prelorentzou renato_historia e ficçao na leitura de amphitryon

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Esta pesquisa avalia o conforto termico das residencias projetadas pelo aruiteto Rino levi, um dos protagonistas da arquitetura moderna brasileira, que se caracterizam pela presença de jardins integrados aos ambientes internos. As sete obras residenciais estudadas localizam-se em regiões diferentes do território brasileiro e apresentam soluções para p condicionamento térmico de acordo com as exigências climaticas do local, tais como elementos de proteção solar, dispositivos para ventilzação cruzada ou instalação de calefação.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    RENATO PRELORENTZOU

    SOMBRA DE UM LIVRO Histria e fico na leitura de Amphitryon, de Ignacio Padilla

    So Paulo

    2008

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    RENATO PRELORENTZOU

    SOMBRA DE UM LIVRO Histria e fico na leitura de Amphitryon, de Ignacio Padilla

    Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em

    Histria Social do Departamento de Histria, da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So

    Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Jlio Pimentel Pinto

    So Paulo

    2008

  • Para Jos Brighenti e Antonio Prelorentzou,

    por suas histrias.

  • Sumrio Agradecimentos.................................................................................................................... 4 Resumo.................................................................................................................................. 6 Abstract................................................................................................................................. 7 I. O LIVRO 1. Introduo Um signo para trs significados........................................................................................ 10 um livro na histria um livro de histria um livro da histria Resumo do Enredo, Cronologia e Diagramas.................................................................. 17 Nota do Editor...................................................................................................................... 18 I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires 1957...................... 18 II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra 1948............................................. 23 III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana) 1960.......... 27 IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres 1989.......................................... 33 Colofo Ignacio Padilla San Pedro de Cholula 1999.................................................. 40 Cronologia............................................................................................................................ 42 Diagrama de Identidades...................................................................................................... 44 Diagrama de Locaes......................................................................................................... 45 2. Primeiro Sentido: um livro na histria o autor e a tradio Ignacio Padilla e o Manifiesto Crack aes e reaes................................................... 48 um autor na vida um manifesto na tradio um manifesto na crtica dois manifestos na crtica um manifesto na dcada um autor no manifesto mais uma leitura na crtica uma releitura na crtica Ignacio Padilla e o Manifiesto Crack antes e depois..................................................... 66 um boom na literatura latino-americana mais um crack na tradio de rupturas

    1

  • um mexicano na matriz argentina um livro na histria II. A LEITURA 1. Instrumentos e conceitos A obra aberta e os protocolos de leitura: o leitor e o autor............................................ 82 2. Segundo Sentido: um livro de histria o temrio Anlise dos captulos.......................................................................................................... 92 N - Nota do Editor - ?........................................................................................................... 93 I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires, 1957........................ 96 II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra, 1948............................................. 101 III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana), 1960.......... 107 IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres, 1989.......................................... 117 V - Colofo Ignacio Padilla San Pedro de Cholula, 1999............................................ 124 Diagrama de Eco................................................................................................................ 131 Diagrama de Narradores.................................................................................................... 132 Diagrama de Instncias Discursivas................................................................................... 133 Diagrama de Perspectivas.................................................................................................. 134 Dilogos crticos com a tradio histrica e literria: desassossego e impostura...... 135 identidades de narradores e narradores de identidades autores de textos e textos de autores dedues de policial memrias de testemunhas e testemunhos de memria um livro de histria III. AS LEITURAS 1. Leitura e Escritura processos crticos de construo do conhecimento Histria: o paradigma indicirio.................................................................................... 163

    passado, memria, histria, narrativa trpico, enredo, retrica, relato vestgios, sinais, ndices, provas narrativa ficcional, narrativa histrica, inveno, imaginao Histria e fico................................................................................................................ 185

    2

  • livros, leitores histrias, historiadores leituras, escrituras 2. Terceiro Sentido: um livro da histria a simulao Histria e fico: Amphitryon.......................................................................................... 193 um livro da leitura um livro do indicirio um livro da histria Bibliografia e Fontes........................................................................................................ 211

    3

  • Agradecimentos Em 1964, dezessete anos aps a publicao de seu primeiro livro, A trilha dos ninhos

    de aranha, Italo Calvino retornou quelas pginas para tentar entender o prprio impulso de

    tornar fico seu testemunho como jovem soldado na guerra de resistncia partigiana.

    Naquele prefcio, a cada trs ou quatro pargrafos, Calvino desistia, recomeava, mostrava

    dvida, depois remorso, depois arrependimento. Dizia que as leituras e a experincia de

    vida no so dois universos, mas um. Cada experincia de vida, para ser interpretada, elege

    determinadas leituras e com elas se funde. Que os livros sempre nascem de outros livros

    uma verdade s aparentemente contraditria com a outra: que os livros nascem da vida

    prtica e das relaes entre os homens. E contava que melhor seria nunca ter escrito A

    trilha..., pois tal livro que eternamente o obrigaria a refut-lo ou aprofund-lo, a corrigi-lo

    ou desmenti-lo, que o definiu mesmo que ainda estivesse muito longe de definir-se nunca

    o consolaria do que havia destrudo para escrev-lo: a experincia que talvez lhe pudesse

    valer a escrita de seu ltimo livro, mas que s lhe bastou para escrever o primeiro.

    Nos primeiros dezoito meses em que estive matriculado nesse programa de ps-

    graduao, tentei desenvolver uma pesquisa sobre Octavio Paz e as referncias expresso

    latino-americana em sua obra. Foi ento que, no final de junho de 2006, a pesquisa se

    voltou ao estudo de um outro autor mexicano e suas conexes com o mecanismo da

    histria. Hoje seria ingnuo dizer que um projeto foi descartado em funo de outro ou que

    toda e qualquer leitura anterior ou fortuita no tenha dado a este escrito uma contribuio

    to fundamental quanto esses outros dezoito meses de estudo de Padilla, Eco, Ginzburg e,

    talvez com outra inteno, Calvino. So, mais que as vicissitudes que se me impuseram

    nesses ltimos anos, as leituras desses autores, leitores confessos de Borges, que marcam

    este texto.

    Agradeo a Jlio Pimentel Pinto, querido mestre, pela pacincia e inigualvel

    generosidade com que, desde muito antes e para muito alm dessa pesquisa, orienta meus

    itinerrios de leitura; Prof. Dr. Ana Cecilia Olmos e ao Prof. Dr. Nelson Schapochnik,

    pelos valiosos comentrios ao relatrio de qualificao e, uma vez mais, por me

    concederem o privilgio de contar com suas presenas na banca de defesa; a Juliana

    Garrido Pereira, Fernanda Trindade Luciani, Joo Paulo Maro, Fernando Seliprandy

    4

  • Fernandes, Daniel Lago Monteiro, Andr Junqueira Prevatto, Guilherme de Paula Santos,

    Trcio Vancin de Azevedo, Ricardo Mendes, Joo Antnio Mallmann, Fausto Jorge de

    Arajo, Jos Roberto Saglietti e Jos Roberto Saglietti Filho, amigos novos e antigos, por

    compartilharem, cada um sua maneira, histrias e leituras de mundo nas infindas

    conversas; a Deco, Gui e Flvia Helena, pelo carinho e apoio incondicionais; e, claro, a

    Ana Maria e Pierre, por compreenderem, sempre.

    So Paulo, dezembro de 2007

    [email protected]

    [email protected]

    5

  • Resumo Este trabalho explora trs possveis significados para o romance histrico Amphitryon, de

    Ignacio Padilla, e, a partir disso, estuda modos de interao entre histria e fico. O

    primeiro sentido analisa-o como um livro na histria, uma obra marcante que se escreveu

    sob o contexto de um manifesto clebre por tentar reorganizar a tradio literria latino-

    americana. O segundo sentido toma-o como um livro de histria, um romance que no s

    se aproxima de um gnero literrio afeito aos fatos historiogrficos, mas que, sobretudo,

    articula contedos histricos, literrios e culturais sob formas narrativas que tambm

    derivam do sculo passado. O terceiro sentido, finalmente, o l como um livro da histria,

    uma narrativa que, pela disposio de relatos e narradores, simula o prprio mecanismo do

    fazer histrico. Conduzindo essas argumentaes esto os princpios da dialtica forma-

    abertura e da interao autor-obra-leitor, derivados de Umberto Eco, a noo de leitura e

    escritura como forma de conhecer, cara a Jorge Luis Borges, e o paradigma indicirio, de

    Carlo Ginzburg. A tentativa final fazer de um exerccio de crtica literria uma reflexo

    sobre a histria. Para tanto, insiste-se na analogia entre verificao e interpretao de dados

    e as mediaes livro-leitor-leituras, e adota-se a espiral de leituras historicizadas como

    modo operativo que aproxima discursos ficcionais e discursos histricos, esboando-se,

    ento, paralelos e limites nos percursos da produo historiogrfica e da produo ficcional

    ao longo do sculo XX.

    Palavras-chave: literatura latino-americana, identidade latino-americana, Manifiesto Crack,

    leitura, fico e histria, paradigma indicirio, realismo.

    6

  • Abstract

    This work explores three possible meanings for the historical novel Amphitryon, of

    Ignacio Padilla, and, from this, it studies ways of interaction between history and fiction.

    The first meaning analyzes it as a book in history, a remarkable work that was written

    under the context of a manifest notable for trying to reorganize the Latin American literary

    tradition. The second meaning takes it as a history book, a novel that not only comes close

    to the historiographies facts, but, above all, it articulates historical, literary and cultural

    contents under narrative forms that are also drawn from the last century. The third meaning,

    finally, reads it as a book of history, a narrative that, for the disposal of stories and

    narrators, simulates the mechanism of history. As a guide line for these arguments, there

    are the principles of the dialectic form-opening and the interaction author-work-reader,

    derived from Umberto Eco, the notion of reading and writing as forms of knowledge, from

    Jorge Luis Borges, and the evidential paradigm, of Carlo Ginzburg. The final attempt is to

    make a reflection on history from a literary critical exercise. In such way, one must insist

    on the analogy between verification and interpretation of data and the relations book-

    reader-readings, and adopts the historic spiral of readings as an operative way that

    approaches fiction and historical speeches, and so, outlining parallels and limits in the

    course of the historiography and fictional production throughout the 20th century.

    Keywords: Latin American literature, Latin American identity, Manifiesto Crack, reading,

    fiction and history, evidential paradigm, realism.

    7

  • pero mientras vivimos no podemos escapar ni de las mscaras no de los nombres y

    pronombres: somos inseparables de nuestras ficciones nuestras facciones. Estamos

    condenados a inventarnos una mscara y, despus a descubrir que esa mscara es nuestro

    verdadero rostro.

    Octavio Paz, El laberinto de la soledad

    8

  • O LIVRO

    No universo j no havia um continente e um contedo, mas apenas uma espessura geral de sinais

    sobrepostos e aglutinados que ocupava todo o volume do espao, um salpicado contnuo, extremamente

    minucioso, uma retcula de linhas, arranhes, relevos e incises; o universo estava garatujado em todas as

    suas partes e em todas as dimenses. No havia mais como fixar um ponto de referncia: a galxia

    continuava a girar, mas eu no conseguia mais contar seus giros, e qualquer ponto podia ser o de partida,

    qualquer sinal acavalado nos outros podia ser o meu, porm de nada me serviria descobri-lo, to claro

    estava que independentemente dos sinais o espao no existia e talvez nunca tivesse existido.

    Italo Calvino, um sinal no espao, As cosmicmicas, 1965

    9

  • Introduo

    Um signo para trs significados

    Talvez existam muitos sentidos para se definir como histrico um livro, para unir e

    enunciar, lado a lado, as palavras livro e histrico. O mais simples ou recorrente deles seria

    utilizado para definir uma obra como marcante, como objeto pontual e localizado

    cronologicamente que se insere na tradio literria e reconfigura seu panorama: um livro

    na histria. O compromisso com os fatos, exposto ou aludido em suas referncias a

    acontecimentos e personagens reais, em seu intuito de reapresentar prismaticamente dados

    empricos da existncia, tambm serviria a uma construo semelhante: um livro de

    histria. O interessante, porm, seria pensar que um desses sentidos se apresentasse de

    maneira cifrada, que, escondido nos signos da narrativa, por ela simulasse os mecanismos

    prprios do termo que, somado ao primeiro, o qualifica; que, enquanto relato, uma obra

    representasse a histria: um livro da histria.

    Em Amphitryon, esses e outros significados no se excluem, multiplicam-se. Reunir

    signos, interpret-los e buscar alguma fixidez por meio da enunciao so atos constantes

    no romance de Igncio Padilla: um livro feito de histrias que so outras e de outros que

    so impostores; narrativa em que histria e fico formam um duplo, em muitos sentidos.

    um livro na histria

    Amphitryon o mais relevante romance da ainda breve produo ficcional de um

    jovem autor mexicano, membro de um movimento compromissado, desde sua

    autodenominao, com a ruptura. O Manifiesto Crack, lanado em 1996, propunha-se a

    descontinuar a chamada literatura ps-mgica, que havia diludo e simplificado as formas e

    a esttica do boom internacionalizante da produo latino-americana dos anos 1960/70.

    Para tanto, procurava adotar, ainda que de diferentes maneiras dentro do prprio grupo,

    procedimentos de no-linearidade narrativa, de apego polifonia e ao uso de estruturas

    elpticas e cifradas complexas escrituras que exigiam a colaborao do leitor.

    10

  • Amphitryon expressa as intenes de uma gerao que pde desprender-se da tradio

    local e imediatamente anterior para por meio de seus repertrios de leituras particulares

    incorporar-se tradio ocidental e, assim, revisitar e reelaborar muitos de seus temas e

    artifcios formais: os discursos psicolgicos de subjetividades conflitantes, o jogo com

    temporalidades diversas, os diferentes focos narrativos, a aproximao com a literatura

    histrica e de testemunho, a convivncia entre personagens reais e fictcios, os

    questionamentos acerca dos limites e efeitos da fico e da histria. Uma gerao imersa na

    tradio de ruptura do moderno que pressupe tambm continuidades que se impunha

    nos itinerrios da literatura na Amrica Latina determinando novas posies para os

    escritores do continente, e se reservava ao direito de tomar para si no apenas o patrimnio

    latino-americano, mas o universal; que se permitiu no falar sobre Amrica, mas,

    certamente, a partir da Amrica.

    Padilla, portanto, rev, repensa e reformula a questo da expresso latino-americana e

    seu espao no cenrio mundial, e possibilita a expanso das anlises do mbito dos dilogos

    de seu movimento com a tradio literria os cnones ocidentais, a matriz borgeana, o

    realismo mgico e suas diluies para as referncias a outros campos da cultura e do

    conhecimento o cinema, as artes visuais, a filosofia e a histria , o que torna vivel a

    interpretao de Amphitryon como um temrio do sculo XX, expresso em suas

    reelaboraes formais e tambm nas reflexes de seus contedos.

    um livro de histria

    O esfacelamento da narrativa realista, que no mais pde representar o mundo

    fragmentado, o esfacelamento dos autores em sua existncia desassossegada de

    indivduos na multido da modernidade. As formas derivadas desse experimentalismo

    literrio, suscitado pelo catico cenrio do sculo XX, so revistas por Padilla; os

    acontecimentos determinantes e determinados desse quadro de incertezas tambm esto

    contidos em seu livro: as duas grandes guerras mundiais, a dissoluo das identidades e a

    questo dos nacionalismos europeus, o nazismo. Amphitryon um relato sobre conscincias

    em conflito com a experincia histrica traumatizante; uma listagem de ocorrncias do

    desassossego nas esferas particular e coletiva, na subjetividade e na objetividade. Seu autor

    11

  • l os fragmentos deixados pela tradio literria e historiogrfica e reescreve um

    inquietante livro sobre indivduos em busca e em dvida e os localiza no cenrio de

    fragmentao do mundo e das certezas, no sculo da descrena e da quebra das

    transcendncias: sculo (da conscincia) da impostura. No individual e no coletivo.

    Os narradores de Amphitryon esto em latente procura por imagens de fixidez onde

    possam ancorar justificativas para suas existncias: o nome prprio, a filiao, a ptria, a

    religio, a memria, a totalidade, a essncia, o ncleo-rgido redentor ao qual retornar.

    Entretanto, o enredo se desencadeia por processos destrutivos de desmontagem e de cincia

    da condio de falsificao e engano: o ssia, a sombra, o bastardo, o falsrio, o dubl, o

    ghost-writer, o absoluto descrente. A narrativa, anloga ao sculo XX, parece querer aludir

    aos fracassos ideolgicos e provar a falncia das crenas e dos idealismos do XIX. As

    referncias esto distorcidas pelas mudanas de cenrio e de narrador e pelas reformulaes

    identitrias por eles sofridas; o passado torna-se inapreensvel porque sempre fraturado em

    vestgios e contaminado pela memria mutante de outro indivduo tambm desassossegado.

    A sensao de inevitvel falsidade, pois o terreno na histria e na narrativa, na

    experincia emprica e no enredo do livro da incerteza, da dvida fomentada por

    sujeitos que recriam o mundo sempre que o nomeiam, no real e na fico. Se, no

    nominalismo bblico, Deus conhece a cada um pelo nome prprio, a traio dos narradores

    de Padilla parece apontar para os mesmos questionamentos sobre a relao entre o real e a

    linguagem que no sculo passado atingiram os campos da arte e da filosofia: se uma coisa

    o que ela se chama e se o prprio nomear arbitrrio construto humano, fica desfeito o

    transcendente vnculo entre a substncia e o nome, entre a essncia e a palavra. A crtica da

    linguagem e do mundo feita pela linguagem. O substantivo outra vez significado:

    embora sua enunciao ainda baste pra criar certezas, essas se tornaram pequenas verdades

    contadas de forma fragmentria. Identidades e realidades so artificialidades porque

    inalcanveis e inevitavelmente revistas e recompostas. A busca pela identidade vai, na

    narrativa da histria e do livro e apenas pela narrativa dado saber , sendo desvelada e

    revelada, se no como infrutfera, pelo menos como irremediavelmente forjada, fingida,

    imposta. , ento, um esforo por convencer-se, procura por auto-engano: perguntas

    respondidas apenas no reino falacioso da imaginao, onde todo fato e toda palavra levam

    mentira. impossvel o retorno a casa e igualmente improvvel que ela ainda exista,

    12

  • pois tudo se d no plano contextual. No h ncleo-rgido ao qual retornar. As certezas so

    limitadas e efmeras.

    A identidade se coloca, ento, sob o prisma terico das relaes entre discurso

    histrico e discurso ficcional. Diante da tradio literria e dos traumticos eventos

    sucedidos ao longo do sculo passado, Padilla compe uma intricada pardia da inquietante

    busca identitria, elabora uma narrativa fundida entre histria e literatura para representar

    aquilo que interpreta ter sido a danao do sculo XX: as identidades, quaisquer que sejam,

    so validadas apenas em discursos, supostamente reais ou supostamente ficcionais; e tal

    como leituras do real so, inevitavelmente, fragmentadas e provisrias.

    O tema da impostura tomada como verdade depois de enunciada o fato de tudo

    passar a existir depois de nomeado, depois de se dizer meu nome especialmente

    caro literatura de um continente imaginado muito antes de descoberto, onde escritores e

    seus escritos tiveram de inventar uma tradio identitria e fundar suas naes atravs das

    narrativas. Romance hispano-americano, Amphitryon rene narrativas, e ao faz-lo escreve

    por meio da releitura de narrativas da tradio sobre si prprio, sobre o ato literrio de

    nomear coisas e de representar e criar relatos, livros, identidades, verdades, memrias e

    histrias exclusivamente a partir de palavras.

    Todas as muitas aluses impostura so costuradas, no decorrer da trama, pela

    metfora-guia do xadrez: o jogo tomado tambm como simulacro e como representao

    espao em que se recriam metaforicamente as condies da vivncia humana: terreno

    cercado, espao definido e regulado por regras especficas em que cada subjetividade se

    anula e transforma em outra para jogar. Ocorre, ento, uma alternncia entre duas

    condies de destinos: uns determinados pelos jogos de outros; outros decididos fatalmente

    pela habilidade individual de jogar. Um misto de raciocnio e sorte, de livre-arbtrio e

    sujeio, de personagens-jogadores e personagens-pees: metfora da inocncia e da culpa

    em um perodo caracterizado pelo domnio de sujeitos sobre outras subjetividades

    dissolvidas em multido.

    13

  • um livro da histria

    O romance trata da constante troca de identidades nomes, condutas, filiaes,

    referncias de personagens sempre a procura de explicao para a prpria existncia no

    catico e fragmentado cenrio do entreguerras. A busca nos apresentada por Padilla por

    meio de relatos formados pela memria de outros relatos e de fatos h muito passados: o

    acesso ao enredo de Amphitryon ao objeto-livro que est na estante dado por outras

    histrias; os captulos do livro formam um conjunto difuso, no qual os diferentes

    narradores, cada um com sua inteno e preocupao, tentam remontar a trama. Contar o

    enredo total do romance impossvel, pois no s os fatos, mas tambm os personagens e

    narradores encontram-se entrecruzados e contraditrios. Essa dificuldade de definio

    identitria experimentada pelos personagens ao longo da narrativa transferida tambm

    para o leitor: cada relato fracionado pedao da histria transforma radicalmente o

    sentido das outras leituras anteriores e posteriores, soma e subtrai interpretaes em um

    movimento que da literatura e tambm da histria, j que ambas so formadas por textos,

    com textos e contextos. O leitor atua na construo do romance e repete, durante a leitura, o

    processo de constituio de um saber possvel, forjado pela interpretao de indcios, e, por

    seu prprio repertrio, formula um discurso preenchido com fico ou com histria

    instncias que no se deixam perceber enquanto uma ou outra: duas formas distintas, porm

    aproximadas, de interpretao da experincia fragmentada; duas maneiras de edificar

    conhecimentos sabidamente provisrios e limitados, mas que ainda assim se constituem e

    se realizam pelo ato de nomear e de narrar de construir verdades parciais.

    A tessitura do romance uma pardia do sculo XX por seu temrio em forma e

    contedo, tradio literria e histrica e tambm pardia do conhecimento paradigmtico

    do sculo passado: ndices reinterpretados por um ciclo de leituras. Um exerccio crtico

    marcado pela inquietude e estranhamento tambm presentes no livro. Dessa forma, Padilla

    aproxima os discursos histricos aos ficcionais e simula os dilogos da tradio literria e

    historiogrfica na construo de um conhecimento dado pela reunio e releitura de signos

    dispersos ao acaso: arbitrria a biblioteca pessoal, arbitrria a disposio dos vestgios

    histricos sucessivamente resignificados e reinterpretados pelo leitor, pelo historiador

    pela memria, pessoal ou coletiva.

    14

  • Os narradores de Amphitryon partem de suas memrias individuais desassossegadas,

    fragmentadas e limitadas para compor uma narrativa tensionada entre tempos e permeada

    por uma disperso de indcios com a qual cada um deles busca significar a prpria vida. O

    leitor de Padilla rene essas pequenas verdades contadas pelos narradores em meio a um

    vasto universo de referncias eruditas e busca compreender o sentido do romance que acaba

    de fechar. O crtico literrio percorre seu repertrio pessoal pequena parte das fices

    contadas pelos escritores da tradio e, de seu lugar, busca estabelecer semelhanas e

    criar relaes no dilogo de autores e livros. O historiador l os pequenos sinais

    deixados/contados pela experincia do mundo, recolhe vestgios, fragmentos de memria,

    de fatos, de leituras e os resignifica em novo discurso, em nova enunciao: determina e

    fixa novos parmetros constitui novas verdades em que se baseiam novas leituras e

    identidades.

    Nesse campo de recprocas interpenetraes, Padilla d um passo adiante das linhas

    limtrofes da fico e da histria: o escritor nomeia e nomeia a si prprio; heternimo ou

    narrador e tambm personagem de si em suas prprias pginas, igualado aos demais

    narradores supostamente fictcios, supostamente reais. A impostura da dinmica da histria

    pela fico reforada ainda por outros artifcios literrios: a fragmentao da narrativa

    revela a existncia duvidosa das verdades compostas por discursos parciais (por serem

    fracionados e contaminados) e manifesta a tenso entre temporalidades e a ausncia de

    linearidade to caractersticas da interpretao histrica; os diversos focos narrativos,

    baseados na memria da 1 pessoa, so diferentes formas de dvida e engano que se

    prestam tambm aos mltiplos focos literrios, simulaes da crtica multifocal.

    Amphitryon um livro de duplos e impostores; atravessam-no inmeras referncias

    histria e ao seu duplo, a fico irmo gmeo que imita com preciso um rosto, mas que

    ainda assim no pode s-lo, pois, quando o , j outro, discurso sobre, palavra.

    tambm uma interpretao crtica feita margem, e como tal, tem cincia de sua prpria

    paisagem e dos dilogos que trava com a tradio: sabe que conhece pouco e apenas por

    seu prisma; critica a si mesmo ao revelar seu espao de enunciao. um livro de fico, e,

    por sua cifrada narrativa, um leitor pode entender que, por fim, todos so leitores

    narradores de Padilla, Padilla, leitores de Padilla, crticos literrios e historiadores que

    15

  • trabalham com relaes entre as partes, reformulando-as, resignificando-as. Elaboram um

    discurso e nomeiam criam verdades particulares e provisrias a partir da enunciao.

    Inevitvel impostura.

    16

  • Resumo do Enredo, Cronologia e Diagramas

    Segundo Umberto Eco1, a Histria ou Fbula de um texto literrio a lgica das

    aes e o curso dos eventos ordenados temporalmente, o esquema fundamental da

    narrativa, cuja definio depende do nvel de interpretao e da competncia enciclopdica

    do leitor; j o Enredo o livro como de fato contado em sua superfcie, com

    deslocamentos temporais, saltos, digresses, descries e reflexes.

    Durante a montagem do presente trabalho, considerou-se necessria a incluso de um

    resumo do enredo e de diagramas explicativos do objeto de estudo. Aqui, nesse primeiro

    momento, afasta-se a tentativa de preencher as propositais lacunas ou indicar uma das

    inmeras possibilidades de interpretao do livro que, de resto, so certamente desejadas

    pelo autor. O intento, muito mais simples, fixar a narrativa, sublinhar as passagens mais

    relevantes e dirimir algumas dvidas objetivas, bem como apresentar ao suposto leitor deste

    texto uma obra de circulao ainda restrita. Mais adiante, outros diagramas tentaro

    esquematizar as prismticas interpretaes e a fluidez dos significados da trama, para que

    os sentidos de tal estrutura narrativa possam ser alvo de posterior reflexo.

    So expostos nas pginas que seguem os acontecimentos que estruturam a fbula e as

    impresses e remisses dos narradores; nessas, sempre que possvel, foram mantidas as

    prprias palavras do autor, para que os termos exatos de suas analogias, metforas e

    imagens possam ser posteriormente analisados.

    1 ECO, Umberto. Lector in Fabula. So Paulo, Perspectiva, 1979 e Seis passeios pelo bosque da fico. So Paulo, Cia. das Letras, 1994.

    17

  • Nota do Editor2

    A trama principal deste romance se desenrola na ustria, na Polnia e na Srvia

    entre 1916 e 1945, isto , desde meados da Primeira Guerra Mundial at o final da

    Segunda. A narrao parte do momento em que a Primeira Guerra Mundial tambm

    chamada aqui Grande Guerra ou guerra de 14 comea a se resolver contra a

    Alemanha, o imprio Austro-Hngaro e seus aliados. Isso precipita a desintegrao da

    ustria-Hungria e a capitulao da Alemanha, que assinar o Tratado de Versalhes em

    1919, resultando ainda no fim dos imprios otomano e russo.

    No entreguerras, a Alemanha derrotada ressurge como grande potncia. Hitler anexa

    a ustria e, em setembro de 1939, invade a Polnia, deflagrando a Segunda Guerra

    mundial, que terminar com a rendio incondicional do exrcito nazista em maio de

    1945.

    I Uma sombra sem nome Franz T. Kretzschmar Buenos Aires - 1957

    Franz T. Kretzschmar inicia sua narrativa referindo-se ao pai: este dizia chamar-se

    Viktor Kretzschmar, era guarda-chaves na linha Munique Salzburgo e no cometeria, sem

    motivos, um crime; taciturno, raivoso e calculista, era capaz de esperar anos pelas

    circunstancias favorveis para aplicar um golpe, como certa vez esperou uma dezena de

    horas para abater uma lebre que seu dio reduziu a uma massa incomvel. Caracterizava-o,

    ainda, uma conscincia de homem derrotado e esperanoso de um dia recuperar a luz que

    lhe fora roubada na juventude. O narrador refere-se ento a um julgamento no tribunal

    ferrovirio, em que Viktor, pouco negando a culpa pelo acidente, sentenciado preso. Para

    a surpresa de Franz, o veredicto no provoca tristeza, mas alvio na me, que revela: o

    homem acusado pelo tribunal chama-se Thadeus Dreyer e tem dio mortal dos trens. O que

    corta a linha entre a infncia e a idade adulta de Franz no propriamente a revelao sobre

    o verdadeiro nome do pai fato j orgulhosamente sabido desde que era criana, sem em

    nada abalar sua admirao de filho , mas a desiluso quanto ao incondicional amor de

    Viktor pelos trens, j que em um deles apostara e ganhara seu destino em uma partida de

    2 Reproduo integral do texto. PADILLA, Ignacio. Amphitryon. So Paulo, Cia das Letras, 2005, p. 11.

    18

  • xadrez. Tal jogo, ocorrido no vago que levava as tropas ao front oriental na Guerra de 14,

    havia sido at ento fantasiado por Franz como uma disputa numa suntuosa atmosfera de

    um vago-bar com oficiais e damas de alta categoria. Aps o acidente, porm, sua me

    desmentiu essa verso.

    Na poca da partida de xadrez, Viktor era muito jovem, mas no o suficiente para se

    livrar do recrutamento forado de 1916 de quando data a fotografia que Franz ainda

    guarda em sua bagagem: o av Dreyer na estao de Vorarlberg entregando seu ltimo

    filho a uma guerra de causa perdida, momentos antes de o jovem Thadeus encontrar seu

    adversrio, o verdadeiro Viktor Kretzschmar. Contrariando a imaginao de Franz, o

    oponente fora descrito pela me no como um refinado cavalheiro vitoriano, mas como um

    dentre tantos outros jovens que haviam se valido de um parente influente para escapar do

    recrutamento e arranjar um servio pblico. A aposta em jogo foi claramente definida: caso

    o pai de Franz vencesse, trocaria seu nome e seu posto na frente oriental pelo emprego de

    guarda-chaves na nona guarita da linha Munique-Salzburgo; se fosse derrotado, daria um

    tiro na cabea antes do fim da viagem. O aparente absurdo da disputa encontrava

    justificativa, segundo Franz, na adversidade de uma poca em que as vidas, as razes e os

    destinos eram frgeis e, indiferenciados, se reduziam a um mesmo anonimato. Uma

    condio agonizante em que pouca utilidade havia em vencer e prolongar a existncia.

    Escondido sob uma mscara de desmedido entusiasmo pelas ferrovias, Viktor

    desempenhou impecavelmente por quinze anos as funes de guarda-chaves, como se os

    diplomas que cobriam as paredes do chal fossem reiteradas certides de batismo de um

    homem cujo destino sempre fora o de dedicado funcionrio ferrovirio. Sem que se pudesse

    denunciar sua impostura, sua nova identidade foi plenamente assumida procurou de incio

    at simular a doena respiratria que supostamente o havia liberado do servio militar e,

    de tanto ser chamado e reconhecido como Viktor Kretzschmar, acabou se convencendo de

    que o nome realmente lhe pertencia. E aps suspender definitivamente a troca de

    correspondncias com seus pais, os nicos que ainda insistiam em cham-lo Thadeus e a

    relembr-lo de sua desero, passou a aguardar diariamente a notcia da morte daquele que

    agora ostentava seu antigo nome esperando que o assassinato de seu passado trouxesse

    legitimidade para sua nova vida, agora ameaada tambm pela natureza, que insistia em

    negar-lhe herdeiros em uma srie de gestaes interrompidas. Quando nasceu Franz, filho

    19

  • nico, j no final da Guerra de 14, ningum duvidava de sua bastardia. O espao do chal

    ficou reduzido pela tentativa de Viktor em preencher a ausncia dos irmos de Franz com

    um infindvel aparato ferrovirio livros, manuais, gravuras, selos, mapas de linhas

    frreas, romances de argumento ferrovirio. Em um anexo construdo ao lado da casa, o

    funcionrio edificou sua prpria maquete do mundo, com aldeias cenogrficas e pequenas

    locomotivas importadas sob o monitoramento de um hussardo de chumbo que fazia as

    vezes de guarda-chaves em uma guarita pintada com as cores das ferrovias austracas.

    Durante uma das poucas conversas que Franz diz ter tido com o pai no decorrer do

    julgamento do desastre que ocorreu em 1933, pouco depois da ascenso de Hitler a

    chanceler da Alemanha, Viktor pediu ao filho a lista de mortos no descarrilamento e,

    quando a recebeu em mos, percorreu-a com uma raiva maior do que aquela com que

    procurava o seu antigo nome Thadeus Dreyer nas listas de baixas do front oriental da

    Primeira Guerra Mundial. Franz entendeu que o motivo do acidente estava relacionado

    quela antiga troca de identidades e lembrou que, na tarde anterior ao desastre, seu pai

    voltara surpreendentemente embriagado da cidade e trancara-se no anexo. No dia da

    condenao de Viktor Kretzschmar priso por negligncia culposa, Franz, instigado pelas

    revelaes da me, retornou ao anexo, forou a fechadura e encontrou o mesmo desastre

    ferrovirio representado na maquete e, no cho, o hussardo de chumbo com uniforme de

    guarda-chaves embrulhado por um recorte de jornal que anunciava a viagem do tenente-

    coronel Thadeus Dreyer, condecorado com a Cruz de Ferro por seu herosmo na Guerra de

    14, para participar como convidado de honra de um comcio da seo austraca do Partido

    Nacional-Socialista em Salzburgo. Viktor Kretzschmar, o verdadeiro Thadeus Dreyer,

    havia encontrado enfim o homem que lhe usurpara o destino e que s com a morte lhe

    podia ser restitudo.

    Passadas poucas horas da descoberta no anexo, Franz foi apresentado por sua me a

    um personagem que mais cedo havia aguardado a sentena judicial com a pose de um juiz

    ultraterreno e que, a partir de ento, se empenhou em guiar os passos do rfo carcerrio,

    marcando para sempre sua vida: o senhor Goliadkin, segundo a me, velho amigo da

    famlia, cumprimentou Franz com a mo esquerda, pois havia perdido o outro brao em

    Verdun; empilhou uma generosa quantia de dinheiro sobre a mesa como quem paga a

    contragosto uma antiga dvida de jogo e disse que o tribunal havia cometido uma grande

    20

  • injustia. A me de Franz ordenou-o a aceitar o dinheiro que, segundo ela, de fato lhes

    pertencia. O posterior silncio da me quanto s razes da presena de tal personagem e da

    nada desprezvel doao instigou Franz e o motivou a desenredar uma histria que, no

    fosse exatamente por aquela discrio materna, estaria fadada ao esquecimento to logo o

    misterioso senhor deixasse o chal.

    Apesar de inmeras vezes ter recorrido aos favores de Sr. Goliadkin, Franz nunca

    conseguiu estreitar o vnculo com seu benfeitor, que comeou a participar do destino do

    rapaz de forma flagrantemente ardilosa. Certeza que em Franz alimentou a crena que um

    dia a justia divina lhe daria a oportunidade de restaurar a honra perdida de seu pai.

    A condenao do guarda-chaves Viktor Kretzschmar e seu fracasso na tentativa de

    assassinar o tenente-coronel Thadeus Dreyer deviam parecer quele que no ltimo

    momento salvou-se do desastre ferrovirio um sinal de que Deus o considerava digno de

    um grande destino que o verdadeiro dono de seu nome jamais poderia concretizar. Um fato

    que Franz viu servir a seu pai como a confirmao de sua prpria mediocridade, ainda

    agravada pela provocativa anistia concedida pelo governo nazista em 1937. A partir de

    ento, Franz T. Kretzschmar concentrou todos seus esforos em sua secreta inteno de

    punir o tenente-coronel pelo crime de ter sobrevivido, em prosseguir com a rebelio que um

    dia seu pai iniciou contra os homens que se achavam em posio de manipular o destino

    dos humilhados.

    Valendo-se das recomendaes do poderoso Sr. Goliadkin, Franz alistou-se no

    exrcito e filiou-se ao partido para aproximar-se do agora general Dreyer oficial

    misterioso e incmodo at para os demais militares e cujo poder na hierarquia nazista

    parecia inexplicvel ntimo colaborador do marechal Gring em seus confidenciais

    projetos de alta segurana. Anos depois, Franz percebeu que sua perseguio era, na

    verdade, uma trilha na qual o prprio general o guiava para o inevitvel encontro.

    Passando os anos berlinenses no Colgio de Engenheiros Ferrovirios e em meio

    multido ensandecida, Franz buscou refgio no xadrez nico local onde podia salvar sua

    razo das ameaas perpetradas pelo vertiginoso clima de euforia coletiva, nico mundo em

    que podia sentir uma liberdade to ampla quanto as inmeras possibilidades do jogo.

    Diferentemente de seus demais passos na trajetria de Berlim, que pareciam todos

    previsveis aos olhos de seu benfeitor, o retorno de Franz aos tabuleiros, esquecidos desde

    21

  • as lies que recebia do pai, despertou um inesperado entusiasmo em Sr. Goliadkin, que

    passou a acompanhar de perto a ascendente carreira enxadrstica do pupilo, ainda que

    pouco conhecesse das regras elementares do jogo. E, no dia em que recebeu de Goliadkin a

    oferta de enfrentar no tabuleiro o general Dreyer, Franz soube que seu mentor estava a par

    das suas secretas razes que at o momento ainda no havia dado provas de conhecer e

    percebeu que tambm ele partilhava de seu sentimento de ira e vingana. Desde ento,

    sentiu-se ligado a seu benfeitor pelo comum propsito de humilhar publicamente o general

    Dreyer, aniquilando-o naquela mesma forma com a qual, anos atrs, o destino de seu pai

    fora usurpado.

    Esse entusiasmo, entretanto, durou apenas at Franz descobrir, na madrugada de um

    subrbio de Berlim, que Goliadkin no passava de um fiel ordenana do general Thadeus

    Dreyer (tempos depois constatou que os dois donos de fios aparentemente to dspares de

    sua vida haviam se conhecido na frente balcnica da Guerra de 14): este sim era o autntico

    detentor de seu destino, no apenas por, atravs do subordinado, guiar seus passos, mas

    tambm pela inegvel familiaridade com que agora Franz se reconhecia naquele semblante:

    depois de ter encarado o perfil do poderoso oficial na chuvosa madrugada berlinense, j no

    pde ter mais dvida que aquele rosto pertencia a seu verdadeiro pai.

    O dio que motivava os atos de Franz converteu-se ento em indiferena aos homens

    e aos fatos e na noo de que apenas sua prpria e estpida morte diante das tropas

    inimigas nos campos eslavos faria o general Dreyer pagar por todas as suas infmias,

    tirando-lhe a vida que ele mesmo havia construdo por intermdio do submisso Sr.

    Goliadkin. Porm, incapaz de saber se por um mero acaso ou se por mais um maquiavlico

    ato de Dreyer e Goliadkin, Franz foi removido para um grupo tcnico de apoio s tropas,

    com a incumbncia de projetar ferrovias para o transporte de materiais e prisioneiros para

    os campos de trabalho forado construdos na Polnia tarefa que acatou com total apatia.

    Outra reviravolta arrancou Franz de sua passividade e devolveu s suas mos os

    cordis que movem o futuro. Convidado por um amigo fotgrafo do alto comando alemo,

    o jovem engenheiro, que havia acabado de assumir o posto de tenente, ps-se a caminho do

    campo de Treblinka. No suntuoso vago-bar que viajava sobre os trilhos que ele prprio

    ajudara a projetar, foi apresentado ao general Thadeus Dreyer, que o cumprimentou com

    exagerada familiaridade. Este disse ter conhecido um guarda-chaves e excelente enxadrista

    22

  • da Galitzia de sobrenome Kretzschmar, ao que o jovem oficial respondeu ressaltando que

    seu pai era de Vorarlberg e trabalhava na linha Munique-Salzburgo. O general ento

    evocou as belas mulheres que habitavam a land de Salzburgo aps a Guerra de 14: isso

    confirmou a bastardia de Franz e o lanou tormentosa sensao de que toda sua vida havia

    sido manipulada pelas conspiraes de um crebro distante. Sentiu raiva de si e de seu

    inesperado impulso de gratido por aquele homem a quem devia o destino e a vida, uma

    vida que o famigerado guarda-chaves Viktor Kretzschmar no lhe pudera oferecer. Em

    meio quela confuso de sentimentos que mal podia dissimular, Franz retirou de sua maleta

    o velho tabuleiro que encontrara anos atrs entre os pertences do pai. O general estabeleceu

    os termos da aposta: se vencesse, teria a vida do jovem tenente sua disposio; se

    perdesse, daria fim a prpria vida antes de chegarem a Treblinka. Franz assentiu com a

    cabea e substituiu um dos pees pelo hussardo de chumbo com uniforme de guarda-

    chaves.

    II Da sombra ao nome Richard Schley Genebra 1948

    Richard Schley reconheceu Jacob Efrussi quando este desceu do trem que trazia para

    Belgrado os efetivos da frente ucraniana e experimentou grande tranqilidade ao poder

    distinguir um rosto familiar entre milhares de feies imprecisas; porm, ainda no sabia

    que o velho amigo da infncia vienense havia trocado seu nome pelo de Thadeus Dreyer.

    Chegado a pouco menos de um ms no acampamento de Karansebesch, o jovem

    seminarista Schley logo se viu obrigado a assumir, sem a devida credencial, os ofcios de

    Padre Ignatz Wagran, morto por um granadeiro em plena missa. Espcie de pai espiritual

    para Schley, Pe. Wagran via a investidura como um novo batismo, para o qual o

    predestinado devia despojar-se de seu passado para incorporar uma identidade definitiva. O

    seminarista, cuja histria j havia sido arrebatada pelo martrio do chamado ao sacerdcio,

    viu-se ento mais uma vez rfo e diante da incerteza e do vazio mais radical; e foi ciente

    de sua prpria farsa que Schley conformou-se com sua blasfema impostura e acostumou-se

    a exercer as funes paroquiais ainda que no fosse propriamente proco.

    Depois de ter seu chamado ignorado por Efrussi na estao, Schley dirigiu-se ao

    Escritrio de Servios para consultar nas listas de recm-incorporados o nome daquele que

    23

  • agora lhe parecia o nico depositrio de sua fragmentada memria de infncia; ao

    confirmar a ausncia de tal nome, atribuiu ao engano ou ao delrio a cena que havia

    vivenciado momentos antes, e ps-se a indagar quem realmente era Jacob Efrussi e por que

    procurava no remoto reconhecimento de um mero colega dos tempos de criana uma

    espcie de explicao semelhante quelas que os soldados agonizantes buscavam para

    entender as suas trgicas e prematuras mortes em nome do imprio austro-hngaro. Estava

    decidido a desistir definitivamente da pesquisa quando o suboficial Alikoshka Goliadkin

    adentrou o Escritrio no retorno de uma de suas freqentes idas ao bar do acampamento.

    Goliadkin caracterizado por Schley como figura inofensiva, porm digna de

    respeito, bajulador, interesseiro e nica pessoa capaz de notar a semelhana entre a falsa

    investidura de proco e as corruptas ascenses nas patentes militares garantiu que um

    nome como aquele dificilmente constaria entre os alistados de um exrcito onde os judeus

    se faziam ausentes. A observao do suboficial encadeou uma srie de lembranas que se

    encontravam confundidas no crebro que desde aquela tarde atribulava-se com evocaes e

    fragmentos de fatos sem sentido: pela memria de uma partida de xadrez no alto de uma

    negra escada que levava at a joalheria do usurrio judeu, Schley podia acessar novamente

    suas reminiscncias e encontrar-se no com o velho amigo de infncia, mas com as

    lembranas at aquele dia dadas por perdidas nos anos de seminrio. Rememoraes de

    uma infncia vienense em que tiranias e orgulhos paternos colocavam diante do tabuleiro

    de xadrez duas crianas confrontando honras e identidades luteranas e judias, e que agora

    afligiam ainda mais o falso proco que no podia transmitir aos necessitados nada alm de

    sua impostura e pouca f. Desde aquela tarde, entretanto, ao avistar o recruta annimo,

    Schley recuperara ao menos a conscincia de sua condio que por tanto tempo vinha

    sendo embotada por seu pai, pelo seminrio e pela guerra.

    O encontro com o recruta da estao ocorreu logo. A cria, em resposta aos inmeros

    pedidos de Schley para que enviassem um sacerdote, mandou-lhe, pelo correio, uma velha

    batina e, com ela, um bilhete e a cega aprovao de sua impostura. E ento, em uma noite

    de embriaguez aps uma jornada de ofcios com os regressos da frente do Piave, o

    seminarista ilusoriamente promovido a sacerdote viu-se perambulando pelo acampamento

    em companhia de Goliadkin e entrou em uma tenda de proviso onde alguns soldados

    bebiam e jogavam cartas; reconheceu o perfil de Jacob Efrussi e, animado pelo lcool e

    24

  • pela inusitada presena de um tabuleiro de xadrez, chamou-o pelo nome. O soldado,

    tambm embriagado, aproximou-se do proco e ameaou-o de morte se insistisse em

    cham-lo por outro nome que no Thadeus Dreyer. A despeito da violenta reao do

    recruta, Schley percebeu em seu amigo de infncia um reconhecimento que, com o tempo,

    seria assumido inevitavelmente.

    Movido por solidariedade ou pela chance de conseguir futuras vantagens, o suboficial

    Goliadkin ofereceu informaes sobre Efrussi: seu documento de identidade trazia de fato o

    nome de Thadeus Dreyer; constava que era natural da aldeia de Vorarlberg, e no

    acampamento logo ganhara fama, dinheiro e influncia sobre os superiores com suas

    invencveis tticas enxadristas. Contrariando as expectativas de Schley e Goliadkin para

    quem aquela gratuita demonstrao de coragem em um tempo sem herosmo, mais que uma

    temeridade, era um grave atentado a seu particular cdigo de desonra , Efrussi no se

    valeu desse poder sobre os oficiais para permanecer a salvo na retaguarda, e atravessou a

    ponte de Karansebesch rumo s trincheiras.

    A cavalaria francesa imediatamente dizimou o regimento, dispersando os poucos

    sobreviventes para as montanhas srvias. Ao inquirir um sargento que havia retornado

    daquelas trincheiras, Schley soube que o soldado Thadeus Dreyer havia se refugiado nas

    montanhas com um grupo que se negara a deixar o campo de batalha, mesmo que ningum

    os pudesse acusar de desero depois da queda de seus superiores no combate. No

    convencido da hiptese que o amigo de infncia havia simplesmente enlouquecido, o

    seminarista resolveu procur-lo na primeira oportunidade que se oferecesse.

    A ameaa de motim em Karansebesch crescia com as desalentadoras notcias do front.

    Quando j no mais esperava qualquer manifestao da cria de Viena, Schley recebeu a

    notificao que um verdadeiro padre chegaria a Belgrado no prximo trem. Dispensado de

    seus servios e ressarcido de seu anonimato, o seminarista no esperou pela chegada do

    substituto e conseguiu de um superior a autorizao para levar a ordem de retirada aos

    soldados da montanha.

    Caminhando por dias entre os cadveres e os escombros ftidos, Schley percebeu que

    a ordem de retirada lhe era muito menos importante que o encontro com o espectro de

    Efrussi e com aquilo que era seu nico passado possvel: ser reconhecido pelo velho amigo

    de infncia. Da sobrevivncia de Efrussi dependia agora sua prpria sobrevivncia.

    25

  • Schley divisou uma cabana aparentemente abandonada no alto de uma colina e at l

    foi guiado por uma fileira de corpos que denunciava uma ordem viva e oculta. Efrussi

    contemplava uma mesa forrada de papis e disse ao padre que entrasse; injetou em si

    prprio uma dose de morfina e prosseguiu em sua dbil observao dos papis

    esparramados sobre a mesa, pronunciando em voz baixa os nomes inscritos nas dezenas de

    passaportes ensangentados. O padre, ento, apresentou o documento que trazia e

    sentenciou que aquela era a ordem de retirada para Jacob Efrussi. O soldado, remexendo os

    passaportes, disse no conhecer nenhum recruta com aquele nome. Aquela insistente recusa

    de seu amigo em negar o nome de infncia e, com isso, negar tambm as memrias

    perdidas de Schley, suscitou no padre uma raiva que o fez peremptoriamente perguntar a

    Efrussi quem afinal era ele e qual era seu verdadeiro nome. A essas indagaes Efrussi

    respondeu que era muitos e que seu nome era Legio; a morfina servia-lhe apenas para

    aplacar as infernais enxaquecas que o acometiam quando as idias e as recordaes de

    todos os homens que j havia sido se confundiam em sua cabea; tinha sido todos e

    ningum; roubara inmeros nomes e vidas, a ltima delas, a de um pobre recruta de

    Vorarlberg chamado Thadeus Dreyer, com quem trocou a prpria morte pelo nome de

    Viktor Kretzschmar e o destino de guarda-chaves; pouco valia, portanto, aquela alma que o

    padre buscava salvar.

    Tentando dissuadir o amigo de sua manifesta deciso de morrer, Schley disse-lhe que

    a partir de ento no haveria mais motivos para que roubasse vidas, que iriam para a

    ustria, onde os dois esqueceriam aquela guerra. Efrussi, porm, parecia resignado e

    disposto a admitir a inutilidade daquela vida de escapes, de incessantes fugas da prpria

    condio, raa e f que, enfim, ambos haviam levado. Mas agora Schley estava disposto a

    dedicar toda sua vida quela pessoa que, desde criana, gostaria de ter sido; e sabia que

    para tanto, bastaria convencer Efrussi a fazer a ltima das tantas apostas que faziam dele

    um conglomerado de nomes em um nico corpo: se o padre fosse derrotado, entregaria ao

    amigo seu cadver e seu passaporte; se vencesse, conservaria a vida do adversrio para

    reaver a sua prpria.

    Horas depois, Efrussi tombou seu rei e, com um cumprimento, chamou o adversrio

    de Richard pela primeira vez. Decidiram dormir, pois a jornada de volta a Karansebesch

    seria longa e difcil. Schley, ao abrir de sbito os olhos, viu Efrussi com uma arma

    26

  • apontada para a prpria cabea e reagiu de imediato, mas no a tempo de evitar um grave

    ferimento no crnio do soldado. Caminhando com o corpo quase sem vida sobre seus

    ombros, Schley sentiu dio pela traio do amigo e s ento entendeu que Efrussi havia

    prolongado a prpria vida a fim de que ele aceitasse no apenas sua morte, mas tambm o

    peso da condio judia; uma herana negada e que, por amor ao fantasma daquele que era

    seu nico elo com o passado, o padre era obrigado a assumir em seu nome.

    Richard Schley chegou ao acampamento ocupado por inimigos e desertores;

    encaminhou-se diretamente para o Escritrio de Servios, onde o suboficial Alikoshka

    Goliadkin separava papis que um dia lhe podiam ser teis com a mesma febre com que

    Efrussi remexia seus passaportes na cabana. Goliadkin mal pde reconhecer aqueles dois

    corpos cobertos de sangue; com a mo sobre o coldre perguntou pelo padre. Schley

    respondeu que seu nome era Thadeus Dreyer e ofereceu ao suboficial um cofre cheio de

    dinheiro que estava entre os pertences de Efrussi. S ento percebeu que seu amigo de

    infncia j no respirava mais.

    III A sombra de um homem Alikoshka Goliadkin Cruseilles (Frana) 1960

    Alikoshka Goliadkin descreve a manso do general Thadeus Dreyer: um soberbo e

    negro castelo contrastando com a brancura da neve das ruas de Genebra. Por um instante,

    tudo naquela paisagem lhe pareceu muito semelhante a outro cenrio remoto no tempo e no

    espao: mais de quarenta anos antes, na Ucrnia, o narrador tambm se preparava para o

    que julgava ser a absurda, porm necessria, eliminao de um homem. Em sua terra natal,

    enfrentaria em duelo Piotra, jovem oficial da guarda czarista, seu irmo gmeo; em

    territrio suo, o esperava seu velho amigo dos tempos da Primeira Guerra.

    Adentrando com previsvel preciso de movimentos a conhecida manso, Goliadkin

    reconheceu os divs de infindas conversas sobre o tempo da guerra, os tabuleiros de xadrez,

    os brases; sentiu no ar um cheiro de plvora que o fez temer a antecipao de Dreyer a seu

    intento, e relembrar a madrugada russa em que seu irmo, alinhado em galas de cossaco,

    lavaria com o sangue do fratricdio as ofensas do bbado que insistia em declarar que

    aquela raa sempre fora de aptridas e mercenrios estupidamente fiis Me Rssia. No

    duelo, a lgica da honra inexplicavelmente falhara, e Goliadkin, desapontado e atingido em

    27

  • um brao, tinha ainda o direito de, do cho, revidar o tiro com a habilidosa canhota,

    assassinar seu irmo e consumar aquele primeiro ato contra o herosmo romntico que

    quatro dcadas mais tarde seria corroborado pela morte de outro homem tambm

    absurdamente aferrado ao sagrado e crena.

    Meses aps o duelo, Goliadkin alistou-se nas tropas austracas, j ento um destino

    comum aos fugitivos da Rssia e queles europeus do leste que, divididos entre identidades

    dspares, no podiam saber ao certo a que imprio deviam fidelidade. A guerra era para ele

    a prova maior do desastre absoluto de tudo aquilo que seu pai e seu irmo acreditavam e a

    perfeita confirmao de seu ceticismo. Sua cruzada contra o idealismo aberrante,

    entretanto, no havia terminado com a morte de Piotra: a odiada figura de seu pai e o

    fantasma de seu irmo permaneciam presentes e o atormentavam, como se o duelo daquela

    madrugada tivesse servido no para apag-los, mas para os eternizar. A precoce morte do

    jovem oficial czarista retirara de Goliadkin o prazer de v-lo descrente e desenganado; um

    erro que o ento suboficial integrado s tropas do front balcnico no repetiria com Richard

    Schley.

    O narrador relata que, naquela noite na manso do general, encontrou, entre papis

    sobre tticas enxadrsticas, algumas folhas nas quais Dreyer descrevia os dias passados no

    acampamento de Karansebesch e as razes que o levaram a adotar um nome que no lhe

    pertencia. Goliadkin pe-se ento a narrar os mesmos eventos sob sua prpria perspectiva,

    e confessa o dio que desde o inicio sentiu por aquele seminarista que possua a mesma

    vontade de herosmo que seu irmo. O jovem Schley se lhe apresentava como a grande

    oportunidade de assistir ao completo desencantamento de um esprito crdulo que lhe fora

    furtada com a prematura morte de Piotra; entretanto, dava provas que no cederia to

    facilmente aos seus destrutivos desgnios: o suboficial, quando o viu lanar-se s linhas

    inimigas em busca de um suposto amigo de infncia, temeu que o destino colocasse em sua

    memria a face imberbe de mais um morto herico.

    Entre as lembranas de sua av e da contraposio primordial que sempre o

    diferenciara de Piotra a despeito da precisa similitude dos gmeos , Goliadkin relembra

    com repugnncia a vara de carvalho usada por seu av para exorcizar fora seu

    canhotismo, para corrigir com pancadas aquele atributo demonaco, aquela sinistra

    perverso do que os cristos consideravam a imperturbvel ordem divina das coisas. No

    28

  • pensamento do narrador, a vara se transmuda em um smbolo de f que se equipara s

    insgnias no uniforme do jovem oficial czarista e iguala aquela violenta crendice

    necedade dos cossacos em sua luta por uma ptria inexistente e ao impulso herico do

    jovem que atravessa as trincheiras para salvar uma vida. Em suas palavras, no havia nesse

    mundo lugar para tais poesias e s restava aplainar o caminho que levaria

    irremediavelmente destruio do sagrado tarefa a que dedicou toda sua existncia.

    Durante as trs noites que o seminarista passou nas trincheiras balcnicas, o suboficial

    foi atormentado em sonho por uma imagem de Piotra agora transmudada em Schley e em

    Dreyer; durante esses trs dias, Goliadkin dedicou-se ao recolhimento de todos os recursos

    e informaes possveis para a sobrevivncia no catico ps-guerra; ficou, assim, a par das

    atividades de Thadeus Dreyer, detentor de grande soma de dinheiro e invejvel ascendncia

    sobre os oficiais superiores, regalias evidentemente obtidas em aes paralelas ao mbito

    militar. Corriam boatos de que aquele admirado recruta de traos judeus e sotaque vienense

    carregava no apenas um, mas inmeros falsos nomes que escondiam falsas conscincias e

    identidades. O que Goliadkin no podia compreender naquele jogo de substituies e

    imposturas era o que levava aquele homem a negar seguidas vezes o judasmo que

    certamente o livraria das trincheiras; nem mesmo a remisso ao Jac bblico servia de

    possvel explicao: os artifcios do senhor dos impostores, que por um prato de lentilhas

    trocara de identidade com o irmo, nada eram perto da obsesso de Jacob Efrussi por reunir

    dentro de si uma multido de vidas.

    Na terceira noite, as tropas inimigas comearam a atravessar o Danbio e o rudo da

    cavalaria sobre o solo de Karansebesch acordou Goliadkin de seu sono; enquanto reunia o

    dinheiro e os documentos para sua fuga, foi surpreendido por uma sombra de duas cabeas,

    coberta de sangue e lama; ameaou sacar o revolver, mas em tempo reconheceu seu jovem

    seminarista, que colocou carinhosamente o corpo que trazia sobre os ombros no cho e,

    despejando sobre a mesa um cofre e dezenas de passaportes imundos, pronunciou que seu

    nome era Thadeus Dreyer. Por um instante, Goliadkin julgou reconhecer ali a resignao de

    mais um idealista s leis do oprbrio, s suas prprias leis, mas depois temeu que aquela

    recm-estreada impostura tivesse um significado diverso. De qualquer forma, pensou, o ato

    do jovem Schley os irmanava: a identidade que acabara de assumir sem dvida havia

    pertencido a tantos homens que j no podia significar nada, era nome de ningum; era

    29

  • apenas o distintivo de uma massa espectral que agora o suboficial Alikoshka Goliadkin

    queria moldar.

    De volta a Viena em dezembro de 1918, Goliadkin e Dreyer depararam-se com o

    espetculo da derrota de um imprio e sua amargada multido fantasmtica. Dreyer havia

    assumido seu desencanto e sua impostura e, sem mais propsitos ou ideais alm da mera

    sobrevivncia e do puro poder, submetera-se aos planos de Goliadkin, tornando-se um

    poderoso executor de trabalhos sujos. O testemunho do suboficial e alguns subornos

    estrategicamente distribudos no tardaram a conferir fama blica a Thadeus Dreyer

    naquela ptria esfacelada e vida por heris: a narrativa sobre o episdio do malogrado

    resgate de um amigo de infncia atrs das linhas inimigas valeu-lhe a Cruz de Ferro e a

    respeitvel aura macabra de veterano, logo canalizada pelos ideais do Partido Nacional-

    Socialista Austraco. Dreyer e sua admirvel capacidade mimtica arrastavam multides de

    jovens em nome dos ideais do Fhrer, moldando at mesmo os espritos menos afeitos

    causa. Oficial de forte ascendncia sobre os lderes do partido, Dreyer, logo aps a

    proclamao de Hitler como chanceler do Reich, props ao marechal Hermann Gring o

    projeto que seria o compndio de sua vida: o treinamento de ssias que substituiriam os

    lderes do partido em aparies pblicas de alto risco. Aps a autorizao de Gring que

    parecia reservar queles ssias uma outra utilidade , Dreyer, sem se dar conta da ironia

    que sua prpria condio implicava, passou a vasculhar o imprio procura de precrios

    jovens que pudessem ter suas vidas e mentes moldadas pelos ideais do partido; no estava,

    porm, interessado nas motivaes nazistas, mas em aproximar-se dos poderosos por meio

    daquele pequeno exrcito que controlaria tal como pees de xadrez.

    Goliadkin enfoca ento a figura de Adolf Eichmann, jovem e obscuro oficial da SS

    que foi detido na cidade de Buenos Aires poucas semanas antes da escrita do relato.

    Eichmann cujas feies lhe haviam rendido o epteto de o Rabino era profundo

    conhecedor e inimigo da cultura judaica; nascido em Slingen no ano de 1906, o misterioso

    oficial conquistara a confiana do general Reinhard Heydrich que o incumbira, em 1942,

    de exterminar os judeus do Reich. Dreyer e Goliadkin o haviam conhecido no nico crculo

    enxadrstico de Praga em 1926, e logo se estabelecera entre os adversrios uma relao de

    respeito mtuo na qual Goliadkin no deixou de suspeitar algum temor ou submisso da

    parte de Dreyer: parecia que entre eles havia se instalado h muitos anos um especfico

    30

  • cdigo de jogo. A primeira partida acabou empatada, e, nos anos seguintes, Dreyer negou

    um novo combate contra Eichmann, que teve de se contentar com uma estreita convivncia

    com o oponente, a qual, de resto, em nada agradava a Goliadkin. Para o narrador, Eichmann

    possua, por trs de sua aparncia medocre, uma invejvel capacidade para manipular e

    destruir firmada na convencida necessidade desses atos para melhorar o mundo; assim

    como para o pai de Goliadkin, morte e violncia eram para o oficial da SS meros

    instrumentos para se alcanar uma ordem mtica e moralmente correta. Embora os

    propsitos de sua companhia a Dreyer tambm fossem destrutivos, Goliadkin preferia

    acreditar que Eichmann era to deploravelmente crdulo como Piotra e o jovem seminarista

    Schley, pois sua maldade era utilitria e, portanto, ainda mais rudimentar e odiosa que a

    ingnua filantropia.

    Ao saber da tarefa que Heydrich havia confiado a Eichmann, Dreyer cedeu s splicas

    de seu oponente e, diante da nervosa enunciao das justificativas da grande hecatombe

    judia, ofereceu-lhe um cmplice silncio e trs seguidos xeques-mates, sem resistncia. No

    dia seguinte, porm, Dreyer fez questo de ir at o gueto de Viena; l encontrou a antiga

    loja de Isaac Efrussi saqueada e chorou pela memria do velho joalheiro judeu.

    A partir da, Goliadkin passou a temer que aquela recente recordao de Jacob Efrussi

    e o profundo reexame de conscincia iniciado com a visita ao gueto vienense pudessem

    devolver a Dreyer algum idealismo: o homem que j fora exemplo da vitria do caos

    parecia querer recuperar a sua alma e vacilava diante da arbitrariedade, inventava

    justificativas morais para seus mais infames atos; tal como o imprio renascido para a

    guerra, Dreyer lutava contra sua condio desencantada e agora pensava que sua impostura

    o colocava em dvida com os homens, com todos aqueles nomes que herdou com a

    identidade de Thadeus Dreyer, com o judeu Efrussi. Goliadkin para quem a histria de

    exlios e quimricas promessas dos judeus, bastante parecida com a dos cossacos, os

    reduzia a mais desprezvel parte da criao reconhecia que suas tentativas para lan-lo

    novamente para a infmia de nada valiam frente quele crescente remorso, e, desde ento,

    foi atemorizado pela idia de que seu companheiro estivesse mesmo fadado a restaurar

    eternamente a ordem que ele desejava fragmentria, como que o obrigando a atirar contra

    as insgnias de Piotra para v-lo, por mais uma vez, levantar-se da neve.

    31

  • Aps meses em estado de depresso e letargia, descrente dos ideais nazistas e

    desinteressado em sua glria de heri, o general Dreyer enfim exps a Goliadkin o plano

    que urdia em silncio desde a noite de suas trs derrotas sucessivas: Franz Kretzschmar era

    a pessoa necessria para substituir o coronel Adolf Eichmann e sabotar o projeto de

    extermnio dos judeus do Reich. Os dubls leais a Gring j haviam executado bons

    servios em lugar de Himmler e Goebbels e, embora nunca se houvesse aventado a

    possibilidade da substituio definitiva de um alto oficial, o general agora investiria no

    melhor de seus homens para destituir o obscuro e cada vez mais poderoso coronel do

    comando do Departamento Judeu da SS. Dreyer havia ganhado a incondicional lealdade de

    Kretzschmar em uma partida de xadrez e, desde ento, vinha aplicando seu rigoroso

    mtodo de anulao de esprito para que o discpulo pudesse assumir uma nova identidade.

    Tambm para Goliadkin, no restavam dvidas de que aquele jovem oficial que sempre

    esteve ligado a Dreyer por um lao afetivo muito mais intenso que a alegada dvida de

    amizade do heri de guerra com seu pai era de fato a pea perfeita para o plano:

    Kretzschmar tinha quase a mesma idade de Eichmann, era excelente enxadrista e sua

    apagada feio no ofereceria empecilho para tarefa dos cirurgies plsticos do marechal

    Gring. Quando chegasse o momento, Eichmann aceitaria a revanche de Dreyer e apostaria

    seu prprio nome contra o jovem campeo apresentado pelo general. Caso o coronel

    vencesse ou se negasse a aceitar a derrota, Dreyer o eliminaria, ainda que isso fosse um

    risco para a substituio.

    A elaborao do plano, estritamente baseada no impecvel cdigo de honra do xadrez,

    no calculara, entretanto, a possibilidade de que um ato alheio a essa particularssima tica

    pudesse arruinar o intento. Bastou que Goliadkin enviasse uma carta annima a Himmler

    para que toda a equipe de ssias fosse desarticulada; os filhos adotivos do general Dreyer

    foram presos ou dados por desaparecidos e de Kretzschmar no se teve mais notcias. Com

    o auxlio do Servio Secreto Britnico e das autoridades suas, Goliadkin fugiu com

    Dreyer para Genebra, onde pde assistir plena devastao da alma de um homem

    consumido pela resignao e pela covardia: escondido sob o nome do desaparecido baro

    polons Woyzec Blok-Cissewsky, o general Dreyer refugiou-se na obsesso pelo xadrez,

    ltimo reduto em que ainda havia regra e moral, nico conforto para sua senilidade perante

    um mundo de invlidas leis em que nada se pde fazer para evitar o massacre dos judeus ou

    32

  • para punir o responsvel maior pelo holocausto nome ausente da lista da corte de

    Nuremberg. Diante da finalmente esfacelada imagem de Thadeus Dreyer, Goliadkin temeu

    que todo aquele desprezo que havia sido planejado por dcadas se convertesse em

    compaixo, e abandonou Genebra como quem larga um prazer que pode ser perigoso.

    Anos depois, no entanto, o fantasma de Dreyer, assemelhando-se mais uma vez

    sombra de Piotra, voltou a atormentar Goliadkin: cerca de duas semanas antes da escrita do

    relato, o velho general telefonou a seu antigo ordenana e, com uma voz que, em lugar da

    esperada exultao com a priso de Eichmann, apresentava-se gravemente aflita, disse-lhe

    que ele era seu nico amigo e que precisava v-lo com urgncia. Goliadkin chegou a pensar

    que fora Dreyer quem, por meio das inmeras partidas de xadrez jogadas por

    correspondncia em jornais e boletins de clubes obscuros, havia retirado Eichmann de seu

    esconderijo e o denunciado justia israelense; mas o tom soturno de seu telefonema

    afastava essa hiptese. Na realidade, o narrador pouco se importava com o destino de Adolf

    Eichmann; o motivo de seu incmodo era a absoluta confiana de Dreyer em sua lealdade e

    o leve estremecimento de alegria que sentiu quando o general fez o apelo amizade dos

    dois. Goliadkin ento decidiu acabar de uma vez por todas com qualquer vestgio de crena,

    poesia e bondade que pudessem persistir no velho general ou em si prprio, e dirigiu-se

    para Genebra com o firme propsito de assassinar Dreyer, no sem antes lhe revelar todos

    os seus golpes e traies.

    Na noite anterior a escrita do relato, durante o trajeto at a casa do general, o narrador

    pensou que finalmente a sombra do irmo desapareceria de seus pesadelos: a misso de sua

    vida estaria, quarenta anos depois, cumprida. Essa alegria, porm, lhe fora roubada por

    algum que fugiu da manso enquanto Goliadkin, no segundo andar, examinava o

    ensangentado corpo de Dreyer debruado sobre um tabuleiro de xadrez.

    IV Do nome sombra Daniel Sanderson Londres 1989

    Daniel Sanderson comea dizendo que a morte do Baro Blok-Cissewsky no o

    desfecho ou o comeo da histria que vai narrar: o ponto de voragem de uma trama em

    que a vida daquela notvel figura esteve associada a muitas outras vidas menos

    estimulantes como a sua prpria. Por isso, se fiar apenas em sua memria pessoal para

    33

  • contar os fatos na seqncia em que aconteceram com ele e com os outros herdeiros do

    baro, desculpando-se previamente perante aos demais personagens do intricado enredo,

    que certamente prefeririam uma histria contada em outra ordem e sob uma perspectiva

    diferente.

    O testamento de Woyzec Blok-Cissewsky razo do encontro do narrador com os

    personagens da trama passa a ser descrito: em sua inconfundvel caligrafia, o oficial

    reformado do exrcito polons declarava a doao de seus parcos bem na Sua a um asilo

    de Frankfurt e de um cofre cheio de moedas antigas a seu ordenana Alikoshka Goliadkin;

    j em um adendo escrito em letra de frma, legava a cada um de seus trs rivais de xadrez

    por correspondncia a soma de cem mil francos suos, contanto que mestre Remigio

    Cossini, pintor siciliano, Deman Fraester, ator flamengo e o prprio Sanderson fossem

    receb-la pessoalmente durante os funerais.

    Os boatos que a imprensa sua chegara a levantar em torno da existncia de um

    primeiro testamento em que Goliadkin era o nico beneficirio so prontamente

    desconsiderados pelo narrador: fossem os rumores verdadeiros ou falsos, em nada iriam

    alterar o contedo do relato a ser escrito; as pginas seguintes no tratariam de suposies

    acerca de uma cobia grande suficiente para causar a traio da amizade de quatro dcadas,

    da histria do baro ou da vida de seu fiel ordenana, mas dos secretos motivos que os

    fizeram se arruinar e arrasar os personagens perifricos daquela trama.

    Sanderson pe-se ento a descrever os acontecimentos subseqentes morte de

    Woyzec Blok-Cissewsky. Uma greve dos ferrovirios de Londres impossibilitou-o de

    chegar a tempo do enterro do baro, mas o inesperado encontro com mestre Cossini na

    estao central de Genebra o tirou de sua justificvel desolao. Mestre Remigio Cossini

    pequeno homem de traos marcadamente japoneses logo informou que as investigaes

    sobre o assassinato do baro Blok-Cissewsky haviam sido dadas por encerradas depois da

    descoberta, no dia seguinte ao enterro do baro, do corpo de Alikoshka Goliadkin baleado

    na tmpora direita em um pequeno quarto de hotel em Cruseille, Frana. Com a petulante

    assertividade de quem pressupe que seu interlocutor est sempre apto para acompanhar

    seus argumentos mais perspicazes, o pintor concluiu que o falso suicdio do suposto

    assassino de Woyzec Blok-Cissewsky era apenas um indcio de que as circunstncias que

    os traziam a Genebra eram mais do que suspeitas. Logo depois, obrigado a se acostumar

    34

  • com as cifradas hipteses de Remigio Cossini, Sanderson teve menos dificuldade em

    entender que a heterodoxia ttica que o baro apresentara nas ltimas partidas epistolares

    no significava senilidade, mas uma espcie de alerta que o benfeitor procurara dispersar

    entre seus pupilos.

    Os trs beneficirios encaminharam-se ento ao escritrio do testamenteiro do baro;

    l chegando, foram avisados que, devido a uma inesperada viagem do testamenteiro, uma

    outra pessoa os receberia para lhes atender as solicitaes. Em uma recndita sala, um

    homem de idade incerta, nome imemorvel e absurdamente semelhante ao ator Humphrey

    Bogart os recebeu com a crueza de quem conhecia os detalhes mais vergonhosos da vida de

    cada um: assegurou que Remigio Cossini no passava de um nome obviamente fictcio de

    um falsificador de obras de arte, que a decrepitude fsica de Fraester apenas alava ao

    ridculo da impossibilidade sua medocre condio de dubl cinematogrfico e que

    Sanderson nunca fizera mais que expressar seu pssimo estilo em livros esquecidos e

    assinados por supostas celebridades; explanou impiedosamente a falsa vida dos impostores

    que, temerosos do risco de perder a herana, no ousaram negar a evidente veracidade das

    afirmaes daquele que parecia tambm um arremedo de outra pessoa.

    As imprecaes de Bogart eram, no entanto, somente a introduo para um tpico

    ainda mais desolador: o testamento era ilegtimo como seus favorecidos; a assinatura do

    pseudnimo baro Woyzec Blok-Cissewsky valia tanto quanto uma rubrica de Thadeus

    Dreyer, de Richard Schley ou de qualquer outro dos no mnimo sete nomes que o baro

    usurpara em vida. Esses problemas legais, porm, poderiam ser facilmente contornados se

    os beneficirios concordassem em entregar certo manuscrito que o baro lhes enviara pouco

    tempo antes de morrer. Percebendo a inutilidade de negar tal assertiva, Sanderson apressou-

    se em declarar que os papis nada mais eram que instrues em polons para um manual de

    xadrez, ao que Bogart respondeu que, na realidade, tratavam-se de um criptograma que

    podia conter as provas para a condenao do general Adolf Eichmann, preso semanas antes

    em Buenos Aires.

    A oportunidade de receber a vultosa quantia de dinheiro voltava a se oferecer aos trs

    pupilos do baro. A humilhao inicial a que Bogart os havia submetido, entretanto,

    pareceu transformar-lhes a escala de valores, e agora aqueles trs indivduos marcados pela

    usurpao sentiam-se os dignos detentores do segredo certamente atroz que o baro lhes

    35

  • havia confiado. Bogart, notando a resistncia de seus interlocutores, logo mudou de

    estratgia: disse que a oferta estava dada e que, na chefatura de polcia, esperaria pelo

    momento em que aqueles homens ntegros ajudariam a polcia israelense a fazer justia no

    mundo.

    Aps a entrevista, Cossini no demorou a calcular que Fraester cederia oferta de

    Bogart e que, assim procedendo, colocar-se-ia em grande perigo. De fato, os

    acontecimentos seguiram a previso do pintor: poucas semanas depois de terem recebido

    um carto informando a escolha do ator flamengo e os convidando a seguir o mesmo

    exemplo, Cossini e Sanderson foram noticiados da morte de Deman Fraester durante as

    filmagens do nico filme em que apareceria com o prprio nome. Aquela, para Cossini, era

    a confirmao que Bogart e seus comparsas no poupariam esforos e vidas para evitar que

    os manuscritos viessem a pblico, e que a morte de Fraester era um genial lance

    enxadrstico de Blok-Cissewsky: o baro, prevendo seu prprio assassinato, escolhera o

    obtuso ator como pea a ser sacrificada naquele tabuleiro onde agora seus outros dois

    pupilos poderiam divisar quem de fato eram seus oponentes e que importncia davam

    queles papis.

    Sanderson, no entanto, comeando a notar que as entusiasmadas afirmativas de

    Cossini eram meras especulaes de um crebro que provavelmente confundia as rgidas

    regras do xadrez com as ambguas leis da existncia, argumentou que o melhor a fazer seria

    levar aquele caso s autoridades. O pintor admitiu a natureza imaginativa de suas

    colocaes, mas sublinhou que aquelas eram as nicas certezas que possuam; acrescentou

    que seriam desnecessrias quaisquer provas para incriminar o j condenado general

    Eichmann e que, portanto, Bogart no era um oficial da justia israelense, mas um nazista

    em busca de segredos do ex-colega; aconselhou Sanderson a no dar pistas de querer

    decifrar os manuscritos em polons e a se esconder por uns tempos; e despediu-se como

    quem encerra uma conversa trivial.

    Nos dias seguintes, Sanderson foi levado a ponderar sobre qual seria seu prprio

    papel naquele jogo, qual de seus atributos haviam de servir aos interesses estratgicos de

    Blok-Cissewsky; no pde deixar de concluir que havia sido eleito pelo baro devido ao

    conhecimento que adquirira, nos ltimos meses da guerra, sobre tcnicas de criptografia no

    Escritrio de Comunicaes da RAF, e teve a certeza de que, mesmo depois da morte, o

    36

  • velho rival de xadrez continuava manipulando seu destino como a uma pea sobre um

    tabuleiro.

    O narrador empenhou-se ento a decodificar o manuscrito; descobriu que os inmeros

    erros ortogrficos, supostamente ocasionados pela inabilidade do baro com o idioma

    polons, obedeciam a uma constante numrica usada pelo Servio Secreto Britnico

    durante a Primeira Guerra Mundial. A decifrao da chave criptogrfica, porm, no

    solucionou o enigma, e Sanderson teve de recorrer a Ewan Campbell, egiptlogo da

    Universidade de Edimburgo, seu antigo chefe no Escritrio de Comunicaes. O professor

    explicou que os textos estavam escritos em wolpuk, obscuro cdigo medieval utilizado

    durante a guerra pelos responsveis do Projeto Amphitryon; acrescentou que esse plano, tal

    como fora concebido pelo marechal Gring, consistia na criao de ssias que

    substitussem os altos oficiais do Fhrer em ocasies arriscadas, mas que, em algum

    momento, passou a ser considerado apenas mais uma das malogradas tentativas de

    desarticulao do regime de Hitler perpetradas pelos prprios oficiais nazistas, pois, por

    volta de 1943, fora desarticulado e seus responsveis presos sob acusao de conspirar com

    os judeus ou dado por desaparecidos. Convencido de que o nome de Thadeus Dreyer

    figurava entre os envolvidos naquele evento, Sanderson permitiu ao entediado professor

    universitrio o deleite de decifrar o cdigo que ele prprio no saberia ler e, exultante, logo

    procurou Cossini para oferecer-lhe a nica informao que provavelmente no possua.

    Ao ouvir o nome Amphitryon, o pintor no demonstrou surpresa e ps-se a comentar

    as muitas verses baseadas naquela histria do guerreiro suplantado por Zeus no leito

    conjugal; antes, porm, que Sanderson triunfasse com a desconcertante notcia, Cossini

    sobreps que, no caso de Dreyer, preferiria o nome de Hrcules pois se tratava de homens

    desbancando deuses, e no o contrrio mas estava feliz com a decifrao do manuscrito.

    Diante do silncio expectante que se seguiu, Sanderson teve de confessar que ainda

    ignorava o contedo dos papis do baro e, assim, acusou a participao de uma terceira

    pessoa na sigilosa trama. Remigio Cossini indignou-se com aquela estpida e imprudente

    atitude e desligou o telefone lamentando o fato de, no tabuleiro da humanidade, as peas

    no respeitarem as regras do jogo como no xadrez.

    Dias depois, um nervoso telefonema do coronel Campbell confirmou, mais uma vez,

    as temerosas hipteses de Cossini: do outro lado da linha, e certamente coagido pela

    37

  • presena do falso Bogart, o professor dizia ter decifrado os escritos do baro e convidava

    Sanderson a visit-lo em Edimburgo. Prevendo a armadilha, o narrador fingiu entusiasmo

    ante a notcia do ex-chefe, e mentiu dizendo que pegaria o primeiro trem da tarde para

    encontr-lo e finalmente conhecer o contedo daqueles manuscritos que lhe serviria apenas

    como informao para um romance histrico que pensava escrever.

    Ao ser surpreendido por Bogart s portas do aeroporto de Heathrow naquela mesma

    noite, Sanderson perguntou-se como o enigmtico sujeito conseguira prenunciar seus

    passos e deslocar-se to rpido da capital escocesa at Londres; deduziu que um outro

    facnora havia ameaado o professor Campbell, mas no pde deixar de atribuir quele ou a

    qualquer outro membro do nebuloso exrcito o mesmo rosto de Humphrey Bogart como

    nunca mais conseguiu dissociar de cada uma das inmeras imagens do ator que o

    atormentaram pelo resto da vida o espectro de um sicrio que apenas por detalhes mnimos

    se diferenciavam dos outros integrantes daquela infindvel milcia imaginada. O narrador

    foi ento empurrado para o banco de trs de um txi que agora atravessava a cidade rumo

    aos subrbios, e recebeu de Bogart uma foto que tacitamente respondia s suas

    inquietaes: Remigio Cossini, em surrados trajes de paciente de hospital psiquitrico,

    esperava, sentado diante de um tabuleiro de xadrez, pela ordem que seu crebro perturbado

    j no daria. O silncio posterior quela tormentosa revelao s se desfez quando o

    motorista, com a impostao de um velho militar, chamou a ateno de Bogart que,

    submisso, acatava s instrues que recebia em alemo e que cessaram somente quando o

    txi por fim parou beira da estrada. Sanderson, como que antevendo a ltima pgina de

    um romance policial ruim, pressentiu que adentrava o cenrio de sua prpria execuo

    tantas vezes imaginado desde o primeiro encontro com aquele personagem, e no precisou

    de ordem para descer do carro, se ajoelhar e ouvir o revlver engatilhando.

    O longo tempo transcorrido desde os episdios descritos Sanderson diz ter dedicado

    recuperao da sensibilidade artstica, mas confessa sentir enfado toda vez que algum

    jornalista lhe pergunta sobre algum dos muitos quadros e sinfonias que aparecem em seus

    livros, e nada comenta sobre as rias que o entediam, sobre galerias que o aborrecem e

    muito menos sobre a tela que lhe foi legada pelo testamento de Remigio Cossini em 1964:

    uma cpia fiel do Homem sentado, quadro atribudo a um imitador de Rembrandt. Assim

    como os desejos pstumos do baro Blok-cissewsky, o ato do pintor parecia conter para

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  • alm da macabra cincia de que Sanderson escaparia ao destino que lhe fora implacvel

    uma espcie de criptograma, um velado convite para que o beneficirio revistasse todos os

    momentos passados com aquele que agora queria lhe oferecer a pista que faltava. O escritor

    lembrou-se ento de uma viagem a que Cossini aludira em seu ltimo telefonema, mas s

    foi capaz de adivinhar o rumo que deveria tomar quando um fortuito compromisso editorial

    o levou a Frankfurt e s proximidades do asilo ao qual o baro Woyzec Blok-Cissewsky

    legara toda sua fortuna genebrina.

    Uma vez em Frankfurt, Sanderson ps-se a investigar todos os asilos da cidade,

    distribuindo propinas e consultando listas de internos at encontrar algum vestgio que o

    conduzisse naquela trama; quando finalmente encontrou o insalubre casaro cujo grande

    benfeitor era Blok-Cissewsky, no poupou seus marcos para reavivar a memria do velho

    responsvel pela instituio. O administrador comeou ento a contar que o baro lhe

    escrevera pouco depois da guerra oferecendo generosas doaes sempre que o informasse

    do estado de Viktor Kretzschmar, interno desde 1937. Em 1960, Blok-Cissewsky visitou o

    asilo pela primeira vez; durante dias, tentou arrancar Kretzschmar de sua alienao para

    com ele jogar uma partida de xadrez e s desistiu de seus esforos quando foi informado

    que