projeto amorim lima: investigações espaciais para uma escola em transformação
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Trabalho Final de Graduação | FAU USP Talita Barão dez2012TRANSCRIPT
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investigaes espaciais para uma escola em transformao
Vera Pallaminorientao
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1A toda comunidade Amorim Lima, educadores, educandos e pais com quem conversei ao longo do
percurso desse estudo. Em especial queles que participaram do vdeo documentrio, etapa basilar
s investigaes projetuais propostas nesse trabalho: Ana Elisa, Anna Ceclia, Ranata Baroukh, Rafael
Agena, Geraldo Souza, Andr Simes, Rodrigo, Luiz de Campos, Ana, Gilberto, Mariana e Thiago.
Vera Pallamin, pela orientao atenciosa.
Aos participantes da banca de avaliao, Rodrigo Queiroz e Geraldo Tadeu Souza.
Aos queridos amigos da FAU. E, tambm, aos paisagistas amigos que encontrei nesse percurso.
minha famlia e ao Jeffrey.
AGRADECIMENTOS
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O interesse por perspectivas mais animadoras no campo da educao e de seus espaos foi o que motivou, desde
o incio, essa pesquisa. Neste sentido, ao conhecer a Escola Amorim Lima, e sua proposta singular no mbito da
educao pblica brasileira, optei, primeiramente, por apresent-la por meio de um vdeo documentrio. Neste, foram
reunidos alguns depoimentos e imagens que tiveram o intuito principal de mostrar uma pequena, mas expressiva,
parte deste projeto pedaggico renovador. Em seguida, tornou-se objetivo final deste estudo buscar possibilidades
espaciais para um projeto educacional dotado de programas e dinmicas to diversos daqueles que regem a escola
tradicional. Tanto partindo de um espao j existente e em processo de transformao, quanto partindo das vrias
possibilidades que esta experincia pode apontar arquitetura escolar daqui em diante. Assim, duas investigaes
tomam a escola Amorim Lima como pressuposto. Na primeira, ela mesma, seu espao e habitantes, objeto de
interveno. Na segunda, o projeto pedaggico da escola torna-se propulsor de um novo espao escolar, partindo do
mesmo contexto em que se insere a escola real; considerando, assim, o mesmo lugar, dimenses e pblico.
RESUMO
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1INTRODUO | 07
3ESCOLA AMORIM LIMA | 27
4AMORIM LIMA EM VDEO | 79
22ANTECEDENTES | 132.1. PERSPECTIVA HISTRICA | 122.2. EXPERINCIA ESCOLA DA PONTE | 21
5INVESTIGAES PROJETUAIS | 83
8165 | ANEXOS
6CONSIDERAES FINAIS |159
7161 | REFERNCIAS
3.1. BREVE HISTRIA | 272.2. TRANSFORMAO INICIAL | 293.3. ESTRUTURAO E CONSOLIDAO DO PROJETO PEDAGGICO | 37
5.1. DUAS INVESTIGAES | 835.2. ELABORAO DO PROGRAMA DE NECESSIDADES | 855.3. PROJETO 01 | SOBRE O PREEXISTENTE | 895.4. PROJETO 02 | SOBRE POSSIBILIDADES | 123
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1INTRODUO
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9 INTRODUO1Como cheguei escola Amorim Lima? Esta me parece ser a questo que melhor construir um bom relato sobre o percurso
desse estudo. Com o intuito de retomar a construo histrico-social da Escola, este estudo buscava, inicialmente, compreender
a significao contempornea atribuda educao e aos seus espaos e tempos institudos. Era, ento, interesse conhecer quais
pensamentos filosficos definiram, espacial e temporalmente, a insero dessa instncia educativa na vida cotidiana das sociedades;
e que, definiram, ainda, no curso da histria, os diferentes modos ou mtodos nos quais essa prtica deveria se basear. Neste
sentido, tornava-se preponderante pesquisar a construo histrica da estrutura de pensamento racional, basilar constituio da
sociedade contempornea. A despeito de todo tipo de concepes, de espaos e de tempos de ensino e aprendizagem, j estudados
e experimentados ao longo da histria, esse o pensamento que define, predominantemente e no sem inmeras consequncias, a
forma tradicional de compreend-los e conceb-los. E , justamente por isso, que os pensamentos reformadores, aqueles engajados
com a reviso e resignificao destes tantos e to arraigados conceitos, tornam-se imprescindveis. Ao longo do sculo XX, ainda que
suas reflexes tenham, inegavelmente, obtido ampla repercusso no campo pedaggico, no prevaleceram. A regra continuou aquela
mesma, daquela antiga escola, daquela antiga tradio. Foram vrios atores, variadas abordagens e nfases. Muitos princpios comuns,
outros tantos divergentes. Mas todos buscando reinterpretar a delicada relao estabelecida entre a escola e a vida. A humanizao da
escola, em seu sentido mais amplo.
Dessas diversas experincias empreendidas, algumas conseguirem seguir adiante. Foram transformadas, corrigidas,
repensadas e consolidaram-se, existindo atualmente como evidncia de que a mudana pode ser possvel quando buscada. neste
contexto que se insere a Escola da Ponte, integrante da rede pblica de escolas portuguesas e localizada a 30 quilmetros da cidade
do Porto, na Vila das Aves. Seu projeto teve inicio h mais de trs dcadas e hoje um projeto pedaggico de grande expressividade
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e reconhecimento no campo. O pensamento pedaggico no novo, como bem disse Jos Pacheco, um dos idealizadores da escola
No inventamos nada. Estamos em um ponto de redundncia terica. H muitas correntes e quem quer fazer diferente tem de ter
mais interrogaes do que certezas1. Dessa forma, os educadores da escola da Ponte indagaram-se acerca de seus discursos e de
suas aes, perceberam incoerncias e vislumbraram possibilidades de mudana. Perceberam que talvez pudessem experimentar
trabalhar em conjunto, e no mais isoladamente, assim como poderiam fazer os prprios alunos; que a busca pelo conhecimento
deveria ser instigada, mais do que a sua simples transferncia unidirecional; que a vida no deveria ser forada a permanecer fora
da escola, nem os problemas, nem os conflitos, nem as famlias; e que a democracia e autonomia deveriam ser seus pressupostos
constantes e irrevogveis. Assim, a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade fizeram-se princpios dessa Escola. No h sries,
nem salas, nem turmas, nem manuais. Existem espaos educativos, das humanidades, das cincias, das artes e tecnologias. O tempo
escolar foi profundamente resignificado, assim como seus espaos, no estando atrelado s estruturas tradicionais fragmentrias de
idade e ano escolar. De maneira que os alunos se agrupam de acordo com seus interesses comuns e desenvolvem seus projetos de
pesquisa, continuamente.
E foi, a partir do conhecimento acerca da existncia dessa experincia portuguesa revolucionria, empreendida do outro lado
1. Jos Pacheco em entrevista ao portal Revista Escola (In http://revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-inicial/jose-pacheco-escola-
ponte-479055.shtml)
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do Atlntico, que cheguei escola Amorim Lima. Uma escola que, instigada pelas mesmas
angstias e animada pelos mesmos princpios transformadores, deu incio a seu prprio
processo de reformulao pedaggica, transformando seus antigos tempos e repensando
significativamente as estruturas de seu antigo espao.
, portanto, baseado nessa experincia singular no mbito da educao pblica
brasileira e, sobretudo, no mbito do espao pblico que lhe d abrigo, que se constri este
estudo. Vivenciei, ao longo de alguns meses, o cotidiano dessa enriquecedora experincia.
Percebi, pouco a pouco, suas possibilidades e desafios. Conheci seus atores, todos eles
educadores, oficiais ou voluntrios. Muitos voluntrios. Conversei com alguns pais e
estudantes. Tomei conhecimento dessa histria, iniciada h muitos anos, mas que comeou a
ser reconduzida h pouco menos de duas dcadas. E, percebi, com isso, a expresso de uma
vida a vida dessa escola, conjunto de vrias outras vidas muito diferentes entre si. Optei,
assim, por apresent-la por meio de um vdeo documentrio, uma reunio de conversas e
observaes, que tem o intuito principal de mostrar uma pequena, mas expressiva, parte
deste projeto. Alm disso, este registro constituiu-se num arquivo documental de extrema
importncia para os processos propositivos que se seguiram a essa instigante experincia.
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Essa aproximao com o cotidiano da escola acabou por determinar
duas diferentes investigaes projetuais como desdobramento deste
estudo. Duas investigaes que tomam a escola Amorim Lima como
pressuposto. Na primeira, ela mesma, seu espao e habitantes, objeto
de interveno. Na segunda, o projeto pedaggico da escola torna-se
propulsor de um novo espao escolar, partindo do mesmo contexto
em que se insere a escola real; considerando, assim, o mesmo lugar,
dimenses e pblico.
O interesse por perspectivas mais animadoras no campo da educao
e de seus espaos foi o que motivou, desde o incio, essa pesquisa.
Dessa forma, ao conhecer a Escola Amorim Lima, tornou-se seu objetivo
buscar possibilidades espaciais para um projeto dotado de programas e
dinmicas to diversos daqueles que regem a escola tradicional; tanto
partindo de um espao j existente e em processo de transformao,
quanto partindo das vrias possibilidades que esta experincia pode
apontar arquitetura escolar daqui em diante.
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22ANTECEDENTES
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2 .1 PERSPECTIVA HISTRICA A fim de compreender os processos histricos que construram, no contexto brasileiro, nosso pensamento sobre a escola, fez-se importante retomar
alguns momentos expressivos desse amplo percurso. A partir do trabalho de Dermeval Saviani1, podemos conhecer as diversas concepes pedaggicas
empreendidas no Brasil, desde os tempos coloniais, e o papel destas na definio do carter da educao brasileira e na constituio da sempre intrincada
relao entre escola e sociedade. Alm disso, podemos compreender a atuao dos movimentos pedaggicos renovadores que corroboraram com uma
reviso paradigmtica significativa no campo da educao e extremamente relacionada ao processo renovador empreendido pela Escola Amorim Lima.
Essa histria comea com os jesutas, ainda em meados do sculo XVI. Segundo Saviani, foi sob condies muito favorveis que a pedagogia catlica
se instalou no pas primeiro na verso do Plano de Nbrega, que eu chamaria de pedagogia braslica, pois procurava se adequar s condies especficas
da colnia, e depois, na verso do Ratio Studiorum, cujos cnones foram adotados pelos colgios jesutas no mundo inteiro. Assim, ao longo dos dois
primeiros sculos, de 1549 at 1759, data da expulso dos jesutas, a pedagogia crist, de orientao catlica, gozou de uma hegemonia incontrastvel no
ensino brasileiro. (SAVIANI, 2005: 04)
A filosofia educacional de Nbrega, assim como a de Jos de Anchieta, estava consubstanciada pela doutrina contrarreformista da Igreja Catlica.
A educao jesutica da contrarreforma pretendia-se civilizatria; intentava, sobretudo, empreender uma civilizao baseada na palavra. Por meio da poesia
e de peas de teatro, Anchieta educava os indgenas apelando s imagens e smbolos como mediadores entre os homens e Deus, na contramo da filosofia
1. SAVIANI, Dermeval. As concepes pedaggicas na histria da educao brasileira. Texto elaborado no mbito do projeto de pesquisa O espao acadmico da pedagogia
no Brasil, financiado pelo CNPq, para o projeto 20 anos do Histedbr. Campinas, 25 de agosto de 2005.
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religiosa protestante: Em oposio Reforma protestante materializada na tese luterana da sola scriptura para a qual a doutrina derivava dos textos originais
hebraicos e gregos, a Igreja catlica conciliar e ps-tridentina fez a defesa intransigentemente tradicionalista da transmisso oral das duas fontes da Revelao,
a tradio e as Escrituras (HANSEN, Joo apud SAVIANI, 2005: 05)
Assim, a pedagogia braslica empreendeu, por meio da catequese, uma drstica aculturao da populao colonial nas tradies do colonizador. Em
1584, a Companhia de Jesus reniu, sob a publicao da Ratio Studiorum, uma srie de regras norteadoras prtica educativa dos jesutas. Segundo Saviani,
esse documento j expressava ideias pedaggicas comuns ao que, na modernidade, passou-se a denominar por pedagogia tradicional Essa concepo
pedaggica se caracteriza por uma viso essencialista de homem, isto , o homem concebido como constitudo por uma essncia universal e imutvel.
educao cumpre moldar a existncia particular e real de cada educando essncia universal e ideal que o define enquanto ser humano. Para a vertente
religiosa, tendo sido o homem feito por Deus sua imagem e semelhana, a essncia humana considerada, pois, criao divina. Em conseqncia, o
homem deve se empenhar em atingir a perfeio humana na vida natural para fazer por merecer a ddiva da vida sobrenatural. SAVIANI, 2005: 06).
A filosofia de So Toms de Aquino est na base da Ratio e das ideias pedaggicas tradicionais. O Tomismo, como denominada essa corrente,
constitua numa articulao entre a filosofia de Aristteles e a tradio crist. Neste sentido, a educao jesutica buscava amparar-se tanto no legado da
Antiguidade e na tradio medieval, quanto nas questes prprias do seu tempo, exercendo uma pedagogia eminentemente ativa e revolucionria.
A partir de meados do sculo XVIII, no mbito brasileiro, as concepes pedaggicas religiosas e laicas passam a conviver. So implantadas as
reformas pombalinas da instruo pblica e a educao sofre a influncia do humanismo racionalista, sem desvencilhar-se, no entanto, da Igreja Catlica.
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Aps 1827 torna-se oficial o ensino mtuo, tambm conhecido por monitorial ou lancasteriano2. Em essncia, essa concepo pedaggica primava pela
avaliao contnua do conhecimento e do comportamento do aluno e pautava-se na competio como base motora do ensino. Ao longo do sculo XIX,
o ensino mtuo foi sendo substitudo por outros procedimentos de ensino, tendo destaque o mtodo intuitivo ou lies de coisas. Esse ltimo mtodo
concreto, racional e ativo pretendia adequar a educao s novas demandas da sociedade industrial. A revoluo da indstria tornou possvel uma ampla
gama de recursos auxiliares prtica pedaggica, instrumentos que so tanto fruto como tambm propulsores de sua reformulao: Esses materiais,
difundidos nas exposies universais, realizadas na segunda metade do sculo XIX com a participao de diversos pases, entre eles o Brasil, compreendiam
peas do mobilirio escolar; quadros negros parietais; caixas para ensino de cores e formas; quadros do reino vegetal, gravuras, objetos de madeira, cartas de
cores para instruo primria; aros, mapas, linhas, diagramas, caixas com pedras e metais; madeira, louas e vidros; iluminao e aquecimento (KUHLMANN
JR., 2001: 215); alimentao e vesturio. (SAVIANI, 2005: 08). A lio das coisas pautava-se, sobretudo, em manuais. O livro didtico, ao invs de ser material
dos alunos, era instrumento essencial do professor, que tinha nele uma orientao segura e indiscutvel a ser transmitida. Ainda assim, esse mtodo buscava
trabalhar com a sensibilidade perceptiva dos alunos, buscando instig-la pelo uso de ilustraes e objetos. Referncia na primeira repblica, esse mtodo
e seus princpios constituram a base propositiva de Caetano de Campos no empreendimento da reforma da instruo paulista, com a criao das Escolas-
Modelos e dos Grupos Escolares.
2. Proposto e difundido pelos ingleses Andrew Bell, pastor da Igreja Anglicana e Joseph Lancaster, da seita dos Quakers, o mtodo mtuo, tambm chamado de monitorial
ou lancasteriano (NEVES, 2003), se baseava no aproveitamento dos alunos mais adiantados como auxiliares do professor no ensino de classes numerosas. (SAVIANI, 2005: 08)
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Na dcada de 1920, a despeito da resistncia empregada pelos conservadores amparados pela Igreja Catlica, o movimento pela Escola Nova
obteve repercusso. A fundao da Academia Brasileira de Educao (ABE), em 1924, e o lanamento do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, em
1932, so marcos desse processo. A sociedade vivia, no incio do sculo XX, um momento de intensa transformao socioeconmica. Otimista, a sociedade
moderna almejava a mudana, amparada pelo conhecimento cientfico, pela industrializao e pela democracia. Os escolanovistas, como John Dewey3
e Ansio Teixeira4, tomavam a escola por retrato da sociedade, de modo que tal revoluo no poderia deixar de abarc-la. A liberdade e democracia
deveriam adentrar as escolas, desbancando os mtodos tradicionais autoritrios. Alm disso, buscavam compreender o processo de aprendizagem com mais
profundidade, referenciando-se nos desdobramentos do campo da psicologia.
Apesar da repercusso do movimento escolanovista, os representantes da educao Catlica preservaram sua hegemonia e boa parte das escolas
normais e dos cursos de pedagogia permaneceu sob seu controle. Apesar da divergncia entre ambos, so reconhecidos princpios comuns entre a Escola
Nova e a educao catlica, exemplos disso so o ensino centrado na criana e o princpio de escola ativa (j presente no tomismo, base da Ratio Studiorum e
da educao jesutica). Observou-se, concomitante ao avano do movimento renovador, uma tendncia progressiva no prprio campo da educao catlica,
3. John Dewey (1859-1952), filsofo e pedagogo norte-americano, foi um dos mais destacados representantes da educao progressista nos Estados Unidos e da corrente
filosfica denominada Pragmatismo (ou Instrumentalismo, como ele preferia), durante a primeira metade do sculo XX.
4. Ansio Spnola Teixeira(1900-1971) foi um jurista, educador e escritor brasileiro. Foi personagem central na histria da educao brasileira e na difuso do movimento Escola
Nova, alm de defensor do ensino pblico, gratuito, laico e obrigatrio.
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uma Escola Nova Catlica5.
Segundo relata Saviani Em 1938 foi fundado o Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos (INEP) atualmente Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais que se converteu no principal centro aglutinador e estimulador de experincias de renovao pedaggica. Consequentemente,
se o perodo situado entre 1930 e 1945 pode ser considerado como marcado pelo equilbrio entre as influncias das concepes humanista tradicional
(representada pelos catlicos) e humanista moderna (representada pelos pioneiros da educao nova), a partir de 1945 j se delineia como nitidamente
predominante a concepo humanista moderna. (SAVIANI, 2005: 14). Saviani aponta, como marco dessa nova hegemonia, a presena expressiva dos
progressistas Ansio Teixeira, Loureno Filho, Fernando de Azevedo, Almeida Junior e Faria Grois na Comisso de elaborao da Lei de Diretrizes e Bases
da Educao Nacional, em 1947.
A partir dos anos 1950, o conflito entre educadores progressistas e educadores catlicos tambm pode ser compreendido na chave do conflito
entre escola pblica e escola particular. Entre 1950-60, a mobilizao pelas questes da cultura e educao populares se intensifica. Constitui-se uma Escola
Nova Popular, de base catlica principalmente, como o Movimento de Educao de Base (MEB), dirigido pela Igreja Catlica, e o Movimento Paulo Freire de
Educao de Adultos.
Se o movimento escolanovista se inspira fortemente no pragmatismo, o MEB e o Movimento Paulo Freire buscam inspirao predominantemente no
personalismo cristo e na fenomenologia existencial. Entretanto, pragmatismo e personalismo, assim como existencialismo e fenomenologia, so diferentes
5. So exemplos disso, as ideias pedaggicas de Montessori (origem italiana) e Lubienska (francesa), ainda bastante influentes no campo da educao catlica progressista.
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correntes filosficas que expressam diferentes manifestaes da concepo humanista moderna, situando-se, pois, em seu interior. lcito, pois, afirmar
que sob a gide da concepo humanista moderna de filosofia da educao acabou por surgir tambm uma espcie de escola nova popular, como um
outro aspecto do processo mais amplo de renovao da pedagogia catlica que manteve afinidades com a corrente denominada de teologia da libertao
(SAVIANI, 2005: 17).
A dcada de 1960 representou tanto um continuum da expressividade pedaggica renovadora e momento de novas experimentaes quanto seu
esgotamento. A educao articula-se tendncia tecnicista, de base reprodutivista totalmente compatvel com os ideais polticos da ditadura militar de
direita, imposta no Brasil a partir de 1964. A teoria do capital humano (SCHULTZ apud SAVIANI, 2005: 19), em plena era de ouro do capitalismo, embasa essa
pedagogia produtivista, racionalista, que v no ensino um instrumento indispensvel ao pleno desenvolvimento econmico. Nas dcadas de 1970 e 80,
foram formuladas crticas a essa teoria, ora acusando a subordinao funcional da educao ao sistema capitalista, ora buscando recusar veementemente
qualquer associao entre educao e produo6. J, em fins dos anos 1980, Frigotto7 investiga outro carter para essa relao. No nega a relao entre
6. Dermeval Saviani cita a obra de Cludio Salm como referencial dessa crtica Um primeiro esforo sistemtico nesse sentido ganha forma no livro de Cludio Salm, Escola
e trabalho (SALM, 1980). A ele se empenha em fazer a crtica das crticas pondo em evidncia a improcedncia da tese que liga diretamente a educao com o processo de
desenvolvimento capitalista. Entretanto, no af de demonstrar a autonomia do desenvolvimento capitalista em relao educao (o capital, afirma ele, no precisa recorrer
escola para a qualificao da fora de trabalho; ele auto-suficiente; dispe de meios prprios), Salm acaba por absolutizar a separao entre escola (educao) e trabalho
(processo produtivo) (SAVIANI, 2005: 20)
7. FRIGOTTO, Gaudncio apud SAVIANI, 2005: 20)
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educao e produo capitalista, mas a reinterpreta. O autor compreende que o vnculo entre escola e
trabalho indireto e mediato, ou seja, a escola imediatamente improdutiva e mediatamente produtiva.
A despeito de todas as crticas, a concepo produtivista resistiu e ganhou novo vigor no
neoliberalismo. A Teoria do Capital Humano, que nascera no cerne do Keynesianismo e da poltica
do Bem-Estar social, adquire novo sentido, como evidenciado por Gentili Passou-se de uma lgica
da integrao em funo de necessidades e demandas de carter coletivo (a economia nacional, a
competitividade das empresas, a riqueza social etc.) para uma lgica econmica estritamente privada
e guiada pela nfase nas capacidades e competncias que cada pessoa deve adquirir no mercado
educacional para atingir uma melhor posio no mercado de trabalho (GENTILI, Pablo apud SAVIANI,
2005: 21)
A educao torna-se, ento, um investimento em capital humano individual, um instrumento
que garanta alguma condio de competitividade e empregabilidade. Desvencilhada de quaisquer
princpios alheios a essa dinmica restritiva.
O que as experincias empreendidas tanto na Escola da Ponte, em Portugal, como na escola
Amorim Lima demonstram uma tentativa cotidiana de retomar os princpios base das posturas
pedaggicas renovadoras, buscando, sempre, repens-los quando necessrio.
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22ESCOLA DA PONTEeduardoaviz.com
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2 .2 EXPERINCIA ESCOLA DA PONTENa transio entre as dcadas de 1960-70, Portugal vivia um momento de intensas lutas pela democratizao, cujo estopim foi a
Revoluo dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Com o fim da ditadura, diversos movimentos renovadores alcanaram expresso,
dentre eles figuraram diversas propostas de renovao pedaggica em todo o pas.
Jos Pacheco, um dos idealizadores da Escola da Ponte, considera o ano de 1963 como um marco referencial dessa historia.
Neste ano, Portugal participou de um projeto da OCDE (Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico), cuja proposta era
a de auxiliar os pases mediterrneos a tornarem compatveis suas concepes e orientaes pedaggicas aos seus espaos escolares
construdos. Com isso, os educadores portugueses passaram a discutir mais criticamente essa intrincada relao entre educao e
seus espaos.
Assim, em fins dos anos 1960, os tcnicos da Diretoria Geral das Construes Escolares Departamento do Ministrio da
Educao de Portugal instigados pelas ideias progressistas em discusso, propuseram novas tipologias arquitetnicas escolares.
Criaram as chamadas escolas de rea aberta, por meio de autarquias locais. As escolas de rea aberta buscaram reinterpretar alguns
elementos estruturadores do ambiente escolar tradicional: a segregao entre educadores, estudantes, espaos e tempos. Assim,
definiram a reorganizao da escola em equipe de educadores e equipe de estudantes, cujo trabalho cotidiano seria construdo
conjuntamente; bem como, transformaram radicalmente o sistema de turmas-classes, concebendo diferentes espaos para diferentes
momentos educativos.
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Em seu texto, Pacheco indica algumas das finalidades das escolas de rea aberta1:
1. Procurar o ambiente que encoraje uma melhor comunicao entre alunos e professores;
2. Mobilizar os professores para o trabalho em equipe;
3. Facilitar a adaptao da organizao escolar s diferenas individuais e contnua aquisio de conhecimentos, a fim de 4. permitir os reagrupamentos
funcionais de alunos;
4. Estimular nas crianas a multiplicao dos contatos pessoais e, por conseguinte, uma melhor socializao;
5. Facilitar mltiplas e diversas organizaes, transformaes temporrias e, por vezes permanente, permitir as mais variadas modificaes, dando assim
flexibilidade no s aos diferentes modos de organizao escolar, como tambm aos diferentes tipos de didtica e pedagogia;
6. Favorecer todas as formas de trabalho dos alunos (individual, em grupo, atividades livres, etc.) de acordo com o esprito da Escola Ativa.
Muitas das escolas pblicas de rea aberta, ento construdas em Portugal, no deram continuidade aos princpios do projeto, muitas delas
retomando, pouco a pouco, as estruturas espaciais e temporais do modelo tradicional de escola. Desse modo, no final da dcada de 1980, a Escola da Ponte
era a nica unidade a permanecer como escola de rea aberta e a levar a cabo a construo de um projeto escolar coerente com sua inteno transformadora.
Assim, o projeto Fazer a Ponte2 d as bases conceituais para o projeto educativo da Escola. Vale citar alguns de seus valores matriciais:
1. Ao citar tais finalidades, Pacheco cita como referncia Organizao de Ensino Elemental de Montreal, um dos centros promotores das escolas de rea aberta. O texto de
Pacheco no est mais disponvel na rede, assim esse trecho foi encontrado em PAIER, 2009: 26).
2. O texto Projeto Educativo Fazer a Ponte pode ser encontrado em http://www.escoladaponte.com.pt/
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1- Uma equipa coesa e solidria e uma intencionalidade educativa claramente reconhecida e assumida por todos (alunos, pais, profissionais de educao e
demais agentes educativos) so os principais ingredientes de um projecto capaz de sustentar uma aco educativa coerente e eficaz.
2- A intencionalidade educativa que serve de referencial ao projecto Fazer a Ponte orienta-se no sentido da formao de pessoas e cidados cada vez mais
cultos, autnomos, responsveis e solidrios e democraticamente comprometidos na construo de um destino colectivo e de um projecto de sociedade
que potenciem a afirmao das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.
3- A Escola no uma mera soma de parceiros hieraticamente justapostos, recursos quase sempre precrios e actividades ritualizadas uma formao
social em interaco com o meio envolvente e outras formaes sociais, em que permanentemente convergem processos de mudana desejada e reflectida.
4- A intencionalidade educativa do Projecto impregna coerentemente as prticas organizacionais e relacionais da Escola, que reflectiro tambm os valores
matriciais que inspiram e orientam o Projecto, a saber, os valores da autonomia, solidariedade, responsabilidade e democraticidade.
5- A Escola reconhece aos pais o direito indeclinvel de escolha do projecto educativo que considerem mais apropriado formao dos seus filhos e,
simultaneamente, arroga-se o direito de propor sociedade e aos pais interessados o projecto educativo que julgue mais adequado formao integral dos
seus alunos.
6- O Projecto Educativo, enquanto referencial de pensamento e aco de uma comunidade que se rev em determinados princpios e objectivos educacionais,
baliza e orienta a interveno de todos os agentes e parceiros na vida da Escola e ilumina o posicionamento desta face administrao educativa.
Assim, na Escola da Ponte, o processo educativo se estrutura por ncleos de projetos Iniciao, Consolidao e Aprofundamento que so
a primeira instncia de trabalho dos alunos e dos Orientadores pedaggicos. No h sries, nem tempos predeterminados; o estudante estimulado a
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um autoconhecimento de seu processo de aprendizagem e de
avaliao. E, na medida em que, autonomamente, constri esse
percurso, avana de um ncleo para o seguinte.
A Articulao Curricular promove as atividades transversais,
a fim de articular as diferentes atividades de todos os trs ncleos
estruturais. H ainda os trabalhos de Tutoria, o qual constitui um
acompanhamento permanente e individualizado do percurso
curricular de cada aluno. Dentre os diversos rgos administrativos,
h tambm uma instncia estruturadora do projeto Fazer a Ponte
a Assembleia da Escola, a qual respeita e garante a participao
democrtica dos alunos em sua organizao e funcionamento.
Nela so tambm determinados a cada incio de ano letivo, dentre
outras coisas, os Grupos de Responsabilidades responsveis pela
organizao dos diferentes espaos de trabalho e das diferentes
formas de interveno dos alunos nos ambientes da escola.
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3ESCOLA AMORIM LIMA
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.13 BREVE HISTRIAQuando criada, em 1956, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima constituiu a primeira escola isolada
da Vila Indiana, localizada na Rua Corinto, s/n. Alguns anos depois, em 1968, a escola passou a funcionar em novo prdio, construdo
no lote e endereo atual Rua Vicente Peixoto, 50, no Butant.
At a dcada de 1990, dois edifcios separados, dispostos em uma ampla rea aberta, configuravam o espao da escola. Um
deles, o edifcio mais antigo, de um pavimento; e o outro, mais recente, um edifcio escolar bastante tradicional, de dois pavimentos
e doze salas de aula. Em 1996, com a chegada da nova e atual Diretora, Ana Elisa Pereira Flauqer de Siqueira, algumas transformaes
espaciais foram iniciadas. Dentre vrias reformas, foi construdo um edifcio de ligao entre os dois edifcios isolados j existentes,
buscando transpor sua descontinuidade e torn-lo um espao integrado e nico. Alm disso, as grades que limitavam a circulao no
espao externo tambm foram retiradas, indicando assim uma postura diferente da nova gesto da escola.
Neste momento, a histria dessa escola comeou a ser reconduzida. Partiu-se, desde o incio, de uma reestruturao
pedaggica de postura abrangente, pensando, simultaneamente, a educao e seus espaos.
o ptio tinha grade dos dois lados e as crianas no podiam ir pra quadra. As crianas subiam nas grades e ficavam se chacoalhando.
A escola era toda cinza, eu achava inadmissvel uma escola onde frequentam crianas ser toda cinza. Era uma escurido absoluta! Aqui
[se referindo ao jardim] era um monte de cadeira velha jogada e fechada por duas grades, era um entulho, ningum pode imaginar o
que era isso aqui...
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Eu priorizo isso mesmo, eu priorizo uma
escola bonita. A escola pblica tem um
lugar na sociedade que muito ruim,
que a escola dos excludos. Eu sempre
tive horror de pensar nisso. por isso que
eu acho que importantssimo cuidar,
porque onde esto a maior parte
das crianas e que elas merecem uma
escola bastante cuidada. um orgulho
as crianas terem uma escola que seja
bonita, isso significa respeito. Respeito a
gente no aprende na palavra, a gente
aprende na ao. (entrevista com Ana
Elisa apud PAIER, 2009: 31)
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TRANFORMAO INICIAL - TEMPOS E ESPAOS.23O Projeto Pedaggico atualmente em curso na Escola Amorim Lima teve incio oficial no ano de 2004, no entanto, a vontade de
mudana j o vinha construindo havia alguns anos. Desde 1996, com a entrada de Ana Elisa na direo da escola, algumas mudanas
importantes foram iniciadas. Com o intuito de enfrentar a situao de alta evaso de alunos, as primeiras transformaes visavam
inserir diversos tipos de atividades culturais e extracurriculares, aproximando a escola dos seus alunos e de sua comunidade. O intuito
era mostrar que o papel da escola na vida deveria ser mais amplo e que a escola poderia e deveria ir um pouco mais alm.
Preocupada com a alta evaso- e ciente do triste fim que vinham a ter os alunos evadidos visto que, para muitos, era a escola
o nico vnculo social concreto o primeiro esforo da nova diretoria foi no sentido de manter os alunos na escola, durante o maior
tempo possvel. Foi o tempo de derrubar os alambrados que cerceavam a circulao no ptio, num voto de respeito e confiana, de
abrir a escola nos fins de semana, de melhorar os espaos tornando-os agradveis e voltados convivncia. De abrir, enfim, a escola
comunidade. (Projeto Poltico Pedaggico EMEF Amorim Lima, 2005)
Todo o processo baseou-se no princpio da participao da comunidade. No incio, eram as mes, donas de casa, em grande
parte, as principais voluntrias. Foram elas que passaram a vivenciar a escola, compreenderem suas questes e ampliaram seus
prprios conceitos acerca da funo da escola e, principalmente, do carter da escola pblica. As Oficinas de Cultura Brasileira, que
constituem hoje um dos principais estruturadores do projeto pedaggico, comearam j neste momento, coordenadas por essa fora
voluntria. Como conta Simone Paier, educadora da escola, em sua dissertao de mestrado sobre o Projeto Amorim Lima:
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Assim, essas mes passaram a realizar um resgate das brincadeiras de suas infncias para proporcionarem alternativas s crianas
da escola, durante o recreio. Esse trabalho foi orientado por uma me que era estudiosa das questes da cultura brasileira e se
desdobrou em oficinas que procuravam estimular as brincadeiras tradicionais entre os estudantes menores, do 1 ao 4 ano do Ensino
Fundamental (PAIER, 2009: 34)
Em 2002, professores e pais reunidos no Conselho da Escola discutiam meios de melhorar o aprendizado e a convivncia
dentro da escola. Apesar de todas as transformaes j em curso, a escola ainda se assemelhava s demais escolas pblicas tradicionais
de Ensino Fundamental. Comisses organizaram-se para levantar dados e criar um diagnstico sobre a real condio escola. Foram
diagnosticados como seus principais problemas a indisciplina e o alto ndice de ausncias, tanto de alunos como de professores. De
certo, no era interesse recorrer aos j conhecidos mtodos para solucionar tais questes. Era interesse sim questionar, que indisciplina
essa? Quais so suas causas? Quem participa dessa relao? Que tipo de postura a estimula?
... conforme afirma Jlio Groppa Aquino (1998), o ato indisciplinado revela algo sobre as relaes institucionais-escolares nos dias
atuais. Ele revela os conflitos e as relaes baseadas no autoritarismo existentes entre os sujeitos envolvidos no trabalho educativo.
O princpio da democratizao escolar previsto na legislao brasileira, embora seja fundamental para orientar as redes de ensino e
cada unidade, no garante por si s, a transformao das estruturas e das relaes autoritrias herdadas de nossa sociedade. (PAIER,
2009: 19)
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Em 2003, a Escola solicitou um acompanhamento externo para
essa reestruturao. E, com a ajuda da psicloga Rosely Sayo1, a Escola
tomou conhecimento do projeto pioneiro desenvolvido na Escola da
Ponte, em Portugal. A similaridade de princpios foi instigante. H mais
de trs dcadas, em Portugal, os educadores lanaram-se nesse projeto
renovador e repleto de desafios, com o intuito de construir uma escola
mais democrtica, tica e solidria. Era isso que se vinha buscando
por aqui, apenas isso, mas tudo isso: a superao efetiva do modelo
tradicional caduco de escola.
1. Na gesto da prefeita Marta Suplicy (2001-2004) em So Paulo, cada unidade
escolar recebia uma verba destinada contratao de profissionais para
efetuarem cursos, palestras ou outras atividades pontuais destinadas formao
continuada dos professores. A assessoria requisitada para o Projeto em questo
representava um investimento muito superior ao previsto por esse programa
municipal
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A reestruturao era necessria e, cada vez mais, passava a constituir-se numa forte e imprescindvel vontade coletiva. Assim como no caso do
projeto Fazer a Ponte, o apoio e participao da comunidade e dos pais tornaram-se elementos cruciais realizao de qualquer mudana real que se
pretendesse empreender.
A ao sobre os espaos da escola, como vimos, esteve presente desde o incio. E, neste momento, transformao pedaggica e espacial foram
condies precpuas e indissociveis. As escolas novas, escolas revolucionrias, como a Escola da Ponte, a Amorim Lima de hoje, e diversas outras, almejavam,
sobretudo, um aprendizado que no prescindisse das relaes humanas para acontecer, que dependesse delas e por meio delas se estruturasse. Desse modo,
as estruturas espaciais da escola tradicional precisavam ser radicalmente transformadas, para que, a partir disso, quaisquer outras mudanas pudessem ser
vislumbradas. Decidiram, assim, pela derrubada das paredes entre salas de aula. Onde antes havia trs salas tpicas isoladas, criar-se-ia um grande Salo de
pesquisa. E partiriam da, do espao resignificado. A proposta foi apresentada a Secretaria Municipal de Educao e aprovada pela, ento Secretria, Maria
Aparecida Perez. Criaram, assim, um espao que reuniria diversos professores e diversos alunos, trabalhando conjuntamente e descobrindo, cotidianamente,
novas formas de lidar com o conhecimento. O esforo seria de ambos, os educadores construindo as atividades em parceria; e os estudantes, participando
dessas atividades, nos diferentes grupos constitudos. Essa instncia coletiva constitua o cerne do projeto Fazer a Ponte, e, portanto, no poderia deixar de
ser aqui vivenciado. Nas palavras da diretora, transcritas pela educadora Simone Paier:
Quando a gente comeou a estudar o projeto da Ponte a gente foi descobrindo que era imprescindvel que todos os educadores tivessem um lugar de
convivncia coletiva e os estudantes tambm, no dava pra gente inventar que um professor ficava numa sala, outro na outra, e fazia rodzio. Isso no
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ia dar conta dessa necessidade absoluta, do princpio da Ponte de que
os educadores tm que conviver juntos e as crianas tambm, porque
isso d uma outra dimenso para o coletivo, uma outra dimenso
social [...] a partir do momento que todos os educadores ficam juntos
existe a necessidade absoluta do dilogo, do confronto, das discusses
das diferenas, seno, isso no seria possvel. O espao do salo um
espao fundamental de construo coletiva, de responsabilidade,
de solidariedade, de autonomia, porque ele permite que essas coisas
sejam discutidas e trabalhadas.. (depoimento da diretora Ana Elisa In
PAIER, 2009: 39)
O projeto comeou a ser implantado em 2004, com todas as
turmas iniciais de cada ciclo do ensino fundamental, primeiras e quintas
sries, usando o espao do novo Salo de pesquisa. Em trs anos, j
abrangia o conjunto total de alunos da escola. Em 2005, j havia sido
criado o segundo Salo de pesquisa, agora mais amplo, agregando
quatro salas de aula anteriormente isoladas.
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Foram envolvidos cinco professores diretamente, todos
ingressantes naquele ano na escola, 105 estudantes de 1 ano, 105
estudantes de 5 ano, alm dos professores das oficinas culturais, no
pertencentes rede municipal. Em fevereiro de 2005, o Projeto foi
expandido para 2 e 6 anos e em julho para 3 e 7 anos, abrangendo
toda a escola no ensino regular em 2006. (PAIER, 2009: 38)
Neste primeiro ano, os professores, agora trabalhando como
educadores polivalentes por orientarem, sem diferenciao, todo
tipo de dvida, de todas as reas do conhecimento permaneciam
todo o tempo no Salo, auxiliando os estudantes em suas atividades
de pesquisa. J os estudantes participavam de dois tipos principais
de atividades. Alm dos estudos desenvolvidos no Salo de pesquisa,
participavam tambm das oficinas culturais, das quais faziam parte as
oficinas de artes, de leitura, de msica, capoeira e jogos cooperativos,
circo, educao ambiental e informtica.
Em 2005, os professores passaram a desenvolver tambm
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algumas oficinas, como a de leitura-escrita e matemtica. A organizao das atividades foi se tornando mais complexa e, ao mesmo
tempo, mais madura, na medida em que os atores do processo, estudantes e educadores, iam percebendo as novas necessidades
trazidas, pouco a pouco, pela nova estrutura de escola.
Durante os dois primeiros anos, foram muitas as mudanas percebidas na vivncia cotidiana dessa escola. Existiam,
nesse momento, duas escolas sob o mesmo teto, uma tradicional e outra renovada. Os participantes dessa construo relatam as
diferentes posturas que puderam ser sentidas dentre os integrantes daquelas duas escolas, cujas estruturaes pedaggicas eram
significativamente diferentes. A nfase no processo de pesquisa e nas atividades culturais, bem como a criao dos novos espaos, a
busca pela afirmao da liberdade associada responsabilidade, alm do trabalho eminentemente coletivo logo foram capazes de
fomentar novas posturas no ambiente da nova escola latentes quando contrastada antiga, ainda existente.
No ano seguinte, toda a escola j integrava o novo projeto. Outras modificaes espaciais foram empreendidas, como a
criao de novo espao para os estudantes ingressantes no primeiro ano. Alm disso, a escola passou a oferecer o ensino fundamental
completo em ambos os perodos do dia, de forma que cada um dos dois grandes Sales foi destinado a cada um dos ciclos.
Em sntese, ao final desses trs anos iniciais, grande parte da essncia da estrutura pedaggica atual j estava sendo posta em
prtica e experimentada, dia aps dia. Era necessrio, ento, elaborar sua estrutura administrativa oficial, consolidar seus princpios e
formalizar seus parmetros pedaggicos e institucionais.
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ESTRUTURAO E CONSOLIDAO DO PROJETO PEDAGGICO.333.3.1. ESTRUTURAO ESPAO-TEMPORAL Como vimos, j a partir de 1996 e, principalmente, ao longo dos trs anos iniciais de implantao do projeto, o espao da escola foi significativamente
transformado e repensado, constituindo um espao pblico de ensino bastante incomum. A comear por sua extensa rea externa, cuja apropriao pelos
estudantes, depois da retirada das grades do ptio externo, tornou-se muito mais livre. Possui reas arborizadas, ausentes na maior parte dos edifcios
escolares (nos contemporneos, principalmente), muito exploradas pelos estudantes, especialmente pelos pequenos escaladores.
Faz-se, portanto, imprescindvel falar, simultaneamente, sobre a transformao da estrutura pedaggica e espacial; para que, assim, permita-se uma
melhor compreenso sobre as relaes interdependentes estabelecidas entre ambas. A implantao e consolidao dessas estruturas so partes integrantes
de uma mesma concepo filosfica acerca do real carter da educao e, portanto, a atuao nessas diferentes frentes precpua a sua constituio em
plenitude.
Aps 1996, quando os dois edifcios isolados se tornam um nico, integrado, passa a ocorrer uma mudana na percepo espacial da escola como
um todo. Espaos externos recebem maior cuidado e passam a expressar a maior liberdade da nova prtica pedaggica, consequentemente, recebem
maior uso. Em 2005, uma nova adio feita ao edifcio, prolongando-o em sua extenso longitudinal. construdo um novo Salo, o qual deveria abrigar, a
princpio, as crescentes atividades de pesquisa, bem como intercmbios interescolares e outros eventos. Posteriormente, percebeu-se a necessidade de us-
lo para o abrigo de uma biblioteca e uma sala de artes, recursos e ambientes com demanda crescente no novo cotidiano escolar.
Assim, atualmente, o edifcio da escola Amorim Lima constitui-se de uma congregao de edifcios construdos em momentos diferentes e resultados
de posturas e demandas pedaggicas e espaciais tambm diversas.
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LEGENDA
01. HORTA
02. PISTA HALF PIPE
03. QUADRA DE ESPORTES COBERTA
04. QUADRA ESPORTES DESCOBERTO
05. DEPSITO MATERIAL ARTES E ED. FSICA
06. COORDENAO PEDAGGICA
07. SALA EDUCADORES
08. SALA DIREO
09. SALA GRUPO ALFABETIZAO
10. ALMOXARIFADO
11. SECRETARIA
12. TRIO
13. SALA INFORMTICA
14. SALA GRUPO CEACA
15. SALA VAZADA
16. PTIO INTERNO COBERTO
17. REFEITRIO
18. COZINHA/DESPENSA
19. BIBLIOTECA
20. SALA ARTES
21. BOSQUE/PARQUINHO
22. CASA DE CULTURA GUARANI OPY GUASU
23. TANQUE DE AREIA
24. REA COBERTA POR TENDA
25. DEPSITO MATERIAL DE LIMPEZA
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01
02 03
04
08 09 10 11
05 06 07
12
13
16
18
17
21
2223
19
20
24
14
1525 25
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LEGENDA01. SALO CICLO I
02. SALA DE APOIO
03. LABORATRIO
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03 01 02 02
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LEGENDA01. SALO CICLO II
02. SALA DE APOIO
03. SALA GRUPO INTERMEDIRIO
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0301
02
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10m5m 20m0m CORTE A-A
5m1m 10m0
CORTE C-C CORTE D-D
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10m5m 20m0m CORTE B-B
CORTE E-E CORTE F-F
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O edifcio mais antigo abriga, atualmente, as instncias administrativas da escola, como sala da direo, coordenadoria pedaggica, sala dos
professores, secretria e almoxarifado. Alm disso, passou tambm a abrigar uma sala para o grupo de Alfabetizao, o grupo dos alunos ingressantes na
escola. Essa condio espacial refora uma dinmica, desejada, de desmistificao e democratizao espacial dos ambientes escolares tradicionais. Uma
vez que o ambiente administrativo da escola divide espao com uma poro do ambiente discente, todo o espao apropriado por todos os estudantes de
forma mais livre; exigindo, portanto, de toda a comunidade escolar diferentes respostas s consequncias advindas dessa liberdade.
O segundo edifcio ali construdo, em 1968, possui dois pavimentos de salas de aula e constitui um edifcio escolar bastante tradicional. Abriga um
ptio central com pequeno palco, uma cozinha e rea de refeitrio conjugados, banheiros, sala de auxiliar administrativo, sala de informtica, sala do Ponto
de Cultura e Ao Gri1 e duas caixas de escada. A partir do espao do refeitrio, foi criado um acesso ao edifcio mais recente; onde funcionam a Sala de
Artes e a Biblioteca, cuja fachada, toda composta por esquadria, possibilita agradvel contato visual com a rea do bosque e parquinho2. Os pavimentos
superiores abrigavam anteriormente 12 salas de aula tpicas. Hoje, o primeiro pavimento possui um Salo (Ciclo I), duas salas de aula, um laboratrio e
pequeno depsito; o segundo, um Salo maior (Ciclo II), uma sala de aula, a sala do Grupo Intermedirio e outro depsito.
O edifcio de conexo (trio, como passou a ser denominado), construdo no fim da dcada de 1990, representa, atualmente, um ambiente
1. O Ponto de Cultura e Ao Gri coordenado pelos Mestres Alcides e Dorival, do Centro de Estudos e Aplicao da Capoeira (CEACA). O Centro trabalha em parceria com a
Escola no desenvolvimento das oficinas de capoeira, inseridas na estrutura curricular ou extra-curriculares.
2. Apesar da presena de portas externas e da inteno inicial de integrao dos espaos interno e externo; o contato estabelecido atualmente apenas visual, pois as portas
mantm-se sempre fechadas.
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extremamente significante no conjunto edificado da escola. a porta
de entrada escola, recebe exposies de trabalhos, avisos importantes
e decoraes de destaque nas pocas de festa. Nele, habitantes e
visitantes chegam e, dele, partem para os demais espaos.
Alm de localizar-se num terreno de proporo e insero
urbanas bastante incomuns, sua disposio espacial no mesmo
, tambm, um tanto singular. O conjunto edificado estende-se
longitudinalmente ao longo de sua fachada noroeste, deixando livre
quase todo o restante do lote. Essa rea externa constituda por uma
rea verde significativa (muitos arbustos e rvores, alm de extenso
solo permevel) e pela disposio aparentemente despretensiosa de
diversos outros elementos. Existem ali, na extremidade nordeste do
lote, duas quadras poliesportivas (uma coberta e outra descoberta),
uma pequena rampa de skate, canteiros com vegetao e uma horta.
Na rea central, h alguns objetos destinados ao uso ldico, uma tenda
(cuja cobertura abriga 100 m de rea) e, mais a frente, um tanque de
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areia. Na extremidade sudoeste (limitada pela Avenida Corifeu de Azevedo Marques) localiza-se o bosque, o qual abriga o parquinho e a recm-construda
Casa de Cultura Guarani3. O terreno plano em quase toda a sua abrangncia; possuindo diferena de nvel marcante e outros obstculos (como muretas de
arrimo e razes de rvores) apenas na poro sudoeste, regio do bosque.
O Salo de pesquisa , sem dvida, o grande protagonista dessa transformao pedaggica. Em consonncia com os princpios buscados pelas
pedagogias novas, destacadamente aqueles formulados pelas teorias construtivistas, o trabalho no Salo com os Roteiros de pesquisa4 est focado no processo
de aprendizagem do aluno, preza pela autonomia e pela igualdade de saberes, assim como proporciona a construo compartilhada de conhecimento entre
3. A construo da Casa de Cultura Guarani (denominada Opy Guasu, em tupi guarani) no terreno da escola foi fruto de um intercmbio cultural realizado entre a Amorim Lima
e os ndios Guaranis da aldeia Tenond-Por, de Parelheiros. No site da escola, pode-se encontrar um relato desse projeto: ... o cacique Timteo, a professora e escritora guarani
Giselda Jer e outros representantes da aldeia visitaram a escola e nos encheram de alegria - o cacique Timteo fez talvez o mais singelo e importante reconhecimento do
significado do nosso projeto e da nossa prtica, dizendo-nos que desejava que sua escola, na aldeia, fosse livre como a nossa: que as crianas pudessem circular to livremente,
e que ficasse a todos claro que o aprendizado se d tambm no cho de terra, na msica, na dana. O cacique aprovou que construssemos a Opy Guasu na escola - um espao
sagrado para o povo guarani, pois que o local preferencial de troca e transmisso de cultura - e que tambm assume, para ns, estatura de sagrado na medida em que
representa o nosso respeito s diversas culturas que formaram o nosso povo e o nosso pas. Os guaranis Nilson e Vicente ficaram hospedados conosco por trs semanas,
construindo a Opy, que foi inaugurada em 25/11/06, no encerramento do 2. Seminrio de Avaliao e das comemoraes do jubileu da escola (extrado de http://antigo.
amorimlima.org.br/tiki-index.php?page=oficinas+-+cultura+guarani)
4. A explicao desse dispositivo encontra-se no item 3.3.2. ESTRUTURAO PEDAGGICA
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todos os agentes, educadores e educandos, numa resignificao das formas e tempos de ensino e aprendizagem.
A atividade no Salo de pesquisa recusa a prtica pedaggica tradicional centrada na instruo intelectual e no professor, cuja funo essencial
seria a de transmitir aos alunos uma gama de conhecimentos, adquiridos e consolidados pela humanidade ao longo de sua existncia, de acordo com uma
sequncia lgica, consensual e pr-determinada. Cabendo aos alunos apenas a disposio e dedicao em assimilar tais contedos5. No Salo, a construo
de conhecimento aberta iniciativa do educando, cabendo ao professor acompanhar esse processo. Segundo Saviani O eixo do trabalho pedaggico
desloca-se, portanto, da compreenso intelectual para a atividade prtica, do aspecto lgico para o psicolgico, dos contedos cognitivos para os mtodos
ou processos de aprendizagem, do professor para o aluno, do esforo para o interesse, da disciplina para a espontaneidade, da quantidade para a qualidade.
Tais pedagogias configuram-se como uma teoria da educao que estabelece o primado da prtica sobre a teoria. A prtica determina a teoria. (DERMEVAL,
2005: 2)
5. Dermeval Saviani, em As concepes pedaggicas na histria da educao brasileira, entende que as teorias sobre a educao ao longo da histria diferenciaram-se,
principalmente, entre as teorias de ensino e as teorias de aprendizagem. As primeiras foram dominantes at o sculo XIX e detiveram-se ao estudo sobre o como ensinar so
compreendidos, neste agrupamento: Plato, a pedagogia crist, humanista, naturalista, idealista (Kant, Fichte e Hegel), as teorias humanista racionalista, da evoluo e da
sistematizao (Herbart Ziller). As ltimas foram desenvolvidas ao longo do sculo XX e detiveram-se, por sua vez, ao estudo sobre o como aprender fazem parte desse
agrupamento: Jacques Rousseau, Pestalozzi e Froebel, Kierkegaard, Stirner, Nietzsche, Bergson, os escolanovistas, as pedagogias no diretivas, a pedagogia institucional
(Lobrot e Oury) e os construtivistas, como Jean Piaget (SAVIANI, 2005).
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Neste espao se constri, na prtica, a educao voltada
aprendizagem, necessidade apontada por Clestin Freinet6: Dizem
que se realizou uma revoluo copernicana na educao no dia que se
compreendeu que a pedagogia devia ser centrada na criana e no no
adulto; que, dentro do processo formativo, o aluno no devia mais ser
um elemento passivo nas mos do educador ou da sociedade, mas o
objeto essencial do desenvolvimento ao qual devem ser subordinados
programas, mtodos, tcnicas, organizao e material. Mas essa
revoluo estar apenas encetada, apenas anunciada, enquanto no
passar para o domnio da prtica. E esta outra questo. (FREINET,
1998, p. 302)
6. Clestin Freinet (1896-1966) foi um pedagogo anarquista francs, cujos
estudos constituram, desde sua poca, grande referncia no campo da
educao revolucionria. Em sua proposta pedaggica, a interao professor-
aluno essencial aprendizagem.
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Ainda, segundo Simone Paier, A existncia do salo possibilita uma melhor organizao do trabalho dos educadores
com os estudantes. Aqueles que esto atuando como orientadores no salo podem se responsabilizar por uma quantidade maior
de estudantes, uma vez que neste local o trabalho mais pessoal, mais autnomo, pois se constitui de pesquisas. Os educadores
que esto em oficinas podem se dedicar a um grupo com nmero reduzido de estudantes, o que melhora a relao destes com o
conhecimento e com o educador, favorece um atendimento diferenciado queles que tm mais dificuldade, facilita ao educador a
proposio de situaes concretas de aprendizagem e o oferecimento de diferentes materiais de experimentao. (PAIER, 2009: 45)
A autonomia no pode ser adquirida por meio de discursos, ela precisa ser instigada e precisa fazer parte essencial do
processo de formao. A sua construo paulatina, depende da exposio real a situaes de desafio, que requeiram discernimento,
investigao, dilogo e convivncia. Depende tambm da existncia de um ambiente escolar igualitrio, democrtico, cuja construo
deve tornar-se funo primordial de seus educadores. Segundo Rancire7, a igualdade intelectual entre indivduos precpua
emancipao ou construo mtua de conhecimento. Segundo ele, a igualdade intelectual precisa ser tomada como ponto de
partida, caso contrrio, a desigualdade das inteligncias pode ser tomada, perigosamente, como justificativa para a diferenciao
social.
7. Jacques Rancire, nascido em 1940, filsofo francs e autor da obra O Mestre Ignorante (1987), publicado no Brasil em 2002.
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Vivemos em sociedades que so, supostamente, igualitrias. Assim, funciona-se com a suposio da igualdade social; quando isso ocorre, a nica desigualdade
que, de alguma maneira, pode valer como explicao precisamente a desigualdade intelectual, a ideia de que uns indivduos so menos bons (sic) que os
outros. Com isso, h toda uma viso contempornea da desigualdade, em termos da simples oposio entre os melhores da turma e os atrasados [...] A
escola funciona, mais fortemente do que nunca, como analogia, como explicao da sociedade, isto , como prova de que o exerccio do poder o exerccio
natural e nico da desigualdade das inteligncias.
Assim, quando os estudantes sentam-se em grupos, para desenvolverem seus roteiros de pesquisa individualmente, esto construindo sua
emancipao intelectual, sem deixar de relacionar seu processo pessoal construo coletiva daquele grupo. a constituio de uma autonomia solidria,
no individualista e competitiva.
Segundo Andrea Nascimento8, para Rancire e Paulo Freire9, a emancipao intelectual e a autonomia possibilitam a instaurao de movimentos de
emancipao poltica que pretendam romper com as lgicas sociais e institucionais vigentes. Ainda que seus estudos tenham nfases distintas, a nfase nas
possibilidades de emancipao pelo sujeito intelectualmente autnomo compartilhada por ambos. O conceito de autonomia do Projeto Amorim Lima
8. NASCIMENTO, Andrea Z.S. A criana e o arquiteto: quem aprende com quem? So Paulo, 2008 (Dissertao de mestrado FAU-USP).
9. Paulo Reglus Neves Freire(1921-1997) umeducadorefilsofobrasileiro. Seu trabalho destaca-se pela nfase na educao popular para escolarizao e conscientizao
poltica
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estrutura-se, essencialmente, pelas contribuies dos estudiosos Paulo Freire e Jean Piaget10.
Piaget (1994), ao observar o comportamento de crianas de vrias idades percebeu trs diferentes perodos de seu desenvolvimento mental: entre
dois e sete anos, as crianas desenvolvem algumas determinadas habilidades, como a linguagem e o desenho; entre sete e onze anos, comeam a pensar
logicamente; e entre onze e quinze anos, comeam a lidar com abstraes para realizar suas construes cognitivas (GADOTTI, 1993: 156).
As crianas, em idade de cursar o Ensino Fundamental das escolas brasileiras, possuem entre sete e quatorze anos de idade. Segundo Piaget,
especialmente entre 6 e 10 anos de idade, elas esto passando por um processo denominado por heteronomia, aps o qual, por meio de suas interaes
e experincias, alcanam a autonomia. Enquanto heternomos, os indivduos pautam suas aes em verdades ou regras previamente dadas, existindo
incipientes possibilidades de elaborao crtica e transformao de sua realidade.
Neste sentido, a escola de ensino fundamental tem essa funo essencial, funo de fomentar tais interaes para que as crianas alcancem essa
condio de agentes autnomos. Interaes essencialmente cooperativas, uma vez que, como coloca Simone Paier, citando Puig11 e Freire, O sujeito
autnomo, aquele que em vez de fazer como os outros, faz com os outros, ou seja, situa-se em relao a eles e sociedade como indivduo livre e singular
10. Sir Jean William Fritz Piaget(1896-1980), psiclogo suio, dedicou-se ao estudo sobre a construo do pensamento nas crianas. Criticou enfaticamente a escola tradicional,
acusando-as de buscar a acomodao das crianas aos conhecimentos tradicionais ao invs da formao de inteligncias inventivas e crticas. O pensamento de Piaget
compartilhado pelos princpios do Projeto Amorim Lima, como indicado em seu Plano Poltico Pedaggico.
11. PUIG, Josep Maria. A construo da personalidade moral. So Paulo: Editora tica, 1998.
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que, atravs de relaes de reciprocidade, estabelece acordos que permitem uma convivncia respeitosa. (PUIG, 1998: 12). Essa definio importante para
no nos confundirmos, conforme alerta Paulo Freire (2001), com a perspectiva neoliberal de autonomia que estimula o individualismo e a competitividade,
colocando em evidncia apenas as necessidades individuais de cada pessoa, sem preocupao com as necessidades do coletivo, ou da sociedade. (PAIER,
2009: 52)
Dessa forma, aprender a aprender e aprender a conviver constituem dois princpios essenciais do Projeto Amorim Lima, como estabelecido em seu
Plano Poltico Pedaggico.
Ascendermos todos - alunos, educadores, pais e comunidade - a graus cada vez mais elevados de elaborao cultural e a nveis cada vez mais elevados
de autonomia moral e intelectual, num ambiente de respeito e solidariedade, o objetivo que fundamenta o Projeto EMEF Desembargador Amorim Lima
(Projeto Poltico Pedaggico Amorim Lima, trecho do Artigo II - Dos valores que fundamentam o projeto)
Aprender a conviver requer a considerao sobre o sentido pleno da palavra convivncia. A convivncia em uma escola pblica uma convivncia
eminentemente no seletiva. Convive-se com todos. A postura da escola e, deve ser sempre, inclusiva. Na escola Amorim Lima, h a interao real entre
diversas idades e diversas crianas, com possibilidades diversas e dificuldades tambm diversas, sejam sociais, fsicas ou mentais. E, aprender a aprender
busca fomentar a tomada de conscincia do educando acerca de seu prprio processo, cada vez mais autnomo, de construo de conhecimento. A escola
construiu seus dispositivos pedaggicos para o alcance desses objetivos.
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Ocorre, por meio desses dispositivos, uma reinterpretao dos tempos da educao. Historicamente, o processo de institucionalizao da escola,
inegavelmente, significou uma alterao gradual, em todo o mundo e de formas particulares, na distribuio do tempo familiar e escolar dos educandos.
Assim como coloca Maria Cristina Soares de Gouveia12 em seu artigo Tempos de aprender: A produo histrica da idade escolar13 As diversas culturas
produziram recortes que demarcaram os diferentes momentos no desenrolar da vida do indivduo, construindo classes de idade, produzindo delimitaes
e rupturas ao longo do continuum da existncia humana. A autora parte da concepo de tempo da Antiguidade, a fim de demonstrar as transformaes
em seu significado, consequentemente, na relao indivduo natureza tempo. Passando, assim, Idade Mdia e Idade Moderna, contextualizando sua
anlise na histria da educao no Brasil e, mais especificamente, nas minas oitocentistas. tambm evidenciada a importncia conferida ao debate acerca
12. Graduao em Psicologia (1983), mestrado em Educao e Cincias Sociais (1990), doutorado em Histria da Educao (1997) pela Universidade Federal de Minas Gerais ,
ps- doutorado em Histria da Educaao pela Universidade de Lisboa(2005). Professora associada da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais, onde
atua no Programa de Ps- Graduao, orientando alunos de mestrado e doutorado, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Histria da Educaao da UFMG (GEPHE),
pesquisadora I-D do CNPq
13. Em A construo da infncia escolarizada: a criana nos discursos e nas prticas pedaggicas na provncia mineira (1820-1906), desenvolvida no interior do GEPHE (Grupo
de Estudos e Pesquisas em Histria da Educao da UFMG). Insere-se tambm no Programa Internacional de Pesquisa CAPES/GRICES: A infncia e sua educao: materialidades,
prticas e representaes Brasil/Portugal (1830-1950).
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dos espaos de educao, a partir do sculo XX. Em seu texto, podemos reconhecer a existncia de
um dilogo entre os padres europeus e o contexto brasileiro, porm dados recortes diferenciados
para este ltimo. No Brasil colonial, a produo do tempo escolar ou da idade escolar no pode ser
entendida do ponto de vista estritamente cronolgico, mas deve considerar as questes de gnero,
as to discrepantes condies sociais e a diversidade tnica da sociedade de ento. Vemos assim que,
dados esses condicionantes, poderiam ser compreendidos diversos tipo de infncia naquele contexto
sociocultural brasileiro. Diversos documentos apresentados no corpo deste artigo demonstram tanto
a tenso na conciliao entre o tempo familiar e o tempo escolar, uma vez que as crianas muitas vezes
eram encarregadas de inmeras tarefas domsticas; como a presena de diferentes faixas etrias em
um mesmo espao de ensino; e a grande variao na idade de incio e encerramento dos estudos
fundamentais. Ao entender que, em um passado relativamente recente, no havia necessariamente,
uma relao entre a idade cronolgica do aluno e sua condio de aprendizagem, nem uma segregao
espacial baseada nesta idade; vemos que h espao para a reviso dos preceitos que cristalizam o
modo como entendemos o que a escola atualmente.
Desse modo, a pesquisa de Maria Cristina Gouveia prov o debate acerca das novas ideias
pedaggicas de mais um parmetro histrico de extrema relevncia, o parmetro do tempo. A
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Escola Amorim Lima compreendeu que, assim como os espaos da educao, o
tempo da educao tambm uma construo, baseada em pensamentos e ideais;
enriquecendo a discusso acerca da reinterpretao de tais parmetros e, assim,
pode desenvolver critrios totalmente novos.
[...] os calendrios, cronogramas e horrios escolares funcionam, ao mesmo tempo,
como espacializadores do tempo e como espacializadores epistemolgicos; eles
conformam (espacialmente) nossa percepo sobre o tempo e o nosso entendimento
sobre os nossos prprios saberes, alm de conformarem os usos que fazemos de
ambos tempo e saberes. Nesse sentido eles nos disciplinam [...] e nos ensinam a
ver o mundo como disciplinar; nesse caso, vale dizer: tanto um mundo cujos corpos
e aes so ou devem ser (naturalmente) disciplinares, quanto um mundo cujos
saberes so ou devem ser (naturalmente) disciplinares. O naturalmente corre por
conte do esquecimento de que tais dispositivos so invenes sociais [...]14
14. VEIGA-NETO, Alfredo. apud CABRAL, Stelamaris Rosa. Currculo: tempo e espao na escola.
In Revista Cientfica SER - Saber, Educao e Reflexo, Agudos/SP, v.1, n.1, Jan-Jun/2008
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3.3.2. ESTRUTURAO PEDAGGICA Ainda no ano de 2005, a Escola passou a desenvolver seu novo Plano Poltico Pedaggico, a fim de realizar a organizao e
formalizao administrativa dos princpios, posturas e atribuies da nova Escola. Assim, um pai voluntrio responsabilizou-se pela
redao preliminar de um Plano Pedaggico e um Regulamento Interno1. Esses textos foram discutidos e modificados coletivamente
no Conselho da Escola e aprovados em reunio extraordinria neste mesmo ano.
O Regulamento Interno pretende, em sua prpria definio Explicitar as diversas instncias de poder que compem
o coletivo da escola, organizando-as no sentido da melhor implantao do Projeto Pedaggico e do mais harmnico e eficaz
funcionamento da escola. Assim, definem-se as atribuies e composio2 do Conselho da Escola (instncia mxima), do Conselho
Pedaggico, do Conselho de Gesto Financeira, da Assembleia de alunos e dos Grupos de Trabalho de Gesto Compartilhada. Apesar
de no estar includa neste Regulamento, a Assembleia de pais outra instncia de enorme relevncia s atividades desenvolvidas na
Escola.
Os dispositivos criados pela reestruturao pedaggica pautam-se em dois princpios essenciais, o conhecimento e a
1. O Plano Poltico Pedaggico e Regulamento Interno da Escola Desembargador Amorim Lima podem ser encontrados no endereo eletrnico da
escola (http://amorimlima.org.br/) e consta em anexo neste caderno.
2. As atribuies e composio dessas instncias administrativas podem ser consultadas em http://amorimlima.org.br/
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convivncia. Deste modo, a produo de conhecimento estruturada pelos Roteiros de Pesquisa, pelo Plano de Estudos, pelas fichas de finalizao e de
auto-avaliao. J a construo dessa convivncia democrtica trabalhada por meio do prprio carter dos espaos da Escola (Salo e demais reas de
convivncia, sendo quase todos os seus espaos de apropriao coletiva), da Carta de Princpios3, das rodas de conversa, das Assembleias e dos Grupos de
Responsabilidades. O dispositivo estruturador desses princpios e paramtrico do Projeto Pedaggico a denominada Tutoria.
A ROTEIROS DE PESQUISA | EIXOS TEMTICOS Os Roteiros de Pesquisa so os marcadores curriculares do Projeto. por meio deles que as pesquisas so desenvolvidas e os contedos referenciais so estudados; garantindo a coerncia do Projeto com o propugnado na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Brasileira (LDB).
No sentido de aumentar a implicao dos alunos no processo de aprendizagem, melhor favorecer o desenvolvimento de seus graus de autonomia e
ainda, no sentido de melhor adequar o currculo objetivo aos ritmos e predisposies individuais, o Projeto privilegia o trabalho de pesquisa. A aula expositiva
deixa de ser o instrumento preferencial de transmisso e aquisio de saber, passando a ser um recurso utilizado pontualmente: 1) seja nos momentos em
que o grau de autonomia no permita, ainda, a vinculao a um projeto de pesquisa; 2) seja nos momentos em que os educadores entendam que uma
explanao possibilite um avano no processo, esgotados todos os outros recursos; e 3) seja, finalmente, nas ocasies em que caractersticas momentneas
3. A Carta de Princpios da Escola Desembargador Amorim Lima pode ser encontrados no endereo eletrnico da escola (http://amorimlima.org.br/) e consta em anexo neste
caderno.
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do Projeto em implantao no permitam adequar a prtica pedaggica aos princpios que a fundamentam.
O trabalho de pesquisa norteado por Roteiros Temticos de Pesquisa, concebidos segundo a Teoria dialgica da linguagem
do Crculo de Bakhtin, e apoiado nos livros didticos e paradidticos, num contexto predominantemente grupal. Apesar de usar tais
livros de forma particular e no sequencial, privilegiando uma transversalidade temtica, e apesar de no se restringir a eles, o Projeto
reconhece o Programa Nacional do Livro Didtico como uma outra sua importante base prtica e conceitual, alm da sustentao em
uma Poltica Pblica Federal.4
Inicialmente, as atividades eram elaboradas dia aps dia pelos educadores, oficiais e voluntrios, com o intuito de,
simultaneamente, dar conta dos contedos previstos para aquelas sries do Ensino Fundamental e investigar as possibilidades da
nova abordagem educativa. Desse modo, a princpio, a estrutura de pesquisa baseava-se essencialmente na estipulao de objetivos
a serem buscados durantes o estudo do dia, buscando uma aproximao com a metodologia desenvolvida na Escola da Ponte. Neste
momento, havia ainda bastante dificuldade em atrelar adequadamente a nova pedagogia ao cumprimento dos tais contedos
estipulados, o que gerava questionamentos de diversas partes.
4. Projeto Poltico Pedaggico EMEF Amorim Lima Artigo III Das bases conceituais do Projeto, da aprendizagem e do currculo, 2005 (em 7. Anexos,
item B)
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Os primeiros Roteiros de Pesquisa foram desenvolvidos pelo Professor Doutor Geraldo Tadeu Souza5, cujo interesse em contribuir com essa
construo o levou a estudar e elaborar todo o material de pesquisa piloto para o Projeto Amorim Lima como objeto de seu ps-doutorado.
Geraldo buscou ampliar seu conhecimento acerca do carter e contedo dos livros didticos distribudos pelo Plano Nacional do Livro Didtico
(PNLD)6. Seu pressuposto era o de que havia uma quantidade expressiva de recurso financeiro e material sendo desperdiado na atitude de simples
desconsiderao precipitada dos livros distribudos por essa poltica pblica. Fato constatado em diversas escolas da rede pblica, segundo seu depoimento.
A PNLD prov cada aluno matriculado no ensino fundamental da rede pblica de um livro didtico das seguintes reas do conhecimento: portugus,
matemtica, cincias, histria e geografia. Alm disso, os estudantes do primeiro ano recebem uma cartilha de alfabetizao, na qual elaboram suas atividades.
(PAIER, 2009: 59). Segundo Simone, importante destacar que cada escola tem total autonomia para escolher os livros que melhor se adquam ao perfil de
5. Geraldo Tadeu Souza possui graduao em Lingustica pela Universidade de So Paulo (1992), mestrado (1997) e doutorado em Lingustica pela Universidade de So Paulo
(2002). Tem experincia na rea de Lingustica, com nfase em Teoria Dialgica da Linguagem do Crculo de Bakhtin. Foi assessor curricular da EMEF Desembargador Amorim
Lima, onde desenvolveu um projeto de reestruturao curricular baseado em Roteiros de Pesquisa. Atualmente, professor adjunto da Universidade Federal de So Carlos -
campus Sorocaba. Alm de ser pai de alunos da Escola Amorim Lima.
6. No meu doutorado eu trabalhei com a obra do Bakthin, que trabalha com a teoria dialgica da linguagem que permeia os Parmetros Curriculares Nacionais, ento eu
estava um pouco envolvido, tambm, com esse processo do programa nacional do livro didtico, das avaliaes, e estudando e em grupo de pesquisa que trabalhava com
essas coisas (trecho de entrevista com Geraldo Souza apud PAIER, 2009: 61)
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sua comunidade e ao seu projeto pedaggico dentre aqueles que compem o guia de livros didticos fornecidos pelo MEC, e tem a responsabilidade de zelar
por eles, visto que devem ser utilizados por trs anos. (PAIER, 2009: 60).
Dado isso, Geraldo empenhou-se em indicar uma nova forma de apropriao do livro didtico, mais autnoma e rica. Procurou reagrupar os
contedos por temas e objetivos, possibilitando a escolha pelo estudante, de acordo com seu prprio ritmo, preferncias e interesses, sobre percurso de
estudo a ser seguido. O estudante precisa desenvolver todos os roteiros estipulados para cada ano do ensino fundamental, no entanto esse tempo no
pr-determinado pela durao do ano letivo e pode ser estendido caso haja necessidade.
Foram criados cerca de 18 roteiros de pesquisa para cada srie do Ensino Fundamental. Cada roteiro apresenta entre 12 e 30 objetivos que correspondem a
cada um dos contedos relacionados ao tema, indicando o livro de referncia e a pgina em que se encontra. Existe ainda um espao destinado avaliao
da cada objetivo que ser realizada pelo tutor ou qualquer um dos professores do salo de estudos. (PAIER, 2009: 62).
Dada a resignificao do tempo escolar trazida pela metodologia de trabalho com os Roteiros, a Escola recusa o uso do termo reprovao. Ainda
assim, o estigma da reprovao no foi superado, como explica Paier Embora alguns estudantes fiquem retidos tanto ao trmino do nvel I quanto do nvel
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II, a escola no utiliza o termo reprovao, procurando explicar aos ais e aos estudantes que no h reprovao na Amorim Lima7, porque os estudantes
no vo realizar novamente um trabalho j feito. Eles ficaro mais um ano naquele nvel de ensino para realizar trabalhos que ainda no fizeram, roteiros que
ficaram pendentes, porque precisam de um pouco mais de tempo para cumprir todo o trabalho. Esse discurso, embora revele uma preocupao da escola
com a autoestima dos estudantes, no consegue prevalecer sobre o peso que a cultura da reprovao exerce em nossa sociedade (PAIER, 2009: 67).
Em 2008, o trabalho com os Roteiros j est mais consolidado e so criadas, pelos educadores, as Fichas de Finalizao instrumento de avaliao dos
estudantes ao trmino de cada Roteiro. Alm disso, tambm h a organizao dos Roteiros por Eixos Temticos. Essa instncia possibilita que os estudantes
que estejam trabalhando em Roteiros de mesmo tema (independente dos grupos do Salo e anos de matrcula em que estejam inseridos) se encontrem
para discutir seus processos e dificuldades. Um cartaz, no qual cada estudante deve registrar o eixo e roteiro desenvolvidos naquela semana, fica afixado na
parede do Salo e usado como suporte ao planejamento de atividades afins pelo educador responsvel pelo eixo.
Diante da grande quantidade de roteiros existentes e do fato de todos estarem disponveis simultaneamente para os estudantes, impossvel que o
professor do eixo aborde todos os assuntos que esto em circulao no seu eixo a cada semana. A proposta , ento, que ele possa elaborar atividades que
7. L-se Limongi Alves ao invs de Amorim Lima, no texto original da dissertao de mestrado de Simone Paier. Por ser tambm uma educadora da escola, a pesquisadora
optou pela manuteno da privacidade e substituio do nome da escola, de seus colegas educadores e pais por nomes fictcios. Para este estudo, essa discrio no se
justifica, uma vez que ter como produto desta etapa um vdeo documentrio, o qual apresenta um registro de pessoas e espaos reais.
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desenvolvam a apropriao de conceitos fundamentais presentes naqueles roteiros que compem o eixo, para que os estudantes possam ir solidificando
seus conhecimentos e tendo condies mais adequadas para realizar os roteiros. Ou seja, o professor no ir acompanhar os estudantes na realizao dos
roteiros nesse momento do eixo temtico, mas procurar desenvolver habilidades e propiciar a sedimentao de conceitos que permitiro ao estudante
que melhor compreenda seu roteiro e o realize com mais qualidade e maior autonomia. Como os estudantes trocam de roteiros de acordo com seus ritmos
individuais, no h continuidade no grupo que freqenta um eixo. Alguns estudantes podem participar apenas uma semana, logo indo para outro eixo,
outros podem ficar vrias semanas seguidas realizando o mesmo roteiro ou trocando de roteiros que compem o mesmo eixo. Dessa forma, o professor no
pode estruturar um trabalho de continuidade. Cada dia de eixo deve conter propostas que se iniciem e se encerrem procurando abarcar algum conceito
fundamental ou o desenvolvimento de uma habilidade. O mesmo conceito ou habilidade deve ser retomado outras vezes a partir de outras propostas,
considerando que alguns estudantes esto participando pela primeira vez, enquanto outros j participaram vrias vezes. (PAIER, 2009: 74).
Os primeiros Roteiros de Pesquisa passam, atualmente, por um processo de reformulao. Ao longo dos ltimos anos, as discusses acerca de seus
desdobramentos pedaggicos foram constantes e imprescindveis ao seu aprimoramento. Foram discutidas e criticadas questes como a grande quantidade
de contedos e de carga de trabalho dos roteiros a serem realizados pelos estudantes, dificultando o seu real envolvimento nas demais atividades consideradas
importantes pela filosofia da Escola. Assim, os prximos Roteiros esto sendo desenvolvidos pela prpria equipe de educadores da Escola e sero baseados
em outra coleo de livros didticos.
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B PLANO DE ESTUDOS O Plano de estudos um instrumento valioso para o processo de construo da autonomia intelectual dos estudantes. desenvolvido quinzenalmente e os permite uma real apropriao de seu percurso escolar, das possibilidades e dificuldades nele envolvidas.
Neste Plano, os estudantes definem metas de estudo ou de convivncia a serem trabalhadas, durante cada semana ou quinzena. Essas metas so
desenvolvidas por cada estudante com o acompanhamento de seu tutor, o qual cumpre a funo de ajud-lo a elaborar seu planejamento e de acompanhar
seu desenvolvimento.
No plano de estudos, h ainda espao para o registro dirio das atividades desenvolvidas e dos conhecimentos por meio delas adquiridos, momento
que possibilita e estimula a reflexo cotidiana dos estudantes acerca de seu prprio processo de estudo e pesquisa. O tutor, junto a seu grupo de tutoria,
tambm pode estipular metas a serem buscadas coletivamente, seja para a preparao de apresentaes e materiais para as diversas festas ou trabalhos da
escola, seja para a prpria convivncia daquele grupo. Ao trmino da quinzena, os estudantes realizam uma auto-avaliao. Nela, buscam criticar seu prprio
processo, avaliando o cumprimento ou no das metas estabelecidas, o produto de seu trabalho e sua capacidade de gerir adequadamente seu tempo de
trabalho.
A gesto do tempo um aprendizado muito importante que no est no currculo da escola tradicional que conhecemos e um aspecto fundamental
para que o sujeito possa assumir autonomamente a organizao de seu trabalho. Enquanto existir um professor a dizer para a turma o que deve ser feito a
cada momento, as crianas no podero se apropriar da gesto de suas atividades. [...] Esta auto-avaliao, que fica registrada no prprio plano de estudos,
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juntamente com a avaliao do tutor, vai dando conscincia ao estudante de qual a sua condio de aprendizagem e em quais aspectos deve dirigir seus
esforos para aprimorar seu trabalho. Esse procedimento permite que o estudante realmente se torne sujeito de seu processo de aprendizagem, retirando a
conduo do trabalho das mos do professor, e possibilitando uma responsabilidade compartilhada entre tutor e estudante. (PAIER, 2009: 77)
O Plano de estudos utilizado, por todos os alunos, desde o segundo ano escolar. No entanto, desde o primeiro ano, os educadores renem-se com
os pequenos, no incio e trmino do perodo, para a discusso do Plano do dia. De forma que, desde esse momento, cada um deles j estimulado a tonar-se
consciente acerca do processo individual e do grupo, bem como dos compromissos entre eles estabelecidos.
C AVALIAO No plano pedaggico desta escola, a avaliao se d ao longo do tempo. Ela visa o percurso, no a capacidade de armazenamento ou reproduo de contedos em um espao e tempo pr-determinados. tambm uma reinterpretao do tempo, na medida em que compreende tempos plurais de
processos e agentes tambm plurais.
A primeira instncia avaliativa a correo dos objetivos desenvolvidos ao longo de um roteiro. Cabe ao estudante julgar o momento dessa
avaliao, assim que considerar que todos os objetivos foram cumpridos adequadamente. Qualquer um dos educadores do Salo de pesquisa pode realizar
essa avaliao, ponderando acerca do trabalho desenvolvido e requerendo correes, quando necessrio.
Ao final de cada roteiro, quando todos os objetivos tiverem sido positivamente avaliados, ocorre a segunda instncia avaliativa. Nesta instncia, cada
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estudante deve elaborar um portflio, cujo processo e correo devero ser acompanhados por seu tutor. Neste texto, os estudantes devem escrever sobre
o tema do roteiro finalizado, evidenciando os conhecimentos adquiridos e estabelecendo possveis relaes entre eles.
Alm disso, h tambm a Ficha de Finalizao, a qual deve ser realizada individualmente pelo estudante. Cada educador da escola responsvel por
determinados Roteiros de pesquisa e pela elaborao das Fichas de Finalizao correspondentes. Essa uma das atividades a serem realizadas durante o dia
de tutoria, de modo que o tutor pode acompanhar o desenvolvimento individual dessa avaliao e perceber eventuais dvidas e dificuldades.
Os tutores, baseados na vivncia com cada estudante e fazendo uso desses trs instrumentos avaliativos mencionados, elaboram um relatrio
a ser entregue aos pais a cada fim de semestre. Neste so mencionados tambm as atividades desenvolvidas no projeto de tutoria e uma auto-avaliao
desenvolvida pelo filho.
Nesse relatrio, constam ainda, observaes sobre o processo de autonomia do estudante, sobre sua organizao, seu relacionamento com os colegas e
adultos, sua apropriao da Carta de Princpios, e sua participao nas oficinas. (PAIER, 2009: 80)
D TUTORIA Alm do acompanhamento grupal e individual em sala, so os alunos acompanhados mais de perto por um tutor que, ao ater-se a um grupo menor de alunos, preferencialmente durante todo o perodo de formao escolar, pode orient-los com olhar mais atento e agudo, indicando e corrigindo rumos.
Sendo a busca da autonomia um valor matricial do Projeto, e somente podendo ela fundar-se numa cada vez mais aprofundada auto-avaliao, caber
ao espao da tutoria auxiliar os professores a implantar e fomentar a auto-avaliao, numa gradual tomada de conscincia, por parte dos alunos, de suas
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capacidades e de suas dificuldades.8
A tutoria um instrumento imprescindvel ao desenvolvimento do Projeto Pedaggico Amorim Lima. uma instncia estruturadora do processo
de amadurecimento dos estudantes, de sujeitos heternomos a sujeitos autnomos, como conceituado por Piajet (1994). No espao de pesquisa do
Salo, a relao educador-estudante condizente atividade independente de pesquisa e ao estmulo a essa independncia, mas no permite uma maior
aproximao, tambm essencial, dos educadores com cada um dos estudantes.
A formao dos grupos de tutoria feita pelos prprios educadores, os quais devem buscar uma congregao sempre mista e heterognea de
estudantes. A reunio desse grupo ocorre durante todo o perodo (manh ou tarde) de um dia, semanalmente.
importante que nesta instncia, alm do fortalecimento da relao educador-educando, seja estabelecida uma escala diversa de relaes entre os
prprios educandos. So instncias coletivas diferentes, de sutis variaes de escala, as quais contribuem para a percepo do sujeito e de sua relao social
em diferentes momentos. No Salo de pesquisa, h a insero em um grande grupo, 100 alunos aproximadamente; e h, simultaneamente, a insero em
um grupo menor, a equipe de pesquisa, de seis alunos aproximadamente. Na tutoria, h, assim, uma escala intermediria, um grupo de trabalho de cerca de
20 estudantes sob a orientao de um educador. importante dizer que todo tutor tambm um educador de todos os demais estudantes da escola.
Os estudantes passam a integrar uma tutoria a partir do Ciclo I, no terceiro ano escolar. princpio do Projeto que o tutor acompanhe o mesmo
estudante durante todo o Ciclo I; e outro tutor o acompanhe durante todo o Ciclo II. Devido grande rotatividade de educadores nas escolas pblicas, nem
8. Projeto Poltico Pedaggico EMEF Amorim Lima Artigo III Das bases conceituais do Projeto, da aprendizagem e do currculo, 2005 (no item 7.2)
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sempre esse princpio seguido.
A tutoria tambm um espao-tempo de maior autonomia para o docente, no qual possvel a proposio de atividades diferentes das realizadas
nas demais instncias coletivas e que sejam consideradas mais adequadas, ou mesmo necessrias, para aquele grupo. Como relata Paier a tutoria tambm