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Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na Cidade de São Paulo 1 Profa.Dra. Claudia Moraes de Souza - Unifesp e Diversitas/USP Profa. Dra. Sandra Regina Chaves Nunes - Faap e Diversitas /USP Nunca se deve subestimar o poder do compartilhamento da experiência humana” Paul Thompson Resumo Este artigo resulta de um trabalho de registro em audiovisual de histórias de vida cujo objetivo central foi a produção de histórias individuais articulada à reflexão sobre experiências coletivas de transformação social e cidadania em São Paulo. No Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos/USP temos debatido as metodologias partilhadas da produção do conhecimento e realizado o registro audiovisual dos depoimentos de colaboradores das pesquisas em história oral de vida e história oral temática. Nossa perspectiva se estabelece a partir de múltiplas intencionalidades: a de que a história oral propicia a presença histórica daqueles cujo ponto de vista foi descartado pela história “vista de cima”; a de que de que o registro audiovisual constitui-se um registro privilegiado da narrativa dos sujeitos permitindo ao pesquisador/expectador a visualização permanente dos elementos gestuais, performáticos e simbólicos de seu colaborador; a de que a produção da história oral audiovisual permite a organização de acervos audiovisuais de histórias individuais e coletivas se estabelecendo como prática de registro da memória social de pessoas, grupos, instituições e movimentos sociais com espaços restritos na produção da história oficial. Em temáticas relativas ao direito à cidade e a participação social registramos relatos de experiências políticas, culturais e cotidianas privilegiando a dinâmica da pesquisa partilhada através da ideia de que “contar” a própria história leva o sujeito a refletir sobre ela, avaliar, pensar, mudar, construir novas ações, planejar novos rumos e conquistas. 1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de Outubro de 2016, Belém/PA.

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Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na

Cidade de São Paulo1

Profa.Dra. Claudia Moraes de Souza - Unifesp e Diversitas/USP

Profa. Dra. Sandra Regina Chaves Nunes - Faap e Diversitas /USP

“Nunca se deve subestimar o poder do compartilhamento da experiência humana”

Paul Thompson

Resumo

Este artigo resulta de um trabalho de registro em audiovisual de histórias de vida cujo

objetivo central foi a produção de histórias individuais articulada à reflexão sobre

experiências coletivas de transformação social e cidadania em São Paulo. No Núcleo

de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos/USP temos debatido as

metodologias partilhadas da produção do conhecimento e realizado o registro

audiovisual dos depoimentos de colaboradores das pesquisas em história oral de vida e

história oral temática. Nossa perspectiva se estabelece a partir de múltiplas

intencionalidades: a de que a história oral propicia a presença histórica daqueles cujo

ponto de vista foi descartado pela história “vista de cima”; a de que de que o registro

audiovisual constitui-se um registro privilegiado da narrativa dos sujeitos permitindo

ao pesquisador/expectador a visualização permanente dos elementos gestuais,

performáticos e simbólicos de seu colaborador; a de que a produção da história oral

audiovisual permite a organização de acervos audiovisuais de histórias individuais e

coletivas se estabelecendo como prática de registro da memória social de pessoas,

grupos, instituições e movimentos sociais com espaços restritos na produção da

história oficial.

Em temáticas relativas ao direito à cidade e a participação social registramos relatos

de experiências políticas, culturais e cotidianas privilegiando a dinâmica da pesquisa

partilhada através da ideia de que “contar” a própria história leva o sujeito a refletir

sobre ela, avaliar, pensar, mudar, construir novas ações, planejar novos rumos e

conquistas.

1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 25 e 27 de Outubro de 2016, Belém/PA.

Neste artigo apresentamos a transcriação da narrativa e a análise do registro

audiovisual de sujeitos que conquistaram o espaço público e vivenciaram a emergência

de experiências de cidadania e expressão político/cultural em diferentes contextos

presentes na cidade: a história de vida do musicista e morador da favela de Heliópolis

“Marcos” do projeto Baccarelli e a história de “Ronald” trabalhador imigrante de São

Paulo que suplantou a situação análoga ao trabalho escravo pela participação política

e social.

Palavras chave

História oral, Memória Social, Acervo Audiovisual, Mudança Social

Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na Cidade

de São Paulo

Oralidades e imagens na produção de histórias e memórias

Na tradição rígida da historiografia herdeira do cientificismo do século XIX a ideia do

passado fixo valorizava as fontes escritas e institucionais como a base segura para a

construção do conhecimento histórico. No do método de Ranke2, a não existência do

documento escrito – ou seja, a história baseada em fontes documentais não-grafadas –

constituía-se em uma história imprecisa, uma não história, uma história inadequada.

Apesar de constantemente sustentada nos preceitos de uma história tradicional, essa

opinião sempre foi contraposta pela forte presença da oralidade e das fontes imagéticas

ou materiais visuais na construção da narrativa histórica, desde os primeiros tempos das

investigações propostas em Heródoto. Tanto a transmissão das palavras sobre o tempo

passado e as experiências culturais humanas, quanto o material visual composto pela

arte, pela iconografia, pela fotografia cumpriram o papel e a função social de servir de

base para a construção da narrativa histórica sobre povos, sociedades e culturas

edificando conhecimentos e imagens da memória social.

2 HOLANDA, Sérgio Buarque de (Organizador), Leopold Von Ranke: história. S. Paulo, Ática, 1979.

Ao longo do tempo e nos elementos constitutivos da historiografia, a oralidade não

perdeu sua funcionalidade como elemento fundante da narrativa histórica, ao contrário,

hoje ocupa, por meio da história oral, um espaço central. Na proposição de Paul

Thompson3, a história oral é uma interpretação da história, das sociedades, das

experiências sociais e da cultura que elege como centralidade a fala. Desde seus

primeiros momentos, nos exercícios iniciais de registro em áudio da história oral, o

gravador passou a ser um companheiro constante de pesquisadores jovens, desprovidos

dos preconceitos tradicionais e estimulados a percorreram ruas, espações públicos,

moradias de bairros distantes com gravadores de fitas cassetes, tecnologia adotada pela

história oral nos anos de 1960 e 1970 na Europa, hoje essa possibilidade se alarga pela

tecnologia da imagem digital.

A defesa da oralidade como fonte, afirma o potencial que tem a história oral de revelar,

amplificar, multiplicar vozes dos sujeitos trazendo à tona formas variadas do vivido na

sociedade, em especial de grupos subalternos, tornando possível a publicização da

memória, das falas, das ações e projetos de vida dos múltiplos sujeitos sociais. Assim, a

história oral tem sido um instrumento de construção da história e de memórias

múltiplas, tem estimulado trajetórias para realização de uma história múltipla e diversa,

a partir do entendimento de que toda a pessoa tem uma história, toda pessoa pode contar

sua história e na composição de múltiplas histórias é que talvez nos aproximemos de

uma história mais plural com perspectivas diversas.

Na tentativa de traçar caminhos em busca da pluralidade e diversidade na narrativa

histórica – não apenas a presença da oralidade, mas também, a presença do material

visual torna-se um imperativo. A presença do material visual no trabalho do pesquisador

edifica-se como uma realidade recorrente, principalmente em um contexto em que o

campo de pesquisa que une a história e as imagens se amplia, devido ao fato da

produção de forma expressiva de cada vez mais imagens e em uma velocidade

acelerada.

Novos desafios se colocam, um dos desafios centrais é o de incorporar o oral e o

imagético na produção do conhecimento, na prática da pesquisa, na produção de

histórias, no resgate de memórias. Estes desafios constituem o escopo teórico e

metodológico do trabalho de pesquisa aqui apresentado que almeja tratar da história oral

e da produção do audiovisual no contexto da pesquisa interdisciplinar como desafio do

3 THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

tempo presente, tempo em que a possibilidade de produção de registros audiovisuais se

democratiza, entre os diversos grupos sociais, pela massificação de tecnologias como

filmadora digital e câmaras em aparelhos de telefonia celular. É inegável que nos

tempos atuais, cada vez mais pessoas, grupos, instituições e movimentos sociais

descobrem a importância e o valor de “contarem” a sua história ao mesmo tempo que se

apropriam de tecnologias e mídias para a produção social de suas experiências e

memória social. Novamente citando Thompson, a valorização da oralidade como forma

ativa e cidadã da construção da memória e da história, apresenta-nos a ideia de que

contar é compartilhar, e compartilhar é construir possibilidades de consolidar poderes

individuais e coletivos de ação, reação e superação de situações de opressão, miséria,

desrespeito ou submissão.

As tecnologias digitais nos permitem registrar a narrativa oral em audiovisual, atividade

que revoluciona a produção de fontes e atividade de registros do trabalho de campo para

os historiadores e pesquisadores em geral. Na história oral, na etnografia audiovisual, na

pesquisa participativa, o trabalho de campo que envolve a coleta de fontes, a observação

participante, a construção de entrevistas e depoimentos tem atualmente a possibilidade

de ser registrado em audiovisual, registrando os sons e as imagens do processo, abrindo

um amplo campo investigativo que pode ser explorado pelo pesquisador.

Articulando a história oral com as tecnologias audiovisuais, pesquisadores do Núcleo de

Estudos das Diversidades Intolerâncias e Conflitos - DIVERSITAS - da Universidade

de São Paulo tem trabalhado na construção de um banco de histórias realizando a coleta,

organização e o fomento à produção do conhecimento de forma partilhada, com

comunidades, indivíduos, associações e instituições através do registo em audiovisual.

O empreendimento do projeto de construção de um banco audiovisual de histórias de

vida e depoimentos é contribuir com a memória social, reconhecendo as narrativas de

vida de toda e qualquer pessoa como um instrumento de memória e de ação. Em

temáticas relativas aos temas do direito à cidade e a cultura, as imigrações

contemporâneas e experiência de asilo político, exilio e tortura, diferentes pesquisadores

propuseram a indivíduos comuns que relatassem suas experiências políticas e sua

história de vida sob o construto teórico de que contar a sua própria história é ao mesmo

tempo refletir sobre ela, avaliar, pensar e, na maioria das vezes, desejar mudança,

construir novas ações, planejar novos rumos e novas conquistas.

O projeto atendeu/atende preocupações políticas e sociais: a de incentivar cada vez mais

a produção de histórias individuais como contribuição à história de instituições e grupos

de pessoas em suas particularidades e necessidades peculiares; a de reconhecer o poder

da palavra, da “história contada” e registrada, como forma de denúncia das injustiças

sociais, como forma de registro da exploração, sofrimento, descumprimento dos direitos

humanos. E, de forma mais ampla, fomentar pela narrativa a reflexão dos narradores

sobre os processos de mudança social que viveram e estão envolvidos. O uso da palavra

vai se tornando possibilidade de construção de memória, de ensinamentos daquilo que

não deve ser reproduzido e da história de pessoas anônimas propiciado pelo

compartilhamento de experiências de vida, potencialidades, cultura locais, práticas de

grupos populares.

A tecnologia do registro do trabalho em audiovisual cria, então, uma dimensão diferente

da história oral em sua forma tradicional. Do registro em áudio, ou da anotação em

relação ao depoimento oral, passamos ao registro audiovisual da entrevista. O uso dessa

ferramenta gerou uma outra dimensão à pesquisa e seus resultados, ampliando

largamente as possibilidades da produção do conhecimento científico e sua divulgação,

já que a imagem em audiovisual permite uma contribuição aos saberes científicos e

populares para além do texto escrito. Dentre essas possibilidades múltiplas encontram-

se a produção de um acervo de história de vida e memória social, o uso da imagem para

produção de materiais de ensino e de divulgação científica; a elaboração de exposições;

a geração do documentário etnográfico, do filme de entrevista, dentre outros.

O desafio de realizar a produção audiovisual de história oral de vida será narrado e

refletido neste artigo por duas experiências: a pesquisa “História vividas, histórias

narradas: imigrantes contemporâneos em São Paulo” e a pesquisa “Música , Cidadania e

as vozes dos músicos de Heliópolis: São Paulo”, aceitando concomitantemente o

desafio de refletir sobre a prática de pesquisa com o audiovisual e sobre a produção do

conhecimento na universidade brasileira em suas interações (ou não) com a mudança

social e a cidadania na realidade no tempo presente.

História de vida, memórias da imigração e a mudança social

A reflexão sobre a pesquisa “Histórias vividas, histórias narradas: imigrantes

contemporâneos em São Paulo” se inicia a partir daquele que foi o momento mais

significativo da pesquisa que venho realizando e que envolve a produção audiovisual da

história de vida de imigrantes membros dos Conselhos Participativos da cidade de São

Paulo. Num dos primeiros momentos da trajetória da pesquisa, quando eu realizava

contatos com a Secretaria de Direitos Humanos do Município para a formação da rede

de colaboradores, conheci o primeiro dos colaboradores do trabalho, o conselheiro

RONALD. Em uma mesa de reunião tratando das atividades da semana dos direitos

humanos do ano de 2015 e das possibilidades de minha proposta de pesquisa ele me

colocou abertamente a seguinte fala: “... será que se nós contássemos de fato a nossa

história, se falássemos de tudo o que já passamos e sofremos, disséssemos quem

somos...conseguiríamos evitar os maus tratos e a intolerância das pessoas e todo o

preconceito que sofremos em São Paulo? ”.

Naquele momento, diante do episódio que aqui reproduzo, percebi a extensão da

dimensão que relaciona a produção do conhecimento, no meu caso, o conhecimento

histórico, e os sujeitos da história, sua vida privada, seu cotidiano e sua condição de

cidadão. Nesta fala percebi o sentido concreto que a narrativa de uma história particular

pode alcançar no conjunto das relações sociais, tanto para quem ouve quanto para

aquele que fala. Ronald se dispôs a me contar sua história, gravá-la e em audiovisual e

permitir que ela componha o acervo digital de um banco de histórias de vida.

Assim, Ronald me contou sua história:

“Sair da Bolívia não é um projeto que acontece de uma hora

para outra. Você tem a necessidade. Você não tem trabalho, e o

que obriga a migrar é o poder de adquirir as coisas...você não

consegue ganhar dinheiro”

Jovem trabalhador da Bolívia, depois que o pai migrou para Argentina procurando

trabalho, Ronald e mãe se responsabilizaram pelo sustento da família em Cochabamba:

“Em janeiro de 1996 eu vim aqui para São Paulo. Eu era menor

de idade, tinha 16 anos quando vim. A pessoa que veio me

procurar para o emprego veio contando muitas coisas que não

era realidade aqui. Ele conversou com minha mãe falando: - ele

vai receber dinheiro. Veio contando: - a gente vai jogar futebol;

vai ter dinheiro. Veio contando muitas coisas. Mas chegando a

hora não era assim percebi no caminho. Não tinha dinheiro para

comer no caminho. Quando a gente chegou na fronteira ele não

tinha dinheiro para as passagens. Nem a gente tinha dinheiro, eu

e mais 3. A gente ficou na estação de trem esperando...ficamos 2

dias sem comer e beber nada, só água. ”

Menor de idade, cooptado por um agente do tráfico de pessoas, transladado para São

Paulo, trancafiado em seu local de trabalho e trabalhando de 16 a 18h por dia, impedido

de contatar sua família, passou fome, frio, em péssimas condições de acolhida em uma

casa-oficina:

“No primeiro mês eu já estava fazendo planos para fugir. Eu era o

mais rebelde. Meus patrícios todos ficavam calados. No primeiro

mês eu reclamei. Por isso os “donos” me deixaram de lado, eles

me deixaram sozinho, não me deixavam nem almoçar com os

outros”

Ronald narrou toda sua história diante da câmera e diante de mim...por quase duas

horas, chorou, sorriu, sofreu, mas também refletiu, durante aqueles momentos, sobre

pequenas dimensões de seu passado que interligavam sua história com a história de

diversos outros imigrantes bolivianos, com as condições econômicas de seu povo, com

a realidade social da cidade de São Paulo, com a atual situação de imigrantes hoje na

cidade.

Centrando foco na fala, ou seja, na expressão oral do indivíduo e de seu grupo social, o

mecanismo central do método da história oral se torna a escuta. Escuta pensada como

experiência construída para acionar a voz daquele que se expressa e preparar o ouvido

de cada envolvido para escutar. Trata-se de aprender a incentivar a fala de alguém

concomitantemente ao aprendizado e aprimoramento dos mecanismos da própria escuta.

Dessa forma o foco da construção de narrativas históricas e etnográficas por meio da

oralidade desloca a centralidade da produção narrativa, ou seja, transforma aquele que

apenas pesquisava e registrava em um interlocutor, um produtor de conhecimento que

primeiro escutou passivamente e, apenas posteriormente, ocupa o papel de narrador. Do

mesmo modo, aquele que foi convidado a falar inicia sua participação na experiência

como um narrador, alguém que elaborou sua própria fala, organizou pensamentos e

exercitou a experiência da narrativa através da reflexão sobre sua vida e suas ações.

Neste processo fugimos drasticamente da experiência clássica da construção do

conhecimento pelo exercício unilateral de um pesquisador (historiador, o sociólogo ou o

antropólogo) e caminhamos em direção ao exercício de construção de uma narrativa

histórica ou sociológica, a partir de uma interlocução, uma experiência de conexão entre

sujeitos diferentes que revezam papéis na produção de uma narrativa.

Ao valorizarmos a oralidade como forma ativa e cidadã da construção da memória,

emerge a pratica em que contar é compartilhar e compartilhar é construir possibilidades

de consolidar poderes individuais e coletivos de ação, reação e superação de situações

de opressão, miséria, desrespeito ou submissão.

À guisa de conclusão, quanto à história de Ronald, como sujeito migratório, podemos

dizer que, sem dúvida o processo foi de conquistas de direitos políticos e econômicos.

Ronald – que viveu a situação do tráfico humano e da situação de trabalho análogo ao

escravo - superou esta situação conquistando novas possibilidades de sobrevivência

com sua atuação política junto à comunidade boliviana e de seu bairro. Após se

desvencilhar do cativeiro, se reinseriu no trabalho, passou da situação de invisibilidade

para uma visibilidade ativa em direção a construção de uma cidadania insurgente que

reivindica direitos tomando parte da Associação Comercial Brasil-Bolívia. De ativista

da Associação da rua Coimbra – importante rua de estabelecimentos comerciais da

comunidade boliviana – foi eleito Conselheiro Municipal do Conselho Participativo de

São Paulo em 2014 (conselho consultivo de gestão pública vinculado as subprefeituras

da cidade) iniciando um exercício político de representação não apenas de sua

comunidade, mas da cidade como um todo no espaço político. Esta condição lhe

permitiu um novo olhar sobre sua situação de imigrante e sobre suas possibilidades de

participação política na sociedade brasileira. Efetivou-se, um encontro com a política,

ou, ao menos, um encontro com possibilidade de se expressar, de opinar, de propor e

participar de ações conjuntas para melhoria da comunidade local, da convivência entre

bolivianos e brasileiros, da qualidade de vida na cidade.

Projetos Música e Cidadania e As vozes dos músicos.

Um motorista de táxi, após duas mulheres terem dito onde vão, entoa a seguinte

pergunta:

- As senhoras sabem onde estão indo? Lá é uma favela.

A estranheza brotava do endereço: Estrada das Lágrimas, 2317, Heliópolis.

Nós sabíamos onde íamos. Era ele, porém, quem não sabia. Possivelmente, porque seu

conhecimento de Heliópolis viria dos programas sensacionalistas, que não se dedicam a

noticiar a existência de uma grande Orquestra: como é o caso da Sinfônica de

Heliópolis.

A ida era para dar início às entrevistas dos Projetos Música e Cidadania e As vozes dos

músicos.

Essas entrevistas seriam a mediação para a retomada de uma visão da Arte que eclode

na modernidade artística: a de ampliadora de fronteiras simbólicas e permissora da

desautomatização da visão acerca de si mesmo e do outro.

A Sinfônica pertence ao Instituto Baccarelli, localizado em Heliópolis. Esse instituto

oferece formação musical e artística para crianças e jovens em situação de

vulnerabilidade social. Suas ações estendem-se até 1.300 crianças das escolas

municipais da região, no programa Coral da Gente. O percurso de toda e qualquer

criança, que se inicia na musicalização pelo Coral pode chegar à Sinfônica -

dependendo da dedicação.

O regente, Isaac Karabtchevsky, empolgado com o projeto e seu fruto, me diz: “Dentre

todas as artes, não há nenhuma que se aposse do ser humano com maior envolvimento

do que a música. Isso repousa na própria pulsação, nosso ritmo cardíaco, sessenta ou

mais batidas por minuto, e que simboliza o pulsar dos instrumentos de percussão. A

melodia nasce com as cantigas de adormecer e, a partir daí nos acompanha pelo resto de

nossas vidas. Não conheço um brasileiro que seja insensível a esse processo. ”

Essa definição da Música, como intrínseca ao cotidiano, apareceu nas vozes dos 9

músicos da orquestra e nas dos 3 executivos do Instituto.

Uma dessas vozes é a de Marcos M. Araújo, um dos “meninos”, que se transformou em

violoncelista da Sinfônica e hoje é músico na Orquestra Sinfônica de Goiás:

“Eu conheci o Instituto Baccarelli muito cedo, aos 10 anos de idade. E anteriormente a

isso eu não conhecia nada de música, principalmente música clássica. As músicas que

eu costumava ouvir, eram sempre do cotidiano; aqui em Heliópolis, as pessoas ouvem

todo tipo de música. Eu cresci ouvindo samba, forró, todo tipo de música possível. O

que estava na minha cabeça era só isso. Aos 10 anos, conheci o Instituto Baccarelli. Eu

estava na escola, nessa época, na 4ª série, e aí veio um representante do Instituto falar

que estavam abrindo vagas para canto coral. O Instituto estava no início ainda, estava

engatinhando também. Eu me interessei mais por curiosidade. Não tinha o “Ah, vou

estudar música clássica”. Não foi nada bem assim. Foi mais um “Ah, vamos ver o que

que é isso aí”. Fui lá, fiz o teste, cantei um ma-me-mi-mo-mu e passei. Aí comecei a

estudar canto. Era legal. Uns três anos depois, conheci o violoncelo. A gente teve a

oportunidade de começar a estudar instrumentos, mas eram só instrumentos de corda.

Então tinha lá violino, viola, violoncelo e contrabaixo. E quando eu entrei, já tinha um

pessoal que estava há alguns anos, uns dois anos, mais ou menos. Como tinha uma

amiga minha que tocava o violoncelo, eu fiquei curioso pelo tamanho, porque, como eu

não conhecia nada(...) praticamente 90% das crianças da minha época escolheu violino

porque é o mais conhecido, independente se você conhece música clássica ou não. O

violino é o instrumento mais popular. (...) A maioria escolheu violino e eu fiquei

curioso pelo tamanho do violoncelo, porque era uma coisa que nunca tinha visto na

vida. Achei o som curioso por ser mais grave e falei assim: “Nossa! Olha o tamanho

desse violino!!” E aí eu optei pelo violoncelo. ”

Sobre sua origem familiar, valores e a relação com a música, afirma:

“Na minha família, a educação sempre foi rígida. A minha mãe é muito certinha assim

com o criar o filho. Quando eu entrei, lógico, era criança e não tinha a responsabilidade

que eu tenho hoje, mas conforme eu fui conhecendo, fui me familiarizando com o

ambiente, eu já falava: “Não; é uma coisa legal, então eu quero. ” Então juntou essa

vontade com o que eu vim aprendendo. Na mesma época que eu, duas pessoas saíram.

Não porque não gostaram, mas porque os pais pediram para sair, porque tinham que

trabalhar para ajudar em casa também. Porque passavam o dia aqui e a gente não

recebia bolsa na época. Algumas pessoas saíram por esse motivo, infelizmente. E eu sou

muito grato a meus pais porque eles nunca pediram para eu sair. (...) meus pais nunca

chegaram a pedir para eu sair do Instituto para ajudar em casa, pra arrumar um emprego

e ajudar na renda. Hoje, eu sou bolsista aqui, né. Eu recebo pela Sinfônica, pelas aulas

que dou aqui também. Mas assim emprego, emprego mesmo, não. Ainda não tive. ”

Apesar de reconhecer que ficou surpreso em poder ganhar dinheiro com a música, em

outros momentos da nossa conversa, deixa escapar o pré-conceito de que artista não tem

um emprego “verdadeiro”.

Vitório Broetto, o coordenador de acervo musical do Instituto, em sua entrevista,

rememora como essa experiência, iniciada há 19 anos, foi capaz de instaurar um

deslocamento simbólico nas primeiras crianças convidadas a participar do ensino de

música oferecido pelo maestro Sílvio Baccarelli. Relembra, também, como os alunos

que permaneceram no Instituto, desde a primeira experiência, reagiram na chegada ao

auditório do maestro, na Vila Mariana – lugar primeiro do Instituto -, pois apenas

haviam sido informados, pela diretora da escola, de que iriam aprender música:

“Para eles foi uma tremenda surpresa! Eles foram os pioneiros. Eles imaginavam que

iam fazer batucada, que iam tocar surdo, caixa, cuíca, reco-reco... chegou lá, não. Era

uma coisa, um universo completamente diferente. Eu acredito que nenhum deles, até

então, tinha visto um violino. (...) Violoncelo então, nem se fala, porque violoncelo até

as pessoas confundem com o contrabaixo...”

O que ouvimos nessas entrevistas é que a opção pela música clássica não os apartou da

comunidade em que se inserem, ao contrário, ampliou os seus limites musicais. Tamires

Kamisaka nos aponta isso:

“Ah... música clássica só aprendi quando entrei aqui mesmo. Eu não conhecia. Tanto

que o pessoal, lá fora, também não conhece. Poucos conhecem. Se conhecem é porque

tem alguém da família. E música, música, eu ouvia essas que tocam aí fora: forró (meu

pai gosta de forró, ele toca para todo mundo ouvi). Ouvia funk porque Heliópolis inteiro

ouve funk. Sertanejo, essas coisas todas. Eu ouvia bastante. Não que hoje eu não ouça.

Mas hoje a única coisa que ouço é música clássica e música gospel, só. Aí meus

vizinhos colocam umas músicas, a gente respeita e ouve. Sem confusão. ”

E o mesmo pode ser visto na fala de Thaís Sepúlveda de Jesus, trompetista, 20 anos:

“Eu conheci música clássica mesmo entrando no Instituto. Minha vivência com outro

tipo de música foi mais na igreja porque eu fui criada dentro da igreja. Até hoje sou.

Mas na comunidade tem essa cultura, tudo próximo, todo mundo ouve pagode junto

com samba, um vizinho está escutando sertanejo, outro vizinho está escutando forró,

então é uma mistura. Se você entrar lá, pelo menos no final de semana, vai ouvir

cinquenta tipo de músicas, tudo misturado. Mas a música clássica, falam que quem

escuta é uma pessoa de elite. ”

Todos esses registros, e esses não são os únicos aspectos que podem ser apontados,

permitiram reforçar a hipótese de que as formas artísticas interferem na condição dos

sujeitos envolvidos nesses projetos, pois as relações vividas e transmitidas entre os

participantes dessa comunidade, o partilhar de necessidades, a afirmação de valores, a

assunção de perspectivas e ações conjuntas, referidas ao coletivo, ainda que em escala

parcial, inclui, nas palavras dos jovens músicos entrevistados, a ajuda mútua, o convívio

íntimo e amigável e mesmo a assistência informal que se prestam entre si. O usufruto da

convivência e do conhecimento que juntos produzem refunda a comunidade

incessantemente.

Considerações Finais

A guisa de conclusão estes registros, e esses não são os únicos aspectos que podem ser

apontados, permitiram um outro olhar sobre a forma como a cidadania ou a busca pela

cidadania (aqui pensada como as mínimas ações em busca de consolidação do direito à

educação, à cultura, ao trabalho digno, à integração social) interferem na condição dos

sujeitos envolvidos nos casos aqui estudados. A superação de condições do não-direito

e da invisibilidade promove-se pela experiência social de buscar condições melhores de

vida e pela constância participativa no campo afirmativo de projetos [projetos culturais]

ou projetos políticos. A história pessoal atribui sentido as experiências de cada um,

considerando suas singularidades e concomitantemente se soma a uma história coletiva

construída por necessidades de afirmação de direitos e valores sociais apontando para

ascensão de perspectivas e ações conjuntas, referidas ao coletivo, pois, tanto entre os

jovens músicos entrevistados, quanto entre , os representantes imigrantes do Conselho

Participativo da Cidade a ajuda mútua, o convívio, a assistência, a integração produzem

e refundam o sentido da cidadania.