provocaÇÃo e imaginaÇÃo: diálogos entre descrição e ...descrição e narração na literatura...

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IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 06-18, 2º. Sem. 2014 | 6 PROVOCAÇÃO E IMAGINAÇÃO: diálogos entre descrição e narração na literatura infantil Celia ABICALIL BELMIRO 1 RESUMO O livro ilustrado abarca uma variedade de propostas e tendências e indica a necessidade de aprofundar os estudos acerca dos modos de leitura desses livros de literatura infantil. As lacunas que os textos literários contêm convidam o leitor a recorrer aos seus conhecimentos prévios para dar-lhes sentido. Este artigo enfatiza a distinção entre enredo e discurso, para separar a voz do narrador e o ponto de vista literal, que seria o da criança. Explora ainda características discursivas encontradas em três livros de literatura infantil da produção brasileira, apontando o modo como propõem articulações entre o enredo e o discurso, com vistas à construção da competência estética dos leitores. Para isso, o texto pretende apresentar alguns graus de provocação que as descrições criam nas narrativas de livros ilustrados, convocando o leitor a se tornar sujeito da produção de sentidos, mais do que fazendo-o acompanhar simplesmente o enredo. Dois conceitos embasarão e darão apoio à análise: 1 ) ekphrasis, através do qual se propõe pensar a descrição e como ela se relaciona com a narração, seja de modo sutil ou explícito; 2 ) iconotexto, pelo qual é possível a passagem entre significantes de naturezas diferentes, linguístico e verbal. A esses dois conceitos é atribuída larga parcela da realização do efeito de expansão do texto (LOUVEL, 2006) que caracteriza as sequências descritivas e tem decorrências importantes para que a narrativa literária assuma contornos próprios, explore diferentes pontos de vista e traga a voz do narrador como instância discursiva. PALAVRAS-CHAVE: Livro ilustrado. Descrição. Narração. Iconotexto. ABSTRACT The picturebook comprises an array of proposals and trends, and points out the need of in-depth review studies about the reading modes of these children´s literature books. The gaps found in these literary texts invite the reader to resort to his/her previous knowledge so that they may acquire meaning. This paper enhances the distinction between plot and discourse, in order to distinguish the narrator´s voice and a literary point of view, which would be of the child. It also explores discursive features found in three children´s literature books made in Brazil, standing out the way they articulate between plot and discourse, with the aim of constructing readers´ esthetic competence. For this purpose, this paper intends to present some provocations created by the descriptions in picturebooks narratives, inviting the reader to become the subject of providing meaning, rather than simply making him/her follow the plot. Two concepts will provide ground and support for the analysis: 1º) Ekphrasis, through which we propose to think about the description and how it relates to the narrative, either subtly or explicitly; 2º) Iconotext, by means of which it is possible to allow the 1 Doutora em Educação, com Pós-doutorado pela University of Cambridge-UK, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, da Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação da Faculdade de Educação/UFMG. Organizadora das obras Livros e Telas e Onde está a literatura: seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras; coeditora do livro The Routledge Companion to International Children s Literature, da série Routledge Literature Companions. Autora de artigos e capítulos de livros sobre literatura infantil e mídia, e sobre livros ilustrados na contemporaneidade. Coordenadora de grupo de pesquisa sobre literatura infantil, especialmente livros ilustrados; membro do Grupo de Pesquisa do Letramento Literário – GPELL/CEALE-UFMG.

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IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 27, p. 06-18, 2º. Sem. 2014 | 6

PROVOCAÇÃO E IMAGINAÇÃO: diálogos entre descrição e narração na literatura infantil

Celia ABICALIL BELMIRO1

RESUMO O livro ilustrado abarca uma variedade de propostas e tendências e indica a necessidade de aprofundar os estudos acerca dos modos de leitura desses livros de literatura infantil. As lacunas que os textos literários contêm convidam o leitor a recorrer aos seus conhecimentos prévios para dar-lhes sentido. Este artigo enfatiza a distinção entre enredo e discurso, para separar a voz do narrador e o ponto de vista literal, que seria o da criança. Explora ainda características discursivas encontradas em três livros de literatura infantil da produção brasileira, apontando o modo como propõem articulações entre o enredo e o discurso, com vistas à construção da competência estética dos leitores. Para isso, o texto pretende apresentar alguns graus de provocação que as descrições criam nas narrativas de livros ilustrados, convocando o leitor a se tornar sujeito da produção de sentidos, mais do que fazendo-o acompanhar simplesmente o enredo. Dois conceitos embasarão e darão apoio à análise: 1°) ekphrasis, através do qual se propõe pensar a descrição e como ela se relaciona com a narração, seja de modo sutil ou explícito; 2°) iconotexto, pelo qual é possível a passagem entre significantes de naturezas diferentes, linguístico e verbal. A esses dois conceitos é atribuída larga parcela da realização do efeito de expansão do texto (LOUVEL, 2006) que caracteriza as sequências descritivas e tem decorrências importantes para que a narrativa literária assuma contornos próprios, explore diferentes pontos de vista e traga a voz do narrador como instância discursiva.

PALAVRAS-CHAVE: Livro ilustrado. Descrição. Narração. Iconotexto.

ABSTRACT The picturebook comprises an array of proposals and trends, and points out the need of in-depth review studies about the reading modes of these children´s literature books. The gaps found in these literary texts invite the reader to resort to his/her previous knowledge so that they may acquire meaning. This paper enhances the distinction between plot and discourse, in order to distinguish the narrator´s voice and a literary point of view, which would be of the child. It also explores discursive features found in three children´s literature books made in Brazil, standing out the way they articulate between plot and discourse, with the aim of constructing readers´ esthetic competence. For this purpose, this paper intends to present some provocations created by the descriptions in picturebooks narratives, inviting the reader to become the subject of providing meaning, rather than simply making him/her follow the plot. Two concepts will provide ground and support for the analysis: 1º) Ekphrasis, through which we propose to think about the description and how it relates to the narrative, either subtly or explicitly; 2º) Iconotext, by means of which it is possible to allow the

1 Doutora em Educação, com Pós-doutorado pela University of Cambridge-UK, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e

Escrita – CEALE, da Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social em Educação da Faculdade de Educação/UFMG. Organizadora das obras Livros e Telas e Onde está a literatura: seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras; coeditora do livro The Routledge Companion to International Children’s Literature, da série Routledge Literature Companions. Autora de artigos e capítulos de livros sobre literatura infantil e mídia, e sobre livros ilustrados na contemporaneidade. Coordenadora de grupo de pesquisa sobre literatura infantil, especialmente livros ilustrados; membro do Grupo de Pesquisa do Letramento Literário – GPELL/CEALE-UFMG.

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emergence of signifiers of different natures, either linguistic or pictorial. A large part of the accomplishment of the text expansion effect (LOUVEL, 2006) is attributed to these two concepts. This effect characterizes the descriptive sequences with important consequences to make literary narrative assume its distinct traits, explore different points of view and bring forth the narrator´s voice as a discursive instance.

KEY WORDS: Picturebook. Description. Narrative. Iconotext.

INTRODUÇÃO

Como a literatura pode tratar de temas relevantes para a sociedade sem perder o caráter literário que

constitui o seu texto? As produções culturais vêm propondo interfaces interessantes entre linguagens, sistemas

semióticos e mídias, de maneira a nos surpreender, a cada dia, com hibridizações e formas que não cabem

dentro de recortes teóricos que estamos habituados a considerar.

Um desses gêneros é o livro ilustrado, que abarca uma enorme variedade de propostas e tendências.

Não temos ainda, na língua portuguesa, um termo que contemple, por exemplo, uma obra cuja especificidade

só tenha significado se acolhermos duas linguagens, no mínimo, a verbal e a visual, para produzir narrativa.

Dessa forma, poderíamos dizer que a interdependência entre ambas é que constitui a natureza própria desse

gênero. Chamamos a tudo que contém imagens de livro ilustrado. Indo mais além, teríamos subdivisões que

alcançariam os livros de imagens ou livros-álbum, em que a narrativa é feita somente por imagens.

A produção brasileira do livro ilustrado é rica, variada e vem incluindo cada vez mais artistas na

concepção da obra. Ida e Volta, do artista plástico Juarez Machado, cuja primeira edição deu-se em 1976, foi

um marco na produção brasileira e conta as peripécias de um personagem identificado apenas pelas marcas

das passadas de seus sapatos e pés. Passamos a conhecê-lo através do seu trajeto, de com quem anda, o que

come, sua atitude elegante com os mais velhos, enfim, da inscrição do personagem numa narrativa totalmente

explícita, apenas indicada por imagens. As estratégias de construção de leitor já estavam indicadas pelos

índices das passadas do personagem. Depois dessa obra, muitas outras se seguiram e fizeram do chamado

livro sem texto uma categoria específica.

Não estou incluindo aqui os excelentes trabalhos de xilogravura que caracterizam a literatura de

cordel. Também no momento não vou me aprofundar na imensa divulgação de obras de artistas plásticos

nacionais e internacionais, a exemplo de Portinari, Picasso, Van Gogh, que tiveram seus trabalhos

comentados por escritores, com uma clara orientação de uma educação pela arte.

Um trabalho marcante em país de língua portuguesa é o do artista plástico africano, o moçambicano

Malangatana, que dialoga intensamente com a palavra poética de seu conterrâneo Mia Couto. São imagens

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autônomas que repercutem a temática do livro e que são apresentadas em recortes no seu interior. Ao final da

narrativa, vemos os quadros na sua totalidade, um conjunto de telas que explicitam a africanidade do artista e

que dão a ver a independência da sua produção, uma obra por inteiro.

Outro aspecto importante na realização contemporânea dos livros ilustrados é sua aproximação com

a linguagem cinematográfica. Aproximações com o close, panorâmicas, ponto de vista de cima para baixo ou

ao seu reverso, construção da narrativa ao modo dos quadrinhos, aproveitamento da técnica de cortes

inerentes à montagem cinematográfica para a dinâmica do enredo, acelerando o tempo narrativo, voltando ao

passado, ou resumindo um evento em verdadeiras metáforas visuais, caso, por exemplo, do livro Vizinho,

Vizinha, de Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani.

Mídias que se interpenetram e que criam uma linguagem própria nos confrontam com sua novidade

e deslocam paradigmas aos quais nos habituamos e que nos confortam. Ler um livro ilustrado digital tem os

mesmos efeitos de sentido que ler um livro ilustrado impresso? O movimento, o som, o cromatismo adaptado,

os enquadramentos, a perspectiva alteram o processo de compreensão e influenciam a interpretação do

leitor/espectador.

Assim, a leitura dessas obras cada vez mais vem organizando modos de olhar e de ler através de

estratégias por vezes sutis, mas de grande impacto na criação de novos horizontes de leitura.

Um componente da narrativa que considero fundamental nos livros de literatura infantil é a presença

de sequências descritivas e suas decorrências na construção do discurso ficcional. Decidi, então, mostrar

como essas sequências interferem e movimentam a narrativa, a partir de uma pequena parte das investigações

de relações entre imagens e textos verbais em três livros: Vizinho, vizinha, de Roger Mello, com ilustrações de

Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Melo; Poeminha em língua de brincar, de Manoel de Barros, com

ilustrações de Martha Barros e O Beijo da Palavrinha, do autor moçambicano Mia Couto, com ilustração do

artista também moçambicano Malangatana, publicado no Brasil e, posteriormente, em edição portuguesa com

a ilustradora Danuta Wojciechowska.

O ponto de partida para a reflexão é uma questão apontada por Nikolajeva (2010, p. 150) a respeito

de “ler e interpretar”. As lacunas que os textos literários contêm permitem ao leitor implícito “[preenchê-las]

com base nos seus conhecimentos cognitivo, social e cultural.” Se essas fendas não estimulam a interpretação,

eles se aproximam dos chamados didáticos. Mas se abrem para uma participação ativa, elas ajudam no

desenvolvimento da competência literária do leitor. É claro que esse trabalho de interpretação vai depender

também do número e da natureza desses espaços dados. A autora destaca que, historicamente, as abordagens

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sobre a literatura infantil “[têm] oscilado entre extremos pragmáticos e estéticos” e que “o entendimento das

características pragmáticas e estéticas dos textos literários é um componente da competência literária”.

Este texto pretende apresentar alguns graus de provocação que as descrições criam nesses três livros,

convocando o leitor a se tornar sujeito da produção de sentidos, preenchendo esses vazios, mais do que fazê-

lo acompanhar simplesmente o enredo.

Dois conceitos dão a medida da importância da descrição: o primeiro deles é EKPHRASIS, segundo

as abordagens de Louvel (2006), Cordeiro (2003), Nikolajeva (2010). A palavra grega EKPHRASIS significa,

por sua origem, descrição ou: ek (fora) + phrasis (frase) = fora da frase. O termo define, a partir de trabalhos

poéticos, o modo de coexistência entre dois sistemas de significação, suas mútuas influências e apropriações e

suas transposições intersemióticas. Por esse conceito, propõe-se pensar a descrição e como ela se relaciona

com a narração, seja de modo sutil ou explícito.

Outro conceito é o de ICONOTEXTO, segundo Louvel (2006, p. 196) e Nikolajeva (2001, p. 63).

Louvel prioriza a descrição como forma de explorar variados graus de saturação pictural: “diferentemente da

tradução linguística (passagem de um significante a outro, de mesma natureza, linguístico), efetua-se a

passagem de um significante (pictural) a outro significante (linguístico) de natureza diferente”, por isso

considerado por duplo “desligamento”.

A esses dois conceitos é atribuída larga parcela da realização de efeito de expansão do texto

(LOUVEL, 2006) que caracteriza as sequências descritivas e com decorrências importantes para que a

narrativa literária assuma contornos próprios, explore diferentes pontos de vista e traga a voz do narrador

como instância discursiva.

1° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: O ESTILO

O livro Vizinho, vizinha, com texto de Roger Melloe ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani e

Roger Mello, propõe uma leitura múltipla, aberta. São três ilustradores que assumem, individualmente, cada

um dos três protagonistas do livro e definem seus modos de ser através de cores, de traços, de volumes, enfim,

de um estilo único: rosa fúcsia para a página do homem, amarelo ouro para a página da mulher. Uma

dominante na proposta do livro é a complementaridade permanente entre a imagem e o texto como legenda;

muito do que dizem as imagens não tem paralelo no texto escrito, e vice-versa. O traço, o desenho, a técnica,

a mistura de técnicas – como a colagem –, as cores das páginas, os elementos selecionados, tudo isso

constitui o campo de significações dos personagens. Embora os conteúdos semânticos estejam presentes tanto

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nas palavras quanto nas imagens, a existência de cada personagem nos é dada pelo elo dessas duas

dimensões.

Mas outra proposta igualmente relevante é o diálogo entre as imagens, como que demarcando, pela

descrição constante, as personagens, seus modos de ser, seus atributos físicos e psicológicos, uma composição

visual que amplia as conotações e implicações assumidas pela plasticidade das imagens. Por exemplo: “O

vizinho do 101 toma café enquanto observa gravuras de bichos.” Esse texto/legenda é ilustrado por um

cenário com cacto, vitrola, rapaz com suas calças largas e listradas, blusa folgada, descalço – o ambiente mais

perfeito para estar com os pés em um tapete rústico e relaxado. A simplicidade do rapaz opõe-se à

extravagância da mulher do apartamento em frente, cujos vestígios são percebidos pelo tênis jogado no chão

e uma silhueta ao fundo tomando banho: “A vizinha do 102 já voltou da maratona.”

Figura 1 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello.

Vale destacar um aspecto nessa obra, lembrando o que Perry Nodelman (1988, p. 251) sinaliza

como uma atividade da relação entre o texto e a imagem, que são as pausas de leitura criadas pela presença

de imagens e que dão um ritmo particular à leitura. O autor acrescenta que a batida rítmica da sentença,

desenvolvida pela presença da imagem e pela pausa por ela criada, se aproxima da organização rítmica da

poesia. Nesse livro, composto por ilustrações com fortes e variadas cores, o texto é apenas uma sentença em

cada página, com poucas indicações que descrevem as personagens. Portanto, não há tensão e,

consequentemente, não há clímax, próprio da narração, mas acúmulo de informações. Não queremos virar

rapidamente a página para seguir com o enredo, mas observar a quantidade de elementos que vão compondo

as personagens em suas moradias. O olhar do leitor não precisa seguir certa ordem para virar a página. Mas as

frases, tanto na página da esquerda quanto na da direita, vão começando a ritmar a leitura com a mesma

cadência e estão sempre em paralelismo, criando contrastes entre os personagens.

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O tempo verbal é o presente do cotidiano, que se desdobra indefinidamente nos mesmos atos

diários: ele passeia com o passarinho às quatro e quarenta, ela leva o relógio para consertar às vinte para as

cinco, ou alimenta um rinoceronte debaixo da pia – formas verbais que dão a dimensão do modo de estar no

mundo de cada vizinho. O presente, que do ponto de vista filosófico é a ausência de tempo, marca as

histórias pessoais, contrastando o modo de ser de cada um; além disso, não promove a transformação dos

sujeitos. Esse recurso linguístico do tempo verbal expõe as tarefas dos personagens no seu mundo interior,

como círculos que se repetem. Por isso, o texto se assemelha à estrutura de um roteiro cinematográfico: cada

enquadramento é uma cena; cada cena, uma descrição. E o conjunto de descrições dá vida à narrativa.

Todavia, ao apresentar os personagens: “ele passeia com o passarinho às quatro e quarenta”, na

página da esquerda, em oposição a “ela leva o relógio para consertar às vinte para cinco” as marcas de uma

organização discursiva vão além de uma descrição objetiva, destacando a tranquilidade do homem em

relação à agitação da mulher: ele já passou em muito das quatro horas, mas ela está adiantada em relação às

cinco horas.

Figura 2 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello.

Além disso, o acúmulo descritivo convoca o espectador a dar consecução e, portanto, a fazer

narrativa. A marca temporal e suas conexões entre as ações são recursos necessários para manter a coerência

temporal entre os fatos. Dessa forma, vemos: “O vizinho do 101 toma café, enquanto observa gravuras de

bichos.” Na página da direita “A vizinha do 102 já voltou da maratona.” (grifos da autora) Isso também

acontece quando entram outros personagens para acelerar o movimento do tempo. O homem recebe uma

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sobrinha e a mulher recebe um neto: “Outro dia, a sobrinha do vizinho fez uma visita.” “Justo no dia em que

o neto veio passar o dia com a vizinha.” (grifos da autora).

Pode-se retomar a noção de estilo, que o poeta norte-americano Bukowski tanto preza, ao dizer que

“tudo é uma questão de estilo”, e que Bakhtin aponta como marca da subjetividade autoral, indício da

enunciação. Ora, é o estilo dessa obra que determina sua leitura, sua agilidade na montagem das personagens

e a tensão na constituição plástica do jogo de sentidos.

São três ilustradores que imprimem a sua marca na caracterização de cada personagem (o vizinho, a

vizinha, o faxineiro), construindo seus mundos particulares e propiciando uma leitura em contraponto. O

conjunto personagem/casa ou personagem/corredor é apresentado por traços inteiramente distintos: o rapaz,

porta de sua casa, máscara na parede, poltrona, peixe e até passarinho que leva para passear. Ao contrário, a

definição da pintura dos objetos do apartamento da vizinha e as colagens mostram uma concepção de vida,

uma energia diferente, que muitas vezes é sentida pelo leitor/espectador sem tomar consciência dessas

marcas/índices que modelam os protagonistas.

A paginação dupla, portanto, é dividida em três partes, pois o que está no centro, o corredor, é que

determina o fluir do tempo cotidiano, marcado pelas ações do faxineiro do prédio, personagem que limpa,

lava, descansa, ouve a música vinda do apartamento da vizinha e avança para outros andares. O lugar de

interações é o corredor, um espaço dinâmico dos encontros, das trocas e das expectativas de transformação.

Quando as crianças lá se encontram, as portas ficam abertas e permitem o fluxo de vivências e de

intercâmbios, com a leveza e a vivacidade já esquecidas pelos mais velhos.

O texto verbal acompanha as rupturas impostas na organização da vida dos adultos, num acúmulo

de palavras sem pontuação, sem verbos. A sequência descritiva é apresentada em ritmo acelerado, como uma

desordenação do mundo, mas que, no fundo, denuncia a construção de um espaço novo. “café com

quadrinhos regador todos os livros do mundo manual do químico moderno monte de coisas velhas plantas

bichos clarineta discos da velha guarda roupas de maratona máquina de fazer chover rinoceronte fotos do

mundo inteiro gravuras gravuras gravuras escafandro cidades de papel”. Esse efeito de expansão do texto,

próprio da descrição, tem no livro a função de transformar o apartamento da esquerda, o corredor e o

apartamento da direita em espaço de convivência comum a todos.

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Figura 3 – Vizinho, Vizinha (2007), ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello.

Por isso, também, se observa a troca permanente de tapete da porta do apartamento da mulher. A

mudança da cor e de padrão vai resultar, ao fim e ao cabo, como o lugar da palavra, do aceno: “bem-vindo”.

2° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: A METONÍMIA

O livro O Beijo da palavrinha, do escritor moçambicano Mia Couto e com ilustração do artista

plástico africano, o moçambicano Malangatana, é um encontro que se realiza no campo da estética do

discurso literário. Uma menina de família pobre, chamada Poeirinha, está doente e sem forças. O enredo se

encaminha para a conclusão com a morte da criança. Entra em cena seu tio, que convence a família a levá-la

para a costa, para que ela “renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras

praias dentro dela”. Entra-se na realidade ficcional com o apoio da estrutura clássica da narrativa, com a

apresentação dos personagens e do problema.

“Era uma vez uma menina que nunca vira o mar.” Porém, aos poucos o leitor vai sendo levado para

uma outra dimensão, junto com Zeca Zonzo, irmão da menina e desprovido de juízo e que, por isso mesmo,

conseguiu salvar a irmã. Com ele constrói-se outro olhar, outra compreensão de mundo. Fraca e

impossibilitada de ir de corpo ao mar, a salvação da menina começa pela escrita:

– Vou-lhe mostrar o mar, maninha. Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela de bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra ‘mar’. Apenas isso: a palavra inteira e por extenso (grifo da autora).

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A sua desrazão consegue guiar os dedos da maninha para a leitura de um mundo que ela

desconhece e que vai construindo aos poucos pela relação tátil com o papel onde a palavra está escrita:

“Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a

decifrar a lisa brancura do papel”. A sequência da narrativa é um momento mágico de construção e de

apropriação de um mundo que, aos poucos, envolve a todos e passa a formar sentido (fig. 119). Nikolajeva

(2010, p. 277) “emprega o conceito de ekfrase emocional: isto é, o discurso verbal, visual ou multimodal

usado para descrever uma emoção. Ekfrase emocional pode propor uma expansão do estado mental… ou

uma explicação do que [alguma coisa] significa.” Poeirinha, a menina doente, já em degradante estado físico

e mental, retoma o contato com o mundo através de uma conexão emotiva com seu irmão.

As letras m, a, r ganham a força de uma realidade ideogramática das ondas, da gaivota e da rocha

que se distinguiam pelos dedos da menina: a letra m “é feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem”.

Já o a é uma gaivota pousada nela própria, enquanto que os dedos da menina se magoam “no ‘r’ duro,

rugoso, com suas ásperas arestas”. Mais que uma metáfora, a existência das letras torna-se uma realidade para

a menina que se salva quando cria o mar e suas ondas, a rocha e as gaivotas. É um prolongamento físico do

mundo, metonímia que faz aproximar o mundo representado do corpo representante. Passar os dedos nas

letras é como passar as mãos nos objetos, uma relação física, tátil que vai descrevendo e dando realidade aos

objetos, como se o movimento esculpido pelas suas mãos trouxesse o mar da sua salvação.

Por isso, a menina que precisava da salvadora viagem em direção ao mar, de sentir e respirar a

maresia para sobreviver, fez do passar os dedos a sua viagem, da escrita o seu mar e todos se calaram para

escutar o marulhar: “Foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha”. A imagem reconhecida do mar está

presente como um estado do pensamento, como a potência do fotográfico que se concretiza na escrita do

irmão Zonzo. As letras são o índice da presença do objeto. E o índice é a mais primitiva relação como o real,

a marca do objeto e da sua existência. Quase cega, sua mão é a expressão tátil que a faz conectar-se com o

entorno, dando à dimensão do sensível a possibilidade de leitura e reconhecimento do mundo.

Por outro lado, essa possibilidade de contar com a presença do mar através dos dedos da menina se

aproxima do modo como Samain (1998) entende a visualidade originária:

Tinha, primeiro, avistado o mar. Foi muito mais tarde que consegui nomeá-lo e dele falar e precisei de muitos outros anos de alfabetização, para que, enfim, pudesse escrever seu tão pequeno nome... Dessa maneira, falar do fotográfico será, necessariamente, procurar situá-lo na perspectiva e no traçado de uma visualidade originária e constitutiva do ser humano... Samain (1998, p. 13)

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Philippe Dubois2 afirma a respeito do fotográfico: “Como um estado do olhar e do pensamento”.

Essa compreensão da imagem ajuda a entender o diálogo do texto com os quadros do artista plástico

Malangatana para seu processo de ilustração, uma vez que ele vai buscar essa visualidade originária e

expressar o fotográfico que há no artista por meio de uma plasticidade étnica, vigorosa como o texto. Seu

trabalho é um exemplo da influência das raízes populares africanas de Moçambique.

Na edição brasileira, dez telas ilustram cenas da narrativa. A opção de apresentar todas elas por

inteiro ao final do livro permite admirar o trabalho do artista de uma forma autônoma, mesmo que em

pequeno formato, e libera a arte gráfica para compor e propor, ora com partes dos quadros, ora com a tela

inteira, diálogos entre o plástico e o verbal, iluminando aspectos para dar sentido à leitura. O design gráfico

do livro brinca com frases, com o branco aberto para o infinito, ou escrevendo sobre a tela, mas fica claro que

são duas obras que se apresentam por inteiro para leitura: literatura e artes plásticas.

Na edição portuguesa, as ilustrações de Danuta Wojciechowska dialogam intensamente com o texto,

acompanhando o desenrolar da narrativa e interferindo em momentos-chave. Sua proposta destaca o lirismo

entre os dois irmãos, através da seleção das cenas e do seu estilo. A perspectiva étnica, que é o pano de fundo

da narrativa e que sustenta a verossimilhança da história, é apresentada pelo conjunto das cores e dos

elementos selecionados do cenário.

3° ASPECTO DA DESCRIÇÃO/NARRAÇÃO: A LEVEZA

O texto de Manoel de Barros é uma narrativa poética, ou uma poesia narrativa, tão ao gosto da

mestiçagem de gêneros, estilos e linguagens que caracteriza a produção literária contemporânea. As

fronteiras, em Manoel de Barros, se tornam impuras, o que faz da sua aparente simplicidade uma arma contra

o lugar-comum. O livro Poeminha em língua de brincar se organiza com poucos elementos, sem muitos

adereços paratextuais, e com imagens que fazem uma releitura do texto de Barros, mostrando que caminham

juntos, texto e imagem, com a mesma finalidade, como diz ele, de “chegar ao grau de brinquedo para ser

séria de rir”.

O texto começa pelo pronome pessoal ele: “Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada. Falava

em língua de ave e de criança”. Esse pronome pessoal ele, elemento linguístico anafórico que busca um

referente no texto para lhe dar sentido, causa uma grande perturbação, pois não há nada que lhe anteceda,

nada que o explique, nada que esclareça quem é o herói. Essa narrativa, que mantém uma estrutura clássica

2 Apud Samain, 1998, p. 11.

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Celia Abicalil Belmiro

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do gênero conto e que se consagrou infantil, possibilita subentender o “Era uma vez um menino”. Todavia, o

enigma continua, pois essa sequência descritiva ainda impede a imediata compreensão de quem é o herói. O

que é ter no rosto um sonho de ave extraviada? Ou como é falar em língua de ave? Com essa descrição,

Barros anda por um difícil caminho, o do imaginário. E obriga (ou liberta) o ilustrador e o leitor para

construírem um diálogo renovado, em que, como diz o próprio autor, “dispensava pensar” e, no caso dele,

bastava sentir.

A elaboração de sua linguagem dá consistência discursiva ao seu texto, com o frescor de

deslocamentos inesperados para alimentar a existência de seus personagens: “E jogava pedrinhas: Disse que

ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bentevi sentado na telha”. Essa outra

ótica, que dispensa pensar, permite sentir, extravasar o encantamento das palavras livres. São imagens do

texto poético que orientam um modo de entender o mundo. Por isso é possível compreender, nessa outra

ótica, “que certa rã saltara sobre uma frase dele e que a frase nem arriou. Decerto não arriou porque não tinha

nenhuma palavra podre nela”.

O desenho, altamente conceitual, traduz em seus traços a manifestação de um ‘Nada’ significativo,

como que tocando levemente a lembrança de um figurativismo. As imagens mostram que compreendem o

projeto discursivo da obra, pela plena interação com a proposta: a técnica e o material dos desenhos, além de

não reproduzir um modo escolarizado de expressão infantil, expõem a liberdade da livre expressão. Vale a

pena notar a única vez em que a ilustração interrompe o fluxo narrativo e abre espaço para o destaque da

enunciação: o comentário do narrador quer justificar e dar coerência à existência do seu personagem –

“Decerto não arriou porque não tinha nenhuma palavra podre nela”.

O projeto editorial trabalha com o intuito da essencialidade, o que permite um enxugamento de

elementos visuais e uma concentração no texto verbal. Este, sim, é o resultado de uma leveza que faz acordar

os sentidos. Calvino (1990, p. 28) lembra uma passagem de Paul Valéry, para quem é necessário ser leve

como um pássaro, não como a pluma; por isso, acredita que a leveza “está associada à precisão e à

determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. Descartando a fuga para o sonho ou para a irracionalidade,

acrescenta (p. 19) que “as imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e

futura, dissolver-se como sonhos...”

E apresenta três acepções distintas da leveza: 1) um despojamento da linguagem; 2) qualquer

descrição que comporte um alto grau de abstração; 3) uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor

emblemático...

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Provocação e imaginação

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Como descrever mentalmente uma senhora chamada ‘Dona Lógica da Razão’, um nome e conceito

abstratos? Como ilustrar o ‘Nada’ que, para o autor, é língua de brincar? Nesse caso de Manoel de Barros, as

imagens verbais caracterizam um mundo que deve ser ainda construído, são imagens inaugurais, fluidas e

abertas para interpretação do leitor. Essas duas linguagens não funcionam como espelho, um assemelhando-

se ao outro em características. As imagens não intentam explicar nem descrever coisa alguma, não se

interessam em fazer o leitor compreender ou assimilar, mas incentivam uma postura frente ao ato criador. Esse

mundo particular da linguagem, em que o Nada é língua de brincar, é, como diz o autor, a própria casa do

jabuti, a poesia, onde o menino se interna e ali se salva: “E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti

se interna”.

A natureza da obra de Manoel de Barros é de um labirinto em direção ao Nada, ao enfrentamento

que elimina a lógica e a razão, ou, como ele diz, a Dona Lógica da Razão, para ir em direção à compreensão

das coisas na sua natureza irrestrita. No caso desse livro de Barros, o questionamento do autor sobre a lógica

da racionalidade supõe uma crença na fratura irredutível da lógica que sustenta o discurso.

Do ponto de vista da construção das duas instâncias, verbal e plástica, texto e imagem caminham

juntos brincando com os sentidos, com as percepções, nos convocando ao estado de criação.

CONCLUSÃO

Os procedimentos descritivos que foram aqui apresentados pretenderam oferecer uma visão mais

dinâmica dos processos de caracterização de cenas, cenários, personagens, com vistas a interagir com leitores

de diferentes idades e diferentes competências literárias. A importância da interferência de sequências

descritivas no fluxo narrativo resulta em consequências positivas na formação do gosto e da apreciação

estética das obras.

Nos livros analisados, e em tantos outros, o jogo verbal e visual de identificação ou de

estranhamento com o mundo e seus personagens pode trazer para perto de si um leitor ávido pela ligeireza do

fluxo temporal das ações; ou fazer com que nos identifiquemos com essa ou aquela experiência; ou, ainda,

dar ao leitor o prazer de uma leitura em que estabeleça elos estéticos e reconheça o processo de criação

literária.

Às vezes, somos apenas um deles, ou somos os dois, ou todos, muitas vezes. De todo modo, somos

sempre leitores que se abrem para mundos desconhecidos, imaginários, marcados pela escrita, pelo discurso.

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REFERÊNCIAS

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CORDEIRO, André Teixeira. Ismael Nery: o olho no telescópio. Dissertação (Mestrado em Letras)- Centro de Letras e Artes. Universidade Federal do Pará, Belém, 2003. 159 p.

DEBRET, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Trad. Guilherme Teixeira. Petrópolis/RJ: Vozes, 1993.

LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (Sel. e Org.). Poética do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras, UFMG, 2006. p. 191-220.

NIKOLAJEVA, Maria. How picturebooks work. New York, London: Routledge, 2001.

______. Literacy, competence and meaning-making: a human sciences approach. Cambridge Journal of Education, 2010. 40:2, 145-159.

NODELMAN, Perry. Words about pictures: the narrative art of children’s picture books. Athens: University of Georgia Press, 1988.

SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, CNPq, 1998. p. 13.

Livros de literatura infantil:

BARROS, Manoel de. Poeminha em língua de brincar. Ilustrações: Martha de Barros. São Paulo: Record, 2007.

COUTO, Mia. O Beijo da Palavrinha. Ilustração de Malangatana. Rio de Janeiro: Língua Geral Editores, 2006.

______. O Beijo da Palavrinha. Ilustração de Danuta Wojciechowska. Alfragides: Editorial Caminho, 2008.

MELO, Roger; MASSARANI, Mariana; LIMA, Graça. Vizinho, vizinha. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2007.

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Data de submissão: jan./2015. Data de aprovação: jan./2015.