privatizemos, então

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Julho de 2011 13 O agregador da advocacia www.advocatus.pt Já que não podemos escolher o que privatizamos e quando privatizamos, que escolhamos ao menos com maior liberdade a forma como a privatização deve ser feita e, sobretudo, que o governo tenha liberdade para actuar em termos de maximização dos activos que vão ser alienados “Antes a opção sobre o que privatizar, e quando, correspondia a uma esfera de liberdade política de cada governo e, agora, corresponde a uma mera tarefa administrativa de execução – o calendário está definido e o jogo, com o relato traçado, está prestes a iniciar-se” “os procedimentos deveriam ser mais abertos e flexíveis, sem a preferência pelo concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública que, sendo justificáveis na década de 90, são agora empecilhos que podem ser sinónimo de perda de valor para o estado” Jorge Brito Pereira Sócio da PLMJ da Área de Prática de Corporate / M&A, Financeiro e Bancário, Mercado de Capitais. Desde 2004, regente da cadeira de Direito dos Valores Mobiliários, na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa Privatizemos, então Há momentos em que as coisas são mesmo assim. Logo quando o ímpeto privatizador dos Governos da República dos anos 90 tinha refreado e se ia gerando algum consenso sobre um conjunto de activos públicos não privatizáveis, dificilmente privatizáveis ou, nou- tros casos, lentamente privatizá- veis, surge uma súbita aceleração da história com o Memorando as- sinado pelo Governo Português com o FMI, BCE e Comissão Eu- ropeia. Vamos privatizar e vamos fazê-lo rápida e generalizadamen- te, numa sequência de processos, ao longo dos próximos meses, quase sem precedentes na nossa história recente. As razões para o fazermos são, por coincidência, aquelas que, na segunda metade da década de 80 e na década de 90, justificaram os processos de então - redução da intervenção do Estado na economia, crescimen- to da produtividade por passa- gem de meios de produção para a iniciativa privada, aumento da competitividade das empresas e, sobretudo, arrecadação de re- ceita para amortização da dívi- da pública e da dívida do sector empresarial do Estado. A grande diferença, no entanto, é que antes a opção sobre o que privatizar, e quando, correspondia a uma es- fera de liberdade política de cada governo e, agora, corresponde a uma mera tarefa administrativa de execução – o calendário está definido e o jogo, com o relato traçado, está prestes a iniciar-se; a liberdade transformou-se em estado de necessidade. Dir-se-á assim que este é, certamente, o pior momento das últimas déca- das para alienar vários dos activos que constam do memorando; mas assim se fará, por razões que nada têm que ver com a política de pri- vatizações, mas apenas com os mecanismos de controlo da nos- sa dívida externa. Dores de quem teve demasiada festa. Vamos, por isso, retomar os pro- cedimentos da Lei nº 11/90, mais conhecida como Lei-quadro das Privatizações, sobre a qual tanto se trabalhou até há algum tempo. E vale, por isso, a pena pensar se aquilo que se definiu em 1990 como devendo corresponder ao enquadramento de qualquer pri- vatização não deveria agora ser revisto. Acredito que sim e só a urgência de avançar fará com que não olhemos para isso. O mundo mudou dramaticamente de 1990 até agora e Portugal, já se sabe, também. Não parece, por isso, ter qualquer sentido falar no reforço da capacidade empresarial nacio- nal, na necessidade de ampla par- ticipação dos cidadãos portugue- ses na titularidade do capital das empresas ou na preservação dos interesses patrimoniais do Estado e valorização de outros interesses nacionais como objectivos das privatizações que aí vêm – o que se quer é maximização da receita sem comprometer, tanto quanto possível, outros objectivos estra- tégicos nacionais. Da mesma ma- neira, deveríamos ter processos mais rápidos, desformalizados e expeditos, sem o peso dos pro- cedimentos típicos dos anos 90. Por fim, os procedimentos deve- riam ser mais abertos e flexíveis, sem a preferência pelo concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública que, sendo justificáveis na década de 90, são agora empecilhos que podem ser sinónimo de perda de valor para o Estado – o recente concurso pú- blico para a privatização do BPN é um bom exemplo. Já que não podemos escolher o que privatiza- mos e quando privatizamos, que escolhamos ao menos com maior liberdade a forma como a privati- zação deve ser feita e, sobretudo, que o governo tenha liberdade para actuar em termos de maxi- mização do valor dos activos que vão ser alienados.

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Privatizemos, então

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Julho de 2011 13O agregador da advocacia

www.advocatus.pt

Já que não podemos escolher o que privatizamos e quando privatizamos, que escolhamos ao menos com maior liberdade a forma como a privatização deve ser feita e, sobretudo, que o governo tenha liberdade para actuar em termos de maximização dos activos que vão ser alienados

“Antes a opção sobre o que privatizar, e

quando, correspondia a uma esfera de

liberdade política de cada governo e, agora, corresponde a uma mera tarefa

administrativa de execução – o

calendário está definido e o jogo, com o relato traçado, está prestes

a iniciar-se”

“os procedimentos deveriam ser mais abertos e flexíveis, sem a preferência

pelo concurso público, oferta na bolsa de

valores ou subscrição pública que, sendo

justificáveis na década de 90, são agora

empecilhos que podem ser sinónimo de perda

de valor para o estado”

Jorge Brito Pereira

Sócio da PLMJ da Área de Prática de Corporate / M&A, Financeiro

e Bancário, Mercado de Capitais. Desde 2004, regente da cadeira

de Direito dos Valores Mobiliários, na Faculdade de Direito da Universidade

Católica de Lisboa

Privatizemos, então

Há momentos em que as coisas são mesmo assim. Logo quando o ímpeto privatizador dos Governos da República dos anos 90 tinha refreado e se ia gerando algum consenso sobre um conjunto de activos públicos não privatizáveis, dificilmente privatizáveis ou, nou-tros casos, lentamente privatizá-veis, surge uma súbita aceleração da história com o Memorando as-sinado pelo Governo Português com o FMI, BCE e Comissão Eu-ropeia. Vamos privatizar e vamos fazê-lo rápida e generalizadamen-te, numa sequência de processos, ao longo dos próximos meses, quase sem precedentes na nossa história recente. As razões para o fazermos são, por coincidência, aquelas que, na segunda metade da década de 80 e na década de 90, justificaram os processos de então - redução da intervenção do Estado na economia, crescimen-to da produtividade por passa-gem de meios de produção para a iniciativa privada, aumento da competitividade das empresas e, sobretudo, arrecadação de re-ceita para amortização da dívi-da pública e da dívida do sector empresarial do Estado. A grande diferença, no entanto, é que antes a opção sobre o que privatizar, e quando, correspondia a uma es-fera de liberdade política de cada governo e, agora, corresponde a uma mera tarefa administrativa de execução – o calendário está definido e o jogo, com o relato traçado, está prestes a iniciar-se; a liberdade transformou-se em estado de necessidade. Dir-se-á assim que este é, certamente, o pior momento das últimas déca-das para alienar vários dos activos que constam do memorando; mas assim se fará, por razões que nada têm que ver com a política de pri-

vatizações, mas apenas com os mecanismos de controlo da nos-sa dívida externa. Dores de quem teve demasiada festa.Vamos, por isso, retomar os pro-cedimentos da Lei nº 11/90, mais conhecida como Lei-quadro das Privatizações, sobre a qual tanto se trabalhou até há algum tempo. E vale, por isso, a pena pensar se aquilo que se definiu em 1990 como devendo corresponder ao enquadramento de qualquer pri-vatização não deveria agora ser revisto. Acredito que sim e só a urgência de avançar fará com que não olhemos para isso. O mundo mudou dramaticamente de 1990 até agora e Portugal, já se sabe, também. Não parece, por isso, ter qualquer sentido falar no reforço da capacidade empresarial nacio-nal, na necessidade de ampla par-ticipação dos cidadãos portugue-ses na titularidade do capital das empresas ou na preservação dos interesses patrimoniais do Estado e valorização de outros interesses nacionais como objectivos das privatizações que aí vêm – o que se quer é maximização da receita sem comprometer, tanto quanto possível, outros objectivos estra-tégicos nacionais. Da mesma ma-neira, deveríamos ter processos mais rápidos, desformalizados e expeditos, sem o peso dos pro-cedimentos típicos dos anos 90. Por fim, os procedimentos deve-riam ser mais abertos e flexíveis, sem a preferência pelo concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública que, sendo justificáveis na década de 90, são agora empecilhos que podem ser sinónimo de perda de valor para o Estado – o recente concurso pú-blico para a privatização do BPN é um bom exemplo. Já que não podemos escolher o que privatiza-

mos e quando privatizamos, que escolhamos ao menos com maior liberdade a forma como a privati-zação deve ser feita e, sobretudo, que o governo tenha liberdade para actuar em termos de maxi-mização do valor dos activos que vão ser alienados.