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1 PROMOVENDO A COMPREENSÃO DA CONSTRUÇÃO E PROPRIEDADES DE ÂNGULOS: UM EXEMPLO NO 4.º ANO Carlos Miguel Ribeiro (1) , Fernanda Joaquim (2) (1) Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve (2) Escola do 1.º Ciclo de Lagoa [email protected] , [email protected] Resumo Por forma a que os alunos possam, desde cedo, tomar contacto com as mais diversificadas situações e experiências, e se vão apercebendo das inter-relações existentes entre os diversos conteúdos e o modo como estes evoluem ao longo do percurso escolar é importante facultar-lhes oportunidades de vivenciarem, na primeira pessoa, situações novas em que são confrontados com verdadeiros problemas que conduzam, ao longo do processo de resolução, a um conhecimento fundamentado dos diversos temas. A Geometria é uma das áreas em que os alunos demonstram dificuldades, pelo que é ainda mais importante permitir-lhes uma exploração de distintas situações que lhes permitam criar e explicar distintas representações que lhes sejam efectivamente úteis e possuam, para si, significado. Neste texto iremos apresentar e discutir algumas tarefas e situações, propostas a uma turma do 4.º ano, preparadas com o intuito de permitir aos alunos obter um conhecimento mais amplo sobre construção e propriedades de ângulos, de modo a que, mais tarde, por ter sido um tema verdadeiramente compreendido, não sintam dificuldades aquando da sua abordagem formal. Focaremos a sequência de tarefas que lhes foram propostas e a sua importância na desmistificação de que, por exemplo, existem diferentes ângulos (convexos) entre duas semi-rectas, dependendo do comprimento que consideramos para os lados, ou que, entre três raios de uma circunferência apenas existem dois ângulos. Palavras-chave: Propriedades de ângulos; 1.º Ciclo; Sequência de tarefas Introdução O tipo de experiências que facultamos aos nossos alunos permitem-lhes obter uma determinada visão da matemática e do seu ensino, bem como da forma como os conteúdos evoluem ao longo da escolaridade e se inter-relacionam. Uma vez que a Geometria é, tradicionalmente, uma das áreas em que os alunos demonstram grandes dificuldades (independentemente do nível de escolaridade a que nos refiramos) é por demais importante facultarmos aos jovens alunos de hoje a oportunidade de poderem colmatar essas lacunas já identificadas. Cumpre-nos assim preparar tarefas que lhes

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PROMOVENDO A COMPREENSÃO DA CONSTRUÇÃO E

PROPRIEDADES DE ÂNGULOS: UM EXEMPLO NO 4.º ANO

Carlos Miguel Ribeiro(1), Fernanda Joaquim(2) (1) Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve

(2) Escola do 1.º Ciclo de Lagoa

[email protected], [email protected]

Resumo

Por forma a que os alunos possam, desde cedo, tomar contacto com as mais diversificadas situações e experiências, e se vão apercebendo das inter-relações existentes entre os diversos conteúdos e o modo como estes evoluem ao longo do percurso escolar é importante facultar-lhes oportunidades de vivenciarem, na primeira pessoa, situações novas em que são confrontados com verdadeiros problemas que conduzam, ao longo do processo de resolução, a um conhecimento fundamentado dos diversos temas.

A Geometria é uma das áreas em que os alunos demonstram dificuldades, pelo que é ainda mais importante permitir-lhes uma exploração de distintas situações que lhes permitam criar e explicar distintas representações que lhes sejam efectivamente úteis e possuam, para si, significado.

Neste texto iremos apresentar e discutir algumas tarefas e situações, propostas a uma turma do 4.º ano, preparadas com o intuito de permitir aos alunos obter um conhecimento mais amplo sobre construção e propriedades de ângulos, de modo a que, mais tarde, por ter sido um tema verdadeiramente compreendido, não sintam dificuldades aquando da sua abordagem formal. Focaremos a sequência de tarefas que lhes foram propostas e a sua importância na desmistificação de que, por exemplo, existem diferentes ângulos (convexos) entre duas semi-rectas, dependendo do comprimento que consideramos para os lados, ou que, entre três raios de uma circunferência apenas existem dois ângulos.

Palavras-chave: Propriedades de ângulos; 1.º Ciclo; Sequência de tarefas

Introdução

O tipo de experiências que facultamos aos nossos alunos permitem-lhes obter uma

determinada visão da matemática e do seu ensino, bem como da forma como os

conteúdos evoluem ao longo da escolaridade e se inter-relacionam. Uma vez que a

Geometria é, tradicionalmente, uma das áreas em que os alunos demonstram grandes

dificuldades (independentemente do nível de escolaridade a que nos refiramos) é por

demais importante facultarmos aos jovens alunos de hoje a oportunidade de poderem

colmatar essas lacunas já identificadas. Cumpre-nos assim preparar tarefas que lhes

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permitam a exploração de distintas situações com o intuito de poderem criar e explicar

distintas representações que lhes sejam efectivamente úteis e possuam significado.

É, assim, importante preparar tarefas que levem os alunos a tomar contacto com

distintas perspectivas sobre um mesmo tema/conteúdo, de modo a, ao longo das

actividades, as aprendizagens que se efectivam sejam da responsabilidade de todos os

intervenientes (e não apenas do professor), ocorrendo, portanto, a consequente

negociação de significados matemáticos.

Na Organização Curricular e Programas do 1.º Ciclo (DEB, 1991a) é referido, no Bloco

2 – Forma e Espaço, que a iniciação à geometria, ao longo dos quatro anos do 1.º

Ciclo, deve centrar-se nas actividades de: manipular; explorar; construir; transformar;

e relacionar (p. 178). Inserido neste bloco, encontram-se os conteúdos programáticos

relacionados com o reconhecimento de ângulos em figuras geométricas planas e nos

objectos, bem como a comparação de amplitude de ângulos, reconhecendo ângulos

rectos, agudos e obtusos (p. 184). O estudo dos ângulos e do seu traçado, em termos

programáticos, encontra-se circunscrito à identificação e comparação das amplitudes

dos três tipos de ângulos considerados fundamentais.

Por outro lado, no Plano de Organização do Ensino Básico referente ao 2.º Ciclo

(DGEBS, 1991), no tema da Geometria, e no que se refere em concreto ao estudo dos

ângulos, apenas no 5.º ano é feita alguma referência, salientando-se que os alunos

devem resolver problemas de traçado utilizando instrumentos de desenho e medição (p.

13), traçando ângulos rectos, agudos, obtusos e rasos, bem como medir, em graus, a

amplitude de um ângulo (p. 25).

Os alunos de hoje são substancialmente diferentes dos da altura em que as ainda actuais

Orientações Programáticas foram redigidas e, uma vez que consideramos que os alunos

devem ser confrontados, desde cedo, com o mais vasto e rico conjunto de situações de

modo a permitir-lhes construírem um efectivo conhecimento matemático – tanto dos

conteúdos como da sua natureza e relações –, preparámos um conjunto de tarefas com o

objectivo de verificar até que ponto/profundidade alunos de uma turma do 4.º ano do 1.º

Ciclo poderiam abordar o estudo dos ângulos e sua identificação. As tarefas foram

preparadas com o intuito de que os alunos, ao longo do percurso de resolução, fossem

elaborando e cimentando os conhecimentos correspondentes ao Ciclo em que se

encontram e, por se ter prestado a isso, procurámos explorar também conceitos que só

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serão abordados, programaticamente, de forma explícita, no 3.º Ciclo (DEB, 1991b),

como sejam os de ângulos internos e externos, côncavos e convexos.

Contexto, objectivo e material utilizado

As tarefas aqui apresentadas foram desenvolvidas numa turma do 4.º ano de

escolaridade composta por 20 alunos de diversas nacionalidades que a professora

acompanhou desde o primeiro ano.

Os alunos haviam já trabalhado, ao longo dos anos anteriores as noções de recta,

semi-recta, segmento de recta e circunferência, sendo um dos objectivos primordiais

destas tarefas levá-los a construir e cimentar a noção de ângulo. Parte delas e da

abordagem ao estudo dos ângulos e suas propriedades baseou-se na construção de uma

circunferência e na marcação de diferentes raios (um pouco à luz do que viria a aparecer

posteriormente na reestruturação do Programa de Matemática do Ensino Básico (Ponte

et al., 2007)).

As actividades (três) foram desenvolvidas ao longo de três dias. Esta distribuição foi

efectuada com o intuito de permitir que os conceitos ficassem bem consolidados dado

que serão a base para outras aprendizagens complexas. Sendo a geometria uma das

áreas em que os alunos demonstram alguma dificuldade, é ainda mais importante

permitir-lhes uma exploração das múltiplas situações de modo a encorajá-los a criar e

explicar diferentes representações que lhes sejam efectivamente úteis e que sejam

percebidas como significativas de modo a que, tal como referem Doerr & English

(2006), não se limitem a considerar como suas as representações do professor.

Iremos, aqui, referir apenas uma das actividades (a primeira), que tinha por objectivos

os expressos explicitamente na Organização Curricular e Programas do 1.º Ciclo (DEB,

1991a): levar os alunos à compreensão da noção de ângulo; comparar e classificar

ângulos (recto, agudo, obtuso e raso); identificar ângulos em figuras geométricas e

desenvolver a linguagem matemática. Porém, durante o decurso da aula estes objectivos

foram ampliados, uma vez que os comentários dos alunos e discussões ocorridas

permitiram à professora abordar outros conceitos que poderiam ser considerados mais

complexos (e.g. ângulos internos/externos, convexidade,…)

Para esta primeira tarefa foi necessário apenas o material suficiente para representar, no

chão, dois segmentos de recta justapostos (representativos de duas semi-rectas) e o

movimento de rotação de um deles em relação a um dos seus extremos (marcando uma

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circunferência). Necessitou-se, assim, de um fio resistente, um prego e giz de várias

cores.

O desenrolar da actividade

Antes de propor a tarefa propriamente dita, a professora revê alguns conceitos básicos,

como sejam os de linhas curvas (abertas e fechadas), levando os alunos a identificar

claramente a circunferência; de recta, semi-recta e segmento de recta, bem como as

propriedades da circunferência (centro, raio, diâmetro e instrumentos para o desenho).

Alguns alunos possuem, no entanto, a ideia de que uma linha terá de ser uma

circunferência, talvez por ser o tipo de linha que mais habituados estão a nomear. A

professora desenha no quadro uma linha curva aberta.

Professora: – Acham que isto que acabei de desenhar é uma linha? Alunos: – Não! Professora: – (Desenha uma circunferência) E esta, o que é? Aluno: – É uma circunferência. Professora: – E uma circunferência o que é? Bruno: – É uma linha curva. Professora: – Então e a que eu desenhei primeiro? Pedro: – Essa também é uma linha curva. Professora: – Então se ambas são linhas curvas, qual é a diferença entre elas? Bruno: – É que uma é uma linha curva fechada e a outra é uma linha curva aberta. Mónica: – Pois é, a circunferência é uma superfície curva. Professora: – Ouviram o que disse a Mónica? Concordam com ela? Alunos: – Sim. Catarina: – Não, a linha é só o que está à volta! A superfície é plana. É o espaço dentro da circunferência.

A professora utiliza a comunicação como recurso para a especificação entre linhas

curvas e circunferência, promovendo a negociação de significados matemáticos e

implicando os alunos na informação que circula na sala e nas aprendizagens comuns

que se realizam. O facto de não efectuar questões fechadas (Ainley, 1988), mas sim

verdadeiras questões (Tomás Ferreira, 2005) permite ainda, nesse processo, a distinção

entre círculo e circunferência, tal como se constata pelo comentário da Catarina (apesar

de não ser formalmente correcto).

Após estas actividades iniciais com o intuito de rever e clarificar alguns conteúdos base,

deu-se início à tarefa propriamente dita. Esta consistia na construção de uma

circunferência, no centro da sala, dados o centro e a medida do raio, sendo os alunos os

protagonistas de tal construção. A marcação da circunferência iniciou-se com a escolha

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Figura 1

do seu centro e raio (escolhendo os alunos a medida do fio que representava o raio e

marcando a posição inicial deste). Após a representação da circunferência no chão,

marcou-se uma outra posição do raio, distinta da inicial – prolongando os segmentos de

recta de forma a representarem semi-rectas, discutindo com os alunos as propriedades

subjacentes a cada uma dessas entidades geométricas. A partir dessa representação foi

abordado o conceito de ângulo, de amplitude (entendida como o espaço que se encontra

entre as duas semi-rectas) e de vértice.

A professora questiona os alunos sobre como poderiam representar uma circunferência

no chão sem recurso ao compasso, efectuando a ligação com a marcação da

circunferência de fronteira do círculo central de um

campo de futebol.

Depois de alguma discussão de processos e ideias dos

alunos, chegam à conclusão de que necessitam de

algo que lhes sirva para a medida do raio para depois

“andarem à volta”. Dois alunos (Bohdan e Mayruska)

exemplificam, no chão da sala, a construção de uma

circunferência, utilizando esse processo.

Todos os alunos se mantêm muito atentos ao que se está passar, visto tratar-se de algo

novo. Os alunos constroem os seus próprios conhecimentos, tomando parte activa no

processo de aprendizagem. Assim, à medida que os dois alunos vão desenhando a

circunferência, os restantes colegas fornecem algumas recomendações para que fique

bem feita (e.g. Mayruska: “Tens de esticar bem o fio”; Bohdan: “Deixaste o prego

deslizar, assim a linha não vai bater certo e a circunferência fica mal desenhada”…).

Concluída a circunferência, é marcado um seu raio e questionam-se os alunos sobre o

que foi necessário fazer para que o desenho da mesma ficasse correcto, ao que o Vova

respondeu: Deu uma volta completa! Com o objectivo de introduzir a noção de ângulo a

professora continua o diálogo:

Professora: – Agora a Vera vai movimentar-se um pouco com o giz e o Fábio vai marcar o “novo” raio. O que é que este desenho vos faz lembrar? Alunos: – Pizza, queijo… Professora: – Quem sabe o que é este espaço que vai desta linha àquela linha? Catarina: – É um ângulo.

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Professora: – E o que é um ângulo? Mayruska: – É o espaço que vai desde o biquinho até à ponta. Professora: – Estão de acordo? Pedro: – Não! É entre as duas linhas.

Neste momento, os alunos expõem as suas ideias respeitando-se mutuamente, de tal

modo que todos podem dizer o que pensam, manifestando a sua faceta crítica

relativamente às respostas apresentadas. A discussão leva a uma consciencialização e

correcção por parte dos próprios alunos e, por ser originária nos seus próprios

conhecimentos, torna-a mais profícua, pois apercebem-se de que algo que consideravam

correcto efectivamente não o é, verificando-se uma adaptação/actualização nos seus

próprios conhecimentos já que foram confrontados com novas situações. Através dessa

confrontação, há uma adaptação que permite que os novos conhecimentos se encaixem

nos que já possuem. Estas adaptações, por serem efectuadas a partir de situações e

discussões geradas pelos próprios alunos permitirão (pelo menos assim se espera) que

as aprendizagens se realizem proficuamente. A professora corrige também os termos

utilizados pelos alunos: biquinho versus vértice.

De forma a consolidar as ideias emergentes das discussões, os alunos identificaram

ângulos em vários objectos – cadernos, paredes, azulejos, janelas… (tal como se

encontra explícito na Organização Curricular e Programas (DEB, 1991a) que deve

ocorrer), para poderem também apropriar-se de diferentes representações de um mesmo

conceito.

Porém, na circunferência existem ainda algumas dúvidas relativamente aos ângulos que

se encontram delimitados, indicando uma das alunas como ângulo o espaço entre a linha

da circunferência e um dos segmentos de recta (Figura 2).

Um outro aluno (Vova), apesar de ter anteriormente identificado correctamente os

ângulos nos objectos, considera como um ângulo diferente apenas uma pequena porção

do espaço compreendido entre metade dos dois segmentos de recta representados

(Figura 3). Houve ainda um outro caso apresentado por uma aluna que considerava

Figura 4 Figura 3 Figura 2

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como ângulos diferentes, apenas pequenas porções dos lados do ângulo, pelo que nessa

situação a Figura 4 representava um ângulo distinto de todos os outros.

É importante desmistificar a ideia da existência de diferentes ângulos (convexos) entre

duas semi-rectas, no caso, segmentos de recta, dependendo do local (mais próximo ou

afastado do vértice) em que se representa a marca de ângulo pois esta continua a ser,

ainda, uma falha de conhecimentos que podemos encontrar em alunos desde o 1.º Ciclo

até ao nível universitário.1 Essa desmistificação apenas será possível se lhes forem

facultadas as oportunidades que os conduzam a uma consciencialização desse facto.

Por este motivo, será importante dar espaço aos alunos, “perdendo” algum tempo, aqui,

para que possam construir os seus conhecimentos, expondo as suas dúvidas e sugerindo

novas situações, pois esse tempo será expectavelmente “ganho”, mais tarde, mesmo que

não por esta professora.

De forma a explorar a identificação e propriedades dos ângulos, a professora incentiva

os alunos a darem o seu contributo, justificando-o matematicamente. Foram assim

surgindo outras hipóteses de ângulos fornecidas pelos alunos, mas considerando apenas

um dos lados do ângulo definido, representando alguns, inclusivamente, novos

raios para definirem os “seus” ângulos. Para auxiliar os

alunos na identificação de “outro” ângulo, a professora

pinta de verde o ângulo que os alunos tinham identificado

(Cf. Figura 6). Para simplificar, considera apenas os

segmentos de rectas dos raios e não as semi-rectas, pois

assume que os alunos já entenderam que se considera que se

prolongam.

Professora (Indica a parte branca): – Será que isto aqui não fica entre estas duas linhas? Nicoleta: – Não, fica de fora. Professora: – Então o que é um ângulo? Alunos: – É o que fica entre duas semi-rectas… Professora (indica as duas semi-rectas): – Este espaço que vocês dizem que é de fora, também não fica entre estas semi-rectas? Alunos: – Fica! Professora: – Então quantos ângulos temos formados por estes dois raios? Bohdan: – Temos dois. O de dentro e o de fora.

1 Muitos dos alunos da Unidade Curricular de Geometria e Medida, da Licenciatura em Educação Básica – futuros professores dos actuais Pré-Escolar, 1.º e/ou 2.º Ciclos quando confrontados com esta situação responderam de forma similar ao que se encontra representado nas figuras 3 e 4.

Figura 5

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Figura 6

Desta forma, os alunos concluíram que entre dois quaisquer raios se podem identificar

sempre dois ângulos, o côncavo e o convexo, embora lhes atribuam os nomes “de

dentro” e “de fora”. A correcção da linguagem matemática foi efectuada, neste

momento, oralmente.

Uma vez que se pretendia também com esta actividade definir e identificar diferentes

ângulos (sem abordar a sua classificação), a professora levou ou alunos a marcarem na

circunferência representada no chão um novo raio (ficando assim com 3) e pediu aos

alunos que indicassem os diferentes ângulos que conseguiam identificar.

De modo a sistematizar, de forma mais clara, os

contributos dos alunos, os registos foram sendo efectuados

no quadro, discutindo com todo o grupo, a cada passo, para

que ocorresse uma verdadeira negociação de significados

em que todos os alunos participam e discutem nas

aprendizagens do grupo, sendo também responsáveis por elas.

Após uma viva discussão sobre como marcar diferentes ângulos e a validação, ou não,

pelos colegas, da marcação do “novo” ângulo que cada um efectuava, e depois de terem

sido marcados cinco dos ângulos existentes (Figura 7), a Catarina, que anteriormente

ainda não tinha bem definido o conceito de ângulo, julgando que com apenas metade de

um dos lados do ângulo se obtinha um outro diferente, vai ao quadro e refere:

Catarina: – Mas ainda podemos marcar outro ângulo, [assinala com o dedo toda a circunferência iniciando num dos raios] pode ser tudo lá dentro!

Esta observação da Catarina permitiu que a professora introduzisse a noção de ângulo

giro e nulo, o que suscitou, por parte os alunos, diversas questões relativamente à forma

como diferenciar os ângulos indicados (Catarina: – Professora, há bocado disse que

aquele ângulo tem 0º, como sabemos?). Estas noções não tinham sido contempladas nos

objectivos para a aula, até porque apenas são parte integrante do programa do 2.º/3.º

Figura 7 Figura 8

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Ciclos porém, uma vez que surgiu do decurso da mesma optámos por a explorar,

também por considerarmos que quanto mais ricas forem as experiências facultadas aos

alunos, um mais bem fundamentado conhecimento estaremos a ajudar a construir.

Após uma reflexão sobre o que tinha sido realizado um dos alunos vai ao quadro e

pergunta:

Fábio (Indica o vértice): – Como é que se chama isto? Professora: – Olhem, o Fábio perguntou como se chama o ponto onde se encontram os segmentos de recta que formam os ângulos. Alguém sabe? As: – Não! Fábio: – Eu não sei mas parece como nos quadrados e nos sólidos…

É de salientar que, propositadamente, ainda não tinha sido atribuída a nomenclatura

pois, ao longo do processo de ensino, pretende-se que sejam os alunos a levantar as

questões e a tentarem encontrar respostas, não cumprindo ao professor o papel

primordial no ensino. Apesar do desconhecimento da nomenclatura, este efectua um

paralelismo entre os conhecimentos que possui e os novos pois considera que existe

nesta situação alguma similitude com o ponto de encontro dos lados dos quadrados ou

as arestas dos sólidos. Através da exploração das propriedades das arestas dos sólidos

geométricos é fundamentado o paralelismo efectuado pelo aluno.

Alguns comentários finais

Inicialmente, esta aula tinha como objectivos compreender a noção de ângulo,

comparar, classificar e identificar ângulos (recto, agudo, obtuso e raso). Ao longo da

aula os alunos foram fazendo as suas próprias descobertas, mantendo-se mais motivados

e indo muito além do que tinha sido delineado inicialmente. À medida que iam

descobrindo novos ângulos, iam alimentado um diálogo que sempre que possível era

aproveitado para fomentar novas aprendizagens. Assim, os alunos sem se aperceberem

foram adquirindo sem dificuldades novas noções, algumas complexas. A facilidade com

que as aceitaram e entenderam deve-se ao facto de serem eles próprios a descobri-las, o

que facilitou a sua compreensão. Parece-nos que a maior dificuldade reside apenas na

nomenclatura que é constituída por palavras novas.

Certamente haverá quem seja tentado a criticar por se estar a apresentar, precocemente,

noções demasiado complexas. Não deixará de ter razão, se o professor se limitar a

apresentar essas noções/nomenclatura, e elas não emergirem do decurso das actividades

desenvolvidas pelos próprios alunos. Cabe ao professor aproveitar todas as conclusões,

dúvidas e observações dos alunos, por mais simples que pareçam, pois poderão ser o

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mote de importantes aquisições. Cabe também ao professor imaginar formas de

“desafiar” os alunos nem que para isso dê por si a fazer coisas que nunca imaginava

fazer, mas que no fim da aula se sinta cansado mas feliz por ver os resultados obtidos.

Pode haver quem pense que não é fácil conduzir uma turma nesta linha porque existe

um programa a cumprir e que, se nos pusermos com inovações/invenções e dermos

ouvidos a tudo o que os alunos dizem, perdemos o fio condutor da aula, correndo o

risco de não cumprir o plano traçado inicialmente. Porém, em particular nesta situação

aqui apresentada, podemos afirmar que os alunos, conjuntamente/paralelamente com os

conhecimentos do conteúdo, desenvolvem a comunicação e argumentação matemática,

demonstrando a importância destas ao longo do processo de construção de

conhecimento.

Trata-se de um trabalho muito extenuante para o professor na medida em que tem de

estar atento a tudo o que os alunos dizem e fazem para as tentar converter em situações

de aprendizagem. Contudo é muito gratificante ver a facilidade e alegria com que os

alunos vão progredindo, graças a aulas dinâmicas, apelativas e que “vão acontecendo”

sem um esquema rígido onde o professor é apenas um moderador e orientador.

Referências

Ainley, J. (1988). Perceptions of teachers' questioning styles. In A. Borbás (Ed.), Proceedings of the 12th Annual Meeting of the International group for the Psychology of Mathematics Education (pp. 92-99). Veszprém, Hungria.

Departamento de Educação Básica [DEB]. (1991a). Organização Curricular e Programas - Ensino Básico - 1.º Ciclo. Lisboa: Ministério da Educação.

Departamento de Educação Básica [DEB]. (1991b). Programa de Matemática Ensino Básico - 3.º Ciclo: Plano de Organização do Ensino-Aprendizagem (5.ª ed. Vol. II). Lisboa: Ministério da Educação.

Direcção Geral Ensino Básico e Secundário [DGEBS] (1991). Programa de Matemática Ensino Básico - 2.º Ciclo: Plano de Organização do Ensino-Aprendizagem (Vol. II). Lisboa: Ministério da Educação.

Doerr, H. M. & English, L. D. (2006). Middle grade teacher's learning through students engagement with modeling tasks. Journal of Mathematics Teacher Education, 9, 5-32.

Ponte, J. P., Serrazina, L., Guimarães, H., Breda, A., Guimarães, F., Sousa, H., Menezes, L., Martins, M. E. & Oliveira, P. (2007). Programa de Matemática do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação – DGIDC.

Tomás Ferreira, R. A. (2005). Portuguese student teacher's evolving teaching modes: A modified teacher development experience. Unpublished Doctoral Dissertation, Illinois State University, IL, USA.