psicologia e educaÇÃo: pensando o desenvolvimento...
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Ao final da unidade o(a) aluno(a) deverá:
• compreender infância, adolescência, idade adulta
e velhice como categorias histórico-culturais;
• desenvolver uma compreensão sobre as
implicações pedagógicas da infância, adolescência,
idade adulta e velhice.Obje
tivos
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: PENSANDO O DESENVOLVIMENTO HUMANO
unidade
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UNIDADE 2PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO:
PENSANDO O DESENVOLVIMENTO HUMANO
1 PRIMEIRAS PALAVRAS
Na primeira unidade fizemos uma reflexão sobre o que
é Psicologia e sobre suas implicações na sociedade. Vimos que
podemos compreender o fenômeno psicológico de duas formas: como
se fosse algo natural ao ser humano; ou como algo que é construído
histórico, social e culturalmente. Analisamos também como estas
diferentes concepções afetam a Psicologia do desenvolvimento e da
aprendizagem. Estas questões são fundamentais para os estudos que
serão realizados nesta unidade.
Iniciaremos esta unidade refletindo sobre as categorias
“criança”, “infância” e “adolescência”, a partir da seguinte questão:
as crianças que nós vemos hoje em nossas salas de aula, em nossas
casas, na rua, possuem as mesmas características das crianças de 50
anos atrás? E se formos bem mais longe, e pensarmos nas crianças
de 500 anos atrás? Estas perguntas são necessárias, pois o objetivo
desta unidade é desenvolver uma compreensão sobre o processo
sócio-histórico de constituição do ciclo vital e adquirir conhecimentos
sobre perspectivas de estudo acerca do desenvolvimento humano.
Para tal, faremos uma breve incursão sobre a história da
infância, refletindo sobre a construção sócio-histórica das categorias
“infância” e “adolescência”. Em um segundo momento, faremos uma
reflexão sobre idade adulta e velhice e veremos as contribuições da
Psicologia para o estudo dos ciclos vitais.
Esta unidade terá como tema transversal a reflexão sobre uma
outra temporalidade para a compreensão da vida humana, isto é,
ao invés de utilizarmos a tradicional concepção de desenvolvimento
humano organizado por etapas bem demarcadas por períodos de
modo linear, vamos trabalhar com uma abordagem que reconhece
o desenvolvimento de modo multidimensional e multidirecional, no
qual as subjetividades se produzem sempre na relação com o outro,
em tempos e espaços específicos.
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2 PROBLEMATIZANDO O TEMA
Por que, quando pensamos em desenvolvimento humano,
nos referimos quase que imediatamente à criança e ao adolescente?
Quando imaginamos uma cena escolar, nos vem logo à mente crianças
correndo em um pátio amplo ou estas mesmas crianças dentro de
uma sala de aula com uma professora ensinando a lição. Por que não
pensamos no adulto ou no idoso dentro desta mesma sala de aula?
Será que o desenvolvimento humano acaba depois da
adolescência? E o que acontece com as pessoas durante a idade adulta
e a velhice? Será que continuam se desenvolvendo? E os processos de
aprendizagem dessas pessoas no dia a dia, nas turmas de Educação
de Jovens e Adultos ou nos cursos de alfabetização de Idosos? Será
que são processos diferenciados das crianças ou podemos utilizar as
mesmas estratégias com pessoas de idades tão distintas?
Como concebemos a criança, o adolescente, o adulto e o idoso
em nossa sociedade, e quais as contribuições que a Psicologia vem
dando para refletirmos sobre estas categorias é o que veremos nesta
unidade.
3 ESTUDOS SOBRE DESENVOLVIMENTO HUMANO E
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
Sabemos que todo processo educativo traz uma concepção
de mundo e de ser humano. Dependendo do modo como a vida é
entendida, entende-se também o lugar dos seres humanos nela e a
educação que será oferecida. Desta forma, ao considerarmos o sujeito
da educação como um ser ativo no processo de desenvolvimento e
aprendizagem, é necessário termos coerência sobre o modo como
concebemos este sujeito.
Para dar um exemplo sobre como, muitas vezes, somos
contraditórios com esta questão, ouvimos e vemos muitos
educadores pregarem uma educação democrática, com uma relação
horizontalizada entre educadores e educandos, e um lindo discurso
sobre como os sujeitos são ativos na construção do conhecimento;
mas, em sala de aula, estes mesmos educadores, por não refletirem
sobre suas próprias práticas, agem de modo automático e caem
em contradição: acham que os alunos devem reproduzir tudo que é
ensinado, que devem permanecer calados e obedientes e responder
prontamente a cada conteúdo novo.
É preciso, portanto, ter clareza das concepções de homem
e de mundo que fazem parte das teorias que adotamos em nossas
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PARA REFLETIR
Diante dessa multiplicidade de faces das crianças, muitas pessoas diriam: “as crianças de hoje não são mais as mesmas”. Mas “as mesmas” em relação a quê? Será que ao longo da história, nos diversos espaços e tempos da humanidade, nas diversas culturas que sabemos que existem, incluindo aí toda diversidade cultural que encontramos em nosso país, a criança foi “a mesma” e só agora mudou? Ou será que nós acreditamos, por muito tempo, em uma representação sobre a criança que a colocou como ser único e universal, dotada de características e modos de vida homogêneos?
práticas profissionais. Teorias não são técnicas a serem aplicadas
mecanicamente. Teorias são componentes intelectuais que devem
servir de base para nossas práticas, de modo coerente. A coerência
na articulação teoria e prática, no entanto, quem faz é o profissional,
através de um exercício diário de formação, que não se esgota
no momento em que o diploma é expedido. Refletir sobre o modo
como concebemos o ser humano em suas múltiplas manifestações
é fundamental para uma prática pedagógica que traz em seu bojo a
articulação entre a teoria e a prática.
3.1 Representações sobre ser criança e sua infância
Para iniciar esta unidade, vamos fazer um exercício de pesquisa
de imagens sobre a criança.
EXERCÍCIO
Primeiro, vamos pesquisar as imagens que nós mesmos temos sobre a
criança. Feche os olhos e preste atenção nas imagens de criança que surgem
em sua mente. Pense: o que é ser criança para você?
Agora, leia o texto abaixo:
“Em seus calendários anuais, são belíssimas as fotos que o UNICEF
nos apresenta: fotos de crianças do mundo inteiro. Fotos de crianças com
suas famílias, em seus afazeres, em suas brincadeiras. Fotos que nos
mostram olhares e sorrisos expressivos, geralmente alegres, tranqüilos,
iluminados. Fotos também de desenhos de crianças. Cheios de cores, lindos.
No mundo inteiro, podemos comprar calendários e contribuir para o Fundo
das Nações Unidas para a Infância. Ao comprarmos o calendário, temos
acesso a informações sobre o contexto cultural e o foco das fotografias,
podendo, então, admirar, a cada dia, as mais diversas imagens de criança. E
nos tranqüilizamos. E nos enlevamos com a beleza da vida.
Em suas andanças pelo mundo, Sebastião Salgado também fotografa
crianças. Em preto e branco. É um outro modo de fotografar outros modos
de ser criança. Cabelos desgrenhados, bocas sujas, contornam os sorrisos
e olhares intensos, enigmáticos. O foco das fotografias é outro: são as
crianças e suas famílias marcadas pela dureza da vida. E nos inquietamos e
nos afligimos. E nos revoltamos contra as injustiças e as precárias condições
de existência.
Como produção cultural, um e outro, calendário e livro ou exposição
de fotografias, nos afetam e nos impactam, de diferentes maneiras. Um
e outro, juntamente com os mais variados programas, propagandas e
documentários na televisão, e com as inúmeras reportagens de jornais e
revistas, entretecidos com as nossas experiências de cada dia, vão compondo
nossos saberes e imagens de criança e de vida.
Imagens de crianças que brincam, que trabalham, que estudam, que
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Atualmente, compartilhamos certos modos de olhar e pensar
sobre a criança e o tipo de educação que deve ser oferecido a pessoas
que vivem uma determinada faixa etária que denominamos “ser
criança”. E a esta criança, atribuímos um modo de vida que chamamos
infância. Esta nossa compreensão sobre o que é ser criança e ter
infância, no entanto, são modos de subjetivação constituídos histórica
e culturalmente, ou seja, modos cotidianos de compreender, pensar,
sentir e agir em relação a uma determinada idade do ser humano.
Segundo Jader Lopes e Tânia Vasconcellos (2006), não há
uma única forma de conceber a infância. Para os autores, o tornar-se
criança está intrinsecamente ligado ao grupo social no qual a pessoa
nasce, precedendo, muitas vezes, o próprio nascimento, uma vez que
“a fecundação, a gestação e o parto são recobertos de simbolismo
e variam de grupo para grupo” (p. 111). Desta forma, tão logo o
nascimento ocorre, a criança é inserida no mundo da cultura a partir
do contato com o novo ambiente e dos tratamentos que logo receberá,
de acordo com as variações culturais do meio em que está inserida.
O sentido de infância é atravessado, dessa forma, pelas
dimensões do espaço e do tempo que, ao se agregarem
com o grupo social, produzem diferentes arranjos culturais
e diferentes formas de ser criança, traços simbólicos
EXERCÍCIO
aprendem (ou não). Imagens de crianças amáveis e amadas; crianças bem
comportadas; crianças diferenciadas; crianças confinadas ou abandonadas,
subjugadas, autônomas, liberadas. Imagens de crianças que crescem e que
deixam de ser crianças. Imagens de crianças quase-adultas nos seus modos
de viver. Imagens de como tudo – a criança, a infância, a educação – deve
ser. Imagens que participam do imaginário social de nossa época” (SMOLKA,
2002, p. 99-100).
Após a leitura do texto, faça uma busca pela Internet de imagens de crianças
veiculadas pelo UNICEF e pelo fotógrafo Sebastião Salgado.
O que achou das fotografias? O que você pôde perceber de semelhanças e de
diferenças? E de que modo as fotografias do UNICEF e de Sebastião Salgado
se relacionam com as imagens de criança que vieram à sua mente no início
do exercício?
Com a ajuda do tutor, debata estas questões com seus colegas no Fórum de
Discussão Virtual.
Bom exercício!
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carregados por toda vida. [...] Existe, portanto, uma
estreita ligação entre a vivência da infância e o local onde
ela será vivida, pois cada grupo social não só elabora
dimensões culturais que tornam possível a emergência
de uma subjetividade infantil relativa ao lugar, mas
também designa existência de locais no espaço físico que
materializa essa condição (LOPES; VASCONCELLOS, 2006,
p. 111-112).
Lúcia Rabello de Castro (1998a) relata a existência de uma
pluralidade de faces da infância hoje:
• há a face da criança submissa, a qual deve atender às exigências
escolares, submetida ao jugo do adulto e dos saberes científicos
que falam sobre ela, sendo colocada no lugar do não saber;
• uma outra face é da criança que se embriaga por horas à fio em
frente à televisão, ao vídeo-game, à Internet. Segundo Castro
(1998a), nesta relação outra pedagogia se instala a da televisão,
“que por meio da imagem e do som, da sedução estética, da
provocação e da estimulação sensitiva, bate e rebate em temas de
relevância atual: a violência, o amor, a sexualidade, a amizade, a
traição, o desejo, a ganância, o sucesso” (p. 11);
• há ainda uma outra face: a das crianças que, nascidas no seio
de uma família, sentem-se cada vez mais solitárias, que mantêm
pouco contato com seus pais, pois estes “estão quase sempre
ocupados com suas próprias vidas, em ganhar dinheiro, em
sobreviver, em não perder tempo” (p. 11). Há também aquelas que
são exploradas e judiadas pela própria família, sofrendo abusos de
vários tipos;
• e não podemos deixar de mencionar a face da criança que é, ao
mesmo tempo, consumidora e objeto de consumo (cf. PEREIRA et
al, 2005). “De congêneres supostamente considerados inocentes e
inaptos, as crianças e os adolescentes tornam-se os convivas que
requisitam sua participação na realidade orgiástica do consumo e
dos prazeres” (CASTRO, 1998a, p. 12).
PARA REFLETIR
Diante dessa multiplicidade de faces das crianças, muitas pessoas diriam: “as
crianças de hoje não são mais as mesmas”. Mas “as mesmas” em relação a quê?
Será que ao longo da história, nos diversos espaços e tempos da humanidade, nas
diversas culturas que sabemos que existem, incluindo aí toda diversidade cultural
que encontramos em nosso país, a criança foi “a mesma” e só agora mudou?
Ou será que nós acreditamos, por muito tempo, em uma representação sobre a
criança que a colocou como ser único e universal, dotada de características e modos
de vida homogêneos?
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Jader Lopes e Tânia de Vasconcellos (2006), em estudo sobre
territorialidades infantis, ressaltam que:
[...] as condições materiais e simbólicas de produção de
existência das crianças são bastante diferenciadas. Não
podemos falar da existência de uma única cultura própria
das crianças, mas sim de culturas infantis, caracterizando
desse modo a pluralidade que lhes é inerente. Essa
pluralidade se estabelece no entrelaçamento da produção
da infância e da produção do lugar. Toda criança é criança
de um lugar. Do mesmo modo, toda criança é criança em
algum lugar. Ou seja, existe na produção das culturas
infantis uma ancoragem territorial que não apenas
emoldura o contexto no qual se edifica a infância, mas,
para além disso, oferece o próprio substrato material a
produção da existência. Esse processo faz emergir junto à
idéia de culturas infantis a existência de territorialidades
infantis que são a base da produção dessa cultura.
As crianças, ao compartilharem essa realidade com
as demais, irão estabelecer uma relação horizontal de
identidade entre elas e criar uma relação vertical de
identificação com os adultos, constituindo concepções
reais que possibilitam a vivência da sua infância não como
se quer, mas como se pode dentro da lógica de organização
social do grupo (LOPES; VASCONCELLOS, 2006, p. 110-
112).
Desta forma, é fundamental pensarmos, em nossa prática
profissional, como professores, numa compreensão sobre o ser
criança e sua infância que abarque a diversidade dos modos de ser de
cada um, sem buscarmos uma uniformidade de padrões e normas de
comportamentos que caracterize tudo que está fora destes padrões e
normas como desvio (conforme vimos na primeira unidade).
Como uma maneira de compreendermos melhor a possibilidade
de diversos modos de ser criança e suas diversas infâncias, é
fundamental darmos um passeio pela(s) história(s) da(s) criança(s)
e da(s) infância(s).
3.1.1 Um pouco sobre história da infância
Ao nos debruçarmos sobre o estudo da criança e sua infância,
não podemos perder de vista que se trata de um estudo sempre
realizado sob a perspectiva do adulto. Moysés Kuhlmann Jr. e Rogério
Fernandes (2004) enfatizam esta questão ao propor uma história da
infância, diferenciando-a de uma história da criança:
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Podemos compreender a infância como a concepção
ou a representação que os adultos fazem sobre o
período inicial da vida, ou como o próprio período
vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase
da vida. A história da infância seria então a história da
relação da sociedade, da cultura, dos adultos, com essa
classe de idade, e a história da criança seria a história
da relação das crianças entre si e com os adultos, com a
cultura e a sociedade. Ao se considerar a infância como
condição das crianças, cabe ria perguntar como elas
vivem ou viveram esse período, em diferen tes tempos e
lugares. Mas a opção por uma ou outra perspectiva é algo
circunscrito ao mundo dos adultos, os que escrevem as
histórias, os responsáveis pela formulação dos problemas
e pela definição das fontes a investigar (KUHLMANN JR.;
FERNANDES, 2004, p. 15 – grifos meu).
Segundo Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004), há uma diferença
significativa entre história da infância e história da criança. Para os
autores, a palavra infância refere-se a um período da vida no qual
a pessoa se apropria de signos e sinais, constituindo um sistema
de comunicação próprio a partir da cultura em que está inserida.
Já o termo criança estaria indicando “uma realidade psicobioló gica
referenciada ao indivíduo”, a qual pode “ser capturável como sujeito,
no exterior do conjunto de instituições (família, instâncias assis-
tenciais e escolares, condições de existência aferentes à etnia, ao
gêne ro, à classe social, às disponibilidades cognitivas etc.)”. Desta
forma, o modo possível de compreender a criança é a surpreendendo
“à contraluz das representações e práticas que a promovem” (p. 16).
E os autores prosseguem:
Se a história da criança não é passível de ser narrada
na primeira pessoa, se a criança não é nunca biógrafa
de si própria, na medida em que não toma posse da sua
história e não aparece como sujeito dela, sendo o adulto
quem organiza e dimensiona a narrativa, talvez a forma
mais direta de percepcionar a criança, individualmente
ou em grupo, seja precisamente tentar captá-la com
base nas significações atribuídas aos diversos discursos
que tentam definir historicamente o que é ser criança.
Assim, baseando-se na história da infância seria pos sível
estruturar as histórias da criança, ou, mais precisamente,
a história dos discursos ontológicos do que é ser criança?
(KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 16).
Em 1960, o historiador Philippe Ariès publicou um livro que se
tornaria um clássico para os estudos sobre criança e infância: História
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social da criança e da família. Ariès (1981), a partir de seus estudos,
aponta que, anteriormente aos séculos XIII e XIV, os sentimentos que
atualmente nutrimos pelas crianças não existiam na cultura ocidental.
As crianças não eram nem amadas nem odiadas. Elas simplesmente
existiam como algo inevitável e se confundiam facilmente com o
mundo dos adultos por não terem vestimentas, atividades, modos de
agir diferenciados dos adultos.
Este sentimento sobre a criança, no entanto, foi sofrendo
modificações ao longo da história. Ela, pouco a pouco, foi se tornando
alvo de cuidados especiais. Mudanças políticas, econômicas, sociais,
religiosas, ocorridas no final do século XVII, deram início a um processo
de particularização da infância, juntamente com a reestruturação do
espaço destinado às crianças (ARIÈS, 1981).
Pode-se destacar o surgimento de dois sentimentos sobre a
criança que para nós são muito corriqueiros, mas que, ao longo dos
séculos XVI e XVII, conferiam um novo estatuto às mesmas: o hábito
de tratar as crianças com mimos; e a consideração da criança como
objeto de estudo. À infância moderna não cabe a circulação pelos
espaços públicos, mas pelos espaços reservados à intimidade a partir
da reorganização familiar. Surgia, então, o que chamamos de infância
moderna, isto é, uma noção de infância que surge com a modernidade
e que vai permear o imaginário social nos séculos que se seguem,
imprimindo certo modo de compreender a criança e a infância.
Vejamos como Lúcia Rabello de Castro (1998b) descreve a noção de
modernidade e o surgimento da Psicologia do desenvolvimento:
SAIBA MAIS
Modernidade e Psicologia do Desenvolvimento
Várias acepções são possíveis a respeito do conceito de Modernidade.
Num sentido apenas cronológico, Modernidade refere-se ao período que se inicia
no Renascimento, que trouxe indubitavelmente uma renovação dos paradigmas
ético-estéticos até então vigentes. Foi a época marcada pelas grandes descobertas
marítimas capitaneadas pelos portugueses, espanhóis e italianos, quando o continente
americano surge na Europa não somente como cenário da esperança – no caso, para os
protestantes que imigraram para a América em busca de uma pátria, como tam¬bém,
fonte de novas problematizações, como por exemplo, da vida dita ‘primitiva’ dos
‘selvagens’. O branco europeu, fruto da trajetória histórica da civilização greco-romana
e cristã, se vê confrontado por uma existência totalmente diversa, a do ameríndio,
que encarna o ‘radicalmente diferente’, o ‘outro’, o ‘estranho’ e o ‘exótico’. Desta
forma, a Modernidade inaugura¬-se sob a égide de um confronto, que possivelmente
se estende aos dias de hoje, englobando démarches que delimitam e hierarquizam
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Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
LEITURA RECOMENDADA
Complemente seus estudos:
Saiba mais sobre o paradigma moderno e sua
crise. Leia: SANTOS, Boaventura
de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento,
1988.
Texto na íntegra disponível na Internet. Faça a busca em: http://scholar.google.
com.br/
SAIBA MAIS
posições no contexto mundial, como por exemplo, ‘selvagens e civilizados’, centro
e periferia, primeiro e terceiro mundo, desen¬volvidos e sub-desenvolvidos. O
debate contemporâneo assume uma conotação um pouco diversa focalizando a
questão dos nacionalismos, da etnicidade e do multi-culturalismo.
Num sentido mais sociológico, que é o que se atribui comumente ao termo,
Modernidade refere-se ao processo cres¬cente de racionalização das sociedades,
ocorrido nos séculos XVIII e XIX, que acompanhou a expansão capitalista. [...].
Dentro dos diversos sentidos atribuídos ao conceito de Modernidade, a acepção
aqui empregada visa focalizar as transformações sócio¬-culturais, dentro dos
processos mais amplos trazidos pelo industrialismo e capitalismo nas sociedades
ocidentais a partir do século [XIX].
A modernidade, enquanto projeto, tem como marca a crença na razão
como instrumento de controle sobre a natureza. O projeto de modernização
da sociedade exibe, antes de mais nada, a eficácia deste controle através das
tecnologias que o conhecimento científico possibilita de modo crescente. Deste
modo, o homem/mulher modernos deixam-se seduzir pela possibilidade do
domínio da natureza, a qual, de alguma maneira, permanece no imaginário mítico
como origem da imprevisibilidade, e, portanto, do medo e da angústias humanas.
[...]
O projeto da modernidade apoiou-se sobre a visão de progresso, cujo
mote, tanto do ponto de vista da história coletiva, como da história individual,
seria a legitimidade da crença no aperfeiçoamento da espécie e do indivíduo ao
longo do continuo temporal. Os saberes científicos emergentes trataram, assim,
de descrever, explicar e sistematizar os desdobramentos filo- e ontogenéticos
como uma evolução. Neste sentido a ciência psico¬lógica que visou sistematizar
o desenvolvimento humano enquadra-se no projeto moderno, enquanto
comprometida com o paradigma da objetividade, da razão científica, da história
como expressão teleológica do progresso, e da neutralidade. [...] A expressão
axiomática – ‘a ontogenia recapitula a filogenia’ – foi aplicada literalmente pela
Psicologia do Desenvolvimento, de modo que a trajetória evolutiva de cada
criança foi considerada como reproduzindo os padrões evolucionários da espécie
(CASTRO, 1998b, p. 26-27).
A área de estudos da Psicologia do Desenvolvimento tem origem
na Modernidade, sendo marcada, portanto, pelos pressupostos que a
orientam – neutralidade, universalidade, evolução, dentre outros –
que vão caracterizar os estudos sobre a infância. Vimos na Unidade
1, no entanto, que esta área de estudo vem sofrendo transformações
nas últimas décadas. Tais mudanças estão relacionadas com o campo
de conhecimento da Psicologia e, de modo mais amplo, com a crise
do Paradigma Moderno.
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3.1.2 A infância e seu contexto
O livro de Ariès (1981) foi pioneiro no estudo sobre a história
da infância. Mariano Narodowski (2002), Kuhlmann Jr., e Fernandes
(2004) e Lopes; Vasconcellos (2006) ressaltam que, atualmente,
podemos encontrar leituras diversas sobre a história da infância, e,
até mesmo, controversas em relação à história de Ariès. Vejamos um
dos argumentos de Lopes e Vasconcellos (2006):
Uma leitura simplificada da obra de Áries pode nos levar
à conclusão de que foi na Europa que surgiu o primeiro
sentimento de infância, porém as pesquisas etnográficas
demonstram que diversas comunidades, fora desse
continente, já demarcavam um lugar diferenciado dos
adultos para suas crianças. Nunes ao abordar o tal assunto,
declara: ‘Já é possível [...] descortinar um vasto campo de
debate, que carece de mais e mais etnografia produzida
dentro e fora do contexto europeu, urbano e globalizado,
de modo que se favoreceu a análise comparativa. Afinal
não devemos querer que se repita um erro do passado,
[...] que o conhecimento construído sobre a infância seja
apenas o das sociedades dominantes e que o entendimento
de todas as outras parta da aplicação desse modelo, sem
o questionar, perpetuando-se assim a hegemonia de um
padrão de criança ocidental e etnocêntrico’.
Não podemos esquecer que o sentimento de infância
começa a ser construído na Europa, quando esse continente
desvelava, pelas grandes navegações, a complexidade do
mundo e ampliava o contato com outras culturas. Talvez
a própria construção social de infância na Europa tenha
sido fruto de uma relação de alteridade com outros povos.
A pretensa universalidade, pressuposta no pensamento de
Ariés para o ser criança no mundo ocidental, na verdade
esconde uma variedade de dimensões de infância que
variam de localidade para localidade e constituem uma
diversidade de marcas sociais (LOPES; VASCONCELLOS,
2006, p. 117).
Lopes e Vasconcellos (2006) ressaltam também a perspectiva
de Neil Postam sobre o surgimento da infância:
Para Postman o reforço dessa separação [adulto-criança]
ocorre com o surgimento da imprensa com caracteres
móveis, que irá estabelecer uma nova concepção de adulto,
que irá excluir as crianças e, assim, ‘tornou-se necessário
encontrar um outro mundo que elas pudessem habitar.
Esse outro mundo veio a ser conhecido como infância’.
Esse autor reforça que as mudanças tecnológicas na área
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Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
de comunicação sempre apresentam efeitos e destaca três
que ocorrem invariavelmente: ‘alteram as estruturas dos
interesses (as coisas que pensamos), o caráter dos símbolos
(as coisas com que pensamos) e a natureza da comunidade
(a área em que os pensamentos se desenvolvem)’. E é
o que parece ter ocorrido com a imprensa e o aumento
da publicação de livros: a leitura individual, isolada e em
silêncio, substitui o senso de oralidade presente até então,
quando os textos eram narrados em voz alta e ouvidos
coletivamente, contribuindo para o surgimento de um
sentimento de privacidade. O individualismo começa a
se tornar, assim, ‘uma condição normal e aceitável’, e o
mundo adulto se confunde com o mundo da tipografia.
A rápida proliferação dos livros constrói um novo sentido
para o ser adulto; em contrapartida, cria-se a separação
da infância, que estabelecia como limiar a possibilidade de
leitura (LOPES; VASCONCELLOS, 2006, p. 114-115).
Temos, portanto, diferentes possibilidades históricas e
culturais de estabelecer o que é criança. Lopes e Vasconcellos (2006)
ressaltam que, mesmo com diferentes explicações, o espaço é sempre
uma categoria considerada ao se definir o que é criança: “diferentes
grupos elaboram lugares onde as crianças podem viver suas infâncias
e construir suas territorialidades” (p. 117). E complementam:
A apropriação de uma condição de ser criança, a partir de
um horizonte social de uma época e de um grupo social
determinado’, acopla-se à possibilidade de concretização
dessa condição em espaços físicos destinados para tal.
Mesmo nas condições (e contradições) expressas por Áries,
a reorganização social que promoveu o reconhecimento
da infância, promoveu também um reordenar das
espacialidades tradicionais e originou áreas típicas para
a infância nascente (LOPES; VASCONCELLOS, 2006, p.
118).
A infância privatiza-se juntamente com a família, e os espaços
prioritários de circulação das crianças – a casa e a escola – passam a
delimitar o lugar do “mundo” (a rua) e o lugar de “preparar-se para o
mundo” (a casa e a escola).
Dessa forma, as interações que se estabelecem entre
sujeitos e lugares não são uma mera relação física, mas
uma relação carregada de sentido e mediada pelos demais
sujeitos que o ocupam. Nesse sentido, na apropriação
e constituição do território, mescla-se uma dimensão
simbólica, por onde perpassa a tensão entre a singularidade
dos indivíduos que nele habitam e os arranjos sociais da
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coletividade, e não somente uma racionalidade cartesiana
em sua apropriação (LOPES; VASCONCELLOS, 2006, p.
119).
A infância, portanto, é retirada dos espaços públicos de
circulação e é encaminhada aos espaços da família e da escola,
onde construirá sentidos sobre sua existência. Seu desenvolvimento,
portanto, não pode ser compreendido como simples maturação, mas
como um processo socialmente constituído na relação com o outro,
que ajuda na atribuição de sentido aos diferentes espaços pelos quais
a criança circula.
Os diferentes espaços de circulação da criança apresentarão
diferentes configurações ao longo da história, sempre marcados
também por suas diferenças culturais. Segundo Lopes e Vasconcellos
(2006), construímos nossa noção espacial a partir de um contexto
cultural no qual estamos inseridos. Trata-se, antes de mais nada, de
uma noção social que apresenta um caráter ideológico, carregado
de significados, sem o qual nossa noção de espaço não existiria. A
construção da noção de espaço corrobora, fundamentalmente, para a
constituição de nossas subjetividades.
Augustin Escolano, discorrendo sobre currículo escolar, afirma
que os espaços da escola e os espaços do nosso cotidiano também
intervêm nos nossos processos de aprendizagem e desenvolvimento,
uma vez que constituem valores, aprendizagens sensoriais e motoras,
e toda uma produção de sentidos através de símbolos estéticos,
culturais e ideológicos.
A utilização didática do espaço e do seu entorno é uma
característica comum a todas as pedagogias denominadas
ativas. Os estudos de J. Piaget [...] remetem igualmente à
valorização das primeiras experiências espaciais (na casa e
na escola) como fatores determinantes do desenvolvimento
sensorial, motor e cognitivo. A construção de tais
estruturas é explicada pelos mecanismos de equilibração
e auto-regulação, constructos que na teoria piagetiana
são aplicados para explicar todo tipo de desenvolvimento.
Os trabalhos desse autor sobre a concepção do espaço
na criança e sobre a aquisição de diversas noções físicas
e geométricas, que datam já na sua origem da década
de 1920 e têm continuidade até fins dos anos cinqüenta,
demonstram que a representação do espaço na criança
é uma construção internalizada a partir das ações ou
manipulações sobre o ambiente espacial próximo, do qual
obviamente a escola faz parte (ESCOLANO, 2001, p. 48).
Somando-se à questão do espaço, ressaltamos que a noção
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
74 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
de tempo também é fundamental para a constituição de nossas
subjetividades. Diferentes momentos históricos e diferentes culturas
supõem diferentes modos de compreender e de lidar com o tempo.
Desta forma, mais do que buscar uma história sobre a infância para
compreender quem é a criança, hoje, temos que compreender que
há várias histórias, várias culturas, vários espaços e vários tempos de
constituição do ser criança e suas infâncias. Mais do que tentar definir
o que é A criança, temos que buscar olhar cada criança como ela é,
inserida em um tempo e um espaço específicos, e buscar compreender
como, naquele tempo e espaço, a noção de infância se constitui.
No mundo contemporâneo a infância figurada está sendo
lentamente retocada e definida a partir de novos traços
que marcam o que é ser criança, convencionados pelo
mercado consumidor. O mesmo capital que construiu o
sentido moderno de infância burguesa está fazendo-a
desaparecer. Diferente, portanto, da afirmação defendida
por alguns sobre o fim da infância, o que poderíamos afirmar
é o fim de uma infância constituída temporalmente e não
o fim de uma posição social do ser criança, o que temos
é o estabelecimento de novos feixes, que consolidam
uma nova infância (LOPES; VASCONCELLOS, 2006, p.
123 – grifos meu).
Certamente, seria mais fácil buscar uma teoria que nos desse,
de antemão, passo por passo como a criança se comporta, como se
dão seus processos cognitivos e o que devemos fazer com ela. Mas
uma questão é fundamental de ser lembrada: a vida é maior que a
teoria, isto é, cada criança é diferente da outra e tem seus próprios
processos com ritmos pessoais. Quando temos uma teoria que já diz
como a vida deve caminhar, ao invés de permitirmos que a criança
se desenvolva por seus próprios caminhos na relação com o contexto
em que vive, impomos a ela um modo específico de pensar, agir e
sentir, ou seja, a massificamos – ideia contrária às atuais propostas
educacionais de respeito à diversidade. E para aquelas que resistem
à massificação, há outras teorias que dizem sobre “as dificuldades”
que elas têm. Mas será que a criança tem realmente dificuldade ou
ela apenas é diferente do que a teoria propõe?
Bem, há casos em que a criança realmente apresenta algum
“problema” – neurológico, motor etc. – e precisa de assistência
especializada. Mas, na maioria dos casos que observamos nas escolas
atuais, as crianças não têm problema algum, são, apenas, diferentes
do padrão cultural que a escola impõe. Faremos uma discussão mais
detalhada sobre esta questão no material de estudo de Psicologia da
75PedagogiaUESC
2U
nida
de
Educação II. Por ora, é importante lembrar que a vida é maior que
a teoria e que cada pessoa deve ser respeitada como é, com seus
diversos modos de ser, pensar, sentir e se expressar.
EXERCÍCIO
Reúna-se presencialmente em grupo com seus colegas e assista ao
curta-metragem “A Invenção da Infância”, de Liliana Sulzbach.
Com a ajuda do tutor, organize um debate a partir da ideia “Ser criança
não significa ter infância”, levantando as seguintes questões:
- Em que espaços as crianças aparecem?
- Em que ano, aproximadamente, as filmagens foram realizadas? Quan-
tos anos as crianças do documentário têm hoje? A idade delas é muito
distante da sua ou de seus filhos, sobrinhos etc.?
- Como as crianças se expressam sobre suas próprias vidas?
Lembre-se: este é um trabalho acadêmico. Não faça julgamentos de
valor sobre as pessoas que aparecem no documentário. A proposta do
exercício é amadurecer a ideia sobre diversidade e sobre a realidade
social, na qual as pessoas estão inseridas, e não dizer o que é “bom ou
ruim”, “certo ou errado”.
Bom exercício!
Título: A invenção da Infância;
Direção: Liliana Sulzbach;
Gênero: Documentário; Ano: 2000;
Duração: 26 minutos
Sinopse: “Ser criança não significa ter infância. Uma reflexão sobre o que é ser criança no mundo contemporâneo”.
Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
FICHA TÉCNICA
3.2 A adolescência existe?
A pergunta “a adolescência existe?” é feita pelos autores
Wanda Aguiar, Ana Bock e Sérgio Ozella (2002), como um modo de
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
76 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
problematizar o conceito de adolescência, tão naturalizado entre nós.
Segundo estes autores, é possível, sim, dizer que a adolescência
existe, com uma ressalva, no entanto: esta afirmação só pode ser feita
ao levarmos em consideração o momento histórico e cultural em que
estamos situados, pois a adolescência, assim como a infância, “não é
uma fase natural. É criada historicamente pelo homem, nas relações
sociais, enquanto um fato, e passa a fazer parte da cultura enquanto
significado” (p. 168). A adolescência, portanto, não existe enquanto
fase natural do desenvolvimento humano, para a qual são atribuídas
características como irresponsabilidade, rebeldia, indisciplina etc., ou
seja, a famosa fase da “aborrescência”: trata-se de uma categoria
construída sócio-historicamente para designar um período da vida do
ser humano que está relacionado à juventude.
Aguiar, Bock e Ozella (2002) ressaltam que:
A visão preconceituosa da adolescência como uma etapa
de crise e turbulência presente na Psicologia deveria
ser revista, no mínimo, por apresentar, potencialmente,
alguns riscos. Segundo Blasco, o primeiro risco seria
rotular de patológico o adolescente não-rebelde ou que
não aparente as dificuldades contidas na síndrome normal
da adolescência. O segundo risco seria que, ao considerar
‘saudável o ser anormal’, é possível que problemas
sérios que apareçam na adolescência não sejam
reconhecidos como tal’. Desta forma, algumas alterações
de comportamento que surjam nesta fase podem ser
minimizadas e atribuídas a ‘bobagens da idade’.
Foi essa a concepção de adolescente que permeou as teorias
psicológicas durante todo o século XX. É surpreendente que
mesmo com estudos antropológicos que vêm questionando
a universalidade dos conflitos adolescentes, a Psicologia
convencional insista em negligenciar a inserção histórica
dos jovens, suas condições objetivas de vida (p. 165).
Desta forma, a Psicologia atual tem revisitado a concepção de
adolescência, descartando a possibilidade de considerar “adolescência”
como um período natural no desenvolvimento, e sim como uma
categoria histórico-cultural e, portanto, datada e contextualizada. E,
sendo cultural e histórica, é preciso que consideremos as múltiplas
possibilidades de modos de ser adolescente no mundo em que
vivemos, sem criar padrões pré-definidos sobre o “ser adolescente”.
Ana Bock (2004) discorre sobre a origem da noção de
adolescência que se difundiu nas sociedades ocidentais como uma
fase naturalmente “confusa’ da vida humana:
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nida
de
SAIBA MAIS
A visão naturalizante da adolescência
A adolescência tem sido tomada, em quase toda a produção sobre o assunto, na Psicologia, como uma fase natural do desenvolvimento, isto é, todos os seres humanos, na medida em que superam a infância, passam necessariamente por uma nova fase, intermediária à vida adulta, que é a adolescência. Inúmeros estudos dedicaram-se à caracterização dessa fase e a sociedade apropriou-se desses conhecimentos, tornando a adolescência algo familiar e esperado. Junto com os primeiros pêlos no corpo, com o crescimento repentino e o desenvolvimento das características sexuais, surgem as rebeldias, as insatisfações, a onipotência, as crises geracionais, enfim tudo aquilo que a Psicologia, tão cuidadosamente, registrou e denominou de adolescência. Torna-se necessário revisitar e rever o conceito porque, em suas concepções, a Psicologia naturalizou a adolescência. Considerou-a uma fase natural do desenvolvimento, universalizou-a e ocultou, com esse processo, todo o processo social constitutivo da adolescência. Foi Erickson quem institucionalizou a adolescência. Apresentou-a a partir do conceito de moratória e caracterizou-a como uma fase especial no processo de desenvolvimento, na qual a confusão de papéis, as dificuldades para estabelecer uma identidade própria a marcavam como ‘um modo de vida entre a infância e a vida adulta’. Erickson foi seguido de muitos autores. Na América Latina cabe destacar Aberastury; Knobel (1989), os quais, com sua obra, tornaram-se referência para profissionais de várias áreas. Knobel introduziu a noção de ‘síndrome normal da adolescência’, caracterizada por uma sintomatologia que inclui: ‘1) busca de si mesmo e da identidade; 2) tendência grupal; 3) necessidade de intelectualizar e fantasiar; 4) crises religiosas, que podem ir desde o ateísmo mais intransigente até o misticismo mais fervoroso; 5) deslocalização temporal, onde o pensamento adquire as características de pensamento primário; 6) evolução sexual manifesta, que vai do auto-erotismo até a heterossexualidade genital adulta; 7) atitude social reivindicatória com tendências anti ou associais de diversa intensidade; 8) contradições sucessivas em todas as manifestações da conduta, dominada pela ação, que constitui a forma de expressão conceitual mais típica deste período da vida; 9) uma separação progressiva dos pais; e 10) constantes flutuações de humor e do estado de ânimo’. Estava naturalizada a adolescência. Bastava a todos aguardarem que a adolescência um dia chegaria. Um caráter universal e abstrato foi dado a ela; inerente ao desenvolvimento humano, a adolescência não só foi naturalizada como foi tomada como uma fase difícil. Uma fase do desenvolvimento, semipatológica, que se apresenta carregada de conflitos ‘naturais’. A cultura aparece apenas como molde da expressão de uma adolescência natural, que em contrapartida sofre com a pressão exercida pela sociedade atual, a qual impõe a moratória ao adolescente pela dificuldade e demora em ingressar no mundo do trabalho. Nessas construções teóricas encontramos a visão de que o homem é dotado de uma natureza, dada a ele pela espécie, e, conforme cresce, desenvolve-se e relaciona-se com o meio, vai atualizando características que já estão lá, pois são de sua natureza. A adolescência pertence a esse conjunto de aspectos. Suas características são decorrentes do ‘amadurecer’; são hormônios jogados na circulação sanguínea e o desabrochar da sexualidade genital os fatores responsáveis pelo aparecimento da sintomatologia da adolescência normal. Inúmeros estudos têm sido feitos sem que se apresente uma nova versão ou conceituação para a adolescência capaz de superar a visão naturalizante (BOCK, 2004, p. 32-34).
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
78 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
Ressalto aqui que esta visão de “adolescência problemática”
descrita por Bock (2004) é uma visão bastante preconceituosa
e estereotipada deste momento da vida, como Aguiar, Bock e
Ozella (2002) já afirmaram. E, apesar de não ter surgido nenhuma
conceituação fechada que descreva a adolescência, muitos estudos
têm se desenvolvido sobre o tema no sentido de desconstruir a ideia
da “aborrescência”. A seguir farei uma explanação de alguns desses
estudos e pesquisas.
Segundo estudos de Wanda Aguiar, Ana Bock e Sérgio Ozella
(2002), a ideia de adolescência é uma construção social e, enquanto
tal, produz subjetividades. Não podemos negar que à adolescência
são associadas marcas biológicas no corpo, mas não podemos reduzi-
la às mudanças biológicas. As próprias transformações do corpo vêm
a constituir a adolescência como um fenômeno social, lembrando
que até mesmo as marcas corporais são significadas socialmente.
Vejamos um exemplo:
Os seios na menina e os músculos no menino. Sabemos
que os seios e o desenvolvimento da massa muscular
acontecem na mesma fase da adolescência, mas a menina
que tem seus seios se desenvolvendo não os vê, sente e
significa como possibilidade de amamentar seus filhos no
futuro, o que seria vê-los como naturais. Com certeza,
em algum tempo ou cultura isso já foi assim. Hoje, os
seios tornam as meninas sedutoras e sensuais. Esse é o
significado atribuído em nosso tempo. A força muscular
dos meninos já foi significada como possibilidade de
trabalhar, guerrear e caçar. Hoje é beleza, sensualidade e
masculinidade (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2002, p. 168).
Desta forma, mais do que perguntar o que é adolescência,
devemos nos perguntar: como se constituiu historicamente esta
categoria que atribui características específicas a certo período
de nossas vidas dentro de um contexto também específico? Ficou
complicada esta pergunta? Então vamos desmembrá-la:
• primeiro temos que compreender que não existe “a adolescência”
em si, mas a adolescência como categoria histórico-cultural, isto
é, como uma ideia formulada pelos homens (e não originária da
natureza) sobre um determinado período da vida do ser humano,
numa determinada época da história e num determinado contexto
cultural;
• em segundo lugar, dependendo do momento histórico em que
estamos vivendo, nós formamos nossa subjetividade em estreita
79PedagogiaUESC
2U
nida
de
relação com as questões políticas, econômicas e sociais da época;
• e, em terceiro lugar, dependendo do contexto cultural em
que nós nascemos e somos criados – incluindo aí, claro, as
questões históricas anteriormente mencionadas – vamos formar
determinados sistemas de crenças, hábitos e valores sobre modos
de lidar com outros seres humanos e com a vida.
Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt (1996) ressaltam a
impossibilidade de traçar uma definição exata, com limites rígidos,
sobre o que é a juventude. Trata-se de um período de vida do ser
humano “irredutível a uma definição estável e concreta” (p. 10). Nem
mesmo a idade torna possível tal feito, uma vez que a idade tem um
caráter provisório e transitório e, mais do que outros momentos da
vida do ser humano, a condição de jovem alonga-se ou encurta-se
dependendo do contexto no qual está inserido.
Não é possível falar, portanto, em uma história dos jovens, e
sim em “histórias que concernem a juventudes e, sobretudo, jovens,
reinseridos no emaranhado das relações sociais específicas, ligados a
contextos e a momentos históricos distintos” (LEVI; SCHMITT,1996,
p. 10). Precisamos, portanto, pensar nas condições históricas e sociais
que constroem modos de ser jovem. Aguiar, Bock e Ozella (2002)
destacam alguns aspectos que apontam para uma explicação sobre
o surgimento da categoria “adolescente” na nossa sociedade. Vale
lembrar que, do mesmo modo que há uma diferenciação entre “criança
e infância”, é necessário diferenciar “juventude e adolescência”. Leia
o texto a seguir:
ATENÇÃO
O surgimento sócio-histórico da categoria “adolescente”
Na sociedade moderna, o trabalho, com sua sofisticação tecnológica,
passou a exigir um tempo prolongado de formação, adquirida na escola, reunindo
em um mesmo espaço jovens e afastando-os do trabalho por algum tempo. Além
disso, o desemprego crônico/estrutural da sociedade capitalista trouxe a exigência
de retardar o ingresso dos jovens no mercado e aumentar os requisitos para esse
ingresso, o que era respondido pelo aumento do tempo na escola.
A ciência, por outro lado, resolveu muitos problemas do homem e ele teve
a sua vida prolongada, o que trouxe desafios para a sociedade, em termos de
mercado de trabalho e formas de sobrevivência.
Estavam dadas as condições para que se mantivessem as crianças mais
tempo sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de trabalho. Mantê-las na
escola foi a solução. A extensão do período escolar e o conseqüente distanciamento
dos pais e da família e a aproximação de um grupo de iguais foram as conseqüências
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
80 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
A constituição do grupo social denominado “adolescentes”
instala-se em nossa sociedade sob a égide da contradição: ao mesmo
tempo em que estes jovens apresentam desenvolvimento cognitivo,
afetivo, capacidade de trabalho e de reprodução necessários para o
ingresso no mundo adulto, são impedidos, socialmente, de trilhar tal
caminho pela sociedade adulta que não lhes permite trabalhar, não
possibilitando a construção de condições de sustento e da autonomia.
Com isso, “aumenta o vínculo de dependência do adulto, apesar de já
possuir todas as condições para estar na sociedade de outro modo”
(AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2002, p. 170).
Esta contradição caracterizará esta fase da vida humana de
um modo geral, e contribuirá para o aparecimento de características
que os adultos identificam como rebeldia, instabilidade etc. Tais
características, no entanto, não são naturais, e sim históricas e
culturais. É preciso estarmos atentos à contradição que se instala
para que seus efeitos sejam minimizados, pois:
Alguém que está apto a fazer muitas coisas da vida
adulta e que não tem autorização para isso é alguém que
deixa de experimentar suas possibilidades na realidade
social, podendo mesmo se ver como onipotente, pois
também não testa seus limites e impossibilidades. Essas
características, tão bem anotadas pela Psicologia, ao
contrário da naturalização que se faz delas, são históricas,
isto é, foram geradas no processo histórico da sociedade
e vão se transformar ou ser reforçadas, dependendo
das condições materiais da vida de um determinado
grupo social (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2002, p. 170 –
grifos meu).
dessas exigências sociais. A sociedade então assiste à criação de um novo grupo
social com padrão coletivo de comportamento: a juventude/a adolescência.
A adolescência se refere, assim, a esse período de latência social constituída
a partir da sociedade capitalista gerada por questões de ingresso no mercado
de trabalho e extensão do período escolar, da necessidade do preparo técnico
(AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2002, p. 170).
ATENÇÃO
81PedagogiaUESC
2U
nida
de
Assim, como vimos anteriormente nos estudos sobre a criança
e a infância, não há um conjunto de características que sintetize o
que é o adolescente. É preciso buscar, em cada tempo e espaço,
uma compreensão do que seja ser jovem/adolescente em um dado
contexto. Características mais gerais que podemos traçar, a partir de
uma compreensão histórica de constituição desta categoria, precisam
também ser observadas com cuidado. Podemos, por exemplo, afirmar,
de um modo geral, que os grupos sociais aos quais os jovens se ligam
afetivamente, fora da sua família, constituem-se como um grupo de
pressão que impõe valores e comportamentos, assim como os meios
de comunicação. No entanto, cada grupo social se organizará de um
modo específico, exercendo mais ou menos pressão sobre o jovem,
e este terá um olhar mais ou menos crítico sobre o contexto em que
está inserido. Desta forma, antes de rotular o adolescente, é preciso
olhá-lo com olhos livres de preconceito e buscar compreendê-lo sem
silenciá-lo.
Lúcia Rabello de Castro e Jane Correa (2005) afirmam que:
Os problemas que os jovens enfrentam, os modos de vida
EXERCÍCIO
Assista ao curta-metragem “Antes que seja tarde”, de André Queiroz, e
responda individualmente, por escrito:
- Que características do personagem principal Digo você diria que são
típicas da adolescência?
- Agora, com base na leitura deste material de estudo, como você
explica as atitudes de Digo a partir do contexto histórico e cultural em
que o personagem vive?
Debata estas questões com seus colegas no Fórum de Discussão Virtual.
Bom exercício!
FICHA TÉCNICA
Título: Antes que Seja Tarde;
Diretor: André Queiróz; Gênero: Ficção; Ano: 2007; Duração: 14 min.
Sinopse: Digo é um adolescente mal-humorado em crise com as mudanças na sua vida desde que terminou o colégio. Ele não quer seguir adiante, mas o resto do mundo não vai parar de andar só porque ele precisa de um tempo.
Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
82 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
que escolhem, as idéias que professam – são complexas e necessitam
de compreensão apurada. Essa compreensão não resulta de tentativas
de colocar as questões de modo binário – por exemplo, os jovens são
assim ou assado, fazem isso ou aquilo –, obtendo-se uma imagem de
fácil absorção, porém imprecisa da juventude. Sobretudo as questões
que atingem a juventude contemporânea, não podendo encapsular-
se numa única chave de respostas, devem ser submetidas a um
escrutínio lento que nem sempre gera saberes acabados e totalizadores
(CASTRO; CORREA, 2005, p. 10).
Castro e Correa (2005) afirmam a necessidade de estabelecer uma
visão aberta sobre a juventude, “que se refaz e se corrige continuamente”
através de muitas situações específicas e particulares que se desestabilizam
permanentemente. Trata-se de um trabalho lento e infindo de construção do
conhecimento, “pois sempre se podem encontrar situações particulares que não
se enquadram no que pensamos ou prevemos inicialmente” (p. 11). Para as
autoras Lúcia Rabello de Castro e Jane Correa (2005), a abertura do pensamento
é essencial para compreendermos os jovens na atualidade.
Castro e Correa (2005) compartilham com Aguiar, Bock e Ozella (2002),
a ideia de que os jovens foram afastados da sociedade com o conseqüente
“confinamento” do mesmo aos espaços da família e da escola, sendo “colocados
distantes da ‘vida real’, do trabalho, das obrigações, excetuando-se os estudos”
(p. 14). Com isso, tornaram-se raros os espaços públicos destinados aos jovens,
tornando-se igualmente escassas as possibilidades de socialização.
No Brasil são poucos os espaços instituídos de sociabilidade destinados
aos jovens, circunscrevendo-se, principalmente, à escola. Crianças
e jovens reiteram que vêem a escola como o espaço de fazer e
encontrar amigos, o que consideram um dos principais aspectos dessa
instituição, mais até do que aprender os conteúdos disciplinares.
A escola, por sua vez, parece resistente a assumir essa função –
promover a sociabilidade – como uma de suas principais vocações
na atualidade. A preocupação com a educação para a cidadania e
participação se inscreve na escola, freqüentemente, em torno da
internalização da regra feita pelos outros (os adultos, os professores),
e não da negociação dos impasses e dos conflitos. [...]. Conflitos e
divergências são, em geral, contidos e abafados tendo em vista que
geram dispersão em relação ao que deve ser alcançado: a reprodução
dos conteúdos escolares do mestre para o aluno e a internalização de
regras de conduta (CASTRO; CORREA, 2005, p. 19-20).
Tornar a escola um espaço de aprendizagem não-normativa é um grande
desafio na atualidade, especialmente no sentido de transformar este espaço em
um espaço real de construção de cidadania, compreendendo, aqui, cidadania
não como normas e regras, mas como um conjunto de direitos civis, sociais
e políticos. Os direitos civis são aqueles referentes às questões fundamentais
83PedagogiaUESC
2U
nida
de
“à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei” e
aos quais as crianças e os jovens não têm pleno acesso por serem
considerados “sujeitos não-completos do ponto de vista cognitivo,
emocional e social”. Os direitos sociais são aqueles que tornam os
sujeitos alvo da lei e, neste caso, crianças e jovens usufruem de leis
que os protegem de abusos e maus-tratos. Os direitos políticos nos
permitem votar e ser votados, nos organizar em partidos políticos
e participar dos destinos da sociedade. Em relação a este direito,
“crianças e jovens se tornam meros espectadores das vontades dos
adultos, que decidem sozinhos os rumos da nação” (CASTRO, 2001a,
p. 116-117). Dado este contexto, Lúcia Rabello de Castro (2001a)
aponta que:
[...] é importante enfatizar que, excluídos da participação
nos rumos da sociedade, restritos em sua liberdade de
expressão, manifestação e mobilidade, e desiguais perante
a lei frente aos adultos, crianças e jovens estão, nesta
sociedade historicamente datada, numa redoma onde
dificilmente têm oportunidades de viver o aprendizado de
direitos e deveres, a não ser em situações de faz-de-conta
que pouco acrescentam para uma experiência verdadeira
de cidadania (p. 117).
Em estudo de Castro e Correa (2005) sobre a participação
de jovens dentro de escolas da cidade do Rio de Janeiro, as autoras
observaram a dificuldade dos jovens para falar e escutar uns aos
outros, assim como a dificuldade de se sentirem aceitos e reconhecidos
pelos colegas a partir de suas falas. Tal dificuldade, expressa através
de hostilidade, desconfiança e ressentimentos, é explicada pela falta
de espaço para trocas de ideias e construção de ações coletivas
entre os jovens, que, desde crianças, são silenciados pela sociedade
adultocêntrica e adultocrática. Desta forma, “ao se propiciar aos
jovens um espaço livre de fala e reflexão, parece ‘vir à tona’ uma
massa virulenta de emoções que entope as vias de comunicação” (p.
20).
A tarefa inicial com estes jovens é construir neles e com
eles uma subjetividade propícia à troca de ideias, para a qual
o adulto pode dar o suporte, desde que não imponha regras ou
normas. As inseguranças e agressões que acabam por inviabilizar
os diálogos devem ser compreendidas como um modo de denunciar
o silenciamento histórico a que vêm sendo submetidas crianças e
jovens. A escola, desta forma, pode se transformar em espaço de
construção de cidadania, iniciando sua ação pela simples atitude de
dar voz a estes sujeitos. Porém, Castro e Correa (2005) destacam
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
84 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
uma condição fundamental:
[...] o suporte institucional da escola é fundamental
nesse processo, quando professores e a direção
acreditam na capacidade dos alunos e lhes dão crédito.
Significa um investimento paciente nas tentativas que os
jovens ensaiam, tímida e canhestramente, de assumir
responsabilidades de sentir e dizer (CASTRO; CORREA,
2005, p. 20-21 – grifos no original).
Deste modo, formar o cidadão – discurso tão repetido
atualmente, mas infelizmente pouco compreendido pelos educadores
– é, antes de mais nada, dar voz às crianças e jovens que em nossa
sociedade vivem silenciados sob o jugo do adulto. Vejamos como
Castro (2001) define o “tornar-se cidadão”:
ATENÇÃO
Tornar-se cidadão
[...] As pessoas se tornam cidadãs à medida que passam a sentir-se parte
de uma nação e de um Estado, onde a lealdade ao Estado e a identificação a uma
nação são elementos imprescindíveis. Tanto sentir-se parte como identificar-se
constituem condições subjetivantes da cidadania, isto é, só haverá exercício efetivo
da cidadania quando este sujeito – criança e jovem – encontre condições que
favoreçam seu pertencimento e sua identificação a algo maior que é a sua nação
ou o seu Estado. Neste sentido, crianças e jovens brasileiros, para se tornarem
cidadãos, deveriam sujeitar-se ao processo de se verem, sentirem e pertencerem
a este algo maior que denominamos Brasil. Ora, pertencimento e identificação são
construídos ao longo da vida de uma criança ou de um jovem, quando práticas
e discursos tendem a interpelá-Ios no sentido de responder a questões, tais
como ‘quem somos nós, os brasileiros?’, ‘como somos, os brasileiros?’, ‘para onde
vamos, nós, os brasileiros?’. A resposta que cada jovem ou criança elabora para
tais questões constitui o caminho que os prepara psicologicamente à condição do
exercício da cidadania.
Entretanto, esta não é e não deve ser uma resposta apenas formal e
intelectualizada. Quantos jovens e crianças resistiriam a tomar por brasileiros
como eles mesmos, outros tantos brasileiros, só que mais pobres, mais doentes,
mais rotos, recusando-se, portanto, a identificar-se com eles? Assim, a apreensão
de uma nação e a identificação com ela constrói-se também no registro afetivo,
nas camadas mais profundas, não conscientes, do sujeito a partir de múltiplas
experiências onde crianças e jovens têm de enfrentar os conflitos e as provações
da convivência com pessoas diferentes para então estabelecerem sua apreensão
do que faz e como faz o brasileiro, brasileiro. Nascemos brasileiros apenas
formalmente, mas tornamo-nos, de fato, brasileiros, como identidade coletiva,
quando construirmos paulatinamente através de nossas práticas cotidianas
o sentimento de um povo, ape¬sar das diferenças étnicas, sociais e culturais
existentes.
85PedagogiaUESC
2U
nida
de
Construção da cidadania pela identificação com o outro, a
partir de um sentimento de igualdade, requer quebra de hierarquias
sociais e a compreensão de que somos todos iguais e temos direito
à voz, incluindo aí crianças, jovens, adultos e idosos, sem distinção
de valor, como ressalta o artigo primeiro da Declaração Universal dos
Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos” (ONU, 1948).
4 IDADE ADULTA E VELHICE FAZEM PARTE DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO?
4.1 Por uma Psicologia do adulto
Trabalhando com o conceito de “ciclos de vida”, Marta Kohl de
Oliveira (2004) propõe uma Psicologia do adulto a partir da noção de
que os “processos de transformação ocorrem ao longo de toda vida
do sujeito e estão relacionados a um conjunto complexo de fatores”
(p. 213). Diferentemente da Psicologia, que utiliza a noção de etapas
ou estágios de desenvolvimento, os ciclos de vida buscam uma
compreensão minuciosa do fenômeno do desenvolvimento através de
um percurso histórico e cultural da vida humana.
ATENÇÃO
E que diferenças! [...] Uma das nossas heranças mais enraizadas,
antitéticas ao espírito de liberdade e igualdade é a escravidão, que neste país teve
lugar por mais de trezentos anos, e que de tal modo permeou os corações e os
corpos dos brasileiros que fica difícil não atualizar diferenças sociais em termos da
hierarquia senhor/escravo. Desta forma, a subjetividade brasileira teria este algo
a superar que é a interpelação permanente para re-atualizar a qualquer momento
que uns são senhores e outros são subalternos, de que uns são mais ‘iguais’ do
que os outros. [...].
Quais seriam, para este jovem, as oportunidades para identificar-se com
aquele outro jovem, digamos, negro, pobre, sem educação, que é visto ao longe
através do vidro do carro em que anda pela cidade? De que forma este jovem
poderia sentir e construir dentro de si um registro de ‘ser brasileiro’ que abarque
este outro, tão diferente dele mesmo? Até porque, é a partir desta construção,
interna, sentimental e afetiva, que é possível uma identificação com o outro e,
portanto, uma ação. Assim, ampliar e diversificar as possibilidades de convivência
em que o outro diferente se afirme plenamente, desestabilizando a convivência
homogênea dos iguais, parece ser uma das formas pelas quais crianças e jovens
podem criar registros mais amplos e democráticos de cidadania (CASTRO, 2001a,
p. 117-119 – grifos no original).
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
86 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
É importante destacar que, além da ênfase nos processos
de origem biológica, a busca da universalidade como meta
maior do empreendimento científico tem resultado na
apresentação daquilo que é contextualizado historicamente
como sendo universal. Pensemos, por exemplo, nos
grandes períodos em que normalmente tem sido dividida
a vida humana – a infância, a adolescência, a idade adulta
e a velhice. Essas etapas nos têm sido apresentadas como
universais e associadas a características comuns a todas
as pessoas e a todos os grupos humanos: a infância como
o período em que ocorrem as experiências com efeito
determinante e configurador de todo o desenvolvimento
posterior, a adolescência como a época das mudanças
drásticas e turbulentas, a idade adulta como o momento
de estabilidade e ausência de mudanças importantes e
a velhice como sinônimo de deterioração dos processos
psicológicos. Por não levar em conta aspectos da
história cultural e da história individual dos sujeitos,
essa perspectiva não contempla a multiplicidade de
possibilidades de desenvolvimento humano. Para contestar
essa suposta universalidade, basta imaginar e comparar
pessoas de diferentes grupos culturais nas mesmas etapas
de desenvolvimento: uma criança de classe média alta,
de sete anos, em Nova York, freqüentando a escola, e
uma criança de sete anos na zona rural do Afeganistão,
que trabalha no campo e cuida dos irmãos menores; uma
jovem paulistana que faz curso de inglês com intenção de
inscrever-se num programa de intercâmbio e ir estudar
na Austrália e outra jovem paulistana que mora nas ruas
e está grávida do segundo filho; e uma dona de casa
carioca, um monge do Tibete e um cientista inglês, o que
têm em comum como adultos? (OLIVEIRA, 2004, p. 214-
215).
Oliveira (2004) ressalta que a perspectiva de compreender
o desenvolvimento humano de modo universal não contempla a
proposição básica de que desenvolvimento é transformação. Neste
sentido, ao adotarmos uma perspectiva histórico-cultural, e não-
universalista, temos que considerar que “a cultura tem que ser o
princípio explicativo da mente especificamente humana” (p. 216), ou
seja, ao invés de considerar que a mente humana existe como algo
dado e que sofre transformações através da história e da cultura,
é preciso considerar que a mente humana, seu desenvolvimento e
funcionamento, se constroem histórica e culturalmente.
Os ciclos de vida, portanto, são “ciclos culturalmente
organizados de passagem dos sujeitos pela existência humana”
(OLIVEIRA, 2004, p. 216), e sua compreensão pede muito mais do
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nida
de
que uma designação genérica de fases do desenvolvimento. Para
entendê-los é necessário analisar diferentes práticas culturais, com
seus modos de produção de sentidos e significados compartilhados
que instituem modos de fazer, de pensar, de agir e de sentir.
Ao propor uma Psicologia do adulto, Oliveira (2004) ressalta
que:A Psicologia não tem sido capaz de formular, de modo
satisfatório, uma Psicologia do adulto. Na verdade, as
teorias psicológicas são menos articuladas e complexas
quanto mais avançamos no processo de desenvolvimento
da pessoa: sabemos muito sobre bebês, bastante sobre
crianças, menos sobre jovens e quase nada sobre adultos.
As questões analisadas anteriormente explicam bem
essa peculiaridade da Psicologia: como esta tem sido
tradicionalmente uma ciência do indivíduo e que pretende
chegar a explicações universais para o desenvolvimento
humano e quanto mais jovens mais similares entre si são
os indivíduos dos vários grupos culturais, de certa forma é
mais fácil construir teoria para as etapas da vida em que
os sujeitos humanos são mais próximos de sua origem
animal, sem tanto peso da cultura em sua constituição.
Bebês de três meses, por exemplo, de qualquer tempo e
lugar, são muito mais parecidos entre si do que crianças
de quatro anos, que já dominam a língua do seu grupo
cultural, do que escolares, que já foram submetidos ao
mundo da escrita e do conhecimento sistematizado, e,
claro, do que adultos, inseridos no mundo do trabalho,
das relações familiares complexas e da própria condução
do ‘projeto cultural’ de constituição dos membros plenos
das diferentes culturas. A questão que se apresenta aqui
é, então, como caracterizar a idade adulta. (OLIVEIRA,
2004, p. 217).
A noção de que, na idade adulta, os sujeitos encontram a estabilidade
psicológica, sendo caracterizada pela ausência de mudanças
significativas é completamente inadequada. Os adultos trabalham,
relacionam-se amorosamente, constituem família, educam crianças,
constroem projetos individuais e coletivos etc. Tais aspectos implicam
em escolhas constantes e trazem em si um potencial de transformação
muito grande. Segundo Marta Kohl de Oliveira (2004):
A compreensão aprofundada de uma Psicologia do adulto
não pode ser feita em termos abstratos. Se, conforme
discutido anteriormente, os ciclos de vida deveriam
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
88 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
ser compreendidos a partir dos tipos de atividade em
que os sujeitos estão envolvidos e os correspondentes
instrumentos, signos e modos de pensar, temos que
estabelecer de que adultos estamos falando. A busca de
caminhos para a historicização da Psicologia do adulto nos
conduziu a trabalhar não com a categoria abstrata ‘adulto’,
mas a focalizar um grupo cultural específico (OLIVEIRA,
2004, p. 218).
Desta forma, retomando questões que apontamos na discussão
sobre a caracterização da infância, da adolescência e, agora, da idade
adulta, a partir de uma perspectiva da Psicologia sócio-histórica, é
necessário analisar os sujeitos no contexto em que estão inseridos,
englobando neste contexto não apenas aspectos referentes à
família e ao bairro em que moram, mas aspectos em escala micro –
grupo social do qual faz parte, família, bairro, cidade – e em escala
macrossocial – o país e as questões econômicas, políticas, culturais
da conjuntura mundial. É preciso, portanto, “mapear as condições
específicas de pertinência cultural dos sujeitos adultos focalizados”
(p. 218). Oliveira (2004), em pesquisa com adultos trabalhadores
que frequentam cursos supletivos, lança as seguintes questões para
realizar o mapeamento dos sujeitos em questão:
Quando falamos em trabalhadores, de que tarefas
efetivamente desempenhadas estamos falando? De tarefas
coletivas ou desempenhadas isoladamente? De que grau
de responsabilidade na condução do cotidiano no mundo
do trabalho? De que história ocupacional, experiências
prévias, formação profissional, projetos para o futuro?
De que tipo e grau de envolvimento com sindicatos e
outras associações de classe? E a exclusão da escola, o
que significa exatamente? Qual a história concreta de
passagem pela escola, as representações sobre valor e
interesse da escola, motivações, projetos? A que tipo de
tecnologia e de linguagens o sujeito tem acesso? Para que
finalidade e com que grau de domínio? (OLIVEIRA, 2004,
p. 218).
O mapeamento é um conjunto de questões que elaboramos,
englobando vários aspectos que devem ser considerados para a
compreensão dos sujeitos que estão inseridos numa realidade
específica. Tais perguntas não devem ser respondidas de maneira
genérica, e sim verificadas a partir do contato com os sujeitos em
questão. O mesmo devemos fazer quando nos relacionamos com
nossos alunos, sejam eles crianças, adolescentes, adultos ou idosos.
Antes de “saber algo sobre eles”, a partir da simples observação e
89PedagogiaUESC
2U
nida
de
pré-julgamento, devemos saber que nada sabemos sobre o outro.
Ao invés de rotularmos aquele aluno irrequieto como “aluno
indisciplinado”, temos que nos perguntar muitas coisas sobre ele e
sobre a realidade em que ele está inserido, incluindo aí a própria
organização da escola, de seus conteúdos, seus horários, as relações
entre os alunos, as condições de vida de sua família (veremos esta
questão na próxima unidade). Se for uma criança, devemos nos
perguntar sobre o modo como se concebe a criança e a infância no local
de onde a mesma vem; se for adolescente, adulto ou idoso, devemos
fazer o mesmo, pois, como vimos anteriormente, o espaço é sempre
uma categoria a ser considerada quando buscamos compreender o
ser humano de modo histórico-cultural.
PARA REFLETIR
E que tipo de perguntas você faria se resolvesse estudar um
grupo de adolescentes que faz trabalho voluntário em asilos
para idosos?
A prática de “mapear as condições específicas de pertinência
cultural”, proposta por Oliveira (2004), certamente não nos permite
permanecer na confortável posição de acharmos que temos
conhecimentos prontos sobre a vida e os sujeitos que dela fazem
parte. O mapeamento implica, necessariamente, trabalho. Trabalho
intelectual que se faz a partir da relação teoria-prática, na qual não
há regras prontas, nem receitas a serem seguidas. Trata-se de um
conhecimento teórico acumulado e que deve ser usado como um
instrumental intelectual a partir do qual buscamos compreender o
mundo que nos cerca.
A relação entre teoria e prática não é dada na formação
universitária. Ela deve ser construída como um processo de formação
que não se esgota no dia em que as disciplinas a serem cursadas
terminam, ou no dia em que o graduando recebe seu diploma. A relação
entre teoria e prática se constrói ao longo de toda vida profissional,
através de dúvidas que serão esclarecidas com novos estudos teóricos
que não foram fornecidos durante o curso universitário. Este fornece
uma base de cultura geral acerca da profissão escolhida, e esta base
deve servir de chão sobre o qual o profissional caminhará, cultivando
e plantando, sempre, novas sementes de conhecimento. Desta forma,
ao longo de sua prática profissional, tais conhecimentos poderão ser
utilizados como base de suas reflexões e ações.
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
90 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
Retomando Oliveira (2004), apenas a partir da relação teoria-
prática é possível construirmos práticas pedagógicas de compreensão
dos sujeitos com os quais nos relacionamos profissionalmente:
Nesse sentido os jovens e adultos concretos que se
encontram na sala de aula deveriam ser objeto de
conhecimento aprofundado, por meio da investigação
sobre seu modo de inserção na vida social, suas atividades,
seu acesso a diferentes tecnologias e linguagens, a partir
do qual poderia ser estabelecido um diálogo com os
instrumentos, signos e modos de pensar que são próprios
da escola [...]. As práticas escolares assim construídas
tomariam esses alunos como sujeitos humanos plenos, em
constante constituição por meio da imersão em situações
concretas de construção de significações. A superação da
exclusão do mundo letrado e escolarizado passaria, desse
modo, não apenas pela oferta de oportunidade formal de
elevação de escolaridade, mas pela apropriação da escola,
pelos sujeitos adultos, como lugar social que é de todos os
atores que nela interagem (OLIVEIRA, 2004, p. 226-227).
Desta forma, quando, na primeira Unidade, discorremos
sobre uma Psicologia e uma Educação compromissadas com o social,
falamos em uma prática pedagógica que seja de fato inclusiva, não
apenas no aspecto das pessoas terem acesso à escolarização. O
acesso é fundamental, mas não basta. É importante que as práticas
pedagógicas sejam pensadas e construídas para os sujeitos concretos
que compõem a realidade escolar, e não para sujeitos abstratos, pré-
definidos por teorias a partir de “condições normais de temperatura e
pressão”. É com e para os alunos – crianças, adolescentes, adultos e
idosos – que fazem o cotidiano da escola que as práticas pedagógicas
devem existir.
PARA REFLETIR
Idosos são adultos?
Por que separamos os estudos sobre idosos e sobre adultos? Qual é o limite
não-jurídico para dizemos que alguém é ou não idoso?
Uma pessoa de 50 anos é “velha”? Aos olhos de uma criança ou adolescente,
talvez seja... aos olhos de uma pessoa de 40, talvez não, e aos olhos de
uma pessoa de 80, será um jovem.
Então, o que é “velhice”? A partir de que critérios consideramos o outro e
a nós mesmos como idosos?
91PedagogiaUESC
2U
nida
de
4.2 Desenvolvimento e envelhecimento
Em nossa sociedade não é simples circunscrever o que é a
velhice ou o ser idoso. Simone de Beauvoir (1990), em seu livro A
Velhice, aponta que se trata de um fenômeno biológico, psicológico
e existencial – “modifica a relação do indivíduo com o tempo e,
portanto, sua relação com o mundo e com sua própria história” (p.
15). Estes três aspectos estão estreitamente articulados ao fato de
que “o homem não vive em estado natural; na sua velhice, como
em qualquer idade, seu estatuto lhe é imposto pela sociedade à qual
pertence” (p. 15).
Segundo Anita Liberalesso Neri (2001a), a gerontologia e a
geriatria, ao longo do século XX, consideraram o envelhecimento
como “um problema a ser resolvido”, “a antítese do desenvolvimento”
e até mesmo como “sinônimo de doença” (p. 07). No entanto, as
experiências de envelhecimento das populações de várias partes do
mundo trouxeram considerações sobre a possibilidade de uma velhice
saudável, incorrendo no movimento oposto ao modo negativo como
se considerava o envelhecimento: “um novo e talvez exagerado
otimismo” (p. 07).
Passados os períodos extremos de pessimismo e otimismo,
uma grande quantidade de estudos da Medicina, Psicologia, Biologia,
Antropologia e Sociologia traçaram três ideias fundamentais:
“o desenvolvimento é um processo finito”;
“desenvolvimento e envelhecimento são processos concorrentes”;
“ambos os processos são afetados por uma complexa relação de
variáveis operando ao longo de toda a vida” (NERI, 2001a, p. 08).
Das três proposições expostas, talvez a que provoque
maior estranheza seja a segunda afirmação – “desenvolvimento e
envelhecimento são processos concorrentes”. Mas ao olharmos a
vida dos seres vivos de um modo geral, verificamos que os ganhos
e perdas estão presentes em todos os momentos da vida. Nos seres
humanos, da infância à velhice, atravessamos os processos que
chamamos comumente de “crescimento, ganho ou progresso” e
“perdas e degenerações”. Anita Neri (2001b) afirma que:
[...] os estágios de desenvolvimento não são de origem
ontogenética, mas, sim, sociogenética. Isto é, a
sociedade constrói cursos de vida na medida em que
prescreve expectativas e normas de compor tamento
apropriado para as diferentes faixas etárias, diante
de eventos marcadores de natureza biológica e social, e
na medida em que essas normas são internalizadas pelas
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
92 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
pessoas e instituições sociais. Alguns ocorrem em épocas
previsíveis, como, por exemplo, a menarca, o clima-
tério, o ingresso na escola primária, o direito de votar, o
serviço militar, a entrada no mercado de trabalho. Outros
comportam variações, mas, ainda assim, são relativamente
previsíveis, como acontece com o casa mento, o nascimento
do primeiro filho e a aposentadoria. Em torno deles,
configuram-se as tarefas evolutivas, que correspondem ao
desempenho de papéis sociais, ao exercício de atividades
e à exibição de competências, crenças e valores que uma
dada sociedade convencionou serem típicos daquela fase
da vida. Eventos que ocorrem de modo imprevisto –
como acidentes, doenças e premiações em jogos de azar,
ou mesmo a experiência de viver atrasado ou adiantado
certos eventos previsíveis do curso de vida – geralmente
são vividos como crises, porque as pessoas não
estão preparadas para enfrentá-Ios (NERI, 2001, p.
19-20 – grifos meus).
A mesma autora ressalta que a estruturação da vida das
pessoas em idades produz um “senso de normalidade” entre os
sujeitos que, de certa forma, buscam “estar em dia” com sua própria
idade. Por isso observamos comportamentos semelhantes entre
pessoas de uma mesma faixa etária de um dado local. Este processo,
no entanto, não tem nada de natural. Trata-se de um processo social.
A metáfora de relógio social serve para descrever os
mecanismos sociais de temporalização do curso de vida
individual, que atuam em interação com marcadores de
natureza biológica, psicológica e social. Os indiví duos e as
coortes internalizam de tal forma esse relógio que passam
a pensar que é natural corresponder à expectativa social
em relação ao comportamento apropriado para cada idade
(NERI, 2001b, p. 20).
Este atendimento às expectativas sociais, no entanto, são
muito confortáveis para aqueles que conseguem uma boa adaptação.
Mas a maior parte das pessoas não a alcança, podendo, com isso,
se situar em duas posições: a primeira, de desconforto por se sentir
pressionada a cumprir uma expectativa que não lhe satisfaz; e a
segunda, de não se adaptar, terminando por ser rotulada por seu
caráter desviante em relação à norma.
93PedagogiaUESC
2U
nida
de
Anita Neri (2001b) apresenta uma perspectiva sobre
desenvolvimento humano, denominada life-span (extensão da
vida), que não parte do pressuposto de adaptação a normas pre-
estabelecidas. Segundo a autora:
Em Psicologia, a expressão life-span tem uma conotação
de ex tensão ou abrangência, quer da vida em toda a
sua duração, quer de algum período particular, mas sem
utilizar nenhum critério de estágio para fins de delimitação
ou periodização. [...].
De acordo com o paradigma life-span em Psicologia, prestar
a atenção à data em que nasceu uma pessoa ou um grupo
de pessoas permite ao pesquisador identificar ocorrências
do contexto político, educacional, social e ecológico que
podem ter afetado seu desenvolvi mento numa direção
diferente da trajetória observada em pessoas e grupos
nascidos e socializados na presença de outras influências.
A idéia de atentar para os eventos do contexto, que
corresponde a controlar o efeito do pertencimento a uma
coorte, talvez seja a contribui ção metodológica mais
importante da perspectiva life-span à pesquisa psicológica
(NERI, 2001b, p. 21-22).
E, reforçando a importância do contexto para a compreensão
do desenvolvimento humano, Neri (2001b) complementa:
Ao contrário do pretendido pelas proposições organi cistas,
o desenvolvimento não percorre um caminho unilinear
FICHA TÉCNICA
Título: Esboço para Fotografia;
Direção: Bruno Carneiro; Gênero: Ficção; Ano: 2008; Duração: 15 min
Sinopse: quando eu tinha seis anos, vi um homem bem velho andando devagar. Nesse dia,
fiquei pensando o que aconteceria se eu ficasse velho muito rápido, quase sem perceber.
Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
EXERCÍCIO
Assista ao curta “Esboço para Fotografia”, de Bruno Carneiro, e reflita
sobre “idade cronológica” atribuída pelas determinações sociais e
“idade subjetiva” em que a pessoa se torna velha muito rápido, quase
sem perceber. Debata sobre esta questão com seus colegas no Fórum
de Discussão Virtual.
Bom exercício!
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
94 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
da menor para a maior equilibração, ele significa uma
tensão constante entre as forças que o determinam.
Essa tensão é adaptativa e essencialmente promotora
do desenvolvimento (NERI, 2001b, p. 26).
Afirmamos, com Neri (2001b), que os ciclos vitais possuem
suas próprias temporalidades e que as idades são determinadas
socialmente. Desta forma, mais do que características gerais
para cada idade cronológica, há uma tentativa não consciente das
pessoas de cumprirem as expectativas que correspondem a tais
idades. Isto, no entanto, não significa que, como profissionais da
educação, vamos abrir mão das teorias e cair no empiricismo puro.
A teoria sócio-histórica do Life Span traz proposições teóricas sobre
o desenvolvimento.
Neri (2001b), baseada em Paul B. Baltes, enumera 15
“proposições teóricas sobre os processos de desenvolvimento e
envelhecimento ao longo do ciclo vital” (p. 27), que resumimos e
apresentamos aqui:
1. O início e os períodos do ciclo vital são estabelecidos a partir de
critérios socialmente estabelecidos.
2. A idade cronológica não causa o desenvolvimento ou o
envelhecimento. Trata-se apenas de um indicador desses
processos, uma vez que vivemos em uma sociedade na qual o
tempo é demarcado por um critério cronológico.
3. Os processos genético-biológicos e socioculturais interagem
dialeticamente ao longo de todo desenvolvimento.
4. “O desenvolvimento e o envelhecimento podem ser analisados
como uma seqüência de mudanças previsíveis, de natureza
gené tico-biológica, que ocorrem ao longo das idades, e por isso
são chamadas de mudanças graduadas por idade; como uma
seqüência previsível de mudanças psicossociais determinadas
pelos proces sos de socialização a que as pessoas de cada coorte
estão sujeitas, e que por isso são chamadas de influências
graduadas por história; e como uma seqüência não previsível
de alterações resultantes da influência de agendas biológicas
e sociais, que por isso são cha madas de influências não-
normativas” (p. 28).
5. O desenvolvimento é um processo limitado e finito.
SAIBA MAIS
Coorte e Geração
Uma coorte consiste num conjunto de pessoas nascidas na mesma época, que entram e saem juntas de seus siste-mas ou instituições – como por exemplo, a escola e o tra-balho –, que tendem a expe-rimentar os mesmos eventos históricos, nas mesmas épo-cas de suas vidas. Assim, os efeitos de tais vivências se fa-zem sentir sobre a trajetória de todo aquele grupo etário. As coortes não são estratos monolíticos, porque dentro delas convivem homens e mulheres de diferentes et-nias, classes sociais e profis-sões; mas constituem unida-des de análise maiores do que o indivíduo e menores do que as gerações. Tanto o conceito de coorte quanto o de gera-ção incluem mecanismos e eventos socioculturais como determinantes do desenvol-vimento. Nos meios científicos, o con-ceito de geração é baseado em relações de parentesco, embora também se conside-re geração como experiên-cias históricas. Para o mo-delo de estratificação etária, a diferença entre gerações é correspondente à que existe entre pais e filhos, ou seja, cerca de 25 anos, o que de-termina que numa geração exista mais de uma coorte. Gerações e coortes sucessi-vas tendem a experienciar diferentes tempos históricos, com repercussões distintas sobre as trajetórias individu-ais e das instituições sociais (NERI, 2001b, p. 18-19).
95PedagogiaUESC
2U
nida
de
6. “Com o envelhecimento, diminui a plasticidade comportamen-
tal, definida como a possibilidade de mudar para adaptar-se
ao meio (por exemplo, por novas aprendizagens) e diminui a
resiliência, definida como a capacidade de reagir e de recupe rar-
se dos efeitos da exposição a eventos estressantes (por exemplo,
doenças e traumas físicos e psicológicos)” (p. 28-29).
7. O potencial de desenvolvimento durante a velhice está relacionado
aos limites da plasticidade individual e das condições histórico-
culturais existentes.
8. Os idosos mantêm sistemas de auto-regulação da subjetividade,
que lhes possibilita a manutenção do bem-estar mesmo em
situações de doença.
9. “O desenvolvimento envolve equilíbrio constante entre ganhos e
perdas” (p. 29), uma vez que a definição do que seja ganho ou
perda é relativa em termos subjetivos e de desejabilidade social.
10. “As limitações decorrentes do envelhecimento podem ser minimi-
zadas pela ativação das capacidades de reserva do organismo,
dependendo do grau de plasticidade individual permitida pela
influência conjunta de variáveis genético-biológicas, psicoló gicas
e socioculturais” (p. 29).
11. O desenvolvimento não se caracteriza como um processo linear
e isolado de crescimento e declínio. Trata-se de um processo
multidirecional, com ritmos diferenciados e sobreposição de
vários domínios e momentos de vida diversos. Por exemplo, “um
idoso pode ter um declínio na memória operacional, mas pode
conservar e melhorar o funciona mento da memória declarativa”
(p. 30).
12. “Cada idade tem sua própria dinâmica de desenvolvimento. Ou
seja, a vida adulta não é a fase da vida humana para a qual
converge o desenvolvimento” (p. 30).
13. Cada indivíduo ou coorte vivencia o envelhecimento de um modo
diferente.
14. “Existem diferentes padrões de envelhecimento, raramente ob-
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
96 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
serváveis em estado puro. Envelhecimento normal, ótimo e
patológico são, assim, amplas categorias orientadoras para a
pesquisa e a intervenção. Normalidade significa a ocorrência
de alterações típicas e inevitáveis do envelhecimento. Doenças,
disfuncionalidade e descontinuidade do desenvolvimento
são típi cos do envelhecimento patológico. A velhice ótima é
referenciada a um ideal sociocultural de excelente qualidade de
vida e manifesta-se por baixo risco de doenças e incapacidade,
exce lente funcionalidade física e mental e engajamento ativo na
vida” (p. 30-31).
15. O estudo do desenvolvimento não deve se realizar de modo
isolado. É preciso a inter-relação de várias disciplinas, como
a Biologia, a Psicologia e as Ciências Sociais. “Os conceitos
de tempo, idade e estágio, curso, ciclo e extensão da vida, e
desenvolvimento e envelhecimento encon tram expressões
peculiares em disciplinas afins, cujas linguagens não são
uniformes, mas cujo conhecimento por praticantes de diferentes
filiações favorece a comunicação cien tífica e a compreensão dos
fenômenos” (NERI, 2001b, p, 31).
Após o estudo destas 15 proposições teóricas sobre
desenvolvimento e envelhecimento, várias indagações surgem, mas
aqui vale destacar a seguinte: que aspectos do comportamento na
velhice são compartilhados por outras idades da vida humana?
5 RELAÇÕES INTERGERACIONAIS
Ao observarmos o desenvolvimento humano em seus diversos
momentos – infância, adolescência, idade adulta e velhice –, podemos
perceber que seus limites se dão, de forma maleável e provisória,
sempre na relação com o outro. A criança se entende como criança a
partir do momento em que outra pessoa diz ou mostra para ela que
existem pessoas que são diferentes em temos de desenvolvimento. O
mesmo se dá em relação ao adolescente e ao idoso.
Em relação ao adulto, diria que este reconhecimento se dá em
uma vivência mais radical, pois nossa sociedade é adultocêntrica e
adultocrática, ou seja, o adulto é parâmetro de definição para todas
as outras épocas da vida. Nós dizemos, no senso comum, que: “A
criança deve se preparar hoje para quando se tornar adulta...”; para
o adolescente dizemos: “Você ainda não é adulto para fazer isso...”
97PedagogiaUESC
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nida
de
ou “Você não é mais criança para se comportar desta forma. É quase
um adulto”; o idoso, em muitos casos, é considerado como se tivesse
deixado de ser adulto, e assim ele passa a ouvir: “Você não tem mais
idade para fazer isso” ou “Você não tem condições de decidir tal coisa.
Eu decido por você”.
Digo que ser adulto é uma vivência radical, pois ele tem de
dar conta de tudo. Em nossa sociedade é atribuído um estatuto de
responsabilidade ao adulto que não permite que ele não o cumpra.
É o adulto que tem que planejar a educação da criança, dar limites
ao adolescente, cuidar do idoso... E ainda viver a própria vida! Mas
este é o modo como nossa sociedade tem se organizado, o que não
significa que tenha de ser assim. Adultos também podem brincar;
crianças também podem ser experientes e ensinar; idosos também
podem dançar e adolescentes também podem organizar e planejar.
Essas vivências se tornam possíveis quando nos abrimos para novas
temporalidades não-normatizadas pela idade cronológica ou por
etapas de desenvolvimento pré-definidas.
A seguir, vamos pensar outras relações entre as diferentes
gerações, que não as tornem estanques. De um modo geral, as
relações intergeracionais são pensadas a partir de estudos sobre
o envelhecimento, foco geral de onde partirão as proposições de
interação.
Vejamos a explicação, a seguir, de Rita Pereira e Solange Jobim
e Souza (2001) sobre uma relação possível entre adultos, crianças e
idosos:
ATENÇÃO
Criança, adulto, idoso e memória
A história não surge de um ponto de partida primordial, ela pode ser
constantemente refeita e recontada.
Com base nesses conceitos, a infância, a idade adulta e a velhice já não se
apresentam como encadeamento causal inerente a uma processualidade linear, mas
como categorias sociais, históricas e culturais, que recompõem permanentemente a
experiência vivida. Ao suposto ‘despre¬paro’ infantil para compreender a realidade,
Walter Benjamin justapõe a tese de que a criança reconstrói o mundo baseada em seu
olhar infantil; em relação ao idoso, afirma ser ele o guardião da tradição e da experiên¬cia.
Assim, a vida humana pode ser pensada à luz dos conceitos benjaminianos de origem
e ruína, em que a criança não é o ponto zero da existência humana nem a velhice seu
ponto final. As construções de um indivíduo ao longo da vida não desaparecem com sua
morte; trans¬cendem-na ao transformar-se em criação coletiva de uma época.
A idéia do entrecruzamento temporal parece ficar ainda mais clara quando
pensamos que a criança e o idoso têm uma expressiva peculiari¬dade: a prática de
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
98 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
Ecléa Bosi (1994) reforça a ideia de entrecruzamento temporal,
pensando conjuntamente a criança, o adulto e o idoso. Para Bosi
(1994), grande parte do processo de socialização da criança se dá
através do contato com o passado, mas não por dados de uma história
escrita, e sim por uma história vivida, com seus avós. Trata-se de
uma relação estabelecida pelo convívio através de uma educação não
definida, ao contrário da que o adulto concede à criança. Na relação
com os avós, há brincadeiras, histórias, doces fora de hora, em um
constante exercício de rememorações e reconstruções de histórias.
Segundo Bosi (1994), “o presente já não interessa, pois nem o
netinho, nem os velhos atuam sobre ele, tudo se volta para o passado
ou para um futuro que remonta ao passado” (p. 74), ao contrário da
vida adulta:
A idade adulta é norteada pela ação presente: e quando se
volta para o passado é para buscar nele o que se relaciona
com suas preocu pações atuais. Lembranças da infância
para merecer atenção do adulto são constrangidas a
entrar no quadro atual. Os velhos, postos à mar gem da
ação, rememoram, fatigados da atividade. O que foi sua
vida senão um constante preparo e treino de quem irá
substituí-los? Os jo vens, formados e alimentados pelo
cuidado de seus doadores, logo se fortalecem e se tornam
aptos para desempenhar tarefa igual ou supe rior à de
seus mestres (BOSI, 1994, p. 76).
ATENÇÃO
recontar a história. A criança pede para que se conte novamente a história, criando,
a partir dela, uma rede de analogias e sentidos que lhe permitem compreender o
mundo. O idoso, por sua vez, reconta os fatos que lhe são significativos, e, nesse
trabalho de rememoração, refaz a história. Tanto a criança quanto o idoso sabem
que não se trata de uma repetição, mas de uma reapropriação ou recriação dos
acontecimentos, ou melhor, uma forma de revigorar a tradição.
A infância tomada na perspectiva de outras temporalidades não se esgota na
experiência vivida, mas é ressignificada na vida adulta por meio da rememoração.
Falar da infância é se reportar às lembranças do passado, não como este de fato
ocorreu, mas a um passado que é, então, recontado a partir do crivo do presente e
que se projeta prospectivamente. Nesse recontar, adulto e criança descobrem, juntos,
signos perdidos, caminhos e labirintos que podem ser retomados, continuações
de história em perma¬nente ‘devir’. Recuperar para o futuro os desejos que não
se realizaram, as pistas abandonadas, as trilhas não percorridas é uma forma de
intervenção ativa no mundo. Nesse sentido, a experiência da infância constituída na
narrativa é a memória daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, releitura crítica
no presente da vida adulta (PEREIRA; SOUZA, 2001, p. 34-35)
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2U
nida
de
Simone de Beauvoir (1990) ressalta que, por não constituírem
força econômica, os idosos não são respeitados ou considerados nas
sociedades capitalistas industriais. Segundo a autora, “o adulto se
comporta como se não tivesse que ficar velho nunca”, e complementa
com um fato que os adultos se recusam a lembrar: “é com adolescentes
que duram um número bastante grande de anos que a vida faz velhos”
(BEAUVOIR, 1990, p. 10). No entanto, em nossa sociedade, mesmo
com todo avanço que podemos ver após a implementação do Estatuto
do Idoso, em 2003, este ainda é considerado um peso, motivo de
vergonha, contra quem se estabelece uma verdadeira “conspiração
do silêncio”, como afirma Beauvoir (1990).
De acordo com Bosi (1994), a velhice deve ser entendida a
partir do ser humano em sua totalidade. Não é possível definir a
velhice considerando sua exterioridade, isto é, a partir do que o outro
diz sobre a velhice. Assim como o negro desenvolve a consciência de
sua negritude a partir de si e de sua relação com a cultura, e não do
que falam sobre o ele – especialmente em sociedades extremamente
preconceituosas –, o idoso desenvolve sua consciência de ser velho
em processos próprios de constituição de identidade. Segundo Bosi
(1994):
Há, no transcorrer da vida, momentos de crise de
identificação: na adolescência também nossa imagem se
quebra, mas o adolescente vive um período de transição,
não de declínio. O velho sente-se um indivíduo diminuído,
que luta para continuar sendo um homem. O coeficiente
de adversidade das coisas cresce: as escadas ficam mais
duras de subir, as distâncias mais longas de percorrer,
as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais
pesados de carregar. O mundo fica eriçado de ameaças,
de ciladas. Uma falha, uma pequena distração são
severamente castigadas.
Para a comunicação com seus semelhantes precisa de
artefatos: próteses, lentes, aparelhos acústicos, cânulas.
Os que não podem comprar esses aparelhos ficam privados
de comunicação. [...].
É a impotência de transmitir a experiência, quando os
meios de comunicação com o mundo falham. Ele não
pode mais ensinar aquilo que custou toda uma vida para
aprender (BOSI, 1994, p. 79).
É necessário, portanto, lançar espaços de produção de sentido
para que o idoso possa construir e reconstruir sua identidade e
reconhecer-se como sujeito no mundo. Retomando Pereira e Souza
(2001), “a criança pede para que se conte novamente a história,
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
100 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
criando, a partir dela, uma rede de analogias e sentidos que lhe
permitem compreender o mundo. O idoso, por sua vez, reconta os
fatos que lhe são significativos, e, nesse trabalho de rememoração,
refaz a história” (p. 34). No entanto, o que vemos, na maior parte das
vezes, é uma impaciência dos mais jovens em relação ao hábito do
idoso recontar sua história vivida.
Bosi (1994) ressalta que, libertos das obrigações profissionais
e familiares, os idosos apoiam-se numa memória que não está voltada
para a ação e manutenção dos hábitos cotidianos, e sim para uma
memória que revive o passado, para a vida contemplativa. Para a
autora, ao rememorar o passado, o idoso está desempenhando uma
“função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar as águas revoltas
do presente alargando suas margens” (p. 82). O vínculo que o idoso
mantém com outras épocas torna-se, desta forma, fundamental em
uma sociedade “que esvazia seu tempo de experiências significativas”,
na qual os idosos são empurrados para fora continuamente. Ao
encontrar ouvidos atentos e ressonância de sua voz, a vida do idoso
recupera sua finalidade, possibilitando que suas competências sejam
afirmadas positivamente.
Para Bosi (1994):
A conversa evocativa de um velho é sempre uma
experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta,
resignação pelo desfiguramento de paisagens caras, pela
desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra
de arte. Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois
contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador
de cultura com a mísera figura do consumidor atual (p.
82-83).
No entanto, essa escuta não está presente como um elemento
da cultura capitalista da atualidade, frenética e consumidora, e o
idoso, que não acompanha tal ritmo, é posto à margem:
Ele nos aborrece com o excesso de experiência que quer
aconselhar, providenciar, prever. Se protestamos contra
seus conselhos, pode calar-se e talvez querer acertar o
passo com os mais jovens. Essa adaptação falha com
freqüência, pois o ancião se vê privado de sua função e
deve desempenhar uma nova, ágil demais para o seu passo
lento. A sociedade perde com isso. Se a criança ainda não
ocupou nela seu lugar, é sempre uma força em expansão.
O velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este
encolhimento é uma perda e um empobrecimento para
todos. Então, a velhice desgostada, ao retrair suas mãos
101PedagogiaUESC
2U
nida
de
cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo (BOSI,
1994, p. 83).
Façamos uma reflexão mais ampla sobre a produção de
sentidos em nossa sociedade:
ATENÇÃO
Produção de sentidos cotidianos
Durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas que
nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significado a nossos gestos
cotidianos. Talvez seja esse um remédio contra os danos do tem¬po. Mas, pondera
Simone de Beauvoir, se o trabalhador aposentado se desespera com a falta de
sentido da vida presente, é porque em todo o tempo o sentido de sua vida lhe foi
roubado. Esgotada sua força de trabalho, sente-se um pária, e é comum que o
escutemos agradecendo sua aposentadoria como um favor ou esmola.
A degradação senil começa prematuramente com a degradação da pessoa
que trabalha. Esta sociedade pragmática não desvaloriza somente o operário,
mas todo trabalhador: o médico, o professor, o esportista, o ator, o jornalista.
Como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem des¬de o
nascimento, na sociedade da competição e do lucro? Cuidados Geriátricos não
devolvem a saúde física nem mental. A abolição dos asilos e a construção de
casas decentes para a velhice, não segregadas do mundo ativo, seria um passo à
frente. Mas, haveria que sedimentar uma cultura para os velhos com interesses,
trabalhos, responsabilidades que tornem sua sobrevivência digna. Como deveria
ser uma sociedade para que, na velhice, o homem permaneça um homem? A
resposta é radi¬cal para Simone de Beauvoir: ‘Seria preciso que ele sempre
tivesse si¬do tratado como homem’.
A noção que temos de velhice decorre mais da luta de classes que do conflito
de gerações. É preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as relações humanas
doentes para que os velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira.
Para que nenhuma forma de humanidade seja excluída da humanidade é que
as minorias têm lutado, que os grupos dis¬criminados têm reagido. A mulher,
o negro, combatem pelos seus direitos, mas o velho não tem armas. Nós é que
temos de lutar por ele (BOSI, 1994, p. 80-81).
A partir da frase de Beauvoir “Seria preciso que ele sempre
tivesse si do tratado como homem”, retomo uma questão que atravessa
todas as discussões sobre os ciclos vitais: a importância de olhar e
ouvir o outro a partir do modo como o outro se mostra ao mundo, e
não através de noções pré-concebidas e pré-conceituadas.
Adriana Fernandes e Maria Luiza Oswald (2005) ressaltam
a importância do diálogo como uma forma de criar espaços-tempo
de produção de sentidos entre as gerações. Em pesquisa sobre a
recepção dos desenhos animados da TV por crianças, as autoras
analisam os encontros e desencontros entre as gerações, enfatizando
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
102 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
a necessidade de quebrar com a hierarquia etária do saber socialmente
estabelecida, na qual a criança nada sabe e o adulto tem de saber
tudo.
Segundo Fernandes e Oswald (2005), a maioria das crianças
pesquisadas prefere assistir TV sozinha, pois diz que os adultos
atrapalham fazendo perguntas sobre o programa na hora errada. E
as crianças concluem; “os adultos não sabem [sobre os desenhos]
porque eles nunca vêem” (p. 32). Mas há casos em que os encontros
são possíveis e, quando acontecem, são sempre marcados pela
quebra com a hierarquia etária do saber, como podemos observar
nas falas de três crianças:
– Eu costumo conversar com o meu avô assim: ‘Vô, você
já viu o desenho tal?’ Aí ele: ‘Não, e diz como é que é.’
Aí eu explico lá para ele, depois ele vê e a gente fica
conversando... (Menino – escola pública)
– Minha mãe não sabe, mas aí ela pergunta, eu conto e a
gente fica conversando. (Menino – escola pública)
[...]
– O meu avô se enche de Coca-Cola e pipoca e vê os
desenhos junto comigo; a minha avó dorme no meio do
desenho... A minha mãe quando vê desenho comigo fala:
‘Ah, eu queria ser ela’ [a personagem]. Minha mãe parece
uma criança! (Menina – escola particular) (FERNANDES;
OSWALD, 2005, p. 34; 36 – grifos no original).
Fernandes e Oswald (2005) apontam a produção de sentidos
como a possibilidade de criar encontros entre as gerações. Para as
autoras, os depoimentos das crianças
[...] apontam para uma outra forma de relação adulto/
criança não mais baseada na supremacia do saber dos
mais velhos sobre o dos mais jovens, o que possibilita [...]
uma democratização do lugar social da criança vis-à-vis
ao do adulto, inexistente nas práticas socializatórias da
sociedade moderna (FERNANDES; OSWALD, 2005, p. 35).
Tratar crianças, adolescentes, adultos e idosos com
humanidade possibilita encontros. Assim, “para que, na velhice, um
homem permaneça um homem” (BOSI, 1994, p. 80), é preciso que
tenha sido respeitado em sua experiência e seu modo de produção de
sentidos desde a mais tenra idade.
Voltando ao quadro “Produção de sentidos cotidianos”, retomo
a ideia de que “durante a velhice deveríamos estar ainda engajados
em causas que nos transcendem, que não envelhecem, e que dão
LEITURA RECOMENDADA
Gostou da pesquisa de Adriana Fernandes e Maria
Luiza Oswald? Procure o texto na Internet e leia-o na íntegra como leitura
complementar.
FERNANDES, Adriana Hoffmann; OLWALD, Maria
Luiza B. M. A recepção dos desenhos animados
da TV e as relações entre a criança e o adulto:
desencontros e encontros. Cadernos Cedes, vol. 25,
n. 65, jan/abr 2005.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/
v25n65/a03v2565.pdf
103PedagogiaUESC
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nida
de
significado a nossos gestos cotidianos” e na necessidade de sonhar
com outra sociedade, com outros modos de vida e tratamento em
relação ao ser humano, pensar a possibilidade da educação para
idosos abre precedentes para um diferencial realizável.
Maria Stela de Araújo Albuquerque Bergo (2002), em relato
sobre trabalho desenvolvido com idosos na Universidade Federal
de Sergipe, destaca iniciativas recentes de reinserção de idosos
nos meios escolares e acadêmicos, com destaque aos projetos das
Universidades Abertas da Terceira Idade que têm como proposição
principal a ideia de que “a socialização do idoso é prática fundamental
para a preservação de sua saúde física e mental”, colaborando para
preservação de sua auto-estima.
Projetos educativos são incentivados neste sentido, a partir
da afirmação de que “é um equívoco inferir que os idosos não são
criativos”. Segundo Bergo (2002), a idade não determina a criatividade
e a capacidade de aprender de ninguém, mas ressalta que “a idéia de
que os idosos não são produtivos emergiu na sociedade capitalista,
que valoriza o indivíduo sob o critério da produção material”. Em
contraposição à ideia de perda de capacidade cognitiva do idoso,
Bergo (2002) argumenta que:
Muitas pesquisas atuais afirmam que as funções
psicológicas modificam-se de forma diversa no decorrer
da vida e assim questionam e duvidam da voz corrente
que apregoa a diminuição da capacidade intelectual na
velhice. [...]. Desse modo, algumas teorias afirmam que
além de não haver diminuição do rendimento intelectual,
produz-se uma modificação qualitativa, ou seja, surgem
outras modalidades do complexo ato de pensar. Neste
período vital, como em outros, por exemplo, na infância,
um estimulante é fundamental para a manutenção das
faculdades intelectuais (BERGO, 2002, s/p).
Marlene Dias Pinto (2004) aponta para a necessidade de uma
metodologia de ensino de qualidade e adequada às pessoas idosas,
assim como se evidencia tal especificidade em relação às outras idades
do ser humano. Em sua dissertação de mestrado, a autora explana
sobre sua experiência com alfabetização de idosos desenvolvida no
Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (ProAlfa),
em parceria com a Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI),
ambos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Vejamos parte
das conclusões de sua pesquisa:
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
104 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
ATENÇÃO
A prática pedagógica com idosos
A compreensão da velhice como um fluir de um processo de aquisições,
transformações, consolidações e aprimoramentos que se dão durante a vida
revela que a capacidade de aprender permanece por toda vida, apesar das
mudanças físicas e biológicas ocorridas durante o processo de envelhecimento.
[...]. Esse enfoque nos remete para uma proposta educativa orientada para as
habilidades e atividades próprias da velhice. Aprender, nessa fase do ciclo vital
envolve a utilização das experiências e dos conhecimentos já adquiridos na
atribuição de novos significados, e na transformação da informação que está
sendo recebida, em um novo conhecimento construído pelo idoso. A qualidade
das informações, bem como o ritmo e o tempo de aprendizagem do indivíduo
de idade avançada devem ser considerados.
A prática pedagógica envolve não somente uma postura teórica que
implica numa concepção de educação, mas também num novo paradigma
sobre o envelhecimento. Partindo da concepção de envelhecimento como
um processo e transformação, que envolve a interação entre o componente
genético, o ambiente, a cultura e o estilo de vida, o envelhecer é uma vivência
única e pessoal que ocorre através do tempo. As mudanças se apresentam de
modo diferente para cada idoso, ninguém envelhece da mesma maneira. De
acordo com essa concepção, a capacidade de aprender se prolonga por toda
vida, apesar das transformações cognitivas, desde que o indivíduo idoso goze
de boa saúde física e mental. [...] Uma educação voltada para as pessoas de
idade avançada é um processo com características e finalidades próprias e,
portanto deve ser pensada como um processo social [...].
Diante dessa concepção, a imagem do idoso se modifica. O foco de
atenção muda: do idoso em declínio biológico e mental, muda-se para pensar
no idoso como ser histórico, que vive seu tempo presente, com conhecimento de
si mesmo e do mundo, com independência e autonomia, capaz de transformar,
produzir, criar e recriar-se.
Assim sendo, é indiscutível a questão da relevância de um ensino
voltado para o idoso. Esse apresenta características diferenciadas dos adultos,
assim como o adolescente apresenta características diferentes da criança.
[...].
Em se tratando do educador de pessoas idosas, esse deve, antes de
mais nada, ter conhecimento sobre as transformações cognitivas que ocorrem
com o envelhecimento e suas conseqüências no campo da aprendizagem. Isso
quer dizer que o seu planejamento de curso deve respeitar as necessidades e
especificidades do idoso [...]. As atividades educativas devem ser organizadas
a partir das vivências acumuladas pelos idosos, valorizando a importância
social, cultural e histórica que a pessoa idosa tem e assim, contribuindo para
um processo pedagógico vivo e que busque satisfazer seus objetivos mais
imediatos. [...].
Essas transformações cognitivas não podem ser desprezadas
no processo ensino-aprendizagem. Um planejamento voltado às suas
especificidades deve ser estruturado envolvendo um exercício de memória que
propicie ao aluno idoso um trabalho de relembrar o passado. Pensar sobre o
tempo vivido auxilia o idoso a ressignificá-lo, trazendo novas reflexões sobre
esse passado e atualizando-o no presente (PINTO, 2004, p. 138-141).
105PedagogiaUESC
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de
Assim como Bosi (1994) e Bergo (2002), Pinto (2004) ressalta
a necessidade de mudarmos o modo como o envelhecimento é
concebido em nossa sociedade. Em sua dissertação de mestrado,
Marlene Pinto destaca um trecho de uma carta de um leitor do jornal
O Globo, publicada na seção “Cartas dos Leitores”, em setembro de
2003: “Alfabetizar adultos para quê? Por que com este dinheiro não
alfabetizar melhor as crianças? Somos pobres, existem prioridades”.
Este é o modo mais comum que vemos adultos e idosos que precisam
de escolarização serem tratados em nossa sociedade. Trata-se de
uma sociedade que aposta na preparação da criança e do adolescente
para viverem uma vida adulta produtiva dentro dos moldes de uma
sociedade capitalista e produtivista.
No entanto, se acreditamos na necessidade de incluir os idosos
nos processos sociais, precisamos criar estratégias para que tal
transformação se efetive. Os processos de escolarização obrigatória a
que nossas crianças e adolescentes são submetidas podem ser aliados
neste sentido se, nos bancos escolares, as práticas pedagógicas forem
permeadas da valorização das trocas entre as diferentes gerações.
Aproveitando ainda as contribuições de Pinto (2004), vale
ressaltar a importância de se trazer à tona, ainda durante a formação
de professores, a possibilidade de contatos intergeracionais, isto é,
considerando que, em sua maioria, os alunos que estão nos cursos
de licenciatura das universidades são jovens ou jovens adultos, a
aprendizagem da relação com o outro, com base na valorização e
no respeito, pode ter início ainda na formação profissional, para
que, depois, estes professores propaguem tal modo de conceber as
diferenças de geração em suas práticas pedagógicas nas escolas.
Vejamos a experiência de Pinto (2004), no ProAlfa/UnATI da UERJ:
Nesse aspecto, podemos pensar a questão educacional
como um processo que, incluindo relações entre
indivíduos pode modificar a compreensão e aceitação dos
conhecimentos e habilidades que o idoso possui e que
podem contribuir para a mudança de preconceitos entre
as gerações. Pode-se pensar na dinâmica intergeracional
que envolve a relação entre quem ensina e quem aprende
como um processo de educação que contribua para um
novo olhar para a pessoa de idade avançada. [...].
Os professores, bolsistas de extensão, constituem uma
outra geração, pertencem a uma outra categoria etária e,
se inscrevem no Programa para compartilharem do ensino
da leitura e da escrita. [...]. Os alunos idosos e os bolsistas,
numa interação inter e intrageracional, com histórias
diferentes, vividas cada uma num momento particular,
trazem possibilidades de interpretação e de significação
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
106 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
diferentes. O compartilhar culturas diversas e, cada um
poder retificar imagens distorcidas e preconceituosas em
relação a si próprio e ao outro, trazem benefícios para
ambos (PINTO, 2004, p. 142-143).
Desta forma, as transformações devem se dar de um modo
amplo, multifacetado e multidirecional, isto é, não devemos focar
nossa atenção apenas em um grupo de pessoas, pois é preciso pensá-
las inseridas numa rede social que é complexa. Como afirma João
Alexandre Barbosa (1994):
Em nossa sociedade de classes, dilacerada até as raízes
pelas mais cruéis contradições, a mulher, a criança e
o velho são, por assim dizer, instâncias privilegiadas
daquelas crueldades – traduções do dilaceramento e da
culpa.
Mas a mulher, a criança e o velho não são classes: são
antes as pectos diversificados e embutidos por entre
as classes sociais. As sim como não se pode falar, com
propriedade, em classes de artis tas ou de cientistas.
Estes, como aqueles, pertencem a uma ou ou tra classe
social que os configura e deles exige definições.
Já se sabe: o que define a classe social é a posição ocupada
pelo sujeito nas relações objetivas de trabalho.
Deste modo, quando se fala de uma ‘pedagogia do
oprimido’ (Paulo Freire) o endereço tem nome certo:
trata-se de uma pedago gia que possa dar conta de uma
situação precisa, no universo das relações sociais, de uma
certa camada da população subjugada pela dependência.
Opressão: dependência.
Neste sentido, ocorre-me falar numa Psicologia do
oprimido [...] (BARBOSA, 1994, p. 11-12).
À citação de Barbosa, acrescento também os jovens, os adultos
analfabetos, os negros, os índios, os ciganos, e toda uma série de
grupos minoritários que, quando vistos em conjunto, são a maioria da
população brasileira. Desta forma, quando lançarmos nossos olhares
para o desenvolvimento humano, devemos encontrar crianças, jovens,
adultos e idosos que não estão enquadrados em uma categorização
estanque a partir de idades ou etapas do desenvolvimento e que
não possuem características pré-definidas. Buscamos, justamente,
afirmar o olhar sobre a diferença, sendo esta considerada algo que
faz parte da vida e que, por isso mesmo, não deve ser rotulada de
desvio a partir de uma norma pré-determinada por uma minoria
privilegiada. Se é possível alguma universalização em relação ao ser
humano, que seja em relação a seus direitos, especialmente o direito
LEITURA RECOMENDADA
Recomendo a leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos para
um maior esclarecimento acerca do direito à vida com dignidade. A Decla-ração encontra-se em
anexo.
107PedagogiaUESC
2U
nida
de
à vida com dignidade.
FILMES RECOMENDADOS
Como uma forma de ilus-trar os estudos aqui rea-lizados, recomendo os fil-mes: O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, e O Curioso Caso de Benjamin Button, de David Fincher.
Os filmes indicados ilus-tram bem os conteúdos trabalhados nesta unida-de. Em “O ano em que meus pais saíram de fé-rias”, todos os aconteci-mentos do filme são nar-rados através da ótica de um menino de 12 anos. Com o desenrolar da nar-rativa podemos ver como se constrói a relação entre o menino e um idoso.
Em “O curioso caso de Benjamin Button”, nos de-paramos, curiosamente, com crises de identidade que perpassam um duplo movimento: o envelhe-cimento e o rejuvenesci-mento. Se nossa socieda-de condena o envelheci-mento, rejuvenescer tam-bém não se mostra uma boa saída.
Título: O Ano em que Meus Pais Saíram de FériasDireção: Cao Hamburger;Gênero: Drama; Ano: 2006; Duração: 110 minSinopse: 1970. Mauro (Michel Joelsas) é um garoto mineiro de 12 anos, que adora futebol e jogo de botão. Um dia sua vida muda completamente, já que seus pais saem de férias de forma inesperada e sem motivo aparente para ele. Na verdade, os pais de Mauro foram obrigados a fugir por serem de esquerda e perseguidos pela ditadura, tendo que deixá-lo com o avô paterno (Paulo Autran). Porém o avô enfrenta problemas, o que faz com que Mauro tenha que ficar com Shlomo (Germano Haiut), um velho judeu solitário que é seu vizinho. Enquanto aguarda um telefonema dos pais, Mauro precisa lidar com sua nova realidade, que tem momentos de tristeza pela situação em que vive e também de alegria, ao acompanhar o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo.
Título: O Curioso Caso de Benjamin ButtonDireção: David Fincher;Gênero: Drama;Ano: 2008; Duração: 166 minSinopse: Benjamin Button tem uma característica incomum: nascido com oitenta e poucos anos, ele rejuvenesce a cada dia que passa. Ainda assim, é um homem como qualquer outro, que não pode parar o tempo e precisa percorrer seu caminho, vivendo a sua história ao lado das pessoas que conhece e os lugares que frequenta durante a sua jornada. Mas sua história é, principalmente, sobre o amor, e a dificuldade de estar ao lado de uma bela mulher, que envelhece enquanto ele fica mais jovem a cada dia.
ATIVIDADE
1. A partir do exercício realizado com o documentário A Invenção da Infância, faça uma
síntese individual, por escrito, sobre suas conclusões, relacionando-a com as discussões
sobre criança e infância desta unidade.
2. A partir das discussões desta unidade, explique, com suas palavras, de que forma o
adolescente/jovem pode tornar-se cidadão.
3. Com base nos conteúdos desta unidade, explique, com suas palavras, de que forma
deve se estabelecer a relação entre teoria e prática na abordagem sócio-histórica.
4. Faça uma síntese das ideias sobre Psicologia do adulto e sobre envelhecimento.
5. Explique, com suas palavras, de que forma podemos criar encontros entre as diferentes
gerações, de modo a construirmos um cotidiano carregado de sentido.
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO I
108 Módulo 2 I Volume 4 EAD
Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
RESUMINDO
Nesta unidade, apresentamos diversos momentos do ciclo vital do ser
humano, buscando refletir, principalmente, sobre o modo como as categorias
infância, adolescência, idade adulta e velhice são compreendidas na atualidade,
sem traçar de antemão características sobre como elas são ou deveriam ser. A
proposta é compreender essas categorias, a partir de uma perspectiva sócio-
histórica, situando-as, portanto, no tempo e no espaço em que se constituem.
Com a ampliação das temporalidades da vida para além das
demarcações etárias, propõe-se, por fim, a construção de sentidos cotidianos
através das relações intergeracionais.
RE
FE
RÊ
NC
IAS
AGUIAR, Wanda Maria Junqueira; BOCK, Ana Mercês Bahia; OZELLA, Sérgio. A orientação profissional com adolescentes: um exemplo de prática na abordagem sócio-histórica. BOCK; GONÇALVES; FURTADO. (Orgs.). Psicologia sócio-histórica (uma abordagem crítica em Psicologia). São Paulo: Cortez, 2002.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flasksman. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
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Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
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PEREIRA, Rita Marisa Ribes; CERDEIRA, Adriana; ANDREIUOLO, Beatriz; SOUZA, Solange Jobim e. Ladrões de sonhos e sabonetes: sobre modos de subjetivação da infância na cultura do consumo. In: SOUZA, Solange Jobim e (Org.). Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p. 99-116.
PINTO, Marlene Dias P. O funcionamento cognitivo do idoso e o processo de ensino da alfabetização do PROALFA. Reflexões para um ensino melhor. (Mestrado em Educação). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Educação, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1988.
A INVENÇÃO da Infância. Direção: Liliana Sulzbach. Rio Grande do Sul: 2000. (26 min.), colorido, legendado. Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
ESBOÇO para Fotografia. Direção: Bruno Carneiro. São Paulo: 2008. (15 min.), colorido, não legendado. Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
O CURIOSO Caso de Benjamin Button. Direção: David Fincher. Produção: Ceán Chaffin, Kathleen Kennedy e Frank Marshall. Fotografia: Claudio Miranda. Roteiro: Eric Roth e Robin Swicord, baseado em estória de F. Scott Fitzgerald. Música: Alexandre Desplat. EUA: Estúdios Warner Bros / Paramount Pictures / The Kennedy/Marshall Company, 2008. (166 min.), colorido, legendado.
ANTES que Seja Tarde. Diretor: André Queiróz. São Paulo: 2007. (14 min.), colorido, não legendado. Disponível em: http://www.portacurtas.com.br
O ANO em que Meus Pais Saíram de Férias. Direção: Cao
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Hamburger. Produção: Caio Gullane, Cao Hamburger e Fabiano Gullane. Fotografia: Adriano Goldman. Roteiro: Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger, baseado em história original de Cláudio Galperin e Cao Hamburger. Música: Beto Villares. Brasil: Estúdios Gullane Filmes / Caos Produções Cinematográficas / Miravista / Globo Filmes, 2006. (110 min.), colorido, legendado.
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Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
ANEXO
Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos documentos básicos das Nações Uni-
das e foi assinada em 1948. Nela, são enumerados os direitos que todos os seres humanos
possuem.
PREÂMBULO
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz no mundo;
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos
bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que
os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor
e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum;
Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei,
para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e
a opressão;
Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos
direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de
direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores
condições de vida em uma liberdade mais ampla;
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com
as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a
observância desses direitos e liberdades;
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta
importância para o pleno cumprimento desse compromisso, agora portanto,
A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos
como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de
que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se
esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades,
e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o
seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios
Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo II. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,
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de
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento,
ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na
condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma
pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio,
quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo III. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV. Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante.
Artigo VI. Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa perante a lei.
Artigo VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que
viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo VIII. Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes
remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública
audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus
direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo XI. 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser
presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a
lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão
que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional.
Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática,
era aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII. Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família,
em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser
humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII. 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro
das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país,
inclusive o próprio, e a este regressar.
Artigo XIV. 1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar
e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de
perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários
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Psicologia e Educação: pensando o desenvolvimento humano
aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XV. 1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será
arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Artigo XVI. 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.
Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2.
O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da
sociedade e do Estado.
Artigo XVII. 1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com
outros. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e
religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância,
em público ou em particular.
Artigo XIX. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX. 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI. 1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país
diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser
humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do
povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições
periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente
que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII. Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança
social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com
a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo XXIII. 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego,
a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo
ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória,
que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4.
Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de
seus interesses.
Artigo XXIV. Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação
razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
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Artigo XXV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-
lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm
direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do
matrimônio gozarão da mesma proteção social.
Artigo XXVI. 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo
menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A
instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta
baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento
da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades
das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito
na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Artigo XXVII. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida
cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de
seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e
materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja
autor.
Artigo XXVIII. Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que
os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente
realizados.
Artigo XXIX. 1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o
livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus
direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas
pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos
direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades
não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios
das Nações Unidas.
Artigo XXX. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como
o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer
atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e
liberdades aqui estabelecidos.
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php
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