presos no brasil

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DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA FORUM DE DEBATES Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas 1º Encontro: CONCEITUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL CRIME E RELATO I: AS BASES DE DADOS POLICIAIS Organização: Daniel Cerqueira (IPEA) Julita Lemgruber (CeseC/UCAM) Leonarda Musameci (CeseC/UCAM) JULHO DE 2000

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Page 1: PRESOS NO BRASIL

DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS

UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FORUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência eSegurança Pública no Brasil:Uma Discussão sobre asBases de Dados eQuestões Metodológicas

1º Encontro:CONCEITUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINALCRIME E RELATO I: AS BASES DE DADOS POLICIAIS

Organização:

Daniel Cerqueira (IPEA)

Julita Lemgruber (CeseC/UCAM)

Leonarda Musameci (CeseC/UCAM)

JULHO DE 2000

Page 2: PRESOS NO BRASIL

FÓRUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão sobre as

Bases de Dados e Questões Metodológicas

1º Encontro:

CONCEITUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

CRIME E RELATO I: AS BASES DE DADOS POLICIAIS

ARTIGOS

INTRODUÇÃODaniel Cerqueira (IPEA)

SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL:DILEMAS E PARADOXOS

Roberto Kant de Lima (UFF)

SISTEMA E FUNÇÕES DE SEGURANÇAPÚBLICA NO BRASIL

Antônio C. Carbalho Branco (CESeC / UCAM)

O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

Julita Lengruber (CESeC / UCAM)

MEDINDO A CRIMINALIDADE: UM PANORAMADOS PRINCIPAIS MÉTODOS E PROJETOSEXISTENTES

Tulio Kahn (ILANUD)

FONTES DE DADOS PRINCIPAIS EM ESTUDOSCRIMINOLÓGICOS: LIMITES E POTENCIAIS

Cláudio Beato (CRISP / UFMG)

REGISTROS CRIMINAIS DA POLÍCIA NO RIO DE JANEIRO: PROBLEMAS DE CONFIABILIDADE EVALIDADE

Ignacio Cano (ISER)

REGISTROS DE OCORRÊNCIA DA PCERJ COMO FONTE DE INFOPRMAÇÕES CRIMINAISJaqueline Muniz (CESeC/UCAM)

Page 3: PRESOS NO BRASIL

Fórum de Debates: “Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil:

Uma Discussão sobre a Base de Dados e Questões Metodológicas”

Daniel Cerqueira

A violência é uma das questões que mais tem preocupado a sociedade brasileira e algumas de

suas mais importantes lideranças políticas e econômicas nos últimos anos. Isso se explica

pelos seus efeitos deletérios sobre qualidade de vida da população assim como sobre o

desenvolvimento sócio-econômico do país. Convergentes com essa crescente preocupação,

uma ampla gama de instituições governamentais e não-governamentais vêm se debruçando

sobre o tema, no sentido de entender melhor sua natureza, suas causas, suas conseqüências e

melhores formas de alocação de recursos sociais e nos aparatos de segurança pública dos

estados.

Diversos esforços vêm sendo realizados por parte dessas instituições para ampliar a

capacidade de interpretação do fenômenos relacionados à violência e criminalidade no país.

De fato, ao longo da última década, diversas pesquisas foram conduzidas levantando dados

sobre vitimização, atendimento hospitalar, óbitos, registros policiais e penitenciários, entre

outros. No seu conjunto, essas pesquisas fornecem dados que permitem a investigação de um

espectro relativamente amplo sobre a questão da violência e da criminalidade no país.

Embora o volume de informações e pesquisas tenha se ampliado bastante nos últimos anos, é

possível encontrar enormes lacunas. Mais especificamente no que diz respeito aos trabalhos

no campo da economia. Conforme notou Carneiro1, “tais pesquisas praticamente não existem

no Brasil”. Em boa medida, isso se explica não apenas pela escassez de dados, mas também

pelo fato de que essas bases de dados se encontram dispersas, levando a que os pesquisadores

tenham maior dificuldade de trocar informações e experiências na utilização dessas bases.

1 Ver Carneiro, Leandro In “Violent Crime in Latin America Cities: Rio de Janeiro and São Paulo. Research Report. World Bank.January 2000.

Page 4: PRESOS NO BRASIL

Procuramos com o presente projeto exatamente preencher essa importante lacuna que existe

no Brasil no que tange à pesquisa aplicada no tema de criminalidade e segurança pública, em

torno da formação de uma rede de pesquisa e de base de dados, além de criar uma agenda de

pesquisas que possa servir de amparo à formulação de políticas de segurança pública no

Brasil.

Dentre alguns objetivos específicos, visamos:

ü Apresentar e discutir as características das principais bases de dados existentes sobre

violência e criminalidade no Brasil, seus problemas metodológicos, lacunas existentes e

sugestões para implementar melhorias nos sistemas de informações;

ü Iniciar uma construção de uma rede entre instituições e pesquisadores e interessados no

tema, de forma a permitir uma maior troca de informações sobre as bases de dados

disponíveis;

ü Disponibilizar aos pesquisadores o estado das artes acerca das pesquisas e bases de dados

sobre violência e criminalidade no Brasil;

METODOLOGIA E ATIVIDADES

O Fórum de Debates em Violência, Criminalidade e Segurança Pública, será constituído por

um ciclo de 6 encontros, normalmente na última sexta-feira do mês, no auditório do IPEA/RJ

no 10o andar. Genericamente, se procurará em cada um desses encontros analisar as grandes

questões pertinentes processo da violência e criminalidade, bem como o tratamento à questão

dado pelos poderes públicos constituídos. Para cada uma dessas questões se procurará analisar

e relacionar os elementos fundamentais; como tais questões poderiam ser respondidas; quais

são os dados disponíveis que permitiriam uma virtual resposta; suas limitações e problemas

metodológicos. Essa estrutura permitirá não apenas que se investigue com grande

profundidade as questões referentes os temas elencados mas que se gere, sobretudo, uma

agenda de pesquisas aplicadas para o Brasil.

Page 5: PRESOS NO BRASIL

O Diagrama 1 ilustra o conjunto de temas que serão alvo dos debates, bem como a dinâmica

dos encontros. Basicamente, o que se procura entender são as especificidades subjacentes às

atividades relacionadas à criminalidade e segurança pública no Brasil. Abaixo, seguem as

principais linhas de discussão para cada encontro

Encontros 1 e 2

ü CONCEITUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

ü CRIME E RELATO I: AS BASES DE DADOS POLICIAIS

ü CRIME E RELATO II: BASE DE DADOS DA SAÚDE E PESQUISAS DE

VITIMIZAÇÃO

Iniciaremos o nosso debate pautando a ocorrência da criminalidade propriamente dita, à luz o

das bases de dados existentes, diga-se bases de dados criminais, de saúde e provenientes das

pesquisas domiciliares de vitimização. Muitas questões poderiam aí ser formuladas como as

referentes ao ambiente em que ocorrem os fatos – que englobam relações interpessoais,

institucionais e de cunho mais estrutural –, sobre o qual poder-se-ia inferir acerca das

dinâmicas criminais e diferentes motivações que levariam à criminalidade. Contudo, nosso

maior propósito, mais do que discorrer sobre tais questões, consiste em avaliar o processo de

geração de dados criminais no Brasil, suas deficiências e sugestões metodológicas que

virtualmente possam significar um aprimoramento na qualidade de tais dados.

Encontro 3

ü AVERIGUAÇÃO E INQUÉRITO POLICIAL

ü DENÚNCIA E ABERTURA DE PROCESSO / MINISTÉRIO PÚBLICO

Dentre os crimes e delitos ocorridos numa determinada localidade, parte deles são relatados

ao estado por meio dos registros de ocorrências, da polícia civil. A partir daí pode-se dar

início ao processo de inquérito que poderá ser arquivado ou resultará no indiciamento de um

suposto culpado ao Ministério Público. Nessa

Page 6: PRESOS NO BRASIL

DIAGRAMA 1 – ATORES, AMBIENTE E O FLUXO DAS INFORMAÇÕES NO

SISTEMA DE SEGURANÇA E JUSTIÇA NO BRASIL

Privadas: Mortes por violência - gastos privados com segurança Impacto sobre turismo - atitudes

Públicas: - polícia comunitária - sistema de informações

Pobreza Pesquisa de Boletim de ocorrência Urbanização vitimização da Polícia Militar

Registro de ocorrência da Polícia Civil

Porte de armas

Instrumentos de agressão

Ambiente Social

Relato e

Abertura de

Inquérito

ConsequênciaMedidas

preventivas

Ocorrência

Polícia

Sociedade Vítima

Agressor

Militar Civil

Boletim de ocorrência Casos elucidados Tipo e Censo penitensiário da Polícia Militar duração da pena Perfil dos detentosRegistro de ocorrência julgamento da Polícia Civil

Casos encaminhados para

PenalizaçãoJulgamentoDenúncia

Sistema PenitenciárioJustiça

Ministério Público

Page 7: PRESOS NO BRASIL

última possibilidade, o próprio Ministério Público instaura um processo a fim de que tenha

elementos para denunciar ou não a pessoa acusada ao judiciário.

O 3O Encontro discutirá e analisará as questões relativas a todo esse fluxo de atividades que

envolvem a polícia e o ministério público, sendo desenvolvidos em dois blocos. Se procurará

levantar as questões mais fundamentais a serem respondidas concernentes a esse processo,

quais as bases de dados existentes, os estudos aplicados feitos no Brasil, questões

metodológicas e sugestões para desenvolver os estudos em relação a esses tópicos,

especificamente, já que neles estão as maiores lacunas no estado das artes das pesquisas em

violência e criminalidade no Brasil.

Encontro 4

ü JULGAMENTO E PENALIZAÇÃO / SISTEMA JUDICIÁRIO

ü EXECUÇÃO DAS PENAS E REINSERÇÃO / SISTEMA PENITENCIÁRIO

No que tange às questões relativas ao setor judiciário e penalização, dois grandes blocos de

discussão serão levantados. Primeiro existe um conjunto de questões acerca do processo no

âmbito do setor judiciário, no que diz respeito à justiça criminal, tempo de processo e tipos de

erros envolvidos nas penalizações – de levar um inocente à cadeia ou de deixar solto alguém

que tenha cometido um crime. Por outro lado, há uma grande discussão acerca da questão das

penalizações, suas eficácias, penas alternativas, pena de morte, o papel das leis “mais duras”

no sentido de coibir a violência e criminalidade, bem como os custos subjacentes a cada tipo

de penalização.

Encontro 5

ü CONSEQÜÊNCIAS E CUSTOS DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE

ü ATITUDES E PREVENÇÃO

O objetivo desse seminário, por um lado, é discutir e analisar quais são as naturezas dos

custos da violência e criminalidade no Brasil, a forma de medição e os problemas

Page 8: PRESOS NO BRASIL

metodológicos correlatos. Por outro lado, se analisará os aspectos que decorrem do ambiente

de violência, que dizem respeito às perspectivas dos cidadãos e dos criminosos

Dentre os sub-temas que serão objeto de discussão, em referência ao primeiro tema, teremos

os custos diretos com o sistema de saúde, o custo com a perda de capital humano, o custo com

o sistema penitenciário e o custo com o sistema jurídico. Outro ponto ainda diz respeito aos

custos econômicos diretos provenientes da destruição de riqueza, além dos custos indiretos

decorrentes da desmobilização ou desvio de investimentos na economia.

Na última seção, se procurará discutir os métodos e instrumentos utilizados no sentido de

discutir o comportamento, valoração, perspectivas e atitudes da sociedade em relação à

questão da violência e criminalidade. Nesse bloco de discussão, ainda, procurar-se-á motivar

uma discussão acerca dos métodos, formas e possibilidades de se compreender a questão da

tecnologia do crime, bem como a motivação e o perfil do criminoso.

Encontro 6

ü CONSTRUINDO UMA AGENDA DE PESQUISAS E DE POLÍTICAS PÚBLICAS

PARA A ÁREA DA SEGURANÇA

ü DEBATE COM CONSULTORES INTERNACIONAIS

Se buscará com esse último encontro sintetizar as idéias debatidas ao longo do Fórum, as

dificuldades encontradas e as soluções alternativas. A partir dessa síntese procuraremos

absorver um pouco do conhecimento dos consultores internacionais, no que diz respeito às

suas experiências na construção de melhores sistemas informacionais relativos à

criminalidade e às dificuldades e virtuais soluções, de acordo com as várias experiências

internacionais.

Page 9: PRESOS NO BRASIL

O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL:

DILEMAS E PARADOXOS

ROBERTO KANT DE LIMA

Pesquisador de Produtividade do CNPq, Professor Titular de Antropologia, coordenador do

Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP) e do curso de Especialização em

Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública, da Universidade Federal

Fluminense, em Niterói

e-mail: [email protected]

A questão da justiça criminal e da segurança pública, no Brasil, tem ocupado cada vez

mais espaço na mídia. Paralelamente, os seminários que congregam cientistas sociais

começam a reunir informações provindas de investigações realizadas sobre o tema,

estabelecendo-o como questão legítima de estudo. É verdade que ainda são incipientes os

esforços visando agrupar estudiosos e pesquisadores em programas de ensino e pesquisa que

tenham por objetivo reproduzir academicamente este campo do conhecimento.

Isto não tem sido assim em todos os países do ocidente. Em especial, os países de

tradição anglo-americana têm substantivas tradições de estudo, pesquisa e divulgação de

conhecimento sobre a ordem pública e as formas de sua legitimação, manutenção e

reprodução. Até mesmo países de tradição germânica e latina, como a Alemanha e a França,

tem reconhecido este campo do conhecimento como legítimo, capaz de subsidiar de forma

eficaz a formulação e implementação de políticas públicas para o setor.

Por que, então, o Brasil – e seus pares latino-americanos – apresenta tanta

dificuldade em debruçar-se cientificamente sobre essa questão? Sem querer generalizar

para o resto da América Latina, na qual poderemos encontrar variações significativas

ainda desconhecidas para a maioria de nós, acredito que é possível lançar algumas luzes

sobre o caso brasileiro, se levarmos em conta as características já conhecidas de nossa

cultura e sociedade.

Page 10: PRESOS NO BRASIL

Nos últimos vinte anos vários cientistas sociais, em especial antropólogos, têm

insistido na presença de princípios paradoxais e características ambíguas na sociedade

brasileira, marcada por uma espécie de dupla personalidade: pregamos explicitamente a

igualdade entre todos os indivíduos que compõe a sociedade, de onde decorre que os naturais

desentendimentos entre eles, causados por seus interesses, em princípio divergentes, deverão

ser administrados através de negociações entre partes formalmente iguais, embora

substantivamente distintas. Quer dizer, negros, brancos e índios, mulheres, homens e

homossexuais, pobres, remediados e ricos, etc., serão considerados formalmente iguais no que

toca à negociação de seus direitos e deveres em público. Este processo de negociação

permanente é considerado capaz de emprestar à sociedade uma dinâmica democrática e um

formato flexível, como em um paralelepípedo, em que os diferentes estratos sociais se

encontram em permanente mobilidade e cada indivíduo/elemento tem sua própria trajetória,

uma vez que a base e o topo têm a mesma superfície. Para que a ordem pública se mantenha,

então, é necessário haver consenso sobre as regras que vão gerir a administração desses

conflitos, cuja legitimidade advém de sua explicitude e universalidade, referidas

necessariamente a um determinado contexto, o que lhes empresta univocidade - significado

único - e literalidade: isto é, em um determinado local, as regras de convivência em público

são facilmente identificáveis e valem para todos da mesma maneira. A principal estratégia de

controle social é a prevenção dos conflitos pelo controle disciplinar dos indivíduos, que

devem ser capazes de internalizar valores apropriados à convivência social em público,

embora com respeito a seus modos de vida particulares.

Esta visão democrática, igualitária e individualista da sociedade, entretanto, convive

em nossa sociedade com uma outra, que permanece implícita - mas claramente detectável à

observação - onde a sociedade, à maneira de uma pirâmide, é constituída de segmentos

desiguais e complementares. Aqui as diferenças que produzem inevitáveis conflitos de

interesses são reduzidas a sua significação inicial dada por uma relação fixa com contextos

mais amplos do todo social. As diferenças não exprimem igualdade formal, mas desigualdade

formal, própria da lógica da complementaridade, onde cada um tem o seu lugar previamente

Page 11: PRESOS NO BRASIL

definido na estrutura social. A estratégia de controle social, aqui, é repressiva, visando manter

o statu quo ante a qualquer preço, sob pena de desmoronar-se toda a estrutura social.

Diferentemente de uma sociedade aristocrática, entretanto, onde os eixos que

organizam a desigualdade política, econômica, jurídica e social se encontram claramente

demarcados, aqui, porque somos explicitamente uma República, onde tais desigualdades não

podem ser juridicamente marcadas, tais eixos, embora claramente presentes na estrutura do

mercado a que todos estamos, hoje, submetidos, não poderiam e não deveriam produzir

desigualdade de tratamento político-jurídico aos segmentos da sociedade e aos indivíduos que

os compõe.

À falta dessa definição estruturada em torno de eixos explícitos de legitimação da

desigualdade, cabe a todos nós mas, principalmente, às instituições encarregadas de

administrar conflitos no espaço público, em cada caso, aplicar particularizadamente as regras

disponíveis - sempre gerais, nunca locais - de acordo com o status de cada um, sob pena de

estar cometendo injustiça irreparável ao não se conformar com a desigualdade social

implicitamente reconhecida.

Desigualdade esta inconcebível juridicamente em uma República, mas cuja existência,

nesse contexto de ambigüidade em que nossa sociedade se move, goza de confortável

invisibilidade. Para dar alguns exemplos, a legislação processual penal admite tratamento

diferenciado a pessoas que são acusadas de cometer infrações, não em função das infrações,

mas em função da “qualidade” dessas pessoas, consagrando, inclusive, a presença de

instrução superior como um desses elementos de distinção. A presença de métodos

oficialmente sigilosos de produção da verdade, como é o caso do inquérito policial, próprios

de sociedades de desiguais, que querem circunscrever os efeitos da explicitação dos conflitos

aos limites de uma estrutura que se representa como fixa e imutável, confirmam esta

naturalização da desigualdade própria de nossa consciência cultural: as pessoas são

consideradas naturalmente desiguais.

Page 12: PRESOS NO BRASIL

Ora, mas é claro que isto tudo não está na lei sem que esteja na sociedade. Nosso

Código de Processo Penal, nunca discutido ampla e democraticamente pelos cidadãos que a

ele submetem sua liberdade, apenas expressa a cultura presente em nosso cotidiano,

responsável pela naturalização do que se convencionou chamar de práticas autoritárias –

categoria apropriada para definir o abuso de poder em sociedades igualitárias – mas que os

antropólogos preferem denominar de hierárquicas, justamente porque não se constituem em

abuso, mas em cumprimento de preceitos estruturais de desigualdade.

Estas características emprestam ao denominado espaço público – ou esfera pública –

no Brasil, certas peculiaridades, percebidas pelos operadores do sistema de justiça e segurança

pública como características de nossa sociedade, que impõe a seu comportamento cotidiano a

constante e inevitável negociação da aplicação particularizada das regras na esfera pública.

Assim, aqueles que estão explicitamente inseridos como interlocutores no espaço público,

vêem como legítima a sua apropriação particularizada e individual, não universal e coletiva.

Surge daí o desprestígio da obediência literal à lei e a sua aplicação coletiva e universal –

igualmente a todos - por parte de autoridades e da população, por esta prática se identificar

com uma injustiça: sobrepor um sistema explicitamente igualitário a um sistema

implicitamente hierárquico. Em troca, vivemos o prestígio da autoridade interpretativa,

sempre fluida e contextual, seja do síndico, seja do guarda de trânsito, do delegado, do

promotor ou do juiz. É como se a um paralelepípedo desenhado em linhas cheias se

sobrepusesse uma pirâmide tracejada.

A conseqüência perversa deste sistema é que, ao invés de enfatizar mecanismos de

construção da ordem, enfatiza sistemas de manutenção da ordem, através de estratégias

repressivas, em geral a cargo dos organismos policiais, vistas como necessárias à

administração deste paradoxo. Estas estratégias ora são militares - fundadas nas técnicas de

destruição do inimigo, a origem mais evidente da explicitação do conflito, visto como

perigosamente desagregador – ora são jurídicas, voltadas para a punição das infrações.

Nenhuma delas, é claro, adequada à construção e manutenção de uma ordem pública

democrática, que deve ser baseada na negociação pública dos interesses divergentes de partes

iguais.

Page 13: PRESOS NO BRASIL

O SISTEMA JUDICIÁRIO CRIMINAL BRASILEIRO: CARACTERÍSTICAS GERAIS

O sistema brasileiro se apresenta como um mosaico de "sistemas de verdade", tanto em

suas disposições constitucionais, como em suas disposições judiciárias e policiais. Mais ainda,

por não reconhecer, explicitamente, que tais sistemas existem, o sistema judicial criminal permite

que estas diferentes lógicas sejam usadas alternativa e alternadamente, embora as verdades por

elas produzidas se desqualifiquem umas às outras, o que redunda em verdadeira "dissonância

cognitiva", tanto para os operadores do sistema como para a população em geral.

Estas diferentes disposições podem coexistir porque, por um artifício da chamada

"dogmática jurídica", as normas jurídicas encontram-se hierarquizadas e se anulam

automática e reciprocamente quando entram em contradição, observando-se, para

resolver os conflitos entre elas, a rígida hierarquia em que, teoricamente, se encontram

dispostas. Esta doutrina, portanto, como todo conhecimento dogmático, não deixa

espaço para que se explicitem as diferentes tradições e a sua história, que imprimem

significados distintos a procedimentos semelhantes.

No topo desta hierarquia de normas temos os princípios constitucionais. Estes,

aparentemente, são assemelhados àqueles do due process of law dos EUA: asseguram a

presunção da inocência, o direito à defesa - chamado de princípio do contraditório - conferindo,

entretanto, um outro direito, chamado de ampla defesa, pelo qual os acusados podem e devem

usar todos os recursos possíveis em sua defesa. Ora, este sistema traz em si algumas

contradições: a primeira é que não é um due process of law - expressão erroneamente traduzida

em português de forma demasiado livre e apressada como “devido processo legal” - pois esta

instituição jurídico-política dos EUA é uma opção do acusado, a quem é devido, pelo Estado, um

determinado procedimento judicial, em condições estipuladas pela quinta e sexta emenda

constitucionais. Estas incluem, entre outros, o direito a um speedy trial - um julgamento rápido,

o que não existe em nosso sistema de julgamentos obrigatórios e de temporalidade própria; outra

característica é a de que, não havendo exclusionary rules - regras de exclusão das evidências

levadas a juízo, nem uma hierarquia de provas - que separe, ao final do julgamento, os fatos

Page 14: PRESOS NO BRASIL

provados daqueles que não o foram - tudo, literalmente, pode ser alegado em defesa - ou em

acusação - no processo, o que produz uma parafernália de elementos tanto mais ampla quanto

mais abundantes forem os recursos do acusado e dos acusadores; finalmente, ao assegurar

constitucionalmente o direito de o acusado não se auto-incriminar (direito ao silêncio), não se

criminaliza, como no direito anglo-americano, a mentira dita pelo réu em sua defesa, o que

implica não haver, no Brasil, a possibilidade de condenação por perjury, somente por falso

testemunho( 2).

A seguir, temos o Código de Processo Penal, que regula três formas de produção da

verdade: a policial, a judicial e a do Tribunal do Júri. Tais formas encontram-se, no Código,

hierarquizadas explicitamente: no inquérito policial o procedimento da polícia judiciária,

oficialmente, é "administrativo", não judicial e, por isso, inquisitorial, não se regendo pelo

princípio do contraditório; o procedimento judicial aplica-se à maioria dos crimes, e inicia-se,

obrigatoriamente, quando há indícios suficientes de que um delito foi cometido e que sua autoria

é presumida, com a denúncia da promotoria dando oportunidade à defesa, pois se regula pelo

princípio do contraditório até a sentença do juiz que exprime seu convencimento justificado pelo

exame do conteúdo dos autos; e, finalmente, o julgamento pelo Tribunal do Júri é um

procedimento que se aplica apenas aos crimes intencionais contra a vida humana e se inicia por

uma sentença judicial proferida por um juiz (pronúncia), após a realização da produção de

informações, indícios e provas, durante o inquérito policial e a instrução judicial, comum a todos

os processos judiciais criminais e também regida pelo contraditório e pela ampla defesa, em um

processo que exige a presença do réu e que termina pelo veredito dos jurados.

Em sua Exposição de Motivos, o Código de Processo Penal também explica que o

objetivo do processo judicial criminal é a descoberta da "verdade real", ou material, por oposição

à "verdade formal" do processo civil, quer dizer, aquela que é levada ao juiz, por iniciativa das

partes. Por isso, os juízes podem e devem tomar a iniciativa de trazer aos autos tudo o que

pensarem interessar ao processo, ex-officio, para formar o seu "livre convencimento"

2 Recentes acontecimentos envolvendo o comparecimento de um ex-presidente do Banco Central do Brasil a uma Comissãoparlamentar de Inquérito (CPI) do Legislativo demonstraram claramente essa contradição, habilmente explorada pelo advogadoda “testemunha”, já meio réu no procedimento legislativo, e futuro acusado em processo judicial, no qual terá, legal, legítima ealternativamente, o direito de dizer a verdade, de mentir ou de permanecer calado, enquanto réu.

Page 15: PRESOS NO BRASIL

examinando a "prova dos autos", quer dizer, todos os elementos que se encontram registrados,

por escrito, nos volumes que formam os processos judiciais e os inquéritos policiais. Como já

disse, não há, no direito brasileiro, uma hierarquia explícita e obrigatória de provas, podendo ser

examinados todos os elementos que constarem do processo, inclusive os resultantes não só da

iniciativa do juiz, como das partes, no exercício do direito constitucional de acusação e ampla

defesa, na busca da verdade beyond any doubt.

Há outros procedimentos, instituídos pela lei 9099/95, que criou os Juizados Especiais

Criminais, vinculados à diferente natureza das infrações, quando a pena prevista é de, no

máximo, um ano, para contravenções ou crimes de pequeno potencial ofensivo. Nestes casos,

uma vez feita a ocorrência na polícia, as partes comparecem perante um conciliador, que tenta

promover um entendimento. Se este não é possível, verifica-se uma transação penal, que aplica

penas alternativas aos eventuais culpados, como prestação de serviços comunitários, pagamento

de cestas básicas para entidades assistenciais, etc. Entretanto, como a vítima é quem define o

potencial ofensivo do crime, há sempre a possibilidade de renúncia da parte ofendida, o que

extingue o procedimento penal.

O INQUÉRITO POLICIAL:

Na expressão exemplar de um delegado de polícia, o inquérito policial é "um

procedimento do Estado contra tudo e contra todos para apurar a verdade dos fatos". Assim, o

inquérito policial é um procedimento no qual quem detem a iniciativa é um Estado imaginário,

todo poderoso, onipresente e onisciente, sempre em sua busca incansável da verdade,

representado pela autoridade policial, que, embora sendo um funcionário do Executivo, tem uma

delegação do judiciário e a ele está subordinado quando da realização de investigações.

O procedimento judiciário policial, portanto, pode ser inquisitorial, conduzido em

segrêdo, sem contraditório, porque ainda não há acusação. Entretanto, embora não seja

legalmente permitida a negociação da culpa, ou da verdade, neste nível - como, aliás, em

nenhum nível do processo criminal, que está em busca da "verdade real", como se viu - é lógico

que a polícia barganha, negocia, oficiosa e/ou ilegalmente, em troca de algum tipo de vantagem,

Page 16: PRESOS NO BRASIL

tanto o que investiga, como o que os escrivães policiais escrevem nos "autos" do inquérito

policial, o que se denomina, mesmo, por uma categoria específica: a "armação do processo".

Tais procedimentos, sempre ameaçados de ilegalidade, são sempre analisados ou como

distorções, ou como desvios de comportamento, atribuídos a funcionários inescrupulosos.

Entretanto, embora isto possa ser em alguns casos verdade, observei durante a pesquisa de

campo certas regularidades que apontam para a consistência de tais procedimentos com um

verdadeiro sistema de produção de verdade, de eficácia comprovada. Assim, a regulação da

tortura de acordo com a gravidade da denúncia ou queixa e conforme a posição social dos

envolvidos; a permissão da participação dos advogados nos inquéritos também de acordo com as

diferentes posições que estes especialistas ocupam nos quadros profissionais; o registro - ou não

- das ocorrências levadas ao conhecimento da polícia; a qualificação e tipificação - ou não - das

infrações e crimes registrados e a abertura de investigações preliminares, que levam, ou não, ao

arquivamento ou prosseguimento do inquérito policial; tudo isso de acordo com interesses

manifestamente particularistas são, sem dúvida, algumas dessas práticas institucionalizadas

(Kant de Lima , 1995).

Ora, muito depois de ter tido contato com tais práticas durante o trabalho de campo,

pesquisas arquivísticas complementares, orientadas por colegas especialistas em história do

processo, mostraram que os procedimentos observados eram muito semelhantes aos da

"inquirição-devassa" do direito português ou da "inquisitio" do direito canônico: um

procedimento sigiloso, que preliminarmente investiga, sem acusar, visando obter informações

sobre perturbações da ordem denunciadas pública ou anonimamente; depois, averiguados os

fatos, chama-se o suposto responsável para interrogá-lo, perguntando-lhe sobre o que já se sabe

sobre ele, objetivando levá-lo a confessar; se o crime é leve e o acusado confessa, é repreendido,

apenas; se o acusado não confessa, ou se o crime é grave, o acusado é "indiciado" e o processo é

encaminhado à justiça criminal.

Estes procedimentos se justificavam em sociedades onde a desigualdade substantiva

entre as partes era explícita: não se desejava manchar a reputação de homens de honra que

podiam ser injustamente acusados, nem se desejava expor os despossuídos à ira dos poderosos

Page 17: PRESOS NO BRASIL

por eles maldosamente denunciados: o Estado, então, compensava essa desigualdade, assumindo

a iniciativa da descoberta da verdade (Mendes de Almeida Jr., 1920) . Aqui, é evidente a

produção de um ethos de suspeição sistemática motivado pelo desejo de evitar ou abafar a

explicitação de conflitos, ou de punir aqueles que neles se envolvem, prejudicando a harmonia de

uma sociedade de desiguais complementares, onde cada um tem o seu lugar.

O PROCESSO JUDICIAL:

Já vimos que o processo judicial se inicia pela denúncia do promotor - uma acusação

pública que gera defesa - seguindo-se o interrogatório do acusado, agora réu. Neste interrogatório

defesa e acusação não participam, ou participam apenas como assistentes. É um procedimento

que se auto-justifica como sendo em defesa do réu, nitidamente inquisitorial, em que o juiz

adverte, obrigatoriamente, o acusado, de que "seu silêncio poderá resultar em prejuízo de sua

própria defesa", teoria e prática que parecem colocar-se, como já disse, nitidamente, em

contradição com a presunção da inocência identificada ao silêncio do réu e ao direito de não

incriminar-se do dispositivo constitucional3.

Em compensação, se o silêncio pode vir em prejuízo da própria defesa – como diz o

brocardo, quem cala, consente - o réu pode mentir livremente, pois apenas as pessoas

verdadeiramente arrependidas confessam a verdade. O crime de "falso testemunho",

diferentemente do crime de perjury, só pode ser alegado contra as testemunhas4.

A seguir, "reperguntam-se" todas as testemunhas que já depuseram na polícia, com a

assistência oficial e legal da defesa e da acusação. Tal assistência, obviamente, varia de acordo

3 O direito de não incriminar-se substituiu na tradição anglo-americana the right to stay mute, que era o direito de nada

declarar diante das acusações formuladas publicamente e assim escapar a qualquer tipo de avaliação judicial, emborasujeitasse quem dele se servia à “la peine forte et dure”, que terminava por, eventualmente, matá-lo. Para evitar isso, quando oacusado se calava diante das acusações, convencionou-se que seu representante, por ele, declarava-se not guilty, o quedava prosseguimento ao processo. O silêncio, assim, formalmente, significa o oposto do que em nossa tradição, onde “quemcala, consente”.

4 Note-se também que a auto-acusação, quer dizer, a negociação da culpa pela admissão falsa de crime menor com o intuito de safar-se de crimemaior, tradicionalmente punida pelo direito eclesiástico (Boschi, 1987), também é punida pelo Código Penal, o que contrasta tanto com a policebargain, quanto com a plea bargain do sistema judicial criminal dos EUA.

Page 18: PRESOS NO BRASIL

com as posses do acusado e se reflete no comparecimento qualificado - ou na ausência dele - das

testemunhas do processo. Por várias circunstâncias (mudanças de residência e/ou de status social

e civil, dificuldade de locomoção, doenças, mortes, etc.) são, em geral, as pessoas de melhor

condição econômica ou, pelo menos, os réus soltos, que conseguem trazer, de novo, as mesmas

testemunhas, assim como outras novas, para depor.

Embora se diga que este processo não é conduzido pelo juiz, mas pelo Ministério

Púbico, não caracterizando, assim, um inquérito judicial propriamente dito, a ênfase no papel do

juiz é manifesta, seja na iniciativa a ele atribuída de buscar a verdade real, crível além de

qualquer dúvida, seja na condução exclusiva do interrogatório do réu, seja na tomada do

depoimento das testemunhas, porque o juiz sempre interpreta as respostas dos ouvidos e

interrogados, pois a ele são digidas todas as falas do processo para que, dite-as ou mande

transcrevê-las para registro nos autos, pelo escrivão.

Durante o processo judicial, o réu pode permanecer preso ou em liberdade. Nos EUA, a

fiança é a forma de soltar os réus e, como lá a ideologia é igualitária, aponta-se, por isso, forte

discriminação econômica, pois os mais pobres tem sua defesa prejudicada, não só em função de

seu pior estado psicológico, como também por não poderem produzir provas para sua defesa. Já

no Brasil se as fianças não são caras, essa desigualdade se inscreve nos autos do inquérito

policial - em que se registram as investigações contra os mais pobres, feitas sem advogado ou

contra os mais ricos, armadas por eles com o consentimento da polícia. Esses depoimentos e

confissões, registrados por escrito, estão entranhados nos autos pela não interrupção da

numeração seqüencial de suas páginas, podendo servir ao convencimento do juiz (Kant de Lima,

1995).

Além disso, como já disse, importantes dispositivos legais de diferenciação de

tratamento dos acusados, no Brasil, são a "prisão especial", que assegura condições privilegiadas

na prisão, concedidas a certas categorias de pessoas- como, por exemplo, aquelas portadoras de

instrução superior - , que vão desde a permanência em separado dos chamados "presos comuns",

em acomodações especialmente destinadas a isto, até a "prisão domiciliar", cumprida na

residência do acusado; e a "competência por prerrogativa de função", que retira certos acusados

Page 19: PRESOS NO BRASIL

do âmbito do julgamento preconizado para os cidadãos “comuns”, pelo juiz singular ou pelo júri,

enviando-os para julgamento por seus supostos “pares”, situados em órgãos judiciais colegiados

de instâncias superiores, como os Tribunais de Justiça e os Tribunais Superiores de terceira

instância, ou o Supremo Tribunal Federal, mesmo no caso de terem cometido infrações comuns

sem relação com suas atividades profissionais, como se o privilégio não fosse da função, mas da

pessoa.

Finalmente, o juiz decide de acordo com seu "livre convencimento", fundado no

conteúdo dos autos, os quais, como apontei, trazem entranhados os registros do inquérito

policial, com os depoimentos e confissões obtidas na polícia sem a presença oficial da defesa. À

oralidade, literalidade e explicitude de critérios de produção de fatos válidos dos procedimentos

judiciais dos EUA, os procedimentos brasileiros apontam para o privilegiamento da escrita, da

interpretação e da implicitude. O juiz - não mais o Estado, como no inquérito policial - é visto

como um agente extremamente esclarecido, quase clarividente, capaz de formular um

julgamento racional, imparcial e neutro, que descubra não só a "verdade real" dos fatos, mas as

verdadeiras intenções dos agentes. É interessante notar que nesse contexto de formulação de

“certezas jurídicas”, como aponta Malatesta, tenta-se minimizar aquilo que poderia assegurar ao

juiz e ao público o absoluto acerto de sua "sentença": a confissão.

Nos casos dos crimes intencionais contra a vida humana, no entanto, o juiz singular não

dá a palavra final. Nestes casos, ele formula uma sentença que "pronuncia" ou "impronuncia" o

réu. Quando a sentença pronuncia o acusado, seu nome é inscrito no "rol dos culpados", registro

do qual só sairá se absolvido no processo. Inicia-se, então o julgamento pelo Tribunal do Júri.

O JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI:

Embora a maioria da literatura especializada procure estabelecer equivalências entre

este nosso procedimento judicial e aquele da tradição anglo-americana, tais semelhanças são

extremamente superficiais. Para começar, o nosso julgamento não é uma opção do acusado,

como o do trial by jury, que é aplicado apenas aos que se declararem inocentes. A seguir,

porque aqui ele é a culminância de vários procedimentos em que o acusado foi progressiva e

Page 20: PRESOS NO BRASIL

sistematicamente indiciado na polícia e sucessivamente denunciado e indiciado no processo

judicial, decidindo-se, finalmente, "pronunciá-lo" e inscrever seu nome no "rol dos culpados". A

presunção oficiosa, portanto, é de culpa, não de inocência. Note-se, também, que o due process

of law é um procedimento constitucional universalmente disponível aos cidadãos, para ser

aplicado de acordo com leis locais, que devem ser a todos os do lugar igualmente aplicadas. A

universalidade depende, portanto, da definição do universo e do espaço público, coletivo, sempre

limitado, ao qual se aplica em todos casos em que é devido pelo Estado. Em nosso caso, esta é

uma instituição judiciária que se aplica obrigatoriamente, mas apenas a certos crimes, quando se

faz a aplicação particularizada de uma lei geral - feita pelo legislativo federal - a casos

específicos.

No trial 5by jury o juiz é o árbitro das regras de admissão de evidência que se

apresentam, todas, durante o julgamento. Aqui, como já mencionei, o juiz é que está obrigado a

procurar, por sua iniciativa a "verdade real" e se encontra obrigado, pelos critérios da "ampla

defesa", à aceitabilidade de todas as evidências e indícios trazidos pelas partes ao processo, sob

pena de provocar suas reações, passíveis de prejudicar a sua validade. O juiz lê os autos e os

relata para os jurados, que dificilmente tem contato com seu conteúdo de outra forma: seu

conhecimento sobre os fatos, enquanto operadores judiciais, portanto, é de segunda ou terceira

mão. Também diferem os procedimentos na tomada de depoimentos: nos EUA são feitas

questions durante a examination e cross-examination do acusado - que consentiu em depor - e

das testemunhas, que não podem ser "interrogadas" - quer dizer, não podem ser perguntadas pelo

que se supõe que elas sabem, ou deviam saber - nem podem ter suas respostas induzidas; aqui, ao

contrário, há um interrogatório obrigatório do réu, baseado no que foi apurado durante o

inquérito policial e a instrução judicial e não há regras para a tomada de depoimento de

testemunhas.

Os árbitros, lá, são doze pessoas cuidadosamente selecionados de comum acordo

entre defesa e acusação, apenas para aquele julgamento, dentre listas amplas de todos os

eleitores ou de todos os residentes. Aqui, são sorteados de uma lista preparada

anualmente, de antemão, pelo juiz, composta de pessoas de sua confiança ou a ele

Page 21: PRESOS NO BRASIL

indicadas por pessoas ou instituições fidedignas, da qual se sorteiam vinte e um por mes

e, destes, sete para cada julgamento. Defesa e acusação tem direito a três recusas, sem

justificação, cada.

O julgamento, aqui, verifica-se, em geral, em uma sala especialmente preparada, diante

de uma platéia, que se senta de frente para o juiz, sobre cuja cabeça está, tradicionalmente, um

crucifixo católico, representando a humanização da justiça. O promotor localiza-se ao lado do

juiz, de frente para a platéia, e um escrivão senta-se do outro lado do juiz. Sentados em duas

filas, junto a uma das paredes laterais, ficam os jurados, geralmente vestidos com uma espécie de

pequena beca, à maneira dos outros serventuários da justiça. Junto à parede oposta, de frente para

os jurados, senta-se o advogado, muitas vezes acima do réu, ficando este acomodado, também

diante dos jurados, no chamado "banco dos réus". Não é raro que promotor e jurados ocupam o

mesmo lado da sala, à direita do juiz. como no I Tribunal do Júri do Rio de Janeiro

Embora possa apresentar variantes, dependendo das orientações particulares de cada

Juiz Presidente do Tribunal do Júri e da época em que o espaço do Tribunal foi construído, esta

disposição inquisitorial do espaço contrasta fortemente com disposição adversarial do trial by

jury, onde o acusado e sua defesa sentam-se lado a lado à acusação, de frente para o juiz e de

costas para a platéia, tendo a um de seus lados os jurados, sentados na jury box. Caracteriza-se,

assim, espacialmente, a igualdade ideológica entre as partes, considerando-se a promotoria como

uma parte igual às outras, o que reforça a presunção ideológica de inocência, só passível de

alteração por uma reasonable doubt (dúvida razoável), reconhecida pelos jurados.

No Brasil, o julgamento se inicia, após o sorteio e o compromisso dos jurados, por novo

interrogatório do acusado. Após este procedimento, podem-se ouvir novas testemunhas, o que

dificilmente ocorre, a não ser em julgamentos muito especiais. Dificilmente se ouvem, outra vez,

as antigas - a não ser que tenham sido convencidas a mudar de opinião, pois há uma crença

generalizada de que elas tendem a "atrapalhar" a argumentação de advogados e promotores,

"confundindo" os jurados.

5 Para uma discussão sobre as diferenças entre exame e inquérito ver Foucault (1974,1977)

Page 22: PRESOS NO BRASIL

A parte mais importante do julgamento, portanto, é um debate, em que acusação e

defesa se defrontam, durante duas horas, cada uma, com a possibilidade de prorrogação por mais

uma hora, cada. Nesta verdadeira disputatio escolástica, os advogados e os promotores defendem

"teses" opostas, que não podem encontrar-se jamais, sob pena de declarar-se "inepta" a defesa.

Quer dizer, mesmo quando acusação e defesa concordam com a culpa ou com a inocência do

acusado, têm que acusá-lo e defendê-lo em público, apresentando-se suas teses em oposição. A

verdade, assim, não é construída a partir de um consenso, mas aparecerá com o resultado de um

duelo, em que vencerá o mais forte, ou o “escolhido por Deus”, como rezava a antiga tradição do

sistema de “provas legais”.

Os advogados também não costumam se ater aos autos, pois não ficam registros

escritos de suas falas, diferentemente do procedimento dos EUA. Também podem mentir, pois

estão sustentando a versão de um acusado que tem direito de continuar a mentir em causa própria

durante seu novo interrogatório. Por isso, o conteúdo dos autos, embora lido em suas principais

partes pelo juiz, em seu relatório, é posteriormente manipulado livremente tanto pela acusação

quanto pela defesa.

Após este verdadeiro espetáculo quasi-teatral, sem que lhes tenham sido esclarecidos

oficialmente quais os fatos efetivamente provados do processo, nem as suas implicações legais,

como é obrigatório nos EUA, os jurados se recolhem a uma sala secreta, sem a presença do réu,

na companhia do juiz, de um serventuário da justiça - que os acompanhou todo o tempo do

julgamento para que não se comunicassem entre si nem com o público - de representantes da

defesa e da acusação - o que difere da reunião secreta para discussão do processo e negociação

do verdict dos doze jurados nos EUA, à qual ninguém pode assistir. Aí, novamente proibidos de

discutir entre si, votam, secretamente, de acordo com sua consciência, colocando cédulas

marcadas com sim ou não em uma urna em resposta a uma série de perguntas extremamente

técnicas, que incluem o exame de agravantes e atenuantes, formuladas pelo juiz, com a anuência

da acusação e da defesa (a quesitação), diferentemente do guilty/not guilty da arbitragem dos

EUA.

Page 23: PRESOS NO BRASIL

Mais uma vez, o ritual da produção da verdade se revela distinto. Diferentemente da

incomunicabilidade dos jurados dos EUA, que podem ser segregados para não se comunicarem

com os outros segmentos da sociedade, mas que devem formar sua opinião, sua verdade coletiva,

em conjunto, pelo consenso, muitas vezes de unanimidade obrigatória, a ser obtida entre doze

pessoas, aqui a justificativa para a incomunicabilidade dos jurados entre si é a de que as pessoas,

sozinhas, decidem melhor do que em conjunto, pois em conjunto podem influenciar-se uns aos

outros, o que sempre degradará a qualidade de uma decisão coletiva, formulada por pessoas de

antemão selecionadas pelo juiz como aptas para o exercício desta nobre função. Por isso, a

votação é secreta e o número de jurados é ímpar. Esta argumentação é tirada das teorias sobre a

psicologia das multidões, que tendiam a ver o júri como um tipo desses aglomerados

incontroláveis. Nos EUA, a origem da decisão é um grupo que deve resolver suas diferenças

pública e internamente, para exprimir-se coletivamente sobre uma verdade que a todos,

universalmente, agrega; aqui, o grupo é um conjunto de indivíduos selecionados, que devem

manter suas diferenças substantivas para exprimir-se em particular, de acordo, unicamente, com

sua consciência individual e inspirados pelos valores cristãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vê-se, assim, que o sistema de justiça criminal no Brasil, tanto em sua formulação

constitucional recente como em suas formulações processuais tradicionais, combina uma série de

princípios distintos para a produção da verdade jurídica que visa a administração dos conflitos

criminalizados na sociedade. Os paradoxos provocados por essa combinação dificultam a

compreensão totalizada do sistema, que se apresenta fragmentado institucionalmente e

segmentado hierarquicamente. Ao invés de discutir essa lógica paradoxal, os agentes

institucionais primam por acusar-se mutuamente, emprestando às outras partes a

responsabilidade ou culpa pelo mau funcionamento do sistema ou, mesmo, à má atuação pontual

de alguns de seus agentes. Esses ruídos, produzidos entre as diferentes partes do sistema, que

agem de acordo com lógicas distintas, afetam profundamente sua credibilidade e, portanto, sua

eficácia institucional, criando um clima de desconfiança na sociedade como um todo. Além do

mais, o sistema expressa claramente um viés que tende à naturalização da desigualdade entre os

diferentes segmentos que o compõe, transferida para o tratamento que presta a seus usuários, o

Page 24: PRESOS NO BRASIL

que acarreta nestes uma previsibilidade adversa quanto às possíveis soluções na administração

institucional de seus conflitos, seja em que situação social se encontrem. Esta previsibilidade

negativa certamente está na raiz da busca de outras soluções para tais conflitos, que redundam

em crescente violência no cotidiano de nossa vida em sociedade.

Referências Bibliográficas

Kant de Lima, Roberto –

1995 – A Polícia da Cidadade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. RJ, Editora Forense,

2 ª edição.

1997 – Polícia e exclusão na cultura judiciária. Tempo Social, revista de Sociologia da USP, vol

9, n º 1, maio, p. 169-184.

1999 - Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de

administração de conflitos no espaço público, Revista de Sociologia e Política , Curitiba, n.

13, nov., p. 22-38

No prelo - Violência e Justiça: uma visão antropológica das formas de administração de

conflitos no brasil e nos eua. Mosaico, Revista de Ciências Sociais, Departamento de Ciências

Sociais, Centro de Estudos Gerais, Universidade Federal do Espírito Santo. Ano 3. Número 1.

Volume 1

Mendes de Almeida Júnior, João –

1920 – O Processo Criminal Brazileiro. RJ, Typographia Baptista de Souza, 3 ª edição

augementada, 2 vols.

Page 25: PRESOS NO BRASIL

SISTEMA E FUNÇÕES DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL

Antonio Carlos Carballo Blanco

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

Centro de Estudos de Segurança e Cidadania

1. Introdução

Tradicionalmente o Estado brasileiro, sob os princípios que nortearam a política

desenvolvimentista, priorizou seus esforços concentrando as iniciativas governamentais na

dimensão econômica, relegando a segundo plano as interfaces e reflexos derivados, com

significativa repercussão no ambiente social. A partir deste legado, foram reafirmadas metas e

valores de natureza empresarial que se opunham as expectativas e demandas fundamentais da

sociedade (saúde, educação, saneamento, habitação, geração de trabalho e renda etc). No

âmbito da segurança pública a questão sofreu considerações, tratamento e intervenção

sustentada pela ideologia da segurança nacional em detrimento de uma concepção mais

próxima da realidade do cidadão.

Em linhas gerais, os indicadores de desenvolvimento da sociedade brasileira, ao longo

dos últimos 50 (cinqüenta) anos, demonstram, no âmbito da perspectiva do conflito, algumas

condicionantes, desequilíbrios e desigualdades sócio-econômicas, que concorrem, direta ou

indiretamente, para o agravamento do atual quadro de fragmentação social, geralmente

“protagonizado” pelas taxas e índices de criminalidade e violência. O fluxo migratório para as

grandes cidades associado a ocupação desordenada do solo urbano, o desemprego associado a

situação de distribuição de renda, o apelo ao consumo aliado as péssimas condições de infra-

estrutura, equipamentos urbanos e serviços públicos vivenciada pelas comunidades populares

que vivem em favelas, as demandas por cidadania associadas ao modelo institucional de

distribuição de justiça e prestação jurisdicional são algumas das condicionantes que

contribuem para o agravamento da segurança pública e comprometem a estabilidade das

instituições democráticas.

Page 26: PRESOS NO BRASIL

O Rio de Janeiro de hoje, a exemplo do que ocorre em outras capitais do país,

apresenta como principal indicador das condicionantes da sociabilidade, o crescimento

acentuado dos sintomas de fragmentação social e de perda de identidade cultural,

contribuindo assim, sobremaneira, para agravar os problemas de desintegração social entre os

diversos segmentos e classes.

2. A Segurança Pública na Constituição da República

Sob a égide do Estado Democrático de Direito a República Federativa do Brasil

apresenta como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (CR, Art. 1.º e incisos).

Nesse contexto constituem objetivos fundamentais da República construir uma sociedade

livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação

(CR, Art.3º e incisos).

Com o advento da Constituição de 1988, no âmbito da segurança pública, houve uma

completa reforma na concepção ideológica e doutrinária da segurança pública. Reconhecida,

nos termos do Art. 144, como sendo um poder-dever do Estado a nova concepção não se

limita exclusivamente as intervenções contingenciais de manutenção da ordem pública contra

manifestações e atos de desordem regulados pelo interesse do Estado-Nação. Amplia o

conceito destacando o esforço de preservação permanente da ordem pública sob a ótica das

atitudes e dos valores do cidadão e da sociedade como um todo, consubstanciados pelos

fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa, consoante o Estado

Democrático de Direito. Além de “dever do Estado”, como se prescreve no art. 144 da

Constituição, a segurança pública também é responsabilidade de todos, pois além de, numa

Democracia, o modelo de Estado estar condicionado a vontade do povo é certo dizer que

provisão de ordem está diretamente relacionada com as atitudes e valores do cidadão, quer

isoladamente ou em coletividade.

Page 27: PRESOS NO BRASIL

3. Ordem e Segurança Pública

Convém aqui destacar algumas considerações preliminares sobre a relação entre

ordem e segurança pública. O conceito de ordem pública nos remete a um universo de

relações sociais constituídas a partir do ordenamento político e jurídico do Estado, bem como

das demandas e expectativas da sociedade. A noção de ordem pública refere-se aos modelos

legais e legítimos de organização ramificadas no tecido social, através de processos

interativos, individuais ou coletivos, permanentes ou ocasionais, todos centrados em normas e

padrões de conduta ética orientados para o convívio social pacífico e harmonioso. Já a

segurança pública constitui por excelência uma atividade revestida de dinâmicas próprias e

orientada como função na perspectiva da garantia da ordem. Nas palavras de Diogo de

Figueiredo Neto “A segurança existe para evitar o comprometimento da ordem” .

4. Organização da Segurança Pública na Constituição da República

Para o exercício da segurança pública o Estado, através de órgãos específicos, realiza

funções, organizadas e sistematizadas conforme prescrito no

Capítulo III da Constituição:

Capítulo III

DA SEGURANÇA PÚBLICA

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é

exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,

através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Page 28: PRESOS NO BRASIL

§ 1.º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em

carreira, destina-se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens,

serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim

como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija

repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando

e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas

áreas de competência;

III – exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras;

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

§ 2.º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-

se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

§ 3.º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-

se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

§ 4.º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,

ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações

penais, exceto as militares.

§ 5.º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;

aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução

de atividades de defesa civil.

Page 29: PRESOS NO BRASIL

§ 6.º As policias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva

do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados,

do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 7.º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela

segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

§ 8.º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de

seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

4. Funções da Segurança Pública

Nesse contexto, no âmbito da segurança pública e da competência do poder público

estadual, verifica-se a existência de dois níveis funcionais policiais bipartidos:

1.º a polícia administrativa da ordem pública é a que realiza a prevenção e a repressão

imediata, atuando individual ou coletivamente.

2.º a polícia judiciária é a que apura as infrações pessoais e auxilia o Poder Judiciário,

realizando a repressão mediata, atuando individualmente.

A atuação do Estado, no exercício de seu poder de polícia (o poder de polícia congrega

três atributos fundamentais: discricionariedade, auto-executoriedade e coercibilidade), se

desenvolve em quatro fases: ordem de polícia, consentimento de polícia, fiscalização de

polícia e sanção de polícia.

Admitidas as exceções expressas no texto constitucional depreende-se a seguinte

consideração no âmbito das competências funcionais dos órgãos referidos:

Regra geral, o modelo do sistema de segurança pública adotado pela República

Federativa do Brasil obedece à lógica das funções bipartidas, ou seja, cada polícia cumpre

Page 30: PRESOS NO BRASIL

parte das funções previstas para o ciclo completo de atividades policiais (POLÍCIA

ADMINISTRATIVA + POLÍCIA INVESTIGATIVA + POLÍCIA TÉCNICA).

A polícia federal, na área específica do tráfico ilícito de entorpecentes, contrabando e

descaminho, bem como no exercício das funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras

atua preventivamente, promovendo, na eventual ruptura da ordem pública, a sua imediata

restauração, inclusive, se for o caso, atuando repressivamente. Além disso atua de forma

mediata e repressiva (após a ocorrência de infração penal contra a ordem política e social ou

aquelas perpetradas em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas

entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha

repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em

lei), bem como exerce as funções de polícia judiciária da União.

As polícias rodoviária e ferroviária estadual atuam, mediante a ação de patrulhamento

na fiscalização das rodovias e ferrovias federais, respectivamente.

As polícias civis, ressalvada a competência da polícia federal, atuam de forma mediata

e repressiva (após a ocorrência de infração penal, exceto as militares), bem como exerce as

funções de polícia judiciária.

As polícias militares realizam o trabalho de polícia ostensiva e a preservação da ordem

pública, exercendo, em sua plenitude o desenvolvimento das fases do poder de polícia do

Estado. As polícias militares atuam preventivamente, promovendo, na eventual ruptura da

ordem pública, a sua imediata restauração, inclusive, se for o caso, atuando repressivamente.

Os corpos de bombeiros atuam no limite inopinado da intervenção sempre que

provocado, sob as mais diversas situações intempestivas, especialmente em operações de

combate a incêndios e defesa civil.

De acordo com a Constituição da República (parágrafo 8º do Art. 144), “ os

Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens,

Page 31: PRESOS NO BRASIL

serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. Depreende-se, portanto, que muito embora

não haja condições explícitas para o exercício direto do Poder de Polícia por parte do agente

da guarda municipal, mediante ação fiscalizadora, a autoridade municipal competente,

detentora do Poder de Polícia, pode, através da sua guarda municipal, que estará sempre

respaldada nas exigências legais que autorizam o seu funcionamento, exercer atividades de

proteção patrimonial, serviços e instalações. Nesse sentido a função primordial da guarda

municipal é a vigilância. Em primeira instância, o agente da guarda atua, através da sua

presença ostensiva, como interlocutor das demandas e expectativas sociais junto ao governo e

também, num segundo momento, como defensor do patrimônio municipal, zelando pelo bom

funcionamento dos serviços e das instalações urbanas, bem como pelo cumprimento do

código de posturas. Em terceira instância, na hipótese de flagrante delito, o guarda municipal,

amparado pelo Código de Processo Legal, atua como agente da lei .

5. Desafios e Perspectivas

O atual modelo do sistema da segurança pública no Brasil, com funções policiais

bipartidas, nos inspira alguns desafios, dentre os quais destaca-se o de se elaborar políticas de

segurança pública capazes de apresentar resultados significativos.

Nesse sentido, aproveitando os ensinamentos do ilustre Dr. Professor Luiz Eduardo

Soares, verifica-se que só há Política de Segurança se houver diagnóstico tecnicamente

orientado sobre a criminalidade e a violência e só há diagnóstico se houver dados

consistentes sobre as diferentes dinâmicas criminais e violenta que afetam o cotidiano dos

cidadãos.

Sem conhecimento adequado sobre as particularidades das dinâmicas criminais, não

pode haver um diagnóstico acurado capaz de mapear as demandas dos cidadãos, de identificar

prioridades, de orientar a alocação eficiente e eficaz dos recursos de segurança pública, de

instruir a definição de metas adequadas e realistas que produzam os resultados desejados.

Page 32: PRESOS NO BRASIL

Sem diagnóstico não pode haver uma política global, nem políticas setoriais de

segurança que efetivamente enfrentem os reais problemas vividos de forma diferenciada pelos

cidadãos.

Sem uma política, isto é, sem planejamento racional, não pode haver avaliação e

correções tópicas ou globais. Sem planejamento não se pode aprender com os erros. O mais

importante não é acertar sempre, o que seria impossível. O importante é dispor de uma

estrutura organizacional e gerencial que nos permita aprender com os erros.

Assim como não se deve falar em violência em geral ou em criminalidade em

geral, pois a criminalidade é diversificada e atua segundo lógicas e dinâmicas distintas,

tampouco se deve falar em uma política de segurança, em termos genéricos.

As perspectivas sinalizam a possibilidade de, a partir da definição de padrões de

modelagem, tecnicamente orientados para a coleta, o tratamento e a análise dos dados e

informações de interesse estatístico se possa produzir conhecimentos consistentes e

qualificados (indicadores de violência, criminalidade e desordem) capazes de efetivamente

orientar a formulação de políticas de segurança pública, bem políticas públicas de segurança.

Page 33: PRESOS NO BRASIL

APRESENTAÇÃO DO ANTÔNIO CARBALLO

SISTEMA E FUNÇÕES DE SEGURANÇAPÚBLICA NO BRASIL

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARESÀ LUZ DA

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Algumas condicionantes:

n Fluxo migratório para as grandes cidades;n Ocupação desordenada do solo urbano;n Desemprego;n Distribuição de renda;n Infra-estrutura e equipamentos urbanos;n Serviços públicos;n Cidadania; en Prestação jurisdicional.

SISTEMA E FUNÇÕES DE SEGURANÇAPÚBLICA NO BRASIL

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARESÀ LUZ DA

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Page 34: PRESOS NO BRASIL

Constituição da República: fundamentos do EstadoDemocrático de Direitos.

n Soberania;n Cidadania;n Dignidade da pessoa;n Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; en Pluralismo político.

Constituição da República: objetivos fundamentais daRepública.

n Construir uma sociedade livre, justa esolidária;

n Garantir o desenvolvimento nacionaln Erradicar a pobreza;n Reduzir as desigualdades sociais e

regionais; en Promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor,idade etc.

Page 35: PRESOS NO BRASIL

n Relações sociais;n Ordenamento político e jurídico do Estado;n Demandas e expectativas da sociedade; en Modelos legais e legítimos de organização.

ORDEM PÚBLICA

n Atividade dinâmica;n Função; en Garantia da Ordem Pública.

SEGURANÇA PÚBLICA

“A segurança existe para evitar ocomprometimento da ordem”

Page 36: PRESOS NO BRASIL

Órgãos da segurança pública:

n Polícia Federal;n Polícia Rodoviária Federal;n Polícia Ferroviária Federal;n Polícias Civis;n Polícias Militares;n Corpos de Bombeiros Militares; en “Guardas Municipais”.

Funções da segurança pública:

n A polícia administrativa da ordempública é a que realiza a prevenção e arepressão imediata, atuandoindividualmente ou coletivamente; e

n A polícia judiciária é a que apura asinfrações penais e auxilia o PoderJudiciário, realizando a repressãomediata, atuando individualmente.

Page 37: PRESOS NO BRASIL

O Sistema Penitenciário Brasileiro

Julita Lemgruber6

Este trabalho pretende traçar um breve perfil do Sistema Penitenciário Brasileiro e

levantar alguns problemas relativos à falta de dados nesta área. Procura-se, também, fazer

uma exposição sumária da legislação pertinente e apontar caminhos de pesquisa e análise que

precisam ser explorados. Sabe-se muito pouco sobre o funcionamento do Sistema de Justiça

Criminal neste país. As informações são precárias e limitadas. As prisões e os presos são

também muito desconhecidos. A limitadíssima bibliografia disponível sobre prisões no Brasil

é o maior indicador da falta de interesse de pesquisadores sobre o assunto. Sem informações

qualitativas e dados estatísticos confiáveis, o sistema penitenciário brasileiro tem poucas ou

nenhuma chance de mudança.

1. A situação dos dados

Nos últimos tempos, com o acentuado e rápido crescimento dos índices de

criminalidade, principalmente daqueles relativos à criminalidade violenta, inúmeros

pesquisadores, de norte a sul do país, se vêm dedicando ao tema. No entanto, pesquisadores e

especialistas continuam se defrontando com uma gravíssima limitação: a escassez e a

precariedade de dados estatísticos que permitam análises conseqüentes sobre o funcionamento

do Sistema de Justiça Criminal.

Na área do Sistema Penitenciário, o cenário é ainda mais grave. O último Censo

Penitenciário Nacional, divulgado pelo Ministério da Justiça, data de 1997, embora

informações posteriores a 1997 possam ser obtidas. Em 1993, o Ministério da Justiça

começou, regularmente, a divulgar dados sobre o Sistema Penitenciário Nacional, sem que

fosse realizado um trabalho criterioso de coleta das informações. Elaboravam-se formulários,

enviavam-se para os estados e aguardavam-se as respostas. As orientações para o

6 Socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes

Page 38: PRESOS NO BRASIL

preenchimento dos formulários eram limitadas e pouco elucidativas. Em 1995 e 1997

procurou-se realizar um trabalho de maior envergadura e tentaram-se convênios com o IBGE

para a realização dos Censos. Consideraram-se altos os custos e, mais uma vez, optou-se por

um trabalho quase artesanal. De qualquer forma, houve maior cuidado em relação aos censos

de 1995 e 1997 e formulários mais abrangentes foram elaborados, assim como listaram-se

orientações detalhadas para seu preenchimento. A despeito das recomendações de alguns

membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do Ministério da

Justiça, a coleta de dados nos diferentes estados não foi acompanhada por profissionais do

Ministério, ficando longe de preencher os critérios estabelecidos. Embora alguns estados

dispusessem de uma quantidade razoável de dados informatizados, a situação geral era de

absoluta penúria na coleta de informações e tudo devia ser completamente feito e refeito, a

cada ano. A situação hoje não é muito diferente.

No Estado do Rio de Janeiro, realizou-se um Censo Penitenciário em 1988, resultado

de uma parceria entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e o IBGE e estabeleceu-se um

banco de dados bastante confiável. Nos dois anos seguintes foi contratada uma firma

particular para continuar alimentando o banco de dados. Em 1991 abandonou-se o processo,

considerado muito oneroso, voltando-se à coleta eventual e assistemática.

Hoje o Sistema Penitenciário de alguns estados dispõe de razoável quantidade de

dados informatizados, mas ainda estamos muito longe de afirmar que os números do

Ministério da Justiça sobre presos e prisões brasileiras possam ser utilizados sem restrições.

2. A relação entre o perfil do preso e o perfil do criminoso

Sabe-se que populações prisionais, em qualquer país, são o resultado final de um

processo que implica em perdas nas várias etapas de funcionamento do Sistema de Justiça

Criminal e, desta forma, não se pode, a partir do perfil dos presos, traçar características de

criminosos nesta ou naquela sociedade.

Page 39: PRESOS NO BRASIL

Muito discutidas são as chamadas “taxas negras”, ou “cifras negras” do crime, que se

referem àquela quantidade de crimes cometidos que não chegam ao conhecimento da polícia.

Mais desafiadoras, para os estudiosos da violência e da criminalidade, são as “taxas de atrito”

no Sistema de Justiça Criminal. Define-se por “taxa de atrito” as perdas que ocorrem nas

várias etapas do Sistema de Justiça Criminal, tomando-se como indicador da quantidade de

crimes cometidos as pesquisas de vitimização.

Não se conhece a dimensão da taxa de atrito em nosso país, mas, na Grã-Bretanha, por

exemplo, os números são impressionantes. Naquele país, de acordo com informações do

Home Office, de cada 100 crimes cometidos, 50 crimes, em média, chegam ao conhecimento

da polícia. Entre esses 50 crimes, a polícia consegue reunir informações que lhes permite

investigar 30. A partir daí, 7 suspeitos são encontrados. No final de todo este processo, 3

acusados são condenados e entre 1 e 1,5 pena de prisão é imposta. Vale ressaltar que estes

números referem-se ao conjunto dos crimes cometidos, havendo resultados diferenciados

quando se trata, por exemplo, de homicídio. Neste caso, a taxa de esclarecimento dos crimes

(clearance rate) chega a 80%.

Com relação aos Estados Unidos, dados do Bureau of Justice Statistics, do Uniform

Crime Reports e de resultados de pesquisas de vitimização, revelam que 3.900.000 crimes

violentos cometidos naquele país, no ano de 1994, resultaram em 117.000 penas de prisão. Ou

seja, apenas 3% dos crimes violentos, aí incluídos homicídios, estupro, roubo e lesões

corporais graves chegaram a ser penalizados com uma pena de prisão.

Pela falta de pesquisas regulares de vitimização e pela insuficiente informatização do

Sistema de Justiça Criminal, como um todo, é praticamente impossível determinar a dimensão

da taxa de atrito em nosso país, mas pesquisas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo já

demonstraram que o nível de esclarecimento de crimes é baixíssimo, a começar pelo próprio

homicídio. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, apenas 8% dos homicídios cometidos

chegam a se transformar em processos devidamente instruídos, encaminhados ao judiciário.

Em relação ao conjunto de crimes, é praticamente impossível determinar as perdas que

acontecem ao longo da investigação daqueles que chegam ao conhecimento da polícia, mas

Page 40: PRESOS NO BRASIL

sabemos que, também no Rio de Janeiro, cerca de 80% das vítimas de roubos não prestam

queixa à polícia.

Tudo isto posto, algumas conclusões são evidentes:

1. Não é possível imaginar que se possa traçar um perfil do criminoso a partir dos

homens e mulheres presos, no Brasil ou em qualquer outro país;

2. As taxas de atrito no Sistema de Justiça Criminal demonstram a incapacidade de o

mesmo funcionar como inibidor eficaz da criminalidade em qualquer parte do

mundo;

3. Levando-se em conta os elevados graus de subnotificação da maior parte dos

crimes, e a histórica e crônica incompetência do poder de investigação de nossa

polícia, é lícito imaginar que as perdas, ao longo das diversas etapas do Sistema de

Justiça Criminal brasileiro, sejam muitíssimo superiores àquelas que se conhecem

em outros países;

4. Finalmente, quanto mais perdas, ao longo dessas diversas etapas, mais elevados os

níveis de impunidade.

3. Sanções, regimes, e o desconhecimento de sua dimensão

De acordo com o Código Penal Brasileiro, há três tipos de sanções: a privação da

liberdade, a restrição de direitos e as multas ( Art. 32). As restrições de direitos, usualmente

conhecidas como penas alternativas, são: a prestação pecuniária; a perda de bens e valores; a

prestação de serviços à comunidade; a interdição temporária de direitos; e a limitação de fim

de semana (Art. 43). As restrições de direitos são sentenças autônomas e substituem as penas

de prisão quando a pena de prisão aplicada não for superior a quatro anos e o crime cometido

não implicar em violência; o infrator não for reincidente em crime doloso; a conduta social e a

personalidade do condenado, assim como as circunstâncias do crime, indicarem que uma

substituição é suficiente (Art. 44).

Page 41: PRESOS NO BRASIL

A legislação penal brasileira prevê, também, a suspensão condicional da pena,

usualmente conhecida como sursis. Neste caso, o cumprimento de penas inferiores a dois anos

pode ficar suspenso por dois a seis anos, levando-se em conta uma série de circunstâncias,

descritas no Art. 696 do Código Penal.

Em 1995 foi introduzido um novo diploma legal, a Lei 9.099, criando os Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. No último caso, a legislação prevê que devam ser julgados por

esses Juizados Especiais infrações penais de “menor potencial ofensivo”, descritos como

“contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano” (Art.

61). Nos Juizados Especiais tem lugar a chamada “transação penal” que dá lugar à

“suspensão condicional do processo”, nos casos em que o infrator aceite submeter-se ao que

foi “transacionado”. Desta “transação penal”, basicamente um acordo entre acusado e vítima,

com a participação de um “conciliador” indicado pelo juiz, pode resultar a obrigatoriedade da

prestação de serviços à comunidade, por exemplo, e da indenização à vítima. A vantagem da

Lei 9099 está na rapidez dos procedimentos, baseados na “oralidade” e no fato de o acusado,

cumpridas as exigências, ter o processo suspenso, não resultando em imputação de

culpabilidade.

A coleta de informações, nos diferentes estados brasileiros, é absolutamente

insuficiente para se determinar, com um mínimo de exatidão, os percentuais verificados na

área da aplicação de penas. Apenas com um Judiciário absolutamente informatizado, em todo

o país, será possível estabelecer números confiáveis. Na verdade, não se conhecem, do total

de homens e mulheres encaminhados a uma decisão judicial, os percentuais de condenados a

penas de prisão, de beneficiados com suspensão condicional da pena ou do processo, nem

mesmo daqueles que cumpriram obrigações resultantes das “transações penais”. Não se sabe

quantos, entre os que foram submetidos ao processo de um Juizado Especial Criminal,

passaram a prestar serviços à comunidade ou aceitaram a imposição de alguma das outras

formas de restrições de direitos. Pior ainda: na área do Ministério Público a ignorância em

relação a percentuais de denunciados é quase absoluta.

Page 42: PRESOS NO BRASIL

A legislação brasileira determina diferentes regimes de cumprimento das penas:

regime fechado, semi-aberto e aberto. Nos dois últimos, admite-se a possibilidade de o preso

trabalhar fora dos muros e visitar a família regularmente. O regime inicial de cumprimento de

uma pena é determinado pelo número de anos de condenação e pelo fato de o condenado ser

reincidente ou não, mas, ao longo de sua pena, o preso pode ser beneficiado com a mudança

de um regime para outro, considerando-se, para tanto, o tempo de pena já cumprido e a

situação disciplinar. A progressão de regime, ou seja, a mudança de um regime mais severo e

restritivo para outro que permite maior contato com o mundo externo, configura o que se

convencionou chamar de regime progressivo de cumprimento de pena, encontrado na maior

parte dos países.

De acordo com a legislação, o regime fechado deve ser cumprido em Penitenciárias, o

regime semi-aberto em Colônias agrícolas ou industriais e o regime aberto em Casas de

Albergado. Os inimputáveis, ou doentes mentais, ( Art. 26 do Código Penal) devem ser

abrigados em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e , de maneira geral, os presos

provisórios, aguardando julgamento, devem ficar em Cadeias Públicas. A escassez de

estabelecimentos prisionais no país e, até mesmo, a inexistência, em alguns estados, de

algumas modalidades de estabelecimentos, provoca uma série de ilegalidades: presos

provisórios ao lado de condenados; doentes mentais abrigados em estabelecimentos prisionais

comuns e, o que é pior, presos condenados em regime aberto e semi-aberto cumprindo penas

em delegacias policiais. É urgente que se proceda a um levantamento criterioso da quantidade

de homens e mulheres cumprindo pena irregularmente, em estabelecimentos inadequados ao

tipo de condenação que lhes foi imposta, para que se possa planejar novas unidades a serem

construídas.

Por último, vale insistir que a criação de vagas no Sistema Penitenciário Brasileiro é

tarefa inadiável mas, como veremos a seguir, esta é apenas uma medida emergencial, para

aliviar tensões e os problemas advindos da superpopulação.

Page 43: PRESOS NO BRASIL

4. Panorama do Sistema Penitenciário Brasileiro

Traçar um panorama do Sistema Penitenciário Brasileiro só é possível a partir de

informações do Ministério da Justiça e, como já foi mencionado no início deste trabalho,

essas informações são precárias e devem ser consideradas com cautela. De qualquer forma,

enquanto não se realizarem censos penitenciários de acordo com os padrões de instituições

como o IBGE, só nos resta utilizar os referidos dados.

De acordo com informações do Ministério da Justiça, relativas ao ano de 1999, o

Brasil teria 197.788 presos. O estado de São Paulo contribui com 44% desses presos e, junto

com o Rio de Janeiro, somam 55% dos presos no país. Seguem-se Minas Gerais e Rio Grande

do Sul, ficando os restantes estados brasileiros com 30% dos presos (Gráfico l).

Gráfico 1 – Distribuição percentual dos presos no Brasil (1999)

As taxas de presos por 100.000 habitantes revelam que, nos últimos anos, o país vem

progressivamente encarcerando maiores parcelas de sua população (Gráfico 2). Em 1995,

tínhamos uma taxa de 95,5 presos por 100.000 habitantes. Em 1997, esta taxa cresceu para

108,4 e, em 1999, atingiu 127,7. A atual média nacional, 127,7 presos por 100.000 habitantes

aproxima-se das taxas de países da Europa Ocidental e de alguns países da América Latina.

São Paulo44%

Rio de Janeiro

11%

Rio Grande do

Sul7%

Minas Gerais

8%

Outros30%

Fonte: Ministério da Justiça

Page 44: PRESOS NO BRASIL

Gráfico 2 – Presos por 100 mil habitantes no Brasil

Ainda em relação às taxas de presos por 100.000 habitantes, os números revelam que

alguns estados são muito mais encarceradores do que outros (Gráficos 3 e Tabela 1). Entre os

estados brasileiros, São Paulo ocupa, novamente, o primeiro lugar com 256 presos por

100.000 habitantes, seguido do Distrito Federal (215), do Rio de Janeiro(164) e do Rio

Grande do Sul (133).

Gráfico 3 – Presos por 100 mil habitantes no Brasil, em diferentes estados (1999)

95,5108,4

127,7

0

30

60

90

120

150

1995 1997 1999

Fonte: Ministério da Justiça

256,1215,3

164,5133,7 117,1 93,6

31,8

0

50

100

150

200

250

300

São Paulo DistritoFederal

Rio deJaneiro

Rio Grandedo Sul

EspiritoSanto

MinasGerais

Bahia

Fonte: Ministério da Justiça

Page 45: PRESOS NO BRASIL

Tabela 1 – Presos por 100 mil habitantes nos estados brasileiros (1999)

EstadosPresos/100 mil

HabitantesEstados

Presos/100 mil

Habitantes

Acre 184 Paraíba 96,7

Alagoas 30,3 Paraná 49,7

Amapá 189 Pernambuco 111,2

Amazonas 59,4 Piauí 40,7

Bahia 31,8 Rio de Janeiro 164,5

Ceará 85,5 Rio Grande do Norte 45,6

Distrito Federal 215,3 Rio Grande do Sul 133,7

Espírito Santo 117,1 Rondônia 190,6

Goiás 51,6 Roraima 160,2

Maranhão 42,9 Santa Catarina 94,1

Mato Grosso do Sul 166,8 São Paulo 256,1

Minas Gerais 93,6 Sergipe 95,3

Pará 58,3 Tocantins 86,1

Fonte: Ministério da Justiça

Sabe-se que é metodologicamente incorreto comparar taxas de criminalidade com

taxas de encarceramento, sem que se estabeleça algumas variáveis de controle, mas um exame

simples e muito superficial das taxas de criminalidade dos estados brasileiros não parece

demonstrar relação entre estas e as taxas de encarceramento. São Paulo, por exemplo, que

prende muitas vezes mais do que o Rio de Janeiro, tem índices de criminalidade muito

semelhantes aos fluminenses, principalmente considerando-se dados de algumas regiões

metropolitanas. Esta é uma área que demanda pesquisa séria e urgente.

Acompanhando uma tendência mundial, a população de mulheres presas vem

crescendo em ritmo proporcionalmente maior do que a população de homens presos. Em

1993, 3% dos presos brasileiros eram do sexo feminino. Em 1999 este número havia crescido

para 4,7%. Muitas são as análises realizadas em outros países para explicar esse crescimento,

Page 46: PRESOS NO BRASIL

mas ainda não se conseguiu diagnósticos definitivos, sendo este, também, um tema que

merece ser pesquisado.

Dos 197.788 presos, 32% são provisórios e 68% condenados. Em comparação com

países da América Latina, que chegam a ter 70 a 90% de presos provisórios, a situação do

Brasil não é das mais graves. No entanto, a questão é dramática se atentarmos para o fato de

que, entre os presos condenados, milhares encontram-se cumprindo penas em delegacias ou

cadeias públicas, em absoluto desrespeito à legislação. Só no estado de São Paulo, 12.000

condenados estão fora do sistema penitenciário. De maneira geral, 70% dos presos brasileiros

encontram-se nos sistemas penitenciários estaduais e 30% encontram-se fora dos mesmos,

sendo difícil determinar com exatidão, quantos, dentre os últimos, já estão condenados.

Gráfico 4 – Número de presos, vagas e o déficit no Brasil

A despeito da construção de inúmeros estabelecimentos prisionais e da criação de

quase 40.000 vagas no sistema penitenciário brasileiro(Gráfico 4), entre os anos de 1995 e

1999, segundo informações do Ministério da Justiça em abril de 2000 o déficit de vagas era de

62.993. Ora, com uma taxa de presos por 100.000 habitantes crescendo ano a ano, é evidente

que a construção de vagas precisaria estar acontecendo num ritmo muito mais acelerado para

fazer frente à demanda. A situação do Rio de Janeiro e São Paulo são dramáticas. Em dez

anos, o estado do Rio de Janeiro praticamente dobrou o número de vagas no sistema

penitenciário, passando de 8.500 para 16.000 e, ainda assim, hoje existem 6.000 presos em

148760

6859780163

170602

7459296010

194074

10704987025

0

50000

100000

150000

200000

1995 1997 1999

Presos

Vagas

Déficit

Fonte: Ministério da Justiça

Page 47: PRESOS NO BRASIL

delegacias fluminenses. Em São Paulo, criaram-se quase 30.000 vagas em apenas quatro anos

(Gráfico 5) e, atualmente, cerca de 34.000 presos encontram-se, ainda, fora do sistema

penitenciário estadual.

Gráfico 5 – Número de presos, vagas e o déficit em São Paulo

Quanto ao regime de condenação, 85% dos presos cumprem pena em regime

fechado,10% em regime semi-aberto e 2% em regime aberto. 3% dos presos estão cumprindo

uma medida de segurança, aplicada aos inimputáveis e sem duração determinada. O

inimputável depende de avaliações periódicas que determinam a necessidade da continuação

do encarceramento, o que é outro tema que ainda não foi suficientemente pesquisado e

estudado neste país. A aceitação do preso pela família e a avaliação realizada por profissionais

diversos (médicos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais) vai determinar a possibilidade

de este tipo de preso voltar ao convívio social.

Na maior parte dos estados brasileiros não há locais adequados para os inimputáveis,

nem estabelecimentos diferenciados para o cumprimento de pena em diferentes regimes. E,

como já mencionado, milhares de condenados em regime semi-aberto e aberto, os quais, em

princípio, poderiam trabalhar fora dos muros e visitar suas famílias regularmente, são

mantidos em xadrezes de delegacias, sem a possibilidade de gozar dos benefícios que a

legislação do país lhes garante.

67748

40569

73615

49959

84168

59748

89164

69357

0

25000

50000

75000

100000

1997 1998 1999 2000Presos

Vagas

Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária/SP

Page 48: PRESOS NO BRASIL

Quanto ao perfil dos presos, no que se refere aos crimes cometidos, os últimos dados

do Ministério da Justiça são de 1997 (Gráfico 6) e indicam as seguintes concentrações:

Gráfico 6 – Distribuição de presos por crimes cometidos (Brasil, 1997)

Sabe-se que alguns estados apresentam um quadro substancialmente distinto, no que

se refere ao perfil dos presos quanto aos crimes cometidos. No Rio de Janeiro, por exemplo,

53% dos presos respondem por tráfico de entorpecentes e apenas 10% por roubo, números

muito diferentes dos indicados no gráfico acima. O crime de extorsão mediante seqüestro,

que não chega a 1% no cenário nacional, atinge a marca de 5,6% do Rio de Janeiro. Enquanto

12,7% dos presos brasileiros estão condenados por furto, este índice é de 2,9% entre os

presos do sistema penitenciário fluminense. Enfim, uma análise minuciosa do perfil dos

presos, quanto aos crimes cometidos, não pode prescindir de comparações entre os diversos

estados e regiões do país.

Quanto à extensão das penas, como demonstra o Gráfico 7, há maior incidência na

faixa que vai de mais de quatro a oito anos de condenação, seguida daquela de 12 a 20 anos.

34,0%

16,0%

14,2%

12,7%

5,4%

3,7%

2,8%

2,7%

2,6%

2,1%

1,8%

0,8%

0,7%

0,6%

0,0% 5,0% 10,0% 15,0% 20,0% 25,0% 30,0% 35,0%

Roubo

Homicídio

Tráfico de entorpecentes

Furto

Estupro

Outros

Outros contra pessoa

Uso de entorpecentes

Lesão corporal

Outros contra patrimônio

Estelionato

Extorsão com sequestro

Sequestro

Contravenções

Fonte: Ministério da Justiça

Page 49: PRESOS NO BRASIL

Com a falta de informações adequadas neste particular, acrescida da falta de cruzamentos com

os crimes cometidos, é difícil realizar uma análise mais criteriosa do significado desses

números. No entanto, vale ressaltar que, somados os percentuais relativos a penas de até um

ano, penas de mais de um a dois anos e penas de mais de dois a quatro anos, chega-se a

20,2%. Ou seja, 20,2% dos presos no Brasil poderiam, em princípio, estar cumprindo penas

alternativas. Como não se tem informações cruzadas, indicando, por exemplo, quais dentre

estes 20,2% são reincidentes em crimes dolosos, o que impediria a substituição de uma pena

de prisão por uma pena alternativa, fica difícil estabelecer conclusões definitivas.

Gráfico 7 – Distribuição de presos por expansão das penas (Brasil, 1997)

Outras questões, importantes para a análise do sistema penitenciário brasileiro, como

as taxas de reincidência, o perfil dos presos quanto à cor, ou os custos do preso, são por

demais precárias para que se possa extrair qualquer avaliação, mesmo que preliminar. Quanto

ao primeiro tema, as taxas de reincidência, números absolutamente contraditórios vêm-se

sucedendo nos últimos anos, nas informações do Ministério da Justiça. Taxas que variam de

30 a 80% já foram divulgadas num intervalo de cinco anos, o que leva a supor a

inconsistência da informação. Quanto ao perfil dos presos, no que se refere ao item cor, basta

a própria experiência, daqueles que conhecem as prisões do país, para se perceber que os

números do Ministério da Justiça devam estar francamente equivocados quando se informa

que 48% dos presos do país são brancos. Por último, variadas fórmulas para se calcular o

custo do preso resultam em cifras inconfiáveis, compreendendo diferenças espantosas, mesmo

Fonte: Ministério daJustiça

15,9%

29,8%15,0%

16,6%

18,4%

1,3% 3,0%

Até 1 ano

Mais de 1 a 2 anos

Mais de 2 a 4 anos

Mais de 4 a 8 anos

Mais de 8 a 12 anos

Mais de 12 a 20 anos

Mais de 20 anos

Page 50: PRESOS NO BRASIL

considerando-se que estados como o Piauí e São Paulo, por exemplo, possam reunir um

conjunto de custos bastante diverso.

5. Temas para análise e reflexões finais

Inúmeros temas, já referidos ao longo deste trabalho, merecem investigação e análise.

Na área do sistema penitenciário há muito para ser estudado, mas algumas prioridades devem

ser estabelecidas. Em primeiro lugar, é preciso que o Ministério da Justiça se disponha a

realizar Censos Penitenciários anuais, até que se informatizem os sistemas penitenciários

estaduais, de tal forma que se possam alimentar, regularmente, bancos de dados constituídos a

partir dos censos.

Pesquisas de vitimização anuais também devem ser realizadas, para que se possa

começar a avaliar a dimensão das taxas negras e das taxas de atrito, o que exigirá,

paralelamente, a informatização das polícias, principalmente da polícia civil, do Ministério

Público e do Judiciário.

Vale a pena enumerar temas que estão a merecer a atenção de pesquisadores

interessados na questão da violência, da criminalidade, e do sistema de justiça criminal, como

um todo:

• Taxas negras ou cifras negras

• Taxas de atrito

• Taxas de esclarecimento de crimes

• Relação entre taxas de criminalidade e taxas de encarceramento

• Estudos sobre o custo dos presos e das penas alternativas

• Estudos sobre reincidência

• Investigação sobre as causas do crescimento desigual das taxas de encarceramento

masculina e feminina

Page 51: PRESOS NO BRASIL

APRESENTAÇÃO DA JULITA LEMGRUBER

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

FORUM DE DEBATES VIOLÊNCIA“Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: UmaDiscussão sobre a Base de Dados e Questões Metodológicas”

Encontro 1 – Conceituação, Crime e Relato30/06/2000 (sexta feira)

IPEA RJ – Auditório 10º andar

SISTEMA PENITENCIÁRIOJulita Lemgruber

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

Taxa de atritoGrã-Betanha

(Relação entre crimes cometidos e crimes punidos)

De cada 100 crimes cometidos:

• 50 chegam ao conhecimento da polícia

• 30 são investigados

• 07 suspeitos são encontrados

• 03 acusados são condenados

• 1,5 acusado é condenado a uma pena de prisãoFonte: Home Office

Page 52: PRESOS NO BRASIL

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

Fonte: Bureau of Justice Statistics, Criminal Victimization in the U.S., 1994; “Felony Sentences inState Courts, 1994”; Uniform Crime Reports, 1994

O funil da Justiça Criminal nos EUA

Vitimização violenta

Registros policiais

Detenções

Condenações

Penas de prisão

3.900.000

1.900.000

779.000

143.000

117.000

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

Código Penal BrasileiroTipos de sanções:1. Privação da liberdade2. Restrição de direitos *3. Multas

* As restrições de direitos podem ser:a. Prestação pecuniária

b. Perda de bens e valoresc. Prestação de serviços à comunidade

d. Interdição temporária de direitose. Limitação de fim de semana

Page 53: PRESOS NO BRASIL

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

Em que casos se aplicam arestrição de direitos?

As restrições de direitos são sentenças autônomas esubstituem as penas de prisão quando:

1. A pena de prisão aplicada não for superior aquatro anos e o crime cometido não implicar emviolência;

2. O infrator não for reincidente em crime doloso;

3. A conduta social e a personalidade do condenado,assim como as circunstâncias do crime, indicaremque a substituição é suficiente.

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

Regimes de cumprimento de pena

•Regime fechado•Regime semi-aberto•Regime aberto

Obs. 1 :De acordo com o tamanho da pena e a primariedade doinfrator, determina-se o regime do início de cumprimento da pena.Obs. 2: Ao longo do cumprimento da pena, o preso pode passar de umregime para outro.Obs. 3: Nos regimes semi-aberto e aberto admite-se a possibilidade deo preso trabalhar fora dos muros e visitar a família regularmente.

Page 54: PRESOS NO BRASIL

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Tipos de estabelecimentos penais

• Penitenciária

• Colônia Agrícola ou Industrial

• Casa do Albergado

• Hospital de Custódia e TratamentoPsiquiátrico

• Cadeia Pública

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S ão Paulo

44%

Rio de

Janeiro

11%

Minas

Gerais

8%

Rio Grande

do S u l

7%

Outros

30%

PRESOS NO BRASIL - 1999Número Total de Presos : 197.788

Fonte: Ministério da Justiça

Page 55: PRESOS NO BRASIL

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95,5108,4

127,7

0

20

40

60

80

100

120

140

1995 1997 1999

Fonte: Ministério da Justiça

PRESOS NO BRASILPresos por 100.000 habitantes

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PRESOS NO BRASIL - 1999Presos por 100.000 habitantes : 127,7

256,1

215,3

164,5133,7

117,193,6

31,8

0

50

100

150

200

250

300

S ã o P a u l o Dis trito

F e d e ral

Rio d e

Jane iro

Rio

G r a n d e d o

S u l

Espiri to

S a n t o

M i n a s

G e r a i s

B a h i a

Fonte: Ministério da Justiça

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Homens

95,3%

Mulheres

4,7%

Homens

97,0%

Mulheres

3,0%1993 1999

PRESOS NO BRASILPor sexo – 1993 / 1999

Fonte: Ministério da Justiça

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Fonte: Ministério da Justiça

Condenados

68%

Provisórios32%

PRESOS NO BRASIL - 1999Condenados / Provisórios

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Sistema

Penitenciário

70%

Secretaria de

Segurança

30%

Fonte: Ministério da Justiça

PRESOS NO BRASIL - 1999Tipo de Lotação

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Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

148760

68597

80163

170602

74592

96010

194074

107049

87025

0

50000

100000

150000

200000

1995 1997 1999

Presos

Vagas

Déficit

PRESOS NO BRASIL

Obs.: Entre 1995 e 1999 criaram-se 38.452 vagas no Brasil.Segundo o Ministério da Justiça, em abril de 2000, o déficit era de 62.993.

Fonte: Ministério da Justiça

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Fechado85%

Semi-Aberto

10%

Medida de

Segurança

3%Aberto

2%

Fonte: Ministério da Justiça

PRESOS NO BRASIL - 1999Regimes de Condenação

Page 57: PRESOS NO BRASIL

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Fonte: Ministério da Justiça

PRESOS NO BRASIL - 1997Distribuição por Crimes Cometidos

34,0%

16,0%

14,2%

12,7%

5,4%

3,7%

2,8%

2,7%

2,6%

2,1%

1,8%

0,8%

0,7%

0,6%

0,0% 5,0% 10,0% 15,0% 20,0% 25,0% 30,0% 35,0%

Roubo

Homic íd io

Tráf ico de entorpecentes

Furto

Estupro

O u t r o s

Outros contra pessoa

Uso de entorpecentes

Lesão corporal

Outros contra patr imônio

Este l ionato

Extorsão com sequestro

S e q u e s t r o

Contravenções

Universidade Candido Mendes - UCAMCentro de Estudos de Segurança e Cidadania - CESC

15,9%

29,8%15,0%

16,6%

18,4%

1,3% 3,0%

Até 1 ano

M ais de 1 a 2 anos

M ais de 2 a 4 anos

M ais de 4 a 8 anos

M ais de 8 a 12 anos

M ais de 12 a 20 anos

M ais de 20 anos

Fonte: Ministério da Justiça

PRESOS NO BRASIL - 1997Distribuição por Extensão das Penas

Page 58: PRESOS NO BRASIL

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Temas que exigem investigação

• Taxas negras ou cifras negras

• Taxas de atrito no Sistema de Justiça Criminal

• Taxas de esclarecimento de crimes

• Relação entre taxas de criminalidade e taxas deencarceramento

• Custo dos presos e das penas alternativas

• Reincidência criminal e penitenciária

• Crescimento da criminalidade feminina

Page 59: PRESOS NO BRASIL

Medindo a Criminalidade:

Um Panorama dos Principais Métodos e Projetos Existentes

Tulio Kahn

Paper preparado para o seminário do IPEA sobre indicadores criminais

TEMA: Indicadores de acompanhamento da ação policial

Rio de Janeiro / junho de 2000

Rascunho. Favor não citar sem a autorização do autor.

As várias formas de medir o crime.......................................................................................................60

Utilizando o número de Crimes Registrados nas Polícias.....................................................................61

Boletins de Ocorrência e Chamadas Telefônicas..................................................................................66

Construção e Uso de Indicadores Compostos.......................................................................................68

Medindo a Criminalidade através das pesquisas de vitimização ...........................................................70

As pesquisas de Vitimização conduzidas pelas Nações Unidas .............................................................72

Medindo a Criminalidade através dos Self Reported Crimes ................................................................74

Analisando a eficácia de projetos de redução de criminalidade ou violência ........................................76

Anexo X Pesquisa Crime Trends (Tendências do Crime) ......................................................................79

Anexo X Definição dos Crimes na Pesquisa Crime Trends ..................................................................83

Anexo X - Exemplo de Dados obtidos por chamadas telefônicas - Polícia Militar .................................87

Anexo X - Ocorrências Oficiais publicadas pela SSP-SP trimestralmente no Diário Oficial -

Complementada por Indicadores de Criminalidade (Fonte: Conjuntura Criminal -

http://sites.uol.com.br/concrim) ...........................................................................................................87

Page 60: PRESOS NO BRASIL

As várias formas de medir o crime

Tomando um crime qualquer como exemplo e dissecando-o em seus diversos aspectos

podemos imaginar, idealmente, que ele tem ou pode ter, dependendo do tipo e gravidade do

ato, os seguintes elementos: autor(es), vítima(s), instrumento(s), bens ou valores subtraidos,

testemunha(s), registro formal da ocorrência - flagrante, por telefone ou pessoalmente (na

polícia, no hospital, no Instituto Médico Legal), divulgação do crime no jornal e outros meios

de comunicação, inquéritos e processos, pegistros Prisionais, entre outros elementos

identificáveis.

Em tese, cada um destes elementos pode ser utilizado para a medição do crime. Pode-se por

exemplo perguntar ao autores dos crimes sobre os atos cometidos (self-reported crimes), às

vítimas sobre os crimes sofridos (vitimização), às testemunhas sobre os crimes presenciados,

quantificar os valores envolvidos ou os custos hospitalares, contar os tipos de instrumentos

apreendidos pela polícia, calcular o número de vezes que determinado fenômeno é noticiado

nos meios de comunicação, contabilizar os boletins de ocorrência, inquéritos policiais e

processos judiciais. Pode-se realizar também censos penitenciários para obter informações a

respeito dos criminosos ou consultar especialistas na polícia e outros órgãos sobre, por

exemplo, a eficácia de certo método de combate ao crime. Não menos importante é perscrutar

as opiniões e sentimentos das pessoas sobre criminalidade, mesmo que não tenham se

envolvido com nenhuma forma de crime, através de pesquisas de opinião pública.

As possibilidades são inúmeras e, com efeito, a criminologia tem usado em todo o mundo

estes e outros métodos no intuito de compreender melhor o fenômeno criminal. No Brasil a

pesquisa criminológica é bastante limitada, ainda que tenham surgido diversos exemplos

recentes de pesquisas que se utilizaram de um ou vários destes elementos.

É conveniente assinalar que estas várias formas de medir a criminalidade elencadas acima não

são excludentes, mas complementares. E também que, como todo método, nenhum é melhor

ou pior que o outro a priori: sua utilidade ou não depende daquilo que se está procurando

conhecer. O ideal é utilizar várias metodologias e fontes de informação, que se

Page 61: PRESOS NO BRASIL

complementem e chequem-se mutuamente. É preciso ter consciência, finalmente, de que

todas as formas de medição são precárias e que nenhuma delas dá conta da "realidade" do

crime. Do ponto de vista epistemológico, podemos afirmar que a totalidade dos crimes é

incognocível, por mais que todos os melhores métodos e instrumentos criminológicos sejam

empregados.

Uma vez que nosso objetivo aqui é limitado, trataremos de destacar os meios para que se

possa implementar, de maneira relativamente rápida e econômica, um banco de dados em

escala nacional7 sobre criminalidade.

Utilizando o número de Crimes Registrados nas Polícias

Embora a violência e a criminalidade estejam entre as maiores preocupações da população, o

Brasil carece de uma contabilidade nacional de crimes que seja abrangente e confiável. Com

exceção do Censo Penitenciário Nacional (que na verdade não é um censo, mas um

questionário preenchido pelos diretores das unidades prisionais e que toma o estabelecimento

- e não o preso - como unidade de análise.), o Ministério da Justiça não realiza diretamente

nenhum levantamento nacional que possa ser utilizado para planejar uma política nacional de

segurança pública.

Para se ter uma idéia da precariedade, quando se quer saber sobre homicídios é preciso

recorrer as estatísticas do Ministério da Saúde, que não utiliza como fonte as ocorrências

policiais mas os registros de óbito.

Além da dificuldade natural para a obtenção de dados nacionais num estado federativo e com

fortes desigualdade regionais, uma dificuldade adicional para a constituição de uma base de

dados sobre o crime advém do fato de que a maior parte dos registros criminais existentes no

país são elaborados tendo em vista a consulta individual de casos, para efeitos judiciais e

7 Uma vez que é muito difícil e custoso obter dados sobre todas as cidades com mais de 10.000 habitantes,como se faz, por exemplo, nos EUA, deve-se priorizar a obtenção de dados sobre os maiores centros urbanos dopais, onde o crime é mais intenso. Quantos e quais seriam estes centros fica a cargo do governo decidir. Quando

Page 62: PRESOS NO BRASIL

administrativos. São poucos os registros feitos com a preocupação de medir a criminalidade

para fins gerenciais, como saber se ela esta aumentando ou diminuindo e em que velocidade,

em que locais, se as estratégias de combate ao crime são eficientes e quais são as mais

eficazes.

Quem analisa os crimes tomados individualmente - como é o caso, na maior parte das vezes,

de policiais, investigadores, promotores e juízes - nem sempre se dá conta da impressionante

regularidade com que os crimes se reproduzem, tanto em termos de quantidade como de

modalidade. É justamente esta regularidade que permite à criminologia abordar o fenômeno

criminal de uma maneira empírica e "científica". A mensuração é útil para revelar estes

padrões : que tipo de crime ocorre em que tipo de lugar, com que características, cometidos

por quem e contra quem. Sem identificar estes padrões e regularidades, não é possível

elaborar estratégias para combater o crime.

Uma tarefa inicial deveria ser a extração do maior número de informações possível das bases

nacionais já informatizadas, e que se encontram no Ministério da Justiça, como o INFOSEG

ou outros sistemas de registros individuais de casos. Se se trata de uma base de dados

informatizada e constituída de registros individualizados (não importa se são pessoas,

processos ou outra unidade de análise), com campos fixos e em formato numérico ou

alfanumérico, é tecnicamente possível extrair destes bancos uma base integral, aproveitável

para tratamento estatístico. Não se deve descuidar da "critica" dos dados, observando como a

base foi preenchida e com quais critérios. Mas uma vez que as informações já estão lá,

bastando extraí-las, trata-se de uma opção rápida e barata para a obtenção de dados.

Desenvolver um sistema nacional de estatística criminal que seja abrangente e confiável é

uma tarefa custosa e demorada. Uma vez que este trabalho está voltado à busca de soluções de

curto prazo para o problema, outro caminho promissor a seguir é construir um sistema que

utilize o que os estados já produzem atualmente, assim como já é feito com o "censo"

prisional nacional e nos mesmos moldes que as Nações Unidas fazem para obter dados

falamos em banco de dados nacional, neste sentido, estamos usando o conceito sem uma definição precisa. Namaior parte dos casos, as informações e pesquisas provirão de algums poucas grandes cidades.

Page 63: PRESOS NO BRASIL

criminais dos diversos países. Com exceção das pesquisas de vitimização (ICVS), o sistema

de dados criminais da ONU, que penso deve ser tomando como exemplo a ser seguido pelo

Ministério da Justiça, não se propõe a produzir os dados, mas antes coletar, sistematizar e

divulgar o material existente nos países, com base em registros oficiais. No tópico abaixo,

descrevemos a pesquisa "Tendência do Crime", desenvolvida pelas Nações Unidas, com mais

detalhe.

A Pesquisa sobre Tendências do Crime e Operações da Justiça Criminal ( UNITED

NATIONS SURVEY OF CRIME TRENDS AND OPERATIONS OF CRIMINAL JUSTICE

SYSTEMS), é coordenada pela Divisão de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal da ONU,

em Viena, e encontra-se já em sua sexta edição. A origem da pesquisa remonta aos anos 80,

quando o Conselho Econômico e Social, em sua resolução 1984/85 de 25 de maio de 1984,

requisitou a Secretaria Geral a manutenção e o desenvolvimento de um banco de dados das

Nações Unidas sobre crime e dados correlatos: especificamente, um banco de dados com

informações sobre tendências do crime, sistema de operação da justiça criminal e estratégias

de prevenção ao crime.

O objetivo maior da pesquisa é coletar dados sobre a incidência dos crimes registrados e sobre

as operações do sistema de justiça criminal, com a intenção de aperfeiçoar a disseminação

destas informações globalmente. Para este fim, a pesquisa procura fornecer uma visão geral

das tendências e inter-correlações entre as várias partes do sistema de justiça criminal, para

promover um processo decisório que seja bem informado, no momento de gerenciar o sistema

criminal.

A fonte principal da pesquisa são as estatísticas oficiais de criminalidade e da justiça e o

questionário segue uma seqüência que reproduz os diferentes estágios que o criminoso segue

conforme passa pelo sistema criminal. Na maioria dos casos, os dados requisitados seguem

um calendário anual. A data de 31 de dezembro é adotada como marco para a comparação da

situação ano a ano. Em cada questionário existe a identificação do responsável pelo

Page 64: PRESOS NO BRASIL

preenchimento, bem como todas as anotações relevantes sobre os dados, tais como conceitos,

formas pelas quais foram obtidos, etc.

Os dados requisitados aos governos na pesquisa dividem-se em 15 tipos de informação, que

vão dos recursos destinados a justiça aos condenados nas prisões, passando pelo número de

crimes registrados, número de juízes e tribunais, duração média das sentenças, e outros, como

pode ser verificado na listagem abaixo:

• Recursos de Justiça Criminal (Criminal Justice Resources)

• Pessoal Policial (Police Personnel)

• Número de Crimes Registrados (Number of Reported Crimes )

• Crime nas Maiores Cidades (Crime in the Largest Cities)

• Número de Pessoas com Contatos Formais com o Sistema de Justiça Criminal (Number of

People with Formal Contact with the Criminal Justice System )

• Idade / Sexo dos Suspeitos (Age/Gender of Suspects)

• Promotores e Condenações (Prosecutors and Prosecutions )

• Condenações por Idade / Sexo (Prosecutions by Age/Gender)

• Juízes e Varas Criminais (Judges and the Criminal Courts)

• Número de Pessoas Condenadas (Number of People Convicted of Crimes )

• Prisioneiros e Sentenças (Prisoners and Prison Sentences )

• Duração Média das Sentenças (Average Sentence Lengths)

• Pessoal Prisional (Prison Personnel)

• Admissões Prisionais para Todos os Crimes (Prison Admissions for All Crimes)

• Admissões Prisionais por Idade / Sexo (Prison Admissions by Age/Gender)

• População e dados de Nível de Desenvolvimento (Population and UNDP Development

Level Data )

Page 65: PRESOS NO BRASIL

Cada uma destas categorias é posteriormente detalhada numa série de ítens. A parte de crimes

registrados, por exemplo, é subdividida em 116 diferentes variáveis, listadas no anexo.

No que diz respeito especificamente as estatísticas criminais, a pesquisa Crime Trends

procurou definir os crimes de maneira genérica, de modo a que fossem aplicáveis à maioria

dos códigos legais existentes nos países. A título exemplificativo, incluímos no anexo a

definição dos crimes investigados.

Os resultados obtidos nas pesquisas já deram origem a uma série de documentos e

publicações, produzidos, entre outros organismos, pelo European Institute for Crime

Prevention and Control, pelo Australian Institute of Criminology (AIC), pela Asia and Far

East Institute for the Prevention of Crime and the Treatment of Offenders (UNAFEI) bem

como pelo ILANUD da Costa Rica e do Brasil . Análises selecionadas dos dados tem sido

publicadas pelo Statistical Office of the Secretariat, bem como no UNCJIN Crime and Justice

Letter, sob o título "Trends: The Global View of Crime and Justice" (edição especial, 1991).

Para montar seu próprio sistema de informações criminais nacional da forma mais rápida e

econômica, o Ministério da Justiça deveria adotar um procedimento semelhante, ainda que a

opção implique numa ausência de controle sobre a produção e sobre a qualidade dos

resultados obtidos. A cada ano seria remetido a todos os estados um questionário -

devidamente acompanhado de um manual de instruções e de definições - para que os

responsáveis no executivo e judiciário completassem. Ao governo federal caberia somente a

coordenação do projeto, a definição dos indicadores de interesse, bem como a posterior

análise e publicação dos mesmos, de forma que estivessem acessíveis a sociedade.

Uma outra opção mais rápida e barata que deve ser levada em conta, tanto para esta pesquisa

de tendências criminais como para o censo penitenciário, é a utilização de formulários

eletrônicos no site do Ministério da Justiça, preenchidos através da internet. Trata-se afinal de

pesquisas a serem respondidas por especialistas do executivo e do judiciário, nos estados, e

não de pesquisas de opinião. O trabalho inicial seria identificar nos estados quais as pessoas

que detêm estas informações chaves, atualmente dispersas, e solicitar oficialmente a

Page 66: PRESOS NO BRASIL

colaboração. Várias pessoas e órgãos poderiam ser consultados simultaneamente a respeito

das mesmas informações, como uma forma de checar os dados. O acesso ao formulário

somente seria possível para os portadores de senha, identificando o responsável pelo

preenchimento, de forma a garantir a fidedignidade das informações. Inseridos desta forma, os

dados são automáticamente inseridos num banco de dados e podem estar instantaneamente

disponíveis ao público.

Seria bastante conveniente que tanto os indicadores como a metodologia seguissem o mais

próximo possível o modelo de pesquisa elaborado pela ONU, pois assim tornar-se-ia possível

comparar a situação nacional e dos estados com cerca de 78 países em todo o mundo. É

possível se beneficiar também de toda a discussão teórica e metodológica já travada no

âmbito internacional sobre esta pesquisa.

Boletins de Ocorrência e Chamadas Telefônicas

As estatísticas criminais oficiais são quase sempre calculadas tendo por base os boletins de

ocorrência preenchidos na polícia civil. Como existe a preocupação em classificar a conduta

anti-jurídica para efeitos judiciais, o preenchimento da ocorrência procura ser o mais correto

possível, pelo menos no que diz respeito ao crime cometido. A necessidade da

individualização da pena faz também com que se dê alguma atenção as informações sobre o

autor e a vítima, ao menos no que diz respeito a dados básicos como sexo, idade, endereço e

filiação. Por isso os B.Os são vistos como fonte confiável para estatísticas criminais, pelo

menos em suas informações essenciais.

Qualquer um que já tenha ido a uma delegacia de polícia, por outro lado, sabe com quão

pouco cuidado os policiais preenchem os boletins quando se tratam de questões irrelevantes

para o inquérito policial. Pensado antes como peça inquisitorial e investigativa do que como

instrumento de análise criminológica, os boletins de ocorrência deixam de perguntar aspectos

relevantes sobre o crime, são preenchidos com displicência nos quesitos considerados não

Page 67: PRESOS NO BRASIL

cruciais para fins judiciais e inexiste uma padronização de respostas ou instruções sobre como

preencher corretamente a peça.

Caberia talvez ao Ministério da Justiça e especialmente a Secretaria Nacional de Segurança

Pública preparar um novo modelo de Boletim de Ocorrência, de abrangência nacional, mais

detalhado do que o modelo atual, com respostas o mais possível padronizadas e acompanhado

de um manual que ensinasse o correto preenchimento em caso de dúvidas. Um programa de

banco de dados simples, que rodasse em sistema operacional DOS, instalado nos distritos

policiais agilizaria sobremaneira o processo.

Agora bem, além dos boletins de ocorrência preenchidos pela Polícia Civil, existem dados

produzidos pelos sistemas de atendimento telefônico mantidos pela Polícia Militar que são

quase sempre neglicenciados nas análises criminais. Uma vez que a finalidade deste sistema é

o despacho de viaturas para a resolução da ocorrência, a categorização dos crimes feita pela

PM não segue necessariamente a classificação presente no Código Penal, mas é uma boa

aproximação dela. Deixando um pouco de lado o significado de ocorrências como

"desinteligência", é importante frisar que os chamados telefônicos feitos ao 190 podem

fornecer estimativas importantes para crimes comumente pouco notificados nos distritos

policiais.

Sabe-se que os dados oficiais baseados nos boletins de ocorrência apresentam uma

subnotificação da ordem de 2/3, maior ou menor segundo o tipo de crime, e que isto ocorre

por que muitas vítimas não se dão ao trabalho de ir à delegacia relatar o crime. Muitas destas

ocorrências, no entanto, são registradas por telefone, como agressões, depredações, maus

tratos, etc, pelas vítimas ou por testemunhas do ato. Além disso, as centrais de atendimento da

PM são informatizadas, catalogam um grande número de condutas anti-jurídicas e trazem

informações adicionais a respeito do tratamento dado ao problema.

Pelo menos para os grandes centros urbanos do país, seria fácil e útil obter as planilhas com

os totais semestrais ou anuais dos atendimentos feitos por telefone pela Polícia Militar,

Page 68: PRESOS NO BRASIL

mesmo que a classificações não sejam comparáveis com o que se obtém com os boletins de

ocorrência.

Construção e Uso de Indicadores Compostos

O surgimento dos indicadores sociais esteve intimamente relacionado com o processo de

expansão das atividades do setor público: com a crescente complexidade das funções

assumidas pelo Estado, precisou-se aperfeiçoar o fluxo de informações necessárias para a

tomada de decisões práticas.

Através da criação de Índices - inúmeros no meio econômico, tais como os de custo de vida,

BOVESPA, de desemprego, etc - os agentes procuram reduzir a margem de incerteza que gira

ao redor de qualquer decisão, prevendo a evolução futura dos fatos e avaliando a eficiência

das medidas postas em prática para contornar os fenômenos mensurados pelos indicadores.

Também no âmbito da segurança pública é preciso forjar um instrumento de trabalho para

avaliar o fenômeno da criminalidade e as políticas elaboradas para combatê-lo. A discussão

sobre segurança até aqui tem sido levada a cabo quase sempre de maneira impressionística:

conforme a evidência que se utilize - número de homicídios, roubos, etc - pode-se tanto

afirmar que a criminalidade está aumentando quanto o seu contrário.

Além disso, como não existe nenhuma medida válida para mensurar a criminalidade, não há

como verificar o nexo entre fatos que se acreditam relacionados ou como premiar ou punir os

responsáveis pelas áreas de policiamento segundo sua eficácia no combate ao crime. Estas

questões só poderão ser respondidas objetivamente quando dispusermos de indicadores que

situem aos agentes vinculados às questões da segurança pública sobre a evolução do crime, tal

qual faz o BOVESPA em relação aos aumentos e quedas na bolsa de valores. Outra vantagem

evidente para a sociedade com a construção de índices de criminalidade é que com eles já não

mais se poderá manipular politicamente os dados - contra ou a favor das políticas de

segurança - como quase sempre se tem feito.

Page 69: PRESOS NO BRASIL

Existem diversos índices e taxas que podem ser estimados apenas com a soma ou divisão

simples de outras grandezas. Cite-se a título de exemplificação, os indicadores que calculo

trimestralmente para o Boletim Conjuntura Criminal (http://sites.uol.com.br/concrim), que

podem ser encontrados em anexo:

q Total de Crimes - somatório simples do total absoluto de crimes no Estado, naquele

período. Não confundir com o total de boletins de ocorrência pois nem toda ocorrência

policial trata de crimes. Este é também o indicador utilizado pelo FBI anualmente no seu

Crime Report.

q Índice de Garantia de Aprisionamento - dá a probabilidade de que alguém que tenha

cometido um crime seja preso. Calcula-se dividindo o total de crimes em determinado

período pelo número de prisões efetuadas naquele período.

q Índice de Criminalidade - somatório das taxas por 100 mil habitantes de homicídios

dolosos, lesão corporal dolosa, roubo e furto, multiplicados cada um pela pena média

atribuída pelo código penal, dividido pelo número de indicadores do índice.

q Os três indicadores de letalidade policial propostos por Paul Chevigny.

Outros exemplos de indicadores compostos ou taxas podem ser encontrados no anuário

estatístico do SEADE (Crimes Violentos) ou no paper recente sobre indicadores de

criminalidade violenta propostos pela comissão especial de Indicadores de Criminalidade no

Rio de Janeiro: indicador de crimes letais intencionais, de crimes não letais contra a pessoa e

de crimes violentos contra o patrimônio.

Existe uma grande variedade de formas pelas quais os indicadores podem ser construídos,

cada qual com suas vantagens e desvantagens e não é este o momento de avaliar o mérito de

cada um. Aqui também, é importante que tanto o governo quanto a sociedade lancem mão de

vários deles. O principal é que a "matéria-prima", que são os dados brutos sobre

criminalidade, seja coletada e disponibilizada a todos. A construção e análise de indicadores,

Page 70: PRESOS NO BRASIL

contudo, não precisa necessariamente ser tarefa governamental pois os institutos de pesquisa e

as organizações da sociedade podem se incumbir disso, se tiverem amplo acesso aos dados,

apresentados de modo o mais detalhado possível. O governo deve se concentrar

prioritariamente na produção, coleta e divulgação dos dados brutos de criminalidade.

Medindo a Criminalidade através das pesquisas de vitimização

As pesquisas de vitimização surgiram nos Estados Unidos na década de 60 como uma

tentativa de estimar a quantidade de crimes sofridos pela população e não comunicados aos

órgãos governamentais. Atualmente, em diversos países do mundo, os governos ou institutos

independentes realizam a intervalos variáveis de tempo as chamadas “pesquisas de

vitimização” com amostras da população, perguntando a certo número de cidadãos se foram

vítimas de algum tipo de crime nos últimos meses ou anos.

Aparentemente, seria mais simples e econômico consultar as estatísticas oficiais para

conhecer a quantidade de crimes a que está sujeita a sociedade, bem como se esta quantidade

vem diminuindo ou aumentando no tempo. Acontece que, por uma série de motivos, os dados

oficiais nem sempre refletem com fidedignidade a situação real da criminalidade na

sociedade. As estatísticas oficiais estariam corretas se todos os cidadãos vitimizados

relatassem os crimes de que foram vítimas às autoridades, mas a experiência em diversos

países, desenvolvidos ou não, revela que este raramente é o caso.

É difícil conhecer com precisão a quantidade de crimes que ocorrem na sociedade. O

que os governos tem em seus registros policiais são apenas uma estimativa dos crimes

ocorridos, estimativa esta que se sabe, de antemão, ser subestimada. As pesquisas de

vitimização são também estimativas e subestimam igualmente a quantidade de crimes

que ocorrem na sociedade.

Page 71: PRESOS NO BRASIL

É preciso deixar claro que as pesquisas de vitimização não foram pensadas como substitutas

dos levantamentos oficiais, mas como complemento destes. Trata-se apenas de um método

diferente de abordar o mesmo problema. É importante proceder periódica e sistematicamente

a ambos os levantamentos, inclusive para atestar a “eficiência” governamental na área

policial. Na Inglaterra - através da unidade de pesquisa e planejamento do Home Office - e

nos Estados Unidos - através do escritório de estatísticas criminais do Departamento de

Justiça - as pesquisas de vitimização converteram-se em instrumentos regulares de coleta de

dados criminais.8

A propensão por parte das vítimas em relatar o crime sofrido varia com uma série de fatores e

circunstâncias, relacionadas às percepções da vítima, ao sistema policial ou ao tipo do crime e

do bem envolvido. A experiência internacional na área revela que, entre outros fatores,

dependendo da percepção social da eficiência do sistema policial; da percepção social da

confiabilidade do sistema policial; da seriedade ou do montante envolvido no crime; do crime

implicar ou não numa situação socialmente vexatória para a vítima (estupro, agressões

domésticas, “conto do vigário”, etc.); do grau de relacionamento da vítima com o agressor;

do bem estar ou não segurado contra roubo; da experiência pretérita da vítima com a polícia;

da existência de formas alternativas para a resolução do incidente - menor será o incentivo

para o indivíduo comparecer perante as autoridades policiais para reportar o crime de que foi

vítima.

Assim, é ilusório imaginar que as estatísticas de criminalidade oficiais sejam um retrato fiel

do fenômeno da criminalidade. Antes, em certo sentido, as estatísticas oficiais são também

espécies de “amostras”, que podem ser mais ou menos fiéis, dependendo do tipo de crime.

8 Refiro-me ao “British Crime Survey”, feito na Inglaterra pelo Home Office Research and Planning Unit e ao “National CrimeSurvey”, feito nos EUA pelo United States Department of Justice, Bureau of Justice Statistics. Estas e outras dezenas depesquisas de vitimização podem ser obtidas pela internet, no site http://icpsr.umich.edu

Page 72: PRESOS NO BRASIL

As “pesquisas de vitimização” são ministradas precisamente para estimar qual o diferencial

existente entre as estatísticas oficiais e a criminalidade existente e, novamente aqui, quanto

maior o peso das variáveis elencadas acima, maior este diferencial.

Elas também não refletirão com exatidão o fenômeno da criminalidade, constituindo-se

apenas numa melhor aproximação deste último, porque nem todos os entrevistados lembrarão,

terão a disponibilidade ou a confiança necessária para relatar a um desconhecido fatos

desagradáveis ocorridos no passado.

As pesquisas de Vitimização conduzidas pelas Nações Unidas

Desde 1989 o UNICRI (United Nations International Crime and Justice Research Institute)

vem realizando pesquisas de vitimização comparativas que já envolvem mais de 50 países. O

Projeto é conhecido como Pesquisa Internacional de Vitimização do UNICRI (International

Crime Victimizations Survey) e no Brasil é conduzido com a colaboração do Ilanud.

As pesquisas têm procurado investigar países de todos os continentes, tanto desenvolvidos

como subdesenvolvidos. Trata-se de um dos maiores projetos de criminologia comparada já

feitos: somente em 1996/97, junto com a pesquisa do ILANUD/Datafolha9 em São Paulo, o

UNICRI conduziu pesquisas de vitimização em outros 35 países, perguntando a pessoas com

16 anos ou mais sobre os crimes cometidos contra elas, opiniões e atitudes sobre notificação

dos crimes à polícia, medo do crime, estratégias de prevenção e atitudes com relação à

punição dos criminosos.

Esta série de pesquisas procura suprir a deficiência de dados sobre o crime comparáveis em

âmbito internacional. Cada país, comparando sua própria situação com a dos demais países -

desenvolvidos e subdesenvolvidos - pode ter uma noção da especificidade do crime em cada

9 A Pesquisa de Vitimização DataFolha / ILANUD foi elaborada por Mauro Francisco Paulino e Alessandro Janoni Hernandes econtou com a consultoria dos sociólogos Tulio Kahn - do ILANUD - e Renato Sérgio de Lima, da Fundação SEADE.

Page 73: PRESOS NO BRASIL

região, e em que os diversos países se sobressaem positiva ou negativamente. Os países

também podem aprender com a experiência uns dos outros sobre como lidar com o problema

da criminalidade.

Em todo o mundo, as pesquisas de vitimização têm se revelado um valioso instrumento para o

desenvolvimento de políticas sociais orientadas em direção à prevenção do crime dentro de

um contexto de equidade social e de respeito aos direitos humanos. O projeto ICVS ergue-se

sobre a experiência adquirida pelas Nações Unidas através dos surveys de vitimização

internacional realizados em 1989, 1992, 1996 e 1998, com a participação de mais de 60 países

ao redor do mundo, incluindo o Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo).

As pesquisas de vitimização conduzidas pela ONU procuram obter informações sobre a

experiência das pessoas com respeito ao crime, riscos de vitimização, propensão a registrar

queixa policial, atitudes com relação à polícia e a punição dos criminosos, estratégias de

prevenção ao crime, bem como avaliação dos serviços prestados pelas forças policiais.

Objetivo adicional, mas não menos importante, das pesquisas internacionais de vitimização é

o de estabelecer dados internacionais comparáveis e confiáveis sobre o crime, prevenção ao

crime e aplicação da lei.

Atualmente, encontra-se em estágio preparatório uma grande pesquisa para o ano 2000,

envolvendo a maior parte dos países latino-americanos.

Tanto quanto possível, o governo brasileiro deveria esforçar-se para tomar parte nos projetos

conduzidos pelas Nações Unidas, Banco Mundial, e outras entidades internacionais, que

conduzem pesquisas homogêneas do ponto de vista metodológico, permitindo a comparação

da situação brasileira com a de outros países. Este grande acervo de dados permite que se

façam comparações do tipo MSS (Most Similar System) e MDS (Most Diferent System), que

constituem um excelente método para colocar hipóteses em teste.

Page 74: PRESOS NO BRASIL

Somente participando destas pesquisas é possível perceber as nossas peculiaridades do ponto

de vista criminal e porque países tão diferentes do Brasil apresentam pontos de semelhança

conosco, enquanto outros mais iguais são tão distintos quando se comparam os fenômenos

criminais.

Medindo a Criminalidade através dos Self Reported Crimes

Ao lado as estatísticas oficiais e das pesquisas de vitimização, os "self reported

crimes" (violações auto-assumidas) representam uma alternativa de mensuração de crimes.

Neste tipo de pesquisa, pergunta-se aos entrevistados (de estudantes a criminosos presos) se

eles cometeram certos crimes e contravenções nos últimos anos ou meses. Através destas

pesquisas é possível calcular a prevalência de certas ofensas - a proporção de respondentes

que cometeram uma ofensa em particular ao menos uma vez no período analisado - bem como

a incidência de ofensas - o número médio de ofensas por pessoa, no estudo.( Barkan, 1997).

O primeiro estudo do gênero foi realizado no Texas, em 1946, com cerca de 2300

adolescentes, com ou sem passagens pela polícia. Nos Estados Unidos esta modalidade de

pesquisa é realizada sistematicamente desde os anos 70, permitindo às autoridades monitorar

o envolvimento dos jovens com o mundo do crime e das contravenções. Entre os projetos de

maior envergadura cite-se o National Youth Survey, realizado desde 1976, o projeto

Monitoring the Future, os PRIDE surveys e o National Household Survey on Drug Abuse. O

instituto Gallup de opinião pública também conduz pesquisas específicas sobre uso de drogas

e álcool na população.

Os estudantes de segundo grau costumam ser o alvo predileto destas pesquisas, feitas em

colaboração com escolas e professores. Uma amostra de estudantes recebe um formulário para

auto-preenchimento, bem como instruções e um envelope para inserir numa urna. Para que a

pesquisa seja confiável, é preciso assegurar todas as garantias de anonimato. Além dos

estudantes, costumam responder aos formulários jovens cumprindo pena nas instituições para

delinqüentes juvenis. Entre as conclusões mais relevantes destes estudos está a de que os

grupos de estudantes comuns e jovens infratores não são tão diferentes como se poderia

Page 75: PRESOS NO BRASIL

imaginar. Os estudantes cometem quase tantos pequenos crimes quanto os infratores, sem que

sejam penalizados pelas infrações cometidas.

Em qualquer tipo de pesquisa de opinião, algumas pessoas inventam atos que não cometeram

enquanto outras omitem atos cometidos. Ainda assim, assume-se que em geral os resultados

das pesquisas de crimes auto assumidos refletem a realidade, desde que se tomem certos

cuidados: insistência na seriedade das respostas, no anonimato, ausência de professores ou

outros supervisores no momento da aplicação do formulário, explicação dos objetivos da

pesquisa por um membro da equipe, inserção de pergunta falsa no formulário para flagar

mentirosos, checagem de consistência interna das respostas, etc. Estudos que foram feitos

com o auxílio de um detetor de mentiras sugeriram também a fidedignidade das respostas. Os

registros policiais e as pesquisas de vitimização também podem ser usados para aferir a

veracidade das respostas.

Percebe-se facilmente que esta modalidade de pesquisa tem utilidade somente para a

investigação de certo tipo de crime, especialmente os de menor gravidade, como as

contravenções, uma vez que poucos em sã consciência confessariam a participação num crime

de maior gravidade numa pesquisa deste tipo. Mas bons resultados foram obtidos com crimes

mais graves e em pesquisas com prisioneiros. Entre os atos delituosos pesquisados estão:

falsificação de documentos, violações de tráfego, furto de pequenos objetos ou valores,

compra de artigos furtados, brigas de turma, destruição de telefones públicos, porte ilegal de

armas, vandalização de automóveis e uso de drogas, entre outros.

Estes pequenos delitos do cotidiano são mais comuns do que correntemente se imagina entre

os jovens, assim como o suborno de guardas de trânsito, trocas de preços de mercadorias no

supermercado e sonegação de renda o são entre os adultos que consideraríamos como

"cidadãos de bem". Para o caso dos pequenos crimes e contravenções, não é incorreto afirmar

que "inocente é o culpado que não foi pego em flagrante".

A pesquisa de violações auto-assumidas nos oferece uma estimativa da propensão aos crimes

de menor gravidade entre os futuros adultos, bem como dados sobre o perfil dos infratores. Os

Page 76: PRESOS NO BRASIL

dados de perfil (sexo, cor, idade, etc.) são considerados pelos criminólogos como mais

fidedignos do que os registros policiais, uma vez que freqüentemente os registros oficiais

refletem os preconceitos dos órgãos policiais com relação a certos grupos, como negros,

moradores de rua, moradores da periferia e do sexo masculino. As infrações cometidas por

mulheres, brancas e dos bairros abastados, por outro lado, tendem a ser, no outro extremo,

subestimadas.

Um bom exemplo de questões que podem ser respondidas através desta metodologia nos é

fornecido pelo Projeto Monitorando o Futuro (Monitoring the Future), pesquisa que o Ilanud

vem replicando parcialmente com estudantes de escolas públicas e particulares de São Paulo.

A pesquisa Monitoring the Future procura levantar quantas vezes, nos últimos 12 meses, o

aluno "Discutiu ou teve uma briga com algum dos seus pais ? / Agrediu um professor ou

bedel ? Envolveu-se numa briga séria na escola ou no trabalho ? / Tomou parte numa briga na

qual um grupo de amigos seus lutou contra outro grupo ? / Agrediu alguém de forma forte o

bastante para que esta pessoa precisasse de curativos ou ir ver o médico ? / Usou uma faca ou

revólver ou alguma outra coisa para obter algo de uma pessoa ? / Pegou alguma coisa que não

pertencia a você, no valor de menos de 50 reais ? Pegou alguma coisa que não pertencia a

você, no valor acima de 50 reais ? Pegou alguma coisa de uma loja, sem pagar ? /".

A pesquisa aplicada em São Paulo com cerca de 1000 alunos indicou a viabilidade deste tipo

de estudo, uma vez que foram poucos os alunos que se recusaram a responder as questões ou

que aparentemente inventaram atos que não cometeram. Resultados semelhantes - ao menos

quanto a aplicabilidade da pesquisa - foram obtidos pela socióloga Beatriz Coltrin, em estudo

similar feito pela Faculdade de Medicina da USP.

Analisando a eficácia de projetos de redução de criminalidade ou violência

Para encerrar este paper, gostaria de tecer alguns comentários sobre o método comparativo em

criminologia. Como nas ciências humanas não é possível fazermos uso de laboratórios, é

preciso simular experimentos na realidade afim de testar hipóteses sobre a eficácia das

Page 77: PRESOS NO BRASIL

intervenções propostas. Existem vários desenhos possíveis para a realização de pesquisas

comparativas – most similar system, most diferent systems, experimentos temporários

alternando grupos de teste e controle, etc – mas o tipo de "desenho" de pesquisa mais

utilizado para o teste de hipótese é o que a literatura chama de projeto "antes-depois-com-

grupo-de-controle".

Como o próprio nome sugere, neste tipo de projeto é preciso mensurar as características que

se pretende modificar antes de intervir na realidade e, feita a intervenção, medir novamente

esta característica após certo tempo. Mais do que isso, para ter certeza de que não estamos

diante de relações espúrias, é preciso medir também, nos dois períodos, um outro grupo, que

não tenha sofrido esta intervenção. Este chamado "grupo de controle" deve ser, na medida do

possível, o mais parecido com o grupo teste. Idealmente, a única diferença entre os dois

grupos dever ser o próprio experimento que está sendo realizado.

Uma vez previstas estas etapas e cuidados na pesquisa, pode-se utilizar qualquer dos métodos

de mensuração aqui apresentados para tentar aferir a eficácia da intervenção proposta.

Exemplos de propostas que podem ser investigadas: policiamento comunitário, blitzes

policiais na periferia, policiamento escolar, comparação de reincidência entre presos em

regime fechado e presos cumprindo penas alternativas e qualquer outro tipo de política

criminal.

Como o Ministério da Justiça e outras agências governamentais tem investido e pretendem

investir ainda mais em projetos ligados à área da segurança pública, seria bastante

conveniente que se procurassem avaliar a eficácia destes projetos, de modo a investir melhor

os recursos públicos e corrigir eventuais erros identificados nos projetos. O início da

avaliação deve preceder a implementação do projeto, de modo a garantir resultados mais

confiáveis. Todos os projetos financiados com fundos públicos deveriam prever alguma forma

de avaliação que pudesse informar sobre a propriedade do investimento, ao menos no que diz

respeito aos projetos que tenham características mensuráveis, como os que pretendem afetar

os índices de criminalidade.

Page 78: PRESOS NO BRASIL

É preciso repensar, tendo em vista esta série de tarefas, qual o orçamento e a estrutura

organizacional que o governo federal deve ter para a consecução destes objetivos. Talvez seja

o caso de constituir, como o fizeram vários países, um departamento especial dedicado ao

tema, atendendo as demandas de vários setores dentro e fora do Ministério da Justiça. Não se

trata de montar uma equipe imensa e permanente mas antes poucos e bons profissionais que

saibam avaliar o que é necessário e quem tem condições de fazê-lo. As pesquisas e estudos

devem ser encomendados ao setor privado e aos institutos de pesquisa, sempre, através de

concorrência pública.

Qualquer que seja a organização e o orçamento destinados ao setor, uma coisa parece certa:

ela terá que ser infinitamente maior do que o que tem sido até agora. Inflação, desemprego e

criminalidade estão entre as maiores preocupações da população brasileira. A atenção que os

governos dedicam aos dois primeiros temas, em termos de recursos e pesquisa, tem sido até

aqui muito maior do que ao terceiro, talvez porque estes sejam objeto de estudo de

economistas enquanto aquele vem sendo tratado maioritariamente por profissionais do meio

jurídico, onde não existe tradição de pesquisa empírica. A mentalidade ainda reinante na área

é a de que a criminalidade é um problema da falta ou da inadequação do sistema jurídico e de

que basta a reforma dos códigos para debelar o problema. É por isso, entre outros motivos,

que chegamos ao ponto em que chegamos.

Page 79: PRESOS NO BRASIL

Anexo X - Pesquisa Crime Trends (Tendências do Crime)

Variáveis contidas na categoria Número de Crimes Registrados

A. VARIABLE LABELS

Name Position Label

IDNUMBER 1 NUMERICAL COUNTRY CODE (UNIQUE TO FIFTH SURVEY)

CON_NAME 2 COUNTRY NAME

COUNTRY 6 ALPHABETIC COUNTRY CODE (FOR MATCHING WITH

FOURTH SURVEY)

GTPOL90 7 GRAND TOTAL OF RECORDED CRIMES 1990

GTPOL91 8 GRAND TOTAL OF RECORDED CRIMES 1991

GTPOL92 9 GRAND TOTAL OF RECORDED CRIMES 1992

GTPOL93 10 GRAND TOTAL OF RECORDED CRIMES 1993

GTPOL94 11 GRAND TOTAL OF RECORDED CRIMES 1994

HOMPOL90 12 TOTAL RECORDED HOMICIDES 1990

HOMPOL91 13 TOTAL RECORDED HOMICIDES 1991

HOMPOL92 14 TOTAL RECORDED HOMICIDES 1992

HOMPOL93 15 TOTAL RECORDED HOMICIDES 1993

HOMPOL94 16 TOTAL RECORDED HOMICIDES 1994

CIHPOL90 17 TOTAL RECORDED COMMITTED INTENTIONAL HOMICIDES 1990

CIHPOL91 18 TOTAL RECORDED COMMITTED INTENTIONAL HOMICIDES 1991

CIHPOL92 19 TOTAL RECORDED COMMITTED INTENTIONAL HOMICIDES 1992

CIHPOL93 20 TOTAL RECORDED COMMITTED INTENTIONAL HOMICIDES 1993

CIHPOL94 21 TOTAL RECORDED COMMITTED INTENTIONAL HOMICIDES 1994

AIHPOL90 22 TOTAL RECORDED ATTEMPTED INTENTIONAL HOMICIDES 1990

AIHPOL91 23 TOTAL RECORDED ATTEMPTED INTENTIONAL HOMICIDES 1991

AIHPOL92 24 TOTAL RECORDED ATTEMPTED INTENTIONAL HOMICIDES 1992

AIHPOL93 25 TOTAL RECORDED ATTEMPTED INTENTIONAL HOMICIDE 1993

AIHPOL94 26 TOTAL RECORDED ATTEMPTED INTENTIONAL HOMICIDES 1994

IHMPOL90 27 TOTAL RECORDED INTENTIONAL HOMICIDES 1990

IHMPOL91 28 TOTAL RECORDED INTENTIONAL HOMICIDES 1991

IHMPOL92 29 TOTAL RECORDED INTENTIONAL HOMICIDES 1992

Page 80: PRESOS NO BRASIL

IHMPOL93 30 TOTAL RECORDED INTENTIONAL HOMICIDES 1993

IHMPOL94 31 TOTAL RECORDED INTENTIONAL HOMICIDES 1994

NIHPOL90 32 TOTAL RECORDED NON-INTENTIONAL HOMICIDES 1990

NIHPOL91 33 TOTAL RECORDED NON-INTENTIONAL HOMICIDES 1991

NIHPOL92 34 TOTAL RECORDED NON-INTENTIONAL HOMICIDES 1992

NIHPOL93 35 TOTAL RECORDED NON-INTENTIONAL HOMICIDES 1993

NIHPOL94 36 TOTAL RECORDED NON-INTENTIONAL HOMICIDES 1994

MASPOL90 37 TOTAL RECORDED MAJOR ASSAULTS 1990

MASPOL91 38 TOTAL RECORDED MAJOR ASSAULTS 1991

MASPOL92 39 TOTAL RECORDED MAJOR ASSAULTS 1992

MASPOL93 40 TOTAL RECORDED MAJOR ASSAULTS 1993

MASPOL94 41 TOTAL RECORDED MAJOR ASSAULTS 1994

TASPOL90 42 TOTAL RECORDED ASSAULTS 1990

TASPOL91 43 TOTAL RECORDED ASSAULTS 1991

TASPOL92 44 TOTAL RECORDED ASSAULTS 1992

TASPOL93 45 TOTAL RECORDED ASSAULTS 1993

TASPOL94 46 TOTAL RECORDED ASSAULTS 1994

RAPPOL90 47 TOTAL RECORDED RAPES 1990

RAPPOL91 48 TOTAL RECORDED RAPES 1991

RAPPOL92 49 TOTAL RECORDED RAPES 1992

RAPPOL93 50 TOTAL RECORDED RAPES 1993

RAPPOL94 51 TOTAL RECORDED RAPES 1994

ROBPOL90 52 TOTAL RECORDED ROBBERIES 1990

ROBPOL91 53 TOTAL RECORDED ROBBERIES 1991

ROBPOL92 54 TOTAL RECORDED ROBBERIES 1992

ROBPOL93 55 TOTAL RECORDED ROBBERIES 1993

ROBPOL94 56 TOTAL RECORDED ROBBERIES 1994

MTFPOL90 57 TOTAL RECORDED MAJOR THEFTS 1990

MTFPOL91 58 TOTAL RECORDED MAJOR THEFTS 1991

MTFPOL92 59 TOTAL RECORDED MAJOR THEFTS 1992

MTFPOL93 60 TOTAL RECORDED MAJOR THEFTS 1993

MTFPOL94 61 TOTAL RECORDED MAJOR THEFTS 1994

TFTPOL90 62 TOTAL RECORDED THEFTS 1990

TFTPOL91 63 TOTAL RECORDED THEFTS 1991

TFTPOL92 64 TOTAL RECORDED THEFTS 1992

TFTPOL93 65 TOTAL RECORDED THEFTS 1993

TFTPOL94 66 TOTAL RECORDED THEFTS 1994

Page 81: PRESOS NO BRASIL

BURPOL90 67 TOTAL RECORDED BURGLARIES 1990

BURPOL91 68 TOTAL RECORDED BURGLARIES 1991

BURPOL92 69 TOTAL RECORDED BURGLARIES 1992

BURPOL93 70 TOTAL RECORDED BURGLARIES 1993

BURPOL94 71 TOTAL RECORDED BURGLARIES 1994

FRDPOL90 72 TOTAL RECORDED FRAUDS 1990

FRDPOL91 73 TOTAL RECORDED FRAUDS 1991

FRDPOL92 74 TOTAL RECORDED FRAUDS 1992

FRDPOL93 75 TOTAL RECORDED FRAUDS 1993

FRDPOL94 76 TOTAL RECORDED FRAUDS 1994

EMBPOL90 77 TOTAL RECORDED EMBEZZLEMENTS 1990

EMBPOL91 78 TOTAL RECORDED EMBEZZLEMENTS 1991

EMBPOL92 79 TOTAL RECORDED EMBEZZLEMENTS 1992

EMBPOL93 80 TOTAL RECORDED EMBEZZLEMENTS 1993

EMBPOL94 81 TOTAL RECORDED EMBEZZLEMENTS 1994

TRFPOL90 82 TOTAL RECORDED ILLICIT DRUG TRAFFIC CRIMES 1990

TRFPOL91 83 TOTAL RECORDED ILLICIT DRUG TRAFFIC CRIMES 1991

TRFPOL92 84 TOTAL RECORDED ILLICIT DRUG TRAFFIC CRIMES 1992

TRFPOL93 85 TOTAL RECORDED ILLICIT DRUG TRAFFIC CRIMES 1993

TRFPOL94 86 TOTAL RECORDED ILLICIT DRUG TRAFFIC CRIMES 1994

POSPOL90 87 TOTAL RECORDED DRUG POSSESSION CRIMES 1990

POSPOL91 88 TOTAL RECORDED DRUG POSSESSION CRIMES 1991

POSPOL92 89 TOTAL RECORDED DRUG POSSESSION CRIMES 1992

POSPOL93 90 TOTAL RECORDED DRUG POSSESSION CRIMES 1993

POSPOL94 91 TOTAL RECORDED DRUG POSSESSION CRIMES 1994

DRGPOL90 92 TOTAL RECORDED DRUG OFFENSES 1990

DRGPOL91 93 TOTAL RECORDED DRUG OFFENSES 1991

DRGPOL92 94 TOTAL RECORDED DRUG OFFENSES 1992

DRGPOL93 95 TOTAL RECORDED DRUG OFFENSES 1993

DRGPOL94 96 TOTAL RECORDED DRUG OFFENSES 1994

BRIPOL90 97 TOTAL RECORDED BRIBERY CRIMES 1990

BRIPOL91 98 TOTAL RECORDED BRIBERY CRIMES 1991

BRIPOL92 99 TOTAL RECORDED BRIBERY CRIMES 1992

BRIPOL93 100 TOTAL RECORDED BRIBERY CRIMES 1993

BRIPOL94 101 TOTAL RECORDED BRIBERY CRIMES 1994

OTHPOL90 102 TOTAL RECORDED OTHER CRIMES 1990

OTHPOL91 103 TOTAL RECORDED OTHER CRIMES 1991

Page 82: PRESOS NO BRASIL

OTHPOL92 104 TOTAL RECORDED OTHER CRIMES 1992

OTHPOL93 105 TOTAL RECORDED OTHER CRIMES 1993

OTHPOL94 106 TOTAL RECORDED OTHER CRIMES 1994

HOMATTMP 107 FIGURE FOR HOMICIDE INCLUDES ATTEMPTS

CONPOP90 108 TOTAL POPULATION OF COUNTRY 1990

CONPOP91 109 TOTAL POPULATION OF COUNTRY 1991

CONPOP92 110 TOTAL POPULATION OF COUNTRY 1992

CONPOP93 111 TOTAL POPULATION OF COUNTRY 1993

CONPOP94 112 TOTAL POPULATION OF COUNTRY 1994

UNDPINAG 113 UNDP INCOME AGGREGATES

UNDPHUDV 114 UNDP HUMAN DEVELOPMENT AGGREGATES

UNDPDEVP 115 UNDP MAJOR WORLD AGGREGATES

UNDPREGN 116 UNDP REGIONAL AGGREGATES

Page 83: PRESOS NO BRASIL

Anexo X Definição dos Crimes na Pesquisa Crime Trends

*Intentional homicide* refers to death deliberately inflicted on a person by another person,

including infanticide. Please indicate whether certain categories of attempted homicide are

charged for prosecuted as "aggravated assault".

*Non-intentional homicide* refers to death not deliberately inflicted on a person by another

person. This includes the crime of manslaughter, but excludes traffic accidents that result in

the death of persons.

*Assault* refers to physical attack against the body of another person, including battery but

excluding indecent assault. Some criminal or penal codes distinguish between aggravated and

simple assault depending on the degree of resulting injury. Please provide the major criterion

for this distinction if it applies in your country.

*Rape* refers to sexual intercourse without valid consent. Please indicate whether statutory

rape is included in the figures provided. If your country distinguishes between sexual assault

and actual penetration, please provide relevant information.

*Theft* refers to the removal of property without the property owner's consent. Theft

excludes burglary and housebreaking. It includes the theft of a motor vehicle. Shoplifting and

other minor offences, e.g. pilfering and petty theft, may or may not be included as thefts.

Please provide relevant information if a distinction is made in your country.

*Robbery* refers to the theft of property from a person, overcoming resistance by force or

threat of force.

*Burglary* refers to unlawful entry into someone else's premises with an intention to commit

crime.

Page 84: PRESOS NO BRASIL

*Fraud* refers to the acquisition of the property of another by deception. Please indicate

whether the fraudulent obtaining of financial property is included in the figures provided.

*Embezzlement* refers to the wrongful appropriation of property of another which is already

in one's possession.

*Drug-related crimes* refer to intentional acts that may involve the cultivation, production,

manufacture, extraction, preparation, offering for sale, distribution, purchase, sale, delivery on

any terms whatsoever, brokerage, dispatch, dispatch in transit, transport, importation and

exportation of drugs and psychotropic substances. Where applicable, countries may wish to

refer to the provisions of the Single Convention on Narcotic Drugs of 1961 and other

regulations adopted in pursuance of the provisions of the Convention on Psychotropic

Substances of 19712 and/or the United Nations Convention against Illicit Traffic in Narcotic

Drugs and Psychotropic Substances of 1988.3 As simple possession and illicit traffic are

treated differently in different legal codes, separate statistics on possession and traffic are

requested.

*Bribery and corruption* refers to requesting and/or acceptance of a material or personal

benefit, or promise thereof, in connection with the performance of a public function for an

action that may or may not be a violation of law and/or promising as well as giving material

or personal

benefit to a public officer in exchange for a requested favour.

*Other* refers to serious types of cr~me that are completely different from those listed above,

and that are regarded as serious and frequent enough to require a separate category in the

criminal statistics of your country (e.g. arson, kidnaping, conspiracy or membership of a

criminal association). Please insert such crimes under question 11 and provide a definition,

with an explanation or description in the space immediately below on this page or on an

additional page. Should there be different types of crimes included under this item throughout

all parts of the questionnaire, please provide an explanation.

Page 85: PRESOS NO BRASIL

*Crimes recorded by the police* refer to the number of penal code offences or their

equivalent, i.e. various special law offences, but excluding minor road traffic and other petty

offences, brought to the attention of the police or other law enforcement agencies and

recorded by one of those agencies.

*Police or law enforcement* sector refers to public agencies whose principal functions are the

prevention, detection and investigation of crime and the apprehension of alleged offenders. If

the police are part of the national security force in your country, please try to limit as far as

possible replies to the civil police proper as distinct from national guards or local militia. If

there are many local forces, please provide data on them if possible. If some personnel of this

sector fulfil

prosecution functions, please note accordingly in the space below table 27a.

*Prosecutor* refers to a government official whose duty is to initiate and maintain criminal

proceedings on behalf of the state against persons accused of committing a criminal offence.

Countries differ in whether a prosecutor is a member of a separate agency, or a member of the

police or judiciary. Please indicate the title of the agency in your country under which the

prosecutor functions. If more than one criminal justice system operates in your country, for

example federal/provincial systems or civilian/martial systems, please provide separate

information about prosecutorial functions in each system.

*Persons prosecuted* refers to alleged offenders prosecuted against by means of an official

charge, initiated by the public prosecutor or the law enforcement agency responsible for

prosecution.

*Persons convicted* refers to persons found guilty by any legal body duly authorized to do so

under national law, whether the conviction was later upheld or not. If persons are convicted

by any agency other than the courts, please state which agency, and provide statistical details

in the

space following tables 14 and 15. In those tables "Grand total" number of convicted includes

serious special law offences but excludes minor road traffic and other petty offences.

Page 86: PRESOS NO BRASIL

*Judges and magistrates* refers to both full and part-time officials authorized to hear civil,

criminal and other cases, including appeal courts, and make dispositions in a court of law.

Please include also associate judges and magistrates, who may be authorized as above, within

this category. Lay judges and magistrates refer to persons performing the same functions as

the professional officials but who do not consider themselves, and are not normally

considered by others, as career members of the judiciary.

*Prisons* refer to all public and privately-financed institutions where persons are deprived of

their liberty. These institutions could include, but are not limited to, penal, correctional, or

psychiatric facilities.

*Admissions to prisons* refer to the number of such events throughout the year and not the

number of people admitted on a particular day of the year.

If the categories given in the paragraphs above are not fully compatible with your national

legal code, please try to adjust data as far as possible. Alternatively, indicate what kinds of

crime your statistics include which might be comparable to the categories suggested, or how

the

parallel crime is defined in your country and describe this below the table or on the facing

page.

Page 87: PRESOS NO BRASIL

Anexo X - Exemplo de Dados obtidos por chamadas telefônicas - Polícia MilitarÁrea da Capital - setembro de 1998

códigos Grupos de Ocorrências Cond. Ao dp flragrante resolvido pela pmcond. Outro órgãorpfem chq dispensa solicit.sub total nada + haviaend. Inexist ou n. localizadosub total resolv p/ copcancel p/ copsub totala01 homicidio 383 4 0 1 1 2 0 20 3 0 0 a03 homicidio tent. 163 15 0 0 2 0 0 53 0 4 2a04 aborto 3 0 0 0 0 0 0 3 0 1 0 a05 agressão / corporal 956 6 68 2 45 2 4 932 68 34 4a07 periclitação de vida 4 0 1 0 0 0 0 3 0 5 0a08 abandono de incapaz 4 0 3 0 2 0 0 4 0 0 0a09 omissão de socorro 1 0 1 0 0 0 0 5 0 1 0a10 ameaça 118 2 47 0 6 0 3 324 14 74 3a11 sequest / carc. Privado 3 0 3 0 0 0 0 6 0 13 0a12 violação domicílio 12 0 67 0 0 0 0 306 4 4 1a13 maus tratos 15 0 8 0 1 0 0 44 3 1 0a14 racismo 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0 1a99 outr. Contra pessoa 9 0 8 0 1 0 0 30 0 10 0

total do grupo b01 furto 887 58 86 1 3 2 4 442 5 5015 89b03 furto tent. 172 35 56 0 1 0 0 415 4 51 1b04 roubo 3128 194 126 8 26 20 7 1209 29 4679 119b05 roubo tent. 238 30 28 0 2 5 0 275 3 78 3b06 extorsão 4 0 0 0 0 0 0 3 0 2 0b07 posse /invasão prop. 18 0 26 0 0 0 1 81 8 5 2b08 dano / depredação 157 4 108 2 19 2 3 462 8 59 1b09 apropriação indébita 5 0 6 0 0 0 0 2 0 26 0b10 estelionato / fraude 85 14 5 0 3 3 0 24 0 21 1b11 receptação 61 20 0 0 1 6 0 1 0 0 0b12 latrocínio 11 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0b13 extorsão med. Sequestro 7 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0b14 alarme disparado 2 0 28 0 2 0 2 116 0 130 3b15 alarme disparado p/ acidente 3 0 167 0 1 0 0 156 0 6 0b16 auto localizado 3298 63 107 0 23 20 0 210 7 121 3b99 outr. Contra patrimônio 37 1 13 0 1 2 0 33 0 13 1

total do grupo 8113 420 756 11 82 61 17 0 3429 64 0 10206 223 0

Anexo X - Ocorrências Oficiais publicadas pela SSP-SP trimestralmente no

Diário Oficial - Complementada por Indicadores de Criminalidade (Fonte:

Conjuntura Criminal - http://sites.uol.com.br/concrim)Estado 3 Tr im. 1995 4 Tr im. 1995 1 Tr im. 1996 2 Tr im. 1996 3 Tr im. 1996 4 Tr im. 1996 1 Tr im. 1997 2 Tr im. 1997 3 Tr im. 1997 4 Tr im. 1997 1 Tr im. 1998 Cont ra Pessoa 106258 98491 83142 88445 89869 99762 99380 103264 108200 118307 118196Cont ra Pat r imôn io 154761 162341 161934 171604 170881 169813 169575 184982 192873 198796 211011Cont ra Cos tumes 3701 4151 3726 3368 3560 3768 3829 3542 3767 3877 4195Entorpecentes 4254 4004 4511 4495 4430 4740 5629 4603 5340 5586 6048Outros Del i tos 54138 35589 40445 36584 39824 38804 51386 48062 53752 52861 48598Total 323112 304576 293758 304496 308564 316887 329799 344453 363932 379427 388048

Total B.O 401087 391322 383679 396402 405552 418047 429322 450981 483103 501616 512857Total I.P.I 107681 86966 56391 60232 59132 60387 57513 63180 66804 67511 70798Relação B.O / I .P. I 3 ,72477039 4 ,49971253 6,803904878 6 ,58125249 6,858418454 6,922797953 7,464781875 7,138034188 7,231647806 7 ,43013731 7 ,24394757

Civ is mortos por pol .c iv is 1 6 8 1 3 1 2 1 1 1 1 7 7 3 1 1 3Civis fer idos por pol.c iv is 2 6 1 3 1 2 1 5 1 3 8 1 4 1 1 7 5 4Pol ic ia is c iv is mor tos 5 6 3 5 5 4 3 1 6 1 4Pol ic ia is c iv is fer idos 2 7 9 1 8 1 6 1 3 1 2 1 1 1 6 2 7 1 4 1 2Pr isões e fe tuadas 23017 19908 18802 18588 18821 18484 19684 19703 22574 23931 25527Armas apreend idas 7146 6539 6495 7483 7937 7451 7394 7207 7748 8820 8675Índ ice de Garant ia de Apr is ionamento 0 ,07123536 0,065363 0,064005065 0 ,06104514 0 ,06099545 0,058329941 0,059684838 0,057200837 0,062028071 0 ,06307142 0,0657831

Civ is mortos por pol .mi l i tares 122 8 2 4 9 5 5 6 6 6 9 8 3 3 6 6 0 7 4 9 7Civis fer idos por pol .mi l i tares 6 7 7 2 7 8 5 5 6 9 8 5 7 4 6 7 6 3 7 1 4 9Pol ic ia is mi l i tares mor tos 4 6 9 6 1 0 7 6 3 6 1 1 1 2Pol ic ia is mi l i tares fer idos 201 200 240 143 170 177 191 206 154 163 213Relação Mor tos Po l . X Mor tos Civ . 30,5 13 ,6666667 5,444444444 9 ,16666667 6,6 9 ,857142857 13,83333333 1 2 1 0 6 ,72727273 8 ,08333333Relação Fer idos Civ . X Mortos Civ . 1 ,82089552 1 ,13888889 0,628205128 1 0,956521739 0,811764706 1,121621622 0,537313433 0,952380952 1 ,04225352 1 ,97959184Proporção de Mor tos sobre Hom.do l 6 ,38575152 4 ,27135678 2,736686391 3 ,00693909 3,656597774 #DIV/0! 3 ,861154446 1,863600317 2,802690583 3 ,10160428 4 ,11495754

Homic íd io do loso 2302 2388 2704 2594 2516 2564 2522 2676 2805 3062Homic íd io cu lposo 1128 1490 1390 1580 1807 1482 1548 1642 1613 1182Tentat iva de homicíd io 1496 1826 2253 2246 2263 2197 2142 2170 2471 2588Lesão corpora l 57687 58340 51538 53364 53478 60844 62682 63695 71645 67704Latrocínio 101 121 135 141 143 102 113 109 126 117Estupro 1153 1134 1128 945 979 1017 956 987 1010 1091Extorsão mediante sequest ro 6 4 4 3 4 5 2 6 1 3Tráf ico de entorpecentes 1911 1518 1902 1725 1801 2273 1908 2221 2112 2453Roubo 25559 25943 28885 31983 31476 32773 38679 40635 40752 43490Roubo de Ve ícu lo 9472 9712 11540 12281 12376 10934 13589 14921 14299 15284Furto 69218 69472 71345 74040 70876 73300 77186 79871 85201 89664Fur to de Veícu lo 19787 20334 22853 32204 23966 19455 21231 22229 22012 23396Popu lação do Es tado 33427929 33560819 33675974 33808864 33941754 34207535 34340426 34473317 34932345 35007481hom.do l . Por 100 mi l 6 ,89 7,12 8,03 7,67 7,41 0,00 7,50 7,34 7,76 8,03 8,75Lesão corpora l por 100 mi l 172,57 173,83 153,04 157,84 157,56 0,00 177,87 182,53 184,77 205,10 193,40roubo por 100 mi l 76,46 77,30 85,77 94,60 92,74 0,00 95,81 112,63 117,87 116,66 124,23fur to por 100 mi l 207,07 207,00 211,86 219,00 208,82 0,00 214,28 224,77 231,69 243,90 256,13Índ ice de Cr imina l idade 1021,63 1031,43 1092,05 1161,96 1132,58 0,00 1178,23 1310,90 1363,45 1389,96 1458,20Cr imes V io len tos 30611,00 31412,00 35105,00 37909,00 37377,00 0,00 38653,00 44412,00 46577,00 47164,00 50348,00taxa de cresc. do I .C. 0 ,95904061 5 ,87713067 6,401324992 -2,5281995 -100 11 ,25979494 4,009342889 1 ,94418014 4 ,90938126 1 ,38394913

Page 88: PRESOS NO BRASIL

Fontes de Dados Policiais em Estudos Criminológicos: Limites e Potenciais

Cláudio C. Beato F.

[email protected]

Centro Estudos de Criminalidade e Segurança Pública

Departamento de Sociologia e Antropologia

UFMG

A correspondência entre percepções sociais de medo e taxas reais de

criminalidade tornou-se hoje uma questão central para a elaboração racional de

problemas de violência urbana, bem como para a formulação de políticas públicas

conseqüentes. A ausência de sistemas de indicadores sociais de criminalidade que

mensurem adequadamente esta correspondência tem levado agências e

formuladores de política a manterem uma agenda de trabalho pautada mais pela

mídia, do que pela identificação de padrões e tendências verificadas através da

análise minuciosa de dados. Casos rumorosos destacados pela imprensa tornam-se

elementos catalisadores de programas e políticas que, em virtude desta vinculação

aos eventos dramáticos destacados, assumem deliberadamente os riscos da

ineficácia que marcam ações de caráter exclusivamente reativas. O cotidiano da

criminalidade violenta nos grandes centros urbanos raramente assume as cores e

feições tão ao sabor dos ávidos consumidores das pequenas e grandes misérias

urbanas. Por outro lado, o cotidiano oculto da violência vivida por largas parcelas

das populações urbanas raramente encontra ressonância nas manchetes e imagens

deste espetáculo.

Neste contexto, a forma adequada de mensurar fenômenos de

criminalidade e violência adquire uma saliência crucial tanto para o analista como

para formuladores de políticas. Como identificar tendências e padrões que

permitam avaliar adequadamente a relação entre percepções sociais de medo e

taxas reais de criminalidade, a incidência em diferentes grupos sociais, o perfil de

Page 89: PRESOS NO BRASIL

agressores e vítimas, a distribuição ecológica de delitos, o relacionamento

agressor e vítima ou as chances de punibilidade pela justiça crminal?

Fatores de ordem epistemológica e organizacional conspiram contra a

montagem de sistemas de indicadores sociais de criminalidade (Beato, 2000).

(a) Em primeiro lugar, existe a crença, oriunda numa concepção

epistemológica ortodoxa segundo a qual existiria algo parecido com o

número real de crimes. Trata-se de perspectiva que confunde a descrição

de algo e as inúmeras formas como isto é feito, com o que está sendo

descrito, ignorando o sem número de estudos em sociologia da ciência que

demonstram o caráter construtivista de uma realidade empírica. (Bloor,

1979. Knorr-Cetina, 1981 e 1999). Métodos, abordagens estatísticas,

indicadores, conceitos e modelos são o resultado de determinações de

natureza social para a sua elaboração (Schartzman, 1996). Por outro lado,

e mais grave no caso de indicadores criminológicos, negligencia-se o

processo político da construção das categorias penais. Muitas teorias

criminológicas, ao adotarem as definições de crime baseadas em normas

legais, terminam por desconhecer o processo político de construção dessas

normas (Lemert, 1954. Becker, 1877).

(2) Além disso, alguns estudos e digressões etnometodológicas a

respeito dos dados oficiais (Kitsuse e Cicourel, 1963) levaram ao

paroxismo a posição sociologizante na construção dos modelos, categorias

e indicadores. (Hindess, 1973), como se não houvesse nenhum

constrangimento de ordem empírica e cognitiva na elaboração e imputação

das categorias legais. Em sua versão mais ideologizada na criminologia

crítica, os homicídios, latrocínios e estupros seriam o resultado de

conflitos de natureza político e ideológica (Taylor et alii, 1980). O

resultado prático dessa ordem de obstáculos é uma postura, bastante

comum no Brasil, em que a crítica aos dados, especialmente oficiais,

precede qualquer utilização deles, por mais rudimentar que seja.

Page 90: PRESOS NO BRASIL

(3) De uma perspectiva organizacional, obstáculo importante surge

em virtude de descolamento entre as atividades práticas das organizações

encarregadas de produção de dados, dos sistemas de informações (FJP,

1988). Como não vêem utilidade nenhuma na produção de estatísticas e

indicadores, os operadores das organizações do sistema de justiça criminal

tendem a negligenciar a produção dessas informações.

(4) Finalmente, uma última ordem de fatores tem a ver com

problemas de ordem tecnológica no processamento das informações pelas

polícias. São raras as secretarias de segurança no Brasil que dispõem de

departamentos de estatística e coleta de dados, bem como da tecnologia

necessária para tal. O próprio governo federal, que contabiliza bem dados

referentes à economia, saúde ou educação, não dispõe de nenhuma

estrutura para esta tarefa.

Em busca da “cifra negra”

Neste contexto os surveys de vitimização tem sido crescentemente

sugeridos como importantes instrumentos para fornecer informações

complementares às estatísticas criminais produzidas pelas organizações do

sistema de justiça criminal, especialmente os delitos não comunicados aos agentes

do sistema. O objetivo das pesquisas amostrais de vitimização é obter informações

detalhadas da freqüência e natureza de crimes como estupro e violência sexual,

assaltos, agressões, arrombamentos, furtos e roubo de carro, tenham sido eles

comunicados à polícia ou não. A pesquisa buscará obter informações sobre (a) as

vítimas; (b) os agressores e do relacionamento com as vítimas, e (c) sobre os

delitos e as circunstâncias em que ele ocorreu (hora e local de ocorrência, uso de

armas, conseqüências econômicas etc). Além disso, buscar-se-á informações

suplementares da experiência das vítimas com o sistema de justiça criminal, sobre

medidas tomadas para auto-defesa e da possível utilização de drogas por parte dos

agressores.

Page 91: PRESOS NO BRASIL

No Brasil, esta cifra de pessoas que não registram queixa na polícia é

bastante significativa e similar a de outros países como os EUA e a Inglaterra.

Segundo suplemento de vitimização incluída na pesquisa PNAD de 1988, 67,5%

das vítimas de furto e roubo e 60,8% das vítimas de agressão não recorreram à

polícia pelos mais diversos motivos. No caso de agressões, 20% julgou que não

era necessário, 19,4% porque não queriam envolver a polícia, 17,5% resolveram

sozinhos e 14,7% porque não acreditavam na polícia. A proporção dos que não

acreditavam na polícia como motivo para não recorrer a ela é maior quando se

trata de roubos e furtos (27,7%).

Os dados a respeito de roubos parecem sugerir que o envolvimento da

polícia foi ponderado como algo que envolve um custo - tanto do objeto subtraído

como o resultante envolvimento da própria polícia-e uma necessidade, que pode

ser traduzido como o grau em que conflitos podem ser resolvidos no âmbito social

mais próximo, além da freqüência com que ocorre o delito. No caso das

agressões, a falta de provas não é decisiva para se recorrer ou não à polícia, e o

motivo bastante óbvio é que o autor era conhecido em 40% dos casos. Conforme

vemos, muito do que é tomado como indicador de ineficiência do trabalho policial

é resultado de uma certa ambigüidade em relação ao universo das organizações do

sistema de justiça criminal: as pessoas não recorrem à polícia apenas por temor ou

descrença, mas por se recusarem a admitir a interferência do estado em sua vida

privada (Paixão e Beato, 1997).

A dinâmica organizacional das agências oficiais na mensuração de crimes

À par do problema da “cifra negra”, as dificuldades em tomar as

estatísticas policiais referem-se também ao domínio de eventos com que cada

polícia lida. O policiamento ostensivo orienta-se basicamente pelo universo mais

difuso da ordem social tal como concebida no universo do senso comum, ao passo

que as atividades de polícia judiciária preocupam-se com a natureza jurídica dos

eventos a serem definidos de acordo com o código penal

Page 92: PRESOS NO BRASIL

“As discrepâncias observadas nos números indicam que a PM e a

PC medem coisas diferentes - supostamente ocorrências e inquéritos.

Como vimos, as primeiras representam uma resposta do aparelho policial à

decisão do cidadão de comunicar um evento definido como criminoso, e

os segundos resultam de decisão policial de processar a informação como

instância de dolo cometido. Nesse caso, haveria condições de

comparabilidade das duas estatísticas, que responderiam a produtos finais

de segmentos diferentes do processo social de implementação da lei.”

(FJP, 1987)

No Brasil, cada organização do sistema de justiça criminal produz

informações a respeito dos delitos ou de delinqüentes. Tal qual em outros países,

os sistemas de classificação adotados por cada organização diferem a respeito do

domínio de eventos que eles pretendem capturar, na unidade contábil na qual as

estatísticas são baseadas, nas variações no tempo em que estas estatísticas são

produzidas e nas fontes de discrição e erros na produção das informações (Reiss,

1993: 43-50). O caso brasileiro destaca-se ainda pelas enormes dificuldades em

relação a continuidade, regularidade ou até mesmo a existência deste tipo de

informações. Quando produzidas, e nos curtos períodos em que se encontram à

disposição de usuários, apresentam-se mais ou menos como estão expostas no

quadro a seguir.

Page 93: PRESOS NO BRASIL

QUADRO 1-MODELO DE INFORMAÇÕES SOBRE FLUXOS E TAXAS DE PRODUÇÃO

DA JUSTIÇA CRIMINAL

SEGMENTO

ORGANIZACIONAL

PAPÉIS PESSOAS

Polícia Militar

Polícia Civil

Ministério Público

Justiça

Censo Penitenciário

Ocorrências

Inquéritos

Denúncias

Processos

Prisões

Indiciados/Implicados

Denunciados/Acusados

Condenados

Populações Prisionais

Fonte: Indicadores Sociais de Criminalidade. Belo Horizonte; Fundação João Pinheiro, Centro de

Estudos Políticos e Sociais, 1987.

No que diz respeito às etapas iniciais de processamento de crimes e

criminosos, há três sistemas de classificação de crimes violentos: os dados

produzidos pelas Polícias Militares Estaduais e Polícias Civis e, em relação aos

homicídios, pelo Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde.

Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, dados das polícias estaduais são

agregados pela polícia civil que se encarrega das ocorrências da polícia militar.

Mesmo ao tomarmos apenas os delitos de homicídio que, pela sua própria

natureza nos levaria a supor um menor grau de sub-notificação, observamos

diferenças resultantes das distintas tarefas cumpridas por cada uma das

organizações policiais.

O quadro a seguir ilustra esta discrepância em relação aos eventos

cobertos por cada organização no que diz respeito aos homicídios.

Page 94: PRESOS NO BRASIL

Tabela 1: Homicídios registrados em Belo Horizonte 1991-1999

Ano

Polícia

Militar

Polícia

Civil

Sistema de

Informações

sobre

Mortalidade

1991 231 312 308

1992 196 286 280

1993 197 293 274

1994 218 295 261

1995 235 321 373

1996 259 323 396

1997 271 326 436

1998 368 433

1999 428 505

Fonte: PM, PC e SIM.

Conforme vemos, as diferenças entre estas fontes podem chegar a quase

50% dos homicídios registrados. Em 1991, por exemplo, a PMMG havia

contabilizado 231 homicídios, a Polícia Civil 312, e o SIM 308. As discrepâncias

são bastante expressivas, e já foram observadas outras vezes (FJP, 1987; Catão,

1985). O Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde registra

as ocorrências resultantes dos registros de óbitos preenchidos por profissionais da

área médica. A Polícia Militar limita-se a registrar as ocorrências verificadas no

local para, no momento seguinte encaminha-la à Polícia Civil através de algum

documento de ocorrência (BOs). A Polícia Civil tomará estas ocorrências, bem

como outros casos que se tornam homicídios posteriormente, para efetuar

investigações no sentido de classifica-los juridicamente tendo como referência o

Código Penal, o que irá gerar outro tipo de documento de ocorrência. Assim, uma

classificação de homicídio ou tentativa de homicídio na Polícia Militar, poderá ser

qualificada mais adiante como homicídio doloso, homicídio culposo, latrocínio ou

lesão corporal seguido de morte conforme inquérito conduzido pela Polícia Civil.

Já nos registros de óbitos, documento gerado por atestados de óbito conferidos por

médicos, a causa de morte pode ser uma “perfuração por objeto contundente”

(Oliveira et ali, 2000), classificado nas Estatísticas de Mortalidade no Capítulo

Page 95: PRESOS NO BRASIL

relativo a causas externas, como homicídio até o ano de 1995, ou como morte

resultante de agressões mais recentemente. As diferenças observadas, portanto,

resultam das próprias diferenças nas funções de cada organização.

Qual a validade de dados policiais sobre homicídios?

Números tão discrepantes poderiam comprometer as bases de dados

utilizadas para mensurar um tipo de delito que, em tese, não haveria porque serem

tão distintos. Afinal, homicídios são delitos em que esperaríamos um número

pequeno de subnotificações, dado que a possibilidade de ocultação da

materialidade do crime é menor. Contudo, não é assim que ocorre, restando-nos

então avaliar a congruência entre as diferentes fontes de daados, de tal forma a

verificar a possibilidade de, não obstantes as diferenças, haver um certo padrão de

diferenças entre as bases de dados.

GRÁFICO 1: Regressão homicídios PM e PC em MG

Fonte:PM e PC de Minas Gerais

Conforme vemos, no caso de homicídios, pode-se perfeitamente prever os

números contabilizados por uma das organizações policiais pelos números da

outra. Embora distintas em magnitude, as informações são congruentes o

suficiente a ponto de podermos contar com um alto grau de previsibilidade de

uma fonte de informação a partir da outra.

Dados Homicídios Pm e PC

Homicídios PM

500400300200100

Hom

icíd

ios

PC

600

500

400

300

200 Rsq = 0,9747

Page 96: PRESOS NO BRASIL

Mudanças sistêmicas da violência e classificação de crimes

As fragilidades mais aparentes nas informações acerca dos homicídios,

entretanto, encontram-se no fato de agregarmos sob uma mesma classificação

eventos bastante diversos entre si. Dado que existem problemas sérios de sub-

registros em relação aos crimes contra o patrimônio, alguns estudiosos tendem a

adotar a taxa de homicídio como indicador de criminalidade em uma cidade,

região, país, ou até mesmo como comparação entre países. Isto termina por

conduzir a dois tipos de equívocos bastante freqüentes na pesquisa criminológica.

(a) O primeiro refere-se à tendência de sistemas de classificação categorizarem

sob uma mesma rubrica eventos distintos entre si. A dinâmica de evolução mais

recente da criminalidade em nosso país tem encarregado de mostra-nos como os

sistemas de classificação adotados por algumas polícias são inadequados para

lidar com esses eventos. (b) O segundo refere-se ao fato de que, ao tomarmos o

homicídio como termo de comparação, estamos estudando um tipo de delito que

possui características e padrões de comportamento bastante particulares, que se

distinguem dos delitos contra o patrimônio Beato e Reis, (1999).

Pesquisadores preferem tomar os homicídios porque acreditam que esta é

uma modalidade de crime em que o sub-registro e problemas legais de

classificação são menores. No entanto, podemos ter a mesma taxa agregada de

homicídios em duas cidades e, no entanto, suas distribuições serem

completamente diferentes (Lynch, 1995). No ano de 1996, a região metropolitana

do Rio de janeiro, segundo o SIM – Sistema de Informações de Mortalidade,

obteve uma taxa de homicídio de 59,35 homicídios por cem mil habitantes. A

região metropolitana de São Paulo também teve um taxa parecida de 55,58. No

entanto, as similaridades entre as taxas ocultam importantes diferenças. No Rio de

Janeiro, a taxa de morte por homicídios entre os jovens entre 15 e 29 anos é 34%

maior do que as taxas no mesmo grupo de idade em São Paulo. Além disso, as

mortes por armas de fogo representaram 87% das mortes por homicídios no Rio

de Janeiro, ao passo que em São Paulo elas representaram 47% (Battittuci, 1998).

Page 97: PRESOS NO BRASIL

Estes números nos indicam que, embora as taxas sejam parecidas, do ponto de

vista de sua composição elas são bastante diferentes. Embora a categoria utilizada

seja a mesma, e possivelmente o tratamento dado pela polícia a estas ocorrências

tenha sido padronizado, tratam-se de acontecimentos de natureza diversa.

O sistema de informações da polícia não está apto a lidar com a

diversidade oculta sob estes números. Um sistema de informações compreensivo

deveria classificar adequadamente os diferentes tipos de conflitos interpessoais,

avaliar motivação e o relacionamento entre agente e vítima e, em alguns casos,

manter um arquivo de agressores reincidentes. Tradicionalmente a maioria dos

homicídios ocorre entre pessoas conhecidas, em ambientes domésticos e em locais

próximos às suas residência.

Nos últimos anos temos assistido à emergência de uma nova variedade de

violência sistêmica derivada dos homicídios relacionados ao comércio ilegal de

drogas (Beato et ali, 2000). Segundo a Delegacia de Homicídios da cidade de

Belo Horizonte, 55% dos 433 homicídios ocorridos em 1998 envolveram o uso ou

a venda de drogas. Como conseqüência, homicídios têm uma probabilidade maior

de ocorrer em territórios específicos das regiões urbanas em virtude de disputa por

pontos de venda.

Certamente ocorrem padrões distintos de comportamento relativos a outros

tipos de delitos. Muitos crimes contra o patrimônio ocorridos nos entornos dessas

regiões parecem também se associar ao uso de drogas. Muitos usuários esgotam

rapidamente seus recursos legais para consumo de drogas, recorrendo a diversas

modalidades de delitos tais como assalto a transeuntes, a ônibus, postos de

combustíveis ou casas lotéricas, para levantarem recursos. Isso pode ocorrer

várias vezes em uma semana, ou até mesmo várias vezes ao dia. Outros,

entretanto, parecem surgir em resultado da atuação de variáveis ambientais e

ecológicas que agem no sentido de formar um contexto de oportunidades

favoráveis à ação criminosa (Beato e Reis, 1999).

Page 98: PRESOS NO BRASIL

Isto nos conduz a duas questões cruciais para a organização de dados

policiais. Como incorporar esta dimensão espacial decorrente da organização

territorial do tráfico de drogas? O uso de geoprocessamento de crimes tem sido

uma das estratégias bem sucedidas neste sentido que examinaremos mais

detidamente adiante. A segunda questão refere-se à possibilidade de utilização de

bancos de dados relacionais que capturem não apenas incidentes isolados, mas

sejam capazes de estabelecer conexões entre eles. Muitos homicídios cometidos

contra pessoas da família, ou decorrentes de conflitos entre vizinhos, tem

antecedentes na forma de rixas, ameaças e lesões corporais nos quais se envolveu

a polícia, mas cuja memória o sistema de informações da organização não está

apto a recuperar.

Obstáculos organizacionais à construção de sistemas de avaliação

O Plano Nacional de Segurança, recentemente anunciado pelo presidente

Fernando Henrique Cardoso, condiciona a concessão de recursos à apresentação

de resultados positivos em relação à criminalidade e violência. Contudo, existe

uma questão que antecede as bem intencionadas, mas ingênuas pretensões

presidenciais: quantos estados brasileiros estão aptos à demonstração destes

resultados? Apenas algumas polícias estaduais contam com um Centro de

Operações informatizado e dotado de modernos bancos de dados. Secretarias

estaduais de segurança pública raramente contam com centros e diretorias de

estatística com pessoal qualificado ao manejo destas informações, além do fato de

que equipamentos são freqüentemente inadequados e inexistentes. Muitas vezes,

sequer têm a capacidade de centralizar as estatísticas de todos as polícias e órgãos

da justiça.

Muito mais raro ainda são aquelas que dispõem de tecnologia de

informação e mapeamento de eventos, e que utilizam-nos para o planejamento de

operações. Como toda questão tecnológica, isto envolve o treinamento e formação

de um grupo de pessoas para este tipo de tarefa, em moldes que ainda são

estranhos à prática cotidiana de muitas organizações de nosso sistema de justiça

Page 99: PRESOS NO BRASIL

criminal. Tudo isto afeta a qualidade da coleta dos dados realizada nos estados

tornando-os precários e pouco sistematizada, com divulgação errática e tornando

difícil a construção de séries históricas, além de inviabilizar as comparações inter

e intra-regionais, ou internacionais (FJP, 1987. IBGE, 1985. Pacheco, 1985).

Algumas condições afetam negativamente essa qualidade que tem a ver com

características de natureza organizacional referentes à:

(a) Tecnologias de processamento de dados. Raramente temos

organizações policiais com computadores integrados em rede, e

submetidos a mecanismos eletrônicos de coleta de dados. Ainda usa-se

muito papel no preenchimento das ocorrências, sendo o computador

uma máquina absolutamente estranha ao cotidiano dos quartéis e

delegacias.

(b) Qualificação de pessoal alocado nas atividades de coleta e registro de

informações. Uma parte das deficiências que ocorrem neste campo

origina-se no fato de que nossas organizações policiais qualificam seus

recursos humanos para diversas atividades que pouco tem a ver com

ações policiais propriamente ditas. Assim, policiais fazem cursos de

administração ou delegados são treinados para a atividade

exclusivamente judiciária de categorização legal de eventos, sem

nenhuma preocupação com o estudo sistemático e análise do fenômeno

da criminalidade. Por outro lado, muitas dessas tarefas poderiam

perfeitamente ser desempenhada por civis contratados e especialistas.

(c) Homogeneidade de informações interestaduais e dinâmicas de crime.

As informações coletadas pelas polícias militares geraram

indutivamente sistemas de classificações a partir das experiências e da

capacidade de cada uma elas. Isto compromete as possibilidades de

comparação na medida que temos categorias diferentes sendo usadas

em cada estado. Assim, o Rio de Janeiro possui 07 categorias distintas

para o roubo, ao passo que Minas Gerais utiliza 31 categorias e São

Page 100: PRESOS NO BRASIL

Paulo apenas 0510. Do ponto de vista das polícias civis, a

homogeneidade das informações criminais é dada pela própria

conceituação jurídica do código penal. A solução adotada por alguns

estados de adotar os dados conforme classificação penal é

insatisfatória. A padronização destas diferentes formas de classificação

deve levar em conta padrões de criminalidade e não apenas

classificações jurídicas.

(d) A centralidade desta atividade no conjunto das práticas

organizacionais. Fenômeno curioso ocorre em algumas organizações

policiais que mantém sistemas extremamente caros e bem aparelhados

de bancos de dados e estatística criminal e que, no entanto, não os

utilizam para fins operacionais até mesmo pela falta de pessoal

qualificado para a tarefa.

(e) Compatibilidade de dados entre diferentes unidades administrativas.

Cada órgão da administração pública divide a cidade de uma maneira,

o que torna difícil a compatibilização de addos entre eles. Experiências

interessantes têm sido adotadas no Rio e São Paulo, através da criação

de Áreas de Segurança Integradas.

Outras condições referem-se à utilidade deste tipo de informações para o trabalho

de ponta das organizações policiais e judiciárias, que se traduzem numa:

(a) Disjunção percebida pelos profissionais entre a informação e sua

prática cotidiana. As estatísticas não são utilizadas para fins

operacionais, porque organizações policiais ainda são dominadas por

um estilo de gerenciamento pouco profissional em que as informações

ainda estão nas cabeças de detetives que as guardam como garantia

10

A PMERJ classifica os roubos em 219: Roubo; 220: Roubo em autocarga; 221: roubo em auto; 222: Rouboem coletivo; 223: Roubo em est. comercial; 224: Roubo em est. financeiro; 225: Roubo em est. ens.; 226:Roubo em resid.A Secretaria de Segurança de São Paulo, através do Coordenadoria de Análise e Planejamento, é quemencarrega-se da divulgação das estatísticas no estado. Para tal, toma a classificação legal como parãmetroNa classe 9000, a PMMG possui trinta e uma classificaçãoes para o crime de roubo. (assalto a residência,banco, casa lotérica, joalheria, prédio, farmácia, padaria, mercearia, prédio comercial, igreja, museu, galeria dearte, sítio, depósitos, garagens, veículos automotores, passageiros ônibus, táxi, caminhão de gás, de bebida,de cigarros, de cargas, transeuntes, bicicletas, trasnposte de valores, posto de gasolina etc.)

Page 101: PRESOS NO BRASIL

jurisdicional. Policiais “práticos” ainda são referencias no

planejamento de operações de policiamento ostensivo. Isto conduz a

uma situação em que a intuição e o impressionismo prevalecem sobre

a análise cuidadosa de dados, que são relegados apenas para a

confecção de relatórios e prestação de contas das atividades. Como

resultado, temos a imprevisibilidade, ineficiência e a pouca

transparência de algumas organizações policiais.

(b) Por outro lado, quando há iniciativas na direção de coleta de dados,

isto pode resultar em excesso de informações solicitadas no

preenchimento de boletins de coleta de dados. Consequentemente os

policiais tendem a encara-las como mero expediente burocrático. A

consequencia é uma montanha de dados que, embora estejam muitas

vezes disponíveis eletronicamente, não se constituem em informações

estruturadas.

Finalmente, uma terceira ordem de fatores de natureza organizacional tem

a ver com decisões discricionárias de policiais e vítimas em reportar delitos.

Sabemos através dos surveys de vitimização que muitas pessoas preferem não

reportar delitos por uma série de razões que nada tem ver com o sistema de justiça

criminal. Além disso, é fato largamente estudado na literatura das organizações

policiais o imenso espectro de atividades policiais sujeitas a mecanismos

discricionários de decisão acerca de quando se deve ou não acionar as leis. Essas

decisões dos policiais para a manutenção da ordem determinam em larga medida

os próprios limites da implementação da lei (Goldstein, 1998). A visibilidade

dessas decisões é freqüentemente baixa, e raramente sujeita a mecanismos de

supervisão por parte de superiores.

O uso de informações compreensivas para avaliação de probabilidades de

vitimização

As diferenças de coleta de dados nas polícias terminam por traduzir

diferenças nas informações à disposição dos usuários. Assim, dados dos centros

de operação das polícias militares são importantes para a indicação de locais, dias,

horas e datas dos incidentes criminais. Como muitos desses centros funcionam

Page 102: PRESOS NO BRASIL

através de telefonemas que traduzem percepções do público acerca de problemas

de desordem, eles terminam por fornecer indicações acerca de problemas de

ordem pública. As polícias civis, por sua vez, não se preocupam em coletar este

tipo de informação de forma sistemática, preocupando-se mais com aspecto de

ordem jurídica. No entanto, dada a natureza de suas atividades, têm melhores

informações sobre delitos, vítimas e ofensores, termos de motivações,

relacionamentos, características dos delitos e etc.

Nenhuma destas informações isoladamente são suficientes para responder

indagações a respeito das chances de vitimização de diferentes tipos de crimes.

Esta resposta significaria compreender a natureza dos crimes violentos e das

condições de sua ocorrência. Qual a cadeia de eventos e o peso de cada fator para

que um determinado resultado ocorra? Estatisticamente isto significa apreender as

probabilidades condicionais associadas a um lugar ou situação particular tal como

a de ser vítima de um latrocínio, por exemplo:

“A cadeia de probabilidades condicionais para um latrocínio

incluiria as chances de ser abordado num dado lugar e situação por um

assaltante e das chances deste assaltante estar armado com uma arma de

fogo. Dado a tentativa de assalto, qual a probabilidade de que ele atirará e,

se atirar, que alguém sairá ferido. Além disso, dado o ferimento, qual a

chance dele constituir-se numa ameaça à vida e, constituindo uma ameaça

à vida, que ele resultará em morte” (Reiss, 1993:416)

O entendimento dessas cadeias de eventos implica no levantamento de

bases de dados e informações não imediatamente disponíveis às organizações

policiais. Qual a taxa de risco associada à possibilidade de um motorista de táxi

vir a ser vítima de assalto ou de homicídio? No caso de Belo Horizonte,

ocorreram em 1999 uma média de 1,24 assaltos por dia em um universo de 92.672

corridas/dia. O risco da atividade ocupacional, portanto, é de que haja um assalto

Page 103: PRESOS NO BRASIL

para cada 74.735 corridas11. O risco de morte por corridas efetuadas é de 01 para

cada 27.801.600 corridas no ano. O mesmo ocorre em relação aos roubo à mão

armada de transeuntes centro da cidade. O denominador deve ser a população

flutuante ou a população residente? Em Belo Horizonte, se tomarmos a população

residente no centro da cidade, a taxa de assaltos a transeuntes em 1997 foi de 758

por cem mil habitantes, o que equivale a quase dez vezes a taxa média da cidade.

Se tomarmos a taxa em relação à população flutuante, este número decresce para

quase dez vezes a taxa de BH, chegando a 8 por cem mil.

A capacidade de ligar dados de diferentes fontes para a análise de

problemas específicos de criminalidade e violência de tal forma a delinear

probabilidades condicionais é uma limitação importante nas bases de dados

policiais. Uma possibilidade de como se fazer isto é o que veremos adiante.

Incorporando dimensões espaço-temporais: o uso de Geoarquivos

Tradicionalmente a criminologia tem estado atenta às dimensões temporais

da criminalidade. Quais os determinantes das tendências verificadas ao longo do

tempo tem sido a questão crucial para muitas perspectivas explicativas e de

atuação sobre o fenômeno. Contudo, a tendência recente na organização de dados

policiais tem sido a de incorporar a dimensão espacial tanto para a explicação

como para o planejamento de ações e estratégias de controle. A criação de

unidades de análise de crimes tem se constituído num dos principais suportes para

o desenvolvimento de policiamento comunitário e de solução de problemas.

Sistemas de informação tem servido para a detecção de padrões e regularidades de

maneira a dar suporte a atividades de policiamento, bem como para prestar contas

à comunidade sobre problemas relativos a segurança (Buslik e Maltz, 1998). Para

o analista, a incorporação de dimensões espaciais na análise adiciona um novo e

importante elemento de explicação do fenômeno.

A construção de geoarquivos consiste na montagem de bases

georeferenciadas de informação de diversas fontes administrativas, da justiça

11 Dados do Comando de Policiamento da Capital da PMMG.

Page 104: PRESOS NO BRASIL

criminal e de dados censitários. A base espacial torna-se o denominador comum

de todas estas bases de informação oriundas de diferentes fontes, com distintas

unidades de contagem, tornando possível a construção de uma base de dados que

agregue os mais diversos tipos de informação. O “Early Warning System Project”

da Polícia de Chicago é uma das ilustrações paradigmáticas no desenvolvimento

desses sistemas. O sistema é alimentado por: (a) fontes não policiais. tais como

órgãos da administração pública que cuidam de parques, escolas, trânsito,

habitações e prédios, igreja e etc; (b) fontes policiais referentes às bases de dados

sobre quadrilhas e gangues, serviço de inteligência, arquivos de homicídios,

mapas de diversos tipos de crimes, dados de outros órgãos de justiça criminal e

etc; (c) grupos comunitários produzindo informações resultantes de encontros

formais e informais com a comunidade, informações recebidas de outras agências

e associações de programas de prevenção. Todas estas informações são

processadas pelo sistema que as encaminha a uma unidade de análise, encarregada

da identificação de “hot spots”. Esta informação é disseminada posteriormente

para os encarregados do policiamento, de unidades especiais da polícia e aos

órgãos da administração municipal emvolvidos, além da comunidade, associações

e organizações da sociedade civil. Trata-se de uma estrutura que visa integrar uma

grande gama de informações em um sistema único que congregue a polícia com

agências públicas e civis (Rewers, 1995).

O projeto MAPA, de Belo Horizonte é uma das iniciativas pioneiras neste

sentido no Brasil. Trata-se de projeto estabelecido em parceria da Universidade

Federal de Minas Gerais com o Comando de Policiamento da Capital, em Belo

Horizonte. O projeto consiste na utilização intensiva de informações oriundas das

ocorrências registradas pela PMMG para efeitos de planejamento operacional, e

para o desenvolvimento de programas e projetos de controle da criminalidade.

Para a organização da base de dados que compõe o geoarquivo, foram utilizados

os dados do Centro de Operações Policiais Militares (COPOM) relativos à cidade

de Belo Horizonte. Trata-se do primeiro sistema de gerenciamento de chamadas

Page 105: PRESOS NO BRASIL

telefônicas utilizadas por uma organização policial na América Latina 12. Ele é

inicialmente alimentado pelo telefone 190. Os dados de geoprocessamento foram

produzidos pela PRODABEL, órgão da Prefeitura de Belo Horizonte com uma

base de dados geográfica com mais de cinco milhões de objetos cadastrados. Para

efeitos do projeto, foram utilizados inicialmente os dados referente aos

quarteirões, eixos de ruas, bairros, favelas, áreas verdes, áreas das companhias de

policiamento e batalhões, além de informações georeferenciadas sobre alvos de

delitos tais como bancos, supermercados, mercearias, padarias, casas lotéricas etc.

Além disso, utilizamos os dados do censo de 1991 e da contagem de 1996 forma

utilizados para informações sócio-econômicas e demográficas relativas aos setores

censitários, e disponíveis em formato eletrônico para elaboração de mapas

temáticos.

Esquematicamente, a montagem de um geoarquivo é representada a

seguir:

12 Isto representou algumas inconveniências, especialmente no que diz respeito ao formato dos arquivosutilizados, que tiveram que ser sanadas posteriormente pela equipe de pesquisadores.

Comunidade Agências JustiçaCriminal

Exemplos de dados:- Mapas de ruas- Uso Urbano- Dados demográficos- Mapas cognitivos- Território quadrilhas e

grupos- Escolas

Exemplos de dados:- Ligação Vítima,

ofensor, incidente- Territórios quadrilhas- Prisões- Jusridições delegacias- Liberdade condicional

GEOARQUIVO

Análise Problemas

DesenvolvimentoEstratégico

Prevenção + IntervençãoComunidade e Agências sistema justiça

Page 106: PRESOS NO BRASIL

Informações oriundas de diferentes fontes tornam possível a montagem e

superposição de mapas temáticos de diferentes fontes tais como o mapa adiante,

com informações a respeito da renda média de setores censitários superposto a

mapas de homicídio na cidade de Belo Horizonte.

MAPA 1: Homicídios por Distribuição de Renda em setores

censitários de Belo Horizonte

O resultado mais visível da montagem de geoarquivos será abrir a

possibilidade de análise específica para problemas locais. Para tal, um conjunto de

técnicas e métodos tem se desenvolvido para a identificação de “hot spots”, ou

áreas com alta incidência de criminalidade que tem servido de bases para o

planejamento conjunto entre diversas agências públicas (Taxman, e McEwen,

1998

Page 107: PRESOS NO BRASIL

MAPA 2: Clusters de Assalto a Ônibus em Belo Horizonte (1998 e

1999)

Um dos problemas inerentes à criação de unidades deste tipo é

particularmente agudo no Brasil. A ausência de um enfoque específico voltado

para a análise de crimes que cumpra as funções acima mencionadas é decorrente

da fragmentação organizacional no trato das informações por parte das

organizações policiais. Estatísticas são produzidas por departamentos e unidades

que nada tem a ver com o planejamento operacional das organizações policiais.

Análises mais compreensivas da criminalidade urbana são descartadas em favor

da confecção de relatórios insípidos e de nenhuma serventia.

Por outro lado, a tradição de estudos criminológicos de natureza

quantitativa ainda é bastante incipiente no Brasil Não temos nenhum centro de

formação em criminologia, ou uma formação especializada neste tema.

Conseqüentemente, abundam estudos de pouco rigor e pouco vinculado às mais

sólidas tradições teóricas de estudos em criminologia, o que termina por dificultar

a acumulação de conhecimento na área.

Page 108: PRESOS NO BRASIL

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Page 111: PRESOS NO BRASIL

Registros Criminais da Polícia no Rio de Janeiro:

problemas de confiabilidade e validade

Ignacio Cano (ISER)

No Rio de Janeiro, a Polícia Militar registra suas ocorrências em Boletins de

Ocorrências. Muitas delas não constituem crime e, em conseqüência, não são repassadas à

Polícia Civil. A Polícia Civil recebe os encaminhamentos da Polícia Militar, nos casos em

que houve crime, e também diretamente as denúncias dos cidadãos que se apresentam na

delegacia. O documento básico de registro da Polícia Civil é o Registro de Ocorrência

(R.O.). Ele contém basicamente crimes e contravenções, com algumas exceções como a

remoção de cadáveres que, mesmo em ausência de crime, deve ser autorizada pela

autoridade policial. Em suma, os registros da Polícia Militar incluem crimes e ocorrências

diversas, mas não abrangem o conjunto total dos crimes e, portanto, não podem ser

usados como base de um sistema de informação criminal. Servem, mais do que nada,

como informação relevante para o desempenho da própria corporação. Por sua vez, a

Polícia Civil praticamente só registra crimes, mas deixa de registrar uma ampla gama de

incidentes que perturbam a segurança pública sem chegar a constituírem crime.

Em conseqüência, o único sistema regular de informação possível sobre

segurança pública é o registro de crimes feito a partir dos R.O.s da Polícia Civil. A

Assessoria de Estatística e Planejamento (ASPLAN) da Secretaria da Polícia Civil recebe

uma cópia de todos os Registros de Ocorrência elaborados no estado, codifica e processa

a informação, elaborando planilhas mensais de vítimas e registros criminais a partir de

1991.

Estas planilhas eram elaboradas tradicionalmente para cada delegacia e para as

seguintes áreas: capital, estado e interior. Desde agosto de 1999, a Secretaria calcula os

resultados para cada uma das novas 36 Áreas Integradas de Segurança Pública.

A contabilidade de cada tipo de crime está baseada no título ou títulos dos

Registros de Ocorrência. É comum um R.O. possuir mais de um título. Um máximo de

três títulos é processado para cada R.O. As possíveis categorias usadas nos títulos dos

R.O.s, centradas numa conceição jurídica e não gerencial da segurança pública, são mais

de 300. Existem algumas categorias residuais, tais como “Outros Crimes”, “Outras

Contravenções”, “Outros Fatos a Apurar”, “Outras Ocorrências Administrativas”.

Existem ainda outras categorias residuais menores, para tipos diferentes de crime, como

Page 112: PRESOS NO BRASIL

“Outros Crimes contra a Pessoa” , “Outros Crimes contra os Costumes”, “Outros Crimes

contra o Patrimônio”, “Outros Crimes contra a Administração”, etc. Em geral, os totais

das categorias residuais de crimes e contravenções são pequenos e não implicam um

questionamento grave do sistema classificatório13. A tendência nos últimos anos foi de

acrescentar nas planilhas novas categorias mais específicas para crimes ou ocorrências

que anteriormente ficavam incluídos nas categorias residuais.

Podemos enumerar alguns dos elementos que questionam a confiabilidade e

validade destes registros criminais da seguinte forma:

1. Unidade de registro. Quando as planilhas foram começadas em 1991,

contabilizava-se preferencialmente o número de ocorrências de cada crime e não o

número de vítimas. Dessa forma, era impossível saber o número de vítimas para cada

crime. Isto foi sendo substituído aos poucos, mas ainda hoje algumas categorias são

computadas por número de ocorrências. Em alguns casos, como o do roubo, é

problemática a contabilidade das vítimas. Imaginemos, por exemplo, um roubo a ônibus.

No entanto, categorias como "roubo com morte" e "encontro de ossada" deveriam ser

registradas na medida do possível pelo número de vítimas.

2. Criação de novas e supressão de antigas categorias na planilha de dados. Isto

não quer dizer necessariamente que novas categorias sejam usadas nos R.O.s, mas que

elas passaram a ser contabilizadas na planilha estatística de forma separada em vez de ser

agregadas nas categorias residuais (outros). Especificamente, 1993, 1998 e 1999 são três

momentos em que muitas categorias foram introduzidas na planilha. Em 1999 foram

incorporadas, entre outras: lesão corporal por projétil de arma de fogo, lesão corporal com

morte, maus tratos, crime contra criança ou adolescente, disparo de arma de fogo,

remoção de cadáver. 'Auto de Resistência', que tinha sido incluído em 1998 apenas como

número de ocorrências, passa a ser contabilizado também como número de vítimas em

1999. A aparição de novas e mais precisas categorias é, em princípio, uma boa notícia

porque permite um monitoramento mais preciso da evolução criminal. No entanto, o

problema surge em razão da inexistência de uma definição clara, pelo menos para o

público externo, de qual é a definição da nova categoria e quais são os critérios para

diferenciá-la das antigas. Este é o caso de "lesão corporal com Projétil de Arma de Fogo"

e "lesão com morte". Parece que ambas referem-se a crimes dolosos, mas não é óbvio se

13 As categorias residuais administrativas chegam a atingir cifras consideráveis, mas isto é irrelevante para o

Page 113: PRESOS NO BRASIL

podem ou não incluir casos culposos. Não está claro se a primeira pode acabar em morte

ou não e, caso positivo, qual a diferença de ambas as categorias com o homicídio.

Pareceria evidente que a criação de "lesão corporal com PAF" deveria implicar que as

restantes "lesões dolosas" deveriam ser cometidas por outros meios, mas uma pesquisa de

1999 sobre R.O.s intitulados como "lesão dolosa" encontrou, de fato, vários casos de

arma de fogo.

A criação de novas categorias específicas compromete a análise longitudinal das

categorias residuais, que passam a conter um número menor de subcategorias e portanto

de registros. A título de exemplo, podemos acompanhar o número de "Outros Crimes" no

estado do Rio entre 1993 e 1999. Observa-se uma forte tendência ao aumento desde 1994

em diante, truncada em janeiro de 1998 com a criação das novas categorias e de novo,

ainda que com menor intensidade, em janeiro de 1999 pela mesma razão.

GRÁFICO 1

Número de "Outros Crimes" por Mês no estado do Rio de Janeiro

Planilhas da Polícia Civil

MÊS

JUL 1999

JAN 1999

JUL 1998

JAN 1998

JUL 1997

JAN 1997

JUL 1996

JAN 1996

JUL 1995

JAN 1995

JUL 1994

JAN 1994

JUL 1993

JAN 1993

Núm

ero

de R

egis

tros

3000

2500

2000

1500

1000

500

0

Mais problemática que a aparição de novas categorias é o desaparecimento de

outras antigas, o que impede a continuação da série temporal. Em 1998 suprimiu-se a

categoria "roubo em veículo" deixando apenas "roubo de veículo", enquanto que tanto

"furto em veículo" quanto "furto de veículo" continuaram existindo. Qualquer eliminação

registro sobre crimes.

Page 114: PRESOS NO BRASIL

de uma categoria deveria ser pensada com muito cuidado e precedida, em todo caso, de

uma conversão dos dados do passado para as novas categorias correspondentes, de forma

a restaurar a continuidade da série.

3. Duplicidade de Registros. Não é raro que um fato seja registrado por mais de

uma delegacia. Por exemplo, uma ocorrência pode ser denunciada numa delegacia de área

e ao mesmo tempo a delegacia especializada também elabora um R.O. A única forma de

evitar esta duplicidade é proceder a uma crítica rigorosa dos dados, procurando detectar

repetições por lugar, hora, nome da vítima, etc. A equipe de policiais que coleta os R.O.s,

os processa e os digita efetua um certo nível de crítica que, aparentemente, não é

exaustivo nem constante. Conversas informais mostraram que, paradoxalmente, a

computarização do processo de contabilidade desembocou num menor tempo disponível

para a crítica, sendo que os agentes devem limitar-se muitas vezes a digitar o que estiver

registrado no documento.

4. Escassez de dados registrados no R.O. e, ainda mais, de dados codificados,

processados e digitados. O modelo de R.O. vigente durante meados dos anos 90 contém

pouca informação e, particularmente, pouca informação codificada de forma a facilitar o

seu processamento. Assim, é difícil tentar realizar um perfil das vítimas, dos suspeitos ou

das características dos crimes mais freqüentes, com vistas a sua utilização no

planejamento. Em conseqüência, a maior parte dos dados relevantes ficam confinados ao

relato escrito dos fatos, que é discricionário e depende de cada delegado ou de cada

escrivão. O novo modelo de R.O. introduzido em 1996 é ainda mais sucinto, com menos

campos codificados e mais dependente do relato.

No que se refere à informação processada e digitada, de forma a permitir a sua

análise agregada, ela inclui poucas informações além do título do R.O., o número do

R.O., a delegacia, a hora e o lugar. Este conjunto reduzido de dados inviabiliza qualquer

tentativa analítica mais profunda.

Este cenário teve como conseqüência que todas as pesquisas criminológicas ou de

segurança pública mais aprofundadas, bem como qualquer análise criminal da própria

policia com fins avaliativos ou de planejamento, tenha de ser feito lendo uma amostra de

R.O.s, um a um.

Page 115: PRESOS NO BRASIL

Obviamente, a informatização dos registros, como a implementada nas

Delegacias Legais, deve comportar uma melhora espetacular neste sentido. Com efeito, o

R.O. da Delegacia Legal é muito mais detalhado e oferece um conjunto de informações

muito maior. Por outro lado, o preenchimento eletrônico impede que certos campos

obrigatórios sejam deixados em branco, pois caso contrário o programa não permite

continuar, o que supõe uma grande melhora na confiabilidade da informação. Contudo,

são poucas as Delegacias Legais em funcionamento completo, e não parece muito

próximo o dia em que todos os registros estejam informatizados. Enquanto isso, o novo

R.O convive com o antigo, ainda amplamente majoritário, e os registros criminais devem

depender deste último.

5. Preenchimento deficiente dos documentos. Os R.O. são preenchidos à máquina

de escrever por agentes que muitas vezes deixam em branco numerosos campos

relevantes, especialmente os relativos ao perfil da vítima e do suspeito. É comum também

que o relato omita detalhes essenciais ou que apresente a informação de forma ambígua.

Tudo isto é resultado de um descaso tradicional dos policiais para com os documentos e

com o registro de informações em geral. Os R.O.s são considerados pelos agentes como

um requisito burocrático que pauta o seu trabalho de forma indireta, mais do que como

uma ferramenta operativa cuja informação pode ajudar posteriormente a resolver o caso.

Esta visão é ainda mais forte no caso dos registros criminais agregados, percebidos como

uma informação de interesse administrativo e político mais do que operativo para, por

exemplo, mapear a criminalidade e planejar o trabalho policial. Uma tradição de falta de

transparência dos dados, de utilização esporádica muitas vezes com finalidade política, de

dificuldade de acesso dos policiais inclusive à informação que eles mesmos produzem

(não raro os policiais de uma delegacia devem mandar um ofício pedindo para a central

os registros agregados da sua própria delegacia), não tem colaborado para convencer os

policiais de que a informação produzida é deles, e não apenas da Secretaria, e que pode

ser útil no seu trabalho. Na medida em que eles passem a usar a informação como uma

ferramenta importante, melhorará a qualidade da produção da mesma. Uma parte destes

problemas ficaria drasticamente reduzida com a informatização dos registros, que permite

o acesso 'on-line' dos policiais aos dados da sua área e de outras áreas.

6. Falta de padronização no uso das categorias. Não existe uma definição precisa

de cada categoria e das circunstâncias em que uma ou outra categoria deve ser aplicada.

A fundamentação do sistema de categorias é basicamente jurídica, mas não

exclusivamente. Por exemplo, as mortes de suspeitos em confronto com a polícia são com

freqüência definidas como "autos de resistência", mesmo que legalmente sejam

Page 116: PRESOS NO BRASIL

simplesmente homicídios dolosos. No entanto, como a polícia acredita preferencialmente

na versão dos seus agentes e mantém que não houve nenhum comportamento irregular,

opta por criar esta categoria autônoma para separá-la dos homicídios. Para definir um

homicídio, ou possível homicídio, existem, entre outras, as seguintes categorias:

homicídio doloso, latrocínio (roubo com morte), encontro de cadáver, encontro de ossada,

morte suspeita, morte sem assistência médica, auto de resistência, infanticídio e

latrocínio. Não existe qualquer critério geral que separe uma morte suspeita de um

encontro de cadáver, nem de um homicídio doloso. Tudo fica a critério do delegado ou da

pessoa que o substitui na elaboração do R.O.. Dentro da cultura jurídica imperante, a

idéia é que a formação penal do delegado é suficiente para determinar a categoria.

Todavia, sendo um documento oficial, o título do R.O. não pode ser alterado

posteriormente, mesmo que se determine que outra categoria teria sido mais adequada.

Obviamente, a formação jurídica dos delegados não garante a homogeneidade nas

categorizações, especialmente se lembrarmos que várias das categorias usadas não

possuem sustentação no código penal. Este cenário compromete as comparações entre

áreas ou delegacias diferentes, e abre espaço para que alguns funcionários possam

simplesmente recategorizar as ocorrências, — digamos considerar que cadáveres que

aparecem com dois disparos são mortes suspeitas em vez de homicídios —, com o intuito

de mostrar melhoras aparentes da situação ou abafar crises.

7. Dificuldades na elaboração de taxas. A área de responsabilidade de uma

delegacia tradicionalmente não coincidia com a do batalhão vizinho nem com nenhuma

unidade administrativa de outros órgãos do estado. Dessa forma, não era possível obter a

população que residia em cada área. Sem esse denominador, ficava inviabilizado o

cálculo de taxas de incidência ou de risco de vitimização. A partir de agosto de 1999, a

Secretaria começou a elaborar as planilhas de dados para cada uma das 36 Áreas

Integradas de Segurança Pública, que coincidiam com unidades administrativas

municipais cuja população é conhecida. Assim, desde essa data, já é possível calcular

taxas para cada uma dessas áreas, mas a série é ainda muito limitada pois não foi feito um

esforço para converter os dados passados para essa nova malha territorial. Por outro lado,

os dados por Áreas Integradas não incluem os registros das delegacias especializadas, já

que estes últimos não estão decompostos espacialmente. Vale a pena sugerir para o futuro

esta decomposição geográfica das ocorrências das delegacias especializadas segundo o

lugar onde aconteceu o crime, para melhorar as taxas e evitar a subestimação

correspondente.

Page 117: PRESOS NO BRASIL

Outro elemento fundamental é que as taxas não são taxas propriamente ditas,

visto que contam no numerador com crimes segundo o lugar de ocorrência e, no

denominador, com a população segundo o lugar de residência. Em outras palavras, as

taxas só seriam não enviesadas caso se cumprisse o suposto de que todos os crimes

acontecidos numa certa área atingissem apenas vítimas residentes nessa área e que

ninguém fosse vitimado fora da área da sua residência. Este suposto não é sustentável em

áreas de alta população flutuante, como o Centro da cidade, nem em áreas turísticas,

como a Zona Sul.

Para o futuro, seria muito interessante se as planilhas tabulassem os dados de

duas formas diferentes: segundo o local de ocorrência e segundo o local de residência da

vítima. Isto permitiria um cálculo mais preciso das taxas e um melhor mapeamento do

crime.

8. Falta de transparência. Historicamente, o fornecimento dos dados criminais aos

pesquisadores ou a outras pessoas interessadas era individualizado, mediante a

apresentação de um ofício. Isto implicava uma certa demora e um controle da Secretaria

sobre quem teria ou não acesso aos registros. Quando o momento político era complicado

ou as relações políticas do demandante com o governo eram difíceis, a informação podia

demorar ou simplesmente não ser liberada. Existe ainda uma tradição de secretismo

aplicada a dados cujo conhecimento público não entranha perigo algum para a segurança

pública nem para a intimidade das pessoas. Tirando a identidade de vítimas e de

suspeitos, não há razão que justifique o sigilo referido aos crimes, o seu número e a sua

distribuição espacial e temporal. Porém, persiste muitas vezes a idéia de que na dúvida é

melhor não divulgar, o que só contribui a uma desconfiança permanente da opinião

pública em relação aos números revelados oficialmente. É peremptório que se faça uma

diferenciação clara entre os aspectos que são sigilosos e os que não o são, e que estes

últimos sejam colocados a disposição de todos, pesquisadores e opinião pública em geral.

O governo atual do Rio de Janeiro publica mensalmente no Diário Oficial um conjunto de

crimes e indicadores, o que é já um primeiro passo importante. No entanto, a publicação

em diário oficial cumpre o requisito formal de publicidade mas constitui um meio pouco

adequado para uma difusão ampla. É difícil acompanhar estes dados periodicamente e

saber em que dia aparecerão publicados. O fim deste processo deve ser a publicidade via

internet da planilha completa de dados, tal como o Ministério da Saúde faz.

9. O subregistro ou subnotificação. Esse é um problema universal, já que em

todos os países o número de crimes contabilizados pela polícia é inferior ao realmente

Page 118: PRESOS NO BRASIL

acontecido. Existem vários fatores que incidem sobre o grau de subregistro, entre eles a

confiança ou desconfiança inspirada pela polícia e a percepção de eficiência ou

ineficiência da mesma. Normalmente, é inversamente proporcional à gravidade do crime,

isto é, quanto mais grave é o crime, menor o subregistro. Crimes como o homicídio, onde

existe um cadáver, ou aqueles onde o valor roubado ou furtado é grande, tendem a ter um

subregistro pequeno. Tipicamente, o roubo e furto de veículos é o único crime que não

sofre de subnotificação significativa, pois a denúncia é necessária para obter o

ressarcimento do seguro e, mesmo quando o carro não está assegurado, o dono prefere

dar queixa para evitar pagar as multas futuras do carro e para não ser responsabilizado

caso o seu carro venha a ser utilizado num crime. Inclusive, existe uma forte suspeita de

supernotificação, pois há casos documentados em que o dono do carro simula um roubo

para receber o dinheiro do seguro.

Pesquisas de vitimização no Rio de Janeiro (ISER, projeto ATIVA 1998)

mostram que em apenas 26% dos roubos e 17% dos furtos as vítimas recorreram à

polícia. Como outras pesquisas mostram que nem todo mundo que recorre a polícia acaba

apresentando queixa, o grau de subnotificação é ainda superior aos números apresentados

acima.

10. Falta de fontes alternativas para contrastar os registros da polícia. Por causa

do subregistro e dos outros problemas, é fundamental contar com fontes alternativas para

comparar os dados da polícia.

Na maior parte dos crimes, a única outra fonte possível são as pesquisas de

vitimização, que permitem não apenas estimar a incidência real do fenômeno, mas

também a magnitude e o perfil da subnotificação. Infelizmente, o IBGE não realizou

nenhuma outra pesquisa nesse sentido após a PNAD de 1988, e desde aquele momento só

existem algumas pesquisas eventuais efetuadas por instituições privadas em alguns

estados, insuficientes para estabelecer qualquer série temporal. O Plano Nacional de

Segurança Pública proposto recentemente pelo governo contém o compromisso de levar a

cabo pelo menos uma pesquisa de vitimização anual, compromisso que deve ser cobrado

pelos pesquisadores e pela sociedade em geral.

Page 119: PRESOS NO BRASIL

No caso de roubos e furtos de carros, os dados das asseguradoras são importantes

para comprovar tendências, se bem que as cifras absolutas não devem coincidir pois nem

todos os carros estão assegurados.

No caso dos homicídios existem duas outras fontes além do R.O.: o Instituto

Médico Legal e o Ministério da Saúde, que elabora a sua estatística baseada nas Certidões

de Óbito. No Rio de Janeiro, só recentemente as autoridades se preocuparam de tentar

agregar os dados de todos os IML do estado. Os dados do Ministério da Saúde são

geralmente de uma confiabilidade superior aos da polícia, pela própria natureza da sua

produção e por estarem submetidos a uma crítica mais detalhada. Contudo, eles também

apresentam problemas, como a existência de uma categoria de mortes violentas de

intencionalidade desconhecida, que incluiria homicídios, suicídios e mortes acidentais.

Para chegar a uma estimativa mais precisa é necessário submeter esta categoria a uma

estimativa que reclassifique uma parte dela como homicídio. Além disso, a dificuldade

maior para utilizar estes dados como indicadores de segurança pública é a demora na sua

difusão, justamente devido ao tempo dedicado à crítica dos dados. De qualquer forma, é

muito importante que, mesmo com um certo atraso, estes registros sejam comparados

com os da polícia para testar a validade destes últimos.

Uma pesquisa em curso de publicação realizada pelo autor e por Nilton Santos no

ISER comparou o registro mensal de homicídios segundo as duas fontes principais: as

certidões de óbito e os R.O.s. Em primeiro lugar, os dados do Ministério da Saúde foram

submetidos a uma estimativa recomendada internacionalmente (Lozano, 1997)14 para

tentar recuperar os casos classificados como de intencionalidade desconhecida. O

resultado, apresentado no gráfico seguinte, mostra que após a estimativa, os dados de

ambas as fontes correlacionam entre si temporalmente de forma notável (coeficiente de

correlação de Pearson=0,84), o que reforça a validade e confiabilidade dos dois registros.

14 Lozano, Rafael La Carga de la Enfermedad y as lesiones por violencia contra las mujeres: el caso de lacuidad de México. Fundación Mexicana par ala Salud. Centro de Economía y Salud. México.A metodologia consiste resumidamente em considerar como intencionais todas as mortes por arma de fogo epor arma branca, e também 50% das mortes violentas de intencionalidade desconhecida por outros meios.

Page 120: PRESOS NO BRASIL

GRÁFICO 2

Homicídios declarados e estimados segundo Min.Saúde e Polícia, por Mês

Estado do Rio de Janeiro

Fonte: SIM, Ministério da Saúde; Secret. Polícia Civil (ISER)

MÊS

JAN 1997

JAN 1996

JAN 1995

JAN 1994

JAN 1993

JAN 1992

JAN 1991

Núm

ero

de V

ítim

as M

orta

is

1200

1000

800

600

400

200

0

Homic. decl.

Saúde

Homic. est.

Saúde

Homicídios

Polícia

Em segundo lugar, visto que tanto a polícia como o Ministério de Saúde operam

com um conjunto de categorias que podem conter uma certa proporção de homicídios, foi

realizada uma correlação canônica entre os dois conjuntos de variáveis: as categorias da

polícia e as da saúde. A correlação canônica calcula uma combinação linear de cada

grupo de variáveis, tal que a correlação entre essas duas combinações lineares seja o mais

alta possível. Os coeficientes de cada uma das categorias nesta equação podem ser um

indicador de em que medida cada categoria estaria incluindo homicídios.

A análise estimou que aproximadamente 3% das "lesões dolosas"

corresponderiam a homicídios, enquanto que todas as mortes de intencionalidade

desconhecida por arma de fogo e 10% das mortes de intencionalidade desconhecida por

outros meios equivaleriam também a homicídios. Corrigindo as duas estimativas,

percebe-se que elas ficam extraordinariamente próximas uma da outra, enquanto que o

coeficiente de correlação entre ambas sobe ainda um pouco (0,854).

No entanto, apenas um estudo sobre uma amostra de casos individuais

classificados pelas duas fontes poderia lançar uma luz definitiva sobre as estimativas.

Page 121: PRESOS NO BRASIL

GRÁFICO 3

Estimativas Corregidas de Homicídio por mês segundo a Fonte

Estado do Rio de Janeiro

MÊS

JUL 1997

JAN 1997

JUL 1996

JAN 1996

JUL 1995

JAN 1995

JUL 1994

JAN 1994

JUL 1993

JAN 1993

JUL 1992

JAN 1992

JUL 1991

JAN 1991

Núm

ero

de H

omic

ídio

s E

stim

ados

1000

900

800

700

600

500

400

300

200

100

0

FONTE

Min. Saúde

Polícia Civil

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Registros de Ocorrência da PCERJ

como fonte de informações criminais

Jacqueline Muniz

Centro de Estudos de Segurança e Cidadania - UCAM

[email protected]

30 de Junho de 2000

O objetivo deste artigo é apresentar algumas observações sobre os distintos

aspectos qualitativos que conformam a natureza e a forma de produção das

informações contempladas nos Registros de Ocorrência da Polícia Civil do Estado

do Rio de Janeiro – PCERJ, com vias a instruir o debate acerca da qualidade dos

dados policiais e as oportunidades de sua utilização. As ponderações aqui

realizadas resultam, por um lado, da análise de 1873 casos de vitimização de

policiais ocorridos na cidade do Rio de Janeiro e notificados pela PCERJ, durante

o período de 1993 a 1996.15 Por outro, refletem as observações extraídas dos

trabalhos de campo efetuados em algumas unidades policiais distritais da capital e

da região metropolitana nos últimos cinco anos.16

Historicamente as notificações policiais têm sido utilizadas tanto pelas

agências governamentais quanto pelos centros de pesquisa, como uma das

principais fontes de estudos sobre o comportamento das incidências criminais e

violentas nos centros urbanos brasileiros. A freqüente utilização dos registros de

ocorrência policiais (ROs) tem propiciado as mais diversas avaliações sobre os

alcances e limites das informações contidas nestes documentos. Contudo, quase

15 A pesquisa sobre a "vitimização de policiais no Rio de Janeiro" foi realizada no ISER, sob a coordenação deJacqueline Muniz e Barbara Musumeci Soares, e contou com recursos da Unesco e do Ministério da Justiça.Ela contemplou o período que se estende desde o ano de 1993 ao 1º semestre de 1996, abrangendo a PolíciaMilitar, a Polícia Civil, a Guarda Municipal, o Corpo de Bombeiros e os Agentes penitenciários. Ver: MUNIZ,Jacqueline e SOARES, Barbara Musumeci. Mapeamento da vitimização de policiais no Rio de Janeiro. Rio deJaneiro. ISER, 1998.

16 O trabalho de campo realizado nas Delegacias de Atendimento a Mulher (DEAMs) e as atividades demonitoramento do programa de policiamento comunitário em Copacabana, possibilitaram um contato diáriocom os policiais e o acompanhamento das principais rotinas dos batalhões e delegacias. A respeito dosresultados destes estudos, ver: SOARES, Luiz Eduardo et alli. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio deJaneiro. Relume & Dumará, 1996. MUSUMECI, Leonarda et alli. Segurança Pública e Cidadania. A experiênciade Policiamento Comunitário em Copacabana (1994-1995). Rio de Janeiro. ISER, 1996. MUNIZ, Jacqueline.Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e Cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.Rio de Janeiro. IUPERJ, 1999.

Page 123: PRESOS NO BRASIL

sempre estas análises priorizam a realização de testes consistência e

confiabilidade daqueles dados que se encontram disponíveis e possibilitam um

tratamento quantitativo. E isto de tal maneira, que certas variáveis qualitativas e

históricas que ajudam a compreender porque certas informações são produzidas e

outras não foram preenchidas ou deixaram de ser coletadas são, via de regra,

negligenciadas ou pouco consideradas. Refiro-me, por exemplo, à própria razão

de ser do RO dentro fluxo de trabalho da organização policial civil, ao processo

cotidiano de sua construção e as alterações nele ocorridas na última década. Uma

vez que estes elementos têm um papel decisivo não só no que se refere ás formas

e possibilidades de utilização interna e externa das informações policiais, como

também na elaboração de propostas viáveis de melhoria das bases de dados

policiais, considero oportuno tecer algumas observações sobre eles ainda que

breves e modestas.

1. O que é um Registro de Ocorrência.

O Registro de Ocorrência (RO) é um documento legal elaborado pela Polícia

Civil ou “Polícia do Depois”17 que representa a primeira notificação oficial de

uma queixa-crime para a maior parte dos casos que são encaminhados a uma

unidade de polícia judiciária (UPJ).18 Considerando as especificidades das

funções de polícia investigativa e de polícia judiciária delegadas à PCERJ,

pode-se dizer que o RO expressa o atendimento preliminar oferecido ao público

e agentes institucionais que, por diversas motivações, acionam os serviços

policiais civis. Trata-se, portanto, de um instrumento artesanal e, em certa

medida, versátil, no qual é registrado não só aqueles fatos interpretados

17 O sistema policial brasileiro possui uma estrutura singular em relação aos outros modelos existentes. Ele écomposto de duas organizações policiais estaduais que possuem missões, doutrinas, mandatos e atribuiçõesformalmente distintos e complementares. Trata-se de organizações que ainda funcionam como "sistemasfechados" e realizam, cada uma delas, uma parte do que é conhecido como "ciclo completo de polícia".Conforme definido pelo art. 144 da constituição de 1998, cabem às Polícias Militares - "forças reservas eauxiliares do exército" - a exclusividade do exercício de "polícia ostensiva e a preservação da ordem pública".Já às Polícias Civis - "dirigidas por delegados de polícia de carreira" - cabem "as funções de polícia judiciária ea apuração de infrações penais, exceto as militares". As mencionadas atribuições são, no jargão policial,traduzidas da seguinte forma: enquanto a PM é a polícia que atua antes e durante a ocorrência de um fatotípico, a Polícia Civil é aquela que intervém depois que o referido fato típico foi consumado.

18 A Polícia Civil pode tomar ciência formal de um fato "tipificado" como criminoso de várias maneiras. Osmodos mais freqüentes são os seguintes: a) encaminhamento do fato pela PM ou por outra agência públicacom funções fiscalizadoras, b) comunicação efetuada pela própria vítima ou pelo seu representante legal; c)comunicação feita por uma testemunha do episódio notificado; d) solicitação realizada pelo Ministério Público;e) envio de expediente por outra UPJ e f) através de notícias divulgadas pelos meios de comunicação.

Page 124: PRESOS NO BRASIL

juridicamente como crimes e contravenções, como também os atos

administrativos efetuados por uma unidade policial distrital e/ou especializada.

Por conta disso, o RO consiste na principal ferramenta que aciona boa parte

das rotinas executivas, investigativas e cartorárias desenvolvidas em uma

delegacia. Dentro da linha de produção do trabalho policial civil (que, de uma

forma simplificada, começa no balcão de atendimento, passa pela confecção de

depoimentos, levantamento de provas, averiguações, diligências solicitadas,

incursões nas ruas e termina com o envio de inquéritos ao Ministério Público),

o Registro de Ocorrência destaca-se como uma forma de comunicação legal que

procura atender, minimamente, a propósitos operacionais diferentes, porém

complementares:

ð Orientar o trabalho da Polícia Investigativa, através da coleta de informações

iniciais que contribua tanto para a elucidação futura do delito notificado,

quanto para a constituição de uma memória investigativa.

ð Subsidiar o trabalho da Polícia Judiciária no que se refere aos procedimentos

cartorários previstos no Código de Processo Penal.

ð Registrar bens apreendidos e outros procedimentos administrativos internos.

ð Solicitar e registrar o empenho dos serviços periciais da Polícia Técnica-

científica

A condição de uma "ficha de entrada" mecânica que no processo de trabalho

policial, serve para a produção e registro de informações com finalidades distintas

e nem sempre convergentes, empresta ao desenho do RO características muito

particulares. Os formulários adotados, procuram, por um lado, responderem à

necessidade operacional de se coletar informações diversificadas e, até mesmo,

detalhadas de certos aspectos da ocorrência notificada. Por outro lado, buscam

atender à necessidade de síntese imposta pelas limitações práticas de um

documento inicial que é preenchido no balcão de atendimento, em tempo real, e

com uma máquina de escrever.19

19 Na rotina policial civil, essa dupla exigência tem, em parte, sido resolvida com a inclusão, no formuláriopadrão, de folhas anexas intituladas "Registros de Aditamento" (RAs). Nos RAs são incluídos, conforme o tipode fato notificado, o detalhamento das informações já coletadas, a descrição de outros dados que nãopossuem campos pré-definidos no formulário como, por exemplo, as referências aos "Termos

Page 125: PRESOS NO BRASIL

Sendo uma primeira "entrevista com o crime", ou melhor, o primeiro

expediente de notificação de um fato delituoso, o RO quase sempre antecede às

atividades policiais de verificação, qualificação e fundamentação das informações

obtidas inicialmente. Sob este ponto de vista, os Registros de Ocorrência

apresentam-se como uma narrativa mais abrangente, porém provisória de um

episódio comunicado à Polícia Civil. Em parte por esta razão, o RO não chega a

ser uma "peça de cartório" mais comprometida com a produção de uma "verdade"

que possa ser aceita pela justiça. Afinal, a sua natureza preliminar faz com que as

informações e lacunas nele contidas possam ser alteradas e/ou complementadas

com o andamento dos trabalhos investigatórios e cartorários. Nesse sentido, os

dados levantados nos ROs refletem, antes de tudo, um certo momento do ciclo da

atividade da policial civil. E isso fica mais evidente naqueles casos em que a

queixa noticiada aparece "tipificada" como um delito propriamente dito. Nesse

particular, o RO pode ser identificado como a primeira etapa formal no itinerário

pelo interior do sistema de justiça criminal. Isto significa dizer que as

informações que ele contém deverão ser checadas, ampliadas, modificadas e, até

mesmo, invalidadas e suprimidas ao longo de todo um percurso, que pode ou não

culminar em um inquérito policial. Assim, como um expediente de comunicação

oficial de um crime, o RO está, por excelência, articulado à gramática do Código

Penal e do Código de Processo Penal. Ele deve, então, procurar atender a certos

constrangimentos legais (como indicar a provável autoria, o modus operandis e o

tipo de crime cometido, por exemplo), os quais, por sua vez, ofertam uma

moldura para a linguagem e narrativa dos escreventes policiais. Na prática, isso

significa que os eventos e incidentes não previstos pela legislação penal poderão

ser desconsiderados ou reinterpretados, de acordo com os esforços de adequação à

lógica jurídica/policial.20

Circunstanciados" confeccionados para os pequenos delitos contemplados pela lei 9099, e algumasinformações suplementares sobre as "autorias presumidas" que constam nesses protocolos. Os RAs aindanão são digitados pela PCERJ, e estima-se que eles correspondam à metade do volume mensal de ROs, osquais variam em torno de 45 mil documentos.

20 Tudo indica que parece ser uma regra informal na rotina policial, procurar traduzir os eventos em fatoscriminosos levando em consideração a gravidade da pena e a possibilidade de evidências materiais, as quaissupostamente teriam uma maior produtividade para o sistema criminal. No cálculo pragmático policial, istosignifica qualificar o que pode render mais "tempo de cadeia", "tipificando o que é principal e possuimaterialidade". Assim, diante de uma ocorrência com vários episódios difusos associados, procura-se, deforma seletiva e econômica, priorizar e classificar aqueles eventos que melhor ajustam-se aos tipos penaisimportantes e mais valorizados pela cultura policial.

Page 126: PRESOS NO BRASIL

A esta altura parece oportuno enfatizar que o RO e, por conseguinte, as

informações contidas em sua narrativa refletem uma forma particular de recorte e

enquadramento dos eventos criminosos à luz das realidades formal e informal do

trabalho policial civil. Suas informações resultam, portanto, da “síntese” de

matrizes e intenções discursivas diversas provenientes não somente do mundo

formal da legislação penal, mas também do "meio policial" e do universo social

dos envolvidos.

Grosso modo, pode-se afirmar que a descrição dos eventos expostos no RO

reflete a conciliação de, pelo menos, três ordens de discurso. Tem-se aquele relato

que procura reproduzir o ponto de vista do lesado, quando se trata de uma queixa

realizada diretamente no balcão da delegacia, ou do seu representante, quando o

mesmo está impossibilitado de realizar a queixa (por ser menor de idade, por estar

fisicamente impedido como resultado da violência sofrida, etc.).21 Misturado à

narrativa das vítimas e representantes observa-se, em alguns casos, o relato feito

por um comunicante policial cuja interpretação dos fatos exprime tanto uma

leitura orientada pela lógica policial, quanto uma expectativa de que a realidade

possa ser enquadrada na estrutura do RO. E, por fim, tem-se a tradução do

escrevente que introduz um segundo filtro na narrativa, elaborada pelos queixosos

e comunicantes. O policial civil encarregado de confeccionar o RO transforma,

então, a versão viva dos eventos em informações compatíveis com os campos

previstos no formulário e com a lógica-em-uso do seu preenchimento. Ele recorta

os relatos distribuindo os personagens envolvidos pelas distintas seções do

documento e recompõe, com o seu vocabulário próprio, o cenário e a "mecânica

dos fatos" experimentados pelas vítimas e perpetradores.

Nota-se, pois, que as informações objetivas disponíveis, e mesmo ausência de

certos dados previstos nos ROs, ora relativos aos envolvidos, ora referentes às

21 Excetuando as ocorrências com flagrantes, as que desde o início apresentam uma "autoria presumida" eaquelas que resultaram na morte da vítima, as informações relativas aos envolvidos são extraídas, quase queexclusivamente, do relato da própria vítima mediado pelas traduções realizadas pelo PM comunicante e peloescrevente da delegacia.

Page 127: PRESOS NO BRASIL

circunstâncias, motivações e instrumentos utilizados, se originam de sucessivos

filtros estabelecidos ao longo do processo de reconstrução discursiva dos eventos

que foram notificados. Em outras palavras, resultam de interpretações e

reinterpretações que procuram adequar os episódios vividos aos expedientes

retóricos do universo jurídico-policial. A Confecção ou não de um RO envolve,

portanto, avaliações e escolhas dos diversos atores e agências que participam de

um determinado incidente criminal ou não, desde os envolvidos até os policiais.

De um modo geral, pode-se observar vários níveis de tomada de decisão:

Incidentes

Fato Criminoso

PM

Encerrada no local

Encerrada no balcão

PC

RO Outro encaminhamento

Outro en caminhamento

Outro encaminhamento

Fluxo de decisões, um exemploFluxo de decisões, um exemplo

VPI Inquér ito Processo

Observe que um certo "incidente" ocorrido, algo, por exemplo, como um

conflito no trânsito, um tumulto de rua, um furto ou uma agressão entre vizinhos,

pode, de acordo com os cálculos efetuados pelas "partes" envolvidas, mobilizar os

serviços policiais militares e/ou civis, ou seguir um outro percurso informal

construído pelos próprios interessados.22 No caso de se optar por acionar uma ou

outra Polícia, novas alternativas de trajetos são inauguradas para a condução do

referido incidente, agora transformado em um "caso de polícia". Se uma guarnição

da PM "assume a ocorrência" primeiro, algumas possibilidades mostram-se

disponíveis conforme a evolução do episódio em tela. No uso de seu poder

discricionário, os PMs podem interpretar o incidente como: 1) uma "ocorrência

frustada", pois, com a chegada da radiopatrulha, os envolvidos resolveram desistir

de uma interferência externa, desfazendo ou mascarando o conflito; 2) um evento

22 Vale salientar que aqueles casos criminosos ou não que tiveram um encaminhamento informal dado pelosparticipantes se desfazem no ato mesmo de sua resolução, ingressando no universo pouco tangível daschamadas "cifras negras" policiais.

Page 128: PRESOS NO BRASIL

passível de ser por eles "encerrado no local"; 3) um problema que deve ser

encaminhado a uma outra agência pública quando se trata, por exemplo, de uma

"ocorrência assistencial" como um "menor abandonado", um "alienado mental"

causando tumulto ou um "encaminhamento de parturiente" que necessita de

socorro médico; e 4) um fato criminoso que requer a intervenção imediata da

Polícia Civil.23 Um outro caminho aberto para os litigantes é dirigir-se

diretamente a uma delegacia de polícia civil. Lá, o episódio também será

interpretado de várias formas e, com isso, terá distintas opções de condução mais

ou menos formal, sempre de acordo com o grau de relevância e interesse que ele

possa adquirir para os personagens, sobretudo para os policiais civis. Assim, o

evento que chega a uma UPJ poderá: 1) ser resolvido informalmente no balcão de

atendimento24; 2) ser encaminhado a uma outra agência naquelas situações que

fogem a competência administrativa da polícia judiciária; e 3) receber um

tratamento oficial através da elaboração de um RO. Face ao exposto, pode-se

rapidamente constatar que em razão dos múltiplos níveis decisórios envolvidos na

dinâmica cotidiana da administração dos crimes, contravenções, litígios e

desordens, apenas uma parte desses problemas experimentados pelos cidadãos

ingressam no universo das ocorrências policiais notificadas. Cabe também

salientar, que esse universo torna-se ainda mais seletivo quando novos passos

policiais são dados no interior do sistema de justiça criminal. De um determinado

conjunto de ROs, somente uma certa parcela deles que, segundo a lógica policial

mostra-se rentável ou apresente fatores substantivos de resolução que conduzam a

23 Cabe salientar que em todas as opções aqui apresentadas, os policiais militares poderão dar um tratamentoformal através do registro do tipo de atendimento oferecido, preenchendo um Boletim de Ocorrência (BO), noqual constarão, além dos dados relativos ao episódio notificado à PM, informações de controle operacional taiscomo o "número da viatura empenhada", o "tempo de empenho", o "registro do comandante da guarnição", etc.É claro que outras opções informais, não necessariamente ilegais e ilegítimas, podem ser construídas noprocesso de negociação com os envolvidos na ocorrência.

24 Não é incomum que eventos criminosos que chegam aos plantões das nossas delegacias (principalmente oschamados "pequenos delitos" que envolvem conflitos entre parentes, afins e conhecidos), não tenham umarepercussão formal, mesmo quando notificados e comunicados pela PM. No acompanhamento da rotinapolicial civil pôde-se constatar que se alguns casos são mediados informalmente no atendimento, outros sãodesqualificados pelos policiais que, considerando suas políticas e prioridades internas, persuadem osenvolvidos a não registrarem a queixa. Para uma discussão sobre a lógica-em-uso nas delegacias de políciaver: OLIVEIRA, Luciano. Sua Excelência o Comissário. Recife. PIMES/UFPE, 1984. KANT DE LIMA, Roberto.A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Seus Dilemas e Paradoxos. Rio de Janeiro. Editora Forense, 1995.MUNIZ, Jacqueline. "Os Direitos dos outros e outros direitos: um estudo sobre a negociação de conflitos nasDEAMs/RJ" in SOARES, Luiz Eduardo et alli. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Relume &Dumará, 1996.

Page 129: PRESOS NO BRASIL

indicação da autoria, convertem-se em inquéritos policiais.25 E, desses, uma

fração ainda menor transforma-se em processos criminais com a oferta de

denúncia pelo Ministério Público; os quais, por sua vez, resultarão em um

universo bem mais restrito de sentenças de condenação.

2. O preenchimento do RO.

Apesar de sua extrema importância como o principal documento que alimenta a

base de dados criminais da Polícia Civil, o RO ainda apresenta vários tipos de

deficiência, que vão desde a sua elaboração até o processamento e consolidação

das informações nele contidas. Na década de 90, o desenho do formulário do RO

sofreu pelo menos três mudanças que não resolveram satisfatoriamente os

problemas antigos, e ainda produziram graves descontinuidades na forma de

entrada dos dados. As alterações efetuadas na estrutura dos campos e a eliminação

de alguns quesitos no curso dessas mudanças tornaram o modelo atual

incompatível com os formulários anteriores, reduzindo ainda mais o conjunto de

informações disponíveis. Esse modelo, ainda hoje utilizado na maior parte das

delegacias, data de 1996, e reproduz o lay out utilizado na década de 80. Sua

estrutura é sintética e basicamente composta de campos abertos sem codificação.

Alguns itens padronizados foram suprimidos tais como a “natureza da prisão”, a

“recorrência de vitimização”, a “motivação do homicídio” e o “tipo de local” de

furtos, roubos e lesão corporal dolosa.26 Além disso, os campos codificados

relativos ao cadastro dos dados pessoais dos envolvidos (comunicante, vítima,

suspeito e testemunha) foram convertidos em campos abertos.27

É interessante observar, que as mudanças efetuadas no lay out do RO não

25 Em boa parte dos casos notificados, tem sido um expediente corrente nas delegacias, "abrir uma VPI"(verificação de procedência de informações) antes da formalização do inquérito policial.

26 O item "natureza da prisão" admitia como resposta as opções "flagrante", "temporária", "preventiva","condenação anterior" e "outras". No se que reporta à "recorrência da vitimização", o formulário indagava se oqueixoso "já foi vítima em outra ocorrência?" e "qual tipo de ocorrência". No campo sobre a provável"motivação do homicídio" tinha-se as seguintes alternativas: "grupo de extermínio", "confronto policial", "disputade quadrilhas", "interindividuais", "latrocínio", "indefinido" e "outros". E por fim, o item "tipo de local", utilizadopara os casos de furto, roubo e lesão corporal dolosa, apresentava as opções "via pública", "residência","bares e similares", "clubes e estádios", "instituições públicas" e "outros".

27 Algumas variáveis de identificação como "estado civil", "instrução", "sexo", "etnia" e "profissão" possuíamcampos próprios no formulário anterior e, excetuando o último o item, todos os demais apresentavam opçõesde respostas padronizadas.

Page 130: PRESOS NO BRASIL

refletiram a preocupação policial com o melhor aproveitamento daquelas

informações que, se não forem obtidas enquanto ainda estão vivas na memória

dos envolvidos, tendem a se perder num momento posterior, comprometendo o

próprio trabalho de investigação.28 Da mesma forma, elas não expressaram a

necessidade técnica de melhoria na forma de coleta da informação. Tudo parece

indicar que as mudanças adotadas procuraram atender, quase que exclusivamente,

aos imperativos práticos e econômicos derivados de um preenchimento artesanal

feito manualmente ou com uma máquina de escrever.

A pouca atenção institucional concedida à produção de informações

criminais qualificadas que possam ser aproveitadas dentro do próprio fluxo

interno do trabalho policial civil, remete a elementos culturais extraídos do mundo

da "tiragem".29 Observa-se principalmente entre os "tiras" que se definem como

"operacionais", uma explícita desvalorização dos expedientes institucionais de

produção de informações. O preenchimento dos ROs, a elaboração de relatórios, a

confecção de arquivos e cadastros atualizados, o desenvolvimento de análises

criminais, etc., são, salvo raras exceções, qualificados, de forma pejorativa, como

meras atribuições "burocráticas" supostamente dissociadas do "verdadeiro

trabalho de polícia" que consistiria em vencer a "guerra contra o crime",

perseguindo e prendendo "bandidos". Esse tipo de mentalidade encontra-se de tal

modo enraizada dentro da organização, que aqueles policiais que se dedicam, nos

plantões, à produção dos ROs, são percebidos pelos demais como "funcionários"

ou "papeleiros" que desenvolvem essas tarefas ora porque não possuem vocação

para o trabalho policial, ora porque estão desprestigiados ou sendo "punidos"

pelos seus superiores. Alguns "policiais operacionais" chegam mesmo a dizer,

freqüentemente em um tom irônico, que esses trabalhos "só servem para produzir

28 Inúmeros estudos internacionais sobre polícia desmitificam o trabalho de investigação policial, chamandoatenção para o fato de que as chances de elucidação de um determinado crime aumentam significativamentequando se realiza um bom levantamento das informações preliminares obtidas próximo à ocorrência do crime,isto é, apuradas no primeiro atendimento dado ao episódio delituoso. Para uma discussão sobre este tema,ver: BAYLEY, David H. What works in policing. New York/Oxford. Oxford University Press, 1998. HOOVER,Larry T. Police Program Evaluation. Washington DC. PERF, 1998. HOOVER, Larry T. Quantifying Quality inPolicing. Washington DC. PERF, 1996.

29 O termo "tiragem" é usualmente empregado, dentro do meio policial, para referir-se aos policiais civis daponta da linha, responsáveis por tocar a rotina das delegacias. Nesse universo, são incluídos os "tiras", isto é,os inspetores, detetives, escreventes, carcereiros, escrivães, etc., que compõem a maioria do efetivo da PolíciaCivil.

Page 131: PRESOS NO BRASIL

estatísticas para a chefia e para o governador". De fato, pode-se dizer que, ainda

hoje, tal afirmação constitui uma espécie de "meia verdade". Afinal, a PCERJ tem

aproveitado internamente muito pouco o acervo de informações que ela mesma

produz, a despeito de sua qualidade e limitação. A gestão dos recursos policiais

civis e, por sua vez, o planejamento das ações desenvolvidas, têm sido feitos

orientados tão somente pela "experiência", "intuição" e "boa vontade" dos

administradores de polícia. Uma perspectiva gerencial profissional, calcada na

elaboração de diagnósticos técnicos capazes de iluminar objetivos, metas e ações

realistas, é ainda uma novidade para a cultura institucional em vigor.

Mas isso, evidentemente, não ocorre de maneira casual ou fortuita. Não se

pode deixar de ressaltar que a informação, sua produção e controle constituem um

dos bens mais preciosos de qualquer organização de larga escala. No caso das

polícias, em particular a polícia judiciária, isso é ainda mais significativo pois as

informações criminais instrumentalizam, de forma objetiva, o poder de polícia

cujo exercício afeta diretamente a liberdade e a integridade dos cidadãos

delinqüentes ou não. Sem pretender corroborar uma teoria conspiratória dos fatos

sociais, pode-se afirmar que a desvalorização e a precariedade do sistema de

informações policiais têm efetivamente fragilizado a organização policial civil em

seus aspectos institucionais mais básicos, comprometendo a sua credibilidade

pública e, por conseguinte, a sua eficácia, eficiência e efetividade como

instituição. No dia a dia das delegacias observa-se, guardadas as devidas

exceções, que a ausência de um sistema racional e integrado de produção e

controle de informações possibilita uma ampliação excessiva do poder informal

dos policiais de ponta que, na prática, mostra-se infinitamente superior àquele que

a corporação deve e necessita exercer sobre eles. Fazendo uso da linguagem do

senso comum, pode-se dizer que, em virtude da precariedade organizacional da

PCERJ, a maior parte das informações policiais produzidas, sobretudo os dados

qualitativos estratégicos para elucidação de crimes, constitui um patrimônio

informal, pessoal, intransferível e ambulante dos policiais. Este acervo está "na

cabeça do tira" e, por isso mesmo, não conforma uma memória institucional

passível de ser irrigada para toda a organização. Dito de outra maneira, parte

expressiva das informações de interesse institucional foge ao acesso e controle da

PCERJ, convertendo-se em uma propriedade quase que exclusiva dos seus

Page 132: PRESOS NO BRASIL

membros.30 Note-se que essa situação abre espaço para todo tipo de

externalidades. Ela favorece o uso perverso do excesso de informalidade na

condução de questões tão delicadas quanto as criminais. Se por um lado, a

utilização individualizada, desregrada e informal das informações criminais

propiciam negociações bem intencionadas e à luz das exigências legais. Por outro,

ela também possibilita, pela falta de alternativas formais conseqüentes, toda sorte

de barganhas clandestinas e ilegais que alimentam o tráfico de influências e os

núcleos de corrupção.

Em parte por conta da baixa valorização institucional concedida às

atividades de inteligência policial, e nelas estão incluídas a produção e

sistematização de informações, o RO tem sido, com freqüência, preenchido de

forma assistemática e inconsistente, ou utilizado para atender exclusivamente às

exigências protocolares comuns a qualquer documento oficial, em detrimento das

informações substanciais do fato registrado. Em muitos casos, as informações

previstas são negligenciadas ou encontram-se fora dos campos apropriados.

Chama atenção o fato de que, em um universo de 1.873 documentos que

analisamos para a pesquisa sobre vitimização de policiais, nenhum deles tenha

sido preenchido segundo as convenções estabelecidas pelo próprio desenho do

formulário. A maior parte dos campos pré-definidos encontra-se vazia e as

informações costumam ser apresentadas de forma caótica no campo-texto

destinado à “descrição do fato” ou à “mecânica do evento”.31 Uma vez que a

forma de apresentação dos dados é fragmentada e obscura, nem sempre o

30 Penso que não é exagero afirmar que esse é um dos problemas mais críticos vividos hoje pela Polícia Civil.Dele originam-se muitos outros como, por exemplo, a debilidade da cadeia de comando e controle, afragilidade dos instrumentos de supervisão e correição, o elevado grau de reatividade da organização no queconcerne a produção de resultados legais, legítimos, tecnicamente adequados e satisfatórios, etc. Há muitotempo a organização policial civil tem pago um preço elevado por ter se tornado refém de sua própriadesestruturação e do corporativismo de mão única de alguns de seus membros. É de conhecimento de todosque circulam pelo meio policial, que quando um delegado ou um policial da tiragem muda de unidade policial,eles levam consigo não apenas o computador, telefone, ar refrigerado, arquivos, mesas e cadeiras queadquiriram com recursos próprios. Eles levam também, em suas memórias, todo o conhecimento queproduziram durante sua permanência na referida unidade policial, inviabilizando, mesmo que à contra-gosto, acontinuidade produtiva das atividades de investigação. O "Programa Delegacia Legal", desenvolvido em 1999como parte de uma nova política de segurança pública para o Estado do Rio, tinha como propósito principalreestruturar a Polícia Civil, através do enfrentamento desses e outros problemas estruturais que afetam acorporação.

31 Conforme será visto mais adiante, esse campo-texto, dedicado ao histórico da ocorrência e onde constamoutras informações que não foram preenchidas em seus próprios campos, consta no desenho do banco dedados mas não tem sido alimentado pelos digitadores da ASPLAN - Assessoria de Planejamento da PCERJ.

Page 133: PRESOS NO BRASIL

pesquisador e, até mesmo, o investigador podem distinguir com clareza as

informações que os envolvidos sabem e “podem declarar” ao escrevente, das

informações que eles desconhecem, mesmo tendo participado do fato registrado.

Também não é fácil perceber se as lacunas presentes no documento refletem

perguntas que deixaram de ser formuladas pelo escrevente, ou se elas reportam-se

a aspectos que permaneceram desconhecidos da polícia até o momento da

confecção do RO.

Um outro grave problema relacionado ao preenchimento dos Registros de

Ocorrência é a precariedade da redação que compromete a compreensão dos fatos

narrados e a integridade da cena relatada. Isso é ainda mais crítico nos campos

abertos que são os mais importantes do documento. Normalmente os ROs

apresentam um texto desorganizado, descontínuo, sem pontuação e, nos casos

mais graves, sem sentido.32

Como se pode ver, vários fatores contribuem para obscurecer as

informações contidas nos ROs : o já mencionado desinteresse institucional pela

produção dos dados policiais; o desconhecimento das ferramentas elementares da

língua portuguesa e das técnicas básicas de redação (tanto um como outro fator,

provavelmente associado à falta de qualificação dos escreventes e à desmotivação

profissional); o fato dessa atividade não ter sido ainda completamente

informatizada (o documento, escrito à máquina, não pode ser rasurado e

incorpora, por isso, todas as retificações, comprometendo a fluência da descrição),

etc.

Um dos efeitos mais problemáticos do preenchimento irregular do RO é a

impossibilidade de analisar, de forma consistente, os indicadores sociais relativos

ás vítimas e seus supostos agressores. O quadro a seguir evidencia que as

notificações raramente trazem informações diretas sobre o "estado civil", a

"idade", a "instrução" e a "etnia" dos atores envolvidos, sendo necessário extraí-

las de outras informações conexas e dispersas pelos campos descritivos.

32 No que se refere as estratégias adotadas para a recuperação das informações dos ROs analisados napesquisa de vitimização de policiais, ver: MUNIZ, Jacqueline e SOARES, Barbara Musumeci. Mapeamento davitimização de policiais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. ISER, 1998.

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PREENCHIMENTO DO RO

1873 DOCUMENTOS

(INFORMAÇÃO DISPONÍVEL)

BASE DE DADOS DA PESQUISA

1965 FORMULÁRIOS

PROCESSADOS

(INFORMAÇÃO RECUPERADA)

ITENS

VÍTIMA SUSPEITO/AUTO

R

VÍTIMA SUSPEITO/AUTO

R

Estado Civil Parcialmente Raramente 33% 27%

Idade Parcialmente Raramente 35% 29%

Instrução Raramente Nunca 5% 8%

Etnia Parcialmente Raramente 33% 30%

Fonte: MUNIZ, Jacqueline e SOARES, Barbara Musumeci. Mapeamento da Vitimização de

Policiais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Iser, 1998.

É claro, que muitas dessas informações poderão não estar imediatamente

disponíveis e precisas durante o preenchimento de um documento preliminar

como o Registro de Ocorrência. De fato, sua disponibilidade e precisão podem

variar conforme a natureza da ocorrência notificada e o tipo de envolvido. Como

uma regra geral, pode-se presumir que o RO contenha informações mais precisas

sobre as vítimas, comunicantes e testemunhas do que sobre os suspeitos que

devem ser melhor identificados com o desenrolar das investigações. Nos casos de

furtos e dos crimes letais sem comunicantes e testemunhas citados, por exemplo,

poucas informações pessoais podem ser levantadas inicialmente sobre os

prováveis autores. Contudo, observa-se a mesma precariedade naqueles casos em

que a autoria é presumida ou que foram acompanhados de flagrante, evidenciando

a despreocupação com a qualidade do preenchimento e, por sua vez, com a

construção e manutenção de um cadastro consistente e atualizado de envolvidos.

Isso fica mais explícito na grave ausência de informações sobre a "etnia" da

vítima e do suposto agressor, já que esse indicador pode ser facilmente apontado

por qualquer observador, ao contrário das outras variáveis mencionadas que

dependem da informação de terceiros ou das próprias vítimas e suspeitos.

Page 135: PRESOS NO BRASIL

3. O processamento dos ROs.

Somente a partir de 1997, a PCERJ passou a dispor de um banco de dados

alimentado pela digitação dos Registros de Ocorrência produzidos pelas

delegacias distritais e especializadas em todo o Estado. Antes dessa data, as

unidades policiais elaboravam manualmente, com base nos ROs e anotações dos

Livros Tombos, os seus resumos mensais, e os enviavam para as

superintendências metropolitanas e regionais ou, em alguns casos, diretamente

para a ASPLAN que construíam com eles, também artesanalmente, planilhas

mensais e anuais das principais incidências criminais referentes à Capital, à

Baixada Fluminense, ao Interior e Estado do Rio de Janeiro. Nesse percurso, a

perda de informações existentes nas fontes originais era considerável, uma vez

que só se aproveitavam os quantitativos relativos aos “tipos de ocorrência”, o

“sexo” e a “indicação de maioridade” (apenas das vítimas), e algumas “ações

positivas” da polícia tais como “veículos recuperados”, “prisões efetuadas”,

"apreensões", etc. Considerando as restrições impostas pela utilização de uma

fonte secundária, cuja entrada dos dados encontra-se pré-definida pelo formato do

documento, essas planilhas totalizadoras, apesar de úteis, têm-se mostrado

bastante limitadas quanto às oportunidades de cruzamento e análise substantivas

das poucas variáveis contempladas, seja para fins de gestão da própria polícia

civil, seja para as atividades de pesquisa.33

É importante destacar que o atual banco de dados da PCERJ (um salto

qualitativo importante se considerarmos a precariedade do processo de produção

de informações), resulta do esforço voluntário de alguns policiais que, durante os

últimos anos, têm-se dedicado à produção das estatísticas policiais. Ele foi

construído em linguagem DBASE, e sua estrutura possui apenas 94 campos

disponíveis, incluindo uma primeira parte dedicada aos "dados principais" do RO

e uma segunda relativa ao cadastro dos "dados dos envolvidos". Contudo, até o

33 A consolidação das incidências criminais através dessas planilhas totalizadoras mensais e anuais, aindacontinuam a ser confeccionadas pela ASPLAN após a criação do atual banco de dados. Só que agora elaspassaram a ser elaboradas em formato Excel. No entanto, cabe salientar que somente em abril 1999, pordeterminação da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança Pública, os resumosanuais relativos ao período de 1991 a 1997 foram recuperados e digitados. As demais planilhas disponíveisno acervo da ASPLAN referentes ao intervalo de 1984 a 1990, existem apenas em formato impresso eencontram-se em um estado frágil de conservação, merecendo o mesmo esforço de recuperação, sobretudo ossomatórios que apresentam os tipos criminais desagregados por unidade distrital para o período anterior a1997.

Page 136: PRESOS NO BRASIL

presente, somente 33 campos são efetivamente utilizados pelos digitadores.34

Itens importantes e previstos no banco de dados tais como “batalhão da área do

fato”, “termo de aditamento”, “data do aditamento”, “tipo de procedimento”,

“número do inquérito”, “controle de correição”, “descrição do fato”, “observação

sobre o envolvido”, “vulgo do envolvido” e “número da foto” não têm sido

alimentados, o que certamente inviabiliza a utilização dessas informações pela

própria polícia, já que a sua consulta só poderá ser feita retornando aos 45 mil

ROs produzidos em média a cada mês, no Estado do Rio. Note-se que desses 33

campos que são alimentados no banco de dados, apenas 12 podem ser

efetivamente aproveitados para análises criminais. São eles:

1. Número da delegacia que registrou o fato

2. Ano do registro

3. Títulos do RO (tipos criminais, tipos administrativos, etc.)

4. Data da comunicação do fato

5. Hora da comunicação do fato

6. Data do fato

7. 1ª Hora do fato

8. 2ª Hora do fato

9. Correlação do envolvido com o título35

10. Indicação de maioridade do envolvido

11. Sexo do envolvido

12. Cor do envolvido

É importante salientar que os campos abertos (“logradouro”, “bairro” e

“município”) destinados tanto à localização do fato ocorrido quanto ao endereço

residencial e profissional dos envolvidos, apesar de alimentados, não são

criticados e corrigidos, comprometendo a sua utilização nas análises criminais

espaciais, as quais têm-se mostrado extremamente úteis para o emprego racional

dos recursos policiais e para a formulação de estratégias preventivas de

34 Esse subaproveitamento deriva da escassez de recursos humanos e materiais e, também, das limitaçõesoriundas da escala de trabalho adotada na central de processamento. Uma vez que a digitação dos ROs é feitapor policiais civis deslocados das atividades-fim, utiliza-se na ASPLAN a contraproducente escala empregadapara a tiragem, que consiste em 24 horas de trabalho corrido e 72 horas de folga. Para digitar integralmenteuma média mensal de 95 mil páginas seria necessário não só ampliar e modernizar a bancada decomputadores disponíveis (hoje, têm-se apenas 16 máquinas modelo 386 e 486); como também a utilizaçãode digitadores profissionais.

35 Os "envolvidos" nas ocorrências são distribuídos pelas seguintes categorias previstas no banco de dados:"comunicante", "vítima", "desaparecido", "autor/vítima", "suspeito", "autor", "preso", "adolescente infrator","socorrista", "testemunha" e "representante legal". Note-se que muitas dessas categorias não são auto-excludentes, sugerindo a possibilidade de ambigüidades e duplicidades na digitação de certos tipos deocorrências.

Page 137: PRESOS NO BRASIL

policiamento.36 A esse problema somam-se outros que têm contribuído para

limitar ainda mais a capacidade do atual banco de dados de armazenar,

sistematizar e disponibilizar certas variáveis indispensáveis ao trabalho policial

inteligente. Informações relativas ao “instrumento do crime”, “tipo de local”,

“tipo de relação entre vítima e agressor”, “tipo de material apreendido”, “tipo de

exame solicitado” e “dia da semana”, que se encontram dispersas pelos campos

abertos do RO, não têm sido recuperadas na etapa de digitação. O

subaproveitamento de informações também ocorre em relação aos dados relativos

ao cadastro dos envolvidos. Por conta da escassez de pessoal, os digitadores são

orientados a aproveitar somente as informações sobre o sexo, cor e idade quando

estas aparecem nos espaços a elas destinados no formulário.

Não se pode deixar de comentar que a configuração técnica do banco de dados

da ASPLAN impõe limitações, em muitos casos intransponíveis. Esta é uma base

de dados não relacional, e a possibilidade de sua compatibilização com outros

sistemas operacionais mais atuais, robustos e interativos é bastante reduzida. Nela

não constam "caixas de pendência" que permitam a correção e a atualização de

dados preliminares ou imprecisos, através, por exemplo, da incorporação de

outras fontes de informação da PCERJ como aquelas produzidas pelo Instituto

Médico Legal (IML).37 Em verdade, pode-se dizer que esse banco de dados não

constitui uma "base de dados policiais" estrito senso, uma vez que ele possui uma

estrutura voltada tão somente para a digitação dos Registros de Ocorrência,

deixando de fora outros dados administrativos e operacionais produzidos pela

Polícia Civil.

Um aspecto fundamental do processamento dos ROs, diz respeito à forma de

entrada dos dados relativos aos "títulos das ocorrências". O sistema classificatório

36 Sobre o emprego de metodologias e ferramentas de análise espacial de crimes ver: BEATO FILHO, CláudioC. Ação e Estratégia das Organizações Policiais. Belo Horizonte. UFMG, mimeo, 1999. LaVIGNE, Nancy andWARTELL, Julie. Crime Mapping. Case Studies. Successes in the Field, Vol. 1 and 2. Washington, D.C. PERF,1998. ECK, John E. and WEISBURD, David. Crime and Place in Crime Prevention Studies Volume 4.Washington. Criminal Justice Press/ PERF, 1995.

37 O IML produz uma planilha mensal relativa às necrópsias realizadas em suas instalações. Nessa planilha,os dados estão desagregados segundo a unidade que realizou o exame e a "causa mortis" identificada. Ouniverso classificatório das "causas mortis" está divido em dois conjuntos de categorias. O primeiro conjunto éassociado aos "homicídios dolosos" e admite as opções "PAF" (projétil de arma de fogo), "arma branca","agressão", "asfixia" e "outras" causas mortis. Já o segundo conjunto contempla os casos acidentais,imprecisos e naturais, cujas categorias são: "atropelamento", "queda", "colisão", "asfixias", "ação térmica","energias", "à esclarecer", "doenças", "aborto", "morte fetal" e "outras" causas mortis.

Page 138: PRESOS NO BRASIL

dos “títulos das ocorrências", através do qual os tipos criminais são

contabilizados, é aberto e híbrido, possuindo em torno de 500 itens de codificação

válidos. Esses "títulos", via de regra, expressam o esforço de convergência entre

os saberes práticos policiais, as particularidades do caso a ser registrado, os

conhecimentos especializados do direito penal e a forma artesanal de confecção

do RO. Conforme pode ser visto logo abaixo, os títulos dos ROs combinam

conjuntos de variáveis distintas tais como os tipos penais individualizados, grupos

de crimes do Código Penal, circunstâncias do crime, categorias policiais

operacionais, local do fato, instrumento do crime, bens subtraídos e apreendidos,

rotinas administrativas, etc. Trata-se, portanto, de um universo de codificação

heterogêneo e descontínuo, que apresenta um baixo índice de padronização e

conjuga recortes gerais e particulares na composição de um determinado “titulo”

da ocorrência.

“Títulos de Ocorrência”, exemplos I

z “Homicídio doloso”z “Homicídio por PAF”z “Homicídio culposo por

atropelamento”z “Morte suspeita”z “Encontro de cadáver”z “Encontro de ossada”z “Morte sem assis. Médica”z “Morte súbita”z “Lesão corporal seguida de

morte”z “Lesão corporal por PAF”z “Lesão corporal dolosa”z “Lesão corporal (agressão a

soco e pontapés)z “Lesão (colisão em ponto fixo)

z “Roubo”z “Roubo a instituição financeira”z “Roubo a transeunte”z “Roubo a turista”z “Roubo de arma de fogo”z “Roubo de carga”z “Roubo de veículo com carga”z “Roubo de doc. de veículo”z “Roubo de veículo”z “Roubo de veículo (moto)”z “Roubo no interior de coletivo”z “Roubo no interior de taxi”z “Roubo no interior de

residência”

“Títulos de Ocorrência”, exemplos IIz “Sepultamento de membro”z “Alimentos”z “Ação civil pública”z “Sinais de perigo”z “Remoção de cadáver”z “Exumação de cadáver”z “Fuga de pessoa presa”z “Economia popular”z “Estatuto da criança e do

adolescente”z “Estatuto do índio”z “Código florestal”z “Comissão parlamentar de

inquérito”

z “Motim de presos”

z “Liberdade de manifestação”

z “Crime contra a adm.. Dotrabalho”

z “Uso indevido de farda oficial”

z “Arremesso perigoso”

z “Recuperação de veículo roubado”

z “Crime contra a saúde pública”

z “Auto de resistência”

z “Cumprimento de mandado”

z “Extravio de documento”

Page 139: PRESOS NO BRASIL

Note-se que muitos dos títulos aqui exemplificados não são auto-

excludentes. Este é o caso, por exemplo, das categorias "lesão corporal por PAF"

e "lesão corporal seguida de morte" ou das categorias "morte suspeita",

"homicídio doloso" e "homicídio por PAF". A alta variação na composição dos

“títulos” no ato do preenchimento tem sido contornada na etapa de digitação dos

ROs pela ASPLAN, principalmente através da adequação ao sistema

classificatório das extensas definições construídas pelos escreventes. Contudo,

este esforço não é capaz de eliminar completamente as ambigüidades, imprecisões

e duplicidades resultantes da ausência de uniformidade e padronização dos títulos.

Se desde 1991, a compilação dos dados criminais começou a discriminar a

quantidade vítimas em cada RO, a partir de 1998, procurou-se também distinguir

o tipo e a quantidade de delitos ou "títulos" em cada ocorrência notificada. Na

prática, isso significou que o recém-criado banco de dados passou a admitir a

alimentação de, no máximo, três principais eventos criminais associados a um

único RO. Tal alteração procurou atender a, pelo menos, duas possibilidades

lógicas e reais de combinação entre envolvidos e delitos: por um lado, um único

delito pode estar associado a uma ou mais vítimas; e, por outro, uma mesma

vítima pode estar vinculada a um ou mais delitos distintos. Note-se que esse nível

de desagregação em um banco de dados tecnicamente limitado, permite que um

mesmo delito e uma única vítima tenham múltiplas entradas e que, dessa forma,

possam ser contabilizados mais de uma vez. Isso acaba por produzir vítimas e

delitos virtuais, em alguns casos, já que uma das condições lógicas do banco de

dados é a correspondência direta entre títulos e vítimas. Observe as seguintes

situações:

Situações possíveis Forma de entrada no banco de dados

Em uma determinada ocorrência, uma única pessoa foi

vítima de três formas distintas de violência: estupro,

lesão corporal e cárcere privado.

3 delitos = 3 títulos = 3 vítimas (?)

Em uma certa ocorrência , três pessoas foram vítimas de

um assalto na rua.

1 delito = 3 títulos (?) = 3 vítimas

Page 140: PRESOS NO BRASIL

Note-se que o problema da múltipla entrada é ainda mais crítico naquelas

séries de títulos do sistema classificatório que apresentam um maior nível de

desagregação. Este é o caso dos crimes contra o patrimônio. Dentro da estrutura

do banco de dados, uma única ocorrência de roubo pode levar à codificação de até

três títulos:

Um único assalto, no qual foram subtraídos um

veículo, a sua documentação e a carga, converte-

se em três títulos:

“Roubo de veículo” + “Roubo de doc. Veículo” +

“Roubo de carga”

ou

Um único assalto dentro de uma residência, no

qual foi levada a arma do proprietário, converte-

se em dois títulos:

“Roubo no interior de residência” + “Roubo de

arma de fogo”

Como se pode constatar, as possibilidades acima mencionadas induzem à

superestimação de certos grupos de títulos, comprometendo, por exemplo, o

somatório confiável do total de roubos notificados no Estado do Rio. Esse

problema tem-se tornado crônico em parte por que o controle de qualidade do

banco de dados não costuma ser feito de maneira sistemática e contínua, de forma

a identificar os possíveis erros e disparidades ocorridos durante o processamento

das informações.

Page 141: PRESOS NO BRASIL

4. Horizonte de melhorias.

Apesar dos problemas discutidos anteriormente, o Registro de Ocorrência

apresenta algumas vantagens para a sua utilização como uma fonte importante de

informação criminal. Trata-se de uma fonte mais acessível à pesquisa e, por isso

mesmo, menos custosa. Geralmente, o formulário do RO é preenchido em três

vias, sendo uma delas anexada ao inquérito policial quando instaurado, e as outras

duas arquivadas na Delegacia de origem e no acervo da PCERJ. A sua

localização, consulta e reprodução são facilitadas pelo fato de que algumas cópias

permanecem nas dependências da PCERJ. Cabe também mencionar que, desde

julho de 1999, o processamento de todos os ROs produzidos no Estado passou a

ser diário, e centralizado na ASPLAN, possibilitando, pela primeira vez, que os

resumos mensais dos dados criminais pudessem estar consolidados e disponíveis a

partir quinto dia útil do mês subsequente.38

Um outro ponto importante é que as ocorrências policiais notificadas

constituem um universo mais abrangente e diversificado das incidências

criminais. Não é demais ressaltar que o volume de ROs está mais próximo da

“quantidade real” dos eventos criminais, conformando um conjunto mais amplo

de casos muitos dos quais tendem a ser arquivados, desqualificados ou eliminados

pela dinâmica policial-judicial. Somam-se a essas considerações, as melhorias

introduzidas pelo “Programa Delegacia Legal” no que se refere à otimização e

informatização de todas as rotinas policiais civis; à criação de um banco de dados

policial relacional e centralizado; e à capacitação continuada dos policiais no uso

das novas ferramentas de trabalho. Com o processo de informatização das

delegacias de polícia, a maior parte dos problemas relacionados à confecção e

aproveitamento das informações será, com o tempo, satisfatoriamente resolvida.39

38 A Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania viabilizou, acatando a sugestão vinda dos próprios policiais, aformalização de um convênio com a Empresa de Correios e Telégrafos, para que esta, através do seu sistemade malotes, passasse a coletar diariamente os ROs em todas as delegacias do Estado e os remetesse àCentral de Processamento. Também por determinação da referida Subsecretaria, a partir de agosto de 1999,um resumo mensal contendo os principais tipos criminais desagregados pelas 34 Áreas Integradas deSegurança Pública (AISPs) passou a ser publicado no Diário Oficial do mês posterior.

39 Até o presente apenas 5% das delegacias existentes no estado foi transformada em Delegacia Legal.Entretanto, a central de dados que interligará todas as unidades policiais ao sistema encontra-se emfuncionamento desde abril de 1999.

Page 142: PRESOS NO BRASIL

Merecem aqui destaque a construção do banco de dados policiais e as

pontencialidades abertas pelo aplicativo do RO eletrônico.

Banco de dados policiais

Sistema de Controle Policial

Sistema de Inteligência Policial

Sistema de Política Policial

Interface 1

Interface 2

GEOREFERENCIA •Interface: Detran, IFP, Polinter, Ministério

Público, Desipe, etc.

Estrutura do Aplicativo

Atendimento

Inclusão Peças

Relatórios

RAROProtocolo

ExamesAutosDespachos

O “Banco de Dados Policiais” consiste em uma poderosa central relacional

de dados, na qual estarão consolidadas as informações pertinentes de todas as

UPJs do Estado. Esse sistema foi concebido para possibilitar, no futuro, a

integração de outras bases de dados provenientes do DETRAN, Instituto Felix

Pacheco, Polinter, Ministério Público, Desipe, etc. Através dessa ferramenta, os

policiais das Delegacias Legais podem administrar as rotinas policiais, realizar

consultas aos cadastros, produzir relatórios, etc. A Central de dados está

dividida da seguinte forma:

Page 143: PRESOS NO BRASIL

ð O Sistema de Controle Operacional (SCO) administra todas as

rotinas operacionais da delegacia, desde as atividades administrativas

até as ações propriamente policiais;

ð O Sistema de Inteligência Policial (SPP) possibilita a preparação de

relatórios gerenciais e estatísticos, que além de viabilizar análises

criminais, também permite o monitoramento de indicadores de

desempenho de cada policial. Serve, portanto, como um importante

instrumento que subsidia a tomada de decisões para a elaboração de

políticas policiais pontuais;

ð O Georeferenciamento (GEO) constitui a interface com um software

georeferencial para monitorar as incidências criminais no contexto

temporal geográfico.

ð As Interfaces Ativas 1 e 2 permitem o intercâmbio com outras bases

de dados de interesse para a segurança pública.

O aplicativo do RO eletrônico faz parte do Sistema de Controle

Operacional, e conforme se pode inferir do fluxograma acima, ele controla todo o

processo de produção de informações criminais ou não, que começa no

atendimento efetuado no balcão e se estende até a elaboração do inquérito a ser

encaminhado ao Ministério Público. Com a informatização das rotinas e

procedimentos de produção de informações, tornou-se possível construir

informações tecnicamente mais confiáveis e com um nível maior de desagregação.

O Referido software possui as seguintes caixas específicas, que possibilitam um

melhor detalhamento dos dados:

Page 144: PRESOS NO BRASIL

C A IX A S D E E N T R A D A D A S IN F O R M A Ç Õ E S D O R O

R O

I D E N T I F I C A Ç Ã O

E N V O L V I D O SC a r a c t e r í s t i c a s

B E N SC a r a c t e r í s t i c a s

E X A M E S EP E S Q U I S A S

A T E N D I M E N T O

O C O R R Ê N C I AC a r a c t e r í s t i c a s

D O C U M E N T O S E N D E R E Ç O E N V O L V I M E N T O SA N T E R I O R E S

V E Í C U L O S A R M A SE N T O R P E -

C E N T E S O U T R O S

A informatização de todo o processo de produção das informações

policiais permitiu, fundamentalmente, a inclusão na estrutura do RO de um

conjunto de variáveis importantes com campos tabelados, que jamais haviam sido

contempladas de forma sistemática e regular pelo processo artesanal de

construção de dados. Por fim, cabe notar que esses novos itens possibilitarão a

realização de análises mais ricas das dinâmicas criminais, incluindo ai inúmeros

testes sobre o comportamento dos indicadores de criminalidade que antes eram

feitos de uma forma bastante restritiva. Segue abaixo, uma relação com os

principais itens incluídos.

Principais variáveis incluídas no RO

z Atendimento

y Natureza da demanda

y Informações cadastrais

z Lei 9099

y Informações sobre os termoscircunstanciados

z Origem da ocorrência

z Tipo de ocorrência

z Tipo de Local

z Modus operandi

z Instrumento do crime

z Motivo presumido

z Informações sobre a res furtiva

z Sobre os envolvidos:

y Tipo de envolvimento

y Envolvimentos anteriores

y Idade identificada

y Idade declarada

y Outros dados pessoais detalhados

y Relação vítima/autor

y Relação com as ocorrências

y Uso de substância tóxica

y Tipo de substância utilizada

y Descrição física detalhada dos

suspeitos

Page 145: PRESOS NO BRASIL

DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS

UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FORUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência eSegurança Pública no Brasil:Uma Discussão sobre asBases de Dados eQuestões Metodológicas

2º Encontro:Crime e Relato II: Base de Dados da Saúde ePesquisas de Vitimização

Organização:Daniel Cerqueira (IPEA)Julita Lemgruber (CESeC/UCAM)Leonarda Musumeci (CESeC/UCAM)

AGOSTO DE 2000

Page 146: PRESOS NO BRASIL

FÓRUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: UmaDiscussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas

2º Encontro:CRIME E RELATO II: BASE DE DADOS DA SAÚDE E PESQUISASDE VITIMIZAÇÃO

ARTIGOS

• INTRODUÇÃO

• UMA DATA-BASE INTEGRADO SOBRE A VIOLÊNCIA NO BRASIL. IdéiasPara um Pré-projeto Inter-Institucional de Pesquisa

Gláucio Ary Dillon Soares

• PESQUISAS DE VITIMIZAÇÃO

Yolanda Catão

• BASE DE DADOS DE SAÚDE. INFORMAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA

Jacques Levin

• ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NO BRASIL: BREVE ANÁLISE DE SUASFONTES DE DADOS

M. Helena P. de Mello Jorge

Page 147: PRESOS NO BRASIL

UM DATA BASE INTEGRADO SOBRE A VIOLÊNCIA NO BRASILIdéias para um Pré-Projeto Inter-institucional de Pesquisa

GLÁUCIO ARY DILLON SOARESProfessor Titular , Universidade da Flórida

Professor Visitante, IUPERJ

1 - Introdução

Se compararmos o número de homicídios no Distrito Federal, cuja ordem de

grandeza é de centenas, com o número de detentos cumprindo pena máxima por

homicídio, cuja ordem de grandeza é de dezenas, veremos, de imediato, a disparidade

entre os dois números. Há muito mais homicídios cada ano do que o total acumulado de

homicidas que foram identificados, indiciados, presos, julgados, condenados e estão

cumprindo pena. O Distrito Federal não é uma exceção: os números, em escala nacional,

apontam na mesma direção: uma percentagem muito elevada dos homicidas escapa pelos

ralos da sociedade e não cumpre pena. No Rio de Janeiro, a situação é catastrófica:

segundo Luiz Eduardo Soares, apenas 8% tem condições de iniciar o inquérito policial.

Na mídia e na sociedade, abundam os palpites e faltam os dados. Daí podemos

concluir que

•• Evidentemente, é do interesse da sociedade civil, assim como dos sistemas

policial e judicial, melhorar essas percentagens. A tarefa começa com a

sua determinação, com a maior exatidão possível. De quanto estamos

falando, exatamente? Cinquenta por cento, 70%?

•• Ela continua, sempre com a maior exatidão possível, com a localização

dos momentos em que ore esta evasão. Dados relativos a outras unidades

da federação sugerem que, na área de várias jurisdições policiais, a

percentagem de homicídios nos que o(s) autor(es) não é sequer

identificado supera 80!

•• Partimos do suposto de que o conhecimento sobre a identidade do(s)

autor(es) existe na sociedade - começando pelo óbvio - o autor ou autores,

Page 148: PRESOS NO BRASIL

mas também de que terceiras pessoas têm este conhecimento. Não

obstante, este conhecimento não chega às autoridades.

Para saber como incrementar este fluxo de conhecimentos, necessitamos

pesquisar o que os entrava. Se torna necessária uma pesquisa, que incluiria um survey e a

integração de várias bases de dados, sobre as relações entre a sociedade, incluíndo suas

múltiplas subdivisões (demográficas, por sexo, idade, ocupação, , educação, condição

social, área de residência etc), e os sistemas policial, judicial e carcerário. Entretanto,

durante a obtenção de fundos para esta pesquisa e a sua realização, podemos colher

subsídios através da análise secundária de dados, particularmente dos da PNAD de 1988.

As perguntas deixadas sem resposta pela PNAD serão acrescentadas ao questionário do

survey de vitimização que também incluirá perguntas constantes da PNAD, permitindo

acompanhar as mudanças entre 1988 e agora e as comparações com outras unidades da

federação onde este procedimento foi usado.

2 - O Data-base

Um sério problema com análise do crime, em geral, e do homicídio, em

particular, dere do fato de que diversos "pedaços" de informações se encontram em data-

bases diferentes, não integrados.

•• As informações sobre a vítima e o crime são inporadas a um, inclusive as escritas

na hora, o BO, Boletim de Ocorrência1. O BO inclui duas seções não codificadas,

o Histórico e o Modus Operandi que, muitas vezes não são preenchidos e

raramente são bem preenchidos. A primeira autoridade a chegar ao local preenche

o BO. A melhoria do preenchimento do atual BO já seria um grande passo; se

combinada com a melhoria do BO, os benefícios seriam muito maiores;

•• As informações do IML constam de outro data-base, mas incluem algumas

informações do BO, sendo coligidas centralmente pelo SIM, mas permanecendo

na dependência da qualidade dos dados enviados pelas Secretarias de Saúde dos

governos estaduais que, por sua vez, dependem parcialmente das suas fontes

1 A nomenclatura varia entre os estados. Alguns estados adotam RO.

Page 149: PRESOS NO BRASIL

municipais. No Estado do Rio de Janeiro, a partir de 1990, os “registros de

orência” passaram a incluir informação relativa à vítima;

•• As derentes do inqüérito policial que, sem bem feito, é uma importante fonte

sobre os possíveis motivos, sobre as relações entre vítima e criminoso, constam

de outra base de dados. Não estão informatizadas: são calhamaços de papel.

Porém, em alguns estados os inquéritos com informações detalhadas cobrem

percentagem muito pequena das orências, inclusive das sérias, como homicídios;

•• As informações sobre os policiais, detetives e os delegados associados com o

inquérito – inclusive algumas elementares como idade, gênero, raça, classe social,

treinamento, que são variáveis que, fora do Brasil, demonstram interagir com

variáveis semelhantes da vítima e do acusado, com consequência para as

averiguações, não estão disponíveis2;

•• As informações constantes do processo judicial estão em uma quarta fonte que

também não estão informatizadas;

•• As informações sobre promotor3, advogado e defensor público, o juiz4 e, onde

apropriado, o júri, se encontram em locais também diferentes. Pesquisas

realizadas em sua grande maioria fora do Brasil demonstraram que essas variáveis

interagem com variáveis semelhantes da vítima e do acusado, com consequência

para a probabilidade de condenação e a severidade da pena.

É, claro, onde as fontes estão separadas, sem formar parte de um data-base

integrado, é impossível cruzar as informações que constam em cada um destes data-base

fragmentados com as que constam em todos os demais, é impossível colocá-las na

mesma equação.

Somente as informações do SIM estão

2 A polícia pode indiciar ou não o suspeito. Para saber se há vieses nesse nível (como delegados brancosindiciando mais suspeitos negros do que brancos pelo mesmo crime, com as mesmas evidências),necessitamos das informações sobre o suspeito, o crime, o delegado, detetives e policiais, e o inquérito, nomesmo database.3 É o Ministério Público que denuncia ou não o suspeito. Para saber se há vieses nesse nível (comopromotores brancos denunciando mais suspeitos negros do que brancos pelo mesmo crime, com asmesmas evidências), necessitamos das informações sobre o suspeito, o crime, o promotor, e o inquérito, nomesmo database.4 É o juiz quem decide da inocência ou culpa na maioria dos crimes, assim como a severidade das penas.

Page 150: PRESOS NO BRASIL

11.. Organizadas a nível nacional e

22.. Pré-codificadas e disponíveis em formato conversível (dbf)

As variáveis de tipo “background” do SIM tem pouca utilidade. Dados sobre a côr da

vítima só começaram a ser digitadas em 1998 e a percentagem das respostas em branco é

muito alta. Leva tempo até treinar todas as pessoas que preenchem o questionário no

preenchimento de um novo ítem. Mesmo com treinamento e pressão para que esse ítem

seja bem preenchido serão alguns anos até que essa variável tenha utilidade estatística.

Para que informações constantes do inquérito policial e do processo judicial possam

ser usadas rotinaria e riqueiramente em pesquisas criminológicas, elas precisam ser

informatizadas. Não se trata de escanear os calhamaços embora houvesse vantagens

nisso, mas de criar um Sumário Informatizado para os mesmos. A proposta para a criação

desse sumário requer que um grupo de pesquisa examine uma razoável amostra aleatória

dos inquéritos policiais e dos processos judiciais, construíndo um sumário das

informações úteis que possam ser codificadas e informatizadas. As categorias não devem

ser construídas a priori, mas apenas após a listagem das iniformações contidas em cada

ítem. Idealmente, cada um desses documentos deveria ser integrado às informações

contidas no BO e no atestado de óbito.

Com isso ganharíamos a possibilidade de analisar conjuntamente dados relevantes

ora separados, de calcular as taxas de atrito e perda com os seus determinantes a cada

passo do longo processo5 que vai do crime até a prisão e, idealmente, depois da prisão.

Hoje, para conhecer as relações entre informações contidas em data-base

separados se requer pesquisa específica. Devido às dificuldades de obtenção dos dados,

elas se concentram nos dados do SIM e são, portanto, pesquisas de vitimização e somente

de vitimização.

5 Um dos primeiros passos é a identificação de suspeitos. Hipotetizo que o local do crime tenha influênciasobre a probabilidade de identificação, com os crimes feitos na rua com mais alta percentagem de autoresnão identificados; é possível que, a partir daí, classe, raça e gênero sejam variáveis associadas com a taxade atrito, com mais baixa percentagem de mulheres, brancos e pessoas de classe alta e média sendoindiciados e denunciados.

Page 151: PRESOS NO BRASIL

Assim, o conhecimento criminológico teria muito a ganhar com a integração do

conhecimento contido em locais diferentes, em formatos diferentes. Nossa proposta é a

de integração dessas bases de dados, o que requerirá a construção de um

formulário/sumário informatizável de cada uma delas. É inelutável que haja erros e

omissões e é esperado que o primeiro formulário/sumário de cada data base seja

provisório, com a duração proposta de 3 anos, tempo que considero suficiente para que

os estudiosos comecem a usá-los, apontando suas deficiências. Essas críticas e sugestões

serão integradas nos formulários/sumários permanentes.

33 –– AAss IInnffoorrmmaaççõõeess NNeecceessssáárriiaass

Portanto, se quizermos estudar o crime, em geral, e o homicídio, em particular, a

tarefa mais imediata é a construção de um data-base integrado, que deve incluir dados

sobre, pelo menos:

•• Laudo cadavérico e atestado de óbito do IML

•• Informações sobre a assistência e o atendimento hospitar

•• Registro da orência

•• Inquérito policial

•• Informações sobre o delegado

•• Informações sobre os policiais

•• Informações sobre os detetives-investigadores

•• Processo judicial

•• Informações sobre o juiz

Page 152: PRESOS NO BRASIL

•• Informações sobre o júri

•• Informações sobre o(s) promotor(es)

•• Informações sobre o(s) advogado(s) de defesa ou defensores públicos

•• Informações sobre a vítima, inclusive sua comunidade de origem e de residência

•• Informações sobre o(s) indiciado(s), inclusive sua comunidade de origem e de

residência

•• Informações sobre a vida pregressa de todos os circunstantes

•• Informações sobre a base populacional para computar taxas específicas por idade

E gênero E estado civil E etc.

4 – Variáveis Externas

Existe, também, a necessidade de inporar informações externas ao data-base, cuja

relevância tem sido salientada pelas pesquisas criminológicas. Uma estratégia comum

consiste em comparar as características das vítimas, indiciados e condenados, com as

características de toda a população do estado, município, bairro ou da subdivisão

respectiva (como idade, sexo, indicadores de condição social, local de nascimento etc).

A comparação seria feita com informações do Censo e das PNADs. Com isto poderemos

Page 153: PRESOS NO BRASIL

ver quais as características da população que aumentam a probabilidade de que as

pessoas matem ou sejam mortas. A relação entre os dados do registro policial e os

hospitalares permitirá avaliar a adeqüação destas fontes de informação. Poderemos,

também, usar dados comparativos, para saber como anda o Brasil, um estado ou

município, tendo em vista os parâmetros dos países nos que as qüestões relativas a crimes

violentos tenham sido abordadas de maneira julgada satisfatória. Se quizermos calcular

taxas específicas no que se refere a algumas variáveis associadas com a vitimização,

como a idade, o gênero e o estado civil, também teremos que rerer aos dados de censos,

PNADs e levantamentos locais. Minha experiência ensina que as taxas específicas a

valores de tres ou mais variáveis requerem tabulações especiais sobre a base

populacional.

Caso as informações derivadas do Ministério da Saúde, das polícias e do

Judiciário estivessem parcialmente ou totalmente informatizadas, seria mais fácil integrá-

las em um data-base único se os programas usados forem compatíveis. Como não estão,

será necessário programar a integração. Essa informação é necessária porque várias

polícias e outras unidades de administração estadual usam programas proprietários que

não se comunicam com outros, ou que requerem esforços de um programador

profissional para que possam ser usados em pacotes estatísticos.

Somente após essa longa inversão, as informações poderão ser tabuladas e

analisadas com 2, 3 e mais variáveis. Por exemplo: será possível cruzar qualquer dos

dados disponíveis sobre a vítima com qualquer dos dados disponíveis sobre o homicida e

as circunstâncias. As possibilidades analíticas são muito amplas e promissoras. Para

compreender isto, pensemos em cada data-base como um conjunto de informações. É

uma simples qüestão de análise combinatória. Como cada data-base contém muitas

variáveis com possível relevância, as possibilidades analíticas são imensas. Só não é

possível usar o dado inexistente. Este database nos permitirá usar informações de todas

estas fontes, antes separadas.

Page 154: PRESOS NO BRASIL

PESQUISAS DE VITIMIZAÇÃO

YOLANDA CATÃOConsultora do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

I. Introdução

Desde a década de 70, quando a Organização das Nações Unidas recomendou que os

governos elaborassem informes sobre caminhos e métodos efetivos para o controle da

criminalidade, vem sendo discutida, em vários países, a melhor forma de produzir estatísticas

criminais relevantes e confiáveis, que sirvam de base para a formulação de estratégias de

prevenção do crime. Reconhecendo a importância da questão, a Assembléia Geral e os

Congressos das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, têm

aprovado inúmeras resoluções, visando padronizar a coleta de dados e estimular os países

membros a desenvolverem seus sistemas de informação.

Com a intensificação da violência e o crescimento da criminalidade, principalmente

nos grandes centros urbanos, a necessidade de dados estatísticos fidedignos que orientassem a

formulação de estratégias preventivas e subsidiassem a elaboração de políticas públicas,

adqüiriu caráter ainda mais urgente.

Acatando as recomendações da ONU, diversos países aprimoraram suas fontes de

informação de modo a desenvolver estatísticas relevantes e de credibilidade sobre o fenômeno

do crime e da violência. Durante décadas, as estatísticas criminais existentes que norteavam

pesquisas e orientavam os estudos e teorias criminológicas, provinham dos registros oficiais:

das polícias (crimes identificados e registrados), da justiça (acusado/indiciado) e do sistema

penal (condenado e preso). Nessa fonte, o foco central é o infrator, ou seja, o “cliente” do

sistema jurídico-penal. A grande crítica que se faz a essas estatísticas oficiais deriva do fato de

que elas apresentam um quadro distorcido da violência e da criminalidade. Elas refletem mais a

administração da justiça e a ação seletiva dos órgãos oficiais de controle social.

Na linha de evolução dos estudos criminológicos e do direito penal, desponta nova

preocupação, qual seja, o reconhecimento dos direitos e interesses das vítimas de crimes.

Page 155: PRESOS NO BRASIL

Surge, assim, novo campo de investigação, tendo como objeto, desta vez, as vítimas de crimes

e não mais o infrator. As pesquisas de vitimização constituem um importante instrumento para

estimar a prevalência da vitimização pelos chamados crimes tradicionais.

Os surveys de vitimização, difundidos cada vez mais, são pesquisas domiciliares, feitas

com base em amostra representativa da população, sendo o entrevistado, a vítima, ou outra

pessoa do domicílio, dependendo da metodologia que se adote. Permitem conhecer o perfil das

vítimas; as circunstâncias em que ocorreram o crime; a propensão das vítimas em denunciar ou

não a ocorrência delituosa; delinear grupos de risco; e identificar atitudes da população em

relação aos agentes encarregados da administração da justiça (policiais, promotores, juízes).

É preciso deixar claro, entretanto, que os surveys de vitimização não substituem os

registros oficiais. Eles são complementares e constituem uma alternativa às estatísticas

produzidas pelos sistemas policial, judiciário e penitenciário.

II. Subnotificação

Um dos problemas mais recorrentes na literatura criminológica diz respeito à

mensuração da criminalidade. Com os estudos quantitativos e seu objetivo de conhecer a

incidência criminal e os tipos de crimes perpetrados, ganha importância o conceito de cifra

negra ou delinqüência oculta: número de crimes que não chegam ao conhecimento dos órgãos

de administração da justiça criminal, não sendo, portanto, registrados. Citado como um dos

“fantasmas da criminologia tradicional”, ele é mais freqüentemente utilizado, como crítica ao

uso das estatísticas oficiais, por estas não retratarem a criminalidade realmente praticada. O

subregistro das estatísticas oficiais varia conforme o tipo de crime. A decisão de não

comunicar o fato delituoso à polícia também está relacionada com a opinião que a

vítima/comunicante tem sobre a polícia e sua capacidade para resolução de conflitos. Além do

mais, os sistemas policial e judiciário tendem a fazer uma seleção de certos tipos de delito e

tratar distintamente determinadas modalidades de crimes, ocorrendo uma filtragem dos

comportamentos desviantes e contribuindo para o subregistro da criminalidade.

A pesquisa de vitimização surge como uma tentativa de se obter, através da vítima,

estimativas sobre a criminalidade praticada e não notificada à polícia. Um delito não

Page 156: PRESOS NO BRASIL

comunicado à polícia pode ser relatado, no domicílio, ao entrevistador bem treinado. Por outro

lado, a subnotificaçao também não é pequena nas pesquisas de vitimização. A subnotificação,

neste caso, ocorre quando a vítima deixa de relatar um crime do qual foi vítima, seja porque

não deu maior importância ao ocorrido, seja porque o crime foi uma ofensa sexual e ela não se

sente à vontade de falar sobre o assunto com o entrevistador. O respondente pode, ainda, não

entender determinada ocorrência como delituosa, como por exemplo, lesão corporal decorrente

de briga entre jovens conhecidos. A violência doméstica, seja contra a mulher seja contra a

criança, por envolver com grande freqüência, familiares, é muito comumente ocultada e não

relatada, principalmente nas camadas médias mais altas. O entrevistado tende, também, a se

lembrar apenas dos fatos mais recentes e aqueles de maior gravidade, omitindo os de pequena

monta.

Alguns países complementam os dados oficiais com as estimativas da pesquisa de

vitimização, para analisar a incidência e distribuição do crime, permitindo um conhecimento

mais objetivo do comportamento delituoso, assim identificado e tipificado, pela sociedade.

III. Breve Panorama das Pesquisas de Vitimização

III. 1. National Crime Victimization Survey (NCVS)

As primeiras pesquisas de vitimização foram desenvolvidas, na década de 60, nos

Estados Unidos, promovidas pela President’s Commission on Law Enforcement and

Administration of Justice. O primeiro survey, basicamente um piloto, visava testar a nova

metodologia, a coleta de informações sobre as vítimas de crime em unidades domiciliares. Na

realidade, o primeiro survey nacional foi realizado em 1966, aplicado em 10000 domicílios.

Mas só na década de 70, iniciam-se as séries anuais de pesquisas de vitimização que vêm sendo

aplicadas até hoje.

O National Crime Victimization Survey (NCVS), cuja amostra tem como base os

endereços residenciais, levanta dados sobre vitimização pessoal e no domicílio. As séries

NCVS têm como objetivos primordiais: 1º) obter informações detalhadas sobre as vítimas e

conseqüências do crime; 2º) estimar a freqüência e tipos de crime não relatados à polícia; 3º)

Page 157: PRESOS NO BRASIL

fornecer medidas uniformes de tipos selecionados de crimes; 4º) permitir comparações no

tempo e entre áreas geográficas.

O Bureau of Justice Statistics do Departamento de Justiça dos Estados Unidos

desenvolve surveys nacionais de vitimização, desde 1973. Cada ano, dados são obtidos com

base em amostra nacional representativa de, aproximadamente, 50000 domicílios,

compreendendo cerca de 100000 pessoas, obtendo informações sobre características e

conseqüências da vitimização criminal nos EUA. O survey permite estimar a probabilidade de

vitimização por vários tipos de crime, para a população como um todo, assim como para

segmentos da população (mulheres, idosos, grupos raciais, etc.) As informações permitem

avaliar o impacto do crime e conhecer as características do agressor.

Todas as pessoas nos EUA, com 12 anos ou mais, são entrevistadas nos domicílios

selecionados pela amostra. Cada entrevistado responde a uma série de questões para determinar

se foi vítima no período compreendido entre os seis meses precedentes ao primeiro dia do mês

da entrevista. As perguntas abrangem, basicamente, os seguintes tipos de crimes, incluindo as

tentativas: estupro, roubo, furto, agressão física, arrombamento de residência, furto de veículo

a motor.

A pesquisa caracteriza os crimes como pessoais ou de propriedade. Crimes pessoais

cobrem estupro, ataque sexual, roubo, agressão física simples e agravada e furto. Os crimes de

propriedade cobrem arrombamento, roubo, roubo de veículo a motor e vandalismo. Os dados

incluem: gravidade do crime; danos ou perdas; hora e local da ocorrência; despesas médicas

ocorridas; número, idade, raça e gênero. Indaga também se houve uso de armas ou drogas

(álcool inclusive) e a relação do ofensor(es) com a vítima: desconhecido, conhecimento casual,

parente, etc. Informações demográficas básicas, tais como idade, gênero, etnia, educação,

emprego e renda familiar também são coletadas para possibilitar análise do crime por várias

subpopulações.

Os dados da NCVS são organizados por um conjunto de trimestres, sendo que seis

trimestres completam um arquivo anual. Em 1992, houve uma modificação substantiva no

desenho da metodologia da pesquisa, objetivando melhorar a qualidade das respostas dadas e

para minimizar o efeito “recall”.

Page 158: PRESOS NO BRASIL

Nos EUA, há grande quantidade de trabalhos sobre vitimização comparando dados da

NCVS com aqueles compilados pelo Uniform Crime Reports (UCR) do FBI, como por

exemplo, Criminal Victimisation 1998: Changes 1997 – 98 with trends 1993 – 98. Outro

exemplo, é Crime and Justice in the United States and England and Wales que compara, de

1981 a 1996, dados oriundos tanto de pesquisas de vitimização quanto dos registros policiais.

Há outros tipos de pesquisa de vitimização em curso nos EUA. O Bureau of Justice

Statistics (BJS) e o Office of Community Oriented Policing Services (COPS) desenvolveram

um software, para que as próprias localidades possam conduzir surveys domiciliares, por

telefone, coletando dados sobre atitudes em relação à polícia e outras questões relacionadas.

Em 1998, utilisando o Random Digit Dialing (RDD) para contatar os domicílios, estes dois

órgãos realizaram um survey de vitimização (Criminal Victimization and Perceptions of

Community Safety in 12 Cities), em 12 cidades americanas, com perguntas sobre atitudes em

relação à vizinhança, sua cidade e policia local. Entretanto, ao contrário da NCVS, os dados

desta pesquisa não são representativos nacionalmente.

Como exemplos de dados decorrentes da Pesquisa Nacional de Vitimização Criminal e

sua contribuição para um panorama da vitimização criminal, pode-se relacionar alguns

resultados da pesquisa de 1998 (Bureau of Justice Statistics).

Foram cometidos 31.3 milhões de crimes contra habitantes de 12 anos ou mais.

- 73% (22.9 milhões) eram crimes contra a propriedade.

- 26% (8.1 milhoes) eram crimes violentos.

- 1% eram roubos.

Para cada 1000 habitantes com 12 anos ou mais, ocorreram:

- 2 estupros ou agressões sexuais.

- 3 agressões físicas com sérias lesões.

- 4 roubos.

Jovens, negros e homens eram mais vulneráveis a crimes violentos:

- 1 em cada 12 pessoas com idade de 12 a 15 anos para 1 em cada 357 com 65 anos

ou mais.

- 1 em cada 24 negros para 1 em cada 28 brancos.

- 1 em cada 23 homens para 1 em cada 33 mulheres.

Page 159: PRESOS NO BRASIL

III. 2. Pesquisa Internacional de Vitimização

Promovida pelas Nações Unidas, a primeira pesquisa internacional sobre tendências do

crime e os sistemas de justiça criminal (United Nations World Survey on Crime Trends and

Criminal Justice Systems), foi feita em 1978. Desde então, já foram implementadas seis

pesquisas padronizadas sobre o crime.

Entretanto, a primeira pesquisa internacional de vitimização só acontece onze anos

depois. O United Nations International Crime and Justice Research Institute (UNICRI)

realizou até agora três surveys de vitimização: em 1989, 1992 e 1996. O objetivo principal é

obter informações comparativas confiáveis sobre o risco de vitimização, o contexto do crime e

atitudes e opiniões frente à polícia. Através de sua implementação, procura-se sensibilizar

pesquisadores, administradores da justiça criminal e responsáveis pelas tomadas de decisão

nesta área, para a importância deste instrumento, seu significado, potencial e limites. Por outro

lado, chama a atenção para a necessidade de se atender às necessidades da vítimas, seja através

de ressarcimento do dano, assistência psicológica, criação de centros de atendimento ou outras.

As experiências com surveys de vitimização, em escala nacional, propiciaram a

organização das pesquisas internacionais com metodologia padronizada: a abordagem e o

questionário são os mesmos em todos os países assim como a metodologia utilizada para

seleção da amostra. Participaram 15 países em 1989 e, em 1992, mais 13 países considerados

em desenvolvimento foram incluídos. Na terceira pesquisa, em 1996, cerca de 35 países

participaram, sendo que o Brasil esteve presente nas duas últimas.

Em 1989, a pesquisa foi realizada por telefone, em países considerados industrializados,

usando o sistema CATI (Computer Assisted Telephone Interviewing). Em 1992, nos países em

desenvolvimento foram utilizadas amostras domiciliares (“face to face”). A amostra do

survey variou de 1000 (Suiça) a 5274 (Alemanha), mas, em geral, a média foi de 2000 pessoas

entrevistadas. A probabilidade de um erro amostral pode ser mais alto devido ao tamanho

pequeno da amostra. Por outro lado, os custos de uma pesquisa de vitimização são muito

elevados; uma amostra maior aumentaria bastante o custo do projeto. Para que a amostra não

fosse muito diferente entre os países, recomendava-se que o tamanho ficasse entre 1500 e 2000

domicílios. Os principais parâmetros eram área residencial, gênero e idade. No domicílio, o

Page 160: PRESOS NO BRASIL

critério de seleção do entrevistado foi a pessoa de 16 anos ou mais, que tinha o aniversário

mais próximo.

Deve-se ressaltar que a pesquisa internacional que segue os padrões do UNICRI, por

ser comparativa e padronizada, tem o inconveniente de adotar definições genéricas para os

delitos para abranger o maior número possível de países, de ter reduzida amostra e questionário

cujo conteúdo nem sempre corresponde a interesses nacionais.

Evidentemente, na análise comparativa dos dados resultantes da pesquisa internacional,

há que se levar em conta as especificidades de cada cidade e país. As cidades escolhidas

diferem no que se refere a uma série de indicadores, tais como, entre outros, o tamanho da

população, a taxa de crescimento, o desenvolvimento urbano, etc. Críticas têm sido feitas,

também, ao fato de, muitas vezes, serem apresentados como relativos a todo o país, resultados

de pesquisas locais. Um dos problemas que também têm afetado a comparação, deve-se ao fato

de que 25% dos países que responderam ao primeiro survey, não responderam ao segundo e

30% que responderam ao segundo não responderam ao primeiro. Não obstante, é interessante

que se tenha pesquisas internacionais padronizadas com informações comparáveis em escala

internacional.

Europa América do Países em América Ocidental Norte Transição LatinaÁustria Canadá Albânia África do Sul China ArgentinaGrã-Bretanha Estados Unidos Rep. Cheka Tanzânia Índia BolíviaFinlândia Iuguslávia Uganda Indonésia BrasilFrança Macedônia Zimbábue Filipinas Costa RicaPaises Baixos GeórgiaIrlanda do Norte HungriaEscócia KirguistãoSuécia LatviaSuíça Mongólia

PolôniaRomêniaRússia

Fonte: UNICRI/ILANUD

África Ásia

Países Participantes da Pesquisa Internacional de Vitimização em 1996

Page 161: PRESOS NO BRASIL

III.3. Surveys na Grã-Bretanha

A Grã-Bretanha realiza pesquisas de vitimização a cada dois anos, abrangendo cerca de

10000 domicílios. Conduzida pelo Home Office Research and Planning Unit, o principal

objetivo é estimar quantas pessoas foram vítimas de certos tipos de crime durante um ano,

descrevendo as circunstâncias sob as quais se tornaram vítimas e as conseqüências do crime

para a vítima. Outro objetivo inclui a obtenção de informações sobre o medo do crime e o

contato com a polícia. Os entrevistados são submetidos a uma bateria de perguntas para saber

se o morador ou seu domicílio foram vítimas de crimes relevantes durante o período de

referência de um ano. Eles respondem a questões bem detalhadas sobre os incidentes relatados.

Informações básicas descritivas sobre os entrevistados e seus domicílios são coletadas para

permitir análise sobre o tipo de pessoa que se torna ou não, vítima. Também coletam

informação sobre questões relacionadas com a experiência como vítima, como medo do crime,

uso de drogas, contato com a polícia e estilo de vida. O universo contempla pessoas de 16 anos

ou mais, vivendo em domicílios que constam do catálogo de endereços do correio, com uma

amostra probabilística por estágios.

III. 4. Brasil

1. No Brasil, já foram realizadas oito pesquisas de vitimização propriamente ditas, ou

pesquisas com perguntas sobre vitimização. O questionário suplementar da Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), em 1988, teve como tema Participação Político-

Social. Um dos sub-temas abordados pelo questionário foi justiça e vitimização. Não foi,

portanto, um survey de vitimização propriamente dito, mas incluiu perguntas relacionadas com

este tema. As variáveis utilizadas foram roubo ou furto, agressão física, relacionamento com a

vítima e recurso à polícia. O período de referência adotado foi um ano, de outubro de 1987 a

setembro de 1988. Foram investigados 81 628 domicílios, em todas as regiões metropolitanas

do Brasil, selecionados através de amostra probabilística, obtida em três estágios de seleção:

municípios, setores censitários e domicílios. Um dos problemas desta pesquisa é que foi

incluída na mesma pergunta, a informação se a pessoa foi vítima de furto ou roubo, englobando

na mesma categoria um delito que envolve violência e outro sem violência e que expressam

experiências, motivações e contextos diversos.

Page 162: PRESOS NO BRASIL

2. O Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e

Tratamento do Delinqüente (ILANUD) realizou três pesquisas de vitimização no Brasil: em

1992 e 1996, na cidade do Rio de Janeiro e, em 1997, na cidade de São Paulo, sendo que esta

última, em conjunto com o Datafolha. Estas pesquisas foram realizadas a partir das

experiências desenvolvidas pelo United Nations International Crime and Justice Research

Institute (UNICRI), utilizando sua metodologia padronizada. No Rio de Janeiro, a amostra

selecionada foi de 1000 pessoas e, em São Paulo foram entrevistados 2469 paulistanos, de

idade igual ou superior a 16 anos. Os dados da pesquisa internacional de 1996 ainda não foram

publicados. O questionário levanta dados referentes ao perfil dos entrevistados, vitimização e

notificação à polícia, avaliação da polícia e percepção do risco em relação ao próprio bairro. O

período adotado pelo UNICRI é de cinco anos.

3. O ISER realizou duas pesquisas de vitimização. Atitudes e Normas Culturais frente à

Violência em cidades da América Latina e Espanha, sob a coordenação da Pan-American

Health Organization (PAHO) fêz parte de um survey realizado em oito cidades, em 1996. No

Rio de Janeiro, uma das cidades escolhidas, foram entrevistadas 1126 pessoas. O período de

referência foram os doze meses anteriores à entrevista. Os dados referem-se a vitimização,

recurso à polícia, violência doméstica e valores frente à violência.

A outra pesquisa, Lei, Justiça e Cidadania, foi realizada em conjunto com o Centro de

Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, em oito municípios da Região

Metropolitana do Rio de Janeiro, em 1996. Teve como objeto de investigação as formas de

vitimização sofridas pelos moradores de dezesseis anos ou acima, nos doze meses anteriores à

data da pesquisa. A amostra foi estratificada por nível socio-econômico, com base nos setores

censitários. Foi feito um levantamento para identificar as pessoas vitimadas, o que possibilitou

a comparação das características e comportamento dos dois grupos: vitimados e não vitimados.

Foram entrevistadas 1578 pessoas e levantados dados de vitimização e características das

vítimas/agressores, recurso à polícia e acesso à justiça.

4. Em 1999, como parte do projeto Determinantes do Crime em Cidades da América

Latina, o Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (DCP/USP)

desenvolveu uma pesquisa de vitimização, promovida pelo Banco Mundial (BIRD), na Região

Metropolitana de São Paulo. O survey contou com 1000 entrevistas, tendo como base o

Page 163: PRESOS NO BRASIL

questionário padrão do projeto. Foram considerados apenas os eventos ocorridos seis meses

anteriores à entrevista. A investigação levantou dados sobre vitimização, recurso à polícia e

características das vítimas e agressores.

5. A Fundação SEADE, através da Pesquisa de Condições de Vida, implementada em

1998, levantou dados de vitimização em 14000 domicílios, localizados na Região

Metropolitana de São Paulo e em todos os municípios do interior com mais de 50000

habitantes. O período de referência foi de um ano anterior à data da entrevista. Ainda este ano,

deverá realizar outra pesquisa, com questionário anexo à Pesquisa de Emprego e Desemprego

(PED), contendo perguntas sobre vitimização. Serão 3300 domicílios por mês, ao longo de seis

meses, totalizando, ao final, 19800 domicílios na Grande São Paulo.

Pesquisas Ano Região Período Referência População Alvo

PNAD 1988 Brasil 1 ano 81628 domic.1992

ILANUD 19961997 SP - munic. 5 anos 2469 entrev.

ISER/PAHO 1996 RJ - munic. 1 ano 1126 entrev.

ISER/FGV 1996 RJ - RM 1 ano 1578 entrev.SP - RM e munic.

> 50000 hab.

USP 1999 SP - RM 6 meses 1000 entrev.

Pesquisas de Vitimização no Brasil

SEADE 1 ano 14000 domic.

RJ - munic. 5 anos 1000 entrev.

1998

Distribuição de pessoas vítimas de roubo ou furto, nos doze últimos meses

PNAD 88 PCV 98 PNAD 88 PCV 98

Total de pessoas 100,0 100,0 100,0 100,0

Foi vítima 4,6 5,9 5,7 6,6

Não foi vítima 95,4 94,1 94,3 93,4Fonte: IBGE, Suplemento Participação Político-Social, PNAD 1988.Fundação Seade, Pesquisa de Condições de Vida - PCV 1998

Vítima de roubo ou furto

Pesquisas de Vitimização

Estado de São Paulo São Paulo - RM

Page 164: PRESOS NO BRASIL

É quase impossível comparar os dados das pesquisas de vitimização realizadas no

Brasil. Nem sempre as variáveis selecionadas são as mesmas e há diferenças metodológicas

Distribuição de pessoas vítimas de agressão física nos doze últimos meses

PNAD 88 PCV 98 PNAD 88 PCV 98

Total de pessoas 100,0 100,0 100,0 100,0

Foi vítima 0,9 1,6 1,1 1,7

Não foi vítima 99,1 98,4 98,9 98,3Fonte: IBGE, Suplemento Participação Político-Social, PNAD 1988.Fundação Seade, Pesquisa de Condições de Vida - PCV 1998

Vítima de agressão físicaEstado de São Paulo São Paulo - RM

Distribuição de pessoas vítimas de roubo ou furto, nos doze últimos meses

Vitima de roubo ou furto

que recorreram à polícia PNAD 88 PCV 98 PNAD 88 PCV 98

Total de pessoas 100,0 100,0 100,0 100,0

Recorreu à polícia 39,8 45,5 38,0 43,1

Não recorreu à polícia 60,2 54,5 62,0 56,9Fonte: IBGE, Suplemento Participação Político-Social, PNAD 1988.Fundação Seade, Pesquisa de Condições de Vida - PCV 1998

Estado de São Paulo São Paulo - RM

Motivos pelos quais PNAD 88não recorreu à polícia Furto e

Roubo Não acredita ou tem medo da polícia 27,8 30,5 42,4Não era importante 22,1 22,5 18Recorreu à terceiros ou resolveu sozinho 7,4 11,2 6,3Falta de provas 23,1 21,4 13,3Medo de represália 3,8 2,7 5,1Outros 15,7 10,7 14,9NS /NR - 1,1 **Total 100,0 100,0 100,0Fonte: IBGE, Suplemento Participação Político-Social, PNAD 1988Fundação SEADE, Pesquisa de Condições de Vida - PCV 1988

ISER / FGV 96

Furto Roubo

Pessoas vítimas de roubo ou furto que não recorreram à polícia

Page 165: PRESOS NO BRASIL

quanto ao desenho da amostra, ao período de referência e à população alvo. No entanto,

apresentamos acima alguns dados comparativos, com base nos resultados do suplemento da

PNAD 1988 e daqueles resultantes da PCV 1998. Outra comparação possível foi entre os

dados da pesquisa do ISER/FGV 1996 e PNAD 1988. Podemos observar que, em dez anos, o

aumento da vitimização por roubo ou furto foi pequeno, tanto quanto na região metropolitana

quanto no estado de São Paulo; a diferença foi um pouco maior para o estado como um todo do

que para a região metropolitana. Com relação à agressão física, a diferença não atinge 1%.

Quanto ao recurso à polícia, o aumento situou-se em torno dos 5%, na região metropolitana e

no estado. Os dados relativos aos motivos pelos quais as pessoas não recorreram à polícia,

mostra bem como é importante separar as duas variáveis furto e roubo. Conforme o motivo, a

taxa tende a pesar mais para um ou outro tipo de crime, tornando-se difícil uma análise mais

afirmativa.

III. 5. América Latina

Atualmente, inúmeros países realizam pesquisas de vitimização (alguns, de forma

contínua, como os EUA e Inglaterra), dirigidas por órgãos governamentais ou por instituições

de pesquisa.

Na América Latina, está em curso um movimento para realizar uma pesquisa

comparativa envolvendo a maior parte dos países deste continente. Este movimento está sendo

coordenado pelo Ministério da Justiça argentino, com o apoio do UNICRI. Vários países

latinoamericanos têm desenvolvido pesquisas de vitimização embora com intervalos variados.

A Argentina criou um Instituto Latino Americano de pesquisas de vitimização e desenvolveu,

em setembro de 1996, um survey para ser respondido por maiores de 15 anos, na cidade de

Buenos Aires. Nas zonas Norte e Oeste de Buenos Aires, o survey foi aplicado em janeiro de

1997. O Uruguai realizou uma pesquisa, em dezembro de 1999, com uma amostra

representativa da população maior de 18 anos residente em duas regiões do país. No total,

foram entrevistadas 912 pessoas na capital e 290 distribuídas por diferentes centros urbanos.

No Paraguai, foi feita, em 1996, uma pesquisa de vitimização em Assunção, coordenada pelo

Ministério Público, abrangendo 650 residências. Na Bolívia, já foram realizadas cinco

pesquisas de vitimização, sendo que, em 1996, a metodologia implementada foi aquela

proposta pelo UNICRI. Na Colômbia e Chile também foram realizadas pesquisas de

vitimização, sendo que no Chile, elas vêm sendo efetuadas desde 1995.

Page 166: PRESOS NO BRASIL

IV. Conclusão

A importância da pesquisa de vitimização está, principalmente, na possibilidade que

tem este instrumento de fornecer extensa gama de informações relacionadas com o crime,

fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas nesta área e para a administração da

justiça, tais como:

1) detalhes das circunstâncias do crime;

2) relação entre a vítima e o agressor;

3) características do infrator;

4) identificação dos grupos de risco, levando em consideração estilos de vida, diferencial de

exposição (local de moradia, trabalho, etc.);

5) propensão das vítimas em comunicar ou não à polícia a ocorrência criminal;

6) motivos pelos quais não comunicou à polícia o fato;

7) opinião sobre a polícia e a administração da justica.

Deve-se, entretanto, ressaltar que a pesquisa de vitimização mede muito mais a

percepção da vítima, tal como expressa aos entrevistadores, enquanto reconstrói o fato

vivenciado, do que a experiência realmente vivida no momento do crime. Este fato não

diminui sua importância e contribuição para melhor conhecimento da violência e

criminalidade na sociedade. As diferentes experiências com as pesquisas de vitimização e as

questões metodológicas próprias a cada uma, devem ser analisadas com atenção quando se

pensar em elaborar um projeto tendo em mente este tipo de survey comiciliar.

O Brasil não pode continuar sem participar, de forma continuada, das pesquisas

desenvolvidas pelas Nações Unidas. Ãs vésperas do novo milênio, não é possivel que o Brasil

continue relegando a segundo plano, um dos problemas que mais aflige a população, incluído

na agenda pública, só recentemente, pela pressão da opinião pública. Fontes inadequadas e

estatísticas pouco confiáveis refletem o pouco caso das autoridades e governantes responsáveis,

com uma base de informações fundamentais para estratégias operacionais e planejamento de

políticas públicas.

Page 167: PRESOS NO BRASIL

A realização de uma pesquisa de vitimização, em escala nacional, deve ser agendada

para futuro próximo e deve ser contínua para que se possa estabelecer padrões e tendências ao

longo do tempo. As pesquisas locais realizadas no país, assim como os surveys nacionais

implementados em outros países, constituem um conjunto de experiências bastante rico que

permitem partir para este projeto que consta do Compromisso nº 15, ítem 124 do Plano

Nacional de Segurança Pública ( realizar anualmente uma pesquisa de vitimização).

Page 168: PRESOS NO BRASIL

BASES DE DADOS DE SAÚDEINFORMAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA

JACQUES LEVINCoordenação Geral de Informações e Tecnologia - MS/SE/Datasus

Um dos setores da sociedade onde imediatamente se reflete a violência é o dos

serviços de atenção à saúde – prontos-socorros, hospitais e ambulatórios, onde é feito o

atendimento às vítimas. Há a necessidade de ter-se recursos suficientes e instalações

adequadas tanto para o atendimento imediato como para o de mais longo prazo.

O aumento da violência tem provocado que a saúde pública tenha passado a

adotar uma visão epidemiológica sobre o tema, já que não trata-se mais de questões

individuais ou esparsas, mas sim afetando a saúde da população como um todo.

Dentro do setor saúde, não há um sistema de informações dedicado

especificamente à questão da violência. No entanto, dada a abrangência dos sistemas

existentes, é possível obter-se, com relativa facilidade, um conjunto significativo de

informações nesta área.

Apresentaremos neste trabalho as fontes de informação existentes, os meios de

acesso e indicativos de como trabalhar com elas.

Mortalidade

O Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM – é o mais antigo sistema de

informações de saúde no Brasil, tendo sido implantado nacionalmente na década de 70.

No entanto, os dados estão disponíveis apenas a partir de 1979, pois, para os anos

anteriores, a cobertura nacional era limitada.

O estado dos padrões de mortalidade é, mundialmente, um padrão para análise da

situação de saúde de populações. É uma das áreas de saúde mais exaustivamente

estudada e, de certa maneira, padronizada.

Page 169: PRESOS NO BRASIL

A origem da informação é a Declaração de Óbito – DO, preenchida pelo médico

assistente, de preferência, ou outro médico com condições de comprovar o falecimento.

Em caso de localidades sem médico, a DO pode ser firmada por testemunhas.

A DO contém, basicamente, a identificação do falecido (nome, filiação, nasci-

mento, idade etc.), dados ocupacionais, sobre a assistência médica e as causas do óbito.

Além disto, para menores de 1 ano ou óbitos fetais, são coletadas algumas informações

sobre a situação da mãe e da gravidez. Para causas externas, são coletadas algumas

informações adicionais que melhor caracterizem a causa, como local do óbito, tipo de

acidente etc.

As causas de óbito são informadas segundo padrão preconizado pela Organização

Mundial de Saúde – OMS, sendo as causas informadas como ___ (decorrente de) ___

(decorrente de) ___ (decorrente de) ___. Além disto, devem ser informadas outros

estados mórbidos do falecido, não obrigatoriamente relacionadas com o óbito.

Com a declaração, é possível à família do falecido providenciar o enterro e a

emissão da Certidão de Óbito em cartório. As DO são então coletadas pelas Secretarias

Municipais e/ou Estaduais de Saúde.

É feita, então, a Seleção da Causa Básica, ou seja, a partir do informado pelo mé-

dico como sendo as causas de óbito é aplicado um conjunto de regras, também

padronizadas pela OMS, estabelecendo a causa que efetivamente provocou o óbito. Por

exemplo, os portadores de HIV ou diabéticos não morrem diretamente por estas causas,

mas por outras infecções (no caso de HIV) ou outros problemas cardiovasculares (no

caso de diabetes). Da mesma maneira, uma pessoa que tenha sofrido um acidente ou foi

vítima de violência pode ter como causa de óbito uma hemorragia decorrente do

traumatismo provocado pelo acidente ou agressão. A seleção da Causa Básica determina,

então, qual o agravo que deve ser utilizado na classificação do óbito, codificado segundo

a Classificação Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados a Saúde – CID

(tradicionalmente conhecida como Classificação Internacional de Doenças). De 1979 a

1995, utilizou-se a 9ª Revisão (CID-9) e. a partir de 1996, adotou-se a 10ª Revisão (CID-

10).

Page 170: PRESOS NO BRASIL

Cabe aqui um parêntese, para vermos como a CID classifica os acidentes e

violências. Já há várias revisões, elas podem ser classificadas segundo dois eixos:

1. Pela natureza da lesão, ou seja, pelo tipo e local do traumatismo, efeitos de acidentes

e intoxicações etc. Corresponde ao capítulo XIX da CID-10 ou ao 17 da CID-9. Tem

maior interesse clínico, pois indica a situação do paciente.

2. Pela causa da lesão, ou seja, pelo tipo de acidente, de (auto-)agressão, agente

causador de intoxicação, etc. Corresponde ao Capítulo XX da CID-10 ou à

Classificação Suplementar “E” da CID-9.

Durante o processo de seleção da causa básica, é sempre codificada a causa da

lesão, e não sua natureza. Para isto, muitos vezes são necessárias pesquisas adicionais por

parte dos codificadores, por não estar devidamente especificado na Declaração de Óbito.

Codificadas as DO, estas são adicionadas às bases de dados municipais, sendo

regularmente transmitidas para as bases estaduais e finalmente para a base de nível

federal, sendo então disponibilizadas pela Internet e CD-ROM.

As bases nacionais de Mortalidade são facilmente acessíveis, contendo todos os

dados individualizados (mas não identificados). Isto permite efetuar análises bastante

diversificadas, cruzando-se as variáveis coletadas (em torno de 40).

Como restrições no uso dos dados de Mortalidade, podemos citar:

- Falhas na cobertura: em diversos estados, principalmente no Norte/Nordeste, há

um grande número de óbitos não registrados, por questões de acesso a cartórios,

inexigibilidade da DO pelos cemitérios (ditos clandestinos) e inexistência de

assistência médica, principalmente em áreas rurais ou isoladas. Há, também,

dificuldades por parte das Secretarias de Saúde em coletar as DO existentes.

Nacionalmente, estima-se, comparando com projeções demográficas do IBGE,

que a cobertura do sistema esteja em torno de 83,4%, distribuídos como o

apresentado na tabela 1.

Page 171: PRESOS NO BRASIL

- Falhas no preenchimento: é muito grande o percentual de causas mal definidas.

Enquanto que em países europeus e norte-americanos este percentual é de menos

de 3%, no Brasil tem-se este número muito elevado, como podemos ver na tabela

1. As principais razões para esta situação são, em primeiro lugar, a falta de

recursos médicos em muitos locais, a ocorrência de grande número de óbitos sem

assistência médica e, finalmente, o mal preenchimento por parte dos médicos das

causas de óbito.

Tabela 1 – Cobertura do SIM e percentual de óbitos mal

definidos segundo região

Região Subregistro (%) Óbitos mal definidos (%)

Norte 40,2 24,2

Nordeste 45,1 32,4

Sudeste -3,3 9,2

Sul -3,7 8,9

Centro-Oeste 12,7 10,8

Brasil 16,6 15,1

Fonte: MS/OPAS – IDB-98 Indicadores e Dados Básicos de Saúde

Nota: o valor negativo de subregistro indica que são coletados

mais óbitos que os estimados pelo IBGE.

- Demora na liberação dos dados: para o fechamento dos dados em nível nacional,

é necessário o recebimento dos dados de todos os estados. É comum, então, o

nível nacional ficar dependente de apenas alguns estados. Em nível estadual, o

atraso é menor e, em muitos municípios, praticamente não há. Mesmo assim, tem-

se reduzido bastante o atraso. Atualmente, os dados de um ano são divulgados um

ano e meio após. No momento (julho de 2000), estão sendo fechados os dados de

1998. Esta defasagem pode ser considerada normal, dentro de padrões

internacionais.

Considerando-se apenas as causas externas, algumas considerações adicionais

devem ser feitas:

- No momento do preenchimento do óbito, nem sempre é possível determinar se o

óbito, principalmente no caso de violências, pode ser atribuído a uma agressão

Page 172: PRESOS NO BRASIL

(homicídio), seja por falta de dados, seja por omissão do atestante. O número de

óbitos por causas externas de intenção indeterminada é bastante significativo,

necessitando estudos específicos para a redistribuição dos mesmos. Observe-se,

na Tabela 2, o número expressivo de óbitos sem determinação da intenção, em

torno de 10% de todos os óbitos por causas externas.

Tabela 2 – Número de óbitos por causas externas – Estado do Rio de Janeiro,

1998

Diagnóstico 1996 1997 Total

Acidentes de transporte 3.795 3.569 7.364

Quedas 883 902 1.785

Afogamento e submersões acidentais 565 502 1.067

Exposição à fumaça, ao fogo e às chamas 129 96 225

Envenenamento, intoxicações por ou exposição a

substâncias nocivas11 15 26

Lesões autoprovocadas voluntariamente 379 381 760

Agressões 8.030 7.953 15.983

Eventos(fatos) cuja intenção é indeterminada 1.762 1.692 3.454

Intervenções legais e operações de guerra 4 1 5

Todas as outras causas externas 1.650 1.288 2.938

Total 17.208 16.399 33.607

Fonte: MS/SE/DATASUS – Sistema de Informações sobre Mortalidade

- Não existem estimativas do nível de subregistro dos óbitos por causas externas.

Como nas demais causas, o subregistro tende a ser baixo nas áreas urbanas e de

maior desenvolvimento e alto nas áreas rurais e mais carentes.

Estas considerações não impedem, no entanto, o estudo das informações sobre

mortalidade, devendo ser ponderadas ao utilizar-se os dados.

Como produto das análises, podemos ter a freqüência e distribuição dos óbitos

por causas externas, cálculo de coeficientes, anos de vida perdidos etc. Uma das grandes

vantagens de estudar a mortalidade é a comparabilidade internacional, já que estes dados

são amplamente divulgados e estudados.

Page 173: PRESOS NO BRASIL

Assistência hospitalar

Já desde a década de 80, a partir do sistema para pagamento das contas hospi-

talares do extinto INAMPS, é possível ter uma ampla visão da morbidade hospitalar nos

serviços públicos, seu perfil e seus custos.

Com a criação do SUS, a partir da Constituição de 1988, e com a incorporação do

INAMPS ao Ministério da Saúde, ampliou-se consideravelmente a cobertura e

abrangência as informações hospitalares, principalmente por passar a captar os dados das

unidades públicas estaduais, municipais e universitárias.

As informações são geradas na unidade hospitalar, onde é completado o preen-

chimento da AIH – Autorização de Internação Hospitalar. Mensalmente, o conjunto de

AIH é transmitido para a Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde, de acordo com o

nível de gestão do município. Daí é transmitido para o nível federal, onde é feita a

valorização das contas, calculando-se o pagamento a ser efetuado aos prestadores, tanto

privados como públicos. Os dados pré e pós faturamento são consolidados e colocados

disponíveis pela Internet e CD-ROM.

As principais informações coletadas nas internações hospitalares são: data de in-

ternação e de alta, especialidade, procedimento realizado, diagnóstico principal e

secundário, unidade hospitalar, motivo da alta, idade e sexo. O nome e endereço do

paciente são coletados, mas tornados disponíveis apenas sob solicitação do poder

judiciário, de serviços de auditoria e por parte dos gestores do SUS.

Comparando-se os dados de pesquisas do IBGE (Pesquisa sobre a Assistência

Médico-Sanitária – AMS), temos que as internações efetuadas pelo SUS, em torno de

12.000.000 por ano, representam de 70 a 80% do total de internações do País, variando

de acordo com a região e o motivo da demanda. Esta sendo implantada, em paralelo à

AIH, a CIH – Comunicação sobre a Internação Hospitalar, destinada a obter as

informações sobre as hospitalizações não cobertas pelo SUS. A CIH é bastante mais

simples que a AIH, não tendo sido, até o momento, estabelecida a rotina de

disponibilização dos dados.

Page 174: PRESOS NO BRASIL

Pesquisas realizadas pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ e pelo Instituto de

Saúde Pública da Universidade Federal da Bahia, entre outros, têm comprovado, de

maneira geral, a fidedignidade dos dados com a realidade. A existência de fraudes e/ou

mal preenchimento das informações não compromete a qualidade dos dados, pois os

desvios podem ser estatisticamente tratados.

No caso específico de acidentes e violências, pode-se afirmar, com segurança, que

a cobertura é muito maior que o padrão nacional para as demais causas, pois é fato

reconhecido que, em caso de urgências traumáticas, as unidades públicas são procuradas

primeiramente, havendo a transferência para unidades privadas, no caso do paciente estar

coberto por plano de saúde, somente após a saída de estado crítico.

No entanto, até 1997, a análise das informações hospitalares provocadas por cau-

sas externas era prejudicada pela codificação do diagnóstico, também efetuadas pela

Classificação Internacional de Doenças – CID. Devido à possibilidade de dupla

classificação nas causas externas, uma internação decorrente por um acidente de trânsito

que provocou uma fratura da perna, por exemplo, poderia ser classificada tanto como

acidente de trânsito como fratura da perna. Por este motivo, não tínhamos como saber

nem o total de acidentes de trânsito nem o total de fraturas. Note-se que, pelo fato dos

dados serem gerados a partir dos prontuários médicos, a informação sobre a natureza da

lesão é mais facilmente disponibilizada e de maior interesse clínico. No sistema de

mortalidade, como a codificação é feita por técnicos especializados, é sempre utilizada a

causa da lesão e não sua natureza.

Procurou-se corrigir esta situação quando adotou-se a 10ª Revisão da CID, a partir

de janeiro de 1998, conforme portaria 1.311, de 12/09/1997. Esta portaria instituiu duas

medidas adicionais que passariam a fornecer informações fundamentais para as causas

externas:

a. como diagnóstico principal, tornou-se obrigatória a utilização do capítulo XIX –

Lesões, envenenamento e algumas outras conseqüências de causas externas e, como

diagnóstico secundário, do capítulo XX – Causas externas de morbidade e de

mortalidade; e

Page 175: PRESOS NO BRASIL

- foram criados novos códigos para o caráter da internação, além de eletiva ou

urgência/emergência, caracterizando a situação de acidente de trabalho, de

trânsito ou outros tipos de lesões e envenenamentos.

Por problemas operacionais, para os primeiros meses de 1998 aceitou-se a não

codificação dos diagnósticos, por não terem sido disponibilizados as publicações da CID-

10 para as unidades hospitalares em tempo hábil.

Originalmente, pela portaria, todas as lesões e envenenamentos deveriam ter o

diagnóstico principal codificado pelo capítulo XIX e o secundário pelo XX. No entanto,

detectou-se uma série de situações em que isto não era possível, passando-se a aceitar

diagnóstico principal pelo capítulo XX e, em algumas situações (principalmente no caso

de seqüelas), o não uso do capítulo XX como diagnóstico secundário. Há muitas casos

em que o diagnóstico principal é de outro capítulo (sistema nervoso, por exemplo) e o

secundário dos capítulos XIX ou XX. São situações não previstas originalmente, não

tendo-se tomado, ainda, alguma medida corretiva.

Isto provocou que, ao analisar as causas externas, devemos continuar trabalhando

tanto com o diagnóstico principal como com o secundário, o que é um inconveniente mas

não um complicador. As tabelas 3A e 3B, a seguir, mostram, para o estado do Rio de

Janeiro, em 1998, o número de internações em que pelo menos um dos diagnósticos era

dos capítulos XIX ou XX. Observe-se a grande concentração em traumatismos e

acidentes de transporte. Note-se ainda que os eventos de intenção indeterminada

representam um número significativo em relação ao número de agressões, ou seja, em

muitas violências, não foi registrado se foi agressão, acidente ou autoagressão.

Page 176: PRESOS NO BRASIL

Tabela 3A – Número de Internações com diagnóstico pelo Capítulo XIX – Lesões e

Envenenamentos – Estado do Rio de Janeiro, 1998

Diagnóstico Principal Secundário Total Percentual

Traumatismos 33.852 1.854 35.706 85,97

Penetração de corpos estranhos 101 12 113 0,27

Queimaduras 1.489 57 1.546 3,72

Geladuras 9 1 10 0,02

Intoxicações e efeitos tóxicos 1.323 145 1.468 3,53

Outros efeitos de causas externas 155 24 179 0,43

Complicações de cuidados médicos 1.091 431 1.522 3,66

Seqüelas 731 257 988 2,38

Total 38.751 2.781 41.532 100,00

Fonte: MS/SE/DATASUS – Sistema de Informações Hospitalares do SUS

Tabela 3B – Número de Internações com diagnóstico pelo Capítulo XX – Causas

Externas – Estado do Rio de Janeiro, 1998

Diagnóstico Principal Secundári

o

Total Percentua

l

Acidentes de transporte 1.635 16.092 17.727 40,65

Outros acidentes 1.428 18.876 20.304 46,56

Lesões autoprovocadas intencionalmente 97 493 590 1,35

Agressões 179 2.196 2.375 5,45

Eventos de intenção indeterminada 195 862 1.057 2,42

Intervenções legais e operações de guerra 1 4 5 0,01

Complicações da assistência médica e cirúrgica 379 817 1.196 2,74

Seqüelas 40 145 185 0,42

Fatores suplementares 69 104 173 0,40

Total 4.023 39.589 43.612 100,00

Fonte: MS/SE/DATASUS – Sistema de Informações Hospitalares do SUS

Uma questão que é normalmente colocada é se os dados, por serem gerados para

faturamento das contas hospitalares, não têm um viés que distorce a análise. No entanto,

o faturamento é feito, primordialmente, pelos procedimentos realizados, não pelo

Page 177: PRESOS NO BRASIL

diagnóstico. Desta maneira, a análise sendo efetuada com esta variável sofre menor

influência da característica de faturamento.

Como produto das análises, podemos ter a freqüência e distribuição das interna-

ções por causas externas, cálculo de coeficientes, estudo de custos, estudo de demanda

sobre os serviços de saúde e outros. Deve-se observar que, ao contrário da mortalidade,

esta área não atingiu, ainda, uma padronização internacional, sendo bem menos estudada

academicamente, o que diminui o grau de comparabilidade internacional.

Assistência ambulatorial

As informações sobre a assistência ambulatorial prestada pelo SUS é de origem

mais recente, tendo-se informações consolidadas em nível nacional a partir de

julho/1994.

Dado o volume de atendimentos realizados (1 bilhão e meio por ano,

aproximadamente), as informações são coletadas agregadamente: número de

atendimentos realizados por período, unidade, tipo de procedimento realizado, atividade

profissional e grupo de atendimento. Deste número, em 1998 aproximadamente 43%

corresponderam a atos não-médicos (imunizações, atos de agentes comunitários etc.),

25% a consultas e procedimentos médicos, 8% a procedimentos odontológicos, 18% a

exames e 6% a procedimentos terapêuticos. O custo da maior parte destes procedimentos

é muito baixo, provocando que, caso a coleta fosse individualizada, haveria um grande

ônus tanto em termos de custo como de tempo de atendimento.

Para procedimentos de alto custo ou complexidade, como terapia renal

substitutiva (hemodiálise), quimioterapia etc., existe a rotina, conhecida como APAC, de

coleta das informações em nível individual e identificada, para permitir maior controle de

sua utilização. Paulatinamente serão incorporados novos procedimentos a esta rotina.

Com isto, são poucas as possibilidades de uso destas informações no estudo das

violências, no momento.

Cartão Nacional de Saúde

Page 178: PRESOS NO BRASIL

O Cartão Nacional de Saúde está sendo implantado como projeto piloto em 44

municípios, numa população total de 12.000.000 de habitantes, aproximadamente, em

curto prazo.

Uma das principais vantagens deste instrumento será a possibilidade de

individualização dos atendimentos, com captação de maior volume de informações a um

baixo custo, suprindo, principalmente, as deficiências de informações sobre assistência

ambulatorial.

Além disto, dada a identificação unívoca do paciente, poder-se-á fazer o

acompanhamento dos atendimentos realizados, tanto ambulatoriais como hospitalares.

Atualmente, por exemplo, não é possível saber quantas das internações são, na realidade,

reinternações, seja por seqüelas, seguimento, recidivas, transferências ou outros motivos,

o que será resolvido quando da possibilidade de ligar os eventos através da identificação

do paciente.

Acesso às informações

Uma das características marcantes do setor saúde em relação às suas informações

é a multiplicidade de visões sobre os dados. Assim, um grupo de dados sobre as

internações hospitalares pode ser visto por uma óptica de gestão da unidade assistencial,

de controle e avaliação dos serviços, de planejamento de ações, de economia em saúde,

de epidemiologia etc., em diferentes níveis de agregação espacial.

Por este motivo, o Ministério da Saúde, além de divulgar os principais

indicadores de saúde, tem como política liberar também o máximo possível de

informações individualizadas, sem, é óbvio, identificar o cidadão. Com isto, o

investigador pode analisar os dados segundo seu próprio interesse, não ficando limitado a

um conjunto estanque de informações.

Os principais meios de disseminação de informações de saúde são:

• IDB – Indicadores e Dados Básicos: disponibilizados em folders e pela Internet

(http://www.datasus.gov.br/cgi/idb98/matriz.htm), contém um conjunto de 80

indicadores demográficos, socio-econômicos, de mortalidade, de morbidade e fatores

Page 179: PRESOS NO BRASIL

de risco, de recursos e de cobertura de serviços, provenientes de diversas fontes –

Ministério da Saúde, IBGE, IPEA, MPAS – detalhados em nível Brasil, regiões,

estados e regiões metropolitanas. Estas informações são atualizadas anualmente.

• Perfis de Saúde, sendo implantado, poderá ser acessado pela Internet fornecendo um

conjuntos variados de indicadores em nível municipal, metropolitano, microrregional

e estadual, construídos dinamicamente e atualizados continuamente.

• Anuários, boletins, cadernos e outras publicações, publicadas regularmente pelo

Ministério da Saúde e entidades vinculadas, referentes a assuntos específicos.

• Bases de Dados de Mortalidade, Nascidos Vivos, Internações Hospitalares, Produção

Ambulatorial e Procedimentos de Alto Custo/Complexidade, distribuídos

gratuitamente pelo Ministério da Saúde, com o maior detalhamento possível, pela

Internet (http://msbbs.datasus.gov.br), pelo MS-BBS – Bulletin Board System do

Ministério da Saúde ou por CD-ROM.

• Software de tabulação (TabWin), que permite tabular os dados das bases de dados

citadas com grande facilidade e flexibilidade, distribuído também pela Internet

(http://www.datasus.gov.br/tabwin/tabwin.htm), pelo MS-BBS ou por CD-ROM.

• Tabulações pela Internet (TabNet), que fazem tabulações como no TabWin, porém

diretamente pela Internet (http://www.datasus.gov.br/tabnet/tabnet.htm) sobre as

bases de dados citadas, porem mais agregadamente.

• Apurações especiais, solicitadas quando os instrumentos citados não satisfizerem à

necessidade.

Portanto, há uma grande variedade de meios de acesso às informações de saúde,

com suficiente flexibilidade para satisfazer à maior parte das necessidades apresentadas,

tendo-se trabalhado continuamente no aperfeiçoamento das ferramentas e das bases de

dados.

Conclusões

Como foi visto, as bases de dados de informações de saúde contém uma gama

variada de dados de grande utilidade para o estudo de acidentes e violências. Temos:

• facilidade de acesso, principalmente pela Internet ou por CD-ROM;

• informações detalhadas;

• softwares adequados para análise dos dados;

• grande abrangência e cobertura; e

• permitem múltiplas visões, de acordo com o interesse.

Page 180: PRESOS NO BRASIL

Assim, é possível a obtenção de diversos indicadores que permitirão analisar e

comparar a situação de saúde nesta área.

Certamente, ainda há deficiências de informação em algumas áreas,

principalmente no atendimento ambulatorial. Iniciativas, como o Cartão Nacional de

Saúde, têm sido tomadas, tanto por parte do Ministério da Saúde como pelos gestores

estaduais e municipais, no sentido de, cada vez mais, ampliar a abrangência, a cobertura

e o detalhamento das informações coletadas, permitindo melhores condições de análise

da situação de saúde, levando a tomada de ações eficazes na solução de problemas

existentes.

Page 181: PRESOS NO BRASIL

ACIDENTES E VIOLÊNCIAS NO BRASIL:

BREVE ANÁLISE DE SUAS FONTES DE DADOS*

M. HELENA P. DE MELLO JORGE

1. Preliminares

A violência e seu incremento, no Brasil, constituem-se em problema importante,

causado por fatores vários, devendo, em razão disso, ser enfrentado, também

multisetorialmente.

Do ponto de vista da saúde, embora se possa afirmar que esse setor não entra na

gênese da violência, verifica-se ser exatamente sobre ele que vai recair o maior ônus das

conseqüências desta. A violência que lesa e a violência que mata o fazem em números

elevados e crescentes e representam indicadores negativos para o setor saúde: elevam os

níveis da mortalidade, principalmente em idades jovens, roubam anos à vida produtiva de

seus habitantes e oneram, em valores absolutamente não desprezíveis, os gastos com

tratamentos hospitalares. Acresce, ainda, que, em muitos casos, embora não tirem a vida,

são responsáveis por seqüelas, às vezes, irreversíveis, deixadas em sua população.

Em razão disso, é necessário conhecê-la, estudá-la e entendê-la para verificar

quem é vulnerável, em que grau e por que motivos, pois somente a partir deste cenário

será possível montar ações e programas, bem como ter metas, visando à reversão do

quadro que ela, hoje, delineia no Brasil.

2. Fontes

O impacto da violência no setor saúde pode ser estudado por meio de várias

fontes, nenhuma delas, entretanto, absolutamente completa e correta. Elas não se somam

e não se interligam. Alguns dos seus efeitos não chegam sequer a ser conhecidos, ou

porque as fontes não existem ou porque não estão sistematizadas ou ainda porque a

própria população deixa de comunicar o fato às autoridades competentes.

* Preparado para apresentação no Forum de Debates Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil:

uma discussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas. IPEA, Rio de Janeiro, julho de 2000.

Page 182: PRESOS NO BRASIL

Na figura 1 é possível ver, de uma população exposta a acidentes e violências, as

possíveis condições das vítimas e as fontes de dados por meio das quais seu estudo pode

ser feito.

Figura 1. População exposta a acidentes , possíveis condições das vítimas e fontes de

dados.

Fonte: Mello Jorge e col., 1997.

Nota: (BO = Boletim de Ocorrência; SIM = Sistema de Informação de Mortalidade; SIH-SUS = Sistema

de Informações Hospitalares).

2.1. Boletim de Ocorrência Policial (BO) e assemelhados

Corresponde a instrumento usado nas Delegacias de Polícia; é complementado

por outros registros feitos em diferentes níveis de governo (exemplo, Boletim do

Departamento Nacional de Estradas de Rodagem), ou pela Policia Militar.

SIMSIMSIM

Ileso Alta curado Alta curado

óbito óbito óbito

AltaseqüeladoHospital

Pronto

SocorroAcidentes/Vio

lências

B.O.?

SistemaResgate

SIH-SUS

População

?

Page 183: PRESOS NO BRASIL

Não existe padronização desses documentos sendo que as informações coletadas,

também, não são homogêneas. O fluxo seguido pela informação é variável e não há

nenhum sistema organizado nacionalmente.

Vários estudos têm mostrado haver sub-registro de eventos, nesta fonte,

principalmente de acidentes (e, dentre estes, em geral, os mais leves como destaca

ANDRADE, 1998) e de casos de violência doméstica que, em geral, não são levados ao

conhecimento das autoridades policiais, como salientam vários autores. É possível,

também haver sub-enumeração em relação a possíveis suicídios e/ou tentativas quando,

muitas vezes, há investigações a serem feitas.

O número de feridos e o número de mortos não coincide com os levantamentos de

outras fontes, pois seus valores referem-se somente aos indivíduos que se encontravam

nessa condição no momento e local do evento.

Outro problema é que os dados, na maioria das vezes, são gerados com conotação

jurídico/penal. Exemplo disso é o número de homicídios em São Paulo (O Estado de São

Paulo, 24 de julho de 2000): levantado pelos órgãos de estatística do Município

(Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade - PROAIM) esse número

é maior do que o advindo da Secretaria da Segurança Pública (via Delegacias de Polícia),

onde esse total vai corresponder ao número de homicídios mais o número de latrocínios,

mais o número de lesões corporais e estupros seguidos de morte, e assim sucessivamente,

visto que, cada um deles se constitui em entidade jurídica específica.

2.2. Dados hospitalares

O sistema nacional que abrange estes dados refere-se às internações realizadas em

hospitais próprios e conveniados com o Sistema Único de Saúde, o qual, segundo

estimativas, corresponde a cerca de 70 a 80% do total da assistência hospitalar do país

(TRAVASSOS e LEBRÃO, 1998).

O Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), padronizado em nível

nacional, é gerido pelo Ministério da Saúde e dá conta de que cerca de 6% das

internações ocorridas nesses hospitais são decorrentes de causas externas. Não abrange

Page 184: PRESOS NO BRASIL

dados de Pronto-Socorro e Serviços de Emergência, mas refere, em boa medida, a

situação relativa à morbidade por lesões e envenenamentos no país.

Os dados relativos às causas dizem respeito ao diagnóstico principal de cada

paciente atendido, no caso de acidentes e violências, à natureza das lesões apresentadas,

ou seja o motivo pelo qual cada paciente foi internado: traumatismo de crânio, fratura,

politraumatismo, queimaduras, etc.

A partir de 1998 (em decorrência de determinação do Ministério da Saúde, 1997)

estão sendo codificados, também, os tipos de causas externas que provocaram as lesões

que ocasionaram a internação. Este fato representou um ganho do ponto de vista da

informação e, por via de conseqüência, da saúde pública, na medida em que não se

previnem os traumatismos, os ferimentos, mas sim as causas que os geraram, ou seja, os

acidentes, as quedas, os espancamentos, as tentativas de suicídios ou homicídios.

O sistema deixa de ser enfocado em maior detalhe, visto ser objeto de outra

apresentação neste Seminário.

2.3. Dados de óbitos (SIM/MS)

Todas as mortes ocorridas no Brasil são conhecidas por meio da “Declaração de

óbito (DO)”; do ponto de vista de sua informação, constituem o Sistema de Informação

de Mortalidade – SIM/MS – gerido pelo Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI)

do Ministério da Saúde. Esse Sistema foi implantado em 1975/76 e, especificamente para

óbitos por causas externas, segundo determinação legal (Código de Processo Penal, art.

162) têm sua informação inicial gerada por Declaração de Óbito preenchida no Instituto

Médico Legal, com base na necropsia da pessoa falecida e em laudo policial.

O Sistema abrange todas as áreas do país e dispõe de dados a partir de 1977 até o

presente havendo, para o Brasil, defasagem de cerca de dois anos entre a ocorrência da

morte e a liberação dos dados para os usuários (em julho de 2000, estão sendo

disponibilizados os dados referentes a 1998).

Page 185: PRESOS NO BRASIL

O Sistema se mostra ainda deficiente, em quantidade e em qualidade, para certas

áreas menos desenvolvidas e mais distantes dos grandes centros, visto que em alguns

locais a cobertura não é completa e existem óbitos dos quais se desconhece a causa

(Ministério da Saúde - RIPSA - 1999). Estima-se, entretanto, que, relativamente às

causas externas, a sub-enumeração de mortes seja pequena, bem como, melhor, a sua

qualidade, em decorrência de envolvimento, desses eventos, com a polícia e com a

justiça (LAURENTI e MELLO JORGE, 1996).

Dessa forma, com documento básico - DO e fluxo de informação padronizados,

pode-se afirmar que o sistema é universal e abrangente, permitindo, seus dados, uma boa

visão dos acidentes e violências que levam à morte. É importante esclarecer que somente

em cerca de 10% do total de mortes por acidentes e violências, não é possível conhecê-la

detalhadamente (são casos em que se sabe que a morte foi decorrente de acidente ou

violência, mas a informação não foi suficiente para detalhar sequer, se intencional ou

acidental). Outro aspecto precisa ser lembrado é o de que, no SIM/MS, estão computadas

as mortes conseqüentes a causas externas, qualquer que seja o intervalo decorrido entre o

evento lesivo e a morte. Desde que, a juízo do médico, passa ser estabelecido um nexo de

causalidade entre o evento e a morte, este é considerado como a causa básica do óbito.

Este fato é importante porque diz respeito, assim, não apenas aos óbitos ocorridos no

momento do acidente/violência, mas mesmo às mortes que se verificam tardiamente

(inclusive, as decorrentes de seqüelas, segundo definição internacional).

♦ Os dados do SIM/MS e estão disponíveis em:

1º) Papel: Anuários de Mortalidade de 1997 a 1995

Mortalidade Brasil, biênio 1996/97 (no prelo)

2º) Meio magnético

• CD-ROM 1979 a 1996

• CD-ROM 1997 e 1998 (em elaboração)

• Internet 1979 a 1997.

Page 186: PRESOS NO BRASIL

♦ O que permite o SIM/MS

1º) Séries temporais: 1977 ao presente.

Para 1977 e 1978, em algumas Unidades da Federação (UF), os dados

referem-se somente às Capitais, razão pela qual sugere-se usar a informação

de 1979 em diante.

2º) Séries geográficas: Brasil, Regiões, UF e Municípios.

Os dados podem ser obtidos segundo local de residência. Para

conhecer o local de ocorrência é preciso cautela, na medida em que a variável

26 da DO refere-se ao local de ocorrência da morte e não ao local de

ocorrência do evento.

3º) Dados sócio-demográficos

Correspondem aos itens de identificação (Campo II da DO) (Figura 2)

Page 187: PRESOS NO BRASIL

Figura 2. Declaração de óbito - Campo II - identificação.

Para o conhecimento de algumas variáveis, tipo sexo e idade, o nível

de preenchimento é, praticamente, igual a 100%. Para outras, como por

exemplo, "ocupação habitual e ramo de atividade", deixa um pouco a desejar

(MELLO JORGE e GOTLIEB, 2000; ARRUDA, 1997; OLIVEIRA e

PEREIRA, 1997

4º) Causa básica de morte

O conceito de causa utilizado na DO é o relativo à causa básica, assim

entendida com o “tipo de causa externa que deu origem à lesão que levou à

morte”. Trata-se de definição internacional, dada pela Organização Mundial

de Saúde (OMS, 1995). Segundo regras internacionais, essa causa é extraída

da descrição das causas de morte feita pelo médico que preencheu o

documento (variável 49), combinada, nas mortes decorrentes de causas

externas, com as informações das variáveis 56 a 60 da DO (Figura 3).

Os dados disponíveis para o Brasil foram codificados sob a vigência

de diferentes revisões da Classificação Internacional de Doenças, Lesões e

Causas de Morte - CID - mas a compatibilização entre essas classificações é

perfeitamente possível de ser feita. A Classificação Internacional de Doenças,

em sua 10ª Revisão, em vigor no Brasil desde 1996 (para dados de

mortalidade) apresenta as causas externas em seu Capítulo XX, sendo que as

mesmas podem ser agrupadas para efeitos didáticos, em acidentes de

Page 188: PRESOS NO BRASIL

transporte, demais acidentes, lesões auto-infligidas (suicídios) e agressões e

intervenções legais (homicídios) (Anexo 1).

Figura 3. Declaração de óbito - Campos relativos às causas.

A análise dessas variáveis tem possibilitado conhecer as estimativas do risco de

morrer por causas externas e seus tipos. No Brasil, em fins da década de 70, verifica-se

um predomínio das taxas de mortalidade por causas acidentais, principalmente acidentes

de trânsito, que, entretanto, em meados dos anos 80 são ultrapassadas pelos óbitos

decorrentes de homicídios (Figura 4). Especificamente quanto a estas causas, nota-se que

suas taxas, no país, entre 1979 e 1998 tiveram um aumento apreciável que se torna ainda

maior se se consideram somente os valores relativos ao sexo masculino.

Page 189: PRESOS NO BRASIL

Figura 4. Taxas* de mortalidade por causas externas segundo tipos, sexo masculino,

Brasil, 1977/98.

* Taxas por 100.000 habitantes.

2.4. Outras fontes

♦ Comunicação de Acidente de Trabalho - CAT

A CAT é o instrumento usado nacionalmente para a notificação de acidente do

trabalho ao Instituto Nacional de Seguridade Social, para fins de concessão de benefícios.

Esse documento representa a principal fonte de informação para o estudo da morbi-

mortalidade ocupacional.

O sistema de informação dela decorrente, entretanto, não é completo, visto que

exclui os trabalhadores autônomos, os empregados domésticos e os vinculados a outros

77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98

Anos

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

50T

axa

Acidentes de trânsito Suicídios Homicídios

Page 190: PRESOS NO BRASIL

sistemas previdenciários, bem como os que trabalham sem carteira assinada. Esse fato

dificulta o estabelecimento do perfil epidemiológico da população trabalhadora no país,

razão pela qual algumas propostas estão sendo feitas no sentido, tanto de uma maior

abrangência quanto da melhoria dos dados coletados (LAURENTI e MELLO JORGE,

1999).

♦ Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas - SINITOX

Foi instituído pelo Ministério da Saúde em 1980 e originou-se da necessidade de

se criar um sistema abrangente, de alcance nacional, capaz de fornecer dados precisos

sobre os efeitos de medicamentos e demais agentes tóxicos no país.

Em 1997, estava formado por uma rede de 31 Centros de Controle de

Intoxicações, em 16 estados brasileiros. Embora em 1995 tivessem sido registrados, no

Brasil, 50.264 casos de intoxicação humana (MS, SINITOX, 1999), o Sistema padece,

ainda, de importante sub-notificação, causada, fundamentalmente, pela não

obrigatoriedade do registro, pela inexistência de uniformidade em relação aos dados

coletados, bem como pelo, ainda, pequeno número de centros existentes no país.

♦ Sistema de Resgate

A inexistência de diretrizes nacionais para o atendimento de emergência,

particularmente o pré-hospitalar, levou alguns estados a criarem seus próprios serviços,

independentemente de uma linha mestra de planejamento, instalação e operacionalização.

Dessa forma, sem qualquer padronização, criaram-se onde esses serviços existem,

formas diferentes de coletar informações. Não há nenhum sistema de informação que

congregue esses dados e mesmo os boletins são preenchidos de modo, às vezes,

inadequado e incompleto. A título de exemplo, o Sistema de Resgate de São Paulo,

relativamente às ocorrências de 1998, assim as distribui (tabela 1).

Page 191: PRESOS NO BRASIL

Tabela 1. Atendimento do Sistema de Resgate segundo tipo, São Paulo, 1998.

Tipo %Acid. Trânsito com vítima 27,37Acid. Trânsito com vítima presa nas

ferragens1,65

Atropelamento 10,32Acidente pessoal 2,87Parturiente 3,61Demente 0,21Caso Clínico 27,03Queda 20,35Tentativa Suicídio 1,39Aborto 0,26Lesão Corporal (agressão) 4,93Estupro 0,01Total 100,0

2.5. Os atendimentos de emergência e as seqüelas: os dois extremos de uma

estatística não conhecida.

Os atendimentos em serviços de emergência (Pronto Socorro) não estão também

incluídos em nenhum sistema de informação de base epidemiológica, fato que,

evidentemente, sub-dimenciona o estudo de lesões decorrentes de acidentes e violências.

ANDRADE, 1996, ao estudar acidentes de transporte terrestre em Londrina, PR, mostrou

que, das vítimas conhecidas por diferentes fontes de informação, 92% foram atendidas

em Pronto Socorro e, destas, somente 11,8% foram internadas (87,4% tiveram alta no

próprio Serviço e 0,8% faleceram nessa Instituição).

Por outro lado, acompanhando as vítimas internadas, pode-se constatar que,segundo o tipo de saída elas podem estar enquadradas nas que esta especifique se opaciente está curado ou apresenta algum tipo de seqüela. Aliás, muitas vezes, nem opróprio prontuário hospitalar registra o fato o que dificulta não só dimensionar oproblema, como classificar essas seqüelas segundo uma série de aspectos importantes atédo ponto de vista social (FARIAS, 1995).

3. Considerações finais

A alocação que se faz, atualmente, dos acidentes e violências como problema de

Saúde Pública, é incontestável. O objetivo de suas políticas públicas deve ser, assim, o de

Page 192: PRESOS NO BRASIL

ações voltadas para a reversão desse quadro, visando à redução da morbi-mortalidade por

essas causas. É claro que, devido ao fato de que nessa problemática estão envolvidos

diferentes setores, órgãos e segmentos sociais, sua resolução vai implicar, também, o

concurso de outras áreas, além da sociedade em geral.

Entretanto, o panorama epidemiológico, relativo ao comportamento de cada tipo

de causas externa e cada tipo de vítima, precisa ser estabelecido e, nesse contexto, é

necessário que as bases de dados existentes, e/ou que venham a existir, dêem conta de

produzir as informações de que se necessitam.

Os sistemas de informação devem ser ágeis e atualizados, além de precisarem

estar estruturados de forma integrada, objetivando a vigilância completa desses eventos

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, S.M. Acidentes de transporte terrestre: Uma análise dos eventos e dasvítimas, São Paulo, 1998. [Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Saúde Públicada USP].

ARRUDA, D.M.C. Grandes Sistemas Nacionais de Informação em Saúde: revisão e

discussão da situação atual. Informe Epidemiológico do SUS, 4: 7-46, 1997.

FARIAS, G.M. Deficiências, incapacidades e desvantagens decorrentes de causasexternas: análise dos pacientes internados no IOT-HC FMUSP, 1991. São Paulo, 1995[Tese de Doutorado – Escola de Enfermagem da USP].

LAURENTI, R. e MELLO JORGE, M.H. Indicadores de mortalidade por acidentes de

Trabalho. S.Paulo, 1999 (Trabalho realizado por solicitação do Ministério do Trabalho e

Emprego).

LAURENTI, R. e MELLO JORGE, M.H. O Atestado de Óbito. S. Paulo, Centro

Brasileiro de Classificação de Doenças, 1996.

MELLO JORGE, M.H. e col. Acidentes e violência no Brasil: II- Análise da

mortalidade. Revista de Saúde Pública, 31(Suplemento), São Paulo, 1997.

Page 193: PRESOS NO BRASIL

MELLO JORGE, M.H. e GOTLIEB, S.L.D. As condições de saúde no Brasil:

restrospecto de 1979 a 1995. Rio de Janeiro, Ed. FIOCRUZ, 2000.

MINISTÉRIO DA SAÚDE – RIPSA – Rede Interagencial de Informação para a Saúde,

1999 (Internet).

MINISTÉRIO DA SAÚDE, SINITOX. Estatística anual de casos de intoxicação eenvenenamento. Brasil, 1998. Brasília, 1999.

OLIVEIRA, H. e PEREIRA, I.P.A. Estatísticas de Mortalidade e Nascidos Vivos:considerações sobre principais problemas. Informe Epidemiológico do SUS, 3: 15-19,1997.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação Estatística Internacional deDoenças e Problemas Relacionados à Saúde – 10ª Revisão. São Paulo. Centro da OMSpara a Classificação de Doenças em Português, 1995.

TRAVASSOS, C. e LEBRÃO, M.L. Morbidade hospitalar nos jovens. IN CNPD. Jovens

acontecendo na trilha das Políticas Públicas. Brasília, 1998.

Page 194: PRESOS NO BRASIL

DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS

UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FORUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência eSegurança Pública no Brasil:Uma Discussão sobre asBases de Dados eQuestões Metodológicas

3º Encontro:Averiguação e Inquérito Policial; Denúncia eAbertura de Processo no Ministério Público

Organização:Daniel Cerqueira (IPEA)Julita Lemgruber (CESeC/UCAM)Leonarda Musumeci (CESeC/UCAM)

AGOSTO DE 2000

Page 195: PRESOS NO BRASIL

FÓRUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: UmaDiscussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas

2º Encontro:AVERIGUAÇÃO E INQUÉRITO POLICIAL; DENÚNCIA EABERTURA DE PROCESSO NO MINISTÉRIO PÚBLICO

ARTIGOS

• INTRODUÇÃO

• Sistemas de Informações Criminais: construindo uma metodologia deintegração de dados e de análise do fluxo da justiça criminal do Estado deSão Paulo

Renato Sérgio de Lima

• Averiguação e Inquérito Policial, Denúncia e Abertura de Processo noMinistério Público

Jésus Trindade Barreto Junior

• O Inquérito Policial

Guaracy Mingardi

• Ministério Púbico – Atribuições e Sistemas de Informações

Marcos José da Hora Faria

Page 196: PRESOS NO BRASIL

SISTEMAS DE INFORMAÇÕES CRIMINAIS: CONSTRUINDOUMA METODOLOGIA DE INTEGRAÇÃO DE DADOS E DE

ANÁLISE DO FLUXO DA JUSTIÇA CRIMINAL DO ESTADO DESÃO PAULO1.

RENATO SÉRGIO DE LIMA

Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo; Analista de Projetos da Fundação Sistema Estadualde Análise de Dados – Seade. Foi Gerente de Unificação de Informações e Estatísticas da SecretariaNacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça (gestões José Carlos Dias e José Gregori).

A centralidade do crime e da violência na vida cotidiana de grande parcela da

população do país impõe desafios consideráveis ao planejamento de políticas públicas de

Segurança. Contudo, cabe destacar que o crescimento da criminalidade observado, a

partir das estatísticas oficiais, pode estar refletindo uma série de outros fenômenos que

não o efetivo aumento no cometimento de crimes desta natureza. Vale lembrar que, como

fontes de informação, dados estatísticos, em sua maioria produzidos pelo Estado,

implicam necessariamente a contextualização dos resultados obtidos. Logo de início é

importante ressaltar um ponto-chave na produção sobre o tema no Brasil. Vários estudos

e documentos já enfatizaram a inexistência, no país, de sistemas integrados de

informações criminais. Ainda hoje, não existe uma tradição de produção sistemática de

dados sobre criminalidade e sobre o sistema de justiça criminal, o que em muito dificulta

os diagnósticos propostos (Fundação João Pinheiro, 1988; Assembléia Legislativa do

Estado de São Paulo/Seade, 1999).

No caso específico de São Paulo, há uma série de órgãos produtores de

informações2 e um número considerável de dados à disposição. Contudo, essas

informações ou são geradas com finalidades outras que não o acompanhamento

estatístico, ou são produzidas na lógica interna de cada uma das várias instâncias de

governo e, portanto, não são comparáveis entre si, dificultando a realização de análises

adequadas sobre o contexto urbano do crime e da violência e sobre o funcionamento das

agências que compõem o sistema de justiça criminal. Já há alguns anos, a Fundação

Seade vem reunindo dados e referências sobre a produção de estatísticas e estudos na

1 - Este texto tem por base projeto em execução na Diretoria Adjunta de Produção de Dados, da FundaçãoSeade, sob supervisão de Luiz Henrique Proença Soares. Os slides apresentados são resultado deprocessamento especial feito por Lilian Liye Konishi e assessoria de Ana Lucia Pastore Schztmeyer.2 . Dados sobre crimes ou mortes violentas são produzidos/disponibilizados pela Secretaria de SegurançaPública, pela Fundação Seade, pelo Ministério da Saúde, pelo IBGE, pelo Proaim da Prefeitura Municipalde São Paulo e, eventualmente, por universidades e instituições de ensino e pesquisa.

Page 197: PRESOS NO BRASIL

área de Segurança Pública, sistema de justiça criminal, criminalidade e violência,

procurando capacitar-se para o desenvolvimento de metodologias de tratamento

integrado dessas informações. E é um pouco a partir desta experiência que pretendo

discutir o uso e a integração de informações criminais neste Fórum, não no sentido de

esgotar todo o estoque de dados existentes ou de fornecer um diagnóstico completo sobre

os temas, mas sim no de oferecer um roteiro dos principais desafios que os fenômenos

analisados impõem.

Em termos metodológicos, como já foi discutido no primeiro encontro deste

Fórum, no que diz respeito ao acompanhamento e à avaliação da tendência da

criminalidade, em geral utilizam-se informações sobre ocorrências policiais registradas,

as quais, a bem da verdade, carecem de fidedignidade, pois seus registros não refletem a

totalidade dos fenômenos, deixando de fora uma parcela não mensurada da realidade.

Esta corresponderia às chamadas "cifras ocultas", que podem ser explicadas pelo fato de

somente uma parcela das vítimas denunciar, aos distritos policiais3, as ofensas criminais

sofridas, pela intervenção de critérios burocráticos de avaliação e desempenho

administrativo, pelas "negociações" que ocorrem entre vítimas, agressores e autoridades,

bem como pelo provável impacto da implementação de políticas determinadas de

segurança pública. Assim sendo, mudanças no comportamento das pessoas em relação à

postura diante destes fenômenos poderiam refletir no movimento dos dados oficiais4.

Entretanto, a despeito de todos os problemas indicados, as séries estatísticas oficiais

indicam a tendência da criminalidade, sobretudo quando cobrem um período

relativamente longo e, mesmo não correspondendo ao total de crimes cometidos,

conseguem detectar a evolução e os movimentos dos crimes durante determinado período

(Adorno, 1994; Coelho, 1987; Paixão, 1983; Feiguin & Lima, 1995).

3. É nos distritos policiais, unidade administrativa e operacional da Polícia Civil do Estado de São Paulo,que um crime é oficialmente relatado ao Estado e transforma-se num procedimento administrativo legal(Boletim de Ocorrência). Somente após essa fase é que o Estado toma conhecimento oficial da existênciade um crime e, dependendo da avaliação da autoridade policial, pode iniciar uma investigação sobre suascausas e autores. Sabe-se que, muitas vezes, um crime chega ao conhecimento de autoridades policiais,mas não é oficialmente relatado, tendo sua mediação e resolução encaminhadas através de outrosmecanismos que não o Sistema de Justiça Criminal.4. Para solucionar este problema adota-se, usualmente, pesquisas de opinião que investigam a incidênciacriminal junto à população. A aplicação de instrumentos do tipo das Pesquisas de Vitimização pode,quando articulada com as estatísticas oficiais, permitir uma análise mais refinada da realidade, mas tambémé influenciada por uma série de limitações metodológicas destas pesquisas. Entre elas, uma principal masnão única limitação destaca que o questionamento de determinada amostra da população sobre crimes e

Page 198: PRESOS NO BRASIL

O problema é que, devido às particularidades da forma de organização do sistema

de justiça criminal brasileiro, pouca informação pode ser extraída além das estatísticas

sobre o movimento da criminalidade. Poucos são os estudos que avaliam o

funcionamento do sistema de justiça criminal de forma integrada e numa perspectiva de

fluxo, ou seja, analisando quem é absorvido pelo sistema, quais os crimes cometidos e

qual o tratamento dispensado. Esta perspectiva foi inaugurada no Brasil pelo Prof.

Antonio Luís Paixão, que era ligado à UFMG e a Fundação João Pinheiro, e teve

desdobramentos em alguns outros trabalhos acadêmicos (Sérgio Adorno, do NEV/USP;

Joana Vargas, da Unicamp; e Heleiéth Safioti, da PUC/SP). Contudo, ao que tudo indica,

estes trabalhos não lograram sucesso em influenciar as políticas públicas da área e

provocar a integração das informações de todas as instâncias e poderes que lidam com

justiça criminal no país. Não existe nenhuma análise que consiga dar uma visão ampla do

funcionamento deste sistema e enfrentar esta limitação é um dos objetivos que vêm sendo

perseguidos pela Fundação Seade.

Nesta linha, a Fundação Seade obteve autorização do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo e das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e de

Administração Penitenciária, além de ter firmado convênio com o Ministério Público

Estadual, para produzir um diagnóstico do “Estado das Artes” das estatísticas produzidas

no âmbito destas instituições e verificar a possibilidade de uma análise integrada dos

dados disponíveis. Aproveitando uma decisão comercial da empresa de processamento de

dados do Estado de São Paulo - Prodesp, tomada na década de 80, que integrou todas as

bases de segurança pública e justiça criminal, independentemente de quem era o

“cliente”, está sendo possível desenhar um modelo de integração de dados e de análise do

fluxo da justiça criminal do estado, desde 1976.

MOSTRAR SLIDE 1

Assim, o trabalho com a Documentação do Sistema de Justiça e Segurança da

Fundação Seade, composto pelos dados fornecidos pela Prodesp, deverá gerar uma

análise ampla do fluxo da Justiça Criminal para o Estado de São Paulo que, inclusive,

poderá servir de piloto para a constituição do Módulo de Estatísticas Criminais do

Infoseg - por se tratar das mesmas informações que alimentam o Infoseg e, ainda, do

banco de dados dos Cadastros Geral, de Processos e de Inquéritos do Sistema Criminal

violência parte do pressuposto que a pessoa perguntada saiba o que é o crime perguntado e que ela oreconheça como tal (Lima, 1997).

Page 199: PRESOS NO BRASIL

permitem uma série de cruzamentos de dados que podem nos oferecer uma visão do

funcionamento da justiça.

Inicialmente, foi possível delinear três recortes analíticos, a partir dos quais deverão

surgir novos desdobramentos e recortes. São eles:

1. Fluxo de Justiça propriamente dito, isto é, um estudo das trajetórias dos indivíduos no

interior do Sistema Criminal, desde a ocorrência policial até o cumprimento da pena

no sistema penitenciário, passando pelo inquérito, processo e execução criminal. Este

tipo de análise permite visualizar, em termos estatísticos, as quebras, os

afunilamentos e as rupturas que ocorrem no funcionamento do Sistema Criminal.

Além disso permite o cruzamento de informações biográficas e processuais, gerando

análises sobre o movimento da criminalidade e as respostas institucionais que são

dadas aos crimes e aos criminosos. Podem-se cruzar, entre outras, informações sobre

sexo, naturalidade, profissão, cor da pele do indivíduo com o tipo de crime cometido,

a sentença proferida, a duração da pena, o tipo de estabelecimento em que a pena foi

cumprida, os benefícios concedidos. Podem-se ainda cruzar apenas as informações

processuais, fornecendo um retrato da atuação da Justiça.

2. Contextualização sócio-econômica e demográfica da criminalidade absorvida pelo

Sistema de Justiça. Isto resulta do cruzamento dos dados biográficos daqueles que

ingressam no Sistema Criminal com outras bases de dados como por exemplo

condições de vida, desemprego, migração, etc.

3. Perfil das instituições. A riqueza de informações que podem ser produzidas nos leva a

um quadro do que são as instituições da Justiça e do Sistema Penitenciário no Estado

de São Paulo. A eficácia do Sistema de Justiça Criminal pode ser debatida através da

análise de dados sobre a estrutura administrativa das instituições, quantidade de

processos, número de servidores, tempo de duração dos processos, vagas em

penitenciárias, entre outros. Com isso, espera-se acumular informações que possam

orientar o planejamento de políticas públicas e estratégias institucionais para a

prevenção e mediação dos conflitos de natureza criminal.

Enfim, a riqueza deste tipo de análise é enorme e, como exemplo, os slides

apresentados a seguir podem dar uma idéia do potencial de uso dos dados e das

vantagens de integração das informações.

DEMAIS SLIDES

MUDANÇAS LEGISLATIVAS

Page 200: PRESOS NO BRASIL

Analisando dados sobre reincidência e sobre fluxo carcerário, observa-se que, se a

rotatividade de sentenciados não é grande, a de indivíduos é menor ainda, pois uma

mesma pessoa, via de regra, faz mais do que uma passagem pelo sistema ao longo da

vida (Alesp e Seade, 1999). Este entrave no fluxo carcerário tem sido ainda mais

agravado após a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) - acrescida

pelas Leis 8.930/94 e 9.677/98 - que prevê o cumprimento integral da pena em regime

fechado, diminuindo a rotatividade de boa parte das vagas nas penitenciárias paulistas. A

exigüidade de vagas para o regime semi-aberto e a dificuldade de manter programas em

meio aberto inviabilizam a progressão da pena prevista na lei. Dois tipos de distorções

resultam dessa situação: ou alguns indivíduos permanecem presos no regime fechado

quando deveriam estar no semi-aberto, ou alguns são postos em liberdade sem completar

o ciclo da progressão.

Nesta linha, a Secretaria de Administração Penitenciária demonstrou interesse

num estudo que, com base nas informações contidas neste projeto, avalie o impacto de

determinadas políticas públicas ou propostas legislativas nas várias esferas do sistema de

justiça criminal, em especial o novo projeto de Código Penal. A idéia é saber como a

legislação proposta ajudaria a desobstruir o sistema de justiça criminal e qual seria o

incremento populacional no sistema carcerário paulista, afinal alguns especialistas

indicam que esta população carcerária poderia dobrar num curto espaço de tempo (de

80.000 presos para mais de 150.000). Se isto se confirmar, a questão que se coloca é

dimensionar os recursos necessários para atender tal demanda e avaliar se a relação

custo/benefício justifica esta reforma. Estamos desenhando este estudo e em breve

podemos trazer novos subsídios à discussão.

Bem, eu gostaria novamente de agradecer o convite para participar deste Fórum e

espero que as discussões realizadas no âmbito do Fórum permitam suscitar iniciativas

que procurem integrar informações. Para além do investimento em tecnologia da

informação, que tem sido a tônica do Governo Federal no Infoseg, por exemplo, é

necessário pensar uma política de informações criminais, que englobe todas as

instituições do sistema e que estimule uma discussão sobre a qualidade, a integridade e a

correição das informações. Ao meu ver, este modelo proposto pela Fundação Seade

atende a esses objetivos, mas muito mais ainda deve ser feito. Muito obrigado!.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Ministério da Justiça (1995). Censo Penitenciário Nacional. Brasília.

Page 201: PRESOS NO BRASIL

_________ (2000). Sistema Integrado de Informações em Justiça e Segurança Pública -Infoseg. Brasília.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (1987). Indicadores sociais de criminalidade. BeloHorizonte. (Relatório de Pesquisa).

FUNDAÇÃO SEADE (Vários anos). Anuário estatístico do Estado de São Paulo. SãoPaulo.

__________/Universidade de São Paulo. Núcleo de Estudos da Violência (1995). Ojovem e a criminalidade urbana em São Paulo. São Paulo. (Relatório de Pesquisa).

LIMA, Renato Sérgio de. (1997). Acesso à Justiça e reinvenção do espaço público:saídas possíveis de pacificação social. Revista São Paulo em Perspectiva, SãoPaulo, 11(3): jul-set. pp. 86-91.

POMPEU, João Cláudio B. (2000). Levantamento de registros de homicídios no Brasil(1979-98). Brasília: Ministério da Justiça. (Relatório da Secretaria Nacional deSegurança Pública).

SAFFIOTI, Heleieth (1994). Violência de gênero no Brasil atual. Estudos Feministas, 2ºsemestre, p 443-461. número especial

SÃO PAULO (Estado). Assembléia Legislativa/ FUNDAÇÃO SEADE (1999). FórumSão Paulo Século XXI: Caderno Segurança. São Paulo.

Page 202: PRESOS NO BRASIL

AVERIGUAÇÃO E INQUÉRITO POLICIAL, DENÚNCIA EABERTURA DE PROCESSO NO MINISTÉRIO PÚBLICO

JÉSUS TRINDADE DE BARRETO JUNIOR

Exposição no Fórum de Debates “Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: Uma Discussão

sobre Bases de Dados e Questões Metodológicas”, promovido pelo IPEA – Instituto de Pesquisas

Econômicas Aplicadas e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes,

no Rio de Janeiro, RJ, dia 25 de agosto de 2000.

Posição no evento: Tema proposto: “Averiguação e Inquérito Policial, Denúncia e Abertura de Processo no Ministério

Público” (sic). Enfoque do expositor: “Processualidade e interação entre polícia e o Ministério Público” (sic).

Expositor: Jésus Trindade Barreto Junior, Delegado de Carreira da Polícia Civil de Minas Gerais, Classe

Especial, ex-Secretário Executivo do Conselho de Segurança Pública da Região Sudeste, Assessor Especial do

Secretário da Segurança Pública, Chefe da Divisão Psicopedagógica da Academia de Polícia Civil de Minas

Gerais, ex-Vice Presidente da Associação dos Delegados de Carreira da Polícia Civil de Minas Gerais, ex-

Secretário Geral do Conselho Estadual de Trânsito e professor da Acadepol. Telefones: (31) 379.5027; (31)

379.5023. E:mail: [email protected]

SENHORAS E SENHORES,

MEUS CUMPRIMENTOS AOS DIRIGENTES E PESQUISADORES DO IPEA POR ESTA

INICIATIVA QUE, AFINAL, PROJETA ESTA CASA PARA A DESAFIANTE QUESTÃO DA

SEGURANÇA PÚBLICA, DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE. CERTAMENTE, A

PRODUÇÃO CIENTÍFICA A RESPEITO DA TEMÁTICA RECEBE, COM ESTE NOVO ATOR, UM

APORTE DE QUALIDADE INESTIMÁVEL.

EXTERNO MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS PELA OPORTUNIDADE,

DEBITANDO A MINHA PRESENÇA NESTE ENCONTRO, EU DIRIA, À IMPRUDENTE

INDICAÇÃO DE AMIGOS, COMO OS PROFESSORES CLÁUDIO BEATO, DA UNIVERSIDADE

FEDERAL DE MINAS GERAIS, E JAQUELINE MUNIZ, DO CENTRO DE ESTUDOS DE

SEGURANÇA E CIDADANIA DA UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES, QUE VIRAM

UTILIDADE NA PARTICIPAÇÃO DIRETA, AQUI, DE UM PROFISSIONAL DA ÁREA DE

SEGURANÇA DO CIDADÃO. POR ISTO MESMO E ANTES DE TUDO, QUERO ENFATIZAR A

MINHA CONDIÇÃO DE SIMPLES PROFISSIONAL DO SETOR DE POLÍCIA, ONDE ATUO HÁ

QUASE DUAS DÉCADAS E, PORTANTO, CONTAR COM A MAIOR CONDESCENDÊNCIA DESTE

PÚBLICO QUALIFICADO POR EXPERIMENTADOS PESQUISADORES E INTELECTUAIS. ISTO

PORQUE, NA VERDADE E QUANDO MUITO, O MÁXIMO QUE ME ATRIBUO É A VIRTUDE DE

Page 203: PRESOS NO BRASIL

UM OBSERVADOR COMUM BASTANTE CRÍTICO MAS, RESSALTO, NÃO PRATICO ESTA

QUALIDADE COM OS INSTRUMENTOS SEGUROS DA RAZÃO METÓDICA, COMO O FAZ O

CIENTISTA SOCIAL. DESTA FORMA, O QUE TENHO A OFERECER SÃO AS IMPRESSÕES –

MERAS IMPRESSÕES - DE ALGUÉM QUE VIVE O COMPLEXO COTIDIANO DA INSERÇÃO DO

APARELHO DE POLÍCIA NOS CENÁRIOS DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE. QUE

PRIVEM A MINHA ABORDAGEM, PORTANTO, DOS RIGORES PRÓPRIOS DO OLHAR

ACADÊMICO.

Começaria, buscando contextualizar esta fala, destacando a fragmentação do

chamado sistema de justiça criminal, cuja idealizada articulação esbarra na ausência de

política que estabeleça uma ética e uma técnica solidária entre as instituições públicas

responsáveis pelos diversos campos da ação preventiva e repressiva sobre a

criminalidade. Esta situação muitas vezes ultrapassa a mera assincronia, estendendo-se

para o terreno dos antagonismos, da disputa pela hegemonia no respectivo espaço

público. Considero importante destacar este aspecto, sobretudo no que concerne à dita

inexistência de uma técnica de articulação, porque é justamente aí que vai se expandir o

vazio de uma política estrutural de informações sobre o fenômeno da violência e da

criminalidade, o que propiciaria o ajuste sistêmico dos passos de cada ator estatal

envolvido e, por extensão, da sociedade civil e centros de pesquisa, cuja participação no

processo é essencial.

O TEMA PROPOSTO CONCENTRA-SE NO INSTITUTO DO INQUÉRITO POLICIAL.

NÃO OBSTANTE ESTE FÓRUM JÁ VIR CONSOLIDANDO UMA TRAJETÓRIA QUE DEMARCA

OS CAMPOS DE AÇÃO DE CADA INTEGRANTE DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL, É

OPORTUNO INICIAR PONTUANDO O LUGAR DAS INVESTIGAÇÕES POLICIAIS NO FLUXO

PROCEDIMENTAL DA INTERVENÇÃO DO ESTADO SOBRE FATO CRIMINAL. COMO É

NOTÓRIO, O CRIME É INVESTIGADO, SALVO POUCAS EXCEÇÕES, PELAS POLÍCIAS CIVIS,

NO ÂMBITO DOS ESTADOS FEDERADOS E PELA POLÍCIA FEDERAL, NO ÂMBITO DA

UNIÃO. ESTAS ORGANIZAÇÕES REALIZAM AQUILO A QUE O DIREITO DENOMINA

POLÍCIA JUDICIÁRIA, ISTO É, FUNDAMENTALMENTE A ATIVIDADE DE EXECUÇÃO DA

PESQUISA PRELIMINAR À AÇÃO PENAL EM JUÍZO. PORTANTO, TEMOS QUE NOS ATER AO

CARÁTER DUAL DO SISTEMA PERSECUTÓRIO VIGENTE: UMA FASE EXTRA-JUDICIAL,

PRATICADA POR ÓRGÃOS DO PODER EXECUTIVO E OUTRA FASE QUE SE DESENVOLVE

Page 204: PRESOS NO BRASIL

NO JUÍZO CRIMINAL, PORTANTO, SOB ÓRGÃO DO PODER JUDICIÁRIO COM A

PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

NA EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, DE 1941, O

ENTÃO MINISTRO DA JUSTIÇA, FRANCISCO CAMPOS, ASSIM SE PRONUNCIOU:

“FOI MANTIDO O INQUÉRITO POLICIAL COMO PROCESSO PRELIMINAR OU

PREPARATÓRIO DA AÇÃO PENAL, GUARDADAS AS SUAS CARACTERÍSTICAS

ATUAIS. O PONDERADO EXAME DA REALIDADE BRASILEIRA, QUE NÃO É

APENAS A DOS CENTROS URBANOS, SENÃO TAMBÉM A DOS REMOTOS

DISTRITOS DAS COMARCAS DO INTERIOR, DESACONSELHA O REPÚDIO DO

SISTEMA VIGENTE.

O PRECONIZADO JUÍZO DE INSTRUÇÃO, QUE IMPORTARIA LIMITAR A

FUNÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL A PRENDER CRIMINOSOS, AVERIGUAR A

MATERIALIDADE DOS CRIMES E INDICAR TESTEMUNHAS, SÓ É PRATICÁVEL

SOB A CONDIÇÃO DE QUE AS DISTÂNCIAS DENTRO DO SEU TERRITÓRIO DE

JURISDIÇÃO SEJAM FÁCIL E RAPIDAMENTE SUPERÁVEIS. PARA ATUAR

PROFICUAMENTE EM COMARCAS EXTENSAS, E POSTO QUE DEVA SER

EXCLUÍDA A HIPÓTESE DE CRIAÇÃO DE JUIZADOS DE INSTRUÇÃO EM CADA

SEDE DO DISTRITO, SERIA PRECISO QUE O JUIZ INSTRUTOR POSSUÍSSE O

DOM DA UBIQÜIDADE. DE OUTRO MODO, NÃO SE COMPREENDE COMO

PODERIA PRESIDIR A TODOS OS PROCESSOS NOS PONTOS DIVERSOS DA SUA

ZONA DE JURISDIÇÃO, A GRANDE DISTÂNCIA UNS DOS OUTROS E DA SEDE DA

COMARCA, DEMANDANDO, MUITAS VEZES, COM OS MOROSOS MEIOS DE

CONDUÇÃO AINDA PRATICADOS NA MAIOR PARTE DO NOSSO HINTERLAND,

VÁRIOS DIAS DE VIAGEM. SERIA IMPRESCINDÍVEL, NA PRÁTICA, A QUEBRA

DO SISTEMA: NAS CAPITAIS E NAS SEDES DE COMARCA EM GERAL, A

IMEDIATA INTERVENÇÃO DO JUIZ INSTRUTOR, OU A INSTRUÇÃO ÚNICA; NOS

DISTRITOS LONGÍNQUOS, A CONTINUAÇÃO DO SISTEMA ATUAL. NÃO CABE,

AQUI, DISCUTIR AS PROCLAMADAS VANTAGENS DO JUÍZO DE INSTRUÇÃO.

PRELIMINARMENTE, A SUA ADOÇÃO ENTRE NÓS, NA ATUALIDADE, SERIA

INCOMPATÍVEL COM O CRITÉRIO DE UNIDADE DA LEI PROCESSUAL. MESMO,

PORÉM, ABSTRAÍDA ESSA CONSIDERAÇÃO, HÁ EM FAVOR DO INQUÉRITO

POLICIAL, COMO INSTRUÇÃO PROVISÓRIA ANTECEDENDO À PROPOSITURA DA

Page 205: PRESOS NO BRASIL

AÇÃO PENAL, UM ARGUMENTO DIFICILMENTE CONTESTÁVEL: É ELE UMA

GARANTIA CONTRA APRESSADOS E ERRÔNEOS JUÍZOS, FORMADOS QUANDO

AINDA PERSISTE A TREPIDAÇÃO MORAL CAUSADA PELO CRIME OU ANTES

QUE SEJA POSSÍVEL UMA EXATA VISÃO DE CONJUNTO DOS FATOS, NAS SUAS

CIRCUNSTÂNCIAS OBJETIVAS E SUBJETIVAS. POR MAIS PERSPICAZ E

CIRCUNSPECTA, A AUTORIDADE QUE DIRIGE A INVESTIGAÇÃO INICIAL,

QUANDO AINDA PERDURA O ALARMA PROVOCADO PELO CRIME, ESTÁ

SUJEITA A EQUÍVOCOS OU FALSOS JUÍZOS A PRIORI, OU A SUGESTÕES

TENDENCIOSAS. NÃO RARO, É PRECISO VOLTAR ATRÁS, REFAZER TUDO,

PARA QUE A INVESTIGAÇÃO SE ORIENTE NO RUMO CERTO, ATÉ ENTÃO

DESPERCEBIDO. POR QUE, ENTÃO, ABOLIR-SE O INQUÉRITO PRELIMINAR OU

INSTRUÇÃO PROVISÓRIA, EXPONDO-SE A JUSTIÇA CRIMINAL AOS AZARES DO

DETETIVISMO, ÀS MARCHAS E CONTRAMARCHAS DE UMA INSTRUÇÃO

IMEDIATA E ÚNICA? PODE SER MAIS EXPEDITO O SISTEMA DE UNIDADE DE

INSTRUÇÃO, MAS O NOSSO SISTEMA TRADICIONAL, COM O INQUÉRITO

PREPARATÓRIO, ASSEGURA UMA JUSTIÇA MENOS ALEATÓRIA, MAIS

PRUDENTE E SERENA.” (GRIFEI)

FUGINDO DELIBERADAMENTE DE CONCEITOS ESTRITAMENTE JURÍDICOS, EU

DIRIA QUE O FATO CRIMINAL, ANTES QUE ASSIM SEJA FORMALMENTE CONSIDERADO, É

UM DRAMA INDIVIDUAL OU COMUNITÁRIO QUE, TÃO LOGO ACONTECIDO, PROVOCA

UMA NOTÍCIA QUE CHEGA, NA MAIOR PARTE DAS VEZES À POLÍCIA OSTENSIVA, NO

BRASIL, A POLÍCIA MILITAR. OU, POR OUTRAS VEZES, DIRETAMENTE À POLÍCIA DE

INVESTIGAÇÕES, ISTO É, ÀS POLÍCIAS CIVIS OU MESMO, RESIDUALMENTE, À POLÍCIA

FEDERAL (DIGO “RESIDUALMENTE” PORQUE AS COMPETÊNCIAS DESTA ÚLTIMA,

EMBORA FORMALMENTE SUBMETIDAS À MESMA LÓGICA E PRESCRIÇÕES LEGAIS DA

POLÍCIA JUDICIÁRIA, EM GERAL ESCAPAM DA ROTINA DA CHAMADA CRIMINALIDADE

COMUM, VIOLENTA OU NÃO, MAS QUE EM QUALQUER HIPÓTESE É AQUELA QUE AFETA

MAIS DIRETAMENTE O COTIDIANO DAS PESSOAS E GRUPOS).

Neste caso – o da ocorrência do crime - em que pontualmente fracassou o ideal de

prevenção, a polícia ostensiva tem a função de intervir no cenário do conflito, segundo o

plano normativo de suas técnicas de ação, visando a minimizar os efeitos do fato, ordenar

Page 206: PRESOS NO BRASIL

racionalmente os dados obtidos no calor da intervenção e, pois submetê-los, por meio de

boletim escrito (e, se for o caso, conduzindo pessoas e objetos relacionados) à polícia de

investigações. Estamos, aqui, no instante da abordagem estatal imediata, que acontece no

ápice das tensões próprias de cada episódio criminal. Ainda neste mesmo plano, devo

lembrar que o próprio cidadão também pode recorrer diretamente à Polícia Civil,

oferecendo seu relato, sua reclamação, realizando aquilo que o jargão popular chama de

queixa. O mesmo se dá com o Ministério Público e o Poder Judiciário, cujas autoridades

devem requisitar a providência investigativa, quando o fato inquinado lhes chegar ao

conhecimento de algum modo. Em quaisquer das hipóteses, a conseqüência é a

deflagração do procedimento investigativo pela Polícia Civil, isto é, o início do inquérito

policial.

O IMPORTANTE É PERCEBERMOS QUE A NOTÍCIA É A IGNIÇÃO DO

PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO. E UM DOS TEMAS FUNDAMENTAIS NO

ENCADEAMENTO EFICAZ DAS AÇÕES DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS DO SISTEMA É A

QUALIDADE DA NOTÍCIA. ESTE ASSUNTO FOI DISCUTIDO NO ENCONTRO PASSADO E

SUPONHO QUE DEVIDAMENTE APROFUNDADO, EMBORA EU NÃO SAIBA SE O ENFOQUE SE

APROXIMA DESTE QUE ORA SUSTENTO. DE QUALQUER MODO, ENQUANTO RESULTADO

DE UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO QUE FAZ A POLÍCIA OSTENSIVA SOBRE O FATO

CRIMINAL, A NOTÍCIA COMPOSTA POR ELA É O RESULTADO DE UMA SÉRIE DE AÇÕES

COMPLEXAS QUE, A DEPENDER DA PRÓPRIA QUALIDADE, INCREMENTARÃO O PASSO

SEGUINTE, O PASSO INVESTIGATIVO. DE OUTRO MODO, PODER-SE-IA DIZER QUE

QUANTO MAIS ADSTRITA A PADRÕES TÉCNICOS FOR A ABORDAGEM OSTENSIVA, MAIS

CHANCES ELA TEM DE APREENDER COM RIGOR OS ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO

CAPTADOS A CADA ACIONAMENTO QUE RECEBE. DESTA CONSIDERAÇÃO, DECORRE A

EXIGÊNCIA DE MODELOS DE ARTICULAÇÃO ENTRE A POLÍCIA OSTENSIVA E A POLÍCIA

DE INVESTIGAÇÕES, FATO TRADICIONALMENTE TRATADO NA FRIEZA DE CÂNONES

ESSENCIALMENTE JURÍDICO-FORMAIS, GENÉRICOS E, POIS, MUITO POUCO SUJEITOS

AOS RIGORES DE PROTOCOLOS TÉCNICOS-CIENTÍFICOS SOLIDÁRIOS ENTRE AS

ORGANIZAÇÕES.

Page 207: PRESOS NO BRASIL

AFIRMEI CERTA VEZ QUE

“UMA DAS QUESTÕES QUE SE DESTACAM NA PRÁTICA E QUE ACABA

PERCEBIDA NO IMAGINÁRIO POPULAR É A BAIXA QUALIDADE TÉCNICA DO

APARELHO POLICIAL E A POUCA VISIBILIDADE DE SEU COMPROMISSO ÉTICO

COMO INSTRUMENTO DE AÇÕES PELA SOLUÇÃO PACÍFICA DOS CONFLITOS.

ESTAS DEFICIÊNCIAS, EM TERMOS GERAIS, SE REVELAM: PRIMEIRO, PELO

ANACRONISMO DOS PARADIGMAS DOUTRINÁRIOS E OPERATIVOS DAS

POLÍCIAS; SEGUNDO, PELA ASSIMETRIA DE VALORES E PROCEDIMENTOS

QUE CADA QUAL PRATICA, OFICIAL E OFICIOSAMENTE. PARTINDO DAÍ,

SURGE A DEMANDA PELA MAIOR QUALIFICAÇÃO DAS ESTRUTURAS

ORGÂNICAS DAS INSTITUIÇÕES POLICIAIS E DOS SEUS SERVIDORES, DE

MODO A QUE SE POSSA PENSAR, COMO POLÍTICA PÚBLICA, NUM SISTEMA

HOMOGÊNEO, DO PONTO DE VISTA DA EFICIÊNCIA E EFICÁCIA DAS

INSTITUIÇÕES.”

CONTINUEI:

“O ANACRONISMO E A ASSIMETRIA EM DESTAQUE SE REVELAM POR

DISTORÇÕES HISTÓRICAS QUE PODERIAM SER ASSIM ENFEIXADAS:

- INEXISTÊNCIA DE UMA DEFINIÇÃO PARADIGMÁTICA DO CICLO COMPLETO

DA AÇÃO POLICIAL [POLÍCIA OSTENSIVA E POLÍCIA DE INVESTIGAÇÕES],

CONTEMPLANDO-SE AÍ O PAPEL DE OUTROS ATORES PÚBLICOS E PRIVADOS;

- INEXISTÊNCIA DE PROTOCOLOS DE INTERAÇÃO SISTÊMICA ENTRE AS

POLÍCIAS, NAS COMPLEXAS FASES DO CICLO EM QUESTÃO.

[ESTE É O VAZIO] DE UMA POLÍTICA SISTEMÁTICA PARA A AÇÃO POLICIAL

NO PAÍS. COM EFEITO, AINDA QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

TENHA SIDO EXPLÍCITA COM O INOVADOR CAPÍTULO SOBRE A SEGURANÇA

PÚBLICA, DENTRO DO TÍTULO DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES

DEMOCRÁTICAS, TUDO FICOU NA ESTRITA DEPENDÊNCIA DA

REGULAMENTAÇÃO QUE ELA MESMA PREVIU NO PARÁGRAFO 7º DO ARTIGO

144. EM OUTRAS PALAVRAS, A NAÇÃO FICOU PRIVADA DA NORMA JURÍDICA

Page 208: PRESOS NO BRASIL

INFRACONSTITUCIONAL QUE DEFINIRIA O CARÁTER SISTÊMICO DA AÇÃO

POLICIAL, INTEGRANDO FORMALMENTE OS PAPÉIS QUE ELA

GENERICAMENTE DISTRIBUIU ÀS POLÍCIAS ESTADUAIS E ÀS FEDERAIS, VALE

DIZER, ÀQUELAS QUE TÊM A MISSÃO DO TRABALHO OSTENSIVO E AS QUE

TÊM A MISSÃO DO TRABALHO INVESTIGATÓRIO. SERIA DE SE ESPERAR QUE

TAL LEI [OU TAIS LEIS] ERIGISSE(M) CONCEITOS ALINHADOS SOBRE OS DOIS

GRANDES RAMOS DO FAZER POLICIAL, VALE REPETIR, O OSTENSIVO E O DE

INVESTIGAÇÃO, DEFININDO AÍ O MENCIONADO CICLO COMPLETO DA AÇÃO

POLICIAL.”

POR ISTO, PROCEDIMENTOS COMO A CHAMADA AVERIGUAÇÃO,

EXPRESSAMENTE MENCIONADA NO PROGRAMA DESTE FÓRUM, SÃO RESULTADO DO

EMPIRISMO COM QUE SE REALIZAM OS PASSOS DA AÇÃO POLICIAL. NA VERDADE, A

AVERIGUAÇÃO É UMA FIGURA ESTRANHA AO ORDENAMENTO FORMAL, ENTRETANTO,

PRATICADA COM MUITA FREQÜÊNCIA COMO MODO DE SUPERAR A EVENTUAL

PRECARIEDADE DA NOTÍCIA INICIAL, TORNANDO-A MAIS APROPRIADA A UM, DIGAMOS,

JUÍZO RACIONAL DE ADMISSIBILIDADE E CONSISTÊNCIA DO FATO DESCRITO. QUERO

DIZER COM ISTO QUE, A DEPENDER DA QUALIDADE DO RELATO PRELIMINAR, TEM-SE

TAL OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÕES INTRÍNSECAS DELE MESMO, QUE UM PRÉVIO

EXERCÍCIO DE DEFINIÇÃO DO CENÁRIO CRIMINAL SE IMPÕE, NA JUSTIFICATIVA DE QUE

SE DÊ UM MÍNIMO DE SUBSTÂNCIA À INAUGURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL, QUE É UM

PROCEDIMENTO FORMAL. NESTE SENTIDO, EU PARTICULARMENTE ENTENDO QUE TODA

INVESTIGAÇÃO DEVE ESTAR ABRIGADA DESDE LOGO PELA OFICIALIZAÇÃO DO

RESPECTIVO INQUÉRITO, JUSTAMENTE PORQUE O INQUÉRITO NÃO É UM INSTRUMENTO

ACUSATÓRIO, MAS SIM UM INSTRUMENTO DE DEMONSTRAÇÃO RACIONALMENTE

ORDENADA DE UM FATO CONCRETO CUJAS CARACTERÍSTICAS SE AJUSTAM À

DESCRIÇÃO LEGAL DE UM COMPORTAMENTO CRIMINAL. ASSIM, A POSSÍVEL

INCONSISTÊNCIA DE UMA NOTÍCIA PODE SER DE TAL MONTA QUE INVIABILIZE A

DEFLAGRAÇÃO DE PASSOS INVESTIGATIVOS EFICAZES, DE MODO QUE O INQUÉRITO POR

ALI SE FINDA, SOB O OLHAR DO MINISTÉRIO PÚBLICO, EM JUÍZO, ONDE PODE

AGUARDAR O SURGIMENTO DE NOVOS INDICADORES.

ASSIM, MESMO QUE A NOTÍCIA SEJA GRAVEMENTE OBSCURA, NADA IMPEDE QUE

CONSTITUA OBJETO DA INAUGURAÇÃO OFICIAL DO INQUÉRITO SOB O ENUNCIADO

GENÉRICO DO FATO RELATADO. NESTA HIPÓTESE, AQUILO A QUE CHAMEI DE JUÍZO DA

Page 209: PRESOS NO BRASIL

CONSISTÊNCIA DO RELATO INICIAL, NO CASO, UM JUÍZO NEGATIVO DA CONSISTÊNCIA,

SE FARÁ POR DEMONSTRAÇÃO DENTRO DO PRÓPRIO INSTRUMENTO ESCRITO QUE,

NESTE CASO, NÃO PROPICIOU O AVANÇO DA INVESTIGAÇÃO. ASSIM, GARANTE-SE A

DEMONSTRAÇÃO QUALITATIVA DOS ESFORÇOS PROFISSIONAIS, DE NATUREZA TÉCNICO-

CIENTÍFICA, EM BUSCA DO DESVELAMENTO DO FATO. ESTE ASPECTO É, POIS,

PARTICULARMENTE IMPORTANTE, PORQUE O DESCOMPASSO DAS CIFRAS DE CADA

ORGANIZAÇÃO SE EXPLICA EXATAMENTE PELA PLURALIDADE DE PROCEDIMENTOS NÃO

HOMOLOGADOS FORMALMENTE E A AUSÊNCIA DE UMA POLÍTICA TECNICAMENTE

ADEQUADA NA CONSOLIDAÇÃO DOS DADOS. ASSIM, SE O INQUÉRITO FOSSE

NECESSARIAMENTE INAUGURADO EM CADA CASO, AINDA QUE DEBAIXO DE NOTÍCIA

PRECÁRIA, PODER-SE-IA ALINHAR COERENTEMENTE CADA NOTIFICAÇÃO INICIAL

(BOLETINS DE OCORRÊNCIA, “QUEIXAS”, REQUISIÇÕES MINISTERIAIS OU JUDICIAIS,

ETC.), ATÉ O FINAL DA AÇÃO INVESTIGATIVA. DAÍ PARA DIANTE, O MESMO

ALINHAMENTO PRECISARIA SER OBSERVADO, ATÉ QUE SE ENCERRE COMPLETAMENTE

O CICLO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL, ISTO É, ATÉ A DECISÃO FINAL

IRRECORRÍVEL DO JUDICIÁRIO.

HÁ UMA TENDÊNCIA SURGIDA EM MINAS GERAIS MAS QUE VEM SE AFIRMANDO

NOUTRAS UNIDADES DA FEDERAÇÃO, QUE BUSCA A SISTEMATIZAÇÃO DO CICLO

COMPLETO DA AÇÃO POLICIAL PELO ALINHAMENTO DAS ATIVIDADES DE ENSINO E

PESQUISA, INFORMAÇÕES E CONTROLE DE QUALIDADE, CONFORME MOSTRA O

ESQUEMA EXIBIDO A SEGUIR:

Page 210: PRESOS NO BRASIL

TAL CONCEPÇÃO BUSCA, NA PRÁTICA, A FUSÃO DAS ESCOLAS DE POLÍCIA, DAS

RESPECTIVAS ÁREAS DE INFORMAÇÃO E DOS SEUS ÓRGÃOS DE CONTROLE INTERNO.

ACREDITA-SE QUE ESTE MODELO POSSA FORJAR O AJUSTE SISTÊMICO, FUNDADO

SOBRETUDO NA COERÊNCIA DO ENSINO E PESQUISA NO ÂMBITO DAS ORGANIZAÇÕES, DA

MESMA POLÍTICA DE CAPTAÇÃO, ANÁLISE E DIFUSÃO DE DADOS E, FINALMENTE, PELA

SUPERVISÃO SOLIDÁRIA DOS MÉTODOS NORMALIZADOS EM CONJUNTO PELAS

ORGANIZAÇÕES. A PREVISÃO, DESTA FORMA, É QUE OS ATOS FINALÍSTICOS SE

EXERÇAM SOB O RIGOR DO MÉTODO CIENTÍFICO, DEBAIXO DE UM ARRANJO

INSTITUCIONAL QUE PRIVILEGIA A SOLIDARIEDADE ÉTICA E TÉCNICA DAS

ORGANIZAÇÕES. NESTE SENTIDO, O CAMPO DAS INFORMAÇÕES POLICIAIS E DE

SEGURANÇA PÚBLICA ABARCARIA TODA A MASSA DE DADOS PRODUZIDOS AO LONGO DE

TODO O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL, NO SEUS COMPLEXOS PASSOS, VENCENDO O

EMPIRISMO, AS IMPROVISAÇÕES, A ASSIMETRIA. ALÉM, É CLARO, DE SE ARTICULAR

COM OS CENTROS DE PESQUISA E OUTROS ATORES EMPENHADOS NA CONSTRUÇÃO E

EXECUÇÃO DE POLÍTICAS SOCIAIS.

FÓRUM DE DEBATES:CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASILFÓRUM DE DEBATES:CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL

PROCESSUALIDADE E INFORMAÇÕES NA FASE DA INVESTIGAÇÃO POLICIAL

EXPOSITOR: Jésus Trindade Barreto Júnior

SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA PÚBLICA DE MINAS GERAIS

CAMPOS DE SISTEMATIZAÇÃO DO CICLO COMPLETO DA INVESTIGAÇÃO POLICIALOSTENSIVA E INVESTIGATÓRIA

TÁTICA

CAMPO DA EDUCAÇÃOE CULTURA

CAMPO DA EDUCAÇÃOE CULTURA

CAMPO DAS INFORMAÇÕESPOLICIAIS E DA

SEGURANÇA PÚBLICA

CAMPO DAS INFORMAÇÕESPOLICIAIS E DA

SEGURANÇA PÚBLICACAMPO DA CORREIÇÃOCAMPO DA CORREIÇÃO

.FORMAÇÃO.PESQUISA

.NORMALIZAÇÃO

.FORMAÇÃO.PESQUISA

.NORMALIZAÇÃO

.CAPTAÇÃO.ANÁLISE.DIFUSÃO

.CAPTAÇÃO.ANÁLISE.DIFUSÃO

.CONTROLE DEQUALIDADE.PUNIÇÃO

.CONTROLE DEQUALIDADE.PUNIÇÃO

CAMPO OPERATIVO

.EXECUÇÃO DE ETAPASDO CICLO DA AÇÃO POLICIAL

.EXECUÇÃO DE ETAPASDO CICLO DA AÇÃO POLICIAL

ESTRA-TÉGIA

Page 211: PRESOS NO BRASIL

MAS O INQUÉRITO POLICIAL É UMA INSTITUIÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL

PENAL. PORTANTO, ELE SE AFINA A UMA LÓGICA DE CARÁTER JURISDICISTA. ELE SE

DESTINA À PERSECUÇÃO PENAL EM JUÍZO, OU SEJA, ELE TEM POR META A DESCRIÇÃO

TÉCNICA DO EVENTO CRIMINAL, VISANDO A DAR SUBSTÂNCIA À DISCUSSÃO DA TESE

PUNITIVA CONTRA O OU OS INFRATORES DE CADA CASO. DO PONTO DE VISTA FORMAL,

ELE NÃO VINCULA A ACUSAÇÃO MINISTERIAL, A DEFESA E TAMPOUCO A DECISÃO

JUDICIAL, UMA VEZ CONSTITUIR-SE EM PEÇA DE CARÁTER INFORMATIVO, PRATICADA

SEM O CONTRADITÓRIO. CONTUDO, A DEPENDER DA SUA FORÇA INTERNA, DO PODER

DE CONVENCIMENTO DO CONJUNTO DE SEUS ARGUMENTOS, ELE INCREMENTA,

QUALIFICA TODAS ESTAS AÇÕES. MAS, PERCEBA-SE, ESTE “PODER” DO INQUÉRITO

POLICIAL NÃO DECORRE SENÃO DA SUA INTEGRIDADE COMO PEÇA FRIAMENTE

DESCRITIVA QUE, QUANTO MAIS TÉCNICO-CIENTÍFICA FOR, MAIS CREDIBILIDADE

GANHA COMO SUPORTE DAQUELAS ATIVIDADES PRATICADAS NO JUÍZO CRIMINAL, OU

SEJA, DO EMBATE CONTRADITÓRIO ENTRE TESES DE ACUSAÇÃO E DEFESA. ASSIM, EU

OUSARIA SUSTENTAR QUE HÁ DUAS QUALIDADES ESSENCIAIS QUE DISTINGUEM O

CAMPO POLICIAL DO CAMPO JUDICIAL: A) UMA QUALIDADE DESCRITIVA,

EMINENTEMENTE TÉCNICO-CIENTÍFICA, QUE CORRESPONDE À FASE DO INQUÉRITO E,

B) UMA QUALIDADE JURÍDICO-AXIOLÓGICA, EMINENTEMENTE VALORATIVA DAS

CIRCUNSTÂNCIAS E CONDUTAS DESCRITAS, QUE CORRESPONDE À FASE DO PROCESSO-

CRIME.

POIS BEM, JUSTAMENTE POR SUBMETER-SE À LÓGICA JURISDICISTA, O

INQUÉRITO DEIXOU DE EVOLUIR COMO INSTRUMENTO DE PERCEPÇÃO DE OUTRAS

VARIÁVEIS DE SIGNIFICAÇÃO PSICOLÓGICA, SOCIAL, POLÍTICA, ANTROPOLÓGICA QUE

DETERMINAM A CRIMINALIDADE. ASSIM, DIRIGINDO-SE AO PROCESSO-CRIME, PERDE-

SE NAS IMPOSIÇÕES DA EXIGÊNCIA PUNITIVA, DESPREZANDO ASPECTOS QUE

INCREMENTARIAM UM CONHECIMENTO DAS QUALIDADES MAIS ÍNTIMAS DE CADA

EVENTO CRIMINAL. DE OUTRA FORMA, O CONCERTO DESTAS QUALIDADES ÍNTIMAS

PODERIA SERVIR DE INSUMO PARA A PRÓPRIA AÇÃO POLICIAL, ABRINDO ESPAÇOS PARA

A CONSTRUÇÃO DINÂMICA DE TÉCNICAS PREVENTIVAS E REPRESSIVAS MAIS AJUSTADAS

AOS ASPECTOS PONTUAIS DOS DIVERSOS TIPOS DE CRIMINALIDADE.

Page 212: PRESOS NO BRASIL

NESTE SENTIDO, O INQUÉRITO POLICIAL NÃO SE AFIRMOU COMO UM

INSTRUMENTO DE PESQUISA QUE, ALÉM DE SERVIR COMO PEÇA INFORMATIVA PARA A

AÇÃO PUNITIVA, PRATICADA NO ÂMBITO DO JUDICIÁRIO, TAMBÉM SERVISSE COMO

PEÇA NUCLEAR DE APREENSÃO DAS QUALIDADES INTERNAS DE CADA PRÁTICA

DELITUOSA. E, É CLARO, UM INSTRUMENTO PARA SER LIDO NÃO APENAS COMO

EXPRESSÃO TÓPICA DE UM COMPORTAMENTO SUBJETIVO – O COMPORTAMENTO DO OU

DOS CRIMINOSOS - ADSTRITO EXCLUSIVAMENTE À LÓGICA DO DESVIO INDIVIDUAL. O

INQUÉRITO PODE E DEVE SER PERCEBIDO SEGUNDO ESTRATÉGIAS QUE LHE SUBMETAM

A UMA LEITURA ESTATÍSTICA, PARA DAÍ PENETRAR-SE NA QUALIDADE DOS DADOS,

PARA A PERCEPÇÃO DE CONJUNTURAS E DA PRÓPRIA ESTRUTURA DA DELINQÜÊNCIA.

ENTENDO QUE ESTA DESTINAÇÃO DO INQUÉRITO NÃO SERVIRIA APENAS AOS

INTERESSES ACADÊMICOS E MESMO GOVERNAMENTAIS, MAS SERVIRIA JUSTAMENTE DE

FONTE PARA O APERFEIÇOAMENTO DINÂMICO DO APARELHO DE POLÍCIA E DO PRÓPRIO

SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL COMO UM TODO. EU DIRIA QUE ESTA ORIENTAÇÃO

CONDUZIRIA A POLÍCIA A UM NOVO TIPO DE AÇÃO, BASEADA NA COMPREENSÃO

CRIMINOLÓGICA DO FENÔMENO QUE ABORDA E INSERINDO-A, ÉTICA E TECNICAMENTE,

NA CONDIÇÃO DE EFETIVO PROTAGONISTA DA CIDADANIA.

DENTRO DAQUELA ESTRATÉGIA QUE DESCREVI E CUJO ESQUEMA GRÁFICO

EXIBI, O INQUÉRITO POLICIAL PODERIA GERAR MUITO MAIS ELEMENTOS

INFORMATIVOS DO QUE O FAZ NO SISTEMA ATUAL, EM QUE APENAS PROVOCA A

CHAMADA NOTA DE INDICIAMENTO, ASSENTADA, EM GERAL, NOS GRANDES BANCOS DE

DADOS CORPORATIVOS MANTIDOS PELAS POLÍCIAS CIVIS. ESTA NOTA CONSISTE

SIMPLESMENTE EM DIZER QUEM É OU QUEM SÃO OS SUJEITOS ATIVOS DO DELITO, COM

OS RESPECTIVOS DADOS INDIVIDUALIZADORES (FILIAÇÃO, ENDEREÇO,

DOCUMENTAÇÃO PESSOAL E OUTRAS VARIÁVEIS PURAMENTE FORMAIS) E A

CORRESPONDENTE ADEQUAÇÃO DO COMPORTAMENTO INQUINADO À DESCRIÇÃO DAS

LEIS PENAIS. ORA, O INQUÉRITO, NO SEU NECESSÁRIO APROFUNDAMENTO SOBRE O

DRAMA CRIMINAL, COMPÕE UM RELATO QUE TRAZ EXPRESSÕES – DESPREZADAS NO

SISTEMA VIGENTE – DE QUALIDADES FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DO

FENÔMENO DA CRIMINALIDADE. AINDA AGORA EU ME REFERI ÀS QUALIDADES ÍNTIMAS

DE CADA CASO ABORDADO, JUSTAMENTE AQUELAS DE NATUREZA SOCIAL, POLÍTICA,

ANTROPOLÓGICA OU MESMO PSÍQUICA, QUE DE OUTRA FORMA, QUE NOUTRA CULTURA

DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL – ESPECIALMENTE NA FASE POLICIAL, ONDE NÃO

Page 213: PRESOS NO BRASIL

PREVALECE A LÓGICA DA DISCUSSÃO CONTRADITÓRIA QUE CARACTERIZA O PROCESSO

EM JUÍZO - SERVIRIAM PARA O TRAÇADO DE POLÍTICAS MAIS ADEQUADAS PARA A

PRÓPRIA AÇÃO POLICIAL, E DAÍ PARA O PROCESSO JUDICIAL, SENÃO PARA OUTRAS

AÇÕES GOVERNAMENTAIS E DA PRÓPRIA SOCIEDADE ORGANIZADA.

O INQUÉRITO SE ESTRUTURA PELA CONJUNÇÃO DE DOIS NÚCLEOS DE AÇÃO: O

DA HISTORICIDADE E O DA MATERIALIDADE DO EVENTO CRIMINAL. EM OUTRAS

PALAVRAS, O INQUÉRITO BUSCA DESCREVER AS CIRCUNSTÂNCIAS OBJETIVAS E

SUBJETIVAS DE CADA CASO, COMO DISSE FRANCISCO CAMPOS NO TRECHO JÁ CITADO

AQUI MESMO. PARA FAZÊ-LO, ELE EMPREENDE, OU PELO MENOS DEVERIA

EMPREENDER, UMA DENSA ATIVIDADE DE CHECAGEM PERMANENTE ENTRE

DECLARAÇÕES E DEPOIMENTOS DAS PESSOAS ENVOLVIDAS - SEJAM VÍTIMAS,

TESTEMUNHAS E PROVÁVEIS OU MESMO CONFESSOS AUTORES – E BUSCAR EVIDÊNCIAS

MATERIAIS QUE CONFIRMEM A ARGUMENTAÇÃO SUBJETIVA. A META É DEMONSTRAR

COERENTEMENTE TODOS OS PASSOS DO ACONTECIMENTO E INDICAR OS RESPONSÁVEIS

POR CADA QUAL. DE MODO ESPONTÂNEO, ELE TRABALHA COM O CRITÉRIO

ELEMENTAR DA FORMULAÇÃO DE UMA HIPÓTESE – DECORRENTE DA NOTÍCIA – E A

BUSCA DA RESPECTIVA COMPROVAÇÃO, O QUE FAZ PELA PRÁTICA DE ATOS

COERCITIVOS, BALIZADOS PELOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS INSCRITOS NA

CONSTITUIÇÃO E NO ORDENAMENTO INFRA-CONSTITUCIONAL. OS MECANISMOS

OBEDECEM FUNDAMENTALMENTE A DISPOSITIVOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. E,

TALVEZ AÍ, REPITO, PELA IDEOLOGIA PREDOMINANTEMENTE JURISDICISTA DO

PROCEDIMENTO, A ÚNICA NOTA PRODUZIDA É DE CARÁTER CARTORIAL, DESTINADA

TÃO SOMENTE A INDICAR O ATO DO CHAMADO INDICIAMENTO, VALE DIZER, O ATO

PELO QUAL O PRESIDENTE DAS INVESTIGAÇÕES DIZ AO SISTEMA QUE DETERMINADA

PESSOA É A APONTADA COMO AUTORA DO DELITO. NESTA NOTA HÁ DADOS

INDIVIDUALIZADORES DE CADA CRIMINOSO E A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA PENAL

FORMULADA. NO FUTURO, ADVINDO SENTENÇA CONDENATÓRIA DESTA INDICAÇÃO, O

JUDICIÁRIO RETORNA NOVA INFORMAÇÃO, COMUNICANDO TAL CIRCUNSTÂNCIA, COM

A LEITURA JURÍDICO-FORMAL, DE CARÁTER DECISÓRIO, SOBRE O CASO. NESTE

ÍNTERIM, CASO SOBREVENHAM NOTAS PROCESSUAIS, COMO MANDADOS DE PRISÃO,

MANDADOS DE BUSCA, ALVARÁS DE SOLTURA, TUDO É PROCESSADO NOS CHAMADOS

ARQUIVOS CRIMINAIS, ADMINISTRADOS, EM GERAL, PELAS POLÍCIAS CIVIS.

Page 214: PRESOS NO BRASIL

NÃO OBSTANTE A COMPOSIÇÃO DESTES DADOS FORMAIS, O INQUÉRITO AINDA É

UMA PRÁTICA EMPÍRICA, SUJEITA A MUITAS IDIOSSINCRASIAS. QUESTÕES HISTÓRICAS,

SOBRETUDO AS LIGADAS À PRÁTICA DOS REGIMES AUTORITÁRIOS DEIXARAM HÁBITOS

MUITO ENRAIZADOS NA ATIVIDADE INVESTIGATIVA, EMBORA PRECISEMOS

RECONHECER AVANÇOS MUITO VISÍVEIS.

A QUALIDADE DOS INQUÉRITOS, PORTANTO, FICA MUITO CONDICIONADA À

CAPACIDADE PESSOAL DE CERTOS PROFISSIONAIS OU DE CERTOS ESPAÇOS DE MAIOR

EXCELÊNCIA DENTRO DAS POLÍCIAS CIVIS.

PORTANTO, QUESTÕES COMO A QUALIDADE DOS INQUÉRITOS E TEMPO DE

TRAMITAÇÃO, TAXAS DE INDICIAMENTO, TAXAS DE ESCLARECIMENTO DE CRIMES E

TAXAS DE DENÚNCIAS, PERFIS DE CRIMINOSOS SÃO TODOS TEMAS QUE DIZEM RESPEITO

AO GERENCIAMENTO ADEQUADO DAS INFORMAÇÕES DENTRO DO SISTEMA DE JUSTIÇA

CRIMINAL. VOLTANDO ÀQUELA HIPÓTESE DE INTERAÇÃO, O CAMPO DAS INFORMAÇÕES

POLICIAIS E DE SEGURANÇA PÚBLICA CONSTITUIRIA UM GRANDE LABORATÓRIO DE

TRATAMENTO SISTÊMICO DESTES DADOS, ALINHANDO, CONFORME JÁ DITO, TODO O

FLUXO E REFLUXO DAS AÇÕES PRATICADAS PELOS DIVERSOS ATORES. PORTANTO,

INCIDIRIA NÃO APENAS SOBRE A QUALIDADE DOS INQUÉRITOS, COMO TAMBÉM DOS

RELATÓRIOS DE OCORRÊNCIA, DOS PERFIS CRIMINOLÓGICOS DOS DELINQÜENTES, DA

DENÚNCIA E OUTROS ATOS PROCESSUAIS, INTEGRANDO LOGICAMENTE TODOS OS

DADOS, CONFERINDO-LHES HARMONIA E CONSISTÊNCIA.

BEM, COM ISTO ESPERO TER PERCORRIDO ALGUNS DOS TEMAS BUSCADOS PELO

FÓRUM E, SE FOR O CASO, ESTAREI À DISPOSIÇÃO PARA O DEBATE.

Page 215: PRESOS NO BRASIL

O INQUÉRITO POLICIAL

Guaracy Mingardi

1ª PARTE - O MODELO FORMAL

O inquérito policial é um documento feito pela Polícia Civil e encaminhado ao

Judiciário, que serve como base para um promotor denunciar um indivíduo considerado

autor de determinado delito.

Segundo o nosso modelo policial cabe a Polícia Civil conduzir as investigação

sobre um crime. O responsável pelo inquérito é o Delegado de Polícia, que deve ser

bacharel em direito.

Ao tomar conhecimento de um crime o delegado de polícia deve :

♦ Constatar a existência do delito

♦ Verificar como foi cometido

♦ Descobrir a autoria

♦ Obter as provas

♦ Enviar ao judiciário as informações

♦ Se houver mandado de prisão expedido por um juiz prender o acusado

O inquérito é a forma estabelecida no Título II do Código de Processo Penal,

artigos 4 a 16, de encaminhar as informações ao judiciário. O prazo legal para elaboração

de um inquérito é de trinta dias. Após este prazo o delegado tem de enviar o inquérito

para o judiciário para pedido de prazo. O inquérito bem sucedido termina quando o

delegado redige seu relatório final e o mesmo é utilizado pelo Ministério Público para

fazer a denúncia do réu. Quando não é possível apontar um culpado o inquérito pode ser

arquivado. Normalmente o arquivamento se dá com base numa manifestação do

promotor neste sentido, mas o único que pode determinar o arquivamento de um

inquérito é o juiz.

Page 216: PRESOS NO BRASIL

O núcleo de um inquérito bem sucedido são as provas coletadas pelo delegado

contra o autor do delito. Existem 13 tipos de provas:

1. Coisas apreendidas

2. Informações das vítimas

3. Informações das testemunhas

4. Informações do acusado

5. Acareação

6. Reconhecimento de coisas

7. Reconhecimento de pessoas

8. Documentos

9. Perícias

10. Identificação dactiloscópica

11. Estudo da vida pregressa do acusado

12. Reconstituição

13. Identificação por DNA3

A teoria do inquérito é que a análise destas provas tornaria possível ao delegado

formar convicção sobre a autoria do crime. Formada a convicção ele deve então redigir

seu relatório e apresentá-lo ao judiciário, que o encaminha ao Ministério Público.

Se o promotor não está convencido da culpa, ou então acha as provas muito

frágeis para viabilizar uma condenação, ele tem dois caminhos: encaminhar novamente o

inquérito para o delegado responsável, para que sejam realizadas novas diligências, ou

então pedir arquivamento ao juiz.

Na página seguinte temos um fluxograma dos trâmites de um inquérito de lesão

corporal dolosa.

3 Os textos tradicionais evidentemente não incluem o DNA entre as provas, e também existem dificuldadestécnicas que tornam seu uso pouco freqüente no Brasil.

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Page 218: PRESOS NO BRASIL

2ª PARTE - O INQUÉRITO REAL

Existem apenas duas categorias cuja maioria defende a manutenção do inquérito

na sua forma atual : delegados de polícia e advogados criminalistas. O primeiro grupo

tem fortes motivos corporativos para isto, afinal é uma questão de manutenção do espaço.

Muitos tem medo que qualquer alteração no inquérito abra caminho para sua extinção. Já

o segundo grupo apresenta ao público razões das mais nobres para defender o inquérito,

porém na prática o principal motivo para esta defesa é que o inquérito policial é muito

formal e via de regra mal feito, portanto facilita a defesa dos réus.

Como foi dito anteriormente a Polícia Civil existe para investigar crimes e relatá-

los ao judiciário, que dá prosseguimento ao caso. O problema começa aí, na investigação,

ou melhor, na falta dela. A maioria dos casos não é investigado. Na cidade de São Paulo,

por exemplo, no ano de 1998 foram registradas 618.076 queixas. Apenas 45.890 viraram

inquéritos policiais, ou seja, 7,4% do total. O crime que origina proporcionalmente mais

inquéritos é o homicídio. Todo homicídio, pelo menos em princípio, provoca a abertura

de um inquérito, seja pela delegacia local, seja pelo Departamento de Homicídios4. Já o

furto de veículos, um dos crimes que mais cresceu nos últimos anos, tem um dos índices

mais baixos. De 52.349 veículos furtados, foram instaurados apenas 320 inquéritos nas

delegacias locais, ou seja 0,6%. È fato que a delegacia especializada também instaura

inquéritos, mas não existem estatísticas a respeito disponíveis ao público, o que por si só

é um mau sinal.5

Existem inúmeras desculpas para este estado de coisas, que a polícia está

desmotivada, que passa o tempo cuidando de presos, etc. , mas um dos motivos mais

evidentes é a burocracia que envolve o inquérito policial. Ao instaurar o inquérito o

delegado fica preso a ele. Mesmo que não descubra nada ele não pode deixá-lo de lado,

tem de continuar trabalhando o inquérito até que o juiz resolva arquivá-lo.

4 Uma das armadilhas existentes na análise de dados policiais é ignorar as divisões departamentais. Amenos de um ano pesquisadores anunciaram à imprensa que apenas 705 dos homicídios viravam inquérito.Isto ocorreu porque foram ignorados os números do Departamento de homicídios.

5 Alguns inquéritos de furto de veículos podem estar mascarados como receptação, pois quando não épossível provar que um indivíduo na posse de um carro furtado foi o ladrão, a praxe é indiciá-lo porreceptação dolosa.

Page 219: PRESOS NO BRASIL

Por conta disso existe uma regra não escrita determinando que, a não ser nos

casos mais importantes, só se instaura um inquérito quando já se sabe quem é o culpado.

Em outras palavras, quanto mais obscuro for o caso, menos a autoridade policial se

sentirá tentada a investigá-lo, pelo menos formalmente. Na maioria dos distritos policiais

paulistanos as equipes de plantão6 se limitam a redigir boletins de ocorrência, virando

verdadeiras fábricas de papeis inúteis. Outra atividade exercida pelas equipes de plantão

á " tocar " os inquéritos de autoria conhecida.

Já a equipe de chefia, subordinada diretamente ao delegado titular do distrito,

trabalha de um ponto de vista no mínimo interessante. Escolhe seus casos a partir de três

critérios: importância (classe social das vítimas, por exemplo), casos fáceis de resolver

(para melhorar a produção) e casos mais rentáveis. O segundo critério também ocorre em

parte dos departamentos especializados. No DENARC (Departamento de Narcóticos)

cada equipe tem de realizar pelo menos 4 prisões em flagrante por mês. Muitos resolviam

o problema prendendo micro traficantes de crack, abundantes na região próxima ao

departamento.7 O problema com essa atitude é que o objetivo do departamento não é

prender micro-traficantes, e sim investigar o tráfico médio e grande.

Existem papeis de todo o tipo dentro de um inquérito policial. Os mais comuns

são:

Portaria instaurando o inquérito

Cópia do flagrante

Boletim de Ocorrência

Termo de declarações (depoimentos)

Laudos periciais

Pedidos de informações do delegado aos mais diversos órgãos

Juntada de documentos

Antecedentes criminais

6 Cada distrito tem cinco equipes, formadas pelo delegado, um ou dois investigadores e um ou doisescrivães

7 A poucas quadras do prédio do DENARC situava-se a Cracolândia, região conhecida pela venda econsumo ostensivo de crack. Há alguns meses a atuação ostensiva da polícia no local espantou a maioriados usuários e micro traficantes.

Page 220: PRESOS NO BRASIL

Pedido de prazo

Despacho do juiz

Relatório de investigações

Pedido de diligências por parte do promotor

Ordem de serviço, do delegado para os investigadores

Fotografias

Apensos de provas materiais ( por exemplo balas utilizadas no crime)

Pedidos do delegado ao juiz, como quebra de sigilo bancário ou telefônico

Uma coisa que torna o inquérito difícil de entender é sua organização. Todos estes

papéis citados são juntados a medida em que vão chegando, não existe uma ordem

lógica. Por exemplo um inquérito pode ter na pag. 50 um pedido de informações. O leitor

paciente só vai ser recompensado na página 210, onde tal pedido foi respondido. Muitas

vezes o inquérito tomou um rumo completamente diferente no tempo corrido entre a

página 50 e a 210, o que torna aquela informação supérflua ou descabida. O modelo

burocrático obriga, porém, que esta informação sem qualquer relevância seja

acrescentada. Existem inquérito com centenas de volumes, cada um deles com mais de

duzentas páginas. Um caso famoso em São Paulo é o inquérito do jogo do bicho iniciado

durante o governo Fleury. Atualmente ele vai ser arquivado por falta de provas, apesar de

contar com 700 volumes.

Via de regra o inquérito de um departamento especializado é melhor elaborado do

que o feito no distrito. Os departamentos investigam mais e produzem melhores

resultados. Os melhores inquéritos geralmente são produzidos pelo Departamento de

Homicídios. É uma investigação mais fácil do que em crimes contra o patrimônio

(geralmente vítima e homicida se conhecem), os policiais corruptos evitam trabalhar em

homicídios (não há de quem tirar dinheiro) e por último o nível de dedicação é maior. Já

a investigação em crimes contra o patrimônio praticamente não existe. A regra é que a

polícia vai do criminoso para o crime, não o contrário. A maioria dos que cometem

crimes contra o patrimônio é profissional, portanto existem grandes chances de ser

fichado ou, no mínimo, conhecido da polícia especializada. É o caso dos ladrões

especializados em roubo a bancos, cujo número, durante muitos anos, não chegava a duas

centenas na capital paulista.

Page 221: PRESOS NO BRASIL

O inquérito de tráfico tem suas peculiaridades. É o único caso em que o número

de boletins de ocorrência pode ser inferior ao de inquéritos. Isto ocorre porque o tráfico é

crime sem vítima. Já que ninguém vai registrar queixa de tráfico, os casos existentes são

sempre resultado de prisões ou apreensões de droga. Tanto os boletins de ocorrência

como os inquéritos servem apenas para medir o quanto a polícia trabalhou, não tem

qualquer relação com a real ocorrência deste crime. Onde a polícia trabalha mais ou

melhor são registrados mais prisões de traficantes.

Outro dado interessante a respeito do inquérito é que as provas produzidas pela

polícia, como os depoimentos, tem de ser refeitas no judiciário. Na verdade as

testemunhas são freqüentemente ouvidas de novo na presença do juiz. Segundo Acosta, "

a autoridade policial toma conhecimento, antes da autoridade judiciária, das infrações

perseguíveis por ação pública e promove um inquérito preliminar". É uma duplicação de

esforços que redunda numa grande perda de tempo e dinheiro no serviço público.

3ª PARTE - O QUE FAZER COM O INQUÉRITO

O atual Código de Processo Penal é antigo. Precisa ser reformado com urgência.

Uma das mudanças mais necessárias é simplificar o trabalho da polícia investigativa.

Para isso existem pelo menos duas propostas circulando no parlamento:

♦ Acabar com o inquérito, tese defendida publicamente pelos ouvidores de

polícia, que encaminharam a parlamentares projeto de lei neste sentido

♦ Simplificar o inquérito, desburocratizando-o. Entre os partidários desta idéia

estão alguns policiais civis, promotores e juizes

Na verdade as duas propostas são muito parecidas, porque ambas defendem na

prática o fim do inquérito atual. Caso vingue qualquer uma das duas ocorrerá uma grande

transformação. No lugar de um monte de papéis diversos e juntados de forma a dificultar

a compreensão, juiz e promotor passariam a lidar com uma coisa bem mais enxuta. Toda

a informação necessária viria em um relatório constando dos laudos periciais, relatórios

de investigação e um resumo do delegado.

Page 222: PRESOS NO BRASIL

BIBILIOGRAFIA

ACOSTA, Walter P. O processo penal. Editora do Autor. Rio de Janeiro.

COBRA, Coriolano N. Manual de investigação policial. Saraiva. São Paulo, 1986.

Código de Processo Penal. Saraiva. São Paulo, 1989.

MINGARDI, Guaracy. Tiras Gansos e Trutas. Scritta. São Paulo, 1992.

SALLES JR., Romeu de Almeida. Ação Penal: ritos de detenção e reclusão. Saraiva. São

Paulo, 1986.

TOCHETTO, Domingos. org. Identificação humana. Sagra Luzato. Porto Alegre, 1999

GUARACY MINGARDI 24/08/00

Page 223: PRESOS NO BRASIL

DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS

UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FORUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência eSegurança Pública no Brasil:Uma Discussão sobre asBases de Dados eQuestões Metodológicas

4º Encontro:Julgamento e Penalização/Sistema Judiciário;SistemaJudiciário; Execução das Penas e Reinserção/Sistema Penitenciário

Organização:Daniel Cerqueira (IPEA)Julita Lemgruber (CESeC/UCAM)Leonarda Musumeci (CESeC/UCAM)

NOVEMBRO DE 2000

Page 224: PRESOS NO BRASIL

FÓRUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: UmaDiscussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas

2º Encontro:JULGAMENTO E PENALIZAÇÃO/SISTEMA JUDICIÁRIO; SISTEMAJUDICIÁRIO; EXECUÇÃO DAS PENAS E REINSERÇÃO/SISTEMAPENITENCIÁRIO

ARTIGOS

• INTRODUÇÃO

• Fontes de Dados Judiciais

Sérgio Adorno (NEV/USP) e Wânia Pasinato Izumino (NEV/USP

• Uma Alternativa Metodológica para o Uso e a Interpretação das Fontes deInformações do Sistema de Justiça Criminal

Joana D. Vargas (Unicamp)

• Uma Abordagem Organizacional da Justiça Criminal na Sociedade Brasileira

Luís Flávio Sapori (Fundação João Pinheiro)

• Problematizando Temas Relativos ao Sistema Penitenciário

Julita Lemgruber (CESeC/UCAM)

Page 225: PRESOS NO BRASIL

FONTES DE DADOS JUDICIAIS *

SÉRGIO ADORNOProfessor Associado – Departamento de Sociologia FFLCH/USP

Coordenador-Adjunto NEV/USPSecretário Executivo ANPOCS (1997-2000)

WÂNIA PASINATO IZUMINOMestre em Sociologia (USP, 1996)

Pesquisadora – NEV/USPDoutoranda em Sociologia – FFLCH/USP

*Texto preliminar, preparado para exposição no seminário.

Introdução

Desde início da década passada, o Núcleo de Estudos da Violência da USP tem

tido, como principal objetivo, em termos de investigação científica, o de compreender a

persistência do autoritarismo social na sociedade brasileira contemporânea, a despeito do

processo de transição e consolidação democráticas experimentado há quase duas décadas.

Após 21 anos de vigência de regime autoritário (1964-85)1, a sociedade brasileira

retornou à normalidade constitucional e ao governo civil. A reconstrução democrática e o

novo regime político acenaram para substantivas mudanças. A nova Constituição,

promulgada em 5 de outubro de 1988 consagrou direitos fundamentais da pessoa

humana, tornou inalienável o direito à vida ao mesmo tempo em que estabeleceu

garantias à integridade física e moral. O racismo e a tortura converteram-se em crimes

inafiançáveis e imprescritíveis, entre outros direitos civis, sociais e políticos. Conferiu

autonomia ao Ministério Público e consagrou a assistência judiciária aos desprovidos de

recursos para constituição de defensoria própria. Em síntese, a nova Constituição

procurou munir a sociedade de instrumentos de defesa contra o arbítrio do poder de

Estado.

Finalmente, em 1996, o governo brasileiro, em cumprimento ao decidido na

Cúpula Mundial da ONU para os Direitos Humanos (Viena, 1994), instituiu um Plano

Nacional dos Direitos Humanos, o primeiro na América Latina, o terceiro no mundo.

Resultado de um amplo processo de mobilização e de amplas consultas a múltiplos

1 A CARACTERIZAÇÃO DO FENÔMENO SOCIAL ENFOCADO FOI EXTRAÍDA DE: ADORNO, S. JUSTIÇA

FORMAL, JUSTIÇA VIRTUAL, JUSTIÇA REAL: LINCHAMENTOS E GRUPOS DE EXTERMÍNIO EM SÃO PAULO

(1980-1989). RELATÓRIO DE PESQUISA APRESENTADO AO CNPQ. SÃO PAULO, FEVEREIRO DE 1999.

Page 226: PRESOS NO BRASIL

segmentos da sociedade brasileira - especialmente aqueles representantes de grupos

tradicionalmente discriminados, excluídos de direitos e do acesso à Justiça, inclusive

ONGs, movimentos sociais e organizações de interesses profissionais -, o Plano colocou

os direitos humanos na agenda política dos governos federal e estaduais. Ao fazê-lo,

contribuiu para perturbar a tradicional tolerância do cidadão comum para com a

sistemática violação de direitos humanos e consequentemente para reduzir as resistências

à introdução de uma política governamental de defesa desses direitos para o conjunto da

sociedade brasileira.

Não obstante esses avanços democráticos2, não se logrou ainda a efetiva

instauração do Estado de Direito. O poder público, especialmente na esfera estadual, não

conquistou o monopólio do "uso legítimo da violência física" (Weber, 1970; Elias, 1993)

dentro dos limites da legalidade. Persistiram graves violações de direitos humanos,

produto de uma violência endêmica, radicada nas estruturas sociais, enraizada nos

costumes, manifesta quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos

agentes incumbidos de preservar a ordem pública. O controle legal da violência

permaneceu aquém do desejado.

Tudo indica que, no curso do processo de transição e consolidação democráticas,

recrudesceram as oportunidades de solução violenta dos conflitos sociais e de tensões nas

relações intersubjetivas. A violência adquiriu estatuto de questão pública. Denúncias de

abusos cometidos contra populações desprovidas de proteção legal multiplicaram-se. Um

apreciável número de situações e acontecimentos acumulou-se no tempo, como sejam os

maus tratos e torturas impingidos a suspeitos, presos nas delegacias e distritos policiais

bem como no sistema penitenciário; assassinatos e ameaças a trabalhadores e suas

lideranças no campo; homicídios, ao que parecem deliberados, de crianças e de

adolescentes; violências de toda ordem cometidas contra mulheres e crianças, sobretudo

no espaço doméstico; linchamentos e justiçamentos privados; extermínio de minorias

étnicas. Ademais, o período experimentou acentuado crescimento da criminalidade

violenta, em termos antes desconhecidos.

Os estudos que vimos realizando têm identificado uma série de problemas

relacionados à formulação e implementação de políticas de segurança e justiça que

afetam a eficiência das agências encarregadas de conter a violência dentro dos marcos da

Page 227: PRESOS NO BRASIL

legalidade democrática. A baixa eficiência dessas agências - especialmente das polícias

militar e civis em prevenir crimes e investigar ocorrências, e de todo o segmento judicial

(ministério público e tribunais de justiça) em punir agressores -, associada aos

tradicionais obstáculos enfrentados pelo cidadão comum no acesso à justiça acabam

estimulando a adoção de soluções privadas para conflitos de ordem social (como os

linchamentos e as execuções sumárias) bem como contribuindo para a exacerbação do

sentimento de medo e insegurança coletivos. À medida em que esse circulo vicioso é

mais e mais alimentado, cresce a perda de confiança nessas instituições de justiça e nos

agentes responsáveis por sua distribuição e execução.

Por conseguinte, em virtude dos problemas de investigação que vimos

enfrentando, freqüentemente recorremos às fontes judiciais (inclusive judiciárias) para

levantamento de dados primários. A seguir, descrevem-se as principais experiências do

NEV/USP neste domínio.

As Experiências de Pesquisa do NEV/USP com fontes judiciais

1. Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as mortes que se contam no tribunal

do júri

Esta pesquisa teve por objetivo problematizar um dos axiomas fundamentais de

nossa modernidade: aquele que estabelece uma correlação ineroxável e necessária entre

justiça social e igualdade jurídica. E o fez de uma perspectiva muito particular: a partir

do exame de práticas de produção da verdade jurídica3, cujo objeto reside no julgamento

de crimes dolosos contra a vida, matéria, no Brasil, de competência do tribunal de júri.

A reflexão teve por base empírica análise de 297 processos penais, instaurados e

julgados em um dos tribunais de júri da capital de São Paulo, no período de janeiro de

2Um balanço analítico dos primeiros resultados alcançados com o Plano Nacional dos Direitos Humanosencontra-se em Pinheiro & Mesquita Neto (1997), tema retormado em Adorno (1999).3 De acordo com Foucault, "cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua 'política geral' de verdade;isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instânciasque permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, as maneiras como se sanciona uns e outros;as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têmo encargo de dizer o que funciona como verdadeiro". (Foucault, 1979: 12). V. também Foucault (1980: 17).

Page 228: PRESOS NO BRASIL

1984 a junho de 19884. Foram coletados dados a respeito do perfil de vítimas e

agressores, de testemunhas e do corpo de jurados, bem como dados a respeito da

dinâmica dos acontecimentos, desde a detecção do fato passível de confisco punitivo até

à proclamação de sentença decisória, em primeira instância. Perfilou-se um percurso que

se inicia na esfera da polícia judiciária com a instauração do inquérito, prossegue no

Ministério Público com a apresentação da denúncia, culmina em ação penal na fase

judiciária - onde ganha relevo o embate, por um lado, entre manipuladores técnicos5 e,

por outro lado, os demais protagonistas dos acontecimentos, em especial vítimas,

agressores e testemunhas - e se encerra com o desfecho processual, que pode resultar em

decisão condenatória, absolutória ou de outro tipo (desclassificação para outra

modalidade delituosa, extinção da punibilidade etc.).

A pesquisa privilegiou a comparação entre o perfil social dos condenados e o dos

absolvidos, com vistas a verificar os móveis extra-legais que intervêem nas decisões

judiciárias, o contraste entre a formalidade dos códigos e da organização burocrática e as

práticas orientadas pela cultura institucional, o entrecruzamento entre os pequenos

acontecimentos que regem a vida cotidiana e os fatos que regem a concentração de

poderes no sistema de justiça criminal, bem assim a intersecção entre o funcionamento

dos aparelhos de contenção da criminalidade, a construção de trajetórias biográficas e as

operações de controle social.

2. Continuidade Autoritária e Construção da Democracia

[PINHEIRO, P.S. ; ADORNO, S. ; CARDIA, N. & OUTROS. CONTINUIDADE AUTORITÁRIA

E CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA. RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA. SÃO PAULO :

NEV/USP, 3V., 890P. ]

O principal objetivo desta pesquisa é examinar o papel das violações dos direitos

humanos no processo de democratização no Brasil, em especial na implantação da

4 Pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, com apoio da FundaçãoFord. Participaram da investigação as pesquisadoras Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Maria ÂngelaPinheiro Machado e Anamaria Cristina Schindler.5 O termo é empregado em Correa (1983), compreendendo investigador, delegado, perito criminal,promotor público e magistrado.

Page 229: PRESOS NO BRASIL

cidadania e do Estado de Direito para todos, bem como o significado da persistência

destas violações na cultura política brasileira.

A PESQUISA PROCUROU RESPONDER A UM PEQUENO ELENCO DE INDAGAÇÕES:

COMO É POSSÍVEL E COMO SE DÁ A CONVIVÊNCIA DA SISTEMÁTICA VIOLAÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS COM REGRAS E PROCEDIMENTOS FORMAIS DA DEMOCRACIA?

QUAIS SÃO AS CONSEQÜÊNCIAS DESSA CONVIVÊNCIA PARA A CULTURA POLÍTICA, PARA

AS RELAÇÕES ENTRE GRUPOS E PARA A ESTRUTURA VIGENTE DAS RELAÇÕES DE PODER?

COMO O ESTADO ENCARA SEU PAPEL DE GUARDIÃO DA LEI? QUE AÇÕES, NA

SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA, CONCORREM PARA SE TENTAR ROMPER COM ESSES

OBSTÁCULOS À PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E À CONSOLIDAÇÃO DA

DEMOCRACIA?

AS RESPOSTAS A TAIS INDAGAÇÕES ENSEJARAM O EXAME DE COLEÇÕES DE

DADOS EMPÍRICOS SEGUNDO TRÊS RECORTES ANALÍTICOS:

(1) ATUAÇÃO DO ESTADO NA APURAÇÃO DAS VIOLAÇÕES: TRATOU-SE DE

VERIFICAR EM QUE MEDIDA ESTA ATUAÇÃO FUNCIONA COMO

DISSUASOR OU COMO ELEMENTO FACILITADOR NA REPRODUÇÃO

DESTAS VIOLAÇÕES; OU, AINDA, EM QUE MEDIDA SE PAUTA POR UMA

AMBIGÜIDADE, ORA DISSUADINDO-AS ORA REPRODUZINDO-AS;

(2) ASPECTOS DE CULTURA POLÍTICA DE COMUNIDADES QUE

VIVENCIARAM VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS, OBSERVANDO-SE

COM MAIOR ÊNFASE PERCEPÇÕES COLETIVAS DE JUSTIÇA E DE

POLÍCIA, AS RELAÇÕES ENTRE VIOLÊNCIA E REPRODUÇÃO DA

ESTRUTURA DE PODER, A PRESENÇA DE UM PROCESSO DE EXCLUSÃO

MORAL;

(3) ATUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS (ONGS) E

OUTROS GRUPOS ORGANIZADOS DA SOCIEDADE CIVIL COM VISTAS A

EXAMINAR SEU PAPEL, DESEMPENHO E ALCANCE NA CONSOLIDAÇÃO

DA DEMOCRACIA.

A EXECUÇÃO DO PROJETO TEMÁTICO E INTEGRADO DE PESQUISA CONSISTIU NA

RECONSTRUÇÃO DE MÚLTIPLOS CASOS DE VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS, QUE

OCORRERAM EM DIFERENTES MOMENTOS DA DÉCADA DE 1980 ATÉ O ANO DE 1989.

Page 230: PRESOS NO BRASIL

COMPREENDE CASOS DE VIOLAÇÕES DO DIREITO À VIDA QUE TÊM COMO AGENTE,

TANTO AUTORIDADES INVESTIDAS DE PODER PÚBLICO QUANTO CIDADÃOS CIVIS.

COMPREENDE VIOLAÇÕES COMETIDAS SEJA POR INDIVÍDUOS ISOLADOS, SEJA POR

COLETIVOS, ORGANIZADOS OU NÃO. A PESQUISA PRIVILEGIOU A OBSERVAÇÃO DE

QUATRO TIPOS DE FENÔMENOS: LINCHAMENTOS; EXECUÇÕES SUMÁRIAS E GRUPOS DE

EXTERMÍNIO; VIOLÊNCIA POLICIAL E VIOLÊNCIA RURAL.

A RECONSTRUÇÃO DE CASOS TEVE POR FONTES DE INFORMAÇÃO PRIMÁRIA E

SECUNDÁRIA: RELATÓRIOS OFICIAIS, INQUÉRITOS POLICIAIS E PROCESSOS PENAIS,

DOSSIÊS E BOLETINS DE ONGS, RELATO DE DEBATES, NOTÍCIAS VEICULADAS EM

JORNAIS E REVISTAS (NACIONAIS E ESTRANGEIROS). A PAR DESSAS FONTES,

RECORREU-SE A INFORMAÇÕES EXTRAÍDAS DE ENTREVISTAS REALIZADAS COM

DIFERENTES ATORES: MEMBROS DE COMUNIDADES ONDE OCORRERAM AS VIOLAÇÕES,

REPRESENTANTES DAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS, DO MINISTÉRIO PÚBLICO, DO

PODER JUDICIÁRIO, DAS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS, DOS MOVIMENTOS

DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS E DE OUTROS GRUPOS QUE INTERVIERAM OU

PARTICIPARAM DOS FENÔMENOS E PROCESSOS OBSERVADOS.

3. Discriminação Racial e Justiça Criminal em São Paulo

[Adorno, S. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos

Cebrap. São Paulo, 43 : 45-63, novembro de 1995. Tb. : Adorno, S. Racial discrimination

and Criminal Justice in Sao Paulo. In : Reichmann, ed. Race in contemporary Brazil.

From indifference to equality. The Pennsylvania State University Press, 1999, pp. 123-

137]

Esta pesquisa teve por principais objetivos identificar, caracterizar e explicar as

causas do acesso diferencial de brancos e negros à Justiça criminal em São Paulo. Estes

objetivos foram alcançados mediante análise da distribuição das sentenças judiciais para

crimes de idêntica natureza cometidos por ambas categorias de réus. Partiu-se da hipótese

de que a justiça criminal é mais severa para com delinqüentes negros comparativamente

aos brancos, hipótese aliás largamente demonstrada pela literatura especializada,

especialmente norteamericana. Esta hipótese apontou no sentido da desigualdade de

Page 231: PRESOS NO BRASIL

direitos que, no limite, compromete a consolidação e funcionamento da sociedade

democrática no Brasil.

O universo empírico de investigação compreendeu crimes violentos julgados no

município de São Paulo, no ano de 1990. Os resultados permitiram a caracterização das

ocorrências criminais, do perfil social de vítimas e de agressores bem como o desfecho

processual.

Os principais resultados da pesquisa indicaram que brancos e negros cometem

crimes violentos em idênticas proporções. No entanto, réus negros tendem a ser mais

perseguidos pela vigiläncia policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça

criminal e revelam maiores dificuldades de usufruírem do direito de ampla defesa,

assegurado pelas normas constitucionais (1988). Em decorrência, tendem a receber um

tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos

comparativamente aos réus brancos. Tudo indica, por conseguinte, que a cor é poderoso

instrumento de discriminação na distribuição da justiça. O princípio da eqüidade de todos

perante às leis parece comprometido com o funcionamento viesado do sistema de justiça

criminal.

4. O Adolescente na Criminalidade Urbana em São Paulo

[Adorno, S. ; Lima, R.S. de ; Bordini, E. O adolescente na criminalidade urbana em São

Paulo. Relatório final de pesquisa. Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de

Direitos Humanos, 1999, 77p. ]

Esta pesquisa ocupou-se de caracterizar a criminalidade juvenil na cidade de

São Paulo. Pretendeu-se responder a algumas indagações que hoje ocupam a

preocupação cotidiana do cidadão comum, entre as quais: vem crescendo, nos últimos

anos, a participação dos adolescentes no movimento da criminalidade urbana, em

especial de suas modalidades violentas? Quem é esse jovem que se envolve com a

delinqüência? Qual o seu perfil social? Há alguma correspondência entre esse perfil

social e as características que o senso comum atribui a esses jovens? Como o poder

Page 232: PRESOS NO BRASIL

público, no exercício de suas funções constitucionais, tem logrado conter a

criminalidade juvenil? É verdade, como muitas vezes se suspeita, que as autoridades

públicas - policiais, promotores públicos, magistrados, dirigentes de instituições de

custódia e atendimento às crianças e adolescentes - vêm se mostrando pouco

rigorosas na vigilância da ordem pública e, por conseguinte, na distribuição e

aplicação de sanções?

Os objetivos da investigação consistiram em: primeiro, conhecer a magnitude

da delinqüência juvenil e sua evolução recente; segundo, caracterizar o perfil social

do jovem infrator; terceiro, avaliar a aplicação das medidas sócio-educativas previstas

no Estatuto da Criança e do Adolescente. O universo empírico de investigação

compreendeu ocorrências policiais, praticadas por jovens entre 12 e 18 anos

incompletos, que ensejaram a abertura de processos nas quatro Varas Especializadas

da Justiça da Infância e da Adolescência, do município de São Paulo, nos anos de

1993 a 1996. A investigação teve por base coleta de dados objetivos, extraídos dessa

fonte documental oficial, os quais foram submetidos a tratamento quantitativo e

estatístico expressos sob a forma de tabelas e gráficos.

5. Justiça Criminal e violência contra a mulher. O papel do Sistema Judiciário na

solução dos conflitos de gênero.

[IZUMINO, W.P. JUSTIÇA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. O PAPEL DO SISTEMA

JUSDICIÁRIO NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE GÊNERO. SÃO PAULO : ANABLUME ;

FAPESP, 1998].

Nesta pesquisa, foram analisados 62 processos de lesões corporais, distribuídos

igualmente segundo a decisão judicial (condenação ou absolvição) e 21 de homicídios

tentados e consumados. Todos os processos haviam sido julgados e sentenciados em

primeira instância, no período de 1984 a 1989 na 1ª Vara Criminal e no Tribunal do Júri

localizados no Fórum Regional de Santo Amaro, zona sul de São Paulo.

Page 233: PRESOS NO BRASIL

Para a seleção dos processos, foi adotado o recorte de gênero, segundo o qual

todos os casos deveriam envolver vítimas mulheres e agressores homens independente do

tipo de relacionamento existente entre eles. Apesar da pesquisa não privilegiar a

violência doméstica, houve uma prevalência de casos envolvendo casais unidos legal ou

consensualmente, A hipótese inicialmente formulada neste trabalho era de que a

violência de gênero não chegava a ser criminalizada porque não era socialmente

reconhecida como um crime.

A análise dos processos penais teve como objetivo identificar como se constrói o

discurso jurídico a respeito dos conflitos de gênero. A leitura dos processos foi feita sob

dois enfoques: sob a ótica daqueles que protagonizaram as agressões – vítimas,

agressores e testemunhas – e sob a ótica dos operadores técnicos do direito – delegados,

promotores públicos, defensores e juízes. A leitura dos depoimentos e das peças com as

principais intervenções dos operadores técnicos do direito conduziu a uma série de

questões de ordem metodológica a par das conclusões pertinentes às particularidades do

tratamento do conflito de gênero frente ao Judiciário.

A estrutura do sistema de justiça criminal: Justiça Formal, Justiça Virtual eJustiça Real

O DESFECHO PROCESSUAL RESULTA DE UMA COMPLEXA OPERAÇÃO

INSTITUCIONAL PARA A QUAL CONCORREM DECISIVAMENTE AS PRÁTICAS DOS

OPERADORES DO DIREITO EM SUAS TAREFAS DE APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE

PENAL E DE DISTRIBUIÇÃO DE SANÇÕES CONSOANTE CONDIÇÕES PREVIAMENTE DADAS;

ISTO É, DETERMINADAS PELA ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE JUSTIÇA

CRIMINAL. EMBORA O CAMPO DE ATUAÇÃO INSTITUCIONAL ESTEJA DELIMITADO POR

CÓDIGOS E FORMALIDADES NORMATIVAS – CUJO CONJUNTO DENOMINAMOS JUSTIÇA

FORMAL -, OS OPERADORES TÉCNICOS DO DIREITO TRANSFORMAM-NO, ORA

ALARGANDO-O ORA RESTRINGINDO-O, INTRODUZINDO ADAPTAÇÕES E ARRANJOS

“LOCAIS” DE SORTE A ACOMODÁ-LO DIANTE DAS PRESSÕES DO MUNDO EXTERNO,

PROVENHAM ELAS DAS MUDANÇAS SOCIAIS EM CURSO - ENTRE AS QUAIS, A

EMERGÊNCIA E CRESCIMENTO DA CRIMINALIDADE URBANA VIOLENTA E SEU IMPACTO

SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL -, OU DE OUTRAS FONTES COMO A CRISE

FISCAL, COMO INTERESSES POLÍTICOS EM TORNO DA MANUTENÇÃO DE UM ESTILO

Page 234: PRESOS NO BRASIL

TRADICIONAL E CONVENCIONAL DE EXERCÍCIO DO CONTROLE SOCIAL OU AINDA DE

DEMANDAS POR PRESERVAÇÃO DE PRIVILÉGIOS CORPORATIVOS. DESTE MODO, ENTRE

O INQUÉRITO IDEAL E REAL BEM COMO ENTRE O PROCESSO PENAL IDEAL E REAL,

TRADUZEM OS OPERADORES DO DIREITO UMA JUSTIÇA POTENCIAL EM JUSTIÇA

VIRTUAL, MEDIANTE PERMANENTE E CONTÍNUA INTERPRETAÇÃO DAS POSSIBILIDADES

REAIS E CONCRETAS DE APLICAÇÃO DOS PRECEITOS LEGAIS.

A JUSTIÇA REAL CONSISTE NO DESFECHO PROCESSUAL. AO CONTRÁRIO,

PORTANTO DO QUE SE POSSA IMAGINAR, OS OPERADORES TÉCNICOS E NÃO-TÉCNICOS

DO DIREITO NÃO PERFILAM UMA LINHA PREVIAMENTE TRAÇADA, INFLEXÍVEL E

INEXORÁVEL, À QUAL PROCURAM SE ATER AO LONGO DO DESENVOLVIMENTO DE SUAS

PRÁTICAS JUDICIAIS (E INCLUSIVE JUDICIÁRIAS), EMBORA FORMALMENTE AS

ORIENTAÇÕES CONTIDAS NAS LEIS PENAIS E NOS CÓDIGOS (CP E CPP) CONSTITUEM

UMA ESPÉCIE DE IMPERATIVO CATEGÓRICO NA DISTRIBUIÇÃO DE JUSTIÇA PENAL. SEJA

O QUE FOR, A JUSTIÇA REAL RESULTA DE UMA CONJUGAÇÃO DE, PELO MENOS TRÊS

FORÇAS DÍSPARES: OS CÓDIGOS E AS FORMALIDADES LEGAIS; A APROPRIAÇÃO

SIMBÓLICA DOS RECURSOS DE PODER E DE INTERVENÇÃO PREVISTOS NO CAMPO DAS

FORMALIDADES, REALIZADA PELOS OPERADORES TÉCNICOS E NÃO TÉCNICOS DO

DIREITO; E A INTERVENÇÃO, QUASE SEMPRE INCOMENSURÁVEL, DE ELEMENTOS

EXTRA-LEGAIS OU EXTRA-JURÍDICOS (INTERESSES MATERIAIS EXTERNOS AO

PROCESSO, VALORES MORAIS ETC). DISTO DECORRE, DESDE JÁ, UMA DAS GRANDES

DIFICULDADES DE TRABALHAR COM FONTES JUDICIAIS.

As fontes de Dados Judiciais

Fontes de Dados:

Livros de Registro de Feitos

Livros de Registro de Sentenças

Acórdãos e Jurisprudência

Processos penais

Sindicâncias e correições judiciárias

Page 235: PRESOS NO BRASIL

A utilização de processos penais como fonte de pesquisa exige que se realize um

mapeamento prévio dos processos em andamento ou encerrados na vara criminal ou no

Tribunal do Júri no qual esteja se desenvolvendo a pesquisa. As estatísticas produzidas

pelas varas criminais e Tribunais do Júri, a respeito do movimento dos processos em

andamento, se restringem ‘a quantificação do número de casos, sua situação (em

andamento ou concluído) e sua distribuição segundo o crime cometido. Assim, se o

recorte metodológico adotado para a pesquisa privilegia informações diferentes daquela

que se refira ao tipo de delito praticado, por exemplo, no caso de crimes contra a mulher,

torna-se necessário primeiro conhecer o universo de processos existentes para que

posteriormente se possa definir a amostra de casos. Esse primeiro mapeamento pode ser

feito a partir de duas fontes de registros: o Livro de Registro de Feitos e o Livro de

Registro de Sentenças.

1. Livro de Registro de Feitos

Ao dar entrada num cartório, seja de uma vara singular ou do Tribunal do Júri,

cada novo inquérito é registrado no Livro de Registro de Feitos. Neste livro vão sendo

feitas anotações relevantes a respeito do andamento do processo. A qualidade e a

quantidade de informações registradas varia de cartório para cartório. Em geral, as

anotações são feitas manualmente, mas podem também ser registradas à máquina ou em

arquivos eletrônicos computadorizados.

Os livros são organizados por ano e tem suas folhas numeradas. São ali

registrados: número do inquérito policial, número de ordem do processo, data de

entrada do inquérito no cartório. Algumas informações sobre a vítima, o réu e o

delito: nome da vítima, data do fato, crime (por extenso e número do(s) artigo(s) no

Código Penal ou na Lei de Contravenções Penais), nome do réu, filiação, data de

nascimento, número do R.G., nacionalidade e naturalidade. Informações a respeito do

andamento do processo: denúncia, audiências de julgamento, decisões judiciais

(condenação, absolvição, extinção de punibilidade, arquivamento, recursos. Todos

esses procedimentos são acompanhados das respectivas datas de encaminhamento).

Data da sentença, número do livro e da página em que foi registrada, data de

arquivamento do processo, número do pacote em que foi arquivado.

Page 236: PRESOS NO BRASIL

Embora muitas vezes estejam incompletos, estes livros são importantes, por

exemplo, quando se pretende recuperar casos a partir do sexo da vítima, ou do réu, ou

pelo tipo de crime que tenha sido cometido.

2. Livros de Registros de Sentenças

Contém cópia de todas as sentenças de primeira instância dadas naquela vara

criminal ou do Júri. Os Livros de Registro de Sentenças, assim como os Livros de

Registro de Feitos, são numerados seqüencialmente, e possuem também numeração

nas páginas. Cópia de todas as sentenças são anexadas a esse livro. As sentenças, em

geral, seguem um modelo: iniciam com uma descrição do crime que está sendo

julgado (nome do réu e da vítima, delito cometido, dia, horário, local e circunstância,

presença de elementos qualificadores para o enquadramento penal. Segue-se um

breve resumo dos argumentos apresentados pelo representante do Ministério Público

e pela Defesa nas alegações finais, os argumentos do juiz acerca dos fatos e do

enquadramento penal proposto e a decisão judicial - condenação, absolvição,

extinção da punibilidade, etc. – Por fim, nos casos de condenação, apresenta-se o

quantum da pena e sua forma de cumprimento. Havendo multa, há uma descrição da

forma e do valor que deverá ser pago.

A utilização destes livros como fonte de dados permite tanto uma análise

quantitativa quanto uma análise qualitativa. A partir das informações extraídas das

sentenças é possível quantificar o número de casos julgados e sua distribuição

segundo a decisão judicial, o quantum da pena ou o enquadramento penal. Para uma

análise qualitativa, o resumo dos fatos e a argumentação do juiz para embasar sua

decisão, mostram-se especialmente interessantes.

Para os processos julgados pelo Tribunal do Júri, além dos Livros de Registro

de Feitos há o Livro de Registro de Pronúncia e o Livro de Registro de Sentença. A

pronúncia consiste de uma “sentença intermediária”. Encerrada a fase de instrução

criminal, quando são ouvidas as testemunhas, o Ministério Público e a Defesa

apresentam suas alegações finais pedindo que o réu seja ou não levado a julgamento

Page 237: PRESOS NO BRASIL

pelo Tribunal do Júri. Nesta fase o réu pode ser pronunciado (deverá ser julgado pelo

júri popular), impronunciado (quando se considera que não há provas suficientes

sobre a materialidade ou autoria do crime para que ele seja julgado pelo júri. Neste

caso a processo é arquivado mas pode ser reaberto caso surjam novas evidências

sobre o crime) pode haver a desclassificação do delito (o crime é enquadrado em

outro artigo do Código Penal e encaminhado para julgamento numa vara singular. Por

exemplo, um caso de tentativa de homicídio pode ser desclassificado para lesões

corporais e, finalmente, podendo haver a absolvição sumária, quando o crime é

motivado pela legítima defesa.

3. Acórdãos

Os livros de registro de feitos e de sentenças permitem conhecer e estudar o

movimento e as decisões dos processos em andamento ou julgados em primeira

instância. Para conhecer esse movimento em segunda instância, as decisões dadas em

caso de recursos, a melhor fonte de informações são os acórdãos. Estes podem ser

pesquisados junto com os processos nos quais as cópias são anexadas, ou podem ser

pesquisados nas revistas especializadas (Revista dos Tribunais, por exemplo). A

leitura dos acórdãos anexados aos processos permite que se conheça o desdobramento

daquele caso nas instâncias superiores de julgamento. Esse procedimento é

interessante quando se considera que as instâncias superiores têm o poder de

reformar ou não a sentença dada em primeira instância, ou seja, um caso em que

houve condenação pode ser revertido para absolvição, ou vice-versa, ou quantum da

pena pode ser alterado.

Para os casos julgados em Tribunais do Júri, os recursos podem ser

interpostos em dois momentos: os recursos de sentido estrito, quando se recorre à

decisão da pronúncia ou impronúncia do réu e os recursos apresentados ‘as decisões

do Júri. Uma vez que a decisão do júri é considerada soberana, ou seja, não pode ser

reformada nem pela instância superior, os recursos apresentados devem versar sobre

a nulidade da decisão, referindo-se a problemas como a construção dos quesitos

apresentados ao júri ou sobre o quantum da pena.

Page 238: PRESOS NO BRASIL

4. processos penais

OS PROCESSOS PENAIS, INSTAURADOS NA FASE JUDICIAL, COMPREENDEM TODAS

AS PEÇAS DOCUMENTAIS, DESDE O BOLETIM DE OCORRÊNCIA ATÉ À SENTENÇA FINAL.

ELES PROCURAM ATER-SE ÀS FORMALIDADES LEGAIS E PERFILAR A LINHA DE CONDUTA

QUE LHES É DESIGNADO PELO CÓDIGO DO PROCESSO. TRATA-SE DE RICA FONTE

DOCUMENTAL, QUE VEM SENDO UTILIZADA POR DISTINTOS PESQUISADORES –

CIENTISTAS SOCIAIS (SOCIÓLOGOS, ANTROPÓLOGOS E CIENTISTAS POLÍTICOS),

HISTORIADORES, ECONOMISTAS, LINGÜISTAS ETC. DADA AS MÚLTIPLAS PAUTAS

DISCURSIVAS QUE CONTÊM.

SEGUNDO CORREA (1983), UMA PIONEIRA NO EMPREGO DESTA FONTE

DOCUMENTAL NO BRASIL: “OS PROCESSOS PENAIS COMPULSAM FALAS DE DIFERENTES

PROTAGONISTAS, SEJAM ELES JULGADORES OU JULGADOS; ORDENAM, EM CERTA

TEMPORALIDADE, UMA COMPLEXA SEQÜÊNCIA DE PROCEDIMENTOS TÉCNICOS E

ADMINISTRATIVOS; DISPÕEM EM SÉRIE OS DIVERSOS ELEMENTOS QUE CONCORREM

PARA O DESFECHO PROCESSUAL. COMO RESULTADO, TRADUZEM O MODO DE PRODUZIR

A VERDADE JURÍDICA QUE COMPREENDE TANTO A ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE

PENAL QUANTO A ATRIBUIÇÃO DE IDENTIDADE AOS SUJEITOS QUE SE DEFRONTAM NO

EMBATE JUDICIÁRIO. ADEMAIS, EM CIRCUNSTÂNCIAS ESPECÍFICAS, OS PROCESSOS

PENAIS EXPRESSAM UM MOMENTO EXTREMO NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS - A

SUPRESSÃO FÍSICA DE UMA PESSOA PELA OUTRA - QUE PÕE A NU OS PRESSUPOSTOS DA

EXISTÊNCIA SOCIAL, PERMITINDO VISUALIZAR A SOCIEDADE EM SEU FUNCIONAMENTO,

O JOGO PELO QUAL NO TORVELINHO DE CONFLITOS E TENSÕES SUBJETIVAS SE

MATERIALIZA A AÇÃO DE UNS SOBRE OUTROS EM PONTOS CRÍTICOS DAS

ARTICULAÇÕES SOCIAIS, TRANSFORMANDO O DRAMA PESSOAL EM SOCIAL.”

SOB ESSA ÓTICA, O DRAMA PODE SER OBSERVADO EM SEU DUPLO REGISTRO:

POR UM LADO, EM SUA TRADUÇÃO JURÍDICA, EM QUE OS ACONTECIMENTOS SÃO

ORDENADOS SEGUNDO CÓDIGOS PRÉ-ESTABELECIDOS, NOS TERMOS DE REGRAS FIXAS E

FORMAIS; POR OUTRO LADO, EM SUA VERSÃO MORAL, NA QUAL OS ACONTECIMENTOS

SÃO RECONSTRUÍDOS A PARTIR DE NORMAS SOCIAIS NÃO ESCRITAS, INFORMAIS, NOS

Page 239: PRESOS NO BRASIL

TERMOS DE QUEM JULGA E DE QUEM PROCESSA. TRATA-SE DE VERSÕES QUE PODEM

ESTAR ORA EM CONFLITO, ORA JUSTAPOSTAS, ORA CONVERGENTES. NO CÔMPUTO

FINAL, NO MOMENTO EM QUE O RITUAL JUDICIÁRIO PROCLAMA SUA VERDADE, TODAS

AS VERSÕES SE REENCONTRAM, COMPONDO O DESFECHO PROCESSUAL QUE TANTO

PODE RESULTAR EM CONDENAÇÃO QUANTO EM ABSOLVIÇÃO.

ESSA LEITURA MICROSOCIOLÓGICA DOS PROCESSOS PENAIS REQUER, NO

ENTANTO, SUA ARTICULAÇÃO COM UMA LEITURA MACROSOCIOLÓGICA DO APARELHO

JUDICIÁRIO. É PRECISO PENSAR SIMULTANEAMENTE O DRAMA ENQUANTO EXPRESSÃO

TANTO DOS PEQUENOS ACONTECIMENTOS QUE REGEM A VIDA COTIDIANA, QUANTO DOS

GRANDES ACONTECIMENTOS QUE REGEM O DIREITO DE PUNIR. ESSA É A PERSPECTIVA

QUE POSSIBILITA INSERIR O APARELHO JUDICIÁRIO NO INTERIOR DA ORGANIZAÇÃO

SOCIAL DO CRIME, DEFININDO-LHE O LUGAR E FUNCIONALIDADE, BEM COMO SEUS

IMPASSES E DILEMAS NO CONTROLE DA CRIMINALIDADE. NISSO TAMBÉM RESIDE O

PAPEL DESSE APARELHO NA CONSTRUÇÃO DE UMA ORDEM DEMOCRÁTICA NA MEDIDA

EM QUE DEIXA TRANSPARECER A DIREÇÃO QUE ASSUMEM AS INSTÂNCIAS JUDICIÁRIAS

NA DEFESA DOS BENS SUPREMOS, MATERIAIS E SIMBÓLICOS, DOS CIDADÃOS QUE

COMPÕEM O CORPO SOCIAL, NÃO IMPORTANDO SUAS DIFERENÇAS DE RAÇA, DE

CLASSE, DE ETNIA, DE SEXO E DE CULTURA”6.

5. SINDICÂNCIAS ADMINISTRATIVAS E CORREIÇÕES JUDICIÁRIAS

HÁ POUCO A DIZER QUANTO A ESTAS FONTES. ELAS CUIDAM DO CONTROLE

CORPORATIVO INTERNO. PERMITEM IDENTIFICAR PROBLEMAS DE DIVERSAS ORDENS E

NATUREZA, COMO SEJAM INADEQUADO CUMPRIMENTO DAS FORMALIDADES LEGAIS,

CASOS DE CORRUPÇÃO ADMINISTRATIVA, CASOS DE OMISSÃO NA APLICAÇÃO DAS LEIS,

RECONHECIMENTO DE FLAGRANTES CASOS DE INJUSTIÇA TAIS COMO PROCESSOS

PARALISADOS SEM QUAISQUER EXPLICAÇÃO PLAUSÍVEL. DE MODO GERAL, É UMA

FONTE INACESSÍVEL AO PESQUISADOR EXTERNO AO APARELHO JUDICIÁRIO. EMBORA O

NEV/USP JÁ TENHA TENTADO CONSULTA-LA NÃO LOGROU ÊXITO SOB O ARGUMENTO

DE QUE SE TRATA DE CONTROLES INTERNOS, QUE ENVOLVEM A IDENTIFICAÇÃO DE

6 Trecho extraído de Adorno, S. “Violência urbana, justiça criminal e organização social docrime”. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: CES, 33: 145-56, outubro, 1991.

Page 240: PRESOS NO BRASIL

FUNCIONÁRIOS E QUE, EM VIRTUDE DE SUAS IMPLICAÇÕES LEGAIS, NÃO PODE ESTAR

SUJEITA À VISIBILIDADE PÚBLICA.

Comentários a respeito de problemas específicosEmbora conviesse dedicar-se uma análise mais acurada e detida para os

problemas inerentes às fontes judiciárias, vamos nos limitar a apontar alguns dos

problemas mais flagrantes que comprometem a fidedignidade do emprego das fontes

judiciais. Certamente, qualquer esforço para a criação de um sistema oficial de

estatísticas criminais (inclusive seu segmento judicial-judiciário) terá que enfrentá-los,

quando menos saneá-los.

Um primeiro problema diz respeito ao acesso às informações. As dificuldades são

imensas. Quando as barreiras superiores são vencidas, mediante expressa autorização das

autoridades judiciárias encarregadas de administrar o aparelho penal, há inúmeras outras

instâncias que necessitam ser enfrentadas. Uma delas, por sinal muito poderosa, é o

poder de que desfrutam os funcionários dos cartórios. Em regra, não podem negar

autorização superior. Porém, caso não lhes interessar que o trabalho seja executado, pelas

mais diferentes razões, criam obstáculos intransponíveis que impedem o trabalho regular

de coleta de dados. Não disponibilizam espaço, evitam atender às demandas formuladas,

informam que hoje ou amanhã não será possível pesquisar pois haverá um evento

qualquer e o espaço somente estará disponível dentro de alguns dias, mesmo até semanas.

Não é incomum que, para dificultar o trabalho de pesquisa, tragam processos distintos

daqueles que lhes foram demandados. Há, por conseguinte, todo um trabalho de

« conquista » burocrática da fonte que é necessário considerar no cálculo de saneamento

da fonte de informação. A tudo isto, acresce que, via de regra, as autorizações superiores

são datadas. Uma vez esgotado o prazo e não tendo sido concluído o trabalho é

necessário reiniciar o caminho anterior e aguardar nova autorização que pode demorar

semanas. Mas, evidentemente, nem sempre é assim. Enfrentramos também situações

constrangedoras como assédio sexual de parte de funcionários, aspecto que comporta,

como se sabe, um número infindável de problemas. Essas dificuldades felizmente não

constituem regra. Há momentos em que, dependendo dos operadores técnicos e não

técnicos do direito, é clara a compreensão dos objetivos pretendidos e o trabalho caminha

com tranquilidade.

Page 241: PRESOS NO BRASIL

Um outro probblema sério diz respeito à qualidade mesma dos dados registrados.

Em inúmeras situações parece haver um esmero até exagerado, no que concerne por

exemplo, às formalidades legais e administrativas. Tudo indica que, sobre elas, pesam os

mais rigorosos controles. Desvios podem suscitar sindicâncias, comprometendo o futuro

e a reputação funcionais. Em outras situações, contudo, as informações são bastante

precárias. De modo geral, salvo exceções, os processos não logram ir muito além do que

foi apurado nos inquéritos policiais. Se os inquéritos são mal elaborados, carentes de

informações básicas que permitam identificar a possível autoria de um crime, os

processos não vão muito além vez que os recursos investigativos dos tribunais de justiça

são bastante limitados. Assim, as informações relativas ao perfil biográfico-social ou

biográfico-jurídico dos tutelados pela justiça devem sempre ser tomados com bastante

cautela, especialmente no que concerne à cor (etnia), ocupação, profissionalização, grau

de escolaridade. Mas, neste terremo, talvez não haja muito o que fazer, senão treinar

funcionários para que evitem erros grosseiros que comprometam inexoravelmente, em

especial os processos penais. Ademais, informações sobre provas testemunhais e mesmo

periciais devem ser, não raramente, olhadas com alguma suspeição. Não sem motivos, é

comum, entre pesquisadores, a descoberta de, ao menos, duas histórias de vida para cada

tutelado pela justiça : uma, a história oficial, que se encontra nos autos, recolhida a partir

de procedimentos legais e costumeiros ; outra, a história não oficial que diz respeito não

necessariamente à identidade verdadeira deste ou daquele réu, porém a traços de sua

biografia que não comparecem aos autos, ficam como que ignorados ou silenciados, por

exemplo, a existência de família constituída.

Há um outro problema técnico a ser enfrentado com maior firmeza. Trata-se da

acentuada fragmentação de todo o sistema de justiça criminal, aspecto já observado em

inúmeras pesquisas. Para se ter uma idéia do que isto significa : até o ano de 1982, no

estado de São Paulo, era possível realizar uma espécie de follow-up do segmento polícia-

judiciário. Assim, era possível acompanhar as taxas de resolução de casos, desde o

registro da ocorrência até à setença condenatória em primeira instância. Qual a origem

desses dados ? Em cada estado da federação, ora a secretaria de segurança pública, ora a

secretaria de justiça recolhiam anualmente informações sobre ocorrências, inquéritos,

processos instaurados e sentenças e encaminhavam ao Ministério da Justiça, órgão que,

por sua vez, as endereçava à Fundação IBGE. A partir de 1983, por decisão de Ministério

da Justiça, esses dados deixaram de ser enviados ao IBGE, de sorte que nada sabemos a

Page 242: PRESOS NO BRASIL

respeito do funcionamento do sistema de justiça em seu conjunto, salvo através de

pesquisas empíricas que recolhem dados primários. Em síntese, há quase duas décadas,

não podemos : a) avaliar as taxas de resolução de crimes. Não podemos saber se

cresceram com o crescimento da criminalidade ou não ? b) avaliar a magnitude da

impunidade penal, um dos aspectos mais sensíveis no debate público a respeito do medo

e da insegurança dos cidadãos diante do crescimento do crime e da violência.

Um outro problema técnico diz respeito à unidade mínima de observação.

Dependendo da agência em foco, a unidade sofre mudança e se torna impossível fazer o

follow up do sistema. Por exemplo, na esfera da polícia civil, o Boletim de Ocorrência

registra o fato criminal, que pode envolver mais de um autor e mais de uma vítima. Na

esfera judicial, muitas vezes uma mesma ocorrência, é desmembrada, por razões legais,

em distintos processos. Por fim, a sentença refere-se não à ocorrência original, mas ao

réu ou réus. Deste modo, há uma dissimetria entre ocorrências, autores e vítimas cuja

articulação deve ser estudada com cuidado, se está em causa a possibilidade de criação de

um sistema nacional de estatísticas oficiais de criminalidade.

Haveria também que se considerar também problemas mais específicos,

relacionados à natureza do crime cometido, Não vamos detalhar este aspecto, mas nunca

é demais salientar a existência de claras diferenças quando o crime envolve relações de

gênero, envolve crianças e adolescentes, envolde graves violações de direitos humanos,

inclusive modalidades coletivas de violação como sejam linchamentos, execuções

sumárias, violência institucional (policial) etc.

Por fim, vamos conferir atenção especial a um tema que freqüentemente habita o

debate público, sobretudo quando está em causa o aumento ou a ampliação da

credibilidade dos cidadãos nas suas instituições de justiça. Referimo-nos ao problema da

morosidade processual. Um tema complexo, difícil de ser tratado, mas sobre o qual já

temos algumas considerações a fazer.

Page 243: PRESOS NO BRASIL

6. Morosidade Judicial

De início, talvez conviesse chamar a atenção para o seguinte aspecto. O problema

da morosidade revela uma complexidade ímpar. Um processo penal não pode conhecer

um morosidade tão alongada que contribua para diluir a materialidade das provas,

caducar as perícias realizadas e desmobilizar provas testemunhais, tudo convergindo para

dissuadir a aplicação da justiça e a distribuição de sanções. Por outro lado, um processo

penal não pode andar tão aceleradamente, atropelando de tal modo os ritos e

procedimentos legais a ponto de comprometer direitos de defesa inalienáveis,

convergindo então para a produção da injustiça. Em suma, o problema é então descobrir

um ponto médio que atenda à expectativa de resposta justa, isto é, que respeite prazos

mas também que não descuideda morosidade processual.

Um dos objetivos da pesquisa Continuidade Autoritária e Construção da

Democracia consistiu em avaliar a eficácia das instituições encarregadas da pacificação

dos conflitos na sociedade brasileira, destacando-se os papéis da Polícia, do Ministério

Público e do Judiciário na apuração das responsabilidades penais nos casos de violações

de direitos humanos.

Para realizar essa avaliação utilizaram-se processos penais instaurados para a

apuração das responsabilidades em casos de grupos de extermínio, justiceiros, violência

policial e linchamentos. A leitura desses processos norteou-se pelas seguintes questões:

(1) na condução dos inquéritos policiais e dos processos penais os prazos

previstos pelo Código de Processo Penal são ou não cumpridos?

(2) Na condução dos inquéritos policiais e dos processos penais os requisitos

legais previstos no Código de Processo Penal são ou não cumpridos?

(3) Quais são os principais “focos” de tumultos que ocorrem nos inquéritos

policiais e processos penais que provocam a morosidade no andamento destes feitos e se

refletem sobre seu desfecho.

Estas questões foram formuladas a partir do contato com os processos penais, no

qual observou-se que os procedimentos – policiais e judiciais – se estendiam durante

longo tempo, sem que fossem verificados acontecimentos específicos que pudessem

justificar o retardamento na apuração dos crimes processados.

Page 244: PRESOS NO BRASIL

Quanto aos requisitos legais, grosso modo, pode-se afirmar que todos eles são

cumpridos. Em outras palavras, significa dizer que, do ponto de vista técnico, todas as

providências previstas no CPP são adotadas: seja quanto a produção de provas orais ou

técnicas, quanto à junção de documentos de outra natureza. Nesse aspecto, constatou-se

que seria necessário uma análise mais acurada a respeito da qualidade das informações

(provas) produzidas e a forma como estas foram utilizadas pelos agentes do direito.

Para a análise a respeito do uso e da distribuição do tempo na justiça, foi

necessário desenvolver uma metodologia que permitisse realizar uma contagem , em

dias, da atuação de cada um dos agentes do direito – delegados, promotores públicos,

defensores, juízes e funcionários dos cartórios – em cada uma das fases do processo –

policial, judicial de primeira e de segunda instância, de trâmites burocráticos.

No processo penal todos os procedimentos devem ser registrados por escrito,

contendo as datas de solicitação e de realização das providências, além do nome e a

função dos agentes que solicitaram e daqueles que atenderam as solicitações. Assim, os

processos penais representam uma rica fonte documental, tornando-se relativamente mais

fácil identificar qual foi a participação de cada agente e qual foi sua responsabilidade nos

atrasos ocorridos no andamento dos processos.

A construção dessa metodologia, que resultou num diagrama que permite

acompanhar o fluxo do processo, desenvolveu-se nas seguintes etapas:

(1) realizou-se uma leitura do CPP para identificar os artigos que

regulamentam os ritos processuais nos processos de competência dos tribunais do júri,

sistematizando as informações descritas, já distribuídas por fase. Esse conjunto de prazos

e providências foi considerado como ideal.

(2) Posteriormente, realizou-se uma consulta aos cartórios dos tribunais do

júri do município de São Paulo, e alguns localizados em municípios da Grande São

Paulo, a respeito dos prazos praticados na condução dos processos penais. Esta etapa

mostrou-se necessária na medida em que, cotejadas as informações extraídas do CPP

com aquelas observadas nos processos, deparou-se com uma série de providências que

eram necessárias para garantir o andamento do processo e assegurar o respeito às

Page 245: PRESOS NO BRASIL

garantias legais necessárias à aplicação da justiça, e que eram realizadas a despeito de

não estarem regulamentas pelo CPP. A este conjunto de prazos chamou-se de Real.

Um bom exemplo para ilustrar essas providências ocorre na fase da Instrução

Criminal, mais especificamente na fase em que são ouvidas as testemunhas de

acusação e de defesa. O CPP estabelece que, em caso do réu encontrar-se em

liberdade, as testemunhas de acusação devem ser ouvidas no prazo de 40 dias (artigo

401 do CPP). No caso do réu encontrar-se preso, esse é reduzido pela metade,

devendo as testemunhas serem ouvidas em 20 dias. O artigo não dispõe nada a

respeito das testemunhas de defesa e nem sobre o número de audiências que devem

ser realizadas nesta etapa.

A pesquisa realizada junto aos cartórios revelou que, na prática, o mesmo artigo

era interpretado de diferentes maneiras: para alguns o prazo estabelecido no CPP era

comum para a oitiva das testemunhas de acusação e de defesa, para outros o prazo

deveria ser duplicado, sendo 40 dias para ouvir as testemunhas de acusação e mais 40

para ouvir as de defesa. Na prática, quando inquiridos a respeito das pautas adotadas nos

cartórios para marcar as ocorrências constatou-se que em médias estas ocorriam no

intervalo de 60 dias. Além disso, o número de audiências variava de acordo com o

número de testemunhas arroladas pelas partes, estando diretamente relacionado à maior

ou menor facilidade para a localização destas testemunhas.

A instrução criminal é apenas um exemplo das dificuldades que foram

enfrentadas para que se pudesse estabelecer qual a duração mínima necessária para que

um crime contra a vida pudesse ser processado e julgado pelo TJ, levando-se em conta o

cumprimento de todos os requisitos formais estabelecidos pelo CPP e a observância de

todas as garantias legais necessárias à aplicação da justiça.

(3) a partir das informações obtidas no CPP e nas consultas realizadas junto

aos cartórios, foi possível construir o diagrama de fluxo dos processos, chegando-se a um

quantum de tempo que denominados “tempo previsto” ou “morosidade necessária”.

Com o diagrama foi possível perceber também que, este não poderia ser único e aplicado

indistantemente a todos os processos. Na realidade, a metodologia adotada nos permitiu

construir um diagrama para cada processo, respeitando-se: a situação do réu (se está

Page 246: PRESOS NO BRASIL

preso ou em liberdade); o número de réus (que pode ou não implicar em

desmembramentos dos autos originais), o número de testemunhas, etc.

A análise comparativa dos processos foi possível devido à pradonização dos

pressupostos adotados para a definição dos intervalos de tempo que seriam considerados,

por exemplo, para as audiências de oitiva das testemunhas, ou para o interrogatório do(s)

réu(s). Todos os pressupostos tiveram como fundamento a consulta realizada aos

cartórios e a realidade observada nos processos.

A estrutura básica do diagrama apresenta-se da seguinte forma:

Tempo Previsto TempoObservado

Morosidade

Fase Policial(são descritas todas as providênciasque devem ser adotadas nesta fase,inclusive as dilações de prazo)

Prazosestabelecidospelo CPP +prazos

Prazosobservados nosprocessosanalisados

Diferençaobservadaentre osprazos

Trâmites burocráticos(São descritos todos os intervalosnecessários para que o processotramite entre os agentes do direito –do delegado para o cartório e vice-versa; da delegacia para o Fórum evice-versa; do cartório para o MP, ojuiz ou o defensor e vice-versa. Estestramites estão presentes em todo oprocesso)

verificados nasconsultas aoscartórios

previstos eoobservado.Quando oprazoobservadofoi igual oumenor aoprazoprevistoessa

Fase intermediária(trata-se de um recurso metodológicopara definir aquela etapa de transiçãoentre a conclusão do IP pelodelegado e o atendimento desolicitações formuladas pelo MPantes do oferecimento da denúncia.De acordo com o CPP esta fasepoderia ser englobada pela fasepolicial. Adotamos uma outranomenclatura com o objetivo dediferenciar as providencias queforam sendo adotadas pelo delegado,daquelas que foram adotadas por

diferençanão foicomputadaàmorosidade

Page 247: PRESOS NO BRASIL

solicitação de outro agente)1ª fase judicialdescrição de todas as providênciasque devem ser adotadas nesta faseque se encerra com a Sentença depronúncia)2ª fase judicial(descrição de todas as providênciasque devem ser adotadas nesta faseque se encerra com o julgamentopelo Conselho de Sentença)Recursos em 2ª instância(descrição de todas as providênciasque devem ocorrer até que o recursoseja julgado pelos desembargadores)

Para concluir, apenas algumas palavras. Não se procurou aqui esgotar todos os

problemas que a utilização de fontes judiciais oferecem. Nosso esforço foi o de

condensar, o quanto possível, aqueles mais evidentes que possam, de antemão, vir a

comprometer o êxito de uma iniciativa na direção da formulação e implementação de um

sistema de estatísticas oficiais de criminalidade que possa atender tanto às expectativas

dos pesquisadores, mas sobretudo possa orientar a formulação e implementação de

políticas públicas de segurança e justiça.

Esperamos haver contribuído um pouco para este debate, sobretudo ao sugerirmos

que o êxito de uma empreitada desta natureza depende de uma conjunção de fatores :

definição clara de objetivos a serem alcançados, metodologia adequada, enfrentamento

igualmente adequado de problemas técnicos e uma boa dose de paciência no jogo de

poder necessário para a conquista das autoridades presentemente incumbidas de produzir,

disseminar, circular e divulgar estatísticas.

Page 248: PRESOS NO BRASIL

UMA ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O USO E AINTERPRETAÇÃO DAS FONTES DE INFORMAÇÕES DO

SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL ∗∗

JOANA D. [email protected]

1. Introdução

Algumas fontes de informações produzidas no Sistema de Justiça Criminal nos

permitem conhecer a incidência da criminalidade e da sua repressão. São elas: as

estatísticas oficiais, os autos de processos, e as fichas de controle interno das

organizações sobre o andamento dado aos processos. (slide 2)

Creio que vocês estão bastante familiarizados com as estatísticas oficiais: suas

potencialidades e seus problemas. Apenas gostaria de lembrá-los de que as estatísticas

oficiais, assim como os autos ou as fichas de controle de processos devem ser

consideradas produtos organizacionais, isto porque todas estas fontes “refletem as

condições operacionais, ideológicas e políticas das diferentes organizações que compõem

este sistema” (Paixão, 1983, p.19). (slide 3).

Então, um primeiro aspecto que eu gostaria de discutir nesta exposição é a

indicação feita por uma importante corrente sociológica de que as estatísticas oficiais, ou,

como estamos sugerindo, - todas as fontes de informações produzidas no sistema - devam

ser vistas como produtos das atividades práticas e cotidianas dos operadores do sistema

de justiça criminal. ( slide 4)

Se não parece produtivo, como bem o frisou o prof. Cláudio Beato em sua

exposição, levarmos ao extremo o argumento de que latrocínios, homicídios e estupros

limitam-se a conflitos de natureza política e ideológica (tente convencer disto as pessoas

vítimas desses crimes), também é verdade que o bordão mais conhecido do direito é : “o

que não está nos autos não está no mundo”. Assim, iremos nos valer, para o estudo das

fontes sobre a criminalidade e a sua repressão, de duas contribuições da sociologia

interpretativa. Uma, de caráter mais teórico, que é a sua concepção do crime como o

resultado de contingências e decisões cotidianas tomadas nas organizações de controle

social, e outra, de natureza metodológica, que é a sua recomendação de transformarmos

∗ (slide 1)

Page 249: PRESOS NO BRASIL

as fontes de informação do sistema de justiça criminal em tópico de estudo e de

investigá-las a partir das atividades rotineiras dos operadores. ( slide 5)

Tomando como ponto de partida estas contribuições, vou procurar mostrar, ao

longo desta exposição, como é possível construir uma metodologia alternativa de

compilação e organização das informações produzidas pelo Sistema de Justiça Criminal

que nos torne mais capacitados para interpretarmos os seus resultados.

2. Fluxo do Sistema de Justiça Criminal

A forma mais adequada de investigarmos a incidência de crimes e o

processamento dos seus autores é reconstituindo o fluxo de pessoas e papéis que

atravessa as diferentes organizações que compõe o sistema de Justiça Criminal - Polícia,

Ministério Público, Varas Criminais, Tribunal de Apelação, Departamentos

Penitenciários.7 ( slide 6)

Tal reconstituição permite a um só tempo: quantificar a produção decisória de

cada organização, descrever o fluxo dos envolvidos e dos procedimentos, revelar os

processos de seleção e filtragem que atua sobre os crimes e criminosos e avaliar o grau

de interação existente entre os diferentes subsistemas (Coelho, 1986; Fundação João

Pinheiro, 1987) (slide 7)

Como todas as fontes que citamos - estatísticas oficiais, autos de processos e

registros de controle interno seguem o desenrolar do processo penal, podemos organizá-

las de forma a captar o fluxo de pessoas e papéis, tomando por referência os processos

decisórios de cada organização. (slide 8)

O boletim de ocorrência (BO), registro da queixa feita pelo cidadão, e o inquérito

policial (IP) são produzidos na polícia. A denúncia, em geral, é da responsabilidade do

Ministério Público.8 Com ela encerra-se a fase que antecede o processo. Este desenrola-

se nas varas criminais, através da atuação da defesa e da acusação, dirigidas por um juiz

que profere a sentença de condenação ou de absolvição. Em ambos os casos cabe a

apelação do promotor, do querelante, ou da defesa. Se aceita, os autos são julgados por

7 O primeiro trabalho a recomendar esse procedimento no Brasil foi um excelente estudo realizado em1987 pela Fundação João Pinheiro em convênio com o Ministério da Justiça, coordenado pelo prof. A. L.Paixão.8 Ao receber o inquérito, o Ministério Público pode devolvê-lo à autoridade policial, solicitando novasdiligências necessárias ao oferecimento da denúncia.

Page 250: PRESOS NO BRASIL

um tribunal de segunda instância. Por seu turno, o conflito e os envolvidos não

canalizados em algum desses procedimentos em curso acabam tendo seus registros

arquivados.9 Este fluxo descreve o processamento dos crimes da competência de juiz

singular. Vejamos o mesmo fluxo para os crimes da competência do Júri. (slide 9)

Os crimes da competência de júri são o homicídio doloso, o infanticídio, a

participação em suicídio e o aborto, tentados e consumados. Seu processamento se dá

em duas fases: a primeira fase, inicia-se com o boletim de ocorrência, seguido do

inquérito policial, da denúncia e da instrução criminal. Na instrução, realizada nas

varas criminais, as audiências de interrogatório do réu e as oitivas das testemunhas se

dão com a participação do promotor e do advogado e são dirigidas por um juiz singular

que profere a sentença. Esta inclui quatro alternativas: a pronúncia, a impronúncia, a

desclassificação, ou ainda, a absolvição sumária. A segunda fase é realizada em

plenário. Inicia-se com o libelo - uma síntese da acusação -, e desenrola-se com a

atuação do promotor e do advogado que oralmente apresentam suas teses aos jurados. A

sentença é alcançada através da maioria de votos de sete jurados reunidos no Conselho

de Sentença, do qual o juiz é o presidente. Aqui, também cabe a apelação, porém apenas

uma vez e em certas circunstâncias definidas no CPP. 10

2.1. INFORMAÇÕES QUANTITATIVAS PRODUZIDAS PARA O CONTROLE

ORGANIZACIONAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CONSTRUÇÃO DO FLUXO

Apresentada a configuração do fluxo, vamos à sua quantificação. A fonte

tradicionalmente utilizada pelo analista social e por gestores de políticas públicas para

medir a incidência dos crimes e da sua repressão são as estatísticas oficiais. Afora a

críticas normalmente endereçadas à esta fonte, acrescenta-se, à época em que iniciei meu

trabalho, a situação de precariedade dos dados produzidos nacionalmente que se

9 De acordo com o art. 17 do CPP, a autoridade policial não pode mandar arquivar os autos de inquérito. Oarquivamento em geral é requerido pelo Ministério Público e endereçado à autoridade judicial, que odetermina ou, discordando do pedido, remete os autos ao procurador geral de Justiça ( art. 28 do CPP).10 O artigo 593 do CPP dispõe sobre as circunstâncias em que cabe a apelação das decisões do tribunaldo júri.

Page 251: PRESOS NO BRASIL

caracterizavam pela descontinuidade, incomparabilidade e desarticulação ( Fundação

João Pinheiro, 1987).

Como então deveria proceder o pesquisador interessado tanto na reconstituição

quantitativa do fluxo quanto na sua contextualização a ser feita a partir das atividades

práticas dos operadores das organizações que compõem o Sistema de Justiça Criminal ?

Foi com essa preocupação metodológica que iniciei minha pesquisa sobre crimes

sexuais na cidade de Campinas em 1993. (slide 10) Não tardei em verificar que as

informações oficiais fornecidas pelas organizações tinham por base registros de controle

interno e que a partir deles era possível traçar o fluxo de procedimento e pessoas que as

atravessa. (slide 11) Trata-se de livros de registros de boletins de ocorrência, de

inquéritos e de sentenças; fichários gerais de cartórios criminais e atas de sentenças da

vara do júri.

Na pesquisa realizada, o recorte estabelecido foi o da transformação do

acontecimento em fato jurídico, que se inicia no momento em que o cidadão faz a queixa

e culmina com a sentença. De todos os documentos que compõem os autos, o boletim de

ocorrência foi o único documento consultado diretamente nos arquivos da polícia, mais

especificamente na Delegacia de Defesa da Mulher desta cidade, pois crimes sexuais

desde meados da década de 80 são da competência de delegacias especializadas. O

objetivo era iniciar a montagem de um banco de dados quantitativos sobre o fluxo, a

partir das informações ali contidas referentes ao fato e aos envolvidos, a um histórico da

ocorrência e a algumas anotações sobre o andamento dado ao caso. Ao todo foram

levantadas informações de 912 boletins de crimes sexuais de maior incidência em

Campinas - estupro, tentativa de estupro, atentado violento ao pudor e sedução -,

registrados entre 1988 a 1992 e verificado os seus desdobramentos nos livros de registros

de inquéritos e fichas de processos. ( slide 12 ( BO), 13 (IP) e 14 ( Ficha de P)).

Computando através das informações obtidas nesses registros quantos dão entrada

no sistema e quantos chegam ao último estágio de processamento, observou-se uma

configuração de funil (slide 15). 11

11 O efeito de funil é uma característica inerente aos sistemas de justiça criminal modernos. A este respeitover Greenwood (1982); Coelho ( 1986) ; CESDIP (1995) e Vargas (2000).

Page 252: PRESOS NO BRASIL

Além das informações sobre os crimes em relação ao estágio do processamento

penal, foram definidos outros três conjuntos de informações: aquelas sobre o perfil dos

envolvidos (idade, cor, estado civil e profissão); sobre as relações estabelecidas entre os

protagonistas; e, finalmente, sobre a ocorrência propriamente dita ( 16, 17, 18).

2. 2. Informações qualitativas: o contexto de produção dos dados (slide 19)

Uma investigação qualitativa, cujo foco foram as atividades práticas dos

operadores que se desenrolam no cotidiano das diferentes organizações do Sistema de

Justiça Criminal, possibilitou incorporar na análise como estas atividades se refletem nas

configurações que o fluxo assume, segundo as variáveis estudadas.

Em relação a aplicação das disposições definidas nos códigos, que constitui a

atividade judiciária por excelência, foi possível observar que, se por um lado estas

disposições desempenham um papel fundamental na definição do que deve ser

considerado crime e do perfil dos envolvidos, por outro lado, elas nada dizem sobre

como estabelecer a correspondência entre o que está estatuído e os casos em questão.

Para aplicar a lei os operadores devem lançar mão de um outro tipo de conhecimento,

quais sejam, das instruções que eles aprendem em sua socialização profissional sobre

como esses crimes são normalmente cometidos (Sudnow, 1965; Cicourel, 1968). São

essas instruções que lhes permitem caracterizar, reconhecer e classificar as ocorrências

em crimes. 12

Assim, um aspecto fundamental para quem trabalha com informações sobre o

Sistema de Justiça Criminal deve ser ressaltado: De acordo com os códigos e as

atividades práticas dos operadores, para cada tipo de delito corresponde uma maneira

singular de tratamento dos casos (slide 18).

12 Um exemplo disto está na caracterização de roubos em firmas feita por um promotor em um diálogo comum estagiário: “Você pode ver que este crimes costumam acontecer no dia do pagamento, geralmente nodia 1º ou no dia 10 e normalmente existe um informante...” . A noção de tipificação, isto é teorias de sensocomum adquiridas na socialização profissional é muito utilizada pela sociologia interpretativa,notadamente, Sudnow (1965), Cicourel (1968) e no Brasil, Paixão (1982) para entender como osoperadores classificam envolvidos e cenários, como elaboram suas decisões etc. ).

Page 253: PRESOS NO BRASIL

Uma singularidade importante dos crimes sexuais é o caráter privado da ação

penal. Isto é, cabe a vítima ou a seu representante legal a decisão de acionar o sistema.13

(slide 19) As informações coletadas nas anotações dos Bos sobre procedimentos e

soluções dadas aos crimes sexuais nos informam que, na maioria dos casos, a não

instauração do inquérito se deve à desistência da vítima ou de seu representante legal de

acionar o Estado para a solução do litígio, seguidos, em menor expressão, daqueles em

que não foi possível identificar o agressor e por último dos casos arquivados por

determinação da autoridade judicial. Já na categoria “inquérito instaurado” as ações de

natureza privada predominam sobre as públicas.

Assim, a natureza privada da ação penal para os crimes sexuais confere aos

queixosos um papel crucial na definição de quais ocorrências e autores darão entrada no

sistema. Em boa parte dos casos eles optam por não dar entrada no sistema e é essa opção

que nos permite explicar a redução dramática que se observa no fluxo na passagem do

BO para o inquérito. 14(slide 20)

Darei, a seguir, outros exemplos que nos permitem observar como as atividades

de categorização penal e de decisão atuam no processamento dos crimes sexuais e de

seus autores. Utilizando alguns gráficos referentes à cor do suspeito de estupro,

procurarei contextualizar a partir destas atividades os resultados obtidos.

No gráfico referente à cor do indiciado por estupro, construído a partir de dados

de BO (slide 21), verifica-se que 53% são de cor branca, 28 % de cor parda e 19 % de cor

preta. A comparação entre estas porcentagens e a distribuição por cor da população do

município de Campinas, recenseada no ano de 1991 mostra que a proporção, sobretudo

de suspeitos de cor preta, é significativamente maior do que aquela encontrada na

população em geral . Esta indicação nos sugere uma hipótese possível de ser examinada,

qual seja: a de que a atribuição da cor preta aos suspeitos confere mais sentido ao relatos

do estupro.

13 Exceção feita aos casos em que o agressor é o próprio pai ou responsável pela vítima menor de 14 anos eàqueles em que resultam em morte ou lesão grave em que cabe ao promotor a incumbência de promover aação, independente da vontade dos queixosos.14 Segundo Paixão e Beato (1997), as pessoas não recorrem ao sistema não apenas em razão de suadescrença em seu funcionamento, mas sobretudo por não desejarem a interferência do estado em sua vidaprivada. Assim, como observaram estes autores, muito do que é tomado como indicador de ineficiência dosistema é, na verdade, resultado da decisão dos queixosos.

Page 254: PRESOS NO BRASIL

Vimos que na fase de registro da queixa até a decisão de instauração de inquérito

as concepções dos queixosos sobre o que consideram crime e a visão acerca das pessoas

a quem atribuem a sua responsabilidade estão bastante presentes. A pesquisa qualitativa

confirmou o discurso das policiais sobre não serem raras as queixas falsas apresentadas à

polícia. No caso de acusações de estupro, há uma variedade de motivos que podem levar

a vítima ou seu representante legal a fazê-las, dentre eles, justificar um aborto, desviar a

investigação de um conhecido ou de um parente denunciados por outrem etc.

Mas, uma outra pista do comportamento dos queixosos em relação à classificação

de cor dos suspeitos nos é fornecida pelas informações dos registros de crimes sexuais

cuja autoria não foi identificada pela polícia. Em se tratando de autor não identificado, é

praxe policial solicitar ao responsável pela queixa detalhes sobre as características do

agressor, tais como a cor, a idade, o tipo ou o corte do cabelo, a altura, a vestimenta, além

de sinais como cicatrizes, tatuagem etc. visando possibilitar a sua identificação.15 Caberia

então investigar a distribuição das classificações referentes à cor para as situações de

autoria não identificada nas quais se recorreu à caracterização do suspeito. ( slide 22) Isto

foi realizado através do cruzamento das variáveis "cor do suspeito", referida na

caracterização, e "tipo de crime". O resultado obtido foi o de que, em acusações de

estupro, do total dos dados conhecidos, 40% dos autores não identificados e

caracterizados pelas vítimas são referidos como sendo de cor branca, 32% de cor parda e

28% de cor preta.16 Portanto, brancos e pretos, nesta segunda classificação, apresentam

diferenças em relação à distribuição de cor para o total dos suspeitos de crime do estupro

apresentada anteriormente (53%, 28% e 19%, respectivamente), ficando o suspeito de cor

branca sub-representado e o suspeito de cor preta sobre-representado em relação à

classificação geral.

15 O que significa dizer que no ato de registro do BO de autoria desconhecida, policiais e queixosaselaboram uma identificação para o suspeito baseada sobretudo em sua aparência. E aqui também ainformação “cor” aparece invariavelmente, conforme revela a leitura dos formulários.16 A variável cor do suspeito referida na sua caracterização pela vítima foi criada isolando-se a informação“cor” das outras informações que constam nos registros de BOs sobre as características do suspeito nãoidentificado pela polícia por ocasião da queixa. Trata-se não apenas de suspeito desconhecido da vítima,mas também daquele ainda não identificado pela polícia. A comparação proposta é, portanto, entre a cordesses suspeitos não identificados e a cor de todos os suspeitos, identificados e não identificados, queconstam dos registros elaborados pela polícia.

Page 255: PRESOS NO BRASIL

A partir desses dados é possível então sugerir que as vítimas de agressores

desconhecidos e ainda não identificados, em interações com as policiais, tendem a

apontar bem mais os pardos e os pretos (60%) como os prováveis autores dos crimes do

que os brancos (40%). Particularmente nas situações em que o autor não foi identificado

pela polícia, as cores preta e parda apresentar-se-iam como classificações imediatamente

convincentes porque preenchem a identidade virtual socialmente imputada aos

estupradores.

Este exercício de contextualização também pode nos ajudar a interpretar o gráfico

sobre a cor do indiciado por estupro na altura do inquérito (slide 23)

Uma primeira leitura deste gráfico indica que a cor do suspeito não é uma

variável importante na decisão de instauração do inquérito. Entretanto, pode-se pensar

que, na altura do inquérito, a semelhança observada na proporção inquérito instaurado/

inquérito não instaurado para as três classificações de cor esteja encobrindo o fato de que

pretos e pardos são mais representados nas situações de autoria desconhecida, conforme

sugerimos a pouco. Se fosse possível isolar esses casos, teríamos uma outra configuração

que, certamente, não sustentaria essa proposição sobre a não influência da cor no

momento da instauração do inquérito.

Por outro lado, alguns inquéritos instaurados referem-se a indivíduos

identificados através de investigação e que acabaram sendo presos. Ou seja, casos

inicialmente de autoria desconhecida também se podem transformar em inquéritos

instaurados, alterando novamente a relação inquérito instaurado/ inquérito não

instaurado.

Contextualizando as situações que envolvem autores não identificados, observa-se

que a prática da polícia é geralmente a de não proceder à investigação, ou realizá-la a

partir da lógica do inverso, ou seja, prende-se primeiro o suspeito para depois estabelecer

sua culpa (Paixão, 1982).17 Na investigação de estupro, em particular, a essa tipificação

acrescentam-se outras, dentre elas, a convicção de que estupradores sempre negam a

17 Já foi dito acerca dos crimes em geral que os policiais tendem a reconhecer facilmente indivíduos de corpreta como criminosos potenciais. Uma possível explicação para isso é a afirmação de que osconhecimentos adquiridos pelo policial no exercício da profissão levam a que ele identifique facilmenteindivíduos de cor preta como criminosos. Contudo, parece ser mais pertinente inferir da atitude racista dos

Page 256: PRESOS NO BRASIL

autoria de seus atos. A somatória dessas tipificações, no caso do estupro, resulta na

desconsideração da versão do suspeito e acaba constituindo-se em evidência de sua

culpabilidade e justificando sua prisão.

Tomando por base uma vasta literatura internacional e nacional que tem

diagnosticado a ação discriminatória e hostil da polícia em relação aos negros é possível

considerar que indivíduos pretos e pardos são alvos mais constantes de investigação e

prisão, e supor que eles estarão sobre-representados naquelas situações de ocorrências de

estupro de autoria desconhecida que, após a identificação do suspeito através de

investigação, resultam em inquérito instaurado.

Mais uma vez a relação inquérito instaurado/inquérito não instaurado se modifica

e toma, provavelmente, uma configuração próxima daquela assumida de início.

Deste modo, uma leitura que coloca os dados em contexto sugere a ação de

posturas discriminatórias em relação à cor do suspeito de estupro tanto da parte dos

queixosos quanto da parte da polícia.

Vamos agora examinarmos os dados referentes a esta mesma variável na fase de

Denúncia. ( slide 24) Duas observações devem ser ressaltadas neste gráfico. Primeiro, a

baixa proporção de réus de cor branca não denunciados em relação aos denunciados.

Segundo, a pequena diferença entre denunciados e não denunciados observada para os

réus de cor preta.

Para que se possa melhor avaliar os dados referentes ao réu de cor branca é

necessário lembrar que ausência de informação aqui significa sobretudo que o caso ainda

não foi concluído em razão do tempo de duração dos inquéritos e dos processos. Nesse

sentido, a duração destes parece ser decisiva para a interpretação dos dados.

Na fase da denúncia, o andamento dos processos reflete, inicialmente, o tempo de

trabalho gasto pela polícia para reunir no inquérito policial os elementos de convicção

policiais em geral o fato de a polícia ser parte integrante e também participante de uma sociedade em queoperam mecanismos de discriminação em relação à s pessoas de cor.

Page 257: PRESOS NO BRASIL

sobre o fato e sua autoria e, posteriormente, o tempo que os promotores levam para

elaborar esses elementos e proceder à denúncia.

Por determinação do Código do Processo penal (CPP), o inquérito com réu preso

em flagrante ou preventivamente deve terminar em dez dias. Já a denúncia, nesta

circunstância, deve ser oferecida em cinco dias. Quando o réu encontra-se solto, o prazo

para a finalização do inquérito é de 30 dias e o de apresentação da denúncia, de 15 dias.

Caso haja dificuldades para a elucidação do caso, o Código prevê a remessa dos autos ao

Fórum para que o juiz determine um novo prazo.

Durante a pesquisa, observei a prática cotidiana das policiais e do Ministério

Público com relação aos prazos estipulados pelo CPP. Em geral, segue-se o prazo para os

réus presos. Com relação aos réus soltos, porém, é comum o seu não cumprimento. Do

ponto de vista formal, esta prática, efetivada através dos pedidos de “cota” feitos pelos

promotores - ou seja, pela solicitação formal ao juiz de mais tempo para aprofundar as

investigações - é justificada pela falta de elementos para a elucidação dos casos. Mas na

prática a morosidade ou a agilidade no andamento do processo pode ter outros motivos.

Na polícia a agilidade pode ser motivada pela gravidade dos casos ou pela convicção

sobre sua autoria etc. A mesma suposição deve ser feita em relação ao andamento dos

processos na Promotoria. Parece-me significativo o fato de que os réus brancos sejam,

proporcionalmente, os que mais possuem processos em andamento e, consequentemente,

tenham maiores chances de não serem denunciados. Portanto, a configuração que mostra

uma baixa proporção de não denunciados para réus brancos deve ser reinterpretada à luz

dos dados sobre o andamento dos processos.

Quanto aos dados referentes aos réus de cor preta, verifica-se que, na relação de

proporção entre réu denunciado e não denunciado, eles são os que mais aparecem na

categoria não denunciados (46%), seguidos dos réus de cor parda (35%) e de cor branca

(25%). Para uma leitura das cifras referentes ao réu de cor preta e também ao réu de cor

parda é necessário recorrer aos procedimentos da denúncia.

A denúncia deve conter uma série de elementos que justifique o processo criminal

(CPP, art. 41). Trata-se de um relato estruturado que redescreve os fatos e o acusado e

lista as testemunhas - todos eles apontados pela polícia. Na prática, o contato entre

Page 258: PRESOS NO BRASIL

Ministério Público e polícia realiza-se apenas através dos autos de inquérito (via papel).

Se por um lado, foi possível observar que para os promotores, uma passagem anterior

pelo sistema de justiça, registrada na folha de pesquisa de antecedentes feita na polícia,

constitui-se, no momento da denúncia, em forte evidência do crime, sendo um dos

principais elementos utilizados por estes operadores para formar e fazer valer sua

convicção da autoria do crime, por outro lado, o distanciamento proporcionado pela

comunicação escrita permite que se torne evidentes as contradições presentes nos autos

de inquérito (Goody,1986), bem como as fragilidades das provas recolhidas. Assim, é

quase que automático o arquivamento dos casos ali descritos cuja acusação não se

sustenta, seja porque apresenta contradições claras, seja porque os crimes não tiveram a

sua autoria esclarecida.

Assim, a pesquisa qualitativa nos permite argumentar que os dados referentes aos

réus pardos e, sobretudo, aos réus pretos não denunciados podem estar indicando que

parte desses indivíduos não possuíam antecedentes criminais e foram indiciados na

polícia sem ter havido, de fato, alguma acusação consistente que pudesse ser sustentada

na altura da denúncia.

Com relação aos dados referentes à cor do réu de estupro na da sentença, ( slide

26) é possível observar que os réus de cor branca receberam preferencialmente sentenças

de absolvição e que nenhum réu de cor preta foi absolvido. Cabe ressaltar também que

uma boa parte dos processos de brancos e pardos encontra-se em andamento.

Como os casos são processados em tempos diferentes, a fase da sentença está

representada pelo número de casos que alcançaram uma decisão à época da pesquisa. Isto

quer dizer que a configuração que os dados assumem hoje deve, provavelmente, se

alterar à medida que os processos em andamento vão alcançando uma definição. Note-se

que a configuração atual é construída segundo um eixo temporal: são processos que

alcançaram a sentença devido à sua antigüidade ou à sua agilidade. Ocorre que os casos

passados, que poderiam fornecer o desenho final mais provável do fluxo, fundem-se aos

casos mais recentes que por alguma razão alcançaram rapidamente a sentença. Uma

forma de desfazer essa fusão é investigar essas razões e procurar os significados que elas

possam trazer à leitura dos dados no formato como ele se apresenta no gráfico

Page 259: PRESOS NO BRASIL

Casos que alcançam rapidamente uma sentença podem referir-se a réus presos

durante o processo, pois, como vimos, os prazos estabelecidos nos códigos para estes

casos costumam ser seguidos. Por outro lado, réus presos preventivamente, durante o

processo, ou já tendo cumprido pena tendem mais a obter uma sentença de condenação.

Segundo alguns autores (Coelho, 1993; Zaluar, 1995; Adorno, 1995; Sapori, 1996), a

natureza da defesa é fundamental na definição da sentença, dado o desempenho

diferenciado dos advogados. 18 Argumenta-se que a maior condenação dos réus negros

pode ser atribuída, em boa medida, ao fato de a sua defesa ser realizada por defensores

públicos. Inversamente, os réus brancos tenderiam mais a constituir advogados

particulares.

A meu juízo, este argumento se sustenta em maior ou menor medida, conforme se

trata dos crimes comuns ou daqueles da competência do tribunal do júri. No julgamento

destes últimos, sobretudo nos casos considerados comuns em que poucas testemunhas

são ouvidas, os jurados tomam ciência “dos fatos” por meio das teses defendidas pela

acusação e pela defesa, e, deste modo, suas performances parecem ser fundamentais para

o resultado da sentença.

Já em crimes de processo comum, a sentença é proferida por um juiz singular, não

poucas vezes, o mesmo que realizou o interrogatório do réu e dirigiu a oitiva das

testemunhas. É possível supor, portanto que em sua sentença, o juiz singular se baseie

nas evidências apresentadas nos autos, inclusive os de inquérito, e que esteja menos

submisso à argumentação e estratégias dos acusadores e defensores.

Com relação à interpretação da configuração dos dados de sentença de estupro a

partir da cor, restringir-me-ei aos réus de cor preta, cuja situação possui definições mais

concretas. É significativo que quase todos os réus pretos tenham tido os seus casos

solucionados (há um único caso em andamento). Vimos que se trata de casos

classificados rapidamente, provavelmente referentes a réus presos que foram submetidos

à defesa pública. (slide 27)

18 Foi observado que, nesta fase, a morosidade traduz uma estratégia do advogado constituído de buscarbeneficiar seu cliente; já a agilidade revela a ação do advogado dativo voltada para a produtividade dosistema (Sapori, 1996).

Page 260: PRESOS NO BRASIL

Tomando o fluxo desde o seu início, sugeri que na altura da queixa, uma

acusação envolvendo um réu preto torna mais factual um relato de estupro. Também na

fase do inquérito, a cultura policial tende a identificar e prender com maior freqüência

pretos e pardos como supostos autores desses crimes. No momento da denúncia, porém,

alguns casos envolvendo pardos e sobretudo pretos são desacreditados devido à

fragilidade das acusações levantadas na polícia e acabam sendo arquivados. Dado o seu

caráter cumulativo, as tipificações presentes nos processos advindos da fase da denúncia,

caso não sejam desfeitas a partir da atuação do contraditório (da defesa), tornam os pretos

e os pardos alvos fáceis de uma sentença condenatória. Assim, hipoteticamente, pode-se

imaginar como percurso prevalecente para os casos que envolvem réus pretos: uma

acusação da vítima considerada convincente; a prisão do indiciado durante o processo; a

primariedade do réu, uma defesa dativa e em um processamento rápido que culmina com

uma sentença de condenação.

Assim, há um aspecto fundamental que o desenho do fluxo para a cor do réu nos

permite inferir: as implicações desde a fase policial da repetida estigmatização de

determinados suspeitos, tornando indiscutível a sua culpabilidade.

3. ConclusãoA preocupação com a coleta, utilização e disseminação de informações sobre a

incidência de criminalidade e da sua repressão vem crescendo paralelamente à escalada

da violência no Brasil nas três últimas décadas. Procurei mostrar, ao longo desta

exposição, as vantagens de se utilizar uma metodologia de pesquisa que possibilite reunir

informações sobre crimes e criminosos integradas ao seu contexto de produção. Uma das

conseqüências de seu uso é o conhecimento do próprio funcionamento do Sistema de

Justiça Criminal e da lógica das organizações que o compõem.

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Page 263: PRESOS NO BRASIL

UMA ABORDAGEM ORGANIZACIONAL

DA JUSTIÇA CRIMINAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA

LUÍS FLÁVIO SAPORIPesquisador da Fundação João Pinheiro / Professor da PUC - MG

[email protected]

A justiça na sociedade moderna é implementada mediante uma estrutura burocrática

racional-legal. A justiça burocratizada corresponde ao ápice do processo histórico de

racionalização na criação e na aplicação do Direito, como bem o analisou

WEBER(1984).

A burocratização da justiça significou a criação de uma complexa estrutura formal

para a atividade judicial. Em primeiro lugar cumpre destacar a existência de uma

acentuada divisão de trabalho, com a definição de diferentes atividades corporificadas em

papéis ocupacionais profissionalizados. No caso específico da justiça criminal, estamos

no referindo ao Delegado, ao Promotor, ao Defensor, ao Juiz. Tais papéis ocupacionais

estão inseridos em organizações distintas, cada uma delas apresentando um arcabouço

estrutural próprio, com a especificação de um sistema de mando e subordinação.

O conjunto destas organizações compõe um network, comumente denominado de

sistema de segurança pública. Cabe salientar que diversos cientistas sociais brasileiros

têm utilizado a expressão sistema de justiça criminal como sinônimo de sistema de

segurança pública, o que me parece perfeitamente defensável (CAMPOS

COELHO,1986). Não há qualquer relevância ou mesmo qualquer amparo teórico, na

perspectiva sociológica, que justifique uma distinção conceitual entre os termos. Entre os

cientistas sociais norte-americanos prevalece, inclusive, a expressão criminal justice

system. (WALKER,1994)

Na sociedade brasileira, compõem o sistema de segurança pública as seguintes

organizações :

- Polícia Militar

- Polícia Civil

- Polícia Federal

Page 264: PRESOS NO BRASIL

- Polícia Rodoviária Federal

- Ministério Público

- Defensoria Pública

- Judiciário

- Unidades prisionais

O sistema de justiça criminal tem a incumbência de aplicar os ordenamentos

jurídicos, evitando a ocorrência de atos criminosos, reprimindo e investigando quando

tais atos ocorrem, processando seus possíveis autores e punindo-os quando a autoria

ficou evidenciada. Nos termos de PAIXÃO(1988), a atividade criminosa constitui uma

externalidade na vida cotidiana dos indivíduos que compõem um grupo social e as

instituições da justiça penal existem para regular os custos correspondentes e cooperar

para a implementação de alguma ordem política. Isto supõe que a noção de justiça

criminal, ou segurança pública, envolve necessariamente a adoção de mecanismos de

controle social. A principal referência aqui são os padrões de conduta legalmente

sancionados, de modo que a garantia da segurança pública em boa medida remete-nos ao

controle da criminalidade.

A burocratização da justiça significou, por outro lado, a padronização dos

procedimentos a serem adotados na obtenção do output do sistema. Na justiça criminal

todos os passos do processo adjudicatório estão pré-fixados e formalizados. Têm

inclusive um caráter normativo, constituindo códigos processuais penais. Tem-se assim

uma rotinização da técnica de se fazer justiça. Em termos da teoria organizacional,

podemos afirmar que o código de processo penal corresponde à tecnologia judicial

formalmente estabelecida ou em outros termos, corresponde ao programa de ação do

sistema. Transforma-se uma matéria-prima, que é o fato delituoso, num produto acabado,

que é o fato delituoso sentenciado.

Na sociedade brasileira, o Código de Processo Penal em vigor foi promulgado em

1941. Somente em 1995 algumas alterações importantes foram introduzidas no processo

penal, mais particularmente via criação dos juizados especiais criminais. A efetivação da

justiça criminal na sociedade brasileira, hoje, segue procedimentos distintos dependendo

do tipo de crime, compondo o que os juristas denominam de ritos processuais. Está-se

Page 265: PRESOS NO BRASIL

referindo aqui aos procedimentos básicos que se iniciam com a denúncia formalizada

pelo promotor de justiça e culminam com a promulgação da sentença pelo juiz, definindo

a instrução criminal. Os ritos processuais são os seguintes19:

a) rito ordinário, que é caracterizado pelo alto grau de formalidade e refere-se à maior

parte das infrações penais previstas no Código Penal, mais particularmente nos

processos de incumbência do juiz singular, especificando-se nos crimes de

competência do júri, como é o caso dos homicídios dolosos. (organograma 1);

b) rito sumário, que envolve maior celeridade do fluxo processual, valorizando-se a

oralidade (organograma 2) ;

c) rito sumaríssimo, que está restrito aos 'crimes de bagatela', de menor poder ofensivo,

sendo pautado pela celeridade, pela oralidade e pela valorização dos acordos entre as

partes envolvidas, via transação penal (organograma 3).

ORGANOGRAMA 1

FLUXO ESTABELECIDO PELO RITO ORDINÁRIO – CRIMES DE

COMPETÊNCIA DO JUIZ SINGULAR

Interrogatório defesa prévia

audiência de inquiriçãode testemunhas de acusação

audiência de inquirição detestemunhas de defesa realização de diligências

alegações finais de acusação

alegações finais de defesa sentença do juiz

19 Não se está considerando aqui o rito processual da justiça da infância e do adolescente, a despeito

de sua relevância.

Page 266: PRESOS NO BRASIL

ORGANOGRAMA 2

FLUXO ESTABELECIDO PELO RITO SUMÁRIO

Interrogatório defesa prévia

audiência de inquiriçãode testemunhas de acusação

audiência de inquirição detestemunhas de defesa e julgamento

ORGANOGRAMA 3

FLUXO ESTABELECIDO PARA O RITO SUMARÍSSIMO -JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

audiência preliminar

acordo civile/ou

transação penal

audiência de instrução ejulgamento

Page 267: PRESOS NO BRASIL

A despeito do perfil burocrático, a justiça criminal não pode ser adequadamente

compreendida em seu funcionamento rotineiro se tomarmos como referência seu

arcabouço formal. A atuação dos atores legais é balizada, em diversas situações, não

pelas prescrições normativas do sistema mas sim por programas informais de ação que

estão institucionalizados nas varas criminais. E tais informalidades institucionalizadas

colidem diretamente com a estrutura formal da justiça criminal, tanto no que se refere ao

ritualismo prescrito pelo Código de Processo Penal quanto aos princípios doutrinários

que servem de parâmetro à administração da justiça criminal. Este fato será melhor

analisado na próxima seção.

A justiça criminal como uma comunidade de interesses

Diariamente promotores, defensores e juízes dedicam-se a dois tipos de atividades

nas varas criminais:

a) participação em audiências;

b) despacho de processos.

Estudo realizado por SAPORI(1995) evidenciou que a administração cotidiana da

justiça criminal é pautada pelo princípio da eficiência. Juízes, promotores e defensores

públicos estão imbuídos da perspectiva da agilização do fluxo dos processos penais.

Busca-se ser eficiente através da administração da sobrecarga de trabalho que incide

sobre as varas criminais. Procura-se manter um certo nível de produtividade na realização

da audiências e no despacho de processos de modo a evitar um congestionamento

indesejável da justiça criminal.

A despeito das divergências que eventualmente pode gerar, a meta da eficiência

constitui um elo de integração entre os atores legais. Ela consolidou-se como uma

prioridade nas varas criminais de modo que há um compromisso tácito entre juízes,

promotores e defensores públicos no sentido da agilização dos processos penais. O

advogado particular, a princípio, não participa desta comunidade de interesse, dado seu

vínculo específico com o réu. (SAPORI,1996)

Page 268: PRESOS NO BRASIL

O compromisso básico dos atores legais não é com os fins formalmente atribuídos

a seus respectivos papéis ocupacionais ou mesmo com os parâmetros substantivos do

processo penal. Tende a prevalecer o apego a valores pragmáticos e prioridades

burocráticas, freqüentemente inconsistentes com os objetivos e formalismos legais. As

varas criminais tendem a desenvolver vida própria, como ocorre com outros tipos de

organizações. Juízes, defensores e promotores tendem a constituir uma comunidade

fechada e hostil a atores externos ao sistema e o réu é um meio para o atingimento de fins

organizacionais- basicamente a manutenção de taxas elevadas de produção através de

arranjos informais (PAIXÃO,1988).

Uma das evidências nesse sentido é a existência de certas normas de conduta, de

caráter informal, que regem as relações cotidianas de trabalho entre promotores, juízes e

defensores. Há a expectativa, por exemplo, que os colegas de trabalho não se apeguem

em demasia aos formalismos da Lei, evitando “picuinhas”, de modo a não colocar

obstáculos indesejáveis ao fluxo célere dos processos penais.

Outra evidência a ser considerada diz respeito à institucionalização de uma série

de procedimentos práticos que determinam como fazer justiça de modo ágil. Estes

procedimentos dizem respeito à adoção de métodos informais para o despacho célere dos

processos penais, seja nas denúncias, nas defesas prévias, nas alegações finais e nas

sentenças. A adoção deste receituário prático permite-nos qualificar a administração da

justiça criminal como expressão de uma justiça-linha-de-montagem(SAPORI,1995;146).

A justiça-linha-de-montagem caracteriza-se pelo processamento seriado dos

crimes e conseqüentemente pelo tratamento padronizado dos processos. Procura-se

classificar os processos em categorias que, por sua vez, vão definir padrões de decisão e

de ação. Antes de tudo, cada caso não é um caso, mas sim cada caso é parecido com

outros casos. Esta racionalidade pode ser identificada nos procedimentos que promotores

adotam para elaborar as denúncias, que defensores usam para elaborar defesas prévias,

que defensores e promotores usam para elaborar alegações finais e que juízes adotam

para elaborar as sentenças(SAPORI,1995;147-152).

Page 269: PRESOS NO BRASIL

A prevalência do processo de categorização é reforçada pelo fato de que os atores

legais raramente recorrem a doutrinas jurídicas ou mesmo a jurisprudências para

fundamentar suas argumentações, seja nas alegações finais, seja nas sentenças. A

pesquisa doutrinária e jurisprudencial exige dedicação mais intensiva ao processo via

análise das peculiaridades existentes nos autos. Isto acarretaria um tratamento mais

individualizado dos processos penais, o que é ,muito mais uma exceção do que uma regra

na administração cotidiana da justiça criminal.

A categorização é um sintoma da racionalidade formal que caracteriza a justiça-

linha-de-montagem. Ela agiliza sobremaneira o trabalho dos diversos atores legais,

maximizando a produtividade no despacho de processos. Lançando mão da

categorização, os atores legais evitam despender um tempo além do desejável na procura

de alternativas de ação. A combinação de categorias com programas de ação dota a

justiça criminal de um caráter altamente rotinizado.

Estas evidências corroboram a hipótese apresentada por CAMPOS

COELHO(1986), no sentido de que a produtividade de juízes e promotores é calibrada

pela produção da polícia e não pela sobrecarga do sistema prisional. Em outras palavras,

o volume de inquéritos e processos que se acumulam nas varas criminais é que tende a

determinar em alguma medida o ritmo de trabalho estabelecido pelos atores legais. E diz

respeito ao juiz, ao promotor e ao defensor público. O nível de produtividade na vara

criminal tende a ser informalmente acordado entre os atores legais. Quando o ritmo não

está consensualmente estabelecido tem-se um foco potencial de conflitos no sistema.

Ao participar diretamente do cotidiano da vara criminal, o defensor acaba por

compartilhar com promotores e juízes a responsabilidade pelo encaminhamento do fluxo

de trabalho que incide sobre ela diariamente. A maior parte dos processos em

andamento na vara criminal envolve a ação articulada desses três atores organizacionais.

O processo penal é um conjunto de atos concatenados, com prazos previamente

determinados para sua realização, sendo que os atos processuais, que se sucedem no

tempo, dependem da prévia realização dos anteriores. Isto acaba por gerar uma

dependência entre defensores públicos, promotores e juízes.

Page 270: PRESOS NO BRASIL

A produtividade de cada um deles no despacho diário de processos afeta

diretamente a carga de trabalho que vai incidir adiante sobre os demais. Se por um lado

juízes e defensores públicos dependem da produtividade de promotores na elaboração de

denúncias, por outro lado juízes e promotores dependem da produtividade dos

defensores públicos no despacho de defesas prévias e alegações finais e além disso

defensores públicos e promotores dependem diretamente do número de audiências que é

agendada diariamente pelo juiz. Portanto, a sobrecarga de trabalho que porventura exista

na vara criminal acaba se tornando um problema tanto para os juízes quanto para os

promotores e defensores públicos.

Lei, Ordem e justiça criminal

Importante destacar que a justiça-linha-de-montagem institucionalizou-se como

um arranjo informal no sistema e não são assumidas publicamente. Os padrões de

conduta que a constituem não estão previstas na estrutura formal da justiça criminal. As

técnicas empregadas no despacho de processos não são amparadas pelas normais formais

que regulam a atividade adjudicatória e acabam por se opor aos valores que subsidiam o

próprio processo penal na sociedade brasileira.

Estou me referindo aqui ao fato de que a prevalência da meta burocrática da

máxima produção na administração da justiça criminal opõe-se, em boa medida, aos

princípios doutrinários que fundamentam o processo penal. É o caso do princípio do

devido processo legal, do princípio do estado de inocência, do princípio do contraditório,

do princípio da verdade real. O respeito a eles pode ser compreendido como um objetivo

permanente do sistema (MIRABETE,1991).

O tratamento categorizado dos processos penais, sob este ponto de vista, implica a

negação destes princípios, em especial a busca da verdade real dos fatos. A necessidade

de manter um certo nível de produtividade culmina na desconsideração das

singularidades dos casos criminais e de possíveis aspectos relevantes na definição da

inocência ou da culpabilidade do réu.

Page 271: PRESOS NO BRASIL

Esta oposição entre a busca da produtividade e o respeito aos valores substantivos

do sistema é reconhecida apenas nos juizados especiais criminais. Estes representam,

sob esta perspectiva, a afirmação de uma justiça que não tem como premissa a estrita

adesão aos ideais substantivos do processo penal ou mesmo de uma justiça que não está

comprometida com o tratamento individualizado dos casos penais. Eles representam a

afirmação de uma justiça que adere a uma rotina burocrática baseada em interesses

estritamente pragmáticos, entre os quais se destaca a eficiência. Em outras palavras, para

se evitar o congestionamento indevido da justiça criminal é necessário maior agilidade na

resolução dos processos penais. É esta a racionalidade que fundamenta em boa medida os

juizados criminais. É esta a racionalidade que deve permear a atuação de juízes,

promotores e defensores públicos. (JESUS,1997)

O estímulo constante à transação como mecanismo de resolução dos casos é o

maior indicador nesse sentido. As peculiaridades dos casos, suas especificidades devem

ser negligenciadas, priorizando-se a conciliação das partes. E esta já tem seus parâmetros

previamente definidos em lei. Os termos dos acordos já estão antecipados. Não há muito

espaço e muito menos necessidade para disparidades e exceções. Estas representam uma

perda de tempo indesejável. Exceções requerem trabalho, criam incertezas, podem

prolongar indevidamente o desfecho do processo. Resta aos juízes, promotores e

defensores convencerem as partes interessadas, vítimas e acusados, a se submeterem ao

modelo estabelecido. (SAPORI,1998; VIANNA,1999)

Esta oposição entre os ideais substantivos da justiça criminal e o ideal da

eficiência pode ser traduzida em outros termos: a oposição entre os ideais da Lei e da

Ordem nas sociedades democráticas modernas (SKOLNICK,1966). A consolidação das

instituições democráticas culminou na expropriação da prerrogativa dos indivíduos

usarem a violência para o alcance de fins particulares. Cabe ao Estado a imposição da

ordem pública via monopólio do uso da violência. Por outro lado, a imposição da ordem

pública é limitada por constrangimentos legais que regulam a conduta dos oficiais do

Estado no processamento dos indivíduos que são acusados de cometimento de ato

criminoso. O processo penal, sob este ponto de vista, cristaliza diversos valores que

compõem o ideário do respeito aos direitos individuais frente ao arbítrio do Estado. Em

suma, nas sociedades democráticas a Lei é usada como instrumento para se alcançar a

Ordem.

Page 272: PRESOS NO BRASIL

Deve-se considerar, por sua vez, que a justaposição entre Lei e Ordem não é tão

simples como pode parecer a princípio. A lei não é e não foi concebida para ser um

instrumento eficaz para a consecução da ordem social. A legalidade, conforme expressa

no processo penal, impõe limites rígidos para a atuação das organizações do sistema de

segurança pública, restringindo o grau de arbítrio de tais organizações. Conseguir

eficiência na manutenção da ordem social pode significar, sob este ponto de vista,

violação de valores consubstanciados no arcabouço legal.

O dilema Lei X Ordem, conforme analisado por SKOLNICK, corresponde ao

dilema eficiência X princípios doutrinários, vivenciado na administração cotidiana da

justiça criminal. Manter a ordem implica processar e julgar os atos delituosos no menor

espaço de tempo possível, de modo a desestimular a ação criminosa. Por outro lado, o

processo penal procura resguardar o direito de ampla defesa do acusado. Busca-se através

da ênfase nos mecanismos formais atenuar o máximo possível o erro humano no

julgamento bem como o arbítrio os agentes do Estado. Conforme nos lembra

ARNOLD(1938), o julgamento cerimonial não é e nunca pode ser um método eficiente

de resolver disputas. Seu caráter é basicamente simbólico.

Em suma, os atores legais processam os crimes pressionados por dois tipos de

demandas inconsistentes: devem ser ágeis, produtivos e simultaneamente devem buscar

a verdade real dos fatos, respeitando os direitos do acusado e garantindo o estrito

cumprimento da lei. Na administração cotidiana da justiça criminal este dilema é

resolvido mediante a institucionalização de arranjos informais que não são assumidos

perante a sociedade. No plano formal assume-se o compromisso com as demandas

substantivas da democracia. No plano informal, assume-se o compromisso com as

demandas instrumentais da burocracia.

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Page 274: PRESOS NO BRASIL

PROBLEMATIZANDO TEMAS RELATIVOSAO SISTEMA PENITENCIÁRIO

JULITA LEMGRUBERDiretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC, da Universidade

Candido Mendes - UCAM

1– Introdução

Em “O Sistema Penitenciário Brasileiro” 1, tracei breve panorama sobre a

situação do Sistema Penitenciário no país, principalmente abordando questões

relativas a/o(s):

• precariedade dos dados nesta área;

• taxas de atrito/cifras negras/taxas de esclarecimento de crimes;

• legislação relativa a sanções e regimes de cumprimento de penas;

• crescimento da população prisional e situação do déficit de vagas;

• perfil do preso no Brasil.

Naquela ocasião, terminava minha análise reportando-me aos temas que, segundo

avaliação pessoal, merecem ser devidamente investigados e, mais ainda, temas que

podem desdobrar-se, no ano de 2001, em pesquisas realizadas pelo CESeC em

parceria com o Ipea. Desta forma, restaram listados os seguintes temas:

• Taxas negras ou cifras negras;

• Taxas de atrito;

• Taxas de esclarecimento de crimes;

• Relação entre taxas de criminalidade e taxas de encarceramento;

• Custo dos presos e das penas alternativas;

• Reincidência criminal e penitenciária

• Causas do crescimento desigual das taxas de encarceramento masculina e

feminina.

1 Julita Lemgruber, O Sistema Penitenciário Brasileiro, in Cerqueira e Lemgruber, org., 1º Encontro doFórum de Debates sobre Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil, Ipea, julho de 2000

Page 275: PRESOS NO BRASIL

2. Taxas negras, cifras negras e taxas de atrito

Os três primeiros temas já foram por mim abordados no trabalho acima referido,

às páginas 2 e 3, cabendo insistir na necessidade da realização de pesquisas de

vitimização periódicas, preferencialmente anuais, para que se possa ter clareza da

quantidade de crimes cometidos no país e das perdas que acontecem em cada

instância do Sistema de Justiça Criminal. Como foi dito, não existem dados

confiáveis para se determinar a extensão da cifra negra, ou taxa negra, no Brasil

(diferença entre o número de crimes cometidos e aqueles que chegam ao

conhecimento da polícia); a extensão da taxa de atrito (perdas que acontecem em

cada instância da Justiça Criminal, a partir do número de crimes cometidos,

culminando com o número de infratores que recebem uma punição judicial); ou a

taxa de esclarecimento de crimes( quantidade de crimes em relação aos quais a

polícia é capaz de prover o judiciário com um acusado/indiciado).

As taxas negras, ou cifras negras, e as taxas de atrito, resultam de análises

realizadas, como mencionado, a partir de pesquisas de vitimização. Em trabalho

apresentado na 2ª reunião do Fórum de Debates sobre Violência, Yolanda Catão

discute os problemas das pesquisas de vitimização2, mostrando, por exemplo, que é

praticamente impossível a comparação entre os dados das diferentes pesquisas de

vitimização realizadas no Brasil. Como lembra a pesquisadora, “nem sempre as

variáveis selecionadas são as mesmas e há diferenças metodológicas quanto ao

desenho da amostra, ao período de referência e à população alvo”. Das oito pesquisas

de vitimização realizadas entre nós, entre os anos de 1988 e 1999, conduzidas por

diferentes instituições (IBGE, ILANUD, ISER, SEADE e USP), apenas aquela que se

constituiu em questionário suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios(PNAD/IBGE) cobriu todo o país. Todas as outras levantaram dados

unicamente sobre o município ou a região metropolitana de São Paulo e/ou Rio de

Janeiro.

2 Yolanda Catão, Pesquisas de vitimização, in Cerqueira, Lemgruber e Musumeci org., 2º Encontro doFórum de Debates sobre Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil, Ipea, agosto de 2000

Page 276: PRESOS NO BRASIL

Fica claro a necessidade urgente de se começarem a realizar pesquisas de

vitimização regulares, obedecendo aos padrões das Nações Unidas, não apenas para

que possamos estimar a quantidade de crimes praticada no país, detalhes das

circunstâncias dos mesmos, características dos infratores e das vítimas, entre outras

tantas variáveis, mas, também, para que comparações internacionais possam ser

levadas a efeito. Nunca é demais lembrar que um dos compromissos do Plano

Nacional de Segurança Pública, lançado em junho pelo governo federal, é com a

feitura de pesquisas de vitimização.

3. Taxas de esclarecimento de crimes

Em relação às taxas de esclarecimento de crimes, bastariam pesquisas realizadas a

partir dos registros de ocorrência da polícia civil. Estudo conduzido por Soares 3 , em

1996, indicou que, no Rio de Janeiro, apenas cerca de 8% dos homicídios chegam a

se transformar em processos devidamente instruídos, encaminhados à apreciação do

judiciário. Levantamento recente, realizado pelo Ministério Público/RJ, aponta para

número aproximado. Segundo Marcos da Hora 4 apenas 10% dos autores de

homicídios cometidos no Estado do Rio de Janeiro são denunciados pelo Ministério

Público. Já Guaracy Mingardi 5, coordenador do Centro de Estudos do Ministério

Público de São Paulo, afirma que, naquele estado, as taxas de esclarecimento de

homicídios variam entre 20 e 30%, creditando o melhor desempenho da polícia

paulista, se comparada à fluminense, ao fato de lá existir uma Delegacia de

Homicídios realmente especializada, com policiais que permanecem ali lotados por

vários anos. Se levarmos em conta que as taxas médias de esclarecimento de

homicídios em países como Inglaterra e Estados Unidos variam entre 60 e 80%,

nossos índices são realmente vergonhosos. Por outro lado, como acreditar nos

números que surgem aqui e ali? Como estarão as taxas de esclarecimento de

3 Luiz Eduardo Soares, Violência e Política no Rio de Janeiro, Relume Dumará/ISER, 19964 Marcos da Hora, gerente de informática da Procuradoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, emcomunicação pessoal (agosto/2000)5 Também em comunicação pessoal ( agosto de 2000)

Page 277: PRESOS NO BRASIL

homicídios em outros estados? Estarão as taxas sugeridas para Rio e São Paulo

próximas da realidade?

Se não dispomos de dados confiáveis, e regularmente atualizados, para as taxas de

esclarecimento de um crime da gravidade do crime de homicídio, não é difícil

imaginar como andam as taxas de esclarecimento relativas ao demais crimes. A

demonstração da ineficácia do trabalho de investigação da polícia, percebida por

todos e criticada pela população, ficará comprovada quando dispusermos de

pesquisas confiáveis e regulares sobre as taxas de esclarecimento de crimes. É mais

do que evidente, portanto, que esta é uma linha de pesquisa que merece atenção

imediata quando se pretende discutir a melhoria dos serviços disponíveis ao cidadão,

na área de segurança pública.

4. Relação entre taxas de criminalidade e taxas de encarceramento

Entre 1995 e 2000 a população prisional no Brasil cresceu 30,4%. No Estado do

Rio de Janeiro este crescimento foi de 43,2 %.6 Pesquisas de vitimização mostram

que também vem crescendo o número de pessoas vitimizadas por diversos tipos de

delitos (PNAD 1988 e CPDOC/ISER 1996). Evidentemente, não se deve extrair daí

conclusões precipitadas. É sempre possível argumentar que o contingente de presos

cresceu justamente porque aumentou o número de crimes, ou que, se não tivesse

crescido o número de presos, as taxas de criminalidade seriam ainda mais altas.

Faltam, em nosso país, estudos criteriosos capazes de mostrar que tipo de relação

existe entre essas duas curvas.

Diversos estudos realizados no Estados Unidos e Inglaterra já procuraram

estabelecer relações entre taxas de criminalidade e de encarceramento. Nos Estados

Unidos, economistas e cientistas sociais desenvolveram trabalhos procurando

demonstrar a tese de que as prisões são “cost-effective”. Esses trabalhos, conhecidos

como “prison pays studies” atraem considerável atenção, interesse e apoio de um

lado, críticas contundentes de outro.

6 Cálculos realizados a partir de dados do Ministério da Justiça e do Departamento do SistemaPenitenciário/RJ

Page 278: PRESOS NO BRASIL

Os estudos mais recentes, conhecidos e prestigiados, que propõem mais

encarceramento, são os de Marvell/Moody e Steven Levitt.

Os dois primeiros autores7 procuraram detectar o efeito do acentuado crescimento da

população prisional norte-americana nos anos 70 e 80 sobre as taxas de

criminalidade. Embora defendam que a relação custo-benefício da pena de prisão seja

favorável à sua ampla utilização, acabam por admitir que a pena de prisão funciona

muito mais em relação aos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência, do

que em relação à criminalidade violenta contra a pessoa.

Steven Levitt 8 trabalhou com a premissa de que os estados que foram obrigados a

controlar o tamanho da população prisional, em razão de ações judiciais, tiveram

acréscimo no número de crimes. No entanto, também Levitt acaba por admitir que a

prisão funciona mais para os crimes “menos custosos socialmente”, os crimes não-

violentos.

Sheldon Ekland-Olson 9 comparando taxas de criminalidade do Texas e da

California por um lado, e Zimrig, Hawkins e Ibser 10 analisando o fantástico

incremento da população prisional na Califórnia nos anos 80, chegam a conclusões

diversas de seus colegas Marvel/Moody e Levitt e sustentam que as prisões não são

“cost-effective”.

Na Inglaterra, Tarling 11 desenvolveu minucioso estudo sobre taxas de

criminalidade e encarceramento, concluindo que um aumento de 25% nas taxas de

encarceramento tem como resultado uma redução de apenas 1% nas taxas de

criminalidade. Ou seja, a relação custo-benefício da pena de prisão é extremamente

desfavorável.

Nos Estados Unidos, o National Council on Crime and Delinquency vem, há

muitos anos, desenvolvendo estudos na mesma área, sempre sustentando não haver

relação positiva entre controle da criminalidade e aumento da população prisional.

7 Cf. Elliott Currie, Crime and Punishment in America, New York, Metropolitan Books, 1996, cap. 28 Idem9 Idem10 Idem11 Roger Tarling , Analysing Offending Data, Models and Interpretations, HMSO, London, 1993, p.154

Page 279: PRESOS NO BRASIL

Por outro lado, diversos estudos da Rand Corporation têm demonstrado a maior

eficácia de ações preventivas do que repressivas na diminuição das taxas de crimes e,

na verdade, todos os estudos que sustentam serem as prisões “cost-effective” não

avaliam o impacto de outras estratégias relacionadas com o controle da

criminalidade, diferentes da pena privativa de liberdade. Por fim, para se dizer que a

pena de prisão constitui-se em instrumento eficaz de controle social seria necessário

comparar seus resultados com os das penas alternativas, por exemplo, quando se fala

de taxas de reincidência.

São muitas as indagações a respeito da relação entre taxas de criminalidade e

taxas de encarceramento e, definitivamente, não se pode mais discutir este assunto

sem que pesquisas bem elaboradas se desenvolvam e apontem novos caminhos.

5. Custo dos presos e custos das penas alternativas

O Censo Penitenciário de 1997 revelou que o custo médio mensal do preso,

naquele ano, havia sido de R$ 497,39. As informações chegadas ao Ministério da

Justiça 12, provenientes dos diferentes estados brasileiros, indicavam números

absolutamente díspares, tais como custo de aproximadamente R$ 20,00 mensais por

preso, no estado do Piauí, e de cerca de R$ 1.200,00 em Brasília. Ora, por mais que

os salários no Piauí sejam significativamente mais baixos do que aqueles recebidos

pelos funcionários do sistema penitenciário de Brasília, ou que a alimentação ofertada

aos presos nos dois lugares seja de qualidade distinta, é difícil imaginar que tais

números reflitam a mesma coisa. Poderíamos supor, por exemplo, que no Piauí só foi

computado o custo da alimentação e que em Brasília computaram-se outros gastos.

Enfim, diferentes estados calcularam e seguem calculando os custos de seus presos de

diferentes maneiras, a despeito das orientações recebidas do Ministério da Justiça que

recomendavam serem computados gastos com: alimentação, salários de

funcionários, material de limpeza e higiene, água, luz, gás, telefone, combustível,

medicamentos, manutenção predial e de equipamentos e manutenção de viaturas.

Quaisquer outros gastos que pudessem ser reconhecidos a partir dos empenhos

realizados também deveriam ser computados. Enfim, recomendava-se que fossem

12 Vale ressaltar que, como membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, estivediretamente envolvida na coordenação dos Censos de 1995 e 1997.

Page 280: PRESOS NO BRASIL

levantadas todas as parcelas do orçamento empenhadas que apresentassem a rubrica

do sistema penitenciário.

Após longas discussões a respeito do assunto com dirigentes de sistemas

penitenciários e, a partir de minha própria experiência relativa ao assunto, posso

afirmar que continuamos a calcular o custo do preso de forma equivocada. Na

verdade, falta ainda adicionar ao rol de gastos os seguintes itens:

• Todos os gastos com os policiais militares empenhados na guarda

externa dos estabelecimentos prisionais e na escolta de presos para

apresentação em juízo e para encaminhamento a hospitais. No Estado

do Rio de Janeiro, por exemplo, que não utiliza a polícia militar para

escoltas, mas apenas para as guaritas externas dos estabelecimentos

prisionais, são empenhados cerca de 300 homens e mulheres nesta tarefa.

Faz-se necessário calcular o custo total de cada um destes policiais

militares, levando-se em conta salários, alimentação, assistência à saúde,

etc.

• Gastos com a rede de saúde pública nos casos em que presos são

deslocados para atendimento fora dos muros.

• Repasses do SUS para hospitais penitenciários, nos estados que

recebem tal verba.

• Gastos com pessoal, equipamento, etc, das Varas de Execuções Penais

(VEPs) dos diferentes estados. A título de ilustração, a VEP do Estado

do Rio de Janeiro dispõe de 120 funcionários, entre eles, psicólogos,

assistentes sociais, oficiais de justiça, escrivães, escreventes e técnicos

judiciários, Além destes, há quatro juízes, 06 promotores públicos e 06

defensores públicos. Vale lembrar que as VEPs são responsáveis pela

“execução da sentença” de um condenado e todos os pedidos de

benefícios legais passam pelas mesmas. Decisões sobre medidas de

Page 281: PRESOS NO BRASIL

segurança impostas, relativas a homens e mulheres considerados doentes

mentais e, por isso, inimputáveis, também estão na alçada das VEPs. Um

número pequeno de funcionários, no caso do Rio de Janeiro exatamente

06 assistentes sociais, são responsáveis pelo acompanhamento da

prestação de serviços à comunidade, como alternativa à pena de prisão.

• Gastos com pessoal, equipamento, etc., dos Conselhos Penitenciários.

De acordo com a Lei de Execução Penal, os Conselhos Penitenciários dos

estados são os órgãos que apreciam, num primeiro momento, os pedidos

de livramento condicional feito pelos presos. Em geral, os conselheiros

não recebem salários mas “jetons”, que variam muito de acordo com cada

estado. No estado do Rio de Janeiro, o Conselho Penitenciário tem 14

conselheiros titulares e 14 suplentes que comparecem a sessões de 2ª a 5ª

feira e recebem, em média, R$ 2.000,00 mensais em “jetons”. Há também

06 funcionários administrativos à disposição do órgão.

• Gastos com defensores públicos que atuam nas unidades prisionais.

No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 24 defensores atuam dentro de

estabelecimentos prisionais.

• Gastos com professores e médicos, lotados em Secretarias de Estado

diferentes daquela responsável pelos sistemas penitenciários, que atuam

internamente nos estabelecimentos prisionais.

• Gastos com os aposentados do sistema penitenciário.

• Gastos com compras de material permanente/equipamento.

• Gastos com aquisição de viaturas.

• Gastos com novas obras.

Se o custo do preso ainda não é calculado de forma apropriada, muito menos se

tem noção clara do custo de um individuo condenado a uma pena alternativa,

Page 282: PRESOS NO BRASIL

principalmente a pena de prestação de serviços à comunidade. O Rio Grande do Sul,

estado pioneiro na aplicação da prestação de serviços à comunidade como pena

alternativa, vem constatando que a estrutura montada para dar suporte/supervisão a

este tipo de sanção penal custa, em média, 10% do custo da pena privativa de

liberdade.

6. Reincidência penitenciária

Na área dos sistemas penitenciários um dos temas menos investigados é o da

reincidência. É comum ouvirmos que a taxa de reincidência no país é de,

aproximadamente, 80%. Quando buscamos as referências para que tal número seja

utilizado, constatamos que não existem. Ou seja, “supõe-se”, quer pela experiência

direta de pessoas que trabalham na área, quer por levantamentos, na verdade muito

pouco rigorosos, que o número esteja correto. O Ministério de Justiça afirmou

recentemente, ao lançar a “Central de Atendimento de Penas Alternativas” (O Globo,

13/09/00) ser a reincidência penitenciária 80% e a reincidência para aqueles que

cumprem penas alternativas 14%. Ora, trabalhos realizados nos anos 80 no Rio de

Janeiro e em São Paulo apontaram para números bastante diversos. Em pesquisa por

mim coordenada13 encontrou-se uma taxa de reincidência penitenciária de 30,7%. Em

São Paulo, Adorno e Bordini14 chegaram a 46,03%. Recente pesquisa realizada pela

Coordenação de Saúde do Departamento do Sistema Penitenciário (O Globo

19/09/00) encontrou números inferiores aos da pesquisa que coordenei em 1988: 26%

para homens e 21% para mulheres. Tudo isto levado em conta, é difícil acreditar que

os números do Ministério da Justiça reflitam a realidade.

Sem dúvida, as dificuldades em se determinar níveis de reincidência penitenciária

e, mais ainda, compará-los com os resultados daqueles condenados a penas

alternativas, são inúmeras. Primeiramente, há que se definir, com precisão, o que se

está medindo. São numerosas as definições operacionais de reincidência e,

dependendo da definição que se utilize, os resultados serão necessariamente diversos.

13 A pesquisa encontra-se relatada em Julita Lemgruber, Reincidência e Reincidentes Penitenciários noSistema Penal do Estado do Rio de Janeiro, in Revista da Escola do Serviço Penitenciário do Rio Grandedo Sul, Porto Alegre, Ano I, nº 2, Jan/Fev/Mar/1990

Page 283: PRESOS NO BRASIL

Nas pesquisas dos anos 80, a definição empregada foi aquela de Miotto: é reincidente

penitenciário “quem tendo cumprido pena ou medida de segurança, veio a ser

novamente recolhido a estabelecimento penal para cumprir nova pena ou nova

medida de segurança”.15 O período utilizado para aferição da reincidência também é

determinante dos resultados posteriores. É possível acompanhar uma amostra

estabelecida e identificada em data anterior, ou registrar, tão somente, percentuais de

reincidência em momento determinado, o que se chama de “radiografia instantânea”.

Adorno e Bordini utilizaram a primeira estratégia, Lemgruber a última.

Não se pode mais postergar um levantamento criterioso de dados acerca da

reincidência penitenciária no Brasil e, da mesma forma, é urgente conhecer os níveis

de reincidência daqueles submetidos a penas diferentes da pena de prisão.

Especialistas e estudiosos de temas como a violência e a criminalidade precisam

contar com dados confiáveis nesta área. E, sobretudo, as alterações legislativas que

venham a permitir, no futuro, maior uso das alternativas à pena de prisão devem ser

precedidas de pesquisas que esclareçam as vantagens dessas sanções. Além do custo

mais baixo para manter um individuo submetido a uma pena alternativa, a menor

reincidência é vantagem inegável. Assim acontece em outros países, assim pode

acontecer no Brasil. Cada vez mais a prisão deve ser reservada para o infrator

violento e perigoso que se constitui em ameaça concreta ao convívio social – custos e

níveis de reincidência certamente são argumentos poderosos nesta discussão.

7. Crescimento da criminalidade feminina16

As mulheres constituem, em média, 50% da população na maior parte dos países

e, aproximadamente, apenas 5% dos presos. No Brasil, as mulheres são cerca de 50%

da população e 4,7% dos presos. Não obstante, em muitos países a população de

mulheres presas vem crescendo mais rapidamente do que aquela de homens presos.

Em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, os números de mulheres presas

vem crescendo a uma taxa duas vezes maior do que a dos homens. No Brasil, este

14 Sergio Adorno e Eliana Bordini, Reincidência e Reincidentes Penitenciário em São Paulo, mimeo, 198615 A. B. Miotto, Curso de Direito Penitenciário, São Paulo, Saraiva, 1975, pág. 36816 Breve resumo de trabalho apresentado no Tenth United Nations Congress on the Prevention of Crimeand the Treatment of Offenders, abril de 2000, Viena, intitulado “ Women in the Criminal Justice System”.

Page 284: PRESOS NO BRASIL

crescimento não tem sido tão acelerado mas, de qualquer forma, mulheres presas

constituíam 3,0 % da população prisional no país em 1993 e, em 1999, 4,7%.

O crescimento da criminalidade feminina tem sido o foco de muitos estudos e

explicações para o fenômeno variam nos últimos tempos. Atualmente, aceita-se que a

maior participação de mulheres em diferentes esferas da vida na sociedade resultem

em novas oportunidades, inclusive oportunidades para cometer crimes. Por outro

lado, argumenta-se que leis mais severas e um tratamento mais rigoroso por parte do

Sistema de Justiça Criminal vêm contribuindo, também, para este crescimento.

Freqüentemente se afirma que tanto policiais, quanto promotores e juízes têm

modificado seu comportamento em relação à mulher criminosa que era vista no

passado com mais leniência. Há, ainda, quem diga que as taxas negras são maiores

quando se trata de criminalidade feminina, na medida em que esta acontece, com

freqüência, entre as paredes do lar.

Estudos sobre a população prisional feminina em diversos países mostram que

leis rigorosas relacionadas com o tráfico de drogas tiveram um profundo impacto

sobre o crescimento do número de mulheres presas, embora as mulheres ocupem

posições periféricas no comércio das drogas e, em geral, acabem presas por causa do

envolvimento de seus companheiros, maridos ou namorados. Com freqüência,

também, mulheres são presas transportando drogas de um país para outro (são as

chamadas “mulas”) e, em geral, por pequenas quantias.

Nos Estados Unidos, o número de mulheres encarceradas por tráfico de

entorpecentes aumentou 888% de 1986 a 1996, em contraste com um aumento de

129% para outros crimes.17 No Rio de Janeiro, 20% das mulheres presas em 1976

respondiam por tráfico de drogas, em 1997 este número chegava a 47%.18

Pesquisas nos Estados Unidos têm indicado algumas das razões pelas quais as

mulheres, proporcionalmente, vêm sendo condenadas por tráfico em maior

quantidade do que os homens. Suspeita-se, sobretudo, que pelo fato de as mulheres

ocuparem posições periféricas na organização do tráfico de drogas, raramente elas

17 Marc Mauer, Gender and Justice:women, drugs and sentencing policy, mimeo, 199918 Julita Lemgruber, Cemitério dos Vivos, Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, 1998

Page 285: PRESOS NO BRASIL

podem trocar informações com promotores ou policiais, o que lhes permitiria escapar

de uma condenação ou receber uma pena mais curta. Quando a polícia é muito

corrupta, ou quando oficiosamente troca informação por liberdade, como é o caso do

Brasil, as mulheres no negócio de drogas está sempre em posição desfavorável: além

de não terem informação que interesse, não dispõem de recursos financeiros para

comprar a liberdade.

Procurar investigar as mudanças no perfil da criminalidade feminina ao longo dos

últimos anos e as razões que explicam o crescimento diferenciado entre as taxas de

encarceramento de homens e mulheres é urgente.

Page 286: PRESOS NO BRASIL

DIRETORIA DE ESTUDOS SOCIAIS

UCAM / UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FORUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência eSegurança Pública no Brasil:Uma Discussão sobre asBases de Dados eQuestões Metodológicas

5º Encontro:Causas e Determinantes e Custos eConseqüências da Violência e Criminalidade

Organização:Daniel Cerqueira (IPEA)Julita Lemgruber (CESeC/UCAM)Leonarda Musumeci (CESeC/UCAM)

NOVEMBRO DE 2000

Page 287: PRESOS NO BRASIL

FÓRUM DE DEBATES

Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Brasil: UmaDiscussão sobre as Bases de Dados e Questões Metodológicas

5º Encontro:CAUSAS E DETERMINANTES E CUSTOS ECONSEQÜÊNCIAS DA VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE

ARTIGOS

• INTRODUÇÃO

• Determinantes Econômicos da Criminalidade: Notas para uma Discussão

Pablo Fajnzylber (Cedeplar / UFMG)

• Violência Letal, Renda e Desigualdade no Brasil

Ignácio Cano (ISER/UERJ) e Nilton Santos (ISER)

• Os Custos da Violência: Quanto se Gasta ou Deixa de Ganhar por Causa doCrime no Estado de São Paulo

Túlio Kahn (Ilanud)

Page 288: PRESOS NO BRASIL

DETERMINANTES ECONÔMICOS DA CRIMINALIDADE:

NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO ∗∗

PABLO FAJNZYLBER

1- Taxas de Crime: Tendências Internacionais Recentes e Custos Econômicos

Para surpresa de muitos economistas, o desemprego e a inflação, os juros e

impostos elevados não mais constituem as preocupações principais da opinião pública.

Em pesquisas realizadas em meados dos anos noventa nos Estados Unidos, na Europa e

na América Latina, a maioria dos entrevistados aponta o crime e a violência como os

problemas mais sérios do seu tempo.1 Isto não deixa de ser surpreendente quando se

considera a grande heterogeneidade existente nas taxas internacionais de crime. Na maior

parte dos países europeus, a taxa de homicídios não supera o patamar de 5 por 100.000

habitantes, não alcançando em geral nem a metade da taxa correspondente nos Estados

Unidos, e menos do que a quarta parte das taxas de vários países Latino Americanos,

mesmo na ausência de conflitos armados – no Brasil e no México há cerca de 25

homicídios por 100.000 habitantes.2

Há, no entanto, sinais de que em todos estes países os problemas relacionados à

criminalidade têm se agravado significativamente nas últimas décadas. No mundo

industrializado, as taxas de crime têm aumentado de 300 a 400% desde o fim dos anos

sessenta, enquanto na América Latina e na Europa Oriental e Ásia Central, as taxas de

homicídios têm aumentado em mais de 50% e 100% respectivamente, só a partir dos

anos oitenta.3

Mesmo considerando os díspares níveis iniciais nas taxas de criminalidade, os

aumentos nessas taxas e as conseqüentes reduções na qualidade de vida e no senso de

segurança pessoal e de propriedade explicam a crescente e generalizada preocupação do

∗ Preparado para seminário no IPEA, Rio de Janeiro, em 6 de novembro de 2000.1 Pesquisas citadas em International Centre for the Prevention of Crime (1998), Blumstein (1995) eLondoño e Guerrero (1999).2 Fajnzylber, Lederman e Loayza (1998).3 International Centre for the Prevention of Crime (1998), Fajnzylber, Lederman e Loayza (1998).

Page 289: PRESOS NO BRASIL

público com o assunto. Mas os custos estritamente econômicos também são

consideráveis. Eles alcançam cerca de 5% do PIB nos Estados Unidos e na América

Latina: só o valor das vidas perdidas representa mais de 2% do PIB, e os gastos nos

sistemas de segurança público e privado situam-se na mesma ordem de grandeza.4 E

deve-se frisar que estas estimativas não consideram os custos intangíveis do crime, os

quais incluem também os seus efeitos perniciosos sobre o investimento, a produtividade,

a acumulação de capital humano e social, as taxas de participação da força de trabalho, a

redução na qualidade de vida assim como o valor dos bens roubados.5 Estes componentes

são de mensuração difícil e são muito sensíveis aos supostos adotados em cada caso.

Como exemplo, podem-se citar estimativas do Banco Interamericano de

Desenvolvimento, segundo as quais os custos totais do crime na região alcançam 168

bilhões de dólares, ou 14,2% do PIB – 10,5% no caso do Brasil.6

Os aumentos nas taxas de crime, os elevados custos a elas associados e a

crescente importância dada ao assunto em pesquisas de opinião têm levado governos e

organizações multilaterais a encarar o problema da criminalidade como um dos mais

sérios obstáculos ao desenvolvimento econômico e social. O desafio é o de formular e

implementar políticas que permitam prevenir e reduzir o crime e a violência. Para tanto, é

de fundamental importância a geração de bases de dados e o desenvolvimento de

pesquisas que permitam avançar na compreensão das causas desses fenômenos.

2- A Abordagem Econômica das Causas do Crime

A literatura econômica sobre os determinantes da criminalidade têm se

desenvolvido, nas últimas três décadas, a partir das contribuições seminais de Gary

Becker (1968) e Isaac Ehrlich (1973).7 Na palestra proferida ao receber o prêmio Nobel,

4 Mandel et al. (1993), International Centre for the Prevention of Crime (1998), e Londoño e Guerrero(1999).5 Buvinic e Morrison (1999). Apesar de que os bens roubados não são necessariamente perdidos em suatotalidade e sim transferidos das vítimas para os criminais, pode-se argumentar que o seu valor eqüivale aocusto de oportunidade do tempo gasto pelos segundos na atividade criminal e constitui portanto um custolíquido para a sociedade – Glaeser (1999).6 Londoño e Guerrero (1999).7 Para uma resenha das principais contribuições à literatura econômica sobre crime, ver Fajnzylber, Lederman eLoayza (2000).

Page 290: PRESOS NO BRASIL

Becker (1993) resumiu assim a abordagem econômica: indivíduos racionais se tornam

criminais quando os retornos do crime, financeiros ou de outro tipo, superam os retornos

do trabalho em atividades legais, levando em consideração a probabilidade de detenção e

convicção, assim como a severidade da punição.

Mais precisamente, supõe-se que os criminais potenciais atribuem um valor

monetário ao crime, e comparam este valor ao custo monetário envolvido na realização

do mesmo. Este custo inclui não apenas o custo de planejamento e execução, mas

também o custo de oportunidade, isto é a renda que perderão enquanto estiverem fora do

mercado de trabalho legal, assim como o custo que deverão pagar caso forem detidos e

condenados (vezes a probabilidade de que isto ocorra) e um custo moral atribuído ao ato

de desrespeitar a lei. Mantendo constantes os itens de custo mencionados, conclui-se que

o crime só “compensará” se os salários no mercado legal forem suficientemente baixos.

A teoria desenvolvida a partir das hipóteses anteriores implica as seguintes previsões:

- a atividade criminal deveria diminuir com aumentos na probabilidade e na

severidade do castigo;

- agentes avessos ao risco deveriam ser mais sensíveis a aumentos na

probabilidade do que a aumentos na severidade do castigo;

- os criminosos terão uma tendência a reincidir na medida em que a experiência

na “indústria” do crime leve a uma redução nos custos de execução dos delitos

(“learning by doing”), nos custos morais envolvidos e nos custos de

oportunidade (devido ao estigma e à perda de capital humano que ex-

criminosos enfrentam no mercado legal);

- como conseqüência do ponto anterior, o crime deverá diminuir com a

“incapacitação” (prisão) de criminais que tenderiam a reincidir caso

estivessem “nas ruas”;

- o custo de delinqüir deveria aumentar com o aumento das possibilidades de

trabalho no mercado legal: maior renda per capita, maiores níveis de

educação, maiores salários, e menor desemprego deveriam portanto estar

associados a menores taxas de crime;

- mas as variáveis anteriores também estão associadas a um maior número de

vítimas potenciais (“alvos”) e portanto a um maior retorno e incidência da

atividade criminal, fazendo com que seu efeito líquido seja teoricamente

ambíguo;

Page 291: PRESOS NO BRASIL

- no caso da educação essa ambigüidade é reforçada pelo fato de que a mesma

também pode aumentar o retorno líquido no mercado ilegal (dando acesso a

vítimas mais abastadas e reduzindo os custos de execução dos crimes);

- a desigualdade na distribuição de renda deveria estar associada a maiores

taxas de crime na medida em que ela pode ser interpretada como uma “proxy”

para a diferença entre o retorno do crime (associado à renda das vítimas

potenciais, relativamente mais abastadas) e o custo de oportunidade do crime

(associado à renda dos criminosos potenciais, na base da pirâmide salarial);

- as taxas de crime num dado momento do tempo deveriam aumentar com as

taxas em momentos anteriores, mesmo que os outros fatores relevantes

permaneçam constantes: em outras palavras, existe inércia nas taxas de crime,

com o que choques temporários que aumentam a criminalidade num dado

período têm efeitos persistentes no futuro (e os efeitos de longo prazo de

choques permanentes superam os efeitos de curto prazo);

- a inércia criminal explica-se pela tendência à reincidência acima comentada,

pelo fato de que o “gosto” e os “custos” associados ao envolvimento com o

crime dependem do envolvimento de “pares” e familiares (haveriam

externalidades ao nível microeconômico), e pelo fato de que os recursos

envolvidos no combate ao crime só respondem a aumentos nas taxas de crime

com uma certa defasagem temporal, o que faz com que choques que

aumentam o crime levem a reduções nas probabilidades de captura e

condenação (externalidades ao nível macroeconômico).

3- A Literatura Empírica e o Problema de Erro de Medição nas Taxas de Crime

O modelo econômico e as sua previsões têm sido objeto de um grande número de

trabalhos empíricos, principalmente nos Estados Unidos. Há, no entanto, vários desafios

econométricos a serem vencidos. No caso do teste dos efeitos do aumento na

probabilidade de captura e na severidade das sanções, o problema principal é o de

causalidade inversa: não apenas os criminosos respondem (segundo a teoria) a maiores

dispêndios em efetivos policiais e judiciais, mas estes últimos também reagem,

positivamente, a aumentos nas taxas de crime. Assim, é comum encontrar correlações

Page 292: PRESOS NO BRASIL

positivas entre o número de policiais e o de crimes (porque há mais policiais onde há

mais crime e não vice versa). O desafio é o de encontrar fontes exógenas – instrumentos,

no jargão econométrico – de mudança nas variáveis associadas à polícia e às sanções.

Importantes avanços neste sentido têm sido feitos nos trabalhos de Steven Levitt (1996 e

1997), quem utiliza variações no número de presos e policiais derivados,

respectivamente, de processos de direitos civis e ciclos eleitorais não associados às taxas

de crime. Os resultados sugerem que, pelo menos nos Estados Unidos, o crime responde

negativamente, tal como esperado, ao número de policiais nas ruas e ao número de

criminosos nas prisões.

Um outro problema recorrente na literatura empírica sobre os determinantes

econômicos do crime é o de que a variável dependente, a taxa de crimes por habitante,

sofre de “erro de medição”. São bem conhecidos os problemas de sub-denúncia e sub-

registro de crimes à e pela polícia, respectivamente. Principalmente quando a confiança

da população no sistema policial e judicial é reduzida, sabe-se que um grande número de

crimes não é denunciado à polícia; e há também seletividade por parte desta última (em

alguns casos associada a simples deficiências administrativas) quanto à escolha das

ocorrências devidamente registradas. A incidência da “sub-denúncia” é particularmente

elevada no caso de crimes menores, crimes sexuais e violência doméstica. De outro lado,

no caso dos crimes que envolvem mortes, nem sempre os óbitos são apropriadamente

classificados como homicídios. Quando se trata de comparações internacionais, há ainda

erros de medição associados às diferentes definições adotadas em cada país para os

vários crimes.

Os problemas acima comentados afetam particularmente as fontes oficiais de

dados. A principal alternativa é o uso de estimativas da incidência do crime baseadas em

pesquisas de vitimização. Trata-se de pesquisas por amostra de domicílios com perguntas

específicas sobre os episódios de vitimização dos entrevistados. Entre as vantagens desta

fonte de dados, incluem-se a cobertura de crimes não denunciados à polícia e a inclusão

de informações detalhadas sobre as características das vítimas e não vítimas (e seus

respectivos domicílios), o que permite estudar fatores de risco pessoais e familiares. Em

menor medida estas pesquisas também incluem informações sobre os vitimários e sobre a

motivação e o contexto da vitimização. Um meio de complementar essas informações é o

uso de pesquisas de populações criminais, as quais permitem conhecer melhor as

Page 293: PRESOS NO BRASIL

características individuais associadas à participação em atividades ilegais: pesquisas com

populações em áreas de risco (por exemplo, jovens em áreas de alta criminalidade) e

pesquisas de criminais (nos pontos de detenção ou em prisões, com possível estudo de

grupos de controle).

Entre as limitações das pesquisas de vitimização contam-se a sua dependência em

relação à memória do respondente e, principalmente, o fato de que com a exceção dos

Estados Unidos e alguns países Europeus, a cobertura e periodicidade das mesmas são

muito limitadas. No Brasil, com a exceção do módulo sobre vitimização incluído na

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE de 1988, as pesquisas

de vitimização disponíveis foram realizadas na década de noventa e têm estado limitadas

às cidades de Rio de janeiro e São Paulo.8

Entre outras informações, as pesquisas de vitimização permitem avaliar a

percentagem de crimes denunciados à polícia. Em primeiro lugar, isto pode ser feito

através da tabulação do número de casos de vitimização em que o respondente informa

que foi feita a denúncia à polícia. As pesquisas realizadas no Rio de janeiro e em São

Paulo sugerem que nestas cidades menos da metade dos episódios de vitimização são

denunciados à polícia – respectivamente 25,3% e 45,8%. Contudo, cabe notar que este

problema não se restringe ao Brasil: a título de comparação, as taxas correspondentes

para a Cidade do México, Cali e Buenos Aires são de 17%, 23% e 37%.9 Uma Segunda

forma de estimar a fração dos crimes não denunciados à polícia é a de combinar os dados

oficiais com os obtidos em pesquisas de vitimização. Em ambos casos, é de particular

importância a compreensão dos fatores que explicam as maiores ou menores taxas de

denúncia, tanto para melhorar a interpretação dos dados oficiais e efetuar as correções

pertinentes nos mesmos, quanto também com o objetivo de melhorar o sistema de

informações da polícia e aumentar a confiança na mesma por parte da população (ver

seção 4 abaixo).

Um exemplo de combinação de informações de fontes oficiais com dados de

pesquisas de vitimização é o trabalho de Soares (1999), que estima os determinantes das

8 Piquet Carneiro (1999).9 Fajnzylber, Lederman e Loayza (2000).

Page 294: PRESOS NO BRASIL

diferenças entre ambas fontes de dados para uma amostra de países desenvolvidos e em

desenvolvimento. Soares encontra uma relação negativa e significativa entre o erro de

medição e o nível de desenvolvimento e utiliza o modelo estimado para corrigir os dados

oficiais, de maneira a aproveitar a maior cobertura e periodicidade destes últimos.

Uma outra forma de lidar com o problema do erro de medição nas taxas de crime

é adotada por Levitt (1998a), quem procura estimar o efeito de variações nas taxas de

detenção sobre a incidência de crimes nos Estados Unidos. O problema acarretado neste

caso pelo mencionado erro de medição é o de que ele introduz uma correlação espúria de

sinal negativo entre ambas taxas, já que ele leva a subestimar o numerador da variável

explicativa e o denominador da variável dependente. Levitt estima o modelo em

primeiras a quartas diferenças: na medida em que a influencia do erro de medição deveria

ser decrescente com o cumprimento das diferenças, isto fornece um meio de testar a

influencia do viés mencionado. Levitt complementa este exercício com estimativas

cruzadas entre taxas de detenção e de crime para diferentes delitos e conclui que a

relação negativa entre detenções e crimes não se explica pelo erro de medição e se deve

principalmente às mudanças nos incentivos dos criminais (efeitos de “deterrence”) e em

menor medida a efeitos de incapacitação (o fato de que há menos criminais nas ruas

quando há mais detenções). Este resultado é consistente com os obtidos anteriormente

por Ehrlich (1975a e 1981) e por Grogger (1991), que além disso sugerem que os

criminais se comportam com aversão ao risco (sendo mais sensíveis à probabilidade de

captura do que à severidade das sanções).

Nos seus trabalhos sobre os determinantes internacionais das taxas de crime,

Fajnzylber, Lederman e Loayza (1998, 1999 e 2000) utilizam técnicas econométricas que

controlam explicitamente pela existência de erro de medição, assim como de outros

problemas de endogeneidade que afetam os determinantes econômicos do crime, seja

devido a causalidade inversa (não apenas do crime para as variáveis de “deterrence” mas

também para as variáveis estritamente econômicas como o nível de renda e a sua

distribuição), simultaneidade ou presença de efeitos fixos não observados. Para tanto, os

autores exploram a natureza de painel dos dados utilizados: uma seção transversal de

Page 295: PRESOS NO BRASIL

países é observada ao longo de vários períodos, o que também permite testar os

mencionados efeitos de inércia criminal.10

Os dados de crime utilizados por Fajnzylber, Lederman e Loayza cobrem (de

forma “não balanceada”) o período 1965-95 e provêm das Nações Unidas (“UN Crime

Surveys”) e, para homicídios, também da organização Mundial da Saúde.11 Também com

o objetivo de minimizar o erro de medição, são utilizadas somente as informações sobre

homicídios e roubos (envolvendo violência), crimes estes que estariam menos sujeitos a

sub-denúncia e sub-registro, assim como a diferenças definicionais. Como forma de

testar a qualidade dos dados são calculadas as correlações dos mesmos com taxas

baseadas em pesquisas de vitimização coordenadas pelas Nações Unidas durante a última

década, correlações estas que se mostram significativas, pelo menos no caso de

homicídios.12

Segundo os resultados obtidos por Fajnzylber, Lederman e Loayza, as variáveis

mais robustas na explicação das taxas nacionais de crime são: o nível de atividade

econômica (medido pela taxa de crescimento do PIB) com sinal negativo, a desigualdade

na distribuição de renda (medida pelo índice de Gini) e a taxa de crime em períodos

anteriores, ambas com sinal positivo (o que confirma a existência de inércia criminal). É

pertinente notar que variáveis que medem o nível de desenvolvimento (o PIB per capita e

a escolaridade média da população, por exemplo) não se mostram robustamente

associadas às taxas de crime. Outras variáveis que se mostram relevantes são: a

probabilidade de captura e a severidade do sistema judicial (com sinal negativo), a

produção e o consumo de drogas no caso de homicídios (sinal positivo), o grau de

urbanização no caso de roubos, o grau de polarização na distribuição de renda ou a

10 É utilizado o método generalizado de momentos e, em particular, o estimador em diferenças de Arellanoe Bond (1991) e o estimador sistêmico proposto por Arellano e Bover (1995) e Blundell e Bond (1998).Em ambos casos são utilizados como instrumentos valores defasados das variáveis explicativas, fazendo (etestando) o suposto de exogeneidade fraca das mesmas e de não correlação das variáveis em diferençascom os efeitos fixos.11 Cabe notar que alguns países ou períodos em que ocorrem “pulos” descontínuos de mais de uma ordemde grandeza nas taxas de crime são eliminados por considerar-se que eles se devem a mudanças nosprocedimentos de coleta de dados.12 Mesmo nos Estados Unidos, onde o sistema de informações criminais encontra-se mais desenvolvido, ataxa de homicídios é considerada o indicador mais confiável das grandes tendências na incidência docrime. Ver, neste sentido, Donohue (1998) e Fox e Zawits (2000).

Page 296: PRESOS NO BRASIL

ausência de uma classe média significativa (sinal positivo) e o nível de capital social

quando medido pelo grau de confiança nos “World Value Surveys”.

A maior parte destes resultados é consistente com pesquisas realizadas sobre os

determinantes das taxas de crime em cidades ou estados americanos. Com efeito, o

caráter ambíguo do efeito da renda per capita sobre o nível de crime aparece já nos

primeiros trabalhos econométricos sobre o assunto: o sinal dessa variável é

respectivamente negativo e positivo nos trabalhos de Fleisher (1966) e Ehrlich (1973).

Mas ambos autores encontram um efeito positivo para variáveis que medem o grau de

desigualdade na distribuição de renda. Quanto à educação, Ehrlich (1975b) mostra que

ela se encontra positivamente relacionada às taxas de crime contra a propriedade nos

Estados Unidos, enquanto Witte e Tauchen (1994) mostram que o seu efeito é não

significativo mas o tempo gasto estudando ou trabalhando têm sim um efeito negativo

sobre a participação em atividades criminais. Na sua resenha sobre crime e mercado de

trabalho, Freeman (1994) mostra que o nível de atividade econômica, medido com base

em taxas de desemprego, aparece com sinal defasado positivo mas sinal contemporâneo

negativo em estudos que exploram a dimensão temporal dos dados sobre crime. Mas

Grogger (1997) mostra que o tempo gasto por jovens americanos em atividades criminais

está associado negativamente aos salários no mercado legal. Case e Katz (1991) mostram

a relevância da influência de pares no envolvimento criminal dos jovens e Glaeser e

Sacerdote (1999) estudam os fatores que explicam porquê as grandes cidades possuem

taxas de crime maiores. Entre estes fatores, cabe notar a importância da maior incidência

de famílias uniparentais e das menores probabilidades de captura presentes em grandes

centros urbanos. O papel das tendências no mercado de drogas e particularmente da

introdução do “crack” têm sido estudados por Grogger e Willis (1998) e Blumstein

(1995).

No Brasil, há poucos estudos econométricos realizados sobre os determinantes

econômicos das taxas de crime. Mas cabe mencionar os resultados obtidos por Araújo Jr.

e Fajnzylber (2000) sobre os determinantes das taxas de crime nas microregiões mineiras.

Utilizando dados da Polícia Militar de Minas Gerais e do Ministério da Saúde (para

homicídios) os autores mostram que a educação e o nível de renda per capita encontram-

se negativamente associados à incidência de crimes contra a pessoa mas positivamente

associados a crimes contra a propriedade. Isto é consistente com os resultados de Piquet

Page 297: PRESOS NO BRASIL

Carneiro e Fajnzylber (2000), que, com base em pesquisas de vitimização para o Rio de

janeiro e São Paulo, fornecem evidências de que as camadas mais pobres têm maiores

riscos de vitimização violenta mas menores riscos de vitimização economicamente

motivada. Araújo Jr. e Fajnzylber também encontram efeitos significativos para a

desigualdade de renda medida pelo índice de Theil, com sinal positivo para homicídios e

negativo para roubo de veículos, e para variáveis relacionadas à estrutura familiar (taxa

de separações, desquites e divórcios) e à percentagem de jovens na população, ambas

com sinal positivo para todos os tipos de crime.

Utilizando taxas de crime calculadas por coortes etárias para as cidades de Belo

Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, Andrade e Lisboa (2000) mostram que as mesmas

encontram-se sujeitas a inércia criminal e encontram efeitos diferenciados das variáveis

econômicas de acordo com a idade das vítimas de homicídio. Como mostra Farrington

(1986), apesar de não haver consenso sobre os seus determinantes, é inegável a

importância dos efeitos de ciclo de vida na participação em atividades criminais. Nos

Estados Unidos, em particular, os ciclos recentes de aumento e declínio nas taxas de

crime têm estado associados em grande medida a mudanças nas taxas de crime (e

vitimização) nos grupos etários mais jovens.13 Isto têm acentuado o interesse pelos

determinantes da participação criminal dos jovens. Neste sentido, os trabalhos recentes

de Grogger (1997), Levitt (1998b) e Mocan e Rees (1999) sugerem que os jovens são

pelo menos tão sensíveis quanto os adultos aos fatores enfatizados pela abordagem

econômica do crime, incluindo salários, condições econômicas locais, taxas de detenção

e severidade do sistema judicial.

4- Comentários Finais: Pesquisa Futura e em Andamento

Comentando o resultados acima mencionados sobre a robustez da relação entre

desigualdade de renda e taxas internacionais de crime, Bourguignon (1998) têm

afirmado: “the significance of inequality as a determinant of crime in a cross-section of

countries may be due to unobserved factors affecting inequality and crime rather than to

13 Blumstein (1995), Blumstein e Rosenfeld (1998), Fox e Zawitz (2000).

Page 298: PRESOS NO BRASIL

some causal relationship between these two variables.” Em particular, poder-se-ia

argumentar que não é a desigualdade de renda per se a que afeta o crime mas sim outras

características a ela associadas, como a capacidade de proteção privada ou a desigualdade

na distribuição dos esforços de segurança pública, ou ainda a desigualdade na

distribuição da educação ou mais geralmente da riqueza. Poder-se-ia pensar também que

os efeitos sobre o crime decorrem de aspectos específicos da distribuição de renda, como

a pobreza relativa de determinados segmentos econômicos ou a importância da classe

média (o grau de polarização). Ou ainda, como argumentado por Gavíria (2000), é

possível que o relevante não seja o nível de desigualdade ou a sua taxa de variação mas

sim a ausência de mobilidade social: “the frustration that comes with knowing that one’s

prospects of mobility are very limited and that most opportunities of advancement are

irremediably closed.”

Segundo mostram Fajnzylber, Lederman e Loayza (1999), a relação entre

desigualdade de renda e crime persiste mesmo quando vários dos aspectos anteriores são

levados em consideração. Sem embargo, avanços no entendimento dessa relação deverão

ocorrer com base em estudos baseados em dados microeconômicos que permitam

construir medidas detalhadas das características da distribuição de renda e do grau de

mobilidade social, relacionando estes aspectos à incidência de crimes e às probabilidades

individuais de participação criminal e vitimização. No Brasil, dados os conhecidos

problemas sociais e a elevada desigualdade de renda, parece-nos que o desenvolvimento

desta agenda de pesquisa é prioritária. Em trabalho atualmente em andamento Araújo Jr.

e Fajnzylber têm calculado índices de mobilidade social ascendente e descendente para

os estados brasileiros e os dados sugerem que esses índices encontram correlacionados às

taxas estaduais de homicídios (respectivamente com sinais negativo e positivo). Isto

sugere que a hipótese aventada por Gavíria pode ajudar a explicar as tendências do crime

no Brasil.

Outras áreas promissoras para o avanço da pesquisa sobre crime e economia no

Brasil são as relacionadas com os determinantes dos crimes desagregados por gênero e

idade das vítimas (incluindo efeitos de ciclo de vida) e as relacionadas com o estudo dos

determinantes do “erro de medição” acima comentado. Neste sentido, é importante

comparar dados oficiais com dados de pesquisas de vitimização, assim como comparar as

várias estimativas da incidência de homicídios a partir dos dados do Ministério da Saúde

Page 299: PRESOS NO BRASIL

(os determinantes do número de homicídios indevidamente classificados). A melhoria do

sistema de geração de informações, com dados periódicos e detalhados sobre a

distribuição temporal e espacial da incidência de crimes, com base em denúncias e

pesquisas de vitimização, é importante por várias razões. Trata-se não apenas de fornecer

matérias primas para um melhor entendimento das causas e fatores de risco, o que é

importante para o planejamento estratégico das atividades de combate ao crime, mas

também de gerar subsídios para o aumento da eficiência operacional nessas atividades.

Finalmente, a transparência no fornecimento ao público de informações estatísticas

fidedignas é um ingrediente importante nos esforços para melhorar a confiança no

sistema policial e judicial, o que indiretamente também redunda na melhoria nos índices

de denúncia e na qualidade das informações geradas pela polícia.

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Page 304: PRESOS NO BRASIL

VIOLÊNCIA LETAL, RENDA EDESIGUALDADE NO BRASIL

IGNACIO CANO (ISER/UERJ)

NILTON SANTOS (ISER)

A hipótese de que a pobreza e a desigualdade aumentam a violência está ancorada

basicamente em duas teorias:

a) a conduta de maximização da renda, personificada pelo homo economicus, que

optaria pelo crime quando o diferencial de ganho das condutas ilegais sobre as legais

fosse superior ao efeito inibidor da probabilidade de captura vezes a pena imposta e aos

valores morais contrários a este tipo de opção (Becker, 1968). Assim, a probabilidade de

um crime seria inversamente proporcional à renda que a pessoa pode obter

desenvolvendo ocupações legais e diretamente proporcional à magnitude do produto do

crime. Dessa forma, a desigualdade reforçaria a disposição a cometer crimes nas pessoas

pobres de duas formas: a baixa renda própria e a alta renda alheia. Esta teoria refere-se ao

crime contra o patrimônio, mas na medida em que deva ser cometido com violência, um

aumento deste tipo de crime provocará um aumento dos homicídios. Outra explicação é

que a violência costuma ser um componente importante nas relações intra e inter-grupais

dos membros de organizações criminosas.

b) a teoria da frustração-agressão (Dollard et al., 1939). A frustração das

necessidades e das expectativas levaria aos sujeitos a desabafar através da agressão, que

não necessariamente se dirigiria contra as pessoas ou instituições responsáveis pela

situação, mas que poderia ser expressada de forma muito mais difusa. Diferentemente do

caso anterior, este comportamento não pode ser rotulado de racional.

Ambas as teorias referem-se aos autores dos crimes, não às vítimas. Contudo,

essa hipótese é geralmente testada em dados agregados relacionados às vítimas, que não

são os mais adequados para este teste e estão sujeitos ao perigo da falácia ecológica.

Neste caso, a hipótese poderia ser reformulada da seguinte maneira: as taxas de

homicídio dos lugares pobres e desiguais são mais altas do que as dos ricos e socialmente

homogêneos?

De fato, as médias de agregados de populações podem corresponder a muitas

situações diferentes. Por exemplo, uma renda média alta pode ser acompanhada por alta

Page 305: PRESOS NO BRASIL

desigualdade, o que significa que pode haver pessoas ricas, mas também pobres. As

teorias não necessariamente convergem em seus prognósticos. Enquanto a hipótese

frustração-agressão se inclinaria mais a prognosticar um aumento da violência paralelo a

qualquer aumento na desigualdade, mesmo que a renda média esteja aumentando, o

prognóstico do homo economicus estaria mais vinculado ao nível absoluto de renda do

extrato mais baixo da população. Os elos teóricos entre renda, pobreza e desigualdade

não são fáceis de desvendar, particularmente quando são usadas médias de índices

agregados. Além disso, as taxas agregadas ecológicas são usadas na suposição de que

vítimas e criminosos habitam a mesma área. Quanto menor a área geográfica usada na

comparação mais difícil é sustentar essa suposição. Do outro lado, as áreas pequenas

tenderão a ser mais homogêneas e as médias serão mais representativas do grupo em

comparação às áreas grandes.

Além destas duas grandes linhas teóricas, é possível pensar numa teoria que

prognostique que vítimas pobres, que são menos capazes de se proteger (através de

grades, guardas ou simplesmente se mudando para lugares mais seguros) serão mais

facilmente assassinadas do que vítimas ricas. Todavia, matar uma pessoa de alta renda

implica que a família terá mais meios e a sociedade exercerá mais pressão para que o

crime não fique impune.

Em qualquer caso, é preciso um grande esforço teórico para reavaliar as teorias

existentes e para formular hipóteses mais específicas que possam ser testadas com os

dados disponíveis.

Como resultado de todas essas considerações, as comparações de taxas de

homicídio de áreas cujas condições socio-econômicas são variáveis são, no melhor dos

casos, um teste indireto das hipóteses propostas.

Este trabalho pretende realizar um análise das relações entre a taxa de homicídios,

por um lado, e renda e desigualdade, por outro, comparando diferentes níveis

geográficos: internacional, nacional, estadual e municipal.

Os registros de homicídio podem ser obtidos de duas fontes principais: a polícia

e o sistema de justiça criminal; e o sistema de saúde, através das certidões de óbito.

Ambas apresentam sérios problemas de confiabilidade e validade, que tendem a

aumentar quando comparados a unidades geográficas mais amplas. Os dados da saúde

Page 306: PRESOS NO BRASIL

deveriam ser mais confiáveis, uma vez que seu processamento é supostamente mais

homogêneo, mas não devem ser usados sem cuidadosa atenção ao uso da categoria

"mortes de intenção não determinada ". Há métodos de estimação para calcular que

proporção dessas mortes de intenção indeterminada corresponde a homicídios. Estas

estimativas se revelaram bastante eficientes no caso do Rio de Janeiro. A aplicação da

correlação canônica para otimizar simultaneamente os dois conjuntos de categorias, as da

saúde e as da polícia, mostrou resultados muito próximos da estimativa proposta por

Lozano (1997).

No nível internacional, poucos países informam dados criminais e dados da saúde às

organizações internacionais. O grau de convergência encontrado nos registros de

homicídios do sistema de justiça criminal e nos registros da saúde para cada país é

razoavelmente alto, com alguma exceção como Azerbaidjan. No entanto, os

problemas de confiabilidade e validade são enormes, provavelmente maiores do que

em qualquer outro nível geográfico, o que determina que os resultados sejam tomados

com cautela.

Nas análises subseqüentes optou-se pelos dados provenientes do sistema de saúde,

visto que o processamento é mais homogêneo e a qualidade dos mesmos,

normalmente, superior. Uma comparação das taxas de homicídio entre países, com

base em dados da Organização Mundial da Saúde, mostra que renda e desigualdade

parecem ter realmente um impacto moderado. Os países mais pobres e mais desiguais

tendem a apresentar taxas de homicídio mais altas do que os países mais ricos e mais

justos. Isso parece estar de acordo com outra pesquisa baseada em dados criminais

internacionais (Fajnzylber et al., 1998).

No nível nacional, a comparação das taxas de homicídio por estado no Brasil também

apresenta graves problemas referentes à qualidade dos dados: a) problemas de

cobertura, pois alguns municípios não informam de todas mortes acontecidas; b)

mortes não classificadas, das quais se ignora a causa; e c) mortes por causa externa de

intencionalidade desconhecida, que podem corresponder a homicídios, suicídios ou

acidentes. O grau de cobertura dos dados relativos a mortalidade parece se relacionar

com renda e desenvolvimento. De fato, análises dos registros de mortalidade por

faixa etária mostram que os dados do Piauí e do Maranhão são inválidos pois sofrem

de um alto grau de subregistro. Os efeitos da renda e da desigualdade vão na direção

predita, mas não são estatisticamente significativos. Isso talvez se deva ao pequeno

Page 307: PRESOS NO BRASIL

tamanho da amostra, mas a influência, se é que existe, não é muito forte. Ao

contrário, a variável que parece ter forte ligação com a taxa de homicídio é a

urbanização. Os estados urbanos apresentam taxas muito mais altas do que os estados

rurais.

No nível estadual, a comparação das taxas de homicídio das municipalidades no

estado do Rio de Janeiro também acarreta problemas metodológicos, pois algumas

municipalidades têm população pequena e, em conseqüência, taxas não confiáveis. Isso

foi resolvido calculando as taxas de homicídio por conjuntos de municipalidades

pequenas da mesma área, a custa de perder graus de liberdade. Não há efeito aparente da

renda média sobre a taxa de homicídio das municipalidades. Há um surpreendente efeito

negativo da desigualdade, uma vez que as áreas mais violentas do estado, os arredores da

área metropolitana (“Baixada Fluminense”), são áreas de relativa homogeneidade socio-

econômica. Uma vez mais, a urbanização é o elemento mais poderoso: as

municipalidades com alta proporção de população urbana detêm taxas muito mais altas

de homicídio.

O último nível, o municipal, é o que revela um efeito mais forte. Todos os

estudos realizados em áreas metropolitanas no Brasil (Brasília, Salvador, Curitiba, Rio de

Janeiro e São Paulo) mostraram sistematicamente que o número de homicídios era

consideravelmente mais alto nos bairros ou Áreas Metropolitanas mais pobres e mais

moderado nas áreas afluentes das cidades. As correlações relatadas entre taxas de

homicídio e indicadores sócio-econômicos excedem com freqüência 0,40. Não há índices

de desigualdade para essas unidades pequenas. O fato de que a relação entre riqueza e

violência letal seja mais forte nesse nível local — precisamente aquele em que a hipótese

de que criminosos e vítimas vivem na mesma área é mais fraca — poderia ser

interpretado como evidência de apoio ao menos clássico dos enfoques teóricos: são

também as características da vítima, não apenas as do criminoso, que determinam as taxa

de homicídio.

De fato, uma das formas de se proteger contra o perigo é mudar-se das áreas

perigosas para bairros diferentes ou mesmo para outras cidades. O movimento migratório

mais simples e aparentemente mais protetor seria sair da cidade e ir para o interior, onde

Page 308: PRESOS NO BRASIL

os riscos parecem ser muito menores. No entanto, isso envolve uma mudança radical na

maneira de viver, o que faz com que as migrações sejam muito mais prováveis dentro da

cidade, ou mesmo entre cidades, do que de uma cidade para o interior. Mudar-se para um

bairro “seguro” é muito mais fácil para os indivíduos ricos do que para os pobres. Assim,

as áreas urbanas de risco tenderão a concentrar indivíduos que não têm condições de sair

delas.

A primeira conclusão dessas análises é que os resultados são diferentes em níveis

geográficos diferentes, confirmando a velha sabedoria metodológica que alerta

contra a falácia ecológica: as relações entre variáveis podem não ser as mesmas

quando medidas em níveis diferentes.

A forte influência da urbanização sobre a violência letal, confirmada tanto no

nível interestadual quanto no intermunicipal, se ajusta à tradicional noção sociológica de

que o controle social é muito mais poderoso nas áreas rurais do que nos ambientes

urbanos. O controle social informal em particular é intenso nas pequenas comunidades

onde as pessoas se conhecem e o desvio social é imediatamente detectado e

estigmatizado. Por outro lado, o anonimato urbano diminui o controle social e aumenta a

impunidade. Essa explicação é mais sólida quando se comparam cidades menores com

cidades grandes, mas não pode ser usada tão facilmente para explicar diferenças entre

municipalidades em áreas geográficas onde há grande mobilidade (por exemplo, áreas

metropolitanas).

A descoberta de que a urbanização parece ser um fator chave junto à

confirmação do efeito inequívoco da renda das vítimas sobre as taxas de homicídio

dentro das cidades ressalta a questão da pobreza urbana como elemento determinante da

violência. Poderia ser uma combinação de fatores — urbanização rápida sem serviços

sociais, pobreza, falta de controle social e anonimato, desigualdade, falta de

oportunidades para a juventude etc. — o que provocaria, nas cidades, altos níveis de

violência.

A desigualdade urbana está implícita na pobreza urbana, mas não há índices

para medi-la com precisão. Além disso, a desigualdade apresenta um problema

Page 309: PRESOS NO BRASIL

particularmente sério em relação a unidade de análise. É possível defender que a pobreza

tem um impacto sobre a violência letal que não depende tanto da unidade de análise. Os

indivíduos pobres teriam maior chance de cometer ou sofrer homicídio. A principal razão

para nos preocuparmos com a unidade de análise, quando usamos a renda média, é a

tentativa de procurar uma unidade tão pequena quanto possível, para que a média seja

mais representativa do conjunto. Por sua vez, a desigualdade é concebida em relação a

outrem e, assim, a unidade de análise se torna crítica. Que tipo de desigualdade terá

significado mais forte no comportamento individual? A desigualdade nos bairros, na

cidade, no estado ou a desigualdade internacional? É razoável supor que os indivíduos

precisam ter uma experiência direta dessa desigualdade numa certa área, a fim de agir de

acordo com ela. Por exemplo, um país pode ser muito desigual devido à existência de

estados muito pobres e muito ricos, mas é improvável que essas diferenças tenham forte

impacto sobre os indivíduos que vivem distanciados uns dos outros, a menos que haja

migrações. É também razoável imaginar que habitantes das áreas metropolitanas, que

tendem a ter ampla mobilidade dentro delas, sejam afetados pela desigualdade que

percebem nessa área metropolitana, não necessariamente pela desigualdade dentro da

municipalidade, muito menos do bairro. Assim, pode ser necessário redesenhar os limites

geográficos para o cálculo dos índices de desigualdade, de acordo com a percepção dos

indivíduos.

A questão da relação entre pobreza e desigualdade, por um lado, e homicídios,

por outro, está longe de ser resolvida, o que torna urgente o aprofundamento das

pesquisas. Além do mais, os dados agregados disponíveis permitem apenas um teste

indireto da hipótese. No entanto, as análises ecológicas até o momento no Brasil mostram

uma forte relação entre a pobreza e a violência letal nas cidades. Alguns pesquisadores

argumentam que a melhoria relativa dos indicadores sociais ao longo do tempo não foi

acompanhada de qualquer decréscimo no número de homicídios, mas essa melhoria foi

acompanhada por um processo de urbanização rápida, justamente um dos fatores

aparentemente mais importantes por trás da violência.

Page 310: PRESOS NO BRASIL

Em resumo, o homicídio é um fenômeno complexo e é determinado por vários

fatores, mas, no atual estado da disciplina, a ligação entre violência letal e pobreza não

pode ser negada.

BIBLIOGRAFIA

BECKER, G.S. (1968) “Nobel Lecture: The Economic Way of Looking at Behavior.”

Journal of Political Economy, vol. 76, pg. 169-217.

DOLLARD, J.B., DOOB,L., MILLER, N., MOWRER, O. & SEERS, R (1939)

Frustration and Aggresion. New Haven: Yale University Press

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American and Caribbean Studies. Washington, D. C., World Bank.

LOZANO, R. (1997) La Carga de la Enfermedad y as lesiones por violencia contra las

mujeres: el caso de la ciudad de México. Fundación Mexicana para la Salud. Centro de

Economía y Salud. México.

Page 311: PRESOS NO BRASIL

OS CUSTOS DA VIOLÊNCIAQUANTO SE GASTA OU DEIXA DE GANHAR PORCAUSA DO CRIME NO ESTADO DE SÃO PAULO 14

TÚLIO KAHN

Tulio Kahn é doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo, assessor da Secretaria da

Administração Penitenciária e coordenador de pesquisa do Ilanud - Instituto Latino Americano das Nações

Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente.

Uma combinação explosiva de modernização e urbanização aceleradas,

desigualdade social, padrões de consumo de primeiro mundo, liberdade política e

ausência de freios morais e religiosos parecem ser os maiores responsáveis pelo

fenômeno da violência crescente na América Latina, ao lado da produção de drogas e da

economia estagnada em vários países. O Brasil, ao lado da Colômbia e do México, é um

dos casos onde estas variáveis se apresentam de modo mais extremo e portanto onde a

violência tem mais crescido nas últimas décadas. Este aumento da violência tem um

impacto não desprezível sobre a economia do país. Neste artigo procuramos avaliar os

custos da violência tomando como base o estado de São Paulo, onde a questão da

criminalidade se apresenta de maneira aguda.

A violência custa caro, tanto para o país como individualmente. Custa caro

porque "segurança" é um bem desejado por todos, mas cada vez mais escasso. Para

garantir este bem, executamos todos os dias dezenas de atos de precaução e adquirimos

outros tantos bens no mercado: seguros de toda espécie, cães de guarda, quinquilharias

eletrônicas, travas, grades e cadeados de todo tamanho e função.

A preocupação com a segurança afeta nossas decisões de uma maneira que já é

quase imperceptível e autômata para os moradores dos grandes centros urbanos como

São Paulo e Rio: sem que o percebamos, deixamos de viajar para determinadas cidades,

de morar em certas vizinhanças, de estacionar o carro nesta ou naquela rua, de comprar

14 Diversas pessoas ajudaram a compilar os dados para este artigo, entre elas, principalmente, CristinaBarbosa, Flávia Piovesan, José Alves dos Reis, Rafael Rabinovici, Renato Sérgio de Lima e TatianaBicudo. Nenhum deles tem qualquer responsabilidade pela forma como os dados foram interpretados.

Page 312: PRESOS NO BRASIL

carros conversíveis ou morar em casas. Em função da violência reordenamos parte de

nossa vida e de nossos negócios.

Para o poder público, segurança converteu-se também num dos maiores itens

orçamentários e em objeto de preocupação prioritária. Pesquisas de opinião pública

revelam que, ao lado do desemprego, a questão da violência aparece entre as maiores

inquietações da população". Cada ano a população exige mais policiais, mais viaturas e

armas, novos presídios, juízes, promotores, rádios comunicadores, computadores.

O Estado vem investindo quantias significativas na área de Segurança Pública

desde 1995. O efetivo da Polícia Militar aumentou em 12% desde janeiro de 1995,

contando hoje com 82.021 policiais. Os pisos salariais para os soldados de 1° e 2º classes

aumentaram em mais de 200% neste período. Por conta destes investimentos, os gastos

com o pagamento do efetivo da Polícia Militar passaram de R$ 47 milhões em abril de

1995 para R$ 91,7 milhões em fevereiro de 1998, representando um aumento de 95%. A

Polícia Civil, por sua vez, nomeou cerca de 5 mil novos policiais entre 95 e 98. Foram

adquiridas 4.466 viaturas para aparelhar a polícia estadual, a um custo de R$ 94,9

milhões. Outros R$ 18,7 milhões de reais foram utilizados na compra de 14.849 coletes,

22.500 revólveres, 6.000 pistolas, 5.000 cacetetes, além de capacetes, escudos, munição e

espingardas. Na área da administração penitenciária foram construídas 21 penitenciárias

em regime fechado e 3 em regime semi-aberto, a um custo de R$ 230 milhões de reais,

para retirar os presos condenados mantidos ilegalmente nas delegacias de polícia. Mas,

apesar de todos estes investimentos, sem dúvida necessários, a criminalidade está

aumentando no estado de São Paulo.

Se pegarmos como período base o 3º trimestre de 1995 e como período de

comparação o último trimestre de 1998, veremos que, com exceção do estupro - que está

sujeito a bruscas variações em função da baixa notificação - todos os crimes monitorados

pelas estatísticas da Secretaria de Segurança Pública aumentaram nos últimos 4 anos. Os

ritmos de crescimento variam de crime para crime: o destaque fica por conta dos roubos

de carro, que cresceram nada menos do que 123%. Os homicídios culposos (13,8%) e o

tráfico de entorpecentes (15,2%), por outro lado, foram os crimes que menos cresceram

de 1995 para cá. Todas as taxas de crescimento de crimes são maiores do que a taxa de

crescimento populacional no período, que ficou em torno de 5,8%. O Índice de

Page 313: PRESOS NO BRASIL

Criminalidade - medida resumo que indica a média ponderada de 4 crimes selecionados,

com base na população - apresentou um aumento de 63% desde 1995.

Tabela 1. Taxas de Criminalidade em São Paulo (Estado)Variação daCriminalidade - 1995 a1998, no Estado de SãoPaulo

3º Trim.1995

4ºTrim.1998

Variação1995-1998

Homicídio doloso 2302 2.953 28,28

Homicídio culposo 1128 1.284 13,83

Tentativa de homicídio 1496 2.347 56,89

Lesão corporal 57687 75.081 30,15

Latrocínio 101 148 46,53

Estupro 1153 1079 -6,42

Tráfico de entorpecentes 1911 2.202 15,23

Roubo 25559 52.017 103,52

Roubo de Veículo 9472 21.136 123,14

Furto 69218 98.884 42,86

Furto de Veículo 19787 28.309 43,07

População do Estado 33427929 35367254 5,80

hom.dol. Por 100 mil 6,89 8,38 21,74

Lesão corporal por 100mil

172,57 213,15 23,51

roubo por 100 mil 76,46 147,67 93,14

furto por 100 mil 207,07 280,73 35,57

Índice de Criminalidade 1021,63 1664,13 62,89Fontes: Fundação SEADE: População / Secretaria da Segurança Pública: dados de criminalidade

Qual é o preço que a sociedade paga por este crescimento dos índices de

criminalidade ? Estes investimentos tem se revelado compensadores para a sociedade ?

Haveriam outras formas de investir estes mesmos recursos mais eficazmente ? Foi para

responder estas perguntas que se criaram diferentes fórmulas e metodologias para estimar

os custos da violência. Não há consenso sobre a melhor fórmula, o que se deve incluir ou

deixar de fora dos cálculos, qual o peso de cada fator. Os custos podem ser classificados

em preventivos e curativos, diretos e indiretos, perdas materiais e perdas humanas,

tangíveis e intangíveis, econômicos e financeiros, custos para a sociedade ou para o

cidadão, de curto ou de longo prazo, perdas pelo que se gasta ou pelo que se deixa de

ganhar e assim por diante.

Page 314: PRESOS NO BRASIL

A variedade de métodos só não é maior do que a variedade de fontes utilizadas:

estatísticas oficiais de criminalidade, pesquisas de vitimização, orçamentos

governamentais, tabelas de seguradoras, pesquisas de opinião pública, estimativas feitas

por especialistas no setor público e privado e toda uma série de meios formais e

informais que possam servir como base para o cálculo.

Antes que alguém comece a levar demasiado a sério os cálculos aqui

apresentados, é preciso dizer que por trás da aparente sofisticação metodológica das

estimativas dos custos do crime existe uma boa dose de "adivinhação". Trata-se, todavia,

de adivinhação bem informada e assume-se aqui ser melhor trabalhar com elas do que

com nada. Trata-se de ter alguma estimativa, por precária que seja, para auxiliar no

processo decisório na esfera da segurança pública, uma orientação que ajude na hora de

optar por alternativas, como investir na repressão ou prevenção do crime.15

Já existem algumas tentativas de mensuração de custos da violência feitas no

Brasil. Um pesquisa feita pelo BID estimou que a violência custa 84 bilhões de dólares

ao Brasil ou 10,5% do PIB nacional. O economista Ib Teixeira, da Fundação Getúlio

Vargas, calcula em 60 bilhões o valor gasto ou perdido, ou 8% do PIB. Somente no

município do Rio de Janeiro, segundo o ISER, a violência custou aos cidadãos cerca de

2 milhões de dólares, ou 5% do PIB municipal de 1995. O problema é que estas

estimativas não são comparáveis porque usam metodologias, unidades geográficas e anos

diferentes. Nenhuma é necessariamente certa ou errada.

Para esta pesquisa, optamos por dividir os gastos em 3 diferentes categorias: 1)

gastos feitos pelo cidadão indiretamente, através de impostos e que são alocados direta

ou indiretamente no combate ao crime; 2) gastos feitos diretamente pelos indivíduos ou

empresas para a compra do bem "segurança" ou perda de patrimônio direta em função do

15 Para tomar um exemplo concreto: o governo, através das Secretarias da Administração Penitenciária e doTrabalho, iniciou em 1997 um programa de prestação de serviços à comunidade, para aqueles que foramcondenados a cumprir penas alternativas. Nesta modalidade de pena um prestador custa ao estado cerca de50 reais mensais e trabalha gratuitamente 8 horas semanais. Se estivesse cumprindo pena em regimefechado, custaria R$ 620 mensais aos cofres públicos.

Page 315: PRESOS NO BRASIL

crime e 3) valores que deixam de ser produzidos ou ganhos pela sociedade em razão do

medo da violência / outros custos intangíveis. 16

1) gastos feitos pelo cidadão indiretamente através de impostos e que são alocados no

combate ao crime

Tabela 2 . Gastos Indiretos com ViolênciaItem Valor Porcent.Secretaria da Segurança Pública – 1998 3.585.094.695 85,4Secretaria da Administração Penitenciária – 1998 471.007.971 11,1Tribunal de Alçada Criminal – 1998 72.874.153 1,7Internação de crianças e adolescentes infratores -1988

38.390.760 0,9

Tribunal de Justiça Militar –1998 14.617.586 0,3Ministério Público - 1998(somente gastos com salários, na capital)

5.529.600 0,1

Procuradoria Geral do Estado - 1998. (somente gastosem salários, na capital)

3.060.000 0,05

Guarda Civil Metropolitana(somente gastos com salários, na capital)

2.700.000 0,06

Pensões pagas para famílias de policiais, mortos emserviço. (Dados da Resolução 168, publicados noDiário Oficial de 21-5-98)

2.175.800 0,05

Internações hospitalares na rede pública : somentegastos com "homicídios e lesões provocadasintencionalmente por outras pessoas / outrasviolências" (DATASUS, 1997)

1.310.595 0,03

Total 4.196.761.160 100Fontes: Diário Oficial / DATASUS / Serviço de Relações Públicas do Comando da Guarda Civil / COSESP

Os gastos dos órgãos diretamente relacionados com o combate da criminalidade,

como Secretarias de Segurança Pública e Administração Penitenciária, foram retirados do

orçamento estadual de 1998. Do orçamento da Secretaria de Segurança Pública

deduzimos apenas os valores relativos ao Corpo de Bombeiros, cujas atividades não

dizem respeito ao controle do crime (exceto no caso de incêndios provocados

intencionalmente). Para outros órgãos públicos que só dedicam parte de seu orçamento

ao problema do crime, cálculos diferentes foram necessários. Assim, por exemplo, o

valor das internações dos menores infratores não eqüivale aos gastos integrais da

16 A explicação detalhada das fontes e cálculos não cabem no limite deste artigo, mas podem ser obtidas noIlanud, onde a pesquisa foi desenvolvida.

Page 316: PRESOS NO BRASIL

Secretaria de Assistência e Bem Estar mas é o resultado da multiplicação de 3.485

internos em junho de 1998, ao custo unitário de R 918,00 por mês.

Para estimar os custos no Ministério Público averiguamos que, somente na

Capital, existem 256 promotores de Justiça com atribuições criminais e tomamos como

salário base, no início de carreira, o valor de 1.800 reais, tanto para promotores quanto

para procuradores. O valor é sabidamente subestimado pois não leva em conta os

promotores no interior, os gastos administrativos e os acréscimos salariais. O mesmo é

válido para a Procuradoria do Estado: somente parte do trabalho do órgão é despendido

no trato de questões criminais. Na Capital atuam 105 procuradores na área criminal, além

de 65 espalhados pelo interior. Somente foram levados em conta os gastos com salários,

minimizando os custos efetivos do Ministério Público e da Procuradoria. Na ausência de

informações precisas, ao calcular os custos da violência é preferível pecar por falta do

que por excesso.

Na Guarda Municipal de São Paulo, segundo o serviço de relações públicas do

Comando da Guarda Civil, trabalham 4.500 policiais, com vencimentos brutos, na

categoria base, em torno de 600 reais mensais. O custo aqui é novamente subestimado

pois só leva em conta os gastos com salários e no município de São Paulo.

Além dos salários dos operadores do direito - policiais, carcereiros, juízes,

promotores e procuradores - é preciso levar em conta o pagamento de seguros e

indenizações públicas às vítimas da violência. Desde 1998, as famílias dos policiais que

morrem em serviço recebem como indenização, em média, R$ 50.600 reais. Em 1997

morreram em serviço 40 policiais militares e 3 policiais civis e é sobre esta base que

computamos os gastos com seguro apresentados na tabela. Desde junho de 1996, quando

este tipo de seguro foi criado, 151 famílias receberam o equivalente a 7 milhões e 200

mil em indenizações da Cosesp, Companhia de Seguros do Estado.

O INSS, por sua vez, pagou em São Paulo 449.933 pensões por invalidez e

908.880 pensões por morte em 1996, mas não soubemos avaliar quantos dos mortos por

homicídio e inválidos no Estado receberam tais pensões, de modo que optamos por não

incluir os gastos do INSS no cômputo. (INSS, 1996). Como a maior parte dos mortos

pela violência são jovens, sub-empregados e não raramente desempregados, é possível

Page 317: PRESOS NO BRASIL

que boa parte das famílias não receba indenizações do INSS. Quanto aos gastos

ambulatoriais com as vítimas da violência, (93% dos homicídios em São Paulo são

cometidos por armas de fogo) finalmente, estimamos que São Paulo representa 46,4%

dos gastos nacionais no quesito "internações hospitalares por violência na rede pública",

tomando como base a proporção de gastos no Estado com atendimento específico em

urgência e emergência. Faltaria acrescentar ainda os gastos em São Paulo da Polícia

Federal, para completarmos o quadro, mas não foi possível obter tais informações. O

efetivo da polícia federal é pequeno se comparado ao efetivos das polícias estaduais, de

modo que o resultado final não está demasiado distante da realidade.

Os gastos neste primeiro grupo de custos, que chamamos de indiretos, são

sabidamente subestimados, mas mesmo assim perfazem 4 bilhões e 200 milhões de reais,

com o orçamento da Secretaria de Segurança Pública, como era previsível, representando

o maior dispêndio proporcional nesta categoria.

2) gastos feitos diretamente pelos indivíduos ou empresas para a compra do bem

"segurança" ou perda de patrimônio direta em função do crime

Tabela 3. Gastos e perdas diretas com ViolênciaItem Valor Porcent.Segurança Privada: 400.000 guardas no Estado(Sesvesp, somente salários)

2.880.000.000 60,6

Veículos furtados 839.772.000 17,6Seguros: automóveis 495.681.600 10,4Veículos roubados 340.404.000 7,1Cargas roubadas (DIVECAR, SETECESP, 1998) 116.472.180 2,4Perda de patrimônio em arrombamentos residenciais(excluindo o custo dos danos, somente RegiãoMetropolitana de São Paulo)

41.337.021 0,8

Perda direta de bancos com roubos em agências(DEPATRI, 1998)

30.000.000 0,6

Outros roubos e furtos, excluindo veículos, bancos ecargas

10.437.750 0,2

Sepultamento das vítimas de homicídio 2.496.800 0,05Equipamentos de segurança para carros 692.300 0,01Total 4.757.293.651 100Fontes: SESVESP / Secretaria de Segurança Pública / DIVECAR / SETECESP / DEPATRI / Serviço Funerário Municipal / ILANUD

Os valores estimados para este segundo grupo de itens somam 4 bilhões e 757

milhões de reais anuais entre gastos e perdas diretas da população. São quantias em

Page 318: PRESOS NO BRASIL

dinheiro ou bens que mudaram de mãos, no caso dos crimes consumados, passando do

setor legal para o ilegal da sociedade. Quantias, nos caso da prevenção, que os indivíduos

certamente prefeririam estar investindo em outras coisas, como lazer, ao invés de usá-las

para se precaver de perigos em potencial. Deste grupo, o item de maior peso é o

investimento em vigilância privada, um dos únicos setores do país para o qual não existe

crise. Depois dos gastos em vigilância privada aparecem em importância os gastos

relativos a veículos: somados, os custos com roubos, furtos, seguros, equipamentos de

proteção de veículos representam no final um rombo considerável no orçamento dos

indivíduos.

Poderíamos agregar ainda a este grupo de custos os seguintes itens:

• Custos e honorários advogatícios.

• Perdas com os "crimes de colarinho branco".

• Horas de trabalho perdidos: convalescência física e psicológica, registro de queixa

policial; testemunho em processos criminais, etc.

• Quebra de produtividade de funcionários vítimas de violência.

• Tratamento médico e psicológico das vítimas na rede privada.

• Investimento em equipamentos para segurança própria, empresarial ou residencial,

como armas, grades, câmeras, alarmes, etc.

Infelizmente, com relação a estes itens, só dispomos de alguns elementos para

base de cálculo, de modo que não foram incluídos neste levantamento. Entre estes

elementos, valeria mencionar: quanto aos custos advogatícios, o site da OAB na internet

divulga uma pesquisa feita em escritórios de advogacia, com os seguintes preços

mínimos: na fase do Inquérito Policial - diligências R$300; acompanhamento R$500 ;

instauração R$700. Na fase da Ação Penal: defesa R$1.000; defesa em júri R$2.000;

habeas corpus R$500, etc. Os custos com advogados aparecem geralmente no caso de

crimes cometidos entre pessoas que se conhecem, ou nos casos de crimes financeiros ou

de "colarinho branco", raramente aparecendo no caso dos crimes de rua, como roubos e

assaltos. Note-se também que deixamos de fora - e todos os cálculos de custos da

violência o fazem - as perdas para a sociedade com os crimes de "colarinho branco",

como corrupção, falências fraudulentas, prevaricação, golpes na praça em geral. Em

Page 319: PRESOS NO BRASIL

geral, as pesquisas sobre custos da violência preocupam-se exclusivamente com os

crimes violentos, ou crimes de rua, deixando de lado os crimes não violentos cometidos

pela classe média. Um só destes escândalos financeiros, porém, provocados por

criminosos de classe média, pode implicar em prejuízos equivalentes a milhares de

roubos e furtos, cometidos por ladrões pobres.

Com relação a quebra de produtividade no trabalho das vítimas da violência,

segundo a Brasiliano e Associados, o rendimento cai de 20% a 35% nos dias posteriores

ao crime. É preciso computar também as horas de trabalho perdidos pela vítima com a

convalescência física e psicológica, registro de queixa policial, testemunho em processos

criminais e outras atividades envolvidas na fase judicial.

Finalmente, como relação aos investimentos em equipamentos de segurança

residencial feitos pela população, sabemos, através de pesquisas de vitimização feitas na

capital, que 8% das residências têm arma de fogo em casa; 27% fechaduras especiais

para portas; 31% cão de guarda; 32% janelas e portas gradeadas e 36% grades altas.

(Ilanud, 1997). Este tipo de investimento se faz uma só vez, sendo difícil calcular o custo

em base anual. Especificamente em relação aos automóveis, sabemos que 28% dos carros

da capital têm alarme e 23% trava de direção ou câmbio, e que 27% têm algum

mecanismo de corte de combustível ou corrente elétrica. (Ilanud, 1997). Uma vez que a

frota no Estado era de 7.937.980 veículos em 1997, isto significa que foram comprados

para a proteção da frota atual cerca de 2.222.634 alarmes, 2.143.254 corta correntes ou de

combustível e 1.825.735 travas. Os valores mencionados na tabela acima com

"equipamentos de segurança para carros" foram estimados com base no incremento anual

da frota.

3) valores que deixam de ser produzidos ou ganhos pela sociedade em razão do medo da

violência / outros custos intangíveis

Este último grupo de custos é o mais difícil de ser estimado, seja pela precariedade de

dados, seja pela subjetividade de algumas categorias. Em termos relativos, sabe-se que a

maior perda é representada pelas mortes prematuras e incapacitações permanentes. As

vítimas da violência são em geral jovens enquanto a expectativa de vida no Estado é de

Page 320: PRESOS NO BRASIL

65 anos para os homens e 73 para as mulheres. São milhares de anos de vida

potencialmente produtiva, de 11.000 pessoas mortas todos os anos, que deixam de ser

aproveitadas. O ISER avalia que tais custos econômicos por morte prematura e

incapacidade representam de 83% a 91% dos custos da violência. Este e outros custos

não estão sendo computados aqui, pois representam perdas potenciais.

Apenas para dar uma dimensão do quanto se perde com mortes prematuras no

Estado, podemos fazer um cálculo aproximado, levando em conta que 93% das vítimas

são homens e os seguintes valores:

Tabela 4. Anos de vida perdidos por morte prematuraFaixa Etária Homens Mulheres Anos perdidos

HomensAnos PerdidosMulheres

46 a 100 (6,9) 708 53 - -39 a 45 (8,2) 840 63 16800 176436 a 38 (4,4) 458 34 12366 119033 a 35 (7,5) 773 58 23190 220430 a 32 (11,0) 1131 85 37323 348527 a 29 (11,0) 1131 85 40716 374024 a 26 (14,3) 1469 110 57291 517021 a 23 (14,2) 1452 109 60984 545018 a 20 (14,2) 1452 109 65340 577716-17 (5,7) 590 44 28230 24640 a 15 (2,0) 212 16 10600 928N = 11.000 10.230 770 352.840 32.172Fonte: DHPP / SEADE - Porcentagens por sexo e idade baseadas nas 4145 vítimas de homicídios analisados pelo DHPP em 1997 eextrapoladas para as cerca de 11.000 vítimas no Estado. Os limites máximos de cada faixa foram utilizados para calcular a diferençaentre a idade da morte e a expectativa de vida para cada sexo.

Apenas para efeito de cálculo, se supusermos que estas pessoas ganhavam pelo

menos um salário mínimo mensal (R$ 1.440 por ano) e que continuariam a ganhar o

mesmo pelo resto de suas vidas, chegamos a uma perda por mortes prematuras no valor

de R$ 508.089.600 reais para os homens e de R$ 46.327.680 reais para as mulheres,

totalizando R$ 554.417.280 reais, somente com as pessoas mortas por homicídio num

único ano.

Entre outros custos intangíveis por vezes computados em estudos sobre custos da

violência valeria a pena mencionar:

• Turismo nacional e internacional desviado para outros locais menos violentos.

• Oportunidades empresariais perdidas: fábricas e lojas instaladas em outros locais.

Page 321: PRESOS NO BRASIL

• Perda de qualidade de vida: estresse, medo.

• Mudanças de estilo de vida: habitantes da cidade saem menos de casa, consomem

menos em bares, cinemas, restaurantes, etc. Alunos que deixam de freqüentar cursos

noturnos e empregados de trabalhar em turnos noturnos.

Estes valores são os mais difíceis de estimar pois são quase sempre hipotéticos.

Oferecemos aqui apenas alguns indícios e variáveis que deveriam ser levados em conta

caso uma pesquisa completa conseguisse estimá-los: em relação ao turismo, o

economista Ib Teixeira, da FGV do Rio, calcula que o Brasil deixou de ganhar 20 bilhões

de dólares entre 1988 e 1998, ou cerca de 2 bilhões de dólares por ano. Uma vez que se

estima que cada 1000 dólares gastos por turistas no país gera de 2 a 3 empregos, o

problema do desemprego no Brasil praticamente desapareceria nas regiões turísticas se

este fluxo de visitantes fosse canalizado para cá.

Sobre os aspectos subjetivos da violência e seus efeitos comportamentais,

desnecessário apontar o quanto nossa rotina é alterada: somente a título de

exemplificação, a pesquisa de vitimização do Ilanud levantou que, na Capital, 45% dos

habitantes costuma evitar certas ruas, locais ou pessoas por questão de segurança; 49%

sentem-se um pouco ou muito inseguros ao andar na vizinhança depois que fica escuro;

35% acha muito provável ou provável ser vítima de tentativa de arrombamento nos

próximos 12 meses. Com relação a mudança de hábitos, 52% da população da capital

costuma pedir a vizinho ou vigia para olhar a casa quando sai (Ilanud, 1997).

Conclusões

É preciso ficar atento para o fato de que estes gastos também implicam numa

redução da criminalidade e que porque eles são feitos um grande número de crimes deixa

de ocorrer . Nem todas estas rubricas - especialmente os gastos com polícia - podem ser

considerados como "custos", se pensarmos no seu papel preventivo. Se os gastos feitos

em segurança ajudam a prevenir crimes que de outro modo ocorreriam, trata-se na

verdade de um bom investimento; se não ajudam, ou não tanto quanto deveriam, a

questão muda de figura. Assim como no caso dos carros ou cargas roubadas descontamos

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os recuperados, um cálculo ideal deveria levar em conta - e subtrair dos gastos - estes

crimes prevenidos. O problema é que este cálculo é impossível de ser feito,

superestimando de certo modo os custos da violência. Tenha-se em mente também que,

na maioria dos casos, dinheiro e bens roubados mudam de mãos, mas não desaparecem

simplesmente da economia: o dinheiro gasto em salários de policiais e vigilantes, por

exemplo, entra de novo na economia quando estes consomem outros bens.

O PIB nominal do estado de São Paulo foi de 241,58 bilhões de dólares ou de

292, 31 bilhões de reais, em valores de 1997, segundo o SEADE. Os custos da violência

aqui levantados, em caráter provisório, atingem a cifra de 8 bilhões e 96 milhões de reais,

ou cerca de 3% do PIB estadual. É difícil julgar se esta é uma proporção elevada ou não

em comparação com outros estados ou países, mesmo porque não existe comparabilidade

metodológica deste estudo com os demais. Mas é sem dúvida um gasto elevado quando

comparamos com o que é investido em outros setores: representa, por exemplo, 2,7

vezes o gasto feito com a Secretaria da Saúde e 21,7 vezes o gasto com a Secretaria de

Assistência e Desenvolvimento Social em 1998.

Assim como em outros serviços prestados pelo Estado na área da educação e da

saúde, também na área da segurança acaba ocorrendo uma espécie de "dupla-tributação"

para aqueles que não querem depender somente dos serviços públicos. Tributação dupla

porque, apesar de pagar através de impostos o custeio de escolas, hospitais e segurança

pública, o cidadão que desejar ensino de boa qualidade, atendimento médico adequado

ou melhor segurança, vai ter que pagar caro no mercado por estes produtos. Do mesmo

modo como, em função da perda de qualidade, o ensino e a saúde públicos foram

privatizados no país, a deterioração na qualidade do serviço de segurança pública está

levando à privatização do setor. Escolas, hospitais e policiamento públicos serão, cada

vez mais, serviços prestados a quem não pode pagar pelos serviços privados. Esta

tendência deve ser ainda mais acelerada na área de segurança pois, diferentemente das

demais, freqüentemente são as mesmas pessoas que atuam na segurança público e na

privada: como trabalham com base em escalas, os policiais - treinados com recursos

públicos - são aproveitados pelas empresas de segurança privada, boa parte das quais,

diga-se de passagem, são de propriedade de policiais de altas patentes nas polícias Civil

e Militar.

Page 323: PRESOS NO BRASIL

Este custo da violência até agora tem sido "repartido" pelo Estado (cuja fonte são

os impostos pagos pela sociedade), pelas vítimas da violência e por aquelas empresas ou

indivíduos que pretendem diminuir seus riscos de vitimização. Existem, por outro lado,

dois ramos industriais específicos que tem parcela indireta de responsabilidade pelos

elevados custos da violência mas que não contribuem de maneira proporcional para

custeá-los: estou me referindo especificamente à industria de armas e de bebidas

alcoólicas. Obviamente não é a arma ou a bebida que causam isoladamente a violência,

assim como não é o cigarro o único responsável pelo câncer em fumantes. Não há como

negar, todavia, o impacto da disponibilidade de armas e do consumo de álcool sobre a

criminalidade e seus custos, assim como não se pode mais negligenciar os efeitos

indiretos do fumo sobre a incidência de câncer ou problemas cardíacos na população.

Pesquisa realizada pelas Nações Unidas em 1995 mostrou que no Brasil as armas de fogo

são utilizadas em nada menos que 88% dos homicídios, colocando-nos como o país com

maior proporção de homicídios por armas de fogo em todo o mundo. Os homicídios por

armas de fogo transformaram-se, em outras palavras, num problema de saúde pública. No

Rio de Janeiro, os médicos plantonistas já recebem treinamento dados aos médicos que

cuidam de vítimas de guerras, em virtude na quantidade e qualidade dos ferimentos. Nos

Estados Unidos, a indústria do fumo reconheceu sua parcela de culpa por uma série de

doenças e está entrando em acordo com o governo para pagar parte dos gastos na área de

saúde que o Estado tem por causa do cigarro. Como contrapartida, não seriam aceitas

ações individuais por danos contra as indústrias ligadas ao fumo. Acordos semelhantes

estão sendo estudados em algumas comunidades com relação aos fabricantes de armas. O

princípio invocado é o mesmo: o ônus com o tratamento das vítimas da violência não

deve caber apenas ao Estado ou as vítimas. Se o álcool e as armas de fogo tem parcela de

responsabilidade pela violência e mesmo lucram com ela - como é o caso da indústria

armamentícia - eles deveriam arcar de alguma forma com os seus custos.

A título de conclusão deste artigo, gostaria de reafirmar a precariedade dos dados

aqui apresentados e de lembrar que a cifra de 3% do PIB é uma estimativa conservadora

para o custo da violência em São Paulo, uma vez que deixa de computar diversos itens

importantes. E é acima de tudo uma estimativa que não leva em conta um valor

incalculável, de uma bem que não tem preço: o valor da vida das vítimas da violência e

suas famílias; da dor e do sofrimento humano que a violência representa ♦ Tulio Kahn

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