformativos – transfigurativos – no mundo. Um tempo-espaço po(i)ético de
produção de sentidos culturais. Produção que diz respeito ao movimento lúdico entre
permanências e mudanças nas expressões culturais, pois como destaca Certeau (2012, p.
244), entre o que permanece e o que muda nos modos culturais de narrar e significar o
vivido,
Lá existe jogo: um divertimento, uma transgressão, uma travessia
“metafórica”, uma passagem de uma ordem a outra, um esquecimento
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3614ISSN 2177-336X
19
efêmero no interior dos padrões estabelecidos da memória. Todos esses
movimentos estão relacionados a organizações e continuidades. Mas aí
introduzem a discreta proliferação de uma criatividade.
É nesse duplo sentido de pertencimento e de renovação que educação e
formação cultural formam um indissociável par em torno da resistência à restrição da
ação lúdica de narrar e produzir sentidos no cotidiano da Educação Infantil apenas como
texto verbal oral ou escrito. O corpo em movimento no mundo é capaz de produzir
sentidos cantando, desenhando, pintando, falando, modelando, escrevendo, dançando.
Por isso, muito do que sabemos dos modos de sentir, imaginar e perceber das mais
diversas pessoas, agrupamentos sociais, lugares e épocas, obtemos a partir de muitos
modos de narrar o seu vivido: música, teatro, poesia, pintura, dança, cinema,
arquitetura, artefatos.
Planejar, organizar e realizar com as crianças pequenas encontros com as artes
plásticas, com a literatura e com a música no espaço e no tempo do ateliê, teve o
objetivo de contribuir com o processo educacional de apresentar às crianças
materialidades que elas têm muito interesse em explorar e intensa curiosidade de
manusearem e transformarem. A intenção foi promover encontros “brincantes” entre
adultos e crianças como modo de ambos ampliarem repertórios em suas interações
linguageiras e não “ensinar” desenho, pintura, poesia, música.
O ateliê é simultaneamente um espaço físico e um espaço metafórico: um lugar
para ações educativas que acolhem as tentativas, os tateios, as errâncias, os tempos
lentos, o não saber o que fazer, um lugar para que surjam interrogações, para que o
fracasso seja acomodado, para que a indecisão apareça. Não se trata de dizer que nessa
ação educativa tudo possa acontecer por acaso, ou que no ateliê as ações sejam
aleatórias. Mas também não se trata de uma ação totalmente planejada de antemão, não
é um "programa" ou instrução que segue determinada ordem prévia. A complexidade da
dinâmica no ateliê está em, ao mesmo tempo, promover abertura ao acaso e exigir
organização, planejamento ou projeto. É na conjunção entre o lúdico e a lucidez – entre
a imprevisibilidade do acaso e a intenção do projeto pedagógico que a produção de
sentidos singulares e coletivos emerge e acontece.
As crianças, no ateliê, ficam encantadas com as possibilidades de jogar e brincar
com palavras, formas e imagens, cores, sons e gestos. Os adultos se surpreendem
maravilhados com este encantamento. Uma troca de energia. No jogo da imaginação
material (que Bachelard aponta também como imaginação poética ou criadora), o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3615ISSN 2177-336X
20
devaneio e a ficção são poderosos, pois são capazes de nos levar a viver o não vivido
ainda: a projetar ações no mundo. Esta complexa experiência brincante com a
linguagem é difícil de ser considerada nos projetos educativos com crianças pequenas
no cotidiano da Educação infantil porque exige disponibilidade tanto para a escuta ao
processo aparentemente caótico das narrativas das crianças pequenas quanto para
sustentar a imprevisibilidade de seus movimentos.
Se infâncias são ideadas a partir de determinadas expectativas adultas – uma
espera, uma esperança, uma concepção sempre histórica, as crianças não são ideias, pois
estão aqui e agora, presença em carne, nervos e ossos, pernas e corações, na casa, na
escola, no quintal, na cidade, compartilhando com adultos uma coexistência comum
marcada pela necessidade de interpretarem e compartilharem sentidos culturais. Na
convivência com adultos e outras crianças, gradualmente conquistam repertórios de
mundo, de palavras, de gestos, de sentidos, no ato mesmo de brincarem e explorarem
possibilidades linguageiras de significar a coexistência no mundo.
Rodas poéticas com crianças pequenas no ateliê
A convivência lúdica com crianças pequenas no tempo e espaço do ateliê da
universidade, aliada aos estudos em torno da dimensão poética da linguagem a partir da
interlocução entre as fenomenologias de Bachelard, de Merleau-Ponty e de Ricoeur,
favoreceu ao grupo de pesquisa a intencionalidade de constituir “rodas poéticas” como
processo de interação propositiva intensa entre as crianças e os adultos. Envolveu o
planejamento e a organização da oferta tanto de espaços e tempos para o encontro com a
cor, com a luz, com a sombra, com a voz, com o traço, com a argila, com a poesia, com
a sonoridade, quanto com a especificidade de materialidades e instrumentos.
As rodas poéticas vêm permitindo ao grupo afirmar (e mostrar) a relevância
pedagógica do encontro (interação propositiva) entre adultos e crianças no complexo
processo de aprender o poder inventivo de estar em linguagem. Nas rodas poéticas,
adultos e crianças brincam e jogam3, tomam decisões, enfrentam os acasos, ensaiam
tentativas, repetem, rearranjam, enfim, vivem experiências de linguagem na experiência
mesma do corpo viver a tensão que é interrogar o mundo e a alegria e divertimento que
é transformá-lo sem cindir ou hierarquizar sensível e inteligível.
Nesta perspectiva, a experiência lúdica nas rodas poéticas exige ser explicitada
em seus modos de constituir-se “roda”. Bachelard (1989) diria em seus modos de se
constituir uma fenomenologia do redondo. Para o filósofo, “tudo o que é redondo
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3616ISSN 2177-336X
21
convida à carícia” (BACHELARD, 1989, p. 239). À sensação, ao sensível, ao estésico,
portanto à participação. Para o poeta Octávio Paz (1991, p. 52),
Sentir é antes de tudo sentir alguma coisa ou alguém que não somos nós.
Sobretudo: sentir com alguém. Até para se sentir a si mesmo, o corpo busca
outro corpo. Sentimos através dos outros. Os laços físicos e corporais que nos
unem com os demais não são menos fortes que os laços jurídicos,
econômicos e religiosos.
O termo poético refere à ação gestual e material que faz aparecer algo no mundo,
a captura do agir fazendo-se como execução de um ato complexo de produção de
sentido que dá outro curso às coisas através do esforço de um corpo que sente pensando
e pensa sentindo, ou seja, como pensamento em ato (Valèry, 1999). Diz respeito,
portanto, ao corpo sensível operante, a uma experiência de pensamento sempre
encarnada. Para Arendt (2014), “fazer aparecer algo no mundo” consiste na
“fabricação” ou obra do homo faber , pois
consiste na reificação que ocorre quando se escreve algo, quando se pinta
uma imagem ou se modela uma figura ou se compõe uma melodia, tem a ver
com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma o
pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é a mesma
manufatura (workmanship) que, com a ajuda do instrumento primordial que
são as mãos humanas, constrói as coisas duráveis do artifício humano
(ARENDT, 2014, p.210).
O interesse do grupo de pesquisa, portanto, é sustentar a intencionalidade
pedagógica de favorecer experiências transformativas que considerem a complexidade
vital de aprender o poder inventivo da linguagem fabricar artifícios, desde a infância, a
partir de um pensamento pedagógico valorado tanto pela razão quanto pela imaginação.
A participação na roda supõe uma coordenação interativa que busca o
entrelaçamento entre o singular de cada um no coletivo, que intencionalmente ajuda a
promover o encontro entre histórias de vida diferentes e modos particulares de sentir e
pensar. Por isso, a roda exige tempo para aprender a compartilhar gestos e ferramentas
como modo de integrar cada um no movimento do poema ou na história contada, no
aparecer do desenho ou da modelagem, na escuta das sonoridades, na tensão de
sustentar a imprevisibilidade das ações.
A roda poética desdobra-se em várias e estas podem ocorrer simultaneamente no
espaço do ateliê: roda em torno da ação de riscar e rabiscar, em torno da argila, dos
instrumentos musicais, do retroprojetor. Inicialmente, na chegada das crianças, acontece
a grande roda, com todos os participantes, na qual a poesia e a música tornam-se o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3617ISSN 2177-336X
22
elemento agregador porque organizam a escuta a partir do interesse e curiosidade das
crianças pelo que pode ocorrer com as palavras vocalizadas e cantadas pelo adulto.
Ambos, crianças e adultos, passam a brincar com as palavras e os sentidos, com os
ritmos, sons, imagens, corpo e movimento. Pela e na brincadeira, a criança acompanha o
adulto, entra nas palavras e participa do ritmo do seu corpo também ensaiando
movimentos e se apropriando de ritmos. Ritmos que, por ocorrerem no corpo, não
podem ser ensinados, só podem ser vividos por cada um.
Esse movimento consome tempo para sua constituição no tempo mesmo que
cada um necessita para sentir-se participante de sua constituição. Assim, quando estão
na mesa ou no chão, em torno de uma ação com materialidades e instrumentos, também
constituem rodas poéticas marcadas pelo exercício da liberdade que os jogos
linguageiros permitem experienciar. Cabe destacar que a brincadeira em cada roda é
desencadeada pela especificidade da materialidade e instrumentos oferecidos, pelo
“como” fazer e não pelo “o que” devem fazer. Ou seja, a brincadeira vai surgir
desencadeada pelo desafio imposto pela resistência da materialidade em jogo, do que há
para nela explorar e insistir com as mãos, gestos e palavras exigidos a colocarem
“ordem” (HUIZINGA, 2004, p. 13) nas novidades confusas do vivido, e não pela
expectativa adulta de um resultado prévio.
Planejamento e gestão do inesperado
O pensamento pedagógico, historicamente demarcado pela polarização entre a
“sabedoria da prática” e as “lições da teoria”, entre saber manual e saber intelectual,
desconsidera o fundo cultural e social tecido pela humana potência de produzir e refazer
o mundo no ato de interpretar e transfigurá-lo em sentidos e significados no coletivo. A
fragmentação se desdobra nas concepções de realidade a partir da polarização entre
razão e imaginação e instala o esquecimento da ludicidade, a eliminação do prazer da
atenção estésica implicada em toda ação que promove integração entre sensível e
inteligível.
A inclusão do ateliê, através de tempos e espaços compostos por rodas poéticas,
redimensiona o planejamento na Educação Infantil porque rompe com a forma escolar.
Para além do aspecto físico adequado, o ateliê constitui um espaço acolhedor dos
diferentes tempos das crianças em oposição à “sala de aula” na qual tudo deve ser igual
para todos, e os ritmos das crianças e dos adultos condicionados a uma unidade, a de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3618ISSN 2177-336X
23
aluno ou a de professor. Por sua vez, as distintas “rodas” no ateliê, ao favorecerem
lugares e tempos de explorar, movimentar, investigar, recomeçar, tatear, indagar e
inventar, promovem abertura à fabulação e ao ficcional. Favorecem a constituição de
um campo lúdico que autoriza efetivar ações arriscadas e contingentes a partir de
“cacos” de imagens, formas, cores, palavras, densidades, texturas, silêncios, manchas,
traços, fragmentos que vão articulando aprendizagens dos fazeres, dos gestos, das
narrativas. Campo lúdico que exige tanto dos adultos quanto das crianças interpretarem
a imprevisibilidade que é viver – e pensar – juntos, mostrando a relevância pedagógica
do corpo adulto acompanhar e acolher o esforço e a conquista de um corpo criança em
transformação, desafiado a aprender participando do mundo pela tomada de decisão de
iniciar a ação gestual e material que faz aparecer algo.
A interação lúdica entre adultos e crianças pequenas vivida no ateliê permitiu ao
grupo de pesquisa constatar que a intencionalidade de repetir as mesmas ações – escutar
e vocalizar poesias, soar e barulhar, traçar linhas, tingir superfícies, modelar massas,
falar, cantar e dançar – através de diferentes rodas: no chão, nos cantos, em volta das
mesas ou dos retroprojetores, favorecem a produção de narrativas que vão tecendo os
encontros. Gradualmente, em movimento crescente de interesse e envolvimento, as
crianças aprendem a perseguir suas narrativas nos desenhos, nas pinturas, nas projeções
de luz e sombras, nas poesias, nas canções e nas modelagens com argila, aprendendo o
poder inventivo das fabulações e a força transformativa dos gestos do corpo sobre a
materialidade das coisas. Aqui, torna-se difícil definir as fronteiras entre ciência e arte.
Tanto a arte quanto a ciência apresentam aspectos comuns em seus diferentes
modos de ler e interpretar o mundo, pois seja no ateliê seja no laboratório opera-se sobre
materiais, grande parte deles comuns à prática das artes e à realização de processos
envolvidos nas investigações científicas sobre a matéria. A ação transformadora sobre a
materialidade do mundo, pelos diferentes esforços que provoca no corpo, torna-se fonte
de instrução e informação do real insubstituível nos processos de aprender a operar
ideias e imagens para constituir narrativas que significam a experiência singular de
conviver no grupo.
Trata-se de um paradoxo pedagógico: para alcançar contextos e situações
singulares de inovação e invenção de sentidos no coletivo há que previamente planejar e
organizar tempos e espaços, materiais e instrumentos a serem disponibilizados à
repetição dos sucessos alcançados na exploração lúdica e “caótica” das crianças.
Planejar e organizar tempos e espaços de criação linguageira exigem aquilo que
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3619ISSN 2177-336X
24
no grupo de pesquisa denominamos de “gestão do inesperado”, aquela que autoriza a
experimentação, a tentativa, a errância, enfim, aquela que intencionalmente acolhe no
coletivo experiências ou situações que nem os adultos nem as crianças sabem como
serão concluídas. Supõe compreender que é aos adultos docentes que cabe a tarefa de
aprenderem a imaginar e planejar para poderem provocar e desafiar o raciocínio lúdico
das crianças.
As rodas poéticas no ateliê mostram que são os adultos que têm que imaginarem
ao serem desafiados em sua potência sensível e inteligível (experiências de linguagem)
para que as crianças, com eles, aprendam a complexificar a sua. Sempre são os outros
que nos alcançam a linguagem. Como diz Certeau (2012, p. 143) cultura “consiste não
em receber, mas em exercer a ação pela qual cada um marca aquilo que outros lhe dão
para viver e pensar”. Em nossos estudos e ações no ateliê, alcançamos que provocar a
imaginação e desafiar o raciocínio das crianças é também provocar e desafiar os adultos
docentes a juntos ensaiarem, investigarem, explorarem e transformarem sentidos em
narrativas que signifiquem a convivência nas rodas poéticas. Eis o desafio ... confiar nas
crianças. Um desafio eminentemente pedagógico.
Notas
1. O termo “linguageiro” é aqui utilizado no sentido que lhe dá Merleau-Ponty (1991)
ao conceber o corpo como linguagem e pertencimento ao mundo. Concepção que rompe
com a clássica descrição da percepção como “representação” objetiva de um mundo
dado à consciência subjetiva. Há uma significação “linguageira” da linguagem que não
se prende ao “penso”, mas ao “posso” que diz respeito a ser próprio do gesto humano
inaugurar sentidos. Maturana (1998) utiliza o termo “linguageiro” para enfatizar o
caráter de atividade, de comportamento e não de uma “faculdade” própria da espécie.
2. O projeto de extensão “Oficinas Poéticas” com Escolas Municipais de Educação
Infantil, vinculado ao projeto de pesquisa, ocorre desde 2011 na sala do ateliê da
universidade, junto ao Núcleo de Arte e Cultura.
3. Ver justificativa de Grigorowitschs (2010, nota p. 231) para o pressuposto que os
termos brincar/jogar são conceitos complexos e ambíguos, que no viver envolvem, ao
mesmo tempo, reprodução e criatividade, portanto não é imperativo diferenciá-los, pois
o objetivo é exatamente destacar essa ambiguidade, esse duplo caráter. Para a autora, as
crianças “jogam” e “brincam” ao mesmo tempo, transitando entre esses dois possíveis
polos conceituais, e por essa razão não é possível afirmar a existência dessas ações de
forma dicotômica.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3620ISSN 2177-336X
25
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 12.ed. revisada. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes , 1989.
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2012.
AGAMBEN, Giorgio. La potencia del pensamiento: ensayos y conferencias. Barcelona:
Editorial Anagrama, 2008.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 2012.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1994.
COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
DERDYK, Edith. Linha de costura. Belo Horizonte: C/Arte, 2010.
DUARTE Jr. A montanha e o videogame: escritos sobre educação. Campinas, SP:
Papirus, 2010.
GRIGOROWITSCHS, Tamara. Jogo, mimese e infância: o papel do jogar infantil nos
processos de construção do self. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, 2010, p.
230-246. .
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: Antropologia das Emoções. Petrópolis,
Vozes, 2009.
MACHADO, Marina Marcondes. Merleau-Ponty & a educação. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2010.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagens na educação e na política. Belo
Horizonte: UFMG, 1998.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1999a.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Prefácio e posfácio de Claude
Lefort. São Paulo: Perspectiva, 1999b.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Psicologia e pedagogia da criança. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
MESCHONNIC, Henri. Célébration de la póesie. Paris: Éditions Verdier, 2001.
MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002.
RIBEIRO, Renato Janine. A universidade e a vida atual: Fellini não via filmes. Rio de
Janeiro: Campus, 2003.
RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular. São Paulo: Editora UNIESP;
Belém, PA: Editora da Universidade Estadual do Pará, 2002. Íntegra das entrevistas
Nomes de Deuses de Edmond Blattchen.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3621ISSN 2177-336X
26
VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. In: Variedades. São Paulo:
Iluminuras, 1999, p. 179-192.
DIDÁTICA E EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS E PROCESSOS DE
REFLEXÃO CONSTITUÍDOS NO DIÁLOGO ENTRE A UNIVERSIDADE E A
CRECHE
Paulo Sergio Fochi
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Queila Almeida Vasconcelos
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
RESUMO
Este trabalho é fruto da reflexão acerca das práticas pedagógicas com crianças de zero a
três anos, evidenciadas nos estágios de docência das alunas do curso de Pedagogia de
uma universidade privada do interior do Rio Grande do Sul, nas modalidades regular e
PARFOR (Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica) e suas
implicações provenientes do encontro entre o currículo do curso de pedagogia e o
currículo das escolas de educação infantil. Nesse sentido propomos uma discussão a
partir do material empírico gerado a partir da experiência de supervisão de estágios, do
qual emergem questões importantes para pensar a respeito da didática e da docência na
educação infantil. As reflexões provenientes do exercício da docência que as alunas da
Pedagogia apresentam em seus estágios convocam a pensar formas de desacomodar
práticas assistencialistas, higienistas e escolarizantes, ainda bastante presentes na
escolas de educação infantil. Nesse sentido, observamos que o currículo do curso de
pedagogia, composto por disciplinas específicas sobre educação de crianças pequenas,
por horas práticas e de estágios supervisionados nas escolas de educação infantil
contribui significativamente com a reflexão das alunas para construção de estratégias
didáticas que garantam a organização do tempo, dos espaços, dos materiais e de suas
ações respeitando o direito das crianças à uma educação de qualidade.
Palavras-chave: Pedagogia; Estágio; Docência na Educação Infantil.
TRAJETÓRIA E NOVIDADES DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
BRASILEIRA
O significado da prática docente na Educação Infantil no Brasil vem sendo
constituído desde a década de 1980 quando as creches passaram a fazer parte dos
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3622ISSN 2177-336X
27
sistemas de educação dos municípios, visto que antes disso a grande maioria respondia
às secretarias de assistência ou saúde. Essa mudança de perspectiva está ligada à
emergência da temática acerca dos direitos das crianças nas discussões políticas e
sociais no mundo (Constituição Federal Brasileira (Brasil,1988); Constituição dos
Direitos das Crianças (ONU,1989); Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL,
1996)) que culminam em um investimento nas pesquisas com e sobre as crianças,
posicionando-as como sujeitos de direitos e que, portanto precisam ter garantido o
acesso à uma educação escolar de qualidade.
Concomitante a isso, na última década, o acesso de bebês em espaços coletivos
de educação tem crescido significativamente. Este fato, por um lado, significa a busca
pela garantia dos direitos dos meninos e meninas a frequentarem a creche e, por outro,
implica em um desafio para a formação de professores que atuarão nestes espaços.
Porém apesar do cenário de mudanças na lógica do atendimento às crianças pequenas,
que passa a ter o foco em um projeto educativo e não assistencial e higienista, a maior
parcela dos profissionais responsáveis pelas creches e pré-escolas continuou a mesma
dos projetos anteriores.
Ao mesmo tempo, ainda não temos acumulado saberes necessários para refletir
o que compõem esta “didática dos bem pequenos”, ou, da “didática do fazer” como
definem Bondioli e Mantovani (1998, p. 31). Sabemos, no entanto, que muitos daqueles
saberes da tradição pedagógica não atendem as necessidades dos bebês e das crianças
bem pequenas na creche, tampouco, dos professores. A docência na creche é uma
profissão que está sendo inventada.
A exigência de formação em nível superior para os docentes das escolas de
Educação Infantil brasileira aparece pela primeira vez na Lei Nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, a LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil,
1996), porém não com caráter de obrigatório, visto que tanto para a Educação Infantil
como para os anos iniciais do Ensino Fundamental continua sendo aceita a formação
mínima de nível médio em curso de magistério ou curso normal. Em 2001 PNE -
Programa Nacional de Educação - 2001-20101 prevê
Estabelecer um Programa Nacional de Formação dos Profissionais de
educação infantil, com a colaboração da União, Estados e Municípios,
inclusive das universidades e institutos superiores de educação e
1 Reiteradas nas Metas 7 e 16 do atual PNE - 2014 – 2024.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3623ISSN 2177-336X
28
organizações não-governamentais, que realize as seguintes metas: a)
que, em cinco anos, todos os dirigentes de instituições de educação
infantil possuam formação apropriada em nível médio (modalidade
Normal) e, em dez anos, formação de nível superior; b) que, em cinco
anos, todos os professores tenham habilitação específica de nível
médio e, em dez anos, 70% tenham formação específica de nível
superior. (BRASIL, 2001, p.46)
Desta forma em 2010 esperava-se que 70% dos professores de educação infantil
brasileiros tivessem concluído o curso superior de Pedagogia. A meta prevista foi quase
alcançada, visto que no Resumo Técnico do Censo Escolar da Educação Básica de
2012, o percentual de professores da Educação Infantil com curso superior é de 63,6%,
(Brasil, 2012, p. 39). Este investimento realizado na formação dos professores acontece
simultaneamente ao processo de qualificação da legislação para a educação infantil no
Brasil, que em 2009 aprova a Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (DCNEI), através do Parecer CNE/CEB 20/2009 (Brasil, 2009).
Com a promulgação das DCNEI inicia-se também um processo de reformulação
do papel docente nas instituições de educação infantil, pois há neste documento, de
caráter mandatório, uma mudança significativa no conceito da prática pedagógica, uma
vez que,
Tais práticas são efetivadas por meio de relações sociais que as
crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as
outras crianças, e afetam a construção de suas identidades.
Intencionalmente planejadas e permanentemente avaliadas, as práticas
que estruturam o cotidiano das instituições de Educação Infantil
devem considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões
expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e
sociocultural das crianças, apontar as experiências de aprendizagem
que se espera promover junto às crianças e efetivar-se por meio de
modalidades que assegurem as metas educacionais de seu projeto
pedagógico. (Brasil, 2009, p.6)
As DCNEI propõe então, uma mudança de perspectiva na organização curricular
da educação infantil, que até então era fundamentada legalmente pelos Referenciais
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 1998) que apesar de conter
conceitos importantes sobre a infância, as crianças e a ação docente, dividia as
propostas para a educação das crianças em conteúdos e áreas do conhecimento de
acordo com as duas faixas etárias (creche e pré-escola). Como decorrência disso, a
docência na educação infantil também precisa ser (re)pensada e (re)significada.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3624ISSN 2177-336X
29
O CURRICULO DA PEDAGOGIA COMO SUBSÍDIO PARA QUALIFICAÇÃO DO
FAZER DOCENTE
A organização curricular do curso de Pedagogia da Universidade na qual foi
realizado este estudo oferece às alunas duas atividades acadêmicas específicas na área
da educação infantil, sendo elas: Infância e Educação Infantil I; Infância e Educação
Infantil II. Além destas, existem outras disciplinas relacionadas aos conhecimentos
curriculares tais como ciências naturais, ciências sociais, matemática, linguagem oral e
escrita, linguagens artísticas e culturais e educação física que abordam de forma
ampliada as possibilidades de propostas relacionadas à esses conteúdos ao longo da
educação básica. Embora tenhamos claro que a abordagem feita nessas disciplinas
muitas vezes não atendem a especificidade das crianças da educação infantil,
especialmente aquelas com idade inferior a três anos, consideramos que contribuam na
construção de repertórios e saberes necessárias à docência de um modo geral.
Também fazem parte do currículo do curso de Pedagogia, disciplinas compostas
por horas de práticas nas escolas, que provocam as alunas a observar e refletir sobre a
realidade das escolas infantis e propor pequenas intervenções que posteriormente são
discutidas em aula com os demais colegas e professores. Esse exercício viabiliza que as
alunas que ainda não atuam nas escolas possam experimentar-se enquanto professoras
de crianças pequenas possibilitando assim uma escolha consciente da área em que irão
atuar depois de formadas. Para as professoras que já atuam nas escolas infantis, a
experiência permite refletir sobre a própria prática confrontando fazeres com as
aprendizagens construídas na academia. Não falamos aqui de confronto com a teoria,
pois acreditamos que não há uma divisão entre teoria e prática, mas sim uma escolha
consciente e adequada dos docentes universitários de apresentar aos alunos teorias
fundamentadas por experiências práticas que refletem conceitos que respeitam os
direitos das crianças.
Desta forma, a experiência de práticas e estágios supervisionados contribui com
a reflexão acerca das práticas realizadas nas duas etapas, especialmente no que diz
respeito ao tempo e à aprendizagem através do brincar. Nesse sentido, é importante
recuperar a ideia de Alarcão (2002, p.225) sobre “a atitude de que a experiência, se
refletida e conceitualizada, tem um enorme valor formativo e de que a compreensão da
realidade, que constitui o cerne da aprendizagem, é um produto do sujeito enquanto
observador participante”. Assim, pode-se dizer que a possibilidade de propor ao
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3625ISSN 2177-336X
30
professor parar frente a sua experiência, mobiliza-o a buscar compreender e significar as
suas práticas. Pode ser interessante seguir esse caminho no interior das escolas de
Educação Infantil, haja vista a presença de ações naturalizadas e, muitas vezes, sem
sentido sendo praticadas diariamente.
Também existem duas atividades acadêmicas voltadas para a elaboração do
estágio em docência na educação infantil (Estágio em docência na Educação Infantil I;
Estágio em docência na Educação Infantil II). No primeiro estágio, as alunas são
convidadas para iniciarem suas primeiras incursões na escola que no estágio seguinte
farão a intervenção. O objetivo é poder reconhecer as dinâmicas de funcionamento de
uma instituição de educação infantil bem como conseguir confrontar com o quadro
teórico que foi sendo constituído ao longo do processo de formação das alunas. Ao
longo do semestre, os encontros que ocorrem na universidade se transformam em um
espaço para que as alunas possam dizer e refletir sobre o que está se passando com sua
experiência de ser, ou, tornar-se professora. Como afirma Contrerás (2010, p.249), nos
“interessa a visão de quem faz, cria, escuta, pensa e vai fazendo emergir algo que nasce
de se escutar, pensar e olho o que se faz”.
O segundo estágio é organizado em horas teóricas iniciais nas quais as alunas
dedicam-se a estudar sobre o planejamento na Educação Infantil e passam a organizar
os primeiros passos do projeto que será desenvolvido no período de prática
supervisionada de estágio. Nesta segunda etapa que tem a duração de 170 horas de
intervenção direta nas escolas de educação infantil, as alunas do curso regular assumem
a responsabilidade por turmas de educação infantil do setor público ou privado e são
acompanhadas semanalmente na Universidade pelo professor responsável pela atividade
acadêmica, sendo que na modalidade PARFOR esse acompanhamento é realizado por
uma professora e uma supervisora de estágio. Nos encontros de supervisão os grupos de
estagiárias apresentam seus percursos, observações, registros e interpretações e
experimentam um processo de discussão sobre sua prática com o grupo de colegas, a
partir desse encontro definem-se os próximos passos do trabalho com as crianças.
Os professores responsáveis pela atividade acadêmica de Estágio em Educação
Infantil II realizam visitas às escolas onde as alunas estão atuando, com o intuito de
provocar reflexões a partir da ação docente observada. Após essas visitas, são realizadas
devolutivas com as alunas que contribuem com a continuidade dos planejamentos,
projetos e ações das estagiárias. Ao longo desta atividade acadêmica as alunas
produzem um relatório de estágio que evidencia o percurso do grupo de crianças e da
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3626ISSN 2177-336X
31
prática docente. Neste relatório as estagiárias produzem uma narrativa sobre o trabalho
realizado, onde deixam claras suas intencionalidades pedagógicas na trajetória do
estágio e a constante reflexão e avaliação das propostas relativas aos espaços, tempos,
materiais e ações ofertados às crianças.
A (SUPER)VISÃO DO ESTÁGIO: ENTRE O SONHO E O POSSÍVEL
A função do professor universitário que supervisiona o estágio dos discentes está
permeada por uma série de desencontros, mas também de encantamento. Há o
desencontro entre o referencial prático e teórico oferecido às alunas, discutido e
refletido ao longo das atividades acadêmicas, que trazem no seu cerne a ideia de uma
educação infantil que seja fundamentada no respeito à escuta e ao tempo das crianças e
a realidade apressada, repleta de relações superficiais que compõe grande parte das
escolas infantis em nosso país. Por outro lado, há também a descoberta, junto com as
estagiárias, de estratégias didáticas que conseguem reverter em certa medida alguns dos
descompassos causados por anos de práticas escolarizantes na Educação Infantil.
Assim, colocar-se diante da experiência concreta das instituições de Educação
Infantil e refletir sobre o lugar das crianças significa enfrentar as nossas crenças sobre a
imagem de criança que orientam nossas formas de atuar e de se relacionar com os
meninos e as meninas para poder ressignificá-las. Talvez esse seja um ponto de
encontro mais coerente entre teoria e prática (HOYUELOS, 2004).
Na proposta de supervisão de estágio também perseguimos formas de tentar
compreender a dimensão de currículo que as DCNEI afirmam como sendo um
Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes
das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio
cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a
promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de
idade. (BRASIL, 2010, p.12).
Essa tarefa tem sido importante para avançarmos nas escolhas das estagiárias,
quer seja por (i) compreender as práticas do cotidiano como uma das dimensões
curriculares e, a partir disso, organizar os contextos de modo a garantir que as crianças
possam viver boas experiências de aprendizagens cotidianas; ou, ainda, (ii) por refletir e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3627ISSN 2177-336X
32
reconhecer os patrimônios que as crianças têm e, a partir desses, propor modos de
articular com aqueles que a humanidade já sistematizou.
Tanto a ideia de criança como a de currículo atuam como postulados durante as
indicações de repertório e leituras apresentados nas atividades acadêmicas, como nas
discussões acerca das práticas realizadas pelas alunas guiando as reflexões e
problematizações que dela emergem. Compreender e significar tais ideias atravessam
obrigatoriamente a reflexão sobre a própria prática, sobre o exercício político exercido
no cotidiano das escolas. Consideramos político tal exercício, pois envolve aquilo que
Pinazza (2014, p.55) chamaria de “uma ação engajada moralmente”, ou seja, trata-se um
posicionamento do sujeito, de um modo de estar implicado em um contexto.
Atuar na educação implica uma ação engajada moralmente e orientada
para a compreensão ampliada dos processos educativos, visto pelos
seus impactos sobre a vida dos indivíduos e da coletividade, em uma
perspectiva temporal que extrapola o plano do imediato. (PINAZZA,
2014, p.55).
Para dizer a verdade, compreender os impactos daquilo que diariamente estamos
fazendo nas creches e pré-escolas demanda desnaturalizar matrizes fortemente
constituídas em cada adulto que opera dentro das instituições, assim, para produzir
rupturas, o que buscamos é criar um espaço legítimo para as dúvidas e perguntas.
Talvez dessa forma seja possível constituir uma “formação que mobilize os professores,
a partir de suas aprendizagens experienciais, providenciando oportunidade de interpretá-
las e reconstruí-las por meio do exercício reflexivo individual e coletivo” (PINAZZA
2014, p.55).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visão de criança que buscamos que as alunas e futuras, ou já pedagogas em
exercício na educação básica brasileira, é aquela proposta pela Diretriz Curricular para a
Educação Infantil – DCNEI, que a afirma como um
sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas
cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva.
Brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta,
narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade,
produzindo cultura. (BRASIL, 2010, p.12).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3628ISSN 2177-336X
33
Essa ideia de criança não representa algo simples de ser incorporado nas práticas
do cotidiano. Ainda somos fortemente atravessados por crenças que minimizam as
competências das crianças, que não autorizam a sua participação nas decisões do
cotidiano e, em muitas ocasiões, as tratamos como sujeitos vazios, sem nenhum tipo de
experiência prévia, praticamente um sujeito sem história e sem identidade. Reverter esse
pensamento significa estar atento às ações das crianças no cotidiano e refletir sobre elas
com nosso pares,
Isso porque talvez os interesses de aprendizagem das crianças sejam
também um convite para novas aprendizagens para os adultos, para
despirmo-nos daquilo que já fazemos há tanto tempo para construir
possibilidades de aprender outras coisas, de outros jeitos, com outros
fins. (VASCONCELOS, 2015, p. 111)
Nesse sentido, temos militado pela qualificação do currículo dos cursos de
pedagogias, de forma que esses contemplem tanto mais horas práticas das alunas nas
escolas, como escolhas coerentes do repertório teórico oferecido ao longo da graduação.
Pois acreditamos que o estágio é uma etapa de compartilhamento que só tem sentido e
valor educativo quando nascida de reflexão e de ressignificação da prática educativa,
buscando capturar os “espaços vazios, momentos em que, aparentemente, nada
acontece, mas que possuem a síntese e a beleza da vida” (FOCHI, 2015, p.54). E, para
isso nossas alunas precisam ter tido a possibilidade de entrar em contato com práticas,
teorias e ideias que sustentem suas reflexões e confrontos na construção de novas
estratégias didáticas que respeitem o direito das crianças pequenas à uma educação de
qualidade em nossas escolas.
REFERÊNCIAS
ALARCÃO, Isabel. Escola reflexiva e desenvolvimento institucional: que novas
funções supervisivas? In. OLIVERIA-FORMOSINHO, Julia. A supervisão na
formação de professores I: Da sala à Escola. Porto: Porto, 2002.
BONDIOLI, Anna & MANTOVANI, Susanna. Manual de educação infantil de 0 a 3
anos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. CENSO ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA
2012 RESUMO TÉCNICO. Brasília: MEC, 2013
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para educação
infantil. Brasília: MEC, 2010
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3629ISSN 2177-336X
34
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer 20,
de 11 de Novembro de 2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil. Brasília: CNE/CEB, 2009.
BRASIL. Lei nº Lei nº 10.172, 09 de janeiro de 2001. Aprova o Plano nacional de
Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF., 09 de
janeiro de 2001. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm>. Acesso em: 05 fev.
2016
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Funcamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Lei n. 9.394, de 20
de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário
Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, v. 134, n. 248, 23 dez. 1996.
Seção I, p.27834-27841.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal n. 8069/90, 1990.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
CONTRERAS, José Domingo; FERRÉ, Nuria Perez de Lara. Investigar la experiência
educativa. Madrid: Morata, 2010.
FOCHI, Paulo. Afinal, o que os bebês fazem no berçário? Comunicação, autonomia e
saber-fazer de bebês em um contexto de vida coletiva. Porto Alegre: Penso, 2015
HOYUELOS, Alfredo. La ética en el pensamento y obra de Loris Malaguzzi.
Barcelona: Ocatedro, 2004.
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia; FORMOSINHO, João. A formação em contexto: a
perspectiva da Associação Criança. In: OLVEIRA-FORMOSINHO, Julia;
KISHIMOTO, Tizuko Morchida Formação em contexto: uma estratégia de integração.
São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em:
<http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php>. Acesso em: 05 fev. 2016.
PINAZZA, Monica Appezzato. Formação de profissionais da educação infantil em
contextos integrados: informes de uma investigação-ação. 2014, livre docência. 2014.
Tese (Livre Docência em Educação Infantil), Faculdade de Educação, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/48/tde-01122014-155847/>.
Acesso em: 21 jun. 2015.
VASCONCELOS, Queila Almeida. Crianças bem pequenas no cotidiano da escola:
tecendo relações entre participação e interesses de aprendizagem. Dissertação
(Mestrado) -- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2015.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3630ISSN 2177-336X
35
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
3631ISSN 2177-336X