primeiro capítulo de domínio sombrio, de val mcdermid

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Primeiro Capítulo de Domínio Sombrio, de Val McDermid

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VAL McDERMID

DOMÍNIOSOMBRIO

TraduçãoSibele Menegazzi

Este livro é dedicado à memória de Meg e Tom McCall, meus avós maternos.

Eles me deram amor, ensinaram-me o sentido de comunidade e jamais esque-

ceram a vergonha de ficar na fila da comida, em um centro de caridade, para

poder alimentar os filhos pequenos. Graças a eles, cresci amando o mar, as

florestas e o trabalho de Agatha Christie. Uma dívida que não é pequena.

4ª p.

Este livro é dedicado à memória de Meg e Tom McCall, meus avós maternos.

Eles me deram amor, ensinaram-me o sentido de comunidade e jamais esque-

ceram a vergonha de ficar na fila da comida, em um centro de caridade, para

poder alimentar os filhos pequenos. Graças a eles, cresci amando o mar, as

florestas e o trabalho de Agatha Christie. Uma dívida que não é pequena.

*

Quarta-feira, 23 de janeiro de 1985; Newton of Wemyss

A voz é suave, como a escuridão que os cerca.— Está preparado?— Mais preparado do que nunca.— Você disse a ela o que fazer? — As palavras agora rolam, tropeçan-

do umas nas outras num emaranhado único de sons.— Não se preocupe. Ela sabe das coisas. Sabe quem será responsabili-

zado se isto der errado. — Palavras ásperas, num tom áspero. — Não é comela que estou preocupado.

— O que você quer dizer com isso?— Nada. Não quero dizer nada, está bem? Não temos escolha. Não

aqui. Não agora. Apenas temos de fazer o que deve ser feito. — As palavraspossuem o tom vazio da bravata. Só Deus sabe o que elas escondem. —Vamos, terminemos logo com isto.

Assim é como tudo começa.

Quarta-feira, 27 de junho de 2007; Glenrothes

A jovem cruzou o saguão com passos largos, os saltos baixos produziamuma batida ritmada no piso de vinil danificado por milhares de pisadas.Parecia alguém com uma missão a cumprir, pensou o funcionário, conformeela se aproximava de sua mesa. Mas também, quase todos tinham a

mesma postura. Os pôsteres sobre a prevenção de crimes e outras infor-mações de interesse geral que forravam as paredes eram invariavelmenteignorados por aqueles que ali chegavam, perdidos que estavam no turbilhãode sua determinação.

Ela avançou sobre ele, os lábios apertados numa linha fina. Não erafeia, ele pensou. Mas, assim como muitas mulheres que apareciam por ali,não estava em seus melhores dias. Ela poderia ter colocado um pouquinhomais de maquiagem, para ressaltar os brilhantes olhos azuis. E vestido algoque lhe caísse melhor do que jeans e blusa de capuz. David Cruickshankassumiu seu rígido sorriso profissional e perguntou:

— Em que posso ajudá-la?A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para trás, como se estivesse se

preparando para defesa.— Quero informar o desaparecimento de uma pessoa. Dave tentou não demonstrar sua irritação cansada. Quando não eram

denúncias de vizinhos infernais, eram as pessoas supostamente desapareci-das. Aquela ali estava calma demais para que se tratasse de um filho peque-no, e era jovem demais para ter um filho adolescente fujão. Uma briga como namorado, era disso que se tratava. Ou um avô senil perdido. A mesmaperda de tempo de sempre. Ele arrastou um bloco de formulários pelo bal-cão, arrumou-os à sua frente enquanto procurava uma caneta. Nem chegoua destampá-la; havia ainda uma pergunta-chave que precisava ser respondi-da antes que ele anotasse quaisquer detalhes.

— E há quanto tempo essa pessoa está desaparecida?— Vinte e dois anos e meio. Desde a sexta-feira, 14 de dezembro de

1984, para ser exata. — Seu queixo se abaixou, e a truculência nublou seusemblante. — Será que é tempo suficiente para que você leve a sério?

O sargento da polícia Phil Parhatka assistiu ao final do vídeo e fechou a telado computador.

— Vou te dizer uma coisa — ele falou —, se existe uma época excelen-te para se trabalhar nos casos arquivados, é agora.

A inspetora de polícia Karen Pirie mal ergueu os olhos do arquivo queestava atualizando.

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— Como assim?— Veja só. Estamos no meio da guerra contra o terrorismo. E eu acabei

de assistir a meu parlamentar local tomar posse da sede do governo, naDowning Street, 10, com a patroa a tiracolo. — Ele se levantou num saltoe foi até a geladeira que ficava em cima de um arquivo. — O que você prefe-re fazer? Solucionar casos arquivados e receber os louros por isso, ou tentarprevenir que os muçulmanos abram uma cratera no meio do nosso distrito?

— Você acha que o fato de Gordon Brown se tornar primeiro-ministrofaz de Fife um alvo? — Karen marcou onde estava no documento com odedo indicador e dirigiu toda a sua atenção a Phil. Ela se conscientizou deque tinha a cabeça mergulhada havia tanto tempo no passado, que não con-siderara as possibilidades atuais. — Nunca se incomodaram com o distritoeleitoral de Tony Blair, quando ele estava no poder.

— Isso é verdade. — Phil espiou para dentro da geladeira, decidindoentre um refrigerante Irn Bru e um Vimto. Trinta e quatro anos de idade e eleainda não se desamarrara dos refrigerantes, que tanto lhe deram prazer emsua infância. — Mas esses caras se autodenominam guerreiros islâmicos, eGordon é filho de um pastor presbiteriano. Eu não gostaria de estar no lugardo chefe de polícia se esses terroristas resolverem explodir a velha igreja dopai dele.

Ele acabou escolhendo o Vimto. Karen sentiu um arrepio. — Não sei como você consegue beber isso aí — ela disse. — Nunca

reparou que o nome é um anagrama de “vomit”?Phil tomou um grande gole enquanto voltava para sua mesa.— Faz crescer cabelo no peito — ele disse. — É melhor você tomar duas latas, então. — Havia uma ponta de inveja

na voz de Karen. Phil parecia viver à base de refrigerantes açucarados e gor-duras saturadas, mas ainda estava tão enxuto quanto na época em que os doiseram novatos. Ela só precisava tomar uma Coca-Cola normal para sentir suasmedidas aumentando. Isso, definitivamente, não era justo.

Phil apertou os olhos escuros e retorceu o lábio num sorrisinho bem-humorado.

— Que seja. O lado positivo é que talvez o chefe consiga tirar um poucomais de dinheiro do governo, se conseguir convencê-los de que a ameaçaagora é maior.

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Karen balançou a cabeça, agora em terreno conhecido.— Você acha que a famosa bússola moral permitirá que Gordon haja de

um modo que pareça tanto ser em benefício próprio?Ao dizer isso, ela esticou a mão para o telefone, que havia começado a

tocar. Havia outros agentes, de posição inferior, no amplo setor que alojavaa Equipe de Revisão de Casos Arquivados, mas a promoção não havia alte-rado o jeito de Karen. Ela nunca perdera o costume de atender a qualquertelefone que tocasse perto dela.

— Casos Arquivados, inspetora Karen Pirie falando — ela disse distrai-damente, ainda pensando no que Phil tinha dito e se perguntando se, nofundo, ele não sentia saudade de estar envolvido com a ação.

— Aqui é Dave Cruickshank da recepção, inspetora. Estou com umapessoa aqui... acho que ela precisa falar com você. — Cruickshank pareciaum tanto inseguro. Aquilo era incomum o bastante para chamar a atençãode Karen.

— Do que se trata?— De uma pessoa desaparecida — ele disse. — É um dos nossos?— Não, ela quer informar sobre uma pessoa desaparecida.Karen engoliu um suspiro irritado. Cruickshank, definitivamente, já

deveria saber fazer aquilo. Ele já havia trabalhado na recepção por temposuficiente.

— Então ela precisa falar com o Departamento de InvestigaçõesCriminais, Dave.

— Sim, claro. Normalmente encaminharia para lá. Mas, sabe, este casoestá um pouco fora do padrão. E é por isso que achei que fosse melhor quepassasse por você primeiro, entendeu?

Vá logo ao que interessa.— Nós somos da Revisão de Casos Arquivados, Dave. Não lidamos com

investigações recentes. — Karen girou os olhos para Phil, que devolveu umsorriso falso diante da óbvia frustração dela.

— Não é exatamente recente, inspetora. Esse cara desapareceu há vintee dois anos.

Karen se endireitou na cadeira.— Vinte e dois anos? E só agora é que vieram informar?— Isso mesmo. Faz com que seja um caso arquivado, não?

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Tecnicamente, Karen sabia que Cruickshank deveria encaminhar amulher para o Departamento de Investigações Criminais. Mas ela sempre sesentia atraída por coisas que provocavam surpresa nas pessoas. Tiros noescuro sempre conseguiam animá-la. E seguir esse instinto lhe havia trazi-do duas promoções em três anos, superando alguns colegas de igual posiçãoe deixando muitos outros incomodados.

— Mande-a subir, Dave. Vou falar com ela. Ela recolocou o fone no gancho e se afastou da mesa.— Por que diabos alguém esperaria vinte e dois anos para informar o

desaparecimento de uma pessoa? — ela perguntou, mais para si mesma doque para Phil, vasculhando a mesa à procura de um caderno vazio e de umacaneta.

Phil espichou o beiço, parecendo uma carpa de exibição.— Talvez ela estivesse fora do país. Talvez tenha acabado de voltar e aí

descobriu que a pessoa não estava onde ela imaginava.— E talvez ela precise de nossa ajuda para conseguir uma declaração de

morte presumida. Dinheiro, Phil. É disso que geralmente se trata. — O sor-riso de Karen era irônico. Pareceu ficar suspenso no ar como se ela fosse oGato de Cheshire. Ela saiu apressadamente do setor e foi até os elevadores.

Seu olhar treinado catalogou e classificou a mulher que emergiu do ele-vador, sem qualquer indício visível de timidez. Jeans e blusa pseudoatléticada Gap. Modelos e cores da estação. Os sapatos eram de couro, limpos esem marcas de uso, da mesma cor que a bolsa que pendia de seu ombro naaltura do quadril. O cabelo castanho-médio tinha um bom corte chanellongo, que começava a mostrar algumas pontas irregulares. Não se tratava,portanto, de alguém que vivesse à custa da Previdência Social. Tampouco,provavelmente, de uma pobretona metida a besta. Parecia uma mulheragradável, de classe média, com alguma coisa na cabeça. Vinte e tantosanos, olhos azuis com o brilho suave do topázio. Uma camada levíssima demaquiagem. Ou já tinha marido, ou não estava interessada em arrumar um.Ao perceber a avaliação de Karen, a pele ao redor de seus olhos se apertou.

— Sou a inspetora Pirie — ela disse, abreviando o impasse em poten-cial entre duas mulheres que se analisam mutuamente. — Karen Pirie.

Ela se perguntou como a outra mulher a veria: uma mulherzinha gordu-cha, espremida num terno da Marks and Spencer, cabelo castanho-médio

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precisando de uma visita ao cabeleireiro, e que poderia ser bonita, casofosse possível ver a definição de seus ossos sob a carne. Quando Karen sedescrevia daquela maneira a seus amigos, eles riam, lhe diziam que ela eralindíssima e deduziam que ela estava sofrendo de baixa autoestima. Ela nãoconcordava. Tinha uma opinião razoavelmente boa sobre si mesma. Mas,quando se olhava no espelho, não podia negar o que via. Belos olhos, noentanto. Azuis, com toques de avelã. Incomuns.

Fosse devido ao que vira, ou ao que ouvira, a mulher se sentiu maissegura.

— Graças a Deus por isso — ela disse. O sotaque de Fife era claro,embora as asperezas houvessem sido amenizadas pela educação ou pela dis-tância.

— Perdão?A mulher sorriu, revelando dentes pequenos e regulares como os dentes

de leite de uma criança.— Significa que vocês estão me levando a sério. Que não estão me enro-

lando, me despachando para o oficial subalterno que faz o chá.— Não permito que meus oficiais subalternos percam tempo fazendo

chá — Karen disse secamente. — Por acaso, fui a pessoa que atendeu aotelefone. — Ela deu meia-volta, olhou para trás e disse: — Você me acom-panha?

Karen tomou a dianteira, seguindo por um corredor lateral até uma sali-nha. Uma janela comprida dava para o estacionamento e, à distância, parao verde artificialmente uniforme do campo de golfe. Quatro cadeiras estofa-das de lã cinza estavam próximas a uma mesa redonda, cuja alegre superfí-cie de cerejeira fora polida até adquirir um brilho opaco. A única indicaçãodo propósito daquela sala era uma galeria de fotografias emolduradas naparede, todas elas retratos de policiais em ação. Toda vez que usava aquelelocal, Karen se perguntava por que os oficiais superiores haviam escolhidofotografias do tipo que geralmente aparecem na mídia depois que algomuito ruim acontece.

A mulher olhou em volta com incerteza quando Karen puxou umacadeira e lhe indicou que sentasse.

— Não é assim na televisão — ela disse. — Quase nada da Divisão Policial de Fife é como na televisão — Karen

respondeu, sentando-se de forma a ficar num ângulo de noventa graus em

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relação à mulher, em vez de sentar-se de frente para ela. Aquela posição,menos confrontadora, normalmente era a mais producente em uma entre-vista de testemunha.

— Cadê o gravador? — A mulher se sentou, sem aproximar a cadeiranem um milímetro da mesa e agarrando-se à bolsa que tinha no colo.

Karen sorriu.— Você está confundindo interrogatório de testemunhas com interroga-

tório de suspeitos. Você veio aqui para informar algo, não para ser interro-gada sobre um crime. Por isso pode se sentar numa cadeira confortável eolhar pela janela. — Ela abriu seu bloco de anotações. — Creio que estáaqui para informar sobre uma pessoa desaparecida.

— Isso mesmo. O nome dele é...— Só um minuto. Preciso que você volte atrás um pouquinho. Para

começar, qual é seu nome?— Michelle Gibson. Esse é meu nome de casada. Prentice é meu sobre-

nome de solteira. Todos, no entanto, me chamam de Misha. — Certo, Misha. Também preciso do seu endereço e telefone. Misha informou todos os detalhes.— Esse é o endereço da minha mãe. Estou meio que agindo em nome

dela, se é que você me entende. Karen conhecia a cidadezinha, embora não a rua. Começara como um

vilarejo construído pelo proprietário de terras local para alojar seus minei-ros de carvão, numa época em que estes lhe pertenciam tanto quanto asminas. Terminou como uma cidade-dormitório para estranhos sem qualquerligação com o lugar ou seu passado.

— Mesmo assim — ela disse —, preciso de seus dados também. As sobrancelhas de Misha se abaixaram momentaneamente e, então,

ela deu um endereço em Edimburgo. Não significava nada para Karen, cujoconhecimento da geografia social da capital, a apenas cinquenta quilôme-tros de distância, era provincianamente escasso.

— E você quer informar sobre o desaparecimento de uma pessoa — eladisse.

Misha fungou fortemente e assentiu com a cabeça.— Meu pai. Mick Prentice. Bem, Michael, na verdade, se é para ser

exata.

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— E quando foi que seu pai desapareceu? — Ali, pensou Karen, eraonde ficaria interessante. Se é que algum dia ficaria interessante.

— Como eu disse para o cara lá embaixo, há vinte e dois anos e meio.Sexta-feira, 14 de dezembro de 1984, foi a última vez que o vimos. — Assobrancelhas de Misha Gibson se abaixaram numa expressão desafiadora.

— É uma espera um tanto longa para se informar sobre um desapareci-mento — disse Karen.

Misha suspirou e virou a cabeça para olhar pela janela.— Não pensávamos que ele estivesse desaparecido. Não exatamente. — Não estou entendendo. O que quer dizer com “não exatamente”?Misha virou a cabeça e se deparou com o olhar fixo de Karen.— Você fala como alguém desta região.Curiosa sobre o rumo que aquilo tomaria, Karen respondeu:— Cresci em Methil. — Certo. Então, sem querer faltar com o respeito, mas você tem idade

suficiente para se lembrar do que aconteceu em 1984. — A greve dos mineiros?Misha assentiu. Seu queixo continuou empinado e o olhar, desafiador.— Cresci em Newton of Wemyss. Meu pai era um mineiro. Antes da

greve, ele trabalhava na mina Lady Charlotte. Você se lembra do que as pes-soas costumavam dizer por aqui: que ninguém era mais militante do que osmineiros da Lady Charlotte. Mesmo assim, houve uma noite em dezembro,depois de nove meses de greve, em que meia dúzia deles desapareceu. Bem,eu digo desapareceu, mas todo mundo sabia qual era a verdade. Eleshaviam ido para Nottingham se juntar aos fura-greves. — Seu rosto se fran-ziu rigidamente, como se ela estivesse lutando contra uma dor física. — Comrelação a cinco deles, ninguém ficou muito surpreso de que fizessem aquilo.Mas, segundo a minha mãe, todos ficaram perplexos ao saber que meu paitinha ido com eles. Inclusive ela. — Lançou a Karen um olhar defensivo. —Eu era pequena demais para me lembrar. Mas todos dizem que ele era umsindicalista roxo. O último cara que esperariam que virasse um fura-greve.— Ela balançou a cabeça. — Porém, o que mais ela iria pensar?

Karen entendia bem demais o que uma deserção como aquela devia tersignificado para Misha e sua mãe. Na região carbonífera radical de Fife, a soli-dariedade era reservada apenas para aqueles que que aguentavam. A atitudede Mick Prentice teria conferido à sua família o status instantâneo de pária.

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— Não deve ter sido nada fácil para sua mãe — ela disse. — Em um aspecto, foi muito fácil. — Misha disse com amargura. —

Para ela, aquilo era o fim. Ele estava morto e enterrado. Ela não queria maissaber dele. Ele enviava dinheiro, mas ela o doava para o fundo de emergên-cia. Depois, quando a greve terminou, ela passou a doá-lo para aAssistência Social dos Mineiros. Fui criada numa casa em que o nome domeu pai jamais era pronunciado.

Karen sentiu um aperto no peito, algo entre solidariedade e pena.— Ele nunca entrou em contato com vocês?— Só mandava o dinheiro. Sempre em notas gastas. Sempre com o

carimbo do correio de Nottingham. — Misha, não quero parecer insensível, mas não me parece que seu pai

seja uma pessoa desaparecida. — Karen tentou fazer sua voz soar o maisgentil possível.

— Eu também não achava. Até que fui procurá-lo. Acredite em mim,inspetora. Ele não está onde se supunha. Nunca esteve. E preciso que oencontrem.

O desespero óbvio na voz de Misha pegou Karen de surpresa. Para ela,aquilo era mais interessante do que o paradeiro de Mick Prentice.

— Por quê? — ela perguntou.

Terça-feira, 19 de junho de 2007; Edimburgo Nunca havia passado pela cabeça de Misha Gibson contar o número de

vezes em que havia saído do Hospital para Crianças Doentes com aquelasensação de ultraje pelo fato de que o mundo seguia seu caminho, a despei-to do que estivesse acontecendo no hospital atrás dela. Nunca pensara emcontar porque nunca havia se permitido acreditar que aquela poderia ser aúltima vez. Desde que os médicos haviam explicado a razão para os polega-res deformados de Luke e para as manchas cor de café com leite espalhadaspor suas costas estreitas, ela se apegara à convicção de que, de algumaforma, ela ajudaria o filho a se esquivar das balas que seus genes haviamatirado contra sua expectativa de vida. Agora, parecia que aquela convicçãotinha, finalmente, sido testada ao extremo.

Misha ficou insegura por um momento, ressentindo-se da luz do sol,desejando que o tempo estivesse tão sombrio quanto seu ânimo. Ela ainda

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não estava preparada para ir para casa. Queria gritar e atirar coisas, e umapartamento vazio iria tentá-la a perder o controle e fazer exatamente isso.John não estaria em casa para abraçá-la ou impedi-la; ele já devia sabersobre a reunião dela com o especialista; então, obviamente, teria surgido notrabalho alguma questão complexa com que só ele pudesse lidar.

Em vez de dirigir-se a Marchmont, a seu conjunto habitacional de are-nito, Misha atravessou a estrada movimentada até o parque Meadows, opulmão verde do centro sul da cidade, onde ela adorava caminhar comLuke. Uma vez, quando ela procurara sua rua no Google Earth, havia tam-bém checado o Meadows. Do espaço, ele parecia uma bola de rúgbi rodea-da de árvores, os caminhos cruzados parecendo as linhas que costuravam abola. Ela sorrira ao pensar em si mesma e em Luke arrastando-se pelasuperfície como formigas. Hoje, não havia sorrisos para consolar Misha.Hoje, ela tinha de encarar o fato de que poderia nunca mais voltar a cami-nhar ali com Luke.

Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos piegas. Café, eradisso que ela precisava para raciocinar melhor e colocar as coisas em pers-pectiva. Uma caminhada rápida através do Meadows e, daí, atravessaria aPonte George IV, onde cada loja, atualmente, era um bar, um café ou umrestaurante.

Dez minutos depois, Misha encontrava-se aninhada em uma mesa defundo, com uma confortante caneca de latte à sua frente. Não era o fim. Elanão permitiria que fosse o fim. Tinha de haver alguma maneira de dar outrachance a Luke.

Ela soubera que algo estava errado desde o primeiro instante em que osegurara nos braços. Mesmo aturdida pelos medicamentos e exaurida pelotrabalho de parto, ela soubera. John estava em estado de negação,recusando-se a dar qualquer importância ao baixo peso corporal do filho,ou àqueles polegares curtos demais. Mas o medo havia agarrado o coraçãode Misha com sua incerteza gélida. Luke era diferente. A única questão emsua mente, então, fora: quão diferente?

O único aspecto da situação que havia se parecido remotamente à sorteera o fato de eles morarem em Edimburgo, a dez minutos a pé do HospitalReal para Crianças Doentes, uma instituição que aparecia regularmente nashistórias “milagrosas” que os tabloides tanto amavam. Não demorou muito

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para que os especialistas do hospital identificassem o problema. Nem paraexplicar que não haveria nenhum milagre, naquele caso.

Anemia de Fanconi. Falando rápido, parecia um nome de tenor italiano;ou de uma cidadezinha numa colina da Toscana. Mas a musicalidade encan-tadora das palavras disfarçava seu conteúdo letal. Escondidos no DNA deambos os pais de Luke havia genes recessivos, que tinham se combinado paracriar uma condição rara que condenaria seu filho a uma vida curta e doloro-sa. Em algum momento, entre as idades de três e doze anos, ele quase que cer-tamente desenvolveria anemia aplástica, uma anomalia na medula óssea que,no fim, acabaria matando-o, a não ser que encontrasse um doador compatí-vel. O veredito nu e cru era que, sem um transplante bem-sucedido de medu-la óssea, Luke teria sorte se vivesse até os vinte e poucos anos.

Aquela informação dera a Misha uma missão. Ela logo descobriu que,sem irmãos, a melhor chance de um transplante viável de medula viria dealgum membro da família; era o que os médicos chamavam de doador apa-rentado não compatível. A princípio, isso havia confundido Misha. Elahavia lido sobre os registros de transplante de medula e deduzido que suamelhor chance estava em encontrar um doador compatível ali. Mas, deacordo com o especialista, a doação de um membro da família não com-patível, que compartilhasse de alguns genes de Luke, oferecia um riscomenor de complicações do que a de um doador compatível que não tivessequalquer parentesco com o paciente.

Desde então, Misha vinha vasculhando as reservas genéticas dos doislados da família, valendo-se de persuasão, chantagem emocional e atémesmo oferecendo recompensas a primos distantes e tias idosas. Aquilohavia consumido muito tempo, já que se tratava de uma missão solitária.John se fechara atrás de uma muralha de otimismo pouco realista. Haveriaum avanço na pesquisa com células-tronco. Algum médico, em algum lugar,descobriria um tratamento cujo sucesso não dependesse de genes comparti-lhados. Um doador cem por cento compatível apareceria em algum registro.John colecionava boas histórias e finais felizes. Ele varria a Internet à pro-cura de casos que provassem que os médicos estavam errados. Apareciasemanalmente com milagres médicos e curas aparentemente inexplicáveis.E deles tirava sua esperança. Não entendia a procura incessante de Misha.Sabia que, de alguma forma, tudo acabaria bem. Sua capacidade de nega-ção era olímpica.

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Fazia com que Misha sentisse vontade de matá-lo. Em vez disso, ela havia continuado a escalar os galhos de sua árvore

genealógica à procura do candidato perfeito. Havia se deparado com seuúltimo beco sem saída apenas uma semana, mais ou menos, antes do terrí-vel julgamento de hoje. Só restava uma possibilidade. E era precisamenteaquela que havia rezado para não ter de levar em conta.

Antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais longe naquelecaminho em particular, uma sombra recaiu sobre ela. Ergueu os olhos, pron-ta para ser agressiva com quem quer que estivesse invadindo seu espaço.

— John — ela disse, com cansaço.— Achei que te encontraria por aqui. Este é o terceiro lugar que tento

— ele disse, deslizando para o assento, contorcendo-se desajeitadamenteaté ficar num ângulo reto com relação a ela, próximo o suficiente para quese tocassem, se algum deles quisesse.

— Eu não estava preparada para enfrentar um apartamento vazio.— Não, isso eu posso ver. O que eles disseram? Seu rosto marcado se contorceu de ansiedade. Não por causa do vere-

dito do especialista, pensou ela. Ele ainda acreditava que seu precioso filhoera invencível, de alguma forma. O que deixava John ansioso era a reaçãodela.

Estendeu a mão para tocar a dele, desejando o contato tanto quanto oconsolo.

— Está na hora. Seis meses no máximo, sem o transplante. — Sua vozparecia fria até mesmo para ela. Mas não podia se dar o luxo da emoção. Aemoção derreteria seu estado congelado e ali não era o lugar para demons-trações de pesar ou amor.

John apertou os dedos dela com força.— Talvez não seja tarde demais — ele disse. — Talvez eles...— Por favor, John. Agora não.Os ombros dele se endireitaram dentro do paletó, o corpo se tensiona-

va conforme ele controlava sua discordância.— Então — ele disse, numa expiração que era mais um suspiro que

outra coisa —, imagino que você vá procurar o filho da puta?

* * *

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