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PRÁTICAS TRADICIONAIS DE MANEJO DOS SOLOS DE QUINTAIS AGROFLORESTAIS URBANOS EM REGIÃO DE FLORESTA COM ARAUCÁRIA NO PARANÁ, BRASIL Gabriela Schmitz Gomes; Ivan Crespo Silva; Kátia Cylene Lombardi; Fernanda Rocha; Jairo Woruby; Carlos Miguel de Moraes Departamento de Engenharia Florestal/ Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná; Pós- Graduação em Engenharia Florestal/ Universidade Federal do Paraná; UNICENTRO, PR-153, Bairro Riozinho, Irati, Paraná, Brasil; [email protected] RESUMO Quintais agroflorestais ou hortos caseiros são sistemas tradicionais de uso da terra disseminados em várias regiões do planeta e envolvem uma infinidade de plantas em uma composição multiestratificada. Foram levantadas as práticas realizadas em quintais em região de Floresta com Araucária no Paraná observando-se que na maioria dos casos, a entrada e o aporte de nutrientes e matéria orgânica vem do próprio espaço do quintal ou de áreas adjacentes na mesma propriedade, refletindo uma certa autonomia em relação à aquisição de insumos externos, sugerindo indicadores positivos de sustentabilidade do sistema. A partir do exposto pode-se perceber a imensa riqueza do conhecimento dessas populações rurais, que, embora vivendo próximas a centros urbanos, conservam e aprimoram ensinamentos muitas vezes recebidos de seus pais e avós. Foram tratados somente aspectos diretamente relacionados ao manejo do solo dos quintais, no entanto, estes conhecimentos fazem parte de um conjunto de saberes inter-relacionados que permitem a perpetuação desse sistema ao longo do tempo. Palavras-chave: sustentabilidade; sistema agroflorestal; agrossilvicultura INTRODUÇÃO Quintais agroflorestais ou hortos caseiros são sistemas tradicionais de uso da terra disseminados em várias regiões do planeta. Segundo Nair (1993) englobam um conjunto de plantas, que podem incluir árvores, arbustos, trepadeiras e plantas herbáceas, crescendo adjacentes a uma área de moradia. Pela sua natureza multiestratificada e complexidade de interações, envolvem uma série de conhecimentos e práticas tradicionais de manejo, perpetuadas muitas vezes através de gerações. Devido à permanência desse tipo de sistema ao longo do tempo, espera-se uma certa estabilidade e sustentabilidade de produção, amparados pelo conhecimento tradicional das pessoas responsáveis pelo seu manejo. O presente estudo teve como objetivo levantar as práticas de manejo empregadas e sua relação com a conservação do solo em quintais agroflorestais na região da Floresta com Araucária no Centro Sul do Paraná. METODOLOGIA Foram analisadas as práticas realizadas em 10 quintais agroflorestais do tipo simultâneo com idade entre 9 e 70 anos e área de 200 a 1.000 m 2 , localizados no município de Irati, região Centro-Sul do Paraná. Os quintais selecionados encontram-se no bairro de Engenheiro Gutierrez, considerado como perímetro urbano do município, porém com características rurais acentuadas e um histórico recente de urbanização (MORAES & GOMES, 2008). A região possui clima do tipo Cfb (temperado), com ocorrência de geadas freqüentes no inverno e temperatura média máxima de 24,2º C e mínima de 11º C, com precipitação média mensal de 193,97 mm e umidade relativa do ar de 79,58 %. A partir de indicações dos moradores locais e de observações de campo foram definidos os informantes qualificados para este estudo, considerados como aqueles detentores de quintais com maior biodiversidade aparente e reconhecida sabedoria popular entre os comunitários. As práticas de manejo executadas nos quintais agroflorestais foram levantadas através de entrevistas semi- estruturadas realizadas nos meses de janeiro de 2008 a fevereiro de 2009 com os informantes qualificados. Foram feitos também registros fotográficos no decorrer do ano, registrando-se os principais aspectos discutidos neste trabalho. RESULTADOS E REFLEXÃO Foi possível identificar práticas tradicionais de manejo que podem estar relacionadas à conservação e à manutenção da fertilidade dos solos nos quintais agroflorestais estudados. Como se observa na

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PRÁTICAS TRADICIONAIS DE MANEJO DOS SOLOS DE QUINTAIS AGROFLORESTAIS URBANOS EM REGIÃO DE FLORESTA COM ARAUCÁRIA

NO PARANÁ, BRASIL

Gabriela Schmitz Gomes; Ivan Crespo Silva; Kátia Cylene Lombardi; Fernanda Rocha; Jairo Woruby; Carlos Miguel de Moraes

Departamento de Engenharia Florestal/ Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná; Pós-Graduação em Engenharia Florestal/ Universidade Federal do Paraná; UNICENTRO, PR-153, Bairro

Riozinho, Irati, Paraná, Brasil; [email protected] RESUMO Quintais agroflorestais ou hortos caseiros são sistemas tradicionais de uso da terra disseminados em várias regiões do planeta e envolvem uma infinidade de plantas em uma composição multiestratificada. Foram levantadas as práticas realizadas em quintais em região de Floresta com Araucária no Paraná observando-se que na maioria dos casos, a entrada e o aporte de nutrientes e matéria orgânica vem do próprio espaço do quintal ou de áreas adjacentes na mesma propriedade, refletindo uma certa autonomia em relação à aquisição de insumos externos, sugerindo indicadores positivos de sustentabilidade do sistema. A partir do exposto pode-se perceber a imensa riqueza do conhecimento dessas populações rurais, que, embora vivendo próximas a centros urbanos, conservam e aprimoram ensinamentos muitas vezes recebidos de seus pais e avós. Foram tratados somente aspectos diretamente relacionados ao manejo do solo dos quintais, no entanto, estes conhecimentos fazem parte de um conjunto de saberes inter-relacionados que permitem a perpetuação desse sistema ao longo do tempo. Palavras-chave: sustentabilidade; sistema agroflorestal; agrossilvicultura INTRODUÇÃO Quintais agroflorestais ou hortos caseiros são sistemas tradicionais de uso da terra disseminados em várias regiões do planeta. Segundo Nair (1993) englobam um conjunto de plantas, que podem incluir árvores, arbustos, trepadeiras e plantas herbáceas, crescendo adjacentes a uma área de moradia. Pela sua natureza multiestratificada e complexidade de interações, envolvem uma série de conhecimentos e práticas tradicionais de manejo, perpetuadas muitas vezes através de gerações. Devido à permanência desse tipo de sistema ao longo do tempo, espera-se uma certa estabilidade e sustentabilidade de produção, amparados pelo conhecimento tradicional das pessoas responsáveis pelo seu manejo. O presente estudo teve como objetivo levantar as práticas de manejo empregadas e sua relação com a conservação do solo em quintais agroflorestais na região da Floresta com Araucária no Centro Sul do Paraná. METODOLOGIA Foram analisadas as práticas realizadas em 10 quintais agroflorestais do tipo simultâneo com idade entre 9 e 70 anos e área de 200 a 1.000 m2, localizados no município de Irati, região Centro-Sul do Paraná. Os quintais selecionados encontram-se no bairro de Engenheiro Gutierrez, considerado como perímetro urbano do município, porém com características rurais acentuadas e um histórico recente de urbanização (MORAES & GOMES, 2008). A região possui clima do tipo Cfb (temperado), com ocorrência de geadas freqüentes no inverno e temperatura média máxima de 24,2º C e mínima de 11º C, com precipitação média mensal de 193,97 mm e umidade relativa do ar de 79,58 %. A partir de indicações dos moradores locais e de observações de campo foram definidos os informantes qualificados para este estudo, considerados como aqueles detentores de quintais com maior biodiversidade aparente e reconhecida sabedoria popular entre os comunitários. As práticas de manejo executadas nos quintais agroflorestais foram levantadas através de entrevistas semi-estruturadas realizadas nos meses de janeiro de 2008 a fevereiro de 2009 com os informantes qualificados. Foram feitos também registros fotográficos no decorrer do ano, registrando-se os principais aspectos discutidos neste trabalho. RESULTADOS E REFLEXÃO Foi possível identificar práticas tradicionais de manejo que podem estar relacionadas à conservação e à manutenção da fertilidade dos solos nos quintais agroflorestais estudados. Como se observa na

figura 1, os recursos manejados são oriundos do próprio sistema ou provenientes de áreas próximas, seja de animais associados ou de outros materiais orgânicos gerados na propriedade.

Figura 1: Fluxograma demonstrando as práticas de manejo relacionadas à conservação dos solos de quintais agroflorestais no Centro Sul do Paraná.

Com relação ao manejo dos recursos dentro do sistema, a presença de árvores consideradas adubadoras, pela sua característica de queda de folhas (caducifólia) nos meses de outono/inverno, pode representar uma considerável adição de matéria orgânica e nutrientes provindos de camadas inferiores do solo nestes ambientes marcados pela sazonalidade climática. De acordo com Nair (1993), em quintais agroflorestais um equilíbrio dinâmico pode ser esperado com respeito à matéria orgânica e aos nutrientes no piso do quintal devido à contínua adição de folhas do litter e a constante remoção através da decomposição. Allegre, Arévalo & Luque (2004) observaram que dentre as causas que os nativos de uma região do Peru atribuem a fertilidade dos solos está a decomposição de folhas que influencia no conteúdo de nutrientes. Também nos quintais analisados pelo presente estudo, pelo menos duas espécies, o Ingá (Inga sp.) e a Nogueira (Carya illinoinensis (Wang.)K.Koch) foram apontados por dois informantes como tendo principal função a deposição de folhas no quintal, já que a produção de frutos não era expressiva. Além dessas espécies, as frutíferas de clima temperado como o Pessegueiro (Prunus persica (L.)Batsch), o Caquizeiro (Diospyros caqui L.f.) e a Pereira (Pyrus comunis L.), comumente presentes, também, ao perderem totalmente as folhas apresentam bom potencial adubador. Dentre as espécies nativas, as Guabirobas (Campomanesia spp.), o Mamãozinho-do-mato (Vasconcella quercifolia A.St.Hil.), os Ipês (Tabebuia spp.) e a Paineira (Chorisia speciosaI St.Hil.) igualmente podem desempenhar esta função.

Figura 2: Á direita, ao fundo, indivíduo de Nogueira (Carya illinoinensis (Wang.)K.Koch) caducifolio iniciando brotação em quintal agroflorestal no mês de setembro de 2008. Irati- PR.

No nível inferior dos estratos, a cobertura do solo por espécies rastejantes como as abóboras e pepinos (Cucurbita spp.) e diversas variedades de batatas-doces (Ipomea spp.), minimizam perdas por erosão e protegem a superfície do ressecamento diminuindo a evapotranspiração, além de que, suas folhas aos secarem no período de baixas temperaturas, formam uma camada sobre o solo. É prática comum também a deposição dos pés de milho, após a colheita das espigas, sobre o solo entre as culturas.

Figura 3: Práticas tradicionais em quintais agroflorestais na região da Floresta com Araucária no Centro-Sul do Paraná, Brasil. Fotos superiores ilustram um amontoado de resíduos de colheita, sendo recoberto por espécies rastejantes, respectivamente nos meses de setembro/2008 e dezembro/2008; Fotos inferiores mostram o recobrimento do solo por espécies rastejantes e a ocorrência de animais associados ao sistema, no caso ao lado do quintal. A prática de pousio executada em certas áreas do quintal, notadamente locais onde se estabelecem as culturas agrícolas anuais (pepino, abóboras, feijões de vagem e para grão, milho, etc), é realizada no período de entressafra, nos meses de maio a setembro. Estas áreas são deixadas colonizar por espécies espontâneas, que somente são retiradas através de capinas na época de preparo do terreno e plantio na entrada da primavera. Segundo Copijn (1988), o pousio melhora as condições químicas e físicas do solo após uma fase de utilização. Na grande maioria dos quintais se observa um amontoado feito com o material orgânico dos restos culturais do quintal e de áreas adjacentes, algumas vezes misturados com elementos externos como cinzas, esterco de animais e lixo doméstico. Este monte é raramente queimado, mas sim deixado para se decompor lentamente, por um ou dois anos para depois ser incorporado ao sistema, servindo nesse período como suporte para espécies rastejantes. Como recurso externo ao quintal, emprega-se a cinza do fogão doméstico a lenha, presente em todas as moradias, como medida corretiva do solo e para afastar insetos. Além da cinza, o lixo doméstico orgânico composto de cascas e restos de alimentos também é depositado no quintal, colaborando na coleta seletiva municipal. Em alguns casos o lixo orgânico é depositado especialmente próximo a alguma planta que se quer beneficiar. Em quintais matogrossenses estudados por Pasa (2004), os insumos naturais utilizados pela população local foram dejetos de animais, restos de folhas e raízes, cinza e terra transportada da margem dos rios, não sendo registrada pela autora a utilização de fertilizantes químicos.

Os animais domésticos, como galinhas, vacas e cavalos, embora não sejam considerados pelos donos como pertencentes ao quintal, encontram-se associados, separados por cerca, acelerando a transformação de restos culturais e alimentos inadequados para consumo humano em produtos secundários, como o esterco que posteriormente retorna ao quintal. Em apenas um quintal foi observada a criação de minhocas e em outro é realizado um sistema de compostagem do esterco de galinha acomodado em sacos e molhados regularmente para acelerar sua decomposição e diminuição da toxicidade. Estas práticas poderiam ser adaptadas e estendidas aos demais quintais. Cabe registrar que além dessas práticas tradicionais descritas, ocorre também a utilização de insumos externos a propriedade, adquirindo-se no comércio produtos corretivos de acidez (calcário; pó de osso) e adubos químicos (NPK). Em quintais presentes em um assentamento rural na mesma região do presente estudo, Rondon-Neto et al. (2004) também observou que os proprietários utilizam esterco produzido no próprio local, somente ocorrendo complementação da adubação orgânica com corretivos e adubos químicos em 40% deles. RELAÇÃO DO TRABALHO COM A SUSTENTABILIDADE O presente estudo levantou diversas práticas utilizadas no manejo dos quintais, verificando-se que, na maioria dos casos, a entrada e o aporte de nutrientes e matéria orgânica vem do próprio espaço do quintal ou de áreas adjacentes na mesma propriedade, refletindo uma certa autonomia em relação à aquisição de insumos externos, sugerindo indicadores positivos de sustentabilidade do sistema. Podem ser inseridas nessas práticas de manejo algumas melhorias tecnológicas, desde que devidamente discutidas e adaptadas à realidade local, que visem um aumento da sustentabilidade do sistema. Por exemplo, uma sincronia de poda das árvores adubadoras x as exigências ecológicas de nutrientes das culturas agrícolas poderia disponibilizar um melhor aproveitamento desse recurso no momento mais necessário. Também a semeadura de espécies de adubação verde de inverno nas áreas de pousio traria benefícios ao sistema. CONCLUSÕES E LIÇÕES APRENDIDAS A partir do exposto pode-se perceber a imensa riqueza do conhecimento dessas populações rurais, que, embora vivendo próximas a centros urbanos, conservam e aprimoram ensinamentos muitas vezes recebidos de seus pais e avós. Aqui foram tratados somente aspectos diretamente relacionados ao manejo do solo dos quintais, no entanto, estes conhecimentos fazem parte de um conjunto de saberes inter-relacionados que permitem a perpetuação desse sistema ao longo do tempo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLEGRE, J.; ARÉVALO, L.; LUQUE, N. Conocimiento local en el manejo de recursos naturales de La etnia Shipibo-Conibo, Rio Ucayali, Pucallpa, Peru. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SISTEMAS AGROFLORESTAIS (V), Curitiba, 2004. Anais. Colombo: EMBRAPA/SBSAF, CD ROM. COPIJN, A.N. Agrossilvicultura sustentada por sistemas agrícolas ecologicamente eficientes. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1988.46p. MORAES, C.M.; GOMES, G.S. Breve ensaio sobre a memória da paisagem do Bairro de Engenheiro Gutierrez em Irati, Pr. In: SEMANA DE HISTÓRIA (4), Irati, 2008. Anais. Irati: UNICENTRO, CD ROM. NAIR, P.K.R. An introduction to agroforestry. London: ICRAF, 1993. 499p. PASA, M.C. Etnobiologia de uma comunidade ribeirinha no alto da Bacia do Rio Aricá Açu, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de São Carlos, 2004. 174p. RONDON NETO, R.M. et al. Os quintais agroflorestais do assentamento rural Rio da Areia, município de Teixeira Soares, PR. Cerne, v.10, n.1, p.125-135, 2004.