quatro ensaios sobre música e filosofia

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

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Ribeiratildeo Preto - SP2013

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDIEDSON ZAMPRONHA

(Organizadores)

Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

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2013Quatro ensaios sobre

muacutesica e filosofia1ordm Ediccedilatildeo

TextosRubens Russumanno Ricciardi

Alexandre da Silva Costa Edson Zampronha

Maria de Lourdes Sekeff

Capa e DiagramaccedilatildeoLau Baptista

ImpressatildeoGraacutefica Santa Terezinha

Jaboticabal-SP

Ficha Catalograacutefica

Rua Ameacuterico Brasiliense 1108Centro Ribeiratildeo Preto SP

CEP 14015-050

Russumanno Ricciardi Rubens Edson Zapronha Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia 1ordm ed - Ribeiratildeo Preto SP Editora Coruja 2013 142p

ISBN 978-63583-25-7

1 Muacutesica Filosofia Esteacutetica Musical Muacutesica e psicanaacutelise I Tiacutetulo

CDU 82085

C346d

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A publicaccedilatildeo deste livro eacute uma homenagem poacutestuma agrave

Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

APEL Will The notation of polyphonic music 900-1600 Cambridge Medieval Academy of America 1942BARRIEgraveRE Jean-Baptiste (Org) Le timbre meacutetaphore pour la composition Paris IRCAM e Christian Bourgois 1991BENT Ian et al Notation In The new grove dictionary of music and musicians London Macmillan 1980 v13 p333-420FERNAacuteNDEZ Vicente LABRADOR ARROYO Feacutelix (Org) In_Des_Ar Investigar desde el arte Madrid Dykinson 2011 p173-190FRANCEgraveS Robert La Perception de la musique 10ordf ed Paris J VRIN 1958MESSIAEN Olivier Technique de mon Langage Musical Paris Alphonse Leduc 1944PEIRCE Charles Sanders Collected Papers Cambridge Harvard University Press 1931-1935 8vPRESSNITZER Daniel McADAMS Stephen Acoustics psychoacoustics and spectral music In Contemporary Music Review vol19 parte 2 p33-59 2000SALZER Felix Structural hearing tonal coherence in music New York Dover 1962SANTAELLA Luacutecia A teoria geral dos signos Satildeo Paulo Aacutetica 1995SCHAEFFER Pierre Traiteacute des objets musicaux Paris Eacuteditions du Seuil 1966SEEGER Charles Studies in musicology 1935-1975 Berkeley University of California 1977ZAMPRONHA Edson Notaccedilatildeo representaccedilatildeo e composiccedilatildeo um novo paradigma da escrita musical Satildeo Paulo Annablume 2000________ Arte e cultura muacutesica e semioacutetica In SEKEFF Maria de Lourdes Arte e Cultura ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo AnnablumeFAPESP 2001 p 21-35________ Do grau agrave nota ndash o caminho do tonal ao atonal atraveacutes

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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wwweditoracorujacombrRua Ameacuterico Brasiliense 1108

Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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Ribeiratildeo Preto - SP2013

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDIEDSON ZAMPRONHA

(Organizadores)

Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

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2013Quatro ensaios sobre

muacutesica e filosofia1ordm Ediccedilatildeo

TextosRubens Russumanno Ricciardi

Alexandre da Silva Costa Edson Zampronha

Maria de Lourdes Sekeff

Capa e DiagramaccedilatildeoLau Baptista

ImpressatildeoGraacutefica Santa Terezinha

Jaboticabal-SP

Ficha Catalograacutefica

Rua Ameacuterico Brasiliense 1108Centro Ribeiratildeo Preto SP

CEP 14015-050

Russumanno Ricciardi Rubens Edson Zapronha Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia 1ordm ed - Ribeiratildeo Preto SP Editora Coruja 2013 142p

ISBN 978-63583-25-7

1 Muacutesica Filosofia Esteacutetica Musical Muacutesica e psicanaacutelise I Tiacutetulo

CDU 82085

C346d

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A publicaccedilatildeo deste livro eacute uma homenagem poacutestuma agrave

Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

APEL Will The notation of polyphonic music 900-1600 Cambridge Medieval Academy of America 1942BARRIEgraveRE Jean-Baptiste (Org) Le timbre meacutetaphore pour la composition Paris IRCAM e Christian Bourgois 1991BENT Ian et al Notation In The new grove dictionary of music and musicians London Macmillan 1980 v13 p333-420FERNAacuteNDEZ Vicente LABRADOR ARROYO Feacutelix (Org) In_Des_Ar Investigar desde el arte Madrid Dykinson 2011 p173-190FRANCEgraveS Robert La Perception de la musique 10ordf ed Paris J VRIN 1958MESSIAEN Olivier Technique de mon Langage Musical Paris Alphonse Leduc 1944PEIRCE Charles Sanders Collected Papers Cambridge Harvard University Press 1931-1935 8vPRESSNITZER Daniel McADAMS Stephen Acoustics psychoacoustics and spectral music In Contemporary Music Review vol19 parte 2 p33-59 2000SALZER Felix Structural hearing tonal coherence in music New York Dover 1962SANTAELLA Luacutecia A teoria geral dos signos Satildeo Paulo Aacutetica 1995SCHAEFFER Pierre Traiteacute des objets musicaux Paris Eacuteditions du Seuil 1966SEEGER Charles Studies in musicology 1935-1975 Berkeley University of California 1977ZAMPRONHA Edson Notaccedilatildeo representaccedilatildeo e composiccedilatildeo um novo paradigma da escrita musical Satildeo Paulo Annablume 2000________ Arte e cultura muacutesica e semioacutetica In SEKEFF Maria de Lourdes Arte e Cultura ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo AnnablumeFAPESP 2001 p 21-35________ Do grau agrave nota ndash o caminho do tonal ao atonal atraveacutes

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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wwweditoracorujacombrRua Ameacuterico Brasiliense 1108

Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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Ribeiratildeo Preto - SP2013

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDIEDSON ZAMPRONHA

(Organizadores)

Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

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2013Quatro ensaios sobre

muacutesica e filosofia1ordm Ediccedilatildeo

TextosRubens Russumanno Ricciardi

Alexandre da Silva Costa Edson Zampronha

Maria de Lourdes Sekeff

Capa e DiagramaccedilatildeoLau Baptista

ImpressatildeoGraacutefica Santa Terezinha

Jaboticabal-SP

Ficha Catalograacutefica

Rua Ameacuterico Brasiliense 1108Centro Ribeiratildeo Preto SP

CEP 14015-050

Russumanno Ricciardi Rubens Edson Zapronha Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia 1ordm ed - Ribeiratildeo Preto SP Editora Coruja 2013 142p

ISBN 978-63583-25-7

1 Muacutesica Filosofia Esteacutetica Musical Muacutesica e psicanaacutelise I Tiacutetulo

CDU 82085

C346d

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A publicaccedilatildeo deste livro eacute uma homenagem poacutestuma agrave

Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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wwweditoracorujacombrRua Ameacuterico Brasiliense 1108

Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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2013Quatro ensaios sobre

muacutesica e filosofia1ordm Ediccedilatildeo

TextosRubens Russumanno Ricciardi

Alexandre da Silva Costa Edson Zampronha

Maria de Lourdes Sekeff

Capa e DiagramaccedilatildeoLau Baptista

ImpressatildeoGraacutefica Santa Terezinha

Jaboticabal-SP

Ficha Catalograacutefica

Rua Ameacuterico Brasiliense 1108Centro Ribeiratildeo Preto SP

CEP 14015-050

Russumanno Ricciardi Rubens Edson Zapronha Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia 1ordm ed - Ribeiratildeo Preto SP Editora Coruja 2013 142p

ISBN 978-63583-25-7

1 Muacutesica Filosofia Esteacutetica Musical Muacutesica e psicanaacutelise I Tiacutetulo

CDU 82085

C346d

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A publicaccedilatildeo deste livro eacute uma homenagem poacutestuma agrave

Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

APEL Will The notation of polyphonic music 900-1600 Cambridge Medieval Academy of America 1942BARRIEgraveRE Jean-Baptiste (Org) Le timbre meacutetaphore pour la composition Paris IRCAM e Christian Bourgois 1991BENT Ian et al Notation In The new grove dictionary of music and musicians London Macmillan 1980 v13 p333-420FERNAacuteNDEZ Vicente LABRADOR ARROYO Feacutelix (Org) In_Des_Ar Investigar desde el arte Madrid Dykinson 2011 p173-190FRANCEgraveS Robert La Perception de la musique 10ordf ed Paris J VRIN 1958MESSIAEN Olivier Technique de mon Langage Musical Paris Alphonse Leduc 1944PEIRCE Charles Sanders Collected Papers Cambridge Harvard University Press 1931-1935 8vPRESSNITZER Daniel McADAMS Stephen Acoustics psychoacoustics and spectral music In Contemporary Music Review vol19 parte 2 p33-59 2000SALZER Felix Structural hearing tonal coherence in music New York Dover 1962SANTAELLA Luacutecia A teoria geral dos signos Satildeo Paulo Aacutetica 1995SCHAEFFER Pierre Traiteacute des objets musicaux Paris Eacuteditions du Seuil 1966SEEGER Charles Studies in musicology 1935-1975 Berkeley University of California 1977ZAMPRONHA Edson Notaccedilatildeo representaccedilatildeo e composiccedilatildeo um novo paradigma da escrita musical Satildeo Paulo Annablume 2000________ Arte e cultura muacutesica e semioacutetica In SEKEFF Maria de Lourdes Arte e Cultura ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo AnnablumeFAPESP 2001 p 21-35________ Do grau agrave nota ndash o caminho do tonal ao atonal atraveacutes

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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wwweditoracorujacombrRua Ameacuterico Brasiliense 1108

Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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A publicaccedilatildeo deste livro eacute uma homenagem poacutestuma agrave

Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

APEL Will The notation of polyphonic music 900-1600 Cambridge Medieval Academy of America 1942BARRIEgraveRE Jean-Baptiste (Org) Le timbre meacutetaphore pour la composition Paris IRCAM e Christian Bourgois 1991BENT Ian et al Notation In The new grove dictionary of music and musicians London Macmillan 1980 v13 p333-420FERNAacuteNDEZ Vicente LABRADOR ARROYO Feacutelix (Org) In_Des_Ar Investigar desde el arte Madrid Dykinson 2011 p173-190FRANCEgraveS Robert La Perception de la musique 10ordf ed Paris J VRIN 1958MESSIAEN Olivier Technique de mon Langage Musical Paris Alphonse Leduc 1944PEIRCE Charles Sanders Collected Papers Cambridge Harvard University Press 1931-1935 8vPRESSNITZER Daniel McADAMS Stephen Acoustics psychoacoustics and spectral music In Contemporary Music Review vol19 parte 2 p33-59 2000SALZER Felix Structural hearing tonal coherence in music New York Dover 1962SANTAELLA Luacutecia A teoria geral dos signos Satildeo Paulo Aacutetica 1995SCHAEFFER Pierre Traiteacute des objets musicaux Paris Eacuteditions du Seuil 1966SEEGER Charles Studies in musicology 1935-1975 Berkeley University of California 1977ZAMPRONHA Edson Notaccedilatildeo representaccedilatildeo e composiccedilatildeo um novo paradigma da escrita musical Satildeo Paulo Annablume 2000________ Arte e cultura muacutesica e semioacutetica In SEKEFF Maria de Lourdes Arte e Cultura ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo AnnablumeFAPESP 2001 p 21-35________ Do grau agrave nota ndash o caminho do tonal ao atonal atraveacutes

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

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Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

APEL Will The notation of polyphonic music 900-1600 Cambridge Medieval Academy of America 1942BARRIEgraveRE Jean-Baptiste (Org) Le timbre meacutetaphore pour la composition Paris IRCAM e Christian Bourgois 1991BENT Ian et al Notation In The new grove dictionary of music and musicians London Macmillan 1980 v13 p333-420FERNAacuteNDEZ Vicente LABRADOR ARROYO Feacutelix (Org) In_Des_Ar Investigar desde el arte Madrid Dykinson 2011 p173-190FRANCEgraveS Robert La Perception de la musique 10ordf ed Paris J VRIN 1958MESSIAEN Olivier Technique de mon Langage Musical Paris Alphonse Leduc 1944PEIRCE Charles Sanders Collected Papers Cambridge Harvard University Press 1931-1935 8vPRESSNITZER Daniel McADAMS Stephen Acoustics psychoacoustics and spectral music In Contemporary Music Review vol19 parte 2 p33-59 2000SALZER Felix Structural hearing tonal coherence in music New York Dover 1962SANTAELLA Luacutecia A teoria geral dos signos Satildeo Paulo Aacutetica 1995SCHAEFFER Pierre Traiteacute des objets musicaux Paris Eacuteditions du Seuil 1966SEEGER Charles Studies in musicology 1935-1975 Berkeley University of California 1977ZAMPRONHA Edson Notaccedilatildeo representaccedilatildeo e composiccedilatildeo um novo paradigma da escrita musical Satildeo Paulo Annablume 2000________ Arte e cultura muacutesica e semioacutetica In SEKEFF Maria de Lourdes Arte e Cultura ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo AnnablumeFAPESP 2001 p 21-35________ Do grau agrave nota ndash o caminho do tonal ao atonal atraveacutes

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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wwweditoracorujacombrRua Ameacuterico Brasiliense 1108

Centro Ribeiratildeo Preto SPCEP 14015-050

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Iacutendice

Apresentaccedilatildeo 9

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi 13Figuras43Notas 47Referecircncias 74

Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta Por Alexandre da Silva Costa 79Notas 93

Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descobertaPor Edson Zampronha 97Notas 116Referecircncias 118

Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildeesPor Maria de Lourdes Sekeff 121Nota 136Referecircncias 137

Sobre os autores 138

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APRESENTACcedilAtildeO

Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007 pela USP de Ribeiratildeo Preto haviacuteamos organizado o Coloacutequio Muacutesica amp Filosofia com a presenccedila de vaacuterios muacutesicos e filoacutesofos abordando questotildees filosoacuteficas da muacutesica num fecundo encontro entre muacutesicos leitores de filosofia e filoacutesofos ouvintes de muacutesica Agravequela altura a Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial No entanto seu inesperado falecimento interrompeu este processo Passados estes poucos anos este livro foi por noacutes retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem poacutestuma agrave tatildeo emeacuterita pesquisadora da muacutesica e de suas interfaces como ainda traz agrave luz os ensaios ineacuteditos daquele coloacutequio

1) O ensaio Muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI de Rubens Russomanno Ricciardi trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofiacutecios de compositor (poiacuteesis) inteacuterpreteexecutor (praacutexis) e pesquisador em muacutesica (theoria) Em especial se estuda os processos inventivos em muacutesica jaacute que este ensaio tem por objetivo tambeacutem a proposta de caminhos para a fundaccedilatildeo e o estabelecimento de um Bacharelado em Composiccedilatildeo pela USP de Ribeiratildeo Preto (DM-FFCLRP) Neste contexto os estudos panoracircmicos de poeacutetica musical abrangem fontes desde a literatura preacute-socraacutetica ateacute os principais problemas do

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ofiacutecio do compositor neste iniacutecio do seacuteculo XXI Daiacute o ensaio de uma postura criacutetica e jaacute com o devido distanciamento em relaccedilatildeo agraves principais questotildees ideoloacutegicas que envolveram a muacutesica no seacuteculo XX

2) No ensaio Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta como definidora do homem Alexandre Costa trabalha com a hipoacutetese de que em Heraacuteclito a relaccedilatildeo entre o homem e o loacutegos daacute-se por meio de uma escuta Desta relaccedilatildeo origina-se um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea a audiccedilatildeo perfeita Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon segundo o filoacutesofo de Eacutefeso eacute o modo da nossa escuta que determina o que cada um de noacutes eacute particularmente assim como laquoouvir o loacutegosrdquo eacute a condiccedilatildeo ontoloacutegica que distingue o ecircthos do homem universalmente

3) Em Notaccedilatildeo Interpretativa Invenccedilatildeo e Descoberta Edson Zampronha estabelece o diaacutelogo entre muacutesica e filosofia atraveacutes da noccedilatildeo de representaccedilatildeo especificamente atraveacutes da notaccedilatildeo musical que ao ser observada atraveacutes de um acircngulo novo produz informaccedilotildees surpreendentes Este acircngulo novo parte da claacutessica separaccedilatildeo de notaccedilotildees musicais proposta por Charles Seeger que as divide em prescritivas e descritivas Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificaccedilatildeo que denomina interpretativo e analisa as consequumlecircncias que este terceiro tipo traacutes agrave muacutesica Aleacutem disto

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realiza uma demonstraccedilatildeo de como esta classificaccedilatildeo nova pode ser aplicada na praacutetica para a obtenccedilatildeo de resultados originais Esta aplicaccedilatildeo praacutetica revela com entusiasmo o quanto a adoccedilatildeo deste tipo interpretativo eacute de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical

4) O ensaio Filosofia Psicanaacutelise Muacutesica tema e variaccedilotildees de Maria de Lourdes Sekeff tem como pergunta fundamental saber se haacute inconsciente na muacutesica e como pode ser detectado Para responder a esta questatildeo Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano afirmando que no caso do sujeito freudiano a produccedilatildeo de verdades eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo Em seguida entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade verifica que muacutesica eacute de fato linguagem mostrando que os significantes desta linguagem satildeo particulares agrave ela Neste sentido pergunta se existe efetivamente inconsciente na muacutesica Respondendo afirmativamente a esta questatildeo a Profa Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa Esclarece no entanto que este inconsciente comparece em expressotildees musicais sem qualquer significado embora rico em operaccedilotildees analoacutegicas e com elementos que escapam ao domiacutenio racional Esta original reflexatildeo sobre o inconsciente na muacutesica revela-se um estudo feacutertil e inovador que abre as portas a uma visatildeo muito original sobre a muacutesica

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Por fim gostariacuteamos de agradecer ao Departamento de Muacutesica da Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras de Ribeiratildeo Preto da Universidade de Satildeo Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Nuacutecleo de Pesquisa em Ciecircncias da Performance em Muacutesica (NAP-CIPEM) vinculado agrave Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP pelo imprescindiacutevel apoio agraves pesquisas bem como agrave consolidaccedilatildeo deste projeto editorial

Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Muacutesica

da FFCLRP-USP e coordenador cientiacutefico do NAP-CIPEM)

Prof Dr Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de

Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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Quatro ensaios sobre muacutesica e filosofia

A muacutesica na madrugada do destino ndash uma poeacutetica musical para o seacuteculo XXI

Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

Deixando de lado o par praacutetica e teoria procuramos chamar a atenccedilatildeo para o fato de que satildeo pelo menos trecircs os fundamentos das atividades musicais Relacionamos assim os trecircs principais ofiacutecios da muacutesica 1) composiccedilatildeo (ofiacutecio do compositor) 2) interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo (ofiacutecio do instrumentista cantor e regente) e 3) musicologia (ofiacutecio do pesquisador em muacutesica) Retomamos o trio de conceitos ποίησις πρᾶξις e θεωρῐᾱ (poeacutetica praacutexis e teoria) haacute muito esquecidos pela opiniatildeo puacuteblica Nota-se que a poeacutetica soacute muito raramente consta do vocabulaacuterio de hoje em dia Mas afinal o que seraacute esta poeacutetica em muacutesica que requer tanto teoria como praacutetica mas que transcende a ambas contemplando uma atividade proacutepria de sua essecircncia

Para o estabelecimento de uma poeacutetica musical possiacutevel para o seacuteculo XXI procuramos re-analisar conteuacutedos e conceitos histoacuterico-filosoacuteficos pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804) ldquopensamentos sem conteuacutedo satildeo vazios convicccedilotildees sem conceitos satildeo cegasrdquo (1781 A51) Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento criacutetico em nossa contemporaneidade natildeo buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna mas sim pelo menos boa parte deles na Antiguidade greco-romana Alguns deles os mais importantes buscamos na Greacutecia preacute-socraacutetica Trata-se da essecircncia grega daquilo que todos noacutes artistas de qualquer parte do mundo somos

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enquanto descendentes da trageacutedia grega Afinal foram os gregos que inauguraram a possibilidade natildeo soacute do Dasein1 artiacutestico mas tambeacutem do Dasein filosoacutefico e cientiacutefico Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes a filosofia e as ciecircncias para aleacutem da cultura2 e do culto religioso Segundo Heidegger ldquogrego no nosso modo de falar natildeo designa uma peculiaridade eacutetnica ou nacional nenhuma peculiaridade cultural e antropoloacutegica grego eacute a madrugada do destinordquo (2012 [1946] p389)

Composiccedilatildeo - ποίησις em muacutesica

Podemos conferir equivalecircncias agrave ποίησις com nossos verbos produzir fazer fabricar inventar compor3 A poeacutetica (ou poieacutetica pois se trata do ensino da ποίησις) neste sentido primordial compreende ao mesmo tempo a concepccedilatildeo (projeto programa manifesto normativo) e a produccedilatildeo (composiccedilatildeo realizaccedilatildeo da escritura) da obra de arte O conceito eacute vaacutelido natildeo soacute para a poesia mas tambeacutem para todas as artes incluindo-se a muacutesica Tudo que envolve o trabalho de um compositor eacute sua poeacutetica musical Dos trecircs ofiacutecios da muacutesica a composiccedilatildeo eacute a atividade mais artiacutestica em sua essecircncia Segundo Adorno a composiccedilatildeo ldquoem todos os tempos sempre decide sobre a posiccedilatildeo da muacutesicardquo (1975 [1949] p9) E se Friedrich Houmllderlin (1770-1843) dizia que ldquoo que permanece inauguram os poetasrdquo (apud HEIDEGGER 2003 [19501959] p132) o mesmo procede com os compositores Cada grande compositor tambeacutem inaugura a histoacuteria Portanto a muacutesica enquanto arte eacute tambeacutem histoacuteria em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger ldquoa arte funda a histoacuteriardquo (1960 [1935] p80) A composiccedilatildeo musical eacute tanto fundamento da histoacuteria quanto invenccedilatildeo Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o caraacuteter inventivo da arte jaacute que ldquoo simples fazer natildeo basta para definir sua essecircncia A arte eacute tambeacutem invenccedilatildeo Ela natildeo eacute execuccedilatildeo de qualquer coisa jaacute idealizada realizaccedilatildeo de

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um projeto produccedilatildeo segundo regras dadas ou predispostas Ela eacute um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazerrdquo (1997 [1966] p25-26) Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez natildeo como compositor mas como ldquoinventor de muacutesicardquo (1996 [1942] p55) Tal definiccedilatildeo passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente invenccedilatildeo agrave figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932) No entanto o conceito eacute bem antigo De inventione obra de juventude de Marco Tuacutelio Ciacutecero (106ndash43 aC) encontra-se entre suas fontes primordiais Oriundo da retoacuterica latina o conceito passou posteriormente a outras aacutereas do conhecimento Na muacutesica o conceito de invenccedilatildeo enquanto composiccedilatildeo inovadora remonta a tiacutetulos de obras e prefaacutecios do Renascimento e do Barroco como as Inventions musicales (1555) de Cleacutement Janequin (1485-1558) Entre outros Johann Sebastian Bach (1685-1750) na introduccedilatildeo de uma entre suas obras didaacuteticas mais significativas as Invenccedilotildees a duas vozes (Leipzig 1723) tambeacutem pensava na importacircncia do conceito de invenccedilatildeo para a composiccedilatildeo musical

Para que seja mostrado de maneira clara agravequeles que tecircm amor pelos instrumentos de teclado e em especial agravequeles que desejam ampliar o conhecimento para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar natildeo apenas (1) com duas vozes mas tambeacutem consequentemente apoacutes a continuidade dos progressos (2) para lidar com trecircs vozes todas elas escritas e ao mesmo tempo com isso natildeo obtenham apenas boas invenccedilotildees mas sim tambeacutem por si proacuteprios desenvolvam bem o mais possiacutevel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composiccedilatildeo (BACH 1978 [1723] pIV)

Bach conferia importacircncia natildeo soacute agrave boa formaccedilatildeo geral do aluno de muacutesica e devendo este aprender ldquopor si proacutepriordquo ou

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seja agraves iniciativas de aprendizado como ainda agrave ampliaccedilatildeo do conhecimento condicionado ao estudo incessante Associando a composiccedilatildeo enquanto invenccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - ao estabelecer relaccedilotildees evidentes com o processo notacional e o caraacuteter grafocecircntrico (centrado na escritura) do λόγος4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esteacutetica musicalPassados quase 300 anos satildeo estes mesmos exatos princiacutepios bachianos que seguimos aqui Jaacute Heraacuteclito eacute a origem do λόγος conceito este que remonta a vaacuterios fragmentos5 seus Sobre o sentido grafocecircntrico do λόγος haacute que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004) A este filoacutesofo francecircs remonta o conceito de eacutecriture (DERRIDA passim 2005 [1967]) Para que possamos compreendecirc-lo vamos citar uma definiccedilatildeo elaborada por Seacutergio Paulo Rouanet (1934)

Para Derrida eacute preciso desconstruir o mito fonocecircntrico mostrando que natildeo eacute a voz (oralidade) que eacute primaacuteria e sim a escrita a eacutecriture que eacute esta que estaacute na origem de toda linguagem A escritura natildeo eacute secundaacuteria mas original Natildeo eacute um veiacuteculo de unidades linguiacutesticas jaacute constituiacutedas mas o modo de produccedilatildeo que constitui essas unidades A escrita neste sentido amplo significa toda praacutetica de diferenciaccedilatildeo de articulaccedilatildeo de espaccedilamento A palavra-chave eacute diferenccedila A eacutecriture no sentido de Derrida eacute a atividade mais primordial de diferenciaccedilatildeo e eacute por isso que estaacute na origem de toda linguagem conjunto de unidades cujo sentido eacute dado exclusivamente por seu caraacuteter diferencial com relaccedilatildeo a todos os demais signos (ROUANET 1987 p242-243)

Natildeo haacute duacutevida de que uma mesma ideia de eacutecriture ndash enquanto alicerce para a invenccedilatildeo musical e diferenccedila intriacutenseca na linguagem da obra de arte ndash jaacute era salientada por Bach quando se referia agrave importacircncia das ldquovozes todas elas escritasrdquo - ou ainda numa outra traduccedilatildeo mais literal da ldquoexecuccedilatildeo obrigatoacuteria das

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partes6rdquo (obligaten Partien) Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical eacute impossiacutevel sem a partituraChegamos a tanto Natildeo porque a grafia musical soacute foi se aperfeiccediloando agrave medida que o experimento sonoro tambeacutem sempre se renovou mesmo por intermeacutedio de improvisos sem qualquer submissatildeo a priori agrave escritura As relaccedilotildees entre composiccedilatildeo e performance7 tanto quanto entre escritura e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo satildeo sempre jaacute indissociaacuteveis de tal modo que natildeo se pode estabelecer qualquer hierarquia - natildeo obstante a essecircncia do ofiacutecio do compositor centrada na escritura musical

Voltando agrave questatildeo da invenccedilatildeo ainda naquela eacutepoca (primeira metade do seacuteculo XVIII) numa perspectiva natildeo tatildeo pragmaacutetica quanto Bach mas de modo algum menos filosoacutefica Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterdatilde 1725) no qual estatildeo contidas os concertos As quatro estaccedilotildees com o sugestivo tiacutetulo Il cimento dellrsquoarmonia e dellrsquoinvenzione (O confronto da harmonia e da invenccedilatildeo) ldquoSubmetida agrave prova da harmonia a invenccedilatildeo confirma a sua soberania A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto desse fecundo cimentordquo (CANDEacute 1990 [1967] p132) Vivaldi inspirado quem sabe em Heraacuteclito compreende confronto do mesmo modo enquanto πόλεμος8 evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto φύσις9) e linguagem humana (λόγος enquanto inventio) Todo grande artista eacute sempre jaacute um David ou mesmo Dom Quixote enfrentando o cosmo com sua inventio

Vamos abordar agora a questatildeo da linguagem em muacutesica Aleacutem da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre jaacute a questatildeo da linguagem na muacutesica por meio de uma metaacutefora assim como nas demais artes Numa frase atribuiacuteda a Simocircnides de Ceacuteos (557556 - 468467 aC) temos um exemplo de como satildeo antigas as metaacuteforas entre as linguagens artiacutesticas ldquoa pintura eacute uma poesia silenciosa e a poesia eacute uma pintura que falardquo (apud DETIENNE 1988 [1967]

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p56) A metaacutefora se faz presente e nas artes jaacute sempre vigora a linguagem Eacute por isso que pensamos tambeacutem a muacutesica enquanto linguagem tal como a poesia Numa perspectiva heideggeriana a linguagem natildeo eacute apenas e nem em primeira linha uma expressatildeo sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado A linguagem promove aquilo que se pretende difundir natildeo apenas com palavras e frases Tal como a arte a linguagem eacute sempre essencialmente poesia E a essecircncia da poesia estaacute presente em todas as artes A arte em sua essecircncia indissociaacutevel como origem da obra de arte e do proacuteprio artista (ver HEIDEGGER 1960 [1935] p7-8) desdobra-se como linguagem entendida na presenccedila inventiva e diferenciada da existecircncia humana

E com quais condiccedilotildees teacutecnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical Numa perspectiva heideggeriana entendemos a questatildeo da teacutecnica natildeo na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum mas sim sempre jaacute enquanto τέχνη10 Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trecircs condiccedilotildees em seu ofiacutecio essencialmente vinculadas umas agraves outras o caraacuteter operativo do artesatildeo a singularidade solitaacuteria e a exposiccedilatildeo de mundo Mesmo que esta divisatildeo natildeo deva se estancar em limites fronteiriccedilos por demais riacutegidos certa epistemologia11 se faz necessaacuteria Justificamos tal necessidade epistemoloacutegica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ldquomesmo sendo o mundo infinitamente complexo de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos ainda assim haacute que haver objetos e estados de coisasrdquo (1963 [1918] 42211 p49) Natildeo propomos uma visatildeo meramente romantizada12 sobre o ofiacutecio do compositor Natildeo obstante os acadecircmicos relativistas13

desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte este eacute justamente o caminho que trilhamos Talvez seja

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o momento de repensar quais as verdadeiras condiccedilotildees para um compositor exercer seu ofiacutecio Haacute aqueles que afirmaram ldquoter orgulho em escolher uma maacute esteacutetica para os alunos de composiccedilatildeo se em compensaccedilatildeo der a eles um bom aprendizado de artesanatordquo (SCHOumlNBERG 1986 [1911] p6) Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus uacuteltimos epiacutegonos15 ainda hoje Estaacute claro que houve certa precariedade filosoacutefica na geraccedilatildeo dos compositores da vanguarda16 autoproclamada Permaneceram na superfiacutecie de uma autoidolatria tanto excecircntrica quanto excludente Assim esqueceram do mundo Natildeo eacute por menos que tambeacutem o mundo se esqueceu deles Jaacute outros mesmo que de modo diverso mas tambeacutem com receitas redutivas para o triunfo da arte citam a espontaneidade do artista seu talento nato ou sua inexplicaacutevel genialidade Em ambos os casos as soluccedilotildees apresentadas satildeo insuficientes Mesmo que natildeo tenhamos qualquer pretensatildeo de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte ainda assim aleacutem da periacutecia do artesatildeo e da inspiraccedilatildeo espontacircnea do artista existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornaacuteveis de percepccedilatildeo criacutetico-filosoacutefica por parte do compositor

Tambeacutem natildeo pretendemos solucionar problemas de adequaccedilatildeo ao mercado real de trabalho tanto mais se tivermos em vista os trecircs principais obstaacuteculos agrave composiccedilatildeo musical hoje Primeiro a massificaccedilatildeo17 da induacutestria da cultura18 - imperando hegemocircnica em todos os continentes Em segundo o esnobismo19 de muitas salas de concerto E ainda em terceiro a dificuldade para desatrelar a muacutesica composta neste iniacutecio do seacuteculo XXI da jaacute citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX jaacute haacute muito cansada e exaurida Portanto fora da induacutestria da cultura sem esnobismo e jaacute longe suficiente da velha vanguarda idealizamos as condiccedilotildees no ofiacutecio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade poeacutetica

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A primeira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor diz respeito ao caraacuteter operativo do artesatildeo condiccedilatildeo esta importante para o ofiacutecio como um todo O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura Se nem todo artesatildeo eacute um artista todo artista deve ser necessariamente um artesatildeo Como afirma Pareyson ldquoo ofiacutecio [de artesatildeo] tem uma curiosa prerrogativa pode existir sem a arte enquanto pelo contraacuterio a arte natildeo pode passar sem elerdquo (1997 [1966] p171)20 Jaacute segundo Paul Ricoeur (1913-2005) ldquoo autor [artista] eacute o artesatildeo em obra de linguagemrdquo (1990 p52) Heidegger expotildee assim a questatildeo

Os grandes artistas tecircm a maior consideraccedilatildeo pela capacidade do trabalho manual Satildeo os primeiros a exigir o seu aperfeiccediloamento cuidadoso com base num amplo domiacutenio Satildeo os que mais se esforccedilam para que haja no acircmbito do trabalho manual uma formaccedilatildeo continuamente renovada Jaacute se chamou a atenccedilatildeo para o fato dos gregos ndash que tinham laacute alguma ideia sobre obras de arte ndash utilizarem a mesma palavra (τέχνη) para o trabalho manual e para arte e de designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesatildeo e o artista De maneira precipitada poderiacuteamos concluir que a essecircncia do inventar proveacutem do trabalho manual Acontece poreacutem que a referecircncia ao uso que os gregos fazem da liacutengua (que indica a sua experiecircncia daquilo que estaacute em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso Por mais que a referecircncia agrave denominaccedilatildeo que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra (τέχνη) seja comum e por mais que tal pareccedila evidente continua no entanto a ser equivocada e superficial Τέχνη natildeo quer dizer nem trabalho manual nem arte nem de modo algum a teacutecnica no sentido atual nem significa em geral nunca um tipo de realizaccedilatildeo praacutetica A palavra τέχνη indica antes um modo do saber Saber significa ter visto no sentido lato de ver que significa perceber

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aquilo que estaacute presente enquanto tal A essecircncia do saber para o pensamento grego assenta sobre a ἀλήθεια quer dizer sobre o desencobrimento do ente () O artista natildeo eacute um τεχνίτης pelo fato de ser tambeacutem um artesatildeo mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein () A denominaccedilatildeo da arte como τέχνη natildeo implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual Aquilo que no inventar de obras se assemelha agrave confecccedilatildeo artesanal eacute de outro tipo O trabalho do artista estaacute determinado pela e em consonacircncia com a essecircncia do inventar (HEIDEGGER 2012 [1935] p60-61)

Mesmo que natildeo corresponda a um todo essencial do inventar em arte a capacidade do trabalho manual eacute ainda sim imprescindiacutevel para o artista Handwerk em alematildeo know-how em inglecircs ou meacutetier em francecircs assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a ποίησις Em muacutesica eacute o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produccedilatildeo a partir dos princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo Deve-se lembrar ainda de suas disposiccedilotildees texturais21 e estruturais na utilizaccedilatildeo conjunta dos paracircmetros musicais (altura duraccedilatildeo intensidade e timbre entre outros atributos de expressatildeo) bem como de toda sorte de articulaccedilatildeo sucessiva e simultacircnea dos sons musicais independente de qual seja o sistema musical22 Nas escolas da assim chamada muacutesica claacutessica23 estes conhecimentos artesanais imprescindiacuteveis recebem nomes de disciplinas harmonia contraponto orquestraccedilatildeo percepccedilatildeo e solfejo anaacutelise e estudo de linguagem forma e estruturaccedilatildeo etc Contudo nos cursos de composiccedilatildeo por este mundo afora raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para aleacutem destes primeiros passos Eacute como se esta primeira condiccedilatildeo fosse uacutenica no ofiacutecio de compositor Seraacute mesmo Se assim o fosse como na tradiccedilatildeo da παιδεία24 seriacuteamos apenas eruditos25 e

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acadecircmicos mas natildeo artistas Se assim o fosse para se tornar artista bastaria frequentar uma escola Eacute como se a essecircncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em liccedilotildees didaacuteticas Mas a grande arte nos exige mais que isso Na arte da muacutesica haacute algo que sempre jaacute se encontra aleacutem de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula

A ποίησις em muacutesica se configura natildeo apenas pelos procedimentos operativos do artesatildeo e seu engenho mas engloba questotildees que natildeo satildeo menores envolvendo a linguagem musical como um todo No caraacuteter operativo do artesatildeo de toda arte se incluem relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos evidentemente poeacuteticos tanto abstraccedilotildees quanto concretudes nas mais variadas formas de analogia imitaccedilatildeo citaccedilatildeo paraacutefrase sintaxe e polissintaxe siacutembolo alegoria metaacutefora paroacutedia e ironia entre outras possibilidades

As ferramentas artesanais estatildeo a serviccedilo da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas Haacute aiacute um detalhe importante A linguagem natildeo pode nem deve estar a serviccedilo de uma ferramenta Assim se justifica a criacutetica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908) por este ldquoter corrigido a harmonia [da oacutepera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatoacuteriordquo (ADORNO 1975 [1949] p129) Rimsky-Korsakov talvez natildeo tenha compreendido as questotildees de linguagem propostas por Mussorgsky Na versatildeo original da oacutepera jaacute se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepccedilatildeo de harmonia como de orquestraccedilatildeo no contexto inequiacutevoco do estilo musical do proacuteprio Mussorgsky Natildeo estamos falando que este seja melhor que aquele mas apenas que satildeo diferentes E neste caso Rimsky-Korsakov agiu contra a diferenccedila aniquilando um fundamento da arte

Vamos a outro exemplo que soacute por acaso envolve este mesmo compositor russo A questatildeo eacute a seguinte os

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Princiacutepios de orquestraccedilatildeo (1ordf ed 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referecircncia na escritura de qualquer muacutesica composta para orquestra desde entatildeo Claro que natildeo pois se este livro eacute importante no contexto da proacutepria muacutesica de Rimsky-Korsakov jaacute se encontra aqueacutem das dimensotildees de orquestraccedilatildeo mesmo de Stravinsky seu aluno mais ilustre Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenccedilotildees escolares de harmonia e contraponto como um manual qualquer de orquestraccedilatildeo) eacute como uma escada que se usa para subir Uma vez no alto (quando se atinge o domiacutenio da linguagem) jaacute se pode prescindir da escada Friedrich Nietzsche (1844-1900) expocircs assim o problema ldquoForam degraus para mim e eu subi por eles ndash para tanto tive que passar por cima deles Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre elesrdquo (2009 [1888] p29) Wittgenstein eacute ainda mais incisivo ldquoele tem que jogar a escada fora apoacutes ter subido nelardquo (1963 [1918] 654 p115) Em cada linguagem musical cuja posiccedilatildeo na hierarquia seraacute sempre superior em termos de arte temos sempre jaacute propostas singulares de harmonia e sistema contraponto orquestraccedilatildeo formas e estruturas Estas ferramentas como os degraus de uma escada devem ser entendidas em sua finitude histoacuterica localizadas em determinado contexto estiliacutestico e cuja transposiccedilatildeo seraacute sempre algo forccedilado Saibamos entatildeo apreciar as diversas formas de escaladas que existem por aiacute para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora alccedilando voo proacuteprio e sem obrigaccedilotildees que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada Falamos assim de uma essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal da muacutesica envolvendo disciplina e liberdade E se a primeira condiccedilatildeo tem a ver com disciplina jaacute a segunda num evidente conflito insoluacutevel diz respeito a um exerciacutecio de liberdade Vamos a esta agora

A segunda condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor relacionada agrave sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginaccedilatildeo)

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eacute tambeacutem o alcance de uma singularidade solitaacuteria em sua ποίησις Podemos afirmar que a muacutesica soacute se daacute na singularidade solitaacuteria da obra Para aleacutem de qualquer concepccedilatildeo romacircntica ou simbolista do seacuteculo XIX eacute no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitaacuteria enquanto ἀλήθεια26 Portanto tambeacutem natildeo estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista jaacute que o novo ex nihilo ou seja o novo absoluto a invenccedilatildeo artiacutestica a partir do nada soacute houve quem sabe nos momentos primordiais da trageacutedia grega Desde entatildeo tudo que fazemos em arte eacute sempre uma nova nota de rodapeacute agraves obras de Eacutesquilo (525-456 aC) Soacutefocles (ca497-405 aC) e Euriacutepedes (ca480-406 aC) Queremos afirmar contudo que a obra de arte natildeo se configura numa mecacircnica automatizada ou reproduccedilatildeo em seacuterie Natildeo segue qualquer padronizaccedilatildeo redutiva nem regras preacute-estabelecidas jaacute que natildeo haacute regras que possam garantir a obra de arte Consta do Dicionaacuterio Kantiano (Kant-Lexikon 1916) de Rudolf Eisler27 (1873-1926) uma definiccedilatildeo tanto concisa quanto instigante no verbete ldquoregra esteacutetica natildeo se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composiccedilatildeo ou ποίησις de] sua obrardquo (Kritik der Urteilskraft sectsect 45 - textlogde33183html) O processo contudo eacute dialeacutetico Superam-se regras anteriores mas tambeacutem se propotildeem novas Um certo Zdislas Milner advertiu que ldquoo facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas natildeo daacute [toda] a medida do seu valorrdquo (apud ANDRADE 1979 [1921] p17) Neste iniacutecio do seacuteculo XXI com o devido distanciamento criacutetico podemos reler da seguinte maneira natildeo obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas natildeo se produz obra de arte apenas com irreverecircncia Irreverecircncia de um lado estruturalismo ensimesmado de outro quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histoacuterica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos Ou seja na velha vanguarda autoproclamada ocorreu natildeo raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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integridade Estamos aludindo agravequele aforismo de Machado de Assis (1839-1908) no primeiro paraacutegrafo de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas (1880) uma obra composta ldquocom a pena da galhofa e a tinta da melancoliardquo Num contraponto agrave galhofa a melancolia de Machado de Assis eacute um mergulho nos abismos do mundo da vida A vanguarda autoproclamada da segunda metade do seacuteculo XX por sua vez jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas Permaneceu muitas vezes na superfiacutecie da loacutegica de sistemas Neste contexto a posiccedilatildeo criacutetica de Nietzsche mais parece uma profecia ldquoeu desconfio de todos os sistemaacuteticos e me afasto deles A vontade de sistema denota falta de integridaderdquo (2006 [1888] p26) Portanto mesmo que estabeleccedila incontornaacuteveis relaccedilotildees sistemaacuteticas28 a muacutesica enquanto grande arte natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema quer seja um sistema artesanal (como por exemplo o serialismo integral) ou ideoloacutegico (como a induacutestria da cultura) Lembremo-nos ainda uma vez de Heraacuteclito Em sua utilizaccedilatildeo do conceito de ἀρμονία (que significava muacutesica jaacute que agravequela altura nem sequer havia a palavra μουσική) haacute sempre um confronto um conflito uma tensatildeo um desvelar daquilo que se esconde por natureza ldquoharmonia inaparente mais forte que a do aparenterdquo (Fragmento 54) Entendemos deste fragmento de Heraacuteclito que a harmonia inaparente eacute a verdade singular reveladora (ἀλήθεια) do artista compositor aquilo que estava oculto e estaacute sendo revelado A ἀλήθεια eacute invenccedilatildeo Algo que jamais seraacute refutado Nada tem a ver com refutaccedilotildees Jaacute a harmonia aparente se reduz agrave loacutegica de um sistema Natildeo o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade mas aquele cuja reiteraccedilatildeo se torna padronizada seja na academia ou na induacutestria da cultura

Na escola de Arnold Schoumlnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia Neste iniacutecio do seacuteculo XXI podemos falar da superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema30 Eacute sempre esta questatildeo que diferencia todos os grandes compositores desde

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pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente natildeo haacute partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anaacutelise ateacute a Antiguidade)

Em Mozart podemos ter um exemplo da loacutegica de um sistema e sua superaccedilatildeo Na Figura nordm1 alteramos as funccedilotildees harmocircnicas e a disposiccedilatildeo do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua eacutepoca Na Figura nordm2 mantemos o original de Mozart com sua superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema e suas funccedilotildees harmocircnicas surpreendentes bem como a linha inusitada do baixo num movimento meloacutedico que transcende a ideia de um simples acompanhamento ndash a tal harmonia inaparente de Heraacuteclito

Vejamos entatildeo um segundo caso mais recente O iniacutecio da abertura da oacutepera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) ndash Figura nordm3 - acaba sendo referecircncia para a ironia do iniacutecio do Preacutelude agrave lrsquoapregraves-midi drsquoum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) ndash Figura nordm4 Como ocorre a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema aqui Tal como na hipoacutetese da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia De nenhuma maneira Aludindo agrave escala de tons inteiros Debussy efetua uma nova resoluccedilatildeo do Acorde de Tristatildeo apenas agora de tal modo transfigurado que jaacute natildeo se reconhece a fonte original wagneriana natildeo obstante o mesmo desfecho num acorde maior com seacutetima Um sistema que se alimenta de outro mas num conflito insoluacutevel que une e distingue Tais fatos provam que natildeo eacute a antinomia consonacircncia ou dissonacircncia que decide pois estas satildeo sempre jaacute contextuais mas sim a superaccedilatildeo da loacutegica de um sistema Neste sentido a ideia da emancipaccedilatildeo da dissonacircncia natildeo passa de um engodo

A origem desta confusatildeo talvez esteja em Pitaacutegoras de Samos (seacuteculo VII aC) quem sabe o precursor das ciecircncias empiacuterico-matemaacuteticas Na Escola de Pitaacutegoras a harmonia estaacute diretamente relacionada agrave afinaccedilatildeo musical e agraves proporccedilotildees numeacutericas dos intervalos musicais Os pitagoacutericos se preocuparam em especial

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com o estabelecimento das consonacircncias ditas matemaacuteticas Entenderam a matemaacutetica enquanto fundamento determinante da harmonia musical Esta concepccedilatildeo pitagoacuterica prevaleceu ao longo dos seacuteculos Jaacute em Heraacuteclito talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmaacuteticos da existecircncia e linguagem humanas temos uma dimensatildeo maior e mais criacutetica da harmonia enquanto processo de elaboraccedilatildeo de linguagem por meio de seu novo conceito de λόγος Nos fragmentos de Heraacuteclito o λόγος natildeo estaacute subordinado agrave matemaacutetica Segundo Wittgenstein ldquoa matemaacutetica eacute um meacutetodo loacutegico As sentenccedilas da matemaacutetica satildeo igualdades ou seja sentenccedilas aparentes A sentenccedila da matemaacutetica natildeo expressa qualquer pensamento () A loacutegica do mundo que mostra as sentenccedilas da loacutegica em tautologias mostra a matemaacutetica em igualdadesrdquo (1963 [1918] 62-622 p102) Eacute por isso que as ldquofunccedilotildees de verdaderdquo na loacutegica (na matemaacutetica) ldquonatildeo satildeo funccedilotildees materiaisrdquo (ibidem 544 p71) Natildeo dizem nada natildeo tecircm conteuacutedo Desse modo natildeo satildeo as proporccedilotildees matemaacuteticas que determinam a priori os enigmas da linguagem As supostas consonacircncias e dissonacircncias satildeo sempre jaacute contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tensatildeo entre movimentos contraacuterios Segundo Heraacuteclito ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo (Fragmento 8) Aristoacuteteles (Do mundo 5396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questatildeo musical essencial em Heraacuteclito

A muacutesica mescla notas agudas e graves longas e curtas realizando de diferentes sons uma inequiacutevoca harmonia a gramaacutetica mescla vogais e consoantes e a partir disso compotildee toda sua arte O mesmo eacute dito tambeacutem pelo obscuro Heraacuteclito ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo completas convergente e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo (Fragmento 10)

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A mesma concepccedilatildeo de confronto em Heraacuteclito - sempre jaacute uma questatildeo maior do λόγος da linguagem ndash estende-se tambeacutem para a tensatildeo como jaacute mencionamos aqui entre a loacutegica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superaccedilatildeo por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente) Podemos concluir que se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendecircncia do ser humano a tarefa da linguagem artiacutestica eacute justamente ultrapassar a loacutegica constituiacuteda de um sistema

Temos ainda o exerciacutecio de imaginaccedilatildeo do inexistente por parte do compositor mesmo quando se possa chegar tatildeo somente a um novo contexto para velhos materiais musicais Lembremo-nos por exemplo do iniacutecio do poema sinfocircnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949) quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funccedilotildees harmocircnicas (em Doacute maior na funccedilatildeo de Tocircnica mas inicialmente com a quinta vazia sem terccedila depois nas articulaccedilotildees suacutebitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior e ainda depois tatildeo somente com as funccedilotildees de Subdominante Subdominante menor com sixte ajouteacutee Tocircnica com quinta no baixo Tocircnica Paralela Dominante e Tocircnica) ndash Figura nordm5 Estava tudo ali por natureza mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida soacute revelada entatildeo de forma singular pela orquestraccedilatildeo e pelas tensotildees provocadas pelo espaccedilamento temporal Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a muacutesica de hoje Estaacute claro que natildeo Apenas que os caminhos para a muacutesica de nosso tempo natildeo podem mais ser trilhados por meio de um uacutenico sistema fechado Vivenciamos hoje tempos de diaacutelogos abertos Em muacutesica isso se traduz natildeo soacute por sistemas abertos mas tambeacutem por diaacutelogos entre sistemas

Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo pois a questatildeo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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maior profundidade a ἀλήθεια) natildeo eacute um problema particular de cada um Lembremo-nos da advertecircncia de Heraacuteclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (Fragmento 2) Daiacute tambeacutem nossa tentativa epistemoloacutegica de universalizaccedilatildeo para talvez procurar recuperar a dignidade do ofiacutecio de compositor na arte da muacutesica Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraccedilotildees de alunos quem sabe poder despertar neles um espiacuterito criacutetico jaacute que o espaccedilo perdido em especial para a induacutestria da cultura nos uacuteltimos anos natildeo deixa de ter sido brutal

A terceira condiccedilatildeo no ofiacutecio de compositor eacute a exposiccedilatildeo de mundo Trata-se das questotildees aleacutem-muacutesica as chamadas referecircncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questotildees do meacutetier interno da muacutesica sejam por si soacute apaixonantes e inesgotaacuteveis Falamos aqui que a obra musical culmina na exposiccedilatildeo de mundo enquanto interaccedilatildeo existencial Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia A obra musical natildeo se configura apenas no meacutetier e na capacidade inventiva do compositor mas eacute acima de tudo linguagem enquanto morada do ser λόγος e ἀλήθεια em ideais contextuais de beleza Segundo Bernard Chapman Heyl ldquoa noccedilatildeo de belo eacute suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizadardquo (texto original de 1943 apud ABBAGNANO 1998 [1960] p367) Na muacutesica haacute inuacutemeras possibilidades de confrontos e sentimentos (πάθος31) em meio agrave finitude humana sempre jaacute historial A exposiccedilatildeo de mundo eacute tambeacutem a paisagem que a grande muacutesica sempre proporciona numa dialeacutetica sem siacutentese entre o concreto e o abstrato Esta eacute uma diferenccedila entre Heraacuteclito e a dialeacutetica de Hegel Em Heraacuteclito a harmonia eacute um confronto constante e natildeo haacute conciliaccedilatildeo ndash algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje Satildeo na muacutesica tambeacutem as incontornaacuteveis relaccedilotildees entre φύσις e λόγος como diria o proacuteprio Heraacuteclito

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No seacuteculo XIX ocorreu uma perspectiva natildeo menos fecunda que vai durar por geraccedilotildees Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833] p575) ou mundo da vida num contexto tanto pictoacuterico quanto musical enaltecendo de maneira otimista a forccedila proponente da vida humana mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios Jaacute Nietzsche afirma que ldquoa arte eacute o maior estiacutemulo para a vida como se poderia entendecirc-la como sendo sem propoacutesito sem finalidade apenas lrsquoart pour lrsquoartrdquo (2009 [1888] p104) - e ainda que ldquoo existir e o mundo soacute se justificam eternamente como fenocircmeno esteacuteticordquo (apud SAFRANSKI 2005 [2000] p63) Talvez seja neste mesmo sentido que segundo Wittgenstein ldquoo mundo e a vida satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 5621 p90) A mesma relaccedilatildeo mundovida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938) em que se coloca ldquoas questotildees sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todordquo (1976 [1935]) Um dos maiores legados que o Romantismo e logo apoacutes tambeacutem a geraccedilatildeo dos filoacutesofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt Se haviacuteamos falado da exposiccedilatildeo de mundo poderiacuteamos falar tambeacutem da exposiccedilatildeo de mundo da vida pois natildeo haacute como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte A muacutesica enquanto linguagem artiacutestica eacute acima de tudo uma instituiccedilatildeo humana Justamente por isso satildeo pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos mesmo hermeacuteticos como se a autonomia do material musical fosse absoluta Eacute o trabalho de Siacutesifo de se tentar resolver questotildees musicais restringindo-se tatildeo somente agraves proacuteprias questotildees musicais seraacute sempre um esforccedilo inuacutetil Neste caso a visatildeo do artista se torna miopia Natildeo devemos esquecer que os caminhos da muacutesica se encontram natildeo raramente fora da muacutesica

Tendo-se em vista as referecircncias externas da muacutesica tratamos aqui acima de tudo de um encaixe criacutetico-contextual da

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obra pois o artista numa perspectiva brechtiana natildeo pode deixar de perguntar sobre as complexas relaccedilotildees no mundo em que vivemos o que eacute como eacute de onde vem a quem serve Marx diria que se faz necessaacuteria uma criacutetica agrave ideologia Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francecircs do final revolucionaacuterio do seacuteculo XVIII natildeo significa que antes sempre jaacute natildeo houvesse mesmo sem possuir este nome a questatildeo ideoloacutegica na arte O mesmo vale para outros conceitos igualmente neologismos que tambeacutem surgiram naquele mesmo exato momento tais como esquerda poliacutetica direita poliacutetica (e se ambos satildeo anteriores a Marx e ao socialismo por que entatildeo natildeo mantecirc-los tambeacutem apoacutes Marx e a queda do socialismo) vanguarda banalizaccedilatildeo e ainda terrorismo Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluccedilatildeo Francesa (1789) e do periacuteodo logo seguinte de Napoleatildeo Bonaparte (1769-1821) que afinal ao lado da Revoluccedilatildeo Industrial inauguraram vaacuterios dos fundamentos da modernidade Mas desde os primoacuterdios dos tempos sempre houve praacutexis tanto revolucionaacuteria quanto reacionaacuteria na poliacutetica alternativas de uniformidade ou de diferenccedila em meio aos projetos de arte bem como momentos de estagnaccedilatildeo ou descaso e ainda outros tantos de violecircncia extrema na sociedade Em relaccedilatildeo agrave questatildeo ideoloacutegica o fato eacute que com Marx a fecunda hipoacutetese de trabalho sobre a questatildeo ideoloacutegica passa a ser reconhecida pelos criteacuterios de representaccedilatildeo dominaccedilatildeo e distorccedilatildeo33 cujas origens remontam aos estudos sobre a religiatildeo de Heine34 O problema ideoloacutegico na muacutesica se confunde com os primoacuterdios de sua proacutepria histoacuteria e natildeo se delimita a qualquer momento em especial Em arte nunca houve algo como isenccedilatildeo ideoloacutegica absoluta ldquoqueiram ou natildeo queiram os granfinos do esteticismordquo (ANDRADE 1945 p15)

Na opiniatildeo puacuteblica referente agrave cultura - e reiteramos que em nossa perspectiva a arte se encontra fora da cultura - ocorrem natildeo raramente debates esteacutereis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaccedilotildees) da nacionalidade (como afirmamos no

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iniacutecio deste ensaio a arte da muacutesica eacute sempre jaacute grega sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades eacutetnicas ou nacionais nem muito menos nacionalistas36) do relativismo cultural37 (se tudo eacute relativo ateacute a autoridade do autor por meio de sua obra deixa de ser verdadeira e entatildeo a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada haacute de mais anti-artiacutestico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos) O acircmbito da arte natildeo pode se subjugar a tais problemas ideoloacutegicos da atualidade

Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaccedilotildees as mais draacutesticas Seraacute que vale a pena elencar algumas mazelas Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentaacutevel a degradaccedilatildeo ambiental o consumismo predatoacuterio a injusticcedila social a pobreza e mesmo ainda a miseacuteria a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da miacutedia39 (de modo algum um problema menor que a corrupccedilatildeo em geral mesmo na poliacutetica) a loacutegica oportunista do sistema financeiro a metanarrativa do desempenho (lucro) o terror tecnocrata dos decisores40 o crime organizado em toda parte bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermeacutedio da induacutestria da cultura e seu agressivo marketing massificador Entatildeo queremos afirmar com tais premissas que a arte soacute pode se inspirar em graves problemas ou terriacuteveis distorccedilotildees ideoloacutegicas trageacutedias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens Uma perspectiva excludente assim natildeo seria menos empobrecedora Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937) ldquosou pessimista com a inteligecircncia mas otimista pela vontade42rdquo Natildeo podemos subtrair da arte o sonho em suas relaccedilotildees evidentes com a utopia Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947) numa interessante releitura de Marx eacute a de que ldquoas ideologias olham para traacutes ao passo que as utopias olham para frente As ideologias se acomodam agrave realidade que justificam e dissimulam ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43rdquo (apud RICOEUR 1990 p88) Ou seja as ideologias procuram manter

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aparelhos de poder jaacute estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade Em todos os casos ldquoa morte da ideologia seria uma esteacuteril lucidez Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto sem distacircncia em relaccedilatildeo a si mesmo sem representaccedilatildeo de sirdquo (ibidem p89) conforme reiterou Ricoeur Localizando a distorccedilatildeo ideoloacutegica o artista se ocupa da verdade Natildeo haacute grande artista no mundo que natildeo pratique em algum momento este fecundo exerciacutecio de utopia Eacute o momento de sua transcendecircncia uma condiccedilatildeo para se ir aleacutem Provavelmente ateacute natildeo vaacute melhorar o mundo mas quem sabe sua arte se torne mais instigante Com isso tambeacutem natildeo queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista Pelo contraacuterio sua poeacutetica pode ser mesmo a poeacutetica da ruiacutena seja esta fiacutesica moral ou existencial Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinaacuteria uma virtude uma condiccedilatildeo verdadeiramente nietzschiana do Uumlbermensch44 porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeiccedilatildeo ndash algo distante portanto do cotidiano do homem mediano

Quando discorremos sobre a singularidade solitaacuteria da verdade na arte acabamos por lidar com a questatildeo da exposiccedilatildeo de mundo e agora com este tema voltamos agravequele Em Bertolt Brecht (1898-1956) por exemplo temos a seguinte concepccedilatildeo sobre a tarefa contextual do artista ldquoele precisa ter a coragem de escrever a verdade embora ela esteja sendo reprimida em toda parte a inteligecircncia de reconhececirc-la embora ela esteja sendo ocultada em toda parte a arte em sua utilizaccedilatildeo como uma arma o julgamento na escolha daqueles em cujas matildeos ela se tornaraacute eficaz a astuacutecia de viabilizar sua disseminaccedilatildeo entre elesrdquo (BRECHT 1966 [19201939] p265) A exposiccedilatildeo de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerciacutecio de utopia Mas seraacute que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poliacutetico Jamais O proacuteprio Eisler justamente ele o compositor mais politicamente engajado de

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todo o seacuteculo XX chegou a afirmar que ldquoa superpolitizaccedilatildeo na arte leva agrave barbaacuterie na esteacuteticardquo (1975 p155 - na sexta conversa com Hans Bunge gravada a 18 de julho de 1961) Eisler quer aqui realccedilar a autonomia da arte mesmo que relativa considerando que ela tem um campo proacuteprio e que natildeo pode se tornar um mero veiacuteculo poliacutetico

Cabe aqui ainda outro tipo de advertecircncia Natildeo obstante as incontornaacuteveis questotildees filosoacuteficas que envolvem a exposiccedilatildeo de um mundo mesmo a opiniatildeo de grandes filoacutesofos pode natildeo ser decisiva para os rumos da arte Basta lembrarmos os inuacutemeros casos de esteacutetica precaacuteria em relaccedilatildeo aos compositores de suas respectivas eacutepocas Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relaccedilatildeo a Jean-Philippe Rameau (1683-1764) Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky

O que aludimos agrave esteacutetica diz respeito ao modo como percebemos a arte percepccedilatildeo esta sempre complexa E como citamos o conceito de esteacutetica jaacute mais de uma vez neste ensaio talvez caiba aqui um breve parecircntese Vejamos que a palavra remonta a αίσθησις (percepccedilatildeo sensaccedilatildeo sensibilidade reconhecimento compreensatildeo) Podemos ateacute traduzir por estesia cuja negaccedilatildeo eacute anestesia Sexto Empiacuterico (seacuteculo II) (Contra os matemaacuteticos VII 126 - apud COSTA 2002 p171) aponta em Heraacuteclito a importacircncia da αίσθησις e do λόγος para o reconhecimento da verdade

Heraacuteclito tendo considerado que o homem [eacute dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade aistheacutesis e loacutegos diz () que a aistheacutesis natildeo eacute confiaacutevel e adota o loacutegos como criteacuterio A aistheacutesis contudo Heraacuteclito censura expressamente dizendo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo (Fragmento 107)

Heraacuteclito conferiu agrave αίσθησις uma dimensatildeo filosoacutefica inferior ao λόγος Por isso tambeacutem Heidegger jamais se refere a uma

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esteacutetica enquanto categoria filosoacutefica mas sim concentra-se no problema maior da origem da obra de arte Estaacute claro porque natildeo haacute uma esteacutetica na Antiguidade grego-romana O conceito moderno de esteacutetica (atividade filosoacutefica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (seacuteculo XVIII) Segundo Luigi Pareyson ldquoa esteacutetica natildeo eacute uma parte da filosofia mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte de modo que uma esteacutetica natildeo seria tal se ao enfrentar tais problemas implicitamente tambeacutem natildeo enfrentasse todos os outros problemas da filosofiardquo (1997 [1966] p4) Pareyson com toda a razatildeo ainda chama a atenccedilatildeo para a confusatildeo que se faz frequentemente entre esteacutetica e poeacutetica

A distinccedilatildeo entre esteacutetica e poeacutetica eacute particularmente importante e representa entre outras coisas uma preocupaccedilatildeo metodoloacutegica cuja negligecircncia conduz a resultados lamentaacuteveis Se nos lembrarmos que a esteacutetica tem um caraacuteter filosoacutefico e especulativo enquanto que a poeacutetica pelo contraacuterio tem um caraacuteter programaacutetico e operativo natildeo deveremos tomar como esteacutetica uma doutrina que eacute essencialmente uma poeacutetica Isto eacute tomar como conceito de arte aquilo que natildeo quer ou natildeo pode ser senatildeo um determinado programa de arte (ibidem p15)

De fato nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente alusotildees agrave ldquoesteacutetica de determinado artistardquo quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artiacutestico Ou seja querem falar sobre sua poeacutetica mas desconhecem este conceito acabando por empregar mal o outro Resumindo para Pareyson esteacutetica eacute teoria observaccedilatildeo anaacutelise especulaccedilatildeo enfim um ofiacutecio de filoacutesofo Jaacute a poeacutetica eacute ofiacutecio de artista que elabora seu projeto e compotildee (produz) sua obra

Mas haacute uma questatildeo talvez natildeo resolvida em Pareyson Se por um lado a esteacutetica natildeo pode ser considerada uma prerrogativa

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exclusiva do ofiacutecio de filoacutesofo jaacute que este nem sequer goza de isenccedilatildeo absoluta em ideologia ou mateacuteria de gosto por outro lado natildeo soacute o artista como tambeacutem o historiador e mesmo o criacutetico de arte sempre jaacute se encontram atrelados a uma dimensatildeo esteacutetica agrave sua capacidade de percepccedilatildeo As observaccedilotildees e anaacutelises de artistas historiadores e criacuteticos entre outros natildeo podem ser subestimadas a priori tal como o julgamento de Pareyson que as considera ldquonotas esparsas sem uma reflexatildeo filosoacutefica que as fecunde [e que] elas proacuteprias ainda natildeo satildeo esteacuteticardquo (ibidem p7) Na esteacutetica musical em especiacutefico haacute ainda outra questatildeo que permanece aberta a condiccedilatildeo de um muacutesico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior agravequela de um filoacutesofo ouvinte de muacutesica Em ambos os casos natildeo haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um

Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os ldquoolhares [do artista] satildeo reveladores sobretudo porque satildeo construtivos como o olho do pintor cujo ver jaacute eacute um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazerrdquo (ibidem p25) Mas natildeo devemos esquecer que tambeacutem o artista desenvolve um senso esteacutetico justamente para o natildeo fazer rejeitando ou evitando aquilo que apoacutes suas anaacutelises esteacuteticas deve permanecer fora de sua poeacutetica natildeo pertencendo assim aos seus recursos estiliacutesticos Quando Villa-Lobos por exemplo afirma que ldquologo que sinto a influecircncia de algueacutem me sacudo todo e salto forardquo (apud HORTA 1987 p22) estaacute demonstrando uma percepccedilatildeo profunda da muacutesica de seu tempo percepccedilatildeo esta que natildeo deixa de ser uma anaacutelise (mesmo que oral e natildeo escrita) de fato esteacutetica Mesmo ele que natildeo tinha qualquer diploma

Finalmente fechado o parecircntese sobre esteacutetica e voltando ao problema ideoloacutegico na muacutesica (mas a relaccedilatildeo permanece pois uma verdadeira criacutetica ideoloacutegica natildeo pode prescindir de uma anaacutelise esteacutetica) apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 teraacute maior dificuldade em cuidar da exposiccedilatildeo

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de mundo em sua obra Embora a alienaccedilatildeo (Entfremdung) seja um conceito importante para vaacuterios filoacutesofos como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser) aqui noacutes pretendemos entender por alienado tatildeo somente aquele que natildeo se interessa por problemas gerais quer sejam poliacutetico-ideoloacutegicos ou sociais Os gregos jaacute definiam um mesmo perfil de indiviacuteduo aquele voltado apenas a interesses particulares chamado de ἰδῐωτῐκός - o precursor do nosso idiota moderno E longe de ser uma pessoa de pouca inteligecircncia (podendo ser ateacute bem esperto por isso em alematildeo se diz Fachidiot ou seja idiota com conhecimento de mateacuteria) o idiota bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui) tem como caracteriacutestica principal a mesquinhez intelectual sempre jaacute adequada agrave induacutestria da cultura

Mas que fique claro por fim natildeo soacute a arte gozaraacute sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos satildeo sempre multifaacuterios - tais como aqueles da vida O artista eacute livre por natureza e natildeo haacute tema ou assunto que lhe possa ser tabu ndash salvo eacute claro a questatildeo do bom gosto49 Concluindo as condiccedilotildees do ofiacutecio de compositor natildeo obstante todas estas consideraccedilotildees aqui expostas o fato decisivo eacute que Gustave Flaubert (1821-1880) no Preacuteface agrave La vie drsquoeacutecrivian jaacute havia reconhecido um desequiliacutebrio evidente em qualquer ποίησις em arte Ele indica o problema desde as origens da arte na trageacutedia grega ldquoEacute possiacutevel que desde Soacutefocles todos noacutes sejamos selvagens tatuados Mas na Arte existe alguma outra coisa aleacutem da retidatildeo das linhas e do polido das superfiacutecies A plaacutestica do estilo natildeo eacute tatildeo ampla como a ideia Temos coisas demais para as formas que possuiacutemosrdquo (apud DERRIDA 2005 [1967] p11) Ou seja na arte haacute limites natildeo soacute conceituais como tambeacutem poeacutetico-operacionais Portanto tudo que propomos satildeo apenas caminhos para se construir uma postura criacutetica

Mesmo que natildeo se pretenda aqui uma cartilha para

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neoacutefitos em muacutesica natildeo temos qualquer pretensatildeo de radicalismo como alguns mestres do passado Nietzsche por exemplo chamava a atenccedilatildeo para o problema de disciacutepulos que seguem um determinado mestre ldquoComo Procuras Gostarias de multiplicar-se por dez por cem Procuras proseacutelitos ndash Procura por zerosrdquo (2009 [1888] p24) E Maacuterio de Andrade confirma a mesma convicccedilatildeo ldquoEu natildeo quero disciacutepulos Em arte escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum soacuterdquo (1979 [1921] p32) Jaacute Machado de Assis que jamais fora professor na uacuteltima frase de suas Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas afirma ainda ldquonatildeo tive filhos natildeo transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miseacuteriardquo Se esta postura excludente de Nietzsche Machado de Assis e Maacuterio de Andrade fosse levada ao peacute da letra Villa-Lobos que natildeo teve filhos nem alunos seria um raro privilegiado Mas Villa-Lobos eacute privilegiado natildeo por isso mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo Nossa intenccedilatildeo ao escrever este ensaio na condiccedilatildeo de professor do Curso de Muacutesica pela USP de Ribeiratildeo Preto eacute sempre jaacute levantar algum assunto para discussatildeo em sala de aula Que mal haacute nisso Eacute sim para nossos alunos que escrevemos Aos meus alunos da USP de Ribeiratildeo Preto eu dedico este ensaioE uma vez finalizadas estas trecircs condiccedilotildees (mas deve haver muitas outras) no ofiacutecio de compositor bem como alguns de seus senotildees passemos agora a outra grande aacuterea da muacutesica a interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo

Interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo - πρᾶξις em muacutesica

Πρᾶξις diz respeito agrave praacutetica accedilatildeo aplicaccedilatildeo execuccedilatildeo sempre jaacute implicando uma condiccedilatildeo de destreza No caso do inteacuterprete-executante em muacutesica a praacutetica vem sempre jaacute procedida do estudo das fontes musicais de um exame rigoroso e detalhado da partitura Aleacutem da escritura musical do compositor

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que deve ser exaustivamente estudada haacute ainda o mundo da obra exposta bem como o contexto histoacuterico-estiliacutestico deste mundo sua paisagem pictoacuterica sua poesia Eacute por isso que para o muacutesico executante o constante exerciacutecio de interpretaccedilatildeo e ainda mais uma atividade mesmo hermenecircutica eacute uma conditio sine qua non em seu ofiacutecio E daiacute tambeacutem sua dupla condiccedilatildeo tanto interpretativa como performaacutetica Em latim haacute a expressatildeo que bem define este ofiacutecio mente manuque Em 1993 fundamos o Ensemble Mentemanuque voltado agrave muacutesica contemporacircnea tendo como princiacutepio esta atividade de interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo musical nas mais estreitas relaccedilotildees com a pesquisa musicoloacutegica e com a composiccedilatildeo musical preferencialmente ineacutedita Ou seja ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenecircutica) e uma manual (e mais que com as matildeos executando muacutesica com o corpo num todo tocando um instrumento cantando ou regendo)

Devemos lembrar que a poeacutetica (produtivo inventivo) eacute diferente da praacutetica (accedilatildeo) Segundo Aristoacuteteles ldquohaacute que se distinguir o que eacute produtiacutevel daquilo que eacute realizaacutevel pela accedilatildeo A produccedilatildeo (ποίησις) eacute diferente da accedilatildeo (πρᾶξις) Assim a disposiccedilatildeo praacutetica conformada por um princiacutepio racional eacute diferente da disposiccedilatildeo produtora conformada por um princiacutepio racional Assim nenhuma das duas eacute envolvida pela outra porque nem a accedilatildeo eacute produccedilatildeo nem a produccedilatildeo eacute accedilatildeordquo (Eacutetica a Nicocircmaco Livro VI capiacutetulo IV 1140a1-5 ndash traduccedilatildeo de traduccedilatildeo de Antoacutenio de Castro Caeiro - Satildeo Paulo Atlas 2009) Eacute por isso que dizemos corretamente que um inteacuterprete performaacutetico natildeo tem um estilo mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor Eis a diferenccedila entre composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo em muacutesica Mas natildeo raramente se fala por aiacute de um suposto ldquoestilo de inteacuterpreterdquo ou ldquoestilo de interpretaccedilatildeordquo Como o inteacuterprete performaacutetico ndash aquele que trabalha na aacuterea das praacuteticas interpretativas ndash poderaacute possuir um estilo proacuteprio Haacute que se estar atento agraves incontornaacuteveis idiossincrasias de um inteacuterprete-

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performaacutetico Por um lado o compositor natildeo pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve Afinal na escritura musical de hoje jaacute estaacute mais que sugerido todo um conjunto de informaccedilotildees voltado agrave execuccedilatildeo50 Por outro lado o inteacuterprete-performaacutetico tem uma inequiacutevoca obrigaccedilatildeo de fidelidade agrave poeacutetica do compositor Mas existe ainda sim e sempre um amplo espaccedilo por parte do inteacuterprete-performaacutetico para exercer seu ofiacutecio com dignidade

Pesquisa musicoloacutegica - θεωρῐᾱ em muacutesica

θεωρῐᾱ eacute em sua origem um neologismo Embora natildeo se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos seacuteculos VII e VI aC (mais provaacutevel VI do que VII ou na virada de um seacuteculo para outro) Ateacute entatildeo havia dois verbos relativos agrave visatildeo ὁράω e βλέπω indicando o fenocircmeno do olhar imediato Enfim equivalente aos nossos verbos olhar e ver Contudo com o aparecimento de θεωρέω temos o iniacutecio de um modo de visatildeo que ainda que dependa da visatildeo sensiacutevel atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza (φύσις) dos fenocircmenos Daiacute que originalmente a palavra θεωρῐᾱ significa uma πρᾶξις da visatildeo uma visatildeo analiacutetica do concreto aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor um modo distinto do olhar51 Eacute por isso que se torna precaacuteria ndash sob um ponto de vista tanto histoacuterico quanto filosoacutefico ndash qualquer suposiccedilatildeo hoje de uma teoria apartada do mundo real Ela natildeo seria nem certa nem errada Apenas natildeo faria sentido enquanto teoria Neste sentido tambeacutem a teoria de modo algum eacute oposta agrave praacutetica mas sim encontra-se em oposiccedilatildeo agrave abstraccedilatildeo Se eacute teoria natildeo pode ser jamais uma abstraccedilatildeo ex nihilo Abstraccedilatildeo eacute umatributo da ποίησις natildeo da θεωρῐᾱ E por θεωρῐᾱ em muacutesica tendo-se em vista as origens histoacuterico-filosoacuteficas do conceito podemos

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entender hoje a musicologia como um todo A pesquisa em muacutesica deve abranger necessariamente histoacuteria criacutetica esteacutetica e poeacutetica anaacutelise estrutural sistemas harmocircnicos teoria da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e ediccedilatildeo musical em suas evidentes relaccedilotildees com as demais questotildees internas e externas agrave muacutesica bem como com suas interfaces com outras aacutereas do conhecimento A musicologia trata tambeacutem dos universos musicais suas diferenccedilas e interfaces Neste amplo sentido a pesquisa musicoloacutegica eacute uma atividade de estudo essencialmente hermenecircutica contemplando toda possibilidade analiacutetica observacional especulativa e editorial em muacutesica O musicoacutelogo se encontra ainda em meio agraves contradiccedilotildees do conflito insoluacutevel entre cultura e arte52 analisando os processos de aculturaccedilatildeo ndash que jaacute no vocabulaacuterio de Pondeacute se torna uma incontornaacutevel promiscuidade cultural - bem como das manifestaccedilotildees musicais em meio agraves mais amplas perspectivas interdisciplinares

Fusatildeo de horizontes

Finalizadas as anaacutelises sobre as trecircs grandes aacutereas da muacutesica podemos concluir que se deve evitar a especializaccedilatildeo precoce por parte do estudante de muacutesica Deve-se estimular antes o constante exerciacutecio de cruzamento e fusatildeo de horizontes53 entre estas trecircs principais aacutereas da muacutesica Natildeo vivemos num horizonte fechado nem tampouco num uacutenico horizonte daiacute a necessidade de uma compreensatildeo transcendental quando procuramos compreender a perspectiva do outro Para ser mais claro o aluno de composiccedilatildeo deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretaccedilatildeoexecuccedilatildeo e da pesquisa em muacutesica O aluno das praacuteticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questotildees relativas agrave composiccedilatildeo e agrave musicologia E o futuro musicoacutelogo natildeo poderaacute jamais exercer seu ofiacutecio com a devida dignidade se natildeo conhecer em detalhes e intensamente

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tanto a atividade do muacutesico inteacuterprete-performaacutetico como aquela do compositor Antes destas etapas natildeo poderemos sequer falar sobre uma formaccedilatildeo especiacutefica de um professor de muacutesica E ainda mais importante as referecircncias externas agrave muacutesica natildeo podem ser ignoradas pois natildeo haacute artista eou pesquisador de fato que natildeo saiba pensar ou desprovido de um espiacuterito criacutetico

Agradeccedilo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista

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Notas

1 O Dasein (o serestar aiacute) diz respeito agrave verdade existencial revelada a pre-senccedila ou realidade humana o ser do homem no mundo Segundo Alexander Kojegraveve (1902-1968) ldquosem seres humanos o Ser seria mudo estaria aiacute mas natildeo seria o Verdadeirordquo (apud SAFRANSKI 2005 [1994])

2 De profundidade filosoacutefica satildeo as palavras de Jean-Luc Godard (1930) em seu viacutedeo-ensaio Je vous salue Sarajevo 1993 ldquoCultura eacute regra arte eacute exce-ccedilatildeo A regra quer a morte da exceccedilatildeordquo Faccedilamos aqui um pequeno estudo Propomos uma hipoacutetese de trabalho com duas acepccedilotildees para cultura A pri-meira agrave qual chamaremos de significado forte da cultura eacute menos utilizada Nesta acepccedilatildeo (sempre assumida neste ensaio) as dimensotildees da cultura se restringem agrave condiccedilatildeo mediana da existecircncia humana - daiacute tambeacutem o fecundo significado da expressatildeo induacutestria da cultura cunhada por Theodor W Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) Neste mesmo contexto Martin Heidegger (1889-1976) define o homem ndash enquanto homem mediano - que se submete agrave cultura na ldquoconvicccedilatildeo de que o normal eacute o essencial de que o me-diano e com isso universalmente vaacutelido eacute o verdadeiro (o eterno mediano) Este homem normal toma suas aprazibilidades como criteacuterio para o que deve viger como sendo a alegria seus pequeninos acessos de medo como criteacuterio para o que deve ser o pavor e a anguacutestia suas fartas comodidades como criteacuterio para o que pode viger como certeza ou incerteza () Com tais juiacutezes se pode promover um diaacutelogo maximamente derradeiro e extremo Quem nos garante que nesta auto-apreensatildeo de hoje em dia o homem mediano (normal) natildeo tenha elevado ao niacutevel de Deus sua proacutepria mediocridaderdquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p27) Nesta primeira acepccedilatildeo o conceito de cultura se restringe ao costume ao haacutebito ao cotidiano agrave norma agrave regra agrave repeticcedilatildeo natildeo criacutetica de padrotildees e a toda forma restante de comunicaccedilatildeo ou retoacuterica (tanto arbitraacuteria como manipulada) incluindo-se ainda a loacutegica de sistemas Nesta acepccedilatildeo a obra de arte (enquanto exceccedilatildeo e singularidade solitaacuteria) natildeo pertence agrave cultu-ra A arte eacute justamente uma condiccedilatildeo rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave cultura Portanto aqui excluiacutemos deli-beradamente a arte da cultura Segundo Joseacute Teixeira Coelho Netto ldquona arte tambeacutem haacute regras - mas a arte natildeo eacute a regra enquanto a cultura se natildeo for regra nada eacuterdquo (Teixeira Coelho p11) Neste primeiro significado forte natildeo se

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poderaacute afirmar que algueacutem seja ldquocultordquo ou ldquoincultordquo pois o homem ldquoincultordquo aquele ldquodesprovido de culturardquo ou mesmo ldquosem culturardquo eacute em si um paradoxo pois teriacuteamos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e conviacutevio humano Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos O ser humano aqui eacute domesticado na cultura Contudo a liberdade do Dasein humano se encontra aleacutem da norma cultural Para Heidegger a liberdade da cultura eacute uma liberdade cocircmoda mesmo preguiccedilosa Quando estancada num estado de cultura a liberdade jaacute se perdeu (ver SAFRANSKI 2005 [1994] p230) Jaacute na segunda acepccedilatildeo que chamaremos de significado fraco da cul-tura defendida pelos culturalistas justamente a mais corrente cultura se con-funde com escolaridade com os diferentes niacuteveis de erudiccedilatildeo ou instruccedilatildeo de um indiviacuteduo Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada agrave antiga tradiccedilatildeo da παιδεία Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945) ldquoa cultura eacute o transcender tornado forma que erige a ampla casa do ser humano mais faacutecil de destruir do que de preservar fraacutegil proteccedilatildeo contra a barbaacuterie que sempre ameaccedila o humano possiacutevelrdquo (apud SA-FRANSKI ibidem) Eacute neste significado fraco que ocorre a metafiacutesica de uma cultura humaniacutestica O indiviacuteduo culto seria aquele letrado altamente sensiacutevel ou com formaccedilatildeo erudita Alguns falam tambeacutem de uma diferenciada cultura cientiacutefica como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980) A primeira cultura seria a ldquocultura tradicionalrdquo os ldquonatildeo cientistasrdquo como os literatos Jaacute a segunda cultura seria a ldquocultura cientiacuteficardquo os ldquocientistas pu-rosrdquo como os fiacutesicos e ldquoaplicadosrdquo como os engenheiros (passim SNOW 1995) Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow ndash e natildeo importa se concordamos ou natildeo com suas teses - estatildeo inseridas em nosso significado fraco de cultura Nesta segunda acepccedilatildeo natildeo soacute existem indiviacuteduos cultos e incultos ignorantes e instruiacutedos como tambeacutem a arte estaacute inserida na cultura A arte aqui eacute uma mera manifestaccedilatildeo cultural pois tudo natildeo soacute se explica como tambeacutem se relativiza por intermeacutedio da cultura ndash posiccedilatildeo esta dos relativistas da cultura Por fim poderiacuteamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura por sua vez em seu significado forte (como em Heidegger) devemos antes transformar este chatildeo num abismo ldquoCassirer eacute a favor do trabalho de conferir significado pela cultura da obra que com sua necessidade interna e sua duraccedilatildeo triunfe sobre a contingecircncia e efemeridade da existecircncia humana Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pateacutetico O que permanece satildeo poucos momentos de grande intensidaderdquo (SAFRANSKI op cit p231) Ainda para Heidegger a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificacircncia ldquoa mais alta forma de existecircncia do Dasein soacute se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de duraccedilatildeo do Dasein entre a vida e a morte e o ser humano soacute

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em muitos poucos momentos existe no auge de suas proacuteprias possibilidadesrdquo (apud SAFRANSKI ibidem) - e estas satildeo exigecircncias natildeo soacute da filosofia como tambeacutem da arte Heidegger pergunta e ele mesmo responde ldquoA filosofia [assim como a arte] natildeo teraacute exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente agrave anguacutestia A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e forccedilaacute-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a culturardquo (ibidem) Apesar da criacutetica de Heidegger e de sua distinccedilatildeo fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte quando separamos arte da cultura) natildeo podemos subestimar a importacircncia de instituiccedilotildees culturais (as universidades as fundaccedilotildees os teatros puacuteblicos as leis de incentivo quando bem empregadas etc) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista Neste uacuteltimo aspecto a arte depende de alguns poucos mas essenciais procedimentos culturais Mas que fique claro natildeo no processo inventivo da arte mas sim meramente para a viabilidade de sua performance pois jamais devemos esquecer que por princiacutepio a cultura quer sempre a morte da arte

3Na traduccedilatildeo de ποίησις enquanto fenocircmeno artiacutestico noacutes excluiacutemos natildeo soacute o verbo criar como tambeacutem o substantivo criaccedilatildeo e ainda o adjetivo criativo Natildeo apenas ldquopara Tomaacutes de Aquino [1225-1274] o conceito de criaccedilatildeo apli-cado a obras humanas pareceria blasfecircmiardquo (DAHLHAUS 1967 p9) ndash e por certo aquele santo medieval estudioso de Aristoacuteteles (384-322 aC) teria laacute suas razotildees para tal consideraccedilatildeo - mas tambeacutem porque os publicitaacuterios e os profissionais da tecnologia geneacutetica vecircm conferindo acepccedilotildees no miacutenimo dis-cutiacuteveis ao conceito O que haacute de artiacutestico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing E seraacute que Deus concedeu o dom aos tecnoacutelogos da geneacutetica para que prossigam um pouco com a criaccedilatildeo quando criam por exemplo nossos replicantes

4 Λόγος eacute um conceito central em Heraacuteclito de Eacutefeso (c544-474 aC) Ou mesmo ldquoa palavra das palavras em Heraacuteclitordquo (COSTA 2002 p223) O con-ceito de λόγος pertence ao vocabulaacuterio dos mais diversos idiomas jaacute que as traduccedilotildees possiacuteveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado restringindo-se assim suas dimensotildees originais Podemos traduzir λόγος num primeiro sentido maior relacionado agraves questotildees da linguagem hu-mana (linguagem enunciado expressatildeo discurso narraccedilatildeo ditado proposi-ccedilatildeo oraccedilatildeo sermatildeo palavra verbo) Natildeo eacute por menos λόγος tem a ver com λέγω (colecionar recolher enumerar bem como contar dizer falar conversar proferir um discurso ou conferecircncia ler em voz alta explicar relatar nomear chamar ordenar declarar avisar) e em especial com λέγειν τι (dizer algo

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significativo enunciar) Tambeacutem o λόγος indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento tratado tema consideraccedilatildeo modo sentido defi-niccedilatildeo conceito termo) e as dimensotildees do proacuteprio pensamento Neste segundo sentido maior e natildeo menos importante traduz-se o λόγος pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligecircncia raciociacutenio razatildeo) en-tendido sempre jaacute enquanto grande pensamento para aleacutem de qualquer razatildeo particular No λόγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-όγος de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Heraacuteclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-laccedilatildeo e pensamento No entanto Heidegger que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial restringe sua anaacutelise ao primeiro sentido acima citado jaacute que ldquose fala de uma loacutegica arcaica e natildeo se pensa que soacute possa haver loacutegica no quadro da atividade escolar platocircnica e aristoteacutelicardquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p373) Analisemos agora algumas das conclusotildees de Heideg-ger em especial para desatrelar λόγος tanto da loacutegica como da racionalidade ldquodesde a Antiguidade interpretou-se o λόγος de Heraacuteclito das maneiras mais diversas ora como ratio ora como verbum ora como lei do mundo ora como o que eacute loacutegico e a necessidade de pensamento ora como sentido ora como razatildeo Sempre de novo um convite agrave razatildeo insiste como o paracircmetro de todo fazer e deixar fazer Mas o que poderaacute a razatildeo se junto com a des-razatildeo e a anti-razatildeo ela se manteacutem no patamar de uma mesma negligecircncia Ou seja da negligecircncia que se esquece de pensar de onde proveacutem a essecircncia da razatildeo e de se empenhar por seu advento O que poderaacute fazer a loacutegica λογική (ἐπιστήμη) de qualquer espeacutecie que seja se nunca comeccedilamos a prestar a atenccedilatildeo ao λόγος e em seguir sua essecircncia originaacuteria Eacute do λέγειν que depreendemos o que eacute o λόγος O que significa λέγειν Todo mundo que conhece a liacutengua grega sabe a resposta λέγειν significa dizer e falar λόγος significa λέγειν como aussa-gen ndash enunciar e λεγόμενον como o enunciado ausgesagtenrdquo (HEIDEGGER 2001b [1951] p184)

5 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Jaacute as traduccedilotildees das fontes primaacuterias de Heraacuteclito diretamente para o portuguecircs seratildeo sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Heraacuteclito ndash Fragmentos con-textualizados 2002) Por sorte noacutes lusoacutefonos dispomos em vernaacuteculo natildeo soacute destas extraordinaacuterias traduccedilotildees como tambeacutem deste que eacute o mais importante e abrangente estudo criacutetico realizado ateacute hoje sobre a integral dos fragmentos de Heraacuteclito em qualquer idioma

6 A ldquoparterdquo eacute na muacutesica a execuccedilatildeo individual de um instrumento ou voz Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meloacutedicas de suas invenccedilotildees

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a duas ou trecircs vozes executadas sempre por um uacutenico tecladista Na muacutesica de cacircmara ou sinfocircnica cada muacutesico lecirc em separado sua parte Jaacute a solfa (antiga denominaccedilatildeo em portuguecircs para notaccedilatildeo musical ou papeacuteis de muacutesica) que reuacutene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade Geralmente os muacutesicos trabalham com partes cavadas Jaacute o compositor e depois tambeacutem o regente com a partitura

7 O conceito de performance eacute utilizado em liacutengua portuguesa nas mais diver-sas aacutereas do conhecimento humano Na muacutesica equivale agraves praacuteticas interpre-tativas Em 2012 fomos contemplados pela Proacute-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) o que evidencia a importacircncia desta atividade em nosso Departamento de Muacute-sica da USP no Campus de Ribeiratildeo Preto Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada agrave composiccedilatildeo bem como a toda possibilidade de pesquisa musicoloacutegica quer seja histoacuterica filosoacutefica teoacuterica ou editorial

8 O conceito de πόλεμος eacute dos mais importantes em Heraacuteclito ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo (Fragmento 80) ou ainda ldquode todos a guerra eacute pai de todos eacute rei uns indica deuses outros homens de uns faz escravos de outros livresrdquo (Fragmento 53) Alexandre Costa justifica sua tra-duccedilatildeo de πόλεμος por guerra ldquoEacute preciso salientar que o sentido predominante do termo eacute aqui o figurado A guerra eacute portanto menos o acontecimento concreto e hopliacutetico do que o combate a luta intriacutenseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposiccedilotildees e anteposiccedilotildees ndash a tensatildeo que une e distinguerdquo (COSTA 2002 p111) Por isso utilizamos em nossa definiccedilatildeo de arte o sen-tido do confronto tambeacutem como polecircmica de ideias pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla Temos em vista em especial o conflito ideoloacutegico quando se reconhece as ilusotildees no conhecimento humano e as distorccedilotildees na poliacutetica Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W Friedrich Hegel (1770-1831) A influecircncia de Hegel foi decisiva para a elabo-raccedilatildeo das anaacutelises criacuteticas de Marx (natildeo obstante a inexistecircncia do conceito de ideologia em Hegel) E o conceito de πόλεμος e todos demais contidos nos fragmentos de Heraacuteclito foram referecircncias fundamentais para que o proacuteprio Hegel elaborasse suas teses dialeacuteticas (natildeo obstante a inexistecircncia de siacutentese em Heraacuteclito)9 O conceito de φύσις eacute habitualmente traduzido por natureza ndash que vem do latim natura nasci nascer surgir crescer ser criado Podemos tambeacutem falar de uma poeacutetica da natureza pois ldquotambeacutem a φύσις o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma produccedilatildeo eacute ποίησις A φύσις eacute ateacute a maacutexima ποίησιςrdquo

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(HEIDEGGER 2001a [1954] p16) Aristoacuteteles no princiacutepio das consideraccedilotildees temaacuteticas da Fiacutesica delimita ldquoa ontologia dos φύσει ὄντα [entes que existem por natureza] em contraposiccedilatildeo com os τέχνῃ ὄντα [entes produzidos pelo homem] Os φύσει ὄντα satildeo aquilo que ao brotar vecircm a ser a partir de si proacuteprios os τέχνῃ ὄντα vecircm a ser atraveacutes do representar e produzir humanosrdquo (HEIDEGGER 2012 [1946] p375) Por fim o conceito de φύσις como por exemplo em Heraacuteclito ldquoa natureza ama ocultar-serdquo (Fragmento 123) eacute de fato ainda mais amplo do que hoje poderiacuteamos entender como objeto das ciecircncias naturais (fiacutesica quiacutemica biologia etc) Heidegger a define como ldquoa vigecircncia autoinstauradora do ente na totalidaderdquo Ou seja ldquoa φύσις enquanto este ente na totalidade natildeo eacute pensada no sentido moderno e tardio da natureza mais ou menos como o conceito contraacuterio ao conceito de histoacuteria Ao inveacutes disso ela eacute vista como mais originaacuteria do que estes dois conceitos ela eacute vista em uma significaccedilatildeo originaacuteria que diante da natureza e da histoacuteria encerra a ambos e que tambeacutem conteacutem em si de certa maneira o ente divinordquo (HEIDEGGER 2006 [19291930] p32-33)

10 ldquoΤεχνικόν diz o que pertence agrave τέχνη Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer na grande arte e das belas-artes A τέχνη pertence agrave produccedilatildeo agrave ποίησις eacute portanto algo poeacutetico De outro lado o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη eacute de maior peso Τέχνη ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo [ca427-ca347 aC] justamente com a palavra ἐπιστήμη Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto O conhecimento provoca abertura Abrindo o conhecimento eacute um desencobrimento Numa meditaccedilatildeo especial Aristoacutetoles (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulos III e IV) distingue ἐπιστήμη [ciecircncia] de τέχνη [arte] e justamente no tocante agravequilo que e ao modo em que ambas desencobrem A τέχνη eacute uma forma de ἀληθεύειν - ela desencobre o que natildeo se produz a si mesmo e ainda natildeo se daacute e propotildee podendo assim apresentar-se e sair ora num ora em outro perfil Teacutecnica eacute uma forma de desencobrimento vige e vigora no acircmbito em que se daacute descobrimento e desencobrimento em que acontece ἀλήθεια verdaderdquo (HEIDEGGER 2001a [1954] p17-18) Nas palavras do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoa arte eacute uma disposiccedilatildeo produtora configurada por um princiacutepio de verdaderdquo (Eacutetica a Nicocircmaco livro VI capiacutetulo IV 1140a20) Hegel reitera que ldquona arte natildeo lidamos apenas com o meramente agradaacutevel ou com o entretenimento uacutetil mas sim com o desdobramento da verdaderdquo (apud ADORNO 1975 [1949] p13)

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11 Este conceito eacute definido comumente por teoria do conhecimento cujas raiacutezes remontam agrave ἐπιστήμη (ciecircncia conhecimento) e ao λόγος (discurso)

12 ldquoEacute comum empregarmos o adjetivo romacircntico para falar da ingecircnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperanccedila do futurordquo (DUARTE 2011 p11) Torna-se uma mecacircnica facilitadora evitar as discussotildees de fato filosoacuteficas quando simplesmente se confere um ideal romacircntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte Mas se assim o fosse Heraacuteclito jaacute teria sido romacircntico bem antes do inventor do romantismo que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) Mesmo a essecircncia da paixatildeo romacircntica natildeo eacute privi-leacutegio do periacuteodo romacircntico Leia-se por exemplo esta frase extraiacuteda de uma melodia cantada ldquovocecirc estaacute comigo morrerei feliz ah como seria prazeroso se assim fosse meu fim se as tuas belas matildeos fechassem meus olhos fieacuteisrdquo Natildeo se trata aqui de um compositor romacircntico do seacuteculo XIX mas sim de Bist du bei mir (Vocecirc estaacute comigo) aacuteria de Gottfried Heinrich Stoumllzel (1690-1749) arranjada por Bach por volta de 1725 logo apoacutes seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena Bach teria sido romacircntico13 Hilton Japiassu (1934) nos ensina que ldquocontrariamente ao que se costu-ma dizer o relativismo eacute uma teoria intoleranterdquo (JAPIASSU 2001 p93) ldquoOs relativistas contemporacircneos praticamente identificados com os chama-dos pensadores poacutes-modernos partem do pressuposto epistemoloacutegico de que nosso conhecimento eacute limitado pelas liacutenguas culturas e interesses particula-res E que a ciecircncia natildeo tem condiccedilotildees de apreender alguma realidade externa comum O padratildeo de verdade cientiacutefica reside natildeo no mundo natural em si mas nas normas particulares de comunidades especiacuteficas As leis cientiacuteficas seriam o que determinada comunidade diz que satildeo em determinado momento Ademais rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistasrdquo (ibidem p232) Japiassu elucida equiacutevocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007) ldquoobservemos que este pragmatismo relativista ao pregar uma eacutetica sem obrigaccedilotildees universais parece desconhecer a natureza mesma do universal Confunde a referecircncia ao univer-sal com uma aceitaccedilatildeo ingecircnua de uma natureza humana idecircntica a si mesma atraveacutes das eacutepocas de uma essecircncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificaacutevel Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filoacutesofos do passado Rorty natildeo se daacute conta de que pelo menos depois de Kant natildeo podemos mais confundir conceito de universal com a deduccedilatildeo de uma teoria completa do homem nem com a consequecircncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essecircncia humana Porque o universal se afirma antes de tudo como um movimento com um dinamismo como uma universalizaccedilatildeo do que cada um eacute e como a abertura para o outrordquo (ibidem p117) Tambeacutem natildeo concorda-mos com os relativistas porque satildeo incapazes de compreender a arte fora da

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cultura A grande arte tem sim vocaccedilatildeo universal justamente porque sempre jaacute transcende a cultura A verdadeira filosofia a grande arte e tambeacutem as raras ciecircncias que contemplam fundamentos filosoacuteficos por terem um domiacutenio proacute-prio natildeo podem ser subjugadas agrave cultura nem compreendidas por paracircmetros redutivos da antropologia e da sociologia

14 Os Cursos de Feacuterias de Muacutesica Nova (Internationale Ferienkurse fuumlr Neue Musik) sediados na cidade alematilde de Darmstadt foram fundados em 1946 As diretrizes poeacutetico-estiliacutesticas foram determinadas pelos principais compo-sitores tais como Luigi Nono (1924-1990) Pierre Boulez (1925) Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e posteriormente Helmut Lachenmann (1935) e Brian Ferneybough (1943)

15 Epiacutegono vem de ἐπίγονος (descendecircncia) nascido depois Na arte satildeo aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poeacuteticos das geraccedilotildees ante-riores Por exemplo um epiacutegono em muacutesica hoje eacute aquele que ainda compotildee nas linhas da neue Musik de Darmstadt que na verdade remontam agrave deacutecada de 1950 Acham que escrevem muacutesica nova ou ainda pior de vanguarda mas suas poeacuteticas satildeo mais que sexagenaacuterias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros roacutetulos mais recentes como muacutesica espectral ou nova comple-xidade) No entanto haacute ainda aqueles compositores retroacutegrados e convencio-nais cuja uacutenica habilidade eacute a reproduccedilatildeo de clichecircs de tradiccedilotildees ainda mais remotas e para os quais o seacuteculo XX sequer existiu Estes satildeo casos ainda mais vergonhosos de epiacutegonos Aliaacutes sequer satildeo epiacutegonos ndash melhor natildeo arriscar qualquer definiccedilatildeo

16 Vanguarda (guarda avanccedilada) eacute um conceito oriundo do vocabulaacuterio militar cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do seacuteculo XVIII Trata-se de um pequeno grupo militar mais agrave frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria) Satildeo os primeiros a travar contato com o inimigo configurando-se como tropa de elite que tem funccedilatildeo especial de inteligecircncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira eacute diferenciada Nos tempos da Revoluccedilatildeo Francesa adquiriu nova acepccedilatildeo na poliacutetica O conceito de vanguarda nas artes por sua vez remonta a certo literato francecircs hoje esquecido Em sua publicaccedilatildeo De la mission de lrsquoart e du rocircle des artistes (1845) Gabriel Deacutesireacute Laverdant (1802-1884) propocircs pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura ldquoa arte expressatildeo da sociedade manifesta em seu iacutempeto mais alto as tendecircncias sociais mais avanccediladas ela eacute precursora e reveladora Ora por saber se a arte cumpre dignamente a proacutepria missatildeo de iniciadora se o artista se encontra verdadeiramente agrave vanguarda eacute necessaacuterio saber para onde caminha a humanidade qual eacute o destino da espeacutecierdquo Talvez pudeacutessemos ateacute nos lembrar

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de poetas daqueles tempos num contexto proacuteximo como um Heinrich Heine (1797-1856) na Alemanha ou um Castro Alves (1847-1881) no Brasil Alguns anos mais tarde Charles Baudelaire (1821-1867) em seus escritos Mon Coeur mis agrave nu (ca1860) percebeu contudo uma suposta armadilha que encerra as metaacuteforas militares em seu paiacutes ainda mais no acircmbito artiacutestico ldquoOs poetas de combate Os literatos de vanguarda Esses haacutebitos de metaacuteforas militares denotam espiacuteritos natildeo militantes mas feitos para a disciplina isto eacute para o conformismo espiacuteritos nascidos domeacutesticosrdquo (traduccedilatildeo de Marcos Cacircmara de Castro) Seria uma visatildeo profeacutetica de Baudelaire O que antes se pensava como inovaccedilatildeo e desprendimento natildeo se transforma agora numa doutrina de corporaccedilatildeo cuja assimilaccedilatildeo obediecircncia e fidelidade diante da patrulha ideoloacutegica adquirem mesmo os rigores de uma hierarquia militar Eacute o caraacuteter evidente de exclusatildeo em nome da uniformidade Mas voltando agrave sua trajetoacuteria histoacuterica o conceito de vanguarda se reforccedila na poliacutetica com Vladmir Ilitch Ulianov (1870-1924) mais conhecido por Lenin em sua obra Que fazer (1902) na qual os comunistas satildeo citados enquanto elite do movimento dos trabalhadores - daiacute a expressatildeo vanguarda do proletariado Contudo muitos artistas do seacuteculo XX natildeo se importaram com esta dimensatildeo de esquerda da vanguarda concentrando-se exclusivamente nas referecircncias internas do tratamento dos materiais da arte e se afastando das criacuteticas poliacutetico-ideoloacutegicas Outros como alguns futuristas italianos guinaram mesmo agrave direita e se declararam ateacute belicistas ignorando as preocupaccedilotildees poliacutetico-sociais de um Laverdant e regredindo ao contexto militar original Ao longo do seacuteculo XX vanguarda passou a ser a doutrina obsessiva pelo novo quer seja esta obsessatildeo irreverente (como em boa parte da arte conceitual) ou sistemaacutetica (como nos experimentos concretos e eletroacuacutesticos na muacutesica os quais passados mais de 60 anos apesar da evoluccedilatildeo dos sistemas tecnoloacutegicos natildeo se superaram enquanto fenocircmeno de linguagem) Na muacutesica a vanguarda autoproclamada de Darmstadt se esqueceu das origens poliacuteticas do conceito mantendo apenas o espiacuterito de disciplina e uniformidade como previu Baudelaire Mesmo uma obra de Luigi Nono ndash um autoproclamado vanguardista atrelado ao Partido Comunista Italiano - como La fabbrica illuminata (1964) entre outros experimentalismos natildeo convence em relaccedilatildeo ao seu engajamento poliacutetico Com isso queremos afirmar que a arte politicamente engajada soacute se torna possiacutevel se restrita a determinados padrotildees poeacuteticos De modo algum Apenas estamos afirmando que Darmstadt se por um lado distorceu o conceito de vanguarda em relaccedilatildeo ao seu contexto histoacuterico de esquerda ndash restringindo-se agrave concepccedilatildeo lrsquoart pour lrsquoart ou seja a arte que se justifica por si mesma - por outro lado apegou-se com disciplina xiita agrave moral de regimento Hanns Eisler (1898-1962) em 1937 em seu ensaio Avantgarde-Kunst und Volksfront

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(Arte de vanguarda e frente popular) jaacute chamava a atenccedilatildeo para a primeira deficiecircncia citada da vanguarda E Eisler foi desprezado pela geraccedilatildeo Darmstadt Hoje contudo suas advertecircncias satildeo importantes para a compreensatildeo do contexto histoacuterico ldquoO novo material precisa se afirmar hoje junto aos novos conteuacutedos em meio agraves tarefas sociais () O artista soacute seraacute um vanguardista de fato quando conseguir unir as duas vanguardas [numa criacutetica tanto esteacutetica quanto ideoloacutegica] defendendo e incentivando os interesses das massas por intermeacutedio dos meios artiacutesticos mais novos e ousados () A vanguarda natildeo poderaacute ser mais conduzida como se ela fosse uma ilha isolada dos movimentos sociaisrdquo (EISLER 1985 [1937] p402-403) Com o fim do socialismo natildeo faz mais sentido ldquodefender os interesses das massasrdquo bem como neste princiacutepio do seacuteculo XXI tambeacutem jaacute natildeo haacute mais sentido em se falar de vanguarda em qualquer aacuterea do conhecimento humano A vanguarda autoproclamada na muacutesica se tornou ela mesma obsoleta (como se diz popularmente ldquodeacutemodeacuterdquo) E junto com o conceito tambeacutem as poeacuteticas musicais de Darmstadt Afinal espera-se numa sala de concertos algo aleacutem da repeticcedilatildeo de happenings dos anos de 195060 nos caminhos da arte conceitual ndash velhas piadas que jaacute perderam a graccedila e a uacutenica exceccedilatildeo eacute Gilberto Mendes (1922) o maior compositor de muacutesica conceitual do seacuteculo XX Ou ainda velhas trilhas para filme de terror que sequer mais assustam hoje em dia Mas com isso queremos concluir que John Cage (1912-1992) Boulez e Stockhausen entre outros satildeo nomes de menor importacircncia na muacutesica do seacuteculo XX Em hipoacutetese alguma Satildeo compositores influentes Apenas que o tempo deles jaacute passou E reiterar suas poeacuteticas composicionais sem ingredientes diferenciados ainda hoje equivale numa expressatildeo conhecida de Fredric Jameson (1934) a se embalar nas rasas ldquomelancolias estagnantes dos epiacutegonosrdquo (2005 [2002] p37) Completando se a onda da vanguarda autoproclamada jaacute passou proclama-se no lugar dela a poacutes-modernidade De modo algum A modernidade eacute sempre ainda um projeto inacabado Mais adequado que poacutes-modernidade talvez seja pensarmos em sub-modernidades - conceito este que remonta a Heribert Boeder (1928) Ou como jaacute afirmamos em outras publicaccedilotildees (2008 e 2011) natildeo se pode ignorar os paradoxos modernistas (conceito nosso) ocorridos na muacutesica bem antes da onda poacutes-moderna na filosofia e nas outras artes como por exemplo o neo-folclorismo e o neoclassicismo

17 Heraacuteclito jaacute havia previsto que ldquouma soacute coisa contra todas as outras esco-lhem os melhores a gloacuteria eterna dos mortais a massa poreacutem estaacute empanzi-nada como gadordquo (Fragmento 29)

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18 Os gecircneros musicais medianos ou produzidos pela induacutestria da cultura satildeo por exemplo rock funk pop techno hip-hop rap disco rave world music (no Brasil em especiacutefico axeacute pagode sertanejo universitaacuterio padres cantores cantores gospel apresentadoras cantoras de programas televisivos infantis) etc Jaacute o conceito de induacutestria da cultura central em toda a Esco-la de Frankfurt remonta ao livro Dialeacutetica do Iluminismo (Dialektik der Au-fklaumlrung) de Adorno amp Horkheimer Seu capiacutetulo mais famoso eacute justamente Induacutestria da cultura ndash Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947] Kulturindustrie ndash Aufklaumlrung als Mas-senbetrug p128-176) Entende-se ldquologrordquo aqui tal como no Aureacutelio ldquoengano propositado contra algueacutem artifiacutecio ou manobra ardilosa para iludirrdquo (FER-REIRA 1986 p1045) Maacuterio de Andrade (1893-1945) agravequela altura tambeacutem se preocupava aqui no Brasil com a mesma questatildeo ldquoEacute preciso lembrar que as massas dominadas entre noacutes satildeo dominadas O que quer dizer que elas natildeo tecircm suficiente consciecircncia de si mesmas nem forccedilas de reaccedilatildeo para cons-cientizarem o seu gosto esteacutetico e as suas preferecircncias artiacutesticasrdquo (ANDRADE 1945 p12) Embora Maacuterio de Andrade jaacute tivesse levantado o problema foram Adorno amp Horkheimer que cunharam a expressatildeo inspirados num influente mestre de Adorno em seus tempos de juventude Siegfried Kracauer (1889-1966) reconhecendo que as massas satildeo enganadas e iludidas pela induacutestria da cultura As teses principais deste citado capiacutetulo satildeo ldquoToda cultura de massa sob monopoacutelio eacute idecircntica Os interessados explicam a induacutestria da cultura de bom grado por meio do caraacuteter tecnoloacutegico Racionalidade teacutecnica eacute hoje a proacutepria racionalidade da dominaccedilatildeo Por hora a teacutecnica da induacutestria da cul-tura soacute chegou agrave estandardizaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo em seacuterie sacrificando aquilo pelo qual a loacutegica da obra se distinguia da loacutegica do sistema social A com-pleta semelhanccedila eacute a diferenccedila absoluta Salienta-se na ideologia plano ou acaso teacutecnica ou vida civilizaccedilatildeo ou natureza de acordo com cada caso em qual aspecto se encontra justamente sob medida O bonito eacute aquilo que a cacirc-mera sempre reproduz A liquidaccedilatildeo do caraacuteter traacutegico confirma a extinccedilatildeo do indiviacuteduo O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propagan-da da beleza utilitaacuteria Assim ao final realizou-se ironicamente a concepccedilatildeo socraacutetica ldquoo belo eacute o uacutetilrdquo [Desde Goebbels] teacutecnica e economicamente a propaganda se confunde com a induacutestria da cultura assim Auschwitz = Hollywoodrdquo (passim ADORNO amp HORKHEIMER 1969 [19441947]) Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a induacutestria da cultura se tornou o maior problema ideoloacutegico de nossos tempos Obser-vemos aqui as anaacutelises de Leandro Konder (1936) sobre a questatildeo ldquoAdorno e Horkheimer se dispotildeem a aproveitar todos os sinais de contradiccedilotildees que es-tejam sendo camufladas sonegadas pela ilusatildeo de harmonia que caracteriza

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a forma dominante da ideologia na vida cultural contemporacircnea lsquoOs que su-cumbem agrave ideologia satildeo exatamente os que ocultam a contradiccedilatildeorsquo A ideia de maior impacto veiculada pela Dialeacutetica do Iluminismo eacute a de que na nossa eacutepoca no seacuteculo XX a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir agraves pessoas uma ilusatildeo de harmonia adquiriram um poder muito superior agravequele que Marx poderia ter imaginado no seacuteculo XIX graccedilas agrave induacutestria da cultura Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunica-ccedilatildeo de massa e a induacutestria de entretenimento como um sistema que natildeo soacute assegurou a sobrevivecircncia do capitalismo como continua exercendo funccedilatildeo essencial em sua preservaccedilatildeo reproduccedilatildeo e renovaccedilatildeo A produccedilatildeo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos Para viabilizar-se contudo ela precisava de certa padronizaccedilatildeo de certa limitaccedilatildeo imposta agrave diversificaccedilatildeo das expressotildees culturais por isso investiu tambeacutem na formaccedilatildeo de um vasto puacuteblico consumidor de comporta-mento passivo e tanto quanto possiacutevel desprovido de espiacuterito criacuteticordquo (KON-DER 2002 p74-87) Vamos dar um exemplo A ingenuidade de alguns pode levar agrave conclusatildeo de que uma cantora de microfone como Madonna (1958) seria ldquopoliticamente incorretardquo na ldquotransgressatildeo de valoresrdquo ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo Nada disso Adorno amp Horkheimer jaacute haviam previsto esta loacutegica de sistema na qual uma pop-star como ela estaacute imprete-rivelmente inserida pois se as ldquoobras de arte satildeo asceacuteticas e desprovidas de vergonha jaacute a induacutestria da cultura eacute pornograacutefica e pudicardquo (ADORNO amp HORKHEIMER 1969 p148) Os autores analisam criticamente a suposta li-berdade conferida agrave induacutestria da cultura e suas muacuteltiplas alternativas (diriacuteamos hoje uma liberdade de essecircncia neoliberal) concluindo que ldquotodos satildeo livres para danccedilar e se divertir como desde a neutralizaccedilatildeo histoacuterica da religiatildeo satildeo livres para ingressar em uma das inumeraacuteveis seitas A liberdade na esco-lha das ideologias contudo que sempre reflete a pressatildeo econocircmica revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igualrdquo (ibidem p176) Ainda sobre as distorccedilotildees em torno da ideia de liberdade Adorno e Horkmei-mer citam as dimensotildees profeacuteticas do livro De la deacutemocratie en Amerique (183540) de Alexis de Tocqueville (1805-1859) confirmando sua atualidade passado mais de um seacuteculo pois sob cultura de monopoacutelio privado de fato ldquoa tirania deixa o corpo livre e vai direto acometer a alma O dominador ali natildeo diz mais vocecirc deve pensar como eu ou morrer Ele diz vocecirc eacute livre para natildeo pensar como eu e sua vida seus bens tudo permanece seu soacute que a partir deste dia vocecirc se torna um estranho entre noacutesrdquo (ibidem p141) Jaacute hoje neste prin-ciacutepio do seacuteculo XXI ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precaacuterio entre uma vida supostamente eficiente (a exigecircncia social inexoraacutevel de alto desempenho tendo-se em vista o espiacuterito de competiccedilatildeo capitalista ou

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produtivismo acadecircmico) e todo tipo de curticcedilatildeo natildeo criacutetica em que cada vez mais se pratica um lazer tanto alienado quanto conformado O mundo se tor-nou um grande parque kitsch de diversotildees ndash a condiccedilatildeo kitsch eacute um dos proble-mas centrais de nossos tempos denominada por Luiz Felipe Pondeacute (1959) em suas publicaccedilotildees e palestras como ldquochurrasco na lajerdquo ou ldquoo futuro do mundo eacute ser bregardquo Ou seja de um lado a pressatildeo por uma existecircncia eficaz seja laacute o que isso for De outro a necessidade do prazer banalizado e sempre imedia-to Natildeo eacute por menos em relaccedilatildeo a esta uacuteltima questatildeo Adorno e Horkheimer jaacute advertiam que ldquoquem se diverte estaacute de acordordquo (ibidem p153) Passa-dos mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer alguns dizem que o assunto estaacute ultrapassado Mas natildeo estaacute Como toda boa filosofia a criacutetica contraacuteria agrave induacutestria da cultura se confirma cada vez mais profeacutetica Outros afirmam que tudo se tornou induacutestria da cultura ateacute mesmo Bach Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) Ludwig van Beethoven (1770-1827) Fryderyk Chopin (1810-1849) Stravinsky ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959) gravados e difundidos pelos grandes selos fonograacuteficos Aqui cabe uma ressalva Natildeo estamos de acordo que todo produto comercializado no mercado fonograacutefico seja logo induacutestria da cultura porque este conceito natildeo deve ser definido pela venda ou difusatildeo (afinal de algum modo toda obra de arte tem que ser paga e difundida) mas sim pelo processo inventivo O que diferencia a produccedilatildeo de uma obra de arte eacute a sua ποίησις A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado singularidade e exposiccedilatildeo de mundo Jaacute a induacutestria da cultura eacute uma linha de montagem de produtos padronizados em seacuterie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing determinando o que como e para quem se deve produzir19 Segundo o Dicionaacuterio Online de Portuguecircs esnobismo eacute a ldquoadmiraccedilatildeo inau-tecircntica por tudo aquilo que estaacute em voga nos ambientes que passam por refi-nadosrdquo (diciocombr) Por isso se diz por aiacute que ldquomuacutesica eruditardquo eacute ldquoelitistardquo Natildeo obstante uma frequente maacute compreensatildeo dos fundamentos da muacutesica que envolve este tipo de comentaacuterio por certo se haacute alguma verdade nestes roacutetulos depreciativos ocorre justamente em virtude do esnobismo Eacute como um viacuterus que deixa a muacutesica doente pois o esnobismo prejudica sua recepccedilatildeo desenco-rajando os verdadeiros apreciadores a frequentarem a sala de concerto Assim ao lado dos padrotildees redutivos da induacutestria da cultura o esnobismo talvez seja o elemento mais prejudicial agrave sobrevivecircncia da muacutesica enquanto arte pois aniquila a intimidade essencial entre novos compositores e novos ouvintes O esnobismo reduz a arte da muacutesica a um evento social ldquochiquerdquo (os alematildees diriam ateacute mesmo Schickimicki) e conservador (com a programaccedilatildeo quase que exclusiva do jaacute consagrado repertoacuterio claacutessico-romacircntico) E como soacute rara-mente se apresenta obras contemporacircneas (mesmo do jaacute passado seacuteculo XX)

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diz-se ainda que a sala de concerto ldquoeacute velhariardquo ldquocoisa de museurdquo Portanto o esnobismo eacute natildeo soacute socialmente excludente como ainda estanca qualquer di-namismo fecundo na produccedilatildeo musical No Brasil temos criacutetica ao esnobismo de longa data Francisco Braga (1868-1945) por ocasiatildeo da inauguraccedilatildeo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro jaacute diferenciava esnobismo da verdadeira arte ldquofoi uma festa fria convencional estuacutepida Continuamos indifferentes agraves cousas artiacutesticas muito snobismo e nada maisrdquo (numa carta endereccedilada agrave sua amiga ldquoMimicardquo ndash Rio de Janeiro 24 de julho de 1909 - Coleccedilatildeo de cartas e cartotildees postais de Francisco Braga agrave famiacutelia de Francisco e Victoacuteria Busch-mann - Divisatildeo de Manuscritos da Biblioteca Nacional nordm 5038)20 Este fundamento contudo foi ignorado pela arte conceitual do seacuteculo XX Algo diverso daquilo que Pareyson como tambeacutem os gregos entendiam por arte a assim chamada arte conceitual eacute aquela em que o suposto artista dis-pensa o trabalho com recursos artesanais Trata-se paradoxalmente de uma arte sem artesanato ndash ressaltando-se contudo que uma concepccedilatildeo conceitual eacute sempre jaacute imprescindiacutevel em toda arte ou seja nas artes natildeo conceituais tambeacutem se trabalha com inuacutemeros conceitos apenas que na arte conceitual o conceito eacute tudo Acontece que A fonte (1917) do grande Marcel Durchamp (1882-1968) em breve jaacute completaraacute 100 anos ldquoAinda hoje soacute alguns poucos artistas visuais efetuam sua imitaccedilatildeo ad nauseamrdquo como afirmou recentemen-te Ferreira Gullar (1930) numa palestra no Theatro Pedro II de Ribeiratildeo Preto a 30 de maio de 2012

21 No Houaiss temos uma definiccedilatildeo de textura enquanto metaacutefora do tecido ldquoato ou efeito de tecerrdquo ldquotecido tramardquo ldquouniatildeo iacutentima das partes de um corpo contextura (textura da pele)rdquo ldquoligaccedilatildeo ou arranjo das partes de uma obrardquo ou ainda a textura musical propriamente dita a ldquoquantidade e qualidade das ocorrecircncias sonoras num mesmo trecho musicalrdquo (HOUAISS 2001 2713) Do mesmo modo que dizemos do tecido de uma roupa - se eacute mais ou menos transparente leve (como nas roupas de veratildeo) ou espesso (no caso do inver-no) - a muacutesica tambeacutem dispotildee de uma textura uma roupagem a densidade de sua estrutura Trata-se da combinaccedilatildeo dos materiais musicais (meloacutedicos harmocircnicos riacutetmicos timbriacutesticos etc) As diversas possibilidades de textura musical recebem nomes como monofonia (uma uacutenica melodia a uma voz sem acompanhamento nem contraponto como no caso do cantochatildeo ou quando ocorre uniacutessono) polifonia (duas ou mais vozes independentes que se articu-lam com figuras de tempos diversas enquanto essecircncia do contraponto) ho-mofonia (duas ou mais vozes que se movem conjuntamente com as mesmas figuras de tempo) melodia(s) acompanhada(s) (uma ou mais vozes ou instru-mentos principais com acompanhamento) etc No seacuteculo XX Gyoumlrgy Ligeti

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(1923-2006) em suas composiccedilotildees essencialmente texturais utilizou um novo recurso denominado micropolifonia Por fim podemos ainda diferenciar a tex-tura sintaacutetica (inter-relaccedilotildees de partes dentro de um mesmo acontecimento ou evento musical ou seja o contraponto entre vozes num mesmo contexto numa mesma e uacutenica sintaxe - aqui σύνταξις enquanto disposiccedilatildeo conjunta) e a tex-tura polissintaacutetica (inter-relaccedilotildees de acontecimentos ou eventos diversos ou seja o contraponto entre vozes situadas em contextos diferentes articulando--se simultaneamente mas natildeo numa mesma sintaxe ndash πολυσύνταξις enquanto mais de uma disposiccedilatildeo conjunta)

22 A muacutesica pode natildeo ter sido a harmonia primordial pois o conceito de ἀρμονία remonta agrave filosofia e agrave literatura da antiga Greacutecia Em todo caso ἀρμονία passa a relacionar-se necessariamente com muacutesica desde pelo menos Heraacuteclito ateacute Platatildeo Eacute bom lembrar tambeacutem que o sentido etimoloacutegico da palavra muacutesica (μουσική) se refere originalmente agraves palavras das musas palavras ditadas aos poetas que ouvindo-as traduziam o dizer das musas em versos a que perten-ciam tambeacutem ritmo e melodia o que explica por sua vez porque o conteuacutedo dos versos a muacutesica o conjunto de palavras inspiradas pelas musas passou a designar com o tempo o sentido e o significado que prevaleceu historicamente e que ainda hoje aplicamos ao termo Esta muacutesica tal como a conhecemos ateacute os dias atuais relaciona-se com o sistema primordial dando origem a todos os demais sistemas O primeiro sistema concebido teoricamente foi o σύστημα τέλειον atribuiacutedo a Aristoacutexeno de Tarento (seacuteculo IV aC) o pai da musico-logia num contexto evidentemente musical Soacute na geraccedilatildeo de Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) o conceito de sistema deixa o domiacutenio exclusivo da muacutesica e passa a ser utilizado tambeacutem no vocabulaacuterio da astronomia para depois se expandir para outras aacutereas do conhecimento huma-no Ou seja o conceito de harmonia originaacuterio da literatura e da filosofia se es-tabelece na muacutesica Jaacute o conceito de sistema originaacuterio da muacutesica se estabelece posteriormente nas mais diversas aacutereas do conhecimento humano ndash esta minha pesquisa desenvolvida conjuntamente com Alexandre da Silva Costa bolsista de poacutes-doc pela FAPESP vem sendo realizada na FFCLRP-USP e encontra--se em pleno andamento Na histoacuteria dos sistemas musicais podemos citar o σύστημα τέλειον na Antiguidade (do qual infelizmente soacute temos a teoria uma vez que as poeacuteticas musicais da Antiguidade se perderam) o cantochatildeo catoacute-lico os sistemas preacute-tonais (primeiros sistemas polifocircnicos sistemas da Ars Antiqua e da Ars Nova) o sistema tonal (talvez um dos sistemas mais perfeitos jamais inventados pelo ser humano que vai durar do Renascimento ao Roman-tismo envolvendo em quase cinco seacuteculos de histoacuteria os mais diversos estilos e escolas composicionais das mais diversas geraccedilotildees mas sem perder a sua

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essecircncia) e os sistemas poacutes-tonais (atonalidade livre atonalidade serial escala hexatocircnica de tons inteiros escala octatocircnica escala pentatocircnica e demais es-calas de influecircncia oriental ou ditas exoacuteticas politonalidade microtonalidade sistemas neo-tonais de novas consonacircncias natildeo funcionais etc)

23 Quando se fala de muacutesica claacutessica geralmente se restringe o roacutetulo a gran-des nomes de compositores invariavelmente do passado dignos de pertencer a algum periacuteodo nobre da histoacuteria Estes compositores satildeo ceacutelebres e constam como assunto escolar em classes da academia Ignora-se o que poderia ser de fato um conceito pertinente cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo conhecido mais precisamente por Escola de Haydn agrave qual se incluem tambeacutem Mozart e Beethoven E sequer podemos generalizar o Estilo Claacutessico - lembremo-nos do livro de Charles Rosen (1927-2012) The Classical Style publicado nos EUA em 1971 - a toda uma eacutepoca porque estes trecircs compositores foram natildeo a regra mas a exceccedilatildeo do periacuteodo Agravequela altura fora Franz Joseph Haydn (1732-1809) Mozart e Beethoven quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espeacute-cie de Barroco tardio Contudo na opiniatildeo puacuteblica a muacutesica claacutessica natildeo soacute natildeo representa o que seria uma definiccedilatildeo histoacuterico-musicoloacutegica como ainda exclui qualquer possibilidade desta muacutesica ser composta aqui e agora Ela natildeo pode ser contemporacircnea nem muito menos experimental Jaacute deve estar extinta pois natildeo pertence agrave nossa eacutepoca Afinal com o conceito claacutessico a possibili-dade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo Como poderaacute ser jaacute um claacutessico se ainda estiver vivo24 Trata-se da formaccedilatildeo intelectual na Antiguidade grega entendida pelos romanos como humanitas hoje traduzida frequentemente por cultura ou co-nhecimento geral (ou ainda instruccedilatildeo disciplina liccedilatildeo) Mas como παιδεία significa tanto educaccedilatildeo como tambeacutem se relaciona a tudo que tenha a ver com infacircncia e juventude deu origens a diversas palavras desde παιδαγωγός (que era tanto o pedagogoeducador como o escravo que levava a crianccedila ateacute a escola) ateacute παιδια (brincadeira diversatildeo de crianccedila) ou mesmo παιδεραστής (pederasta)

25 Na muacutesica o adjetivo erudito remonta agrave Antiguidade romana e aos primoacuter-dios dos tempos medievais reduzida agrave condiccedilatildeo acadecircmica e portanto num sentido de escolaridade em meio agrave heranccedila tardia da παιδεία Uma de suas fon-παιδεία Uma de suas fon- Uma de suas fon-tes mais antigas eacute Caio Pliacutenio Segundo (ca23-79) - nobre naturalista romano tambeacutem conhecido por Pliacutenio velho (Plinius maior) Em sua Historia naturalis (uma espeacutecie de enciclopeacutedia de todo o conhecimento da antiguidade precur-sora do gecircnero iluminista) Pliacutenio relacionou a muacutesica agrave condiccedilatildeo de engenho

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e erudiccedilatildeo no contexto da harmonia das esferas ldquose [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas predizem a arte da muacutesica caso apareccedilam nas partes obscenas das constelaccedilotildees revelam comportamentos escandalosos se por ventura mostrarem-se como um triacircngulo ou um quadrado de acircngulos idecircnticos significam engenho e erudiccedilatildeordquo (Livro II 93) (traduccedilatildeo de Vivian Carneiro Leatildeo Simotildees) E o documento que talvez estabeleccedila a ampla recepccedilatildeo posterior do conceito de erudiccedilatildeo em muacutesica eacute a carta de Cassiodoro (ca485-580) ao seu mestre Boeacutecio (ca475-526) contendo a expressatildeo ldquoeruditionis musicaelig peritumrdquo (Variarum libri XII - II 401) ou ldquoperito em muacutesica eruditardquo enquanto experiecircncia de aprendizagem em muacutesica Portanto Cassiodoro se torna no seacuteculo VI quem sabe o responsaacutevel pela ideia de erudiccedilatildeo atrelada agrave muacutesica Mas lembremo-nos de que a valorizaccedilatildeo da erudiccedilatildeo pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da muacutesica A erudiccedilatildeo (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-παιδεία) natildeo eacute a raiz nem a es-) natildeo eacute a raiz nem a es-secircncia da muacutesica enquanto arte A muacutesica enquanto ἀρμονία desde Heraacuteclito jamais fora concebida como resultado palpaacutevel em algo possiacutevel de aplicaccedilatildeo ou reproduccedilatildeo automatizante como se qualquer um fosse capaz de aprendecirc--la e repeti-la Portanto natildeo seraacute nenhuma forma de erudiccedilatildeo acadecircmica ou escolaridade humaniacutestica que poderaacute elucidar por si soacute o ldquoinaparenterdquo para aleacutem do ldquoaparenterdquo em qualquer poeacutetica artiacutestica incluindo-se a muacutesica Hei-degger procura localizar as origens e a essecircncia do conceito de erudiccedilatildeo num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepccedilatildeo filosoacutefica ldquoSomente na eacutepoca da repuacuteblica ro-mana humanitas foi pela primeira vez expressamente pensada e visada sob este nome O homo humanus contrapotildee-se ao homo barbarus O homo huma-nus eacute aqui o romano que eleva e enobrece a virtus romana por intermeacutedio da incorporaccedilatildeo da παιδεία herdada dos gregos Estes gregos satildeo os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosoacuteficas Ela se refere agrave eruditio et institutio in bonas artes A παιδεία assim entendida eacute traduzida por humanitas A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas Em Roma encontramos o primeiro humanismo Ele permanece por isso na sua essecircncia um fenocircmeno especificamente romano que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo Assim a chamada Renascenccedila dos seacuteculos XIV e XV na Itaacutelia eacute uma renascentia romanitatis Como o que importa eacute a romanitatis trata-se da humanitatis e por isso da παιδεία grega Mas a grecidade eacute sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana Tambeacutem o homo romanus do Renascimento estaacute em oposiccedilatildeo ao homo barbarus Todavia o in-humano eacute agora o assim chamado barbarismo da Escolaacutestica goacutetica da Idade Meacutedia Do humanismo entendido historicamente faz sempre parte um studium humanitatis este estu-

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do recorre de uma certa maneira agrave Antiguidade tornando-se assim em cada caso tambeacutem um renascimento da grecidade Isto eacute evidente no humanismo do seacuteculo XVIII aqui na Alemanha sustentado por [Johann Joachim] Win-ckelmann [1717-1768] Goethe e [Friedrich von] Schiller [1759ndash1805) Houmll-derlin ao contraacuterio natildeo faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essecircncia do homem mais radicalmente do que este humanismo eacute capazrdquo (HEIDEGGER 1987 [1945] p39-40) Mas se por um lado indica-mos a insuficiecircncia da erudiccedilatildeo para a viabilidade da obra de arte por outro lado tambeacutem natildeo resta duacutevida de que a composiccedilatildeo musical se torna inviaacutevel fora de uma unidade poeacutetico-praacutetico-teoacuterica Deste modo afirmamos que uma boa escolaridade ou erudiccedilatildeo pode ser importante na formaccedilatildeo do compositor Contudo reconhecemos que a tal erudiccedilatildeo natildeo se configura como o que haacute de mais essencial para a composiccedilatildeo de uma obra de arte musical enquanto tal Daiacute a inadequaccedilatildeo da expressatildeo muacutesica claacutessica ou muacutesica erudita para de-finir compositores como Bach Mozart Beethoven Robert Schumann (1810-1856) Stravinsky Villa-Lobos e tantos outros Em todos estes a arte singular e o mundo da obra satildeo sempre maiores que a mera erudiccedilatildeo Eacute por isso que devemos recusar portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de- portanto estes roacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-oacutetulos redutivos e desnecessaacuterios Como de-redutivos e desnecessaacuterios Como de-vemos chamar entatildeo nossa arte Simplesmente muacutesica com seus mais de 2500 anos de histoacuteria desde que foi inventada pelos gregos A induacutestria da cultura com sua muacutesica mediana ndash com menos de um seacuteculo de histoacuteria - eacute que deveria receber adjetivos Eacute tatildeo absurda a ideia de uma muacutesica erudita para se definir a arte do som no tempo que ningueacutem diz por exemplo que Leonardo da Vinci (1452-1519) Francisco Goya (1746-1828) Vincent van Gogh (1853-1890) Pablo Picasso (1881-1973) ou Cacircndido Portinari (1903-1962) sejam pintores eruditos Satildeo simplesmente pintores (o ldquosimplesmenterdquo aqui indica que ne-nhum adjetivo extra no caso do pintor se faz necessaacuterio para elucidar o ofiacutecio) Mas se diz que Djanira da Motta e Silva (1914-1979) eacute uma pintora naiumlf Por que a muacutesica eacute entendida pela opiniatildeo puacuteblica brasileira de modo diverso da pintura Seria devido agrave idolatria pseudo-intelectual em torno dos cancionistas e cantores da MPB (jaacute moribunda senatildeo jaacute extinta) Por outro lado mesmo na muacutesica se formos analisar o conceito de fato claacutessico eacute antes o jazz de Lou-is Armstrong (1901-1971) bem como erudita eacute a bossa-nova de Tom Jobim (1927-1994) - e negar que suas canccedilotildees sejam eruditas eacute ignorar toda uma riqueza e complexidade harmocircnico-meloacutedica evidentemente apreendida junto aos grandes mestres da muacutesica Erudita de fato eacute a muacutesica techno condicio-nada a tecnologias sofisticadas tanto de hardware como de software - algo diverso de qualquer tradiccedilatildeo de cultura popular26 Heidegger ao criticar a demarcaccedilatildeo metafiacutesico-kantiana tardia entre ver-dade (pertencente agrave loacutegica) e beleza (pertencente agrave esteacutetica) retoma o con-

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ceito original de verdade como desvelamento revelaccedilatildeo ou desencobrimento (ἀλήθεια) que remonta agrave Greacutecia arcaica Segundo Heidegger este periacuteodo eacute anterior agrave traduccedilatildeo latina (veritas) e sua interpretaccedilatildeo - ambas inadequadas no contexto da essecircncia da verdade em meio agraves culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935] p31) Ἀλήθεια (enuncia-do esclarecimento memoacuteria) se encontra em oposiccedilatildeo agrave λήθη (silecircncio obs-curidade esquecimento) (ver DETIENNE 1988 [1967] p21-23) Assim a ἀλήθεια (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) natildeo se opotildee agrave mentira tal como em sua traduccedilatildeo latina tardia Nem haacute uma oposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso O prefixo ldquoαrdquo indica aqui uma negaccedilatildeo ἀλήθεια indica lembranccedila expressa por um natildeo-esquecimento - ainda mais em nossos tempos em que quase sempre esquecemos que esquecemos Trata-se antes de uma oposiccedilatildeo entre o revelado e o oculto E κρύπτω (velar esconder cobrir ocultar calar encobrir enterrar) tambeacutem se encontra em oposiccedilatildeo agrave ἀλήθεια Neste sentido Heidegger (entendendo o λόγος enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ldquoligaccedilatildeo interna entre o conceito contraacuterio κρύπτειν [aquilo que se encontra velado] e o que o λόγος diz ἀληθέα o desveladordquo (HEIDE-GGER 2006 [19291930] p34-35) Entretanto a traduccedilatildeo de ἀλήθεια por veritas culminou com o conceito de verdade natildeo soacute enquanto certeza carte-siana mas tambeacutem relacionado agrave incapacidade criacutetica e autocriacutetica de alguns setores das ciecircncias modernas em meio agrave condiccedilatildeo redutiva de um determinis-mo tecnoloacutegico Assim para Heidegger a verdade (na dimensatildeo primordial da ἀλήθεια) que encontramos mais na grande arte do que nas ciecircncias um acon-tecimento da verdade significa tirar o veacuteu desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistecircncia o estar postado na clareira do ser iluminando-o

27 Rudolf Eisler filoacutesofo kantiano aqui citado eacute pai do compositor Hanns Eis-ler

28 Jean le Rond DrsquoAlembert (1717-1783) afirma que ldquoo sistema eacute tanto mais completo quanto menor for o nuacutemero de princiacutepiosrdquo (apud NAUMANN 1984 [ca 1750] p751) Segundo Wittgenstein ldquoo infinito nuacutemero das sentenccedilas da loacutegica (da matemaacutetica) seguem uma meia duacutezia de leis fundamentaisrdquo (1963 [1918] 543 p71) Portanto haacute uma inequiacutevoca aproximaccedilatildeo quanto agrave redu-ccedilatildeo de princiacutepios e seu funcionamento entre sistema e loacutegica A questatildeo do sis-tema faz ainda parte da essecircncia da muacutesica enquanto paradoxo Se por um lado a obra natildeo se submete agrave loacutegica de um sistema ndash jaacute que segundo Wittgenstein ldquotodas as sentenccedilas da loacutegica dizem o mesmo justamente nadardquo (1963 [1918] 543 p71) - por outro desenvolve relaccedilotildees sistemaacuteticas incontornaacuteveis

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29 Tambeacutem chamada Segunda Escola de Viena maior representaccedilatildeo do Expres-sionismo musical alematildeo aleacutem de Schoumlnberg inclui seus trecircs principais dis-ciacutepulos Anton Webern (1883-1945) Alban Berg (1885-1935) e Hanns Eisler

30 O sentido aqui que propomos para superaccedilatildeo (supressatildeo suspensatildeo) remon-ta agrave Aufhebung um conceito central em Hegel Trata-se de um processo com trecircs momentos 1) finalizaccedilatildeo superaccedilatildeo de uma etapa de desenvolvimento negaccedilatildeo (Negation) 2) manutenccedilatildeo de seu lado fecundo (Aufbewahrung) 3) integraccedilatildeo deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento por meio do qual obteacutem sua funccedilatildeo (Erhoumlhung) Como eacute sempre difiacutecil a traduccedilatildeo para o portuguecircs da Aufhebung hegeliana lembremo-nos ainda dos vaacuterios termos em portuguecircs para estes mesmos trecircs momentos ldquo1) suprimir por fim anular abolir abrogar revogar cancelar compensar-se (lat tollere) 2) guardar conservar e entregar em custoacutedia (lat conservare) 3) elevar levantar(-se) erguer(-se) (lat elevare)rdquo (MUumlLLER 2005 p87) Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialeacutetica contradiccedilatildeo tese anti-tese siacutentese ou etapas de um desen-volvimento) estes trecircs momentos (tollere conservare elevare) natildeo deixam de ser ainda assim interessantes para a compreensatildeo do processo em muacutesica na Aufhebung da loacutegica de um sistema Se a tentativa de tolhimento de um sistema musical por intermeacutedio de outro natildeo inviabiliza a conservaccedilatildeo de elementos existentes anteriormente a tal elevaccedilatildeo se torna a incontornaacutevel lembranccedila a articular um diaacutelogo incessante do presente com o passado

31 A palavra grega πάθος pode traduzir toda possibilidade de sentimento huma-no paixatildeo emoccedilatildeo afeto dor prazer tristeza alegria oacutedio amor anguacutestia medo coragem desacircnimo desejo vontade etc No entanto o πάθος na arte natildeo eacute um dado antropoloacutegico nem psicoloacutegico Heidegger nos ensina que ldquonatildeo devemos de modo algum conceber a dor antropologicamente como um senti-mento que nos aflige e faz sofrer Tampouco devemos conceber a dor psicolo-gicamente como o ninho de toda sentimentalidaderdquo (2003 [1950] p21) Para Heidegger o πάθος na arte eacute a proacutepria dimensatildeo da diferenccedila a ldquoarticulaccedilatildeo de ser em relaccedilatildeo a outrordquo (ibidem p22)

32 O espiacuterito do tempo nos leva a crer que dois indiviacuteduos de uma mesma eacutepo-ca mesmo que em lugares distintos satildeo mais parecidos entre si que indiviacuteduos de um mesmo lugar mas de eacutepocas distintas

33 Segundo Ricoeur (1990 p67-75) podemos identificar os seguintes criteacuterios do fenocircmeno ideoloacutegico a) Ideologia como representaccedilatildeo ndash simplificadora de classe ou organizaccedilatildeo social Eacute a Weltanschauung (visatildeo de mundo)

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[como concepccedilatildeo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo incluindo-se a formulaccedilatildeo de regras para o comportamento do ser humano na praacutetica social e em relaccedilatildeo ao meio ambiente] Eacute a retoacuterica ou o reino dos ldquoismosrdquo [cristianismo comunismo anarquismo marxismo nazi-fascismo neoliberalismo etc] b) Ideologia como dominaccedilatildeo ndash funccedilatildeo justificadora do poder que sempre procura legitimar-se Caraacuteter de distorccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo a mais valia entre autoridade e crenccedila [Assim entendemos que a Inquisiccedilatildeo tentou se legitimar em nome de Cristo bem como o Stalinismo em nome de Marx] c) Ideologia como deformaccedilatildeo ou distorccedilatildeo ndash trata-se de imagens invertidas da vida Natildeo devemos esquecer um dos mais terriacuteveis exemplos contemporacircneos a relaccedilatildeo entre tecnologia (pretensa neutralidade cientiacutefica) e a induacutestria beacutelica do capitalismo avanccedilado (essecircncia ideoloacutegica) A religiatildeo neste mesmo sentido eacute tambeacutem a ideologia por excelecircncia reconhecida por Marx e ainda se manteacutem como hipoacutetese de trabalho (Escola de Frankfurt) Trata-se da inversatildeo entre ceacuteu e terra ldquoe que faz com que os homens andem de cabeccedila para baixordquo num menosprezo ao tomar imagem pelo real reflexo pelo original da religiatildeo agrave funccedilatildeo de classe dominante

34 Segundo nos informa Marcelo Backes o poeta Heine chegou a antecipar vaacuterios dos conceitos que o filoacutesofo Marx eternizaria logo em seguida Ateacute mesmo a famosa foacutermula ldquoa religiatildeo eacute oacutepio do povordquo (MARX 1844 p72) havia sido adiantada por Heine quando este publicou quatro anos antes que a religiatildeo eacute o ldquooacutepio espiritualrdquo para uma ldquohumanidade sofredorardquo (HEINE 2005 [1840] p111) Backes completa ldquose Marx disse no Prefaacutecio da Criacutetica da filosofia do direito hegeliana que a criacutetica da religiatildeo eacute o pressuposto de toda criacutetica Heine a praticou antes de Marx fazer sua constataccedilatildeordquo

35 Wittgenstein numa discussatildeo com Bertrand Russell (1872-1970) elucida o engodo da identidade ldquoDizer de duas coisas que sejam idecircnticas natildeo faz sentido e dizer de uma que seja idecircntica consigo mesma natildeo diz absolutamente nadardquo (1963 [1918] 55303 p83) De fato identidade natildeo pode ser uma monoacutetona uniformidade desprovida de relaccedilotildees (insiacutepido vazio ou suposta pureza descontaminada) ou qualquer determinismo historiograacutefico (sempre arbitraacuterio) de relaccedilotildees natildeo mais que tecnicamente calculaacuteveis

36 Na musicologia brasileira haacute algumas confusotildees Eacute comum ouvirmos dizer que houve um debate vanguarda X nacionalismo Jaacute verificamos os equiacutevocos conceituais em torno da vanguarda autoproclamada Agora veremos que tam-beacutem nacionalismo eacute um termo distorcido Diz-se ldquonacionalismordquo - sobre deter-

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minada muacutesica - quando se tem em mente ldquoneofolclorismordquo Natildeo obstante al-guma rara possibilidade de intersecccedilatildeo com o neofolclorismo ldquonacionalismo eacute uma teoria poliacutetica mesmo em arte Perigosa para a sociedade precaacuteria como inteligecircnciardquo (ANDRADE 1977 [19431945] p60) O nacionalismo peque-no-burguecircs do seacuteculo XIX culminou na Primeira Guerra Mundial O naciona-lismo nazi-fascista da primeira metade do seacuteculo XX culminou na Segunda Guerra Mundial Se pensarmos o seacuteculo XX todo nacionalismo seraacute sempre fascista totalitaacuterio antidemocraacutetico xenoacutefobo intolerante truculento milita-rista e belicista Jaacute neofolclorismo eacute a incorporaccedilatildeo de oralidades folcloacutericas ou populares na muacutesica escrita E por que neofolclorismo e natildeo simplesmente folclorismo Porque com o agronegoacutecio e a induacutestria da cultura se extinguiu o folclore no mundo Aproximamo-nos neste contexto da anaacutelise de Jameson so-bre a contemporaneidade caracterizada pela ldquoindustrializaccedilatildeo da agricultura ou seja a destruiccedilatildeo de todos os campesinatos tradicionais e a colonizaccedilatildeo e a comercializaccedilatildeo do inconsciente ou em outras palavras a cultura de massa e a induacutestria da culturardquo (JAMESON 2005 [2002] p21)37 ldquoRelativistas culturais satildeo no fundo puritanos disfarccedilados gostam de aquaacute-rios humanos Os seres humanos satildeo culturalmente promiacutescuos e a cultura sem promiscuidade (trocas misturas confusotildees) soacute existe nos livros Use in-ternet televisatildeo celulares aviotildees e estradas faccedila sexo ou guerra e o papo do relativismo cultural vira piada Na realidade as pessoas lanccedilam matildeo do argu-mento relativista somente quando lhes interessa defender a tribo com a qual ganha dinheiro e famardquo (PONDEacute 2009)38 Pondeacute define a praga politicamente correta enquanto ldquoforma de marketing poliacutetico e eacuteticordquo (PONDEacute 2012 p145) ndash e ldquose vocecirc se acha uma pessoa eacutetica vocecirc eacute um canalhardquo (ibidem p144) - em que se ldquoadora dizer que a democracia eacute feita de cidadatildeos conscientes e que todos satildeo capazes de tomar decisotildees au-tocircnomas numa espeacutecie de kantismo baratordquo (ibidem p53) ldquoO politicamente correto eacute uma forma de totalitarismo e essa forma estaacute presente na palavra corretordquo (ibidem p98) Existe uma aproximaccedilatildeo entre o politicamente correto e a covardia porque ldquonada eacute mais temido por um covarde do que a liberdade de pensamentordquo (ibidem p98) O personagem central desta praga ldquoo raivoso idiota fala sempre com forccedila de bando e na democracia de massa em que vi-vemos ele sim tem o poder absoluto de destruir todos os que natildeo se submetem agrave sua regra de estupidez bem adaptadardquo (ibidem p54) Por fim Pondeacute aponta o viacuterus politicamente correto no ensino reconhecendo que ldquona escola a me-diocridade vem regada agrave busca de novas teorias pedagoacutegicas (normalmente com baixiacutessimo impacto ou possibilidade de verificaccedilatildeo de suas premissas) na universidade vem vestida de burocracia da produtividade e corporativismo de bando na arte nos discursos contemporacircneos sobre a destruiccedilatildeo da forma

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Modos distintos de fazer nada ocupando tempo e gerando institucionalizaccedilatildeo e papo-furado cheio de jargatildeo teacutecnicordquo (ibidem p98-99)39 Soacute para citar um exemplo traacutegico quem natildeo se lembra do Caso Escola Base ocorrido em Satildeo Paulo em 1994 Como determinar com exatidatildeo onde come-ccedila a exceccedilatildeo e onde termina a regra na verdade midiaacutetica

40 O conceito de decisor remonta a Jean-Franccedilois Lyotard (1924-1998) Trata--se de uma nova classe dirigente constituiacuteda por diretores de empresas e altos funcionaacuterios dirigentes de grandes oacutergatildeos profissionais sindicais poliacuteticos confessionais universitaacuterios etc Segundo Lyotard em tempos da sociedade poacutes-industrial os decisores atuam sob uma discutiacutevel ldquoloacutegica do melhor de-sempenhordquo natildeo raramente atendendo a interesses os mais questionaacuteveis (ver LYOTARD 1998 [1979])

41 Dizem que o mundo eacute uma aldeia global Muito bem Soacute que o gosto de todas as aldeias no mundo eacute determinado em nossa eacutepoca soacute por aquela uacutenica aldeia detentora dos sateacutelites conexos agrave sua induacutestria da cultura Ou seja processos de globalizaccedilatildeo sempre houve no mundo O que ocorre agora de diferente eacute que as influecircncias satildeo de matildeo uacutenica Antigamente a histoacuteria era outra Os do-minadores assimilavam o que havia em suas colocircnias Lembremo-nos dos ro-manos e dos gregos bem como dos portugueses e dos brasileiros Os romanos liam Platatildeo Jaacute os portugueses cantavam modinhas e danccedilavam chulas cariocas e lundus Jaacute hoje como disse certa vez numa palestra Juacutelio Medaglia (1938) ldquoem Caruaru tambeacutem se danccedila break e se declama o chatiacutessimo hip-hop mas ningueacutem em Nova York toca numa banda de piacutefarosrdquo

42 Siacutetio do Seminaacuterio Gramsci de Ribeiratildeo Preto (atualjcnombr) Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciaacuteria de Turim (Itaacutelia) quando re-digiu este enunciado numa carta a seu irmatildeo Carlo a 19 de dezembro de 1929

43 O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Uto-pie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn em 1929

44 ldquoSegundo Nietzsche o homem superior indiviacuteduo soberano indiviacuteduo que natildeo se parece senatildeo consigo mesmo indiviacuteduo livre da moral dos costumes que possui em si mesmo a verdadeira consciecircncia da liberdade e da potecircn-cia enfim o sentimento de ter chegado agrave perfeiccedilatildeo do homem (Genealogia da Moral) O super-homem [conceito diverso tanto do personagem da induacutestria da cultura como de qualquer ideal racista ou demais poliacuteticas de direita] eacute assim o indiviacuteduo autecircntico que inventa seus proacuteprios valores afirmativos

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da vida que natildeo eacute condicionado pelos haacutebitos e valores sociais de uma eacutepoca porque o homem existe apenas para ser superado (Assim falou Zaratustra) Ele evoca o passo agrave frente que a humanidade deve empreender a partir do momento em que ela se desembaraccedilar da ideia de Deus Porque a crenccedila em Deus segundo Nietzsche aprisionava a humanidade em falsos valores e limi-tava seu poder de conhecimento trazendo uma resposta apaziguadora agraves suas ignoracircnciasrdquo (JAPIASSU amp MARCONDES 1996 p256) Devemos esclare-cer que criacutetica em relaccedilatildeo a todos os sistemas a postura de Nietzsche contraacuteria agraves religiotildees natildeo significou que enquanto filoacutelogo e filoacutesofo tenha deixado de estudar com afinco as fontes religiosas da Antiguidade nem que procurasse idealizar qualquer outro sistema substituto da religiatildeo capaz de elucidar os enigmas da vida E cabe aqui talvez uma aproximaccedilatildeo entre Nietzsche e Bach Assim como a filosofia de Nietzsche nada tem a ver com a opiniatildeo de um ateu ou agnoacutestico Bach (do mesmo modo mal compreendido soacute que por razotildees opostas) tambeacutem natildeo pode ser reduzido agrave mera condiccedilatildeo de um compositor crente nem que sua muacutesica religiosa seja paradigma para a muacutesica protestante A monumentalidade artiacutestica e dramaacutetica de Bach transcende todo e qualquer sistema cultural religioso Sua obra foi uma exceccedilatildeo e natildeo a regra da muacutesica utilizada no culto a Deus Basta lembrarmo-nos de como o Kantor de Leipzig foi rejeitado em vida pelas autoridades constituiacutedas (tanto da igreja como da administraccedilatildeo municipal) para as quais as paixotildees bachianas eram natildeo soacute ina-dequadas ao culto religioso como ainda consideravam-nas profanas e operiacutes-ticas ldquoEm 1766 as autoridades de Leipzig determinaram que a apresentaccedilatildeo de uma Paixatildeo durante o ritual lituacutergico na igreja soacute poderia acontecer como leitura A comunidade de fieacuteis passou entatildeo a entoar cacircnticos concernentes agrave Paixatildeo Como gecircnero musical a paixatildeo desapareceu do culto evangeacutelico E como sabemos o mesmo se deu com as cantatas Os diretores alematildees silenciosamente colocaram de lado os oratoacuterios de Bach ndash escreveu em 1832 Johan Friedrich Rochlitz [1769-1842] teoacuterico da muacutesica e ex-aluno da Escola de Satildeo Tomeacuterdquo (RUEB 2001 [2000] p277-278) Este eacute um caso evidente da cultura tentando aniquilar a arte Citaacutevamos ldquoDeus morreurdquo e acabamos por tratar da acessibilidade da comunidade ao culto religioso em Leipzig na segun-da metade do seacuteculo XVIII Onde seraacute que nos perdemos Seraacute que o conflito vivenciado pelo Uumlbermensch bachiano frente ao sistema religioso tambeacutem natildeo nos ajuda a compreender o niilismo de Nietzsche

45 Jacques Stehman (1912-1975) considera Rousseau um ldquodesmentido da his-toacuteriardquo pelas criacuteticas deste contraacuterias a Rameau ldquoAfirmo que o senhor Rameau tornou os seus acompanhamentos tatildeo confusos tatildeo carregados tatildeo frequentes que a cabeccedila tem dificuldade em aguentar o alarido contiacutenuo dos diversos ins-

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trumentos durante a execuccedilatildeo das suas oacuteperas que teriacuteamos prazer em ouvir se aturdissem menos os ouvidosrdquo (apud STEHMAN 1979 [1964] p287)

46 Guumlnter Mayer (1930-2010) que pesquisou Hegel com afinco em especial as centenas de escritos de Hegel sobre muacutesica jamais encontrou qualquer refe-recircncia a Beethoven Esta omissatildeo natildeo deixa de ser instigante Lembremo-nos de que nos paiacuteses alematildees estamos nos referindo ao filoacutesofo mais importante e ao compositor mais influente daquele tempo ambos nascidos em 1770 ldquoBe-ethoven nunca foi mencionado por Hegel nem em suas cartas de Viena [de 1824 quando o assunto principal foi muacutesica em especial Rossini] nem nas suas conferecircncias sobre Esteacutetica nem em nenhum outro lugar Seguramente Hegel soube da existecircncia de Beethoven mas o filoacutesofo jamais se manifestou sobre o compositorrdquo (MAYER 1978 p15) Seraacute que Hegel natildeo compreendeu ou natildeo gostava de Beethoven

47 Natildeo obstante seus sempre brilhantes argumentos estaacute claro hoje que a tese central da Filosofia da Muacutesica Nova de Adorno (passim 1975 [1949]) de-finindo ldquoSchoumlnberg como revolucionaacuteriordquo e ldquoStravinsky como reacionaacuteriordquo natildeo passa de um engodo modernista para natildeo dizer quase mesmo nacionalista Contudo este equiacutevoco na obra musicoloacutegica de Adorno natildeo anula suas ma-gistrais teorias sobre a induacutestria da cultura

48 No Aureacutelio consta a definiccedilatildeo de que alienaccedilatildeo eacute a ldquofalta de consciecircncia dos problemas poliacuteticos e sociaisrdquo (FERREIRA 1986 p86) Por outro lado podemos tambeacutem pensar num paradoxo da alienaccedilatildeo Trata-se de uma ques-tatildeo heracliacutetica (segundo Alexandre Costa) estamos sempre ao mesmo tempo concentrados e distraiacutedos (concentrado em algo e ao mesmo tempo distraiacutedo de algo) Alienar-se significa tornar-se alheio a algo Entatildeo por que natildeo trans-formamos a condiccedilatildeo ambiacutegua do alienado em algo fecundo Por exemplo numa atitude de resistecircncia contraacuteria agrave induacutestria da cultura natildeo se alienar da mesma induacutestria da cultura (alienar-se do que natildeo presta)

49 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido agrave polecircmica de Stockhausen referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York ldquoo que aconteceu de fato foi naturalmente ndash e agora vocecircs todos tecircm que reposicionar os ceacuterebros ndash a maior obra de arte de todos os temposrdquo (entrevista gravada em Hamburgo a 16 de setembro de 2001) Talvez a arte e mesmo tambeacutem a vida humana mereccedilam outra consideraccedilatildeo por parte de um artista Diferentemente de Stockhausen entendemos que no caso do 11 de setembro natildeo se trata de uma ldquoobra de arterdquo Trata-se de um problema cultural e natildeo artiacutestico Haacute todo um triunfo sensacionalista aqui aos

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moldes da induacutestria da cultura Uma liccedilatildeo de aprendiz de feiticeiro Portanto natildeo devemos nem empregar aqui numa metaacutefora bioloacutegica um conceito como autopoiesis (ver entre outros escritos MATURANA Humberto amp VARELA Francisco Autopoiesis and Cognition The Realization of the Living 1979) ou seja um fenocircmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural como se ele fosse autoprodutivo Como se a induacutestria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir Devemos antes pensar num sistema automimeacutetico (que vem de μίμησις) porque ele tatildeo somente imita a si proacuteprio Eacute por isso que podemos afirmar que a cultura eacute mimeacutetica e a arte eacute poeacutetica E a induacutestria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer aquele espetaacuteculo natildeo menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens Satildeo elementos orgacircnicos aparentemente independentes mas que se automimetizam sempre jaacute articulados num mesmo sistema ao qual pertencem No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizaccedilatildeo Um caso evidente de mau gosto enquanto clichecirc cinematograacutefico (hollywoodiano) tornado realidade Por meio de recursos tecnoloacutegicos cada vez mais facilmente disponiacuteveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista natildeo soacute da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano O 11 de setembro se reduz agrave dimensatildeo da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais mediaacutetico que militar) Algo que se encontra aqueacutem da arte e pior ainda eacute nocivo agrave vida Lembremo-nos por fim de Wittgenstein ldquoeacutetica e esteacutetica satildeo um soacuterdquo (1963 [1918] 6421 p112) Teriacuteamos aqui a tarefa de natildeo soacute estetizar a eacutetica como ainda etizar a esteacutetica Neste sentido a questatildeo do gosto tambeacutem se torna incontornaacutevel na arte em meio agrave exposiccedilatildeo de mundo no contexto humano

50 No entanto se pensarmos na escritura musical do seacuteculo XVIII para traacutes como exemplo de indicaccedilotildees restritas quase que exclusivamente agraves alturas e agraves duraccedilotildees como poderemos entatildeo insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do inteacuterpreteexecutor ainda mais com toda esta recente discussatildeo da performance com instrumentos de eacutepoca Este jaacute eacute outro problema pois os processos notacionais mais antigos realmente natildeo nos datildeo referecircncias definitivas ou integrais para a resoluccedilatildeo de questotildees interpretativo-performaacuteticas Mas devemos lembrar que a escritura musical no seacuteculo XXI viabiliza jaacute um conjunto mais aperfeiccediloado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para os diversos paracircmetros musicais

51Agradecemos a Alexandre Costa nosso parceiro de pesquisa pela discussatildeo em torno das origens do conceito de teoria

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52 Em Nietzsche temos A) primeira natureza aquilo que fizeram conosco o que nos foi imposto e o que encontramos em noacutes mesmos e ao nosso redor origem destino meio caraacuteter B) segunda natureza que fazemos com tudo isso A descoberta dos temperos secretos da linguagemescritura singularidade a partir de algo feito de si proacuteprio (ver SAFRANSKI 2005 [2000] p46-47) Neste caso entendemos A) enquanto cultura (identidade enquanto a forma originaacuteria de ideologia sempre sujeita a falsificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e distorccedilatildeo ndash essecircncia da comunicaccedilatildeo) e B) enquanto arte (vamos pensar a muacutesica sendo a muacutesica a arte do som no tempo configurando-se enquanto ποίησις - materiais musicais trabalhados com princiacutepios de repeticcedilatildeo contraste e variaccedilatildeo em condiccedilotildees texturais e estruturais na utilizaccedilatildeo dos paracircmetros musicais altura duraccedilatildeo intensidade e timbre e envolvendo disciplinas artesanais - incluindo--se relaccedilotildees com a φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-φύσις em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-em procedimentos poeacuteticos - tanto abstraccedilotildees quan-to concretudes ironias siacutembolos alegorias analogias imitaccedilotildees metaacuteforas paraacutefrases intertextualidades - sendo sua essecircncia tanto enigmaacutetica quanto paradoxal envolvendo liberdade e disciplina superando regras anteriores mas tambeacutem propondo novas natildeo se submetendo agrave loacutegica de um sistema mas es-tabelecendo relaccedilotildees sistemaacuteticas natildeo sendo apenas a capacidade inventiva do compositor mas tambeacutem manifestaccedilatildeo de linguagem - λόγος e ἀλήθεια enquanto Dasein - com ideais contextuais de beleza expressando possibilida-des de πόλεμος e πάθος na finitude humana sempre jaacute historial soacute se dando na singularidade solitaacuteria da obra culminando numa exposiccedilatildeo de um mundo enquanto interaccedilatildeo existencial) Portanto separamos aqui comunicaccedilotildees das artes Claro que sim Nada haacute de mais forccedilado e contraproducente do que a concepccedilatildeo de uma unidade de comunicaccedilotildees e artes Segundo Adorno ldquoo cri-teacuterio do verdadeiro natildeo eacute sua imediata comunicabilidade a todo mundo Aquilo a que devemos resistir eacute a coerccedilatildeo quase universal levando-nos a confundir a comunicaccedilatildeo do que eacute conhecido com o que ele eacute atualmente cada passo em direccedilatildeo agrave comunicaccedilatildeo sacrifica e falsifica a verdaderdquo (apud JAPIASSU 2001 p265) Entatildeo como resolver a questatildeo da comunicaccedilatildeo na arte Natildeo se resolve simplesmente porque o domiacutenio da arte eacute diverso daquele da comu-nicaccedilatildeo Em mateacuteria de muacutesica por exemplo ldquoquem tiver ouvidos para ouvir que ouccedilardquo (Mt 139)

53 O conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e agraves suas obas Wahrheit und Methode (1960) e Kleine Schriften (1967)

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Referecircncias

ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Traduccedilatildeo de Alfredo Bosi 2ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1998 [1ordf ed italiana 1960]ADORNO Theodor W amp HORKHEIMER Max Dialektik der Aufklaumlrung Frankfurt Fischer 1969 [1ordf impressatildeo 1944 1ordf ed definitiva 1947]__________ Philosophie der neuen Musik AGS XII Frankfurt am Main Suhrkamp 1975 [1ordf ed 1949]ANDRADE Maacuterio O Banquete Satildeo Paulo Duas Cidades 1977 [original de 19431945]__________ Pauliceacuteia desvairada In Poesias completas Vol I Satildeo Paulo Martins 1979 [original de 1921] p9-64__________ Prefaacutecio sobre Chostacovich In SEROFF Victor Dmitri Shostakovich Traduccedilatildeo de Guilherme Figueiredo Rio de Janeiro O Cruzeiro janeiro de 1945 p9-33BACH Johann Sebastian Inventionen ndash Sinfonien Nach den Quellen herausgegeben von Rudolf Steglich Muumlnchen G Henle 1978 [originais de 1723]BRECHT Bertolt Schriften zur Literatur und Kunst Band I - 1920-1939 Berlin und Weimar Aufbau 1966CANDEacute Roland de Vivaldi Traduccedilatildeo de Luiz Eduardo de Lima Brandatildeo Opus 86 1ordf ed brasileira Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 [1ordf ed francesa 1967]COSTA Alexandre [da Silva] (traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e comentaacuterios) Heraacuteclito ndash Fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002 [contendo em ediccedilatildeo biliacutenguumle a integral dos fragmentos filosoacuteficos originais de Heraacuteclito da segunda metade do seacuteculo VI eou primeira metade do seacuteculo V aC]DAHLHAUS Carl Musikaumlsthetik Koumlln Hans Gerig 1967DERRIDA Jacques A escritura e a diferenccedila Traduccedilatildeo de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva Satildeo Paulo Perspectiva 2005 [1ordf ed francesa 1967]

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DETIENNE Marcel Os mestres da verdade na Greacutecia arcaica Traduccedilatildeo de Andreacutea Daher Rio de Janeiro Zahar 1988 [1ordf ed francesa 1967]DUARTE Pedro Estio do tempo ndash romantismo e esteacutetica moderna Rio de Janeiro Zahar 2011EISLER Hanns amp BUNGE Hans Gespraumlche mit Hans Bunge ndash fragen Sie mehr uumlber Brecht Leipzig DVfM 1975__________ Musik und Politik - Schriften 1924-1948 - III1 Leipzig VEB Deutscher Verlag fuumlr Musik 1985FERREIRA Aureacutelio Buarque de Hollanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua portuguesa 2ordf ed revista e aumentada Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 [1ordf ed 1975]HEIDEGGER Martin A caminho da linguagem Traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante Schuback Petroacutepolis Vozes 2003 [conferecircncias e ensaios redigidos entre 1950 e 1959]__________ A questatildeo da teacutecnica In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001a [1ordf ed alematilde 1954] p11-38__________ Carta sobre o humanismo Traduccedilatildeo de Ernildo Stein revista por Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees Editores 1987 [1ordf versatildeo 1945])__________ Der Ursprung des Kunstwerkes Mit einer Einfuumlhrung von Hans-Georg Gadamer Stuttgart Philipp Reclam 1960 [1ordf versatildeo 1935] A origem da obra de arte In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Irene Borges-Duarte amp Filipa Pedroso [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1935] p5-94__________ Logos (Heraacuteclito Fragmento 50) In Ensaios e conferecircncias Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo Petroacutepolis Vozes 2001b [1ordf ed alematilde 1951] p183-203__________ O dito de Anaximandro In Caminhos de floresta 2ordf ed Traduccedilatildeo de Joatildeo Constacircncio [Lisboa] Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2012 [original de 1946] p369-440

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__________ Os conceitos fundamentais da metafiacutesica ndash mundo ndash finitude ndash solidatildeo Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Forence 2006 [originais de 1929 e 1930]HEINE Heinrich Florentinische Naumlchte In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band I Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1833]__________ Ludwig Boumlrne - Eine Denkschrift In Saumlmtliche Schriften Herausgegeben von Klaus Briegleb Band IV Muumlnchen dtv 2005 [1ordf ed alematilde 1840]HORTA Luiz Paulo Villa-Lobos ndash uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 1987HOUAISS Antocircnio amp VILLAR Mauro de Salles Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001HUSSELR Edmund Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie - eine Einleitung in die phaumlnomenologische Philosophie Husserliana Vol VI Den Haag Martinus Nijhoff 1976 [conferecircncia originalmente proferida em Viena 1935] p314-348JAMESON Fredric Modernidade singular ndash ensaio sobre a ontologia do presente Traduccedilatildeo de Roberto Franco Valente Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 [1ordf ed americana 2002]JAPIASSU Hilton amp MARCONDES Danilo Dicionaacuterio baacutesico de filosofia 3ordf ed revista e ampliada Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996JAPIASSU Hilton Nem tudo eacute relativo ndash a questatildeo da verdade Satildeo Paulo Letras amp Letras 2001KANT Immanuel Kritik der reinen Vernunft Riga Johann Friedrich Hartknoch 1781KONDER Leandro A questatildeo da ideologia Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002MARX Karl Zur Kritik der Hegellsquoschen Rechts-Philosophie - Einleitung In MARX Karl amp RUGE Arnold (herausgegebn von) Deutsch-franzoumlsische Jahrbuumlcher 1ste und 2te Lieferung Paris 1844

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MAYER Guumlnter Weltbild ndash Notenbild ndash zur Dialektik des musikalischen Materials Leipzig Reclam 1978MUumlLLER Marcos Lutz Traduccedilatildeo da Introduccedilatildeo (sectsect 1-33) agraves Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciecircncia do Estado no seu Traccedilado Fundamental de G W F HEGEL In Claacutessicos da Filosofia - Cadernos de Traduccedilatildeo nordm 10 Campinas IFCH-UNICAMP agosto de 2005NAUMANN Manfred (Auswahl und Einfuumlhrung) Artikel aus Diderots Enzyklopaumldie Uumlbersetzung von Theodor Luumlcke Leipzig Reclam 1984NIETZSCHE Friedrich Crepuacutesculo dos iacutedolos ndash como filosofar com o martelo Traduccedilatildeo de Jacqueline Valpassos Satildeo Paulo Golden BooksDPL 2009 [1ordf ed alematilde 1888]PAREYSON Luigi Os problemas da esteacutetica Traduccedilatildeo de Maria Helena Nery Garcez 3ordf ed Satildeo Paulo Martins Fontes 1997 [1ordf ed italiana 1966]PONDEacute Luiz Felipe Guia politicamente incorreto da filosofia Satildeo Paulo Leya 2012__________ Relativismo cultural eacute blablablaacute que soacute funciona em conversa de bar In Folha de S Paulo 2 de marccedilo de 2009RICCIARDI Rubens Russomanno Paradoxos modernistas In Movimento Vivace ndash Revista da OSRP Ribeiratildeo Preto OSRP Ano I nordm 10 dezembro de 2008 p22-23RICCIARDI Rubens Russomanno GALON Lucas Eduaro da Silva amp CIPRIANO Luis Alberto Garcia Nacionalismo e neofolclorismo em Villa-Lobos In Anais do XXI Congresso da ANPPOM 2011 Uberlacircndia XXI Congresso da ANPPOM 2011 p1109 ndash 1115RICOEUR Paul Interpretaccedilatildeo e ideologias Organizaccedilatildeo traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Hilton Japiassu Rio de Janeiro Francisco Alves 1990ROUANET Sergio Paulo As razotildees do Iluminismo Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987

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RUEB Franz 48 variaccedilotildees sobre Bach Traduccedilatildeo de Joatildeo Azenha Jr Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 [1ordf ed alematilde 2000]SAFRANSKI Ruumldiger Heidegger ndash um mestre da Alemanha entre o bem e o mal 2ordf ed Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 1994]_____________ Nietzsche ndash biografia de uma trageacutedia Traduccedilatildeo de Lya Luft Satildeo Paulo Geraccedilatildeo 2005 [1ordf ed alematilde 2000]SCHOumlNBERG Arnold Harmonielehre [Wien] Universal 1986 [1ordf ed 1911]SNOW CP As duas culturas e uma segunda leitura Traduccedilatildeo de Geraldo Gerson de Souza e Renato de Azevedo Rezende Satildeo Paulo EdUSP 1995STEHMAN Jacques Histoacuteria da muacutesica europeacuteia ndash das origens aos nosso dias Traduccedilatildeo de Maria Teresa Athayde Revisatildeo teacutecnica de Fernando Cabral 2ordf ed Lisboa Livraria Bertrand 1979 [1ordf ed belga 1964]STEIN Ernildo Aproximaccedilotildees sobre Hermenecircutica Porto Alegre EdiPUCRS 1996 p18-20 Obs Agradecemos a Reacutegis Duprat pelo acesso a esta fonteSTRAVINSKY Igor Poeacutetica musical em seis liccedilotildees Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Horta Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 [1ordf ed 1942 ndash originais de 19391940]TEIXEIRA COELHO Netto Joseacute Por que arte entre a regra e a exceccedilatildeo (seminariosmvorgbr2008textosteixeira_coelhopdf)WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus logico-philosophicus ndash Logisch-philosophische Abhandlung Frankfurt am Main Suhrkamp 1963 [original de 1918]

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Da relaccedilatildeo entre loacutegos e daiacutemon em Heraacuteclito a escuta

como definidora do homem

Por Alexandre da Silva Costa(Bolsista de Poacutes-Doc pela FAPESP

junto ao NAP-CIPEM FFCLRP-USP)

Quando estudares os intervalos dos sons o nuacutemero e a natureza dos agudos e graves os limites dos intervalos e todas as combinaccedilotildees possiacuteveis descobertas por nossos pais que no-la transmitiram como a seus descendentes sob a denominaccedilatildeo de harmonias bem como as operaccedilotildees congecircneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que interpretadas pelos nuacutemeros como diziam receberam o nome de ritmo e medida e considerares que o mesmo princiacutepio teraacute de ser aplicado a tudo que eacute uno e muacuteltiplo quando houveres aprendido tudo isso entatildeo e soacute entatildeo chegaraacutes a ser saacutebio1

Ouvir Eacute bem possiacutevel que seja este o verbo mais recorrente dentre todos aqueles que constam em meio agraves relativamente poucas palavras de Heraacuteclito conservadas pela histoacuteria A que devemos poreacutem a preponderacircncia desse verbo no pensamento do filoacutesofo de Eacutefeso Natildeo me parece errocircneo afirmar que o motivo pelo que essa preponderacircncia se verifica refere-se ao traccedilo mais marcante e agrave ideacuteia mais decisiva de sua filosofia a concepccedilatildeo da natureza (phyacutesis) do mundo (koacutesmos) como linguagem Numa palavra uma palavra o loacutegos

Pois esta palavra muito antes de ter angariado para si os significados de razatildeo e racionalidade e ter possibilitado o

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aparecimento do termo loacutegica ao qual ver-se-aacute sistemaacutetica e historicamente associado significa aqui primordialmente ldquoa falardquo ldquoo discursordquo Se a vida o mundo a realidade e a natureza satildeo concebidos por Heraacuteclito como instauradores de uma fala como realizadores de um discurso natildeo deveria causar qualquer surpresa observar que o verbo ouvir erga-se agrave tamanha importacircncia uma vez que se todo e qualquer fenocircmeno sem exceccedilatildeo constitui linguagem a audiccedilatildeo apresenta-se como o principal sentido do homem e o modo pelo que se lhe torna possiacutevel participar deles

Natildeo eacute preciso ser um grande conhecedor em mateacuteria de filosofia para saber que o termo loacutegos vale como poucos por uma das palavras mais caracteristicamente filosoacuteficas e tambeacutem uma das mais decisivas palavras da histoacuteria da filosofia Ela encontra a sua primeira ocorrecircncia literaacuteria na obra de Heraacuteclito da qual soacute nos restam hoje alguns fragmentos2 Para a filosofia de Heraacuteclito eacute a palavra das palavras assim como o ouvir seraacute o verbo dos verbos Diante da linguagem a escuta Por ter sido o primeiro a pensaacute-la e a pensaacute-la como linguagem eacute que se depreende que todos os demais campos semacircnticos relativos ao termo resultam secundaacuterios e derivados deste primeiro e primevo sentido Ao fim e ao cabo por mais polissecircmico possa ter se transformado ao longo dos seacuteculos os variados significados de loacutegos dependem literalmente dessa sua matriz heracliacutetica tendo esses significados se desdobrado a partir dela de forma muito proacutepria e coerente Eis o que cabe minimamente demonstrar para que se atinja uma compreensatildeo clara e segura do que venha a ser o loacutegos heracliacutetico

Eacute claro que a concepccedilatildeo de linguagem aqui em jogo em muito ultrapassa a sua significaccedilatildeo como expressatildeo e comunicaccedilatildeo verbais A concepccedilatildeo heracliacutetica de linguagem o loacutegos remete ao fato de que todo evento na ordem da natureza ndash e o homem tambeacutem se inscreve nela ndash comunica e diz algo A phyacutesis revela-se como linguagem transmitindo o seu conteuacutedo expondo o seu comportamento Estamos diante portanto de uma filosofia

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que ao contraacuterio do que postulou toda e qualquer metafiacutesica natildeo marginaliza a linguagem para o posto e a funccedilatildeo de uma ponte entre o pensamento e a accedilatildeo ou ainda entre a realidade ideal e a realidade sensiacutevel A linguagem coincide com o ser coincide por extensatildeo com o devir que eacute em Heraacuteclito a forma que se compotildee com o ser Assim tudo o que eacute deveacutem e tudo o que deveacutem e eacute diz

Compreender o mundo e todo fenocircmeno como linguagem requer pensar que os entes sendo e devindo dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento Essa linguagem poreacutem ao mostrar-se e exibir-se simplesmente sendo eacute justamente aquilo que natildeo apenas pode ser ouvido como natildeo tem como natildeo ser ouvido isto eacute natildeo tem como deixar de ser sentido de alguma forma Consequumlentemente do mesmo modo que a linguagem aqui natildeo pode ser compreendida exclusivamente como expressatildeo verbal pois natildeo se limita a ela o ouvir tambeacutem excede a mera audiccedilatildeo sonora Podemos considerar que em Heraacuteclito ouvimos com todos os nossos poros com todos os nossos sentidos pois eacute a partir do corpo e de sua estrutura esteacutetica que nos mantemos em contato sensiacutevel com a vida e o mundo Com efeito a hipoacutetese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um algueacutem que sequer participaria da existecircncia Daiacute que a sensibilidade aistheacutesis eacute o que possibilita e promove para o homem a sua participaccedilatildeo na natureza e por extensatildeo a sua interaccedilatildeo nesse arranjo orquestrado que eacute o koacutesmos Isto tambeacutem indica que Heraacuteclito tal como predomina em toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica grega agrave exceccedilatildeo eventual de Platatildeo adota a ideacuteia de que nenhum conhecimento inteligiacutevel seria possiacutevel se natildeo nos fosse o conhecimento sensiacutevel primeiro Compreende-se melhor dessa forma a sentenccedila em que afirma que ldquodo que haacute visatildeo audiccedilatildeo aprendizado eis o que eu prefirordquo3 Eacute necessaacuterio ressaltar entretanto que essa preferecircncia natildeo significa uma aptidatildeo particular uma idiossincrasia qualquer lsquoPreferirrsquo em grego protimeacuteo significa o que se toma primeiro

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o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato ldquoPreferirrdquo natildeo remete neste caso a uma escolha voluntaacuteria e pensada uma escolha da ordem do querer humano trata-se antes de uma escolha irrecusaacutevel da natureza Eacute o corpo que colhe primeira e inevitavelmente pelos sentidos o que a phyacutesis e o seu loacutegos lhe oferecem O aprendizado eacute uma funccedilatildeo dessa apreensatildeo sensiacutevel forma primeira de conhecimento que soacute mediatamente se converte em conhecimento inteligiacutevel a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos Apreender para aprender eis a relaccedilatildeo determinada pela proacutepria phyacutesis O corpo colhe a interpretaccedilatildeo escolhe Haacute aqui portanto dois momentos que devem ser observados (A) o ldquoouvirrdquo eacute inevitaacutevel universal e involuntaacuterio dando-se esteticamente (B) o modo como se ouve poreacutem eacute particular porque consiste numa construccedilatildeo interpretativa do homem compondo-se inteligivelmente Quer isto dizer que se o ouvir assim como o pensar satildeo comuns a todos os homens e mesmo inelutaacuteveis na medida em que natildeo temos a opccedilatildeo de escolher natildeo-ouvir ou natildeo-pensar o conteuacutedo desse ouvir e desse pensar em contrapartida eacute vaacuterio e particular pelo que se estabelecem duas instacircncias ou dimensotildees em palavras heracliacuteticas (A) o comum (xynoacutes) e (B) o particular (iacutedios) Essas duas dimensotildees para o homem jamais se excluem configuram permanentemente a tensatildeo entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento a tensatildeo entre a linguagem universal e comum da phyacutesis o loacutegos e a linguagem particular e contingente do homem o loacutegos humano uma linguagem proacutepria concecircntrica agrave proacutepria linguagem Essa relaccedilatildeo de tensatildeo entre os loacutegoi da phyacutesis e do homem eacute referida fartamente pelos fragmentos e por ora destaco apenas um deles como exemplar dessa relaccedilatildeo ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo4

Conveacutem deter a exploraccedilatildeo dessa tensa ambiguumlidade por ora Trata-se de tema ao qual retornarei em momento propiacutecio

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Metodicamente faz-se necessaacuterio aclarar e desenvolver mais como num rondoacute a concepccedilatildeo dessa linguagem comum ou universal em Heraacuteclito o loacutegos circulando em torno a ela na esperanccedila de obter resultados mais densos e precisos

Indaga o Fragmento 16 de Heraacuteclito ldquoComo algueacutem escaparia diante do que nunca se potildeerdquo Comparando metaforicamente o loacutegos a um sol que natildeo conhece ocaso o Efeacutesio natildeo soacute defende a ideacuteia de que essa linguagem jamais cessa por ser sempre ldquofalanterdquo como indica que natildeo haacute como nos subtrairmos a ela Desta forma ela nos impotildee o curso do seu discurso o movimento da sua ldquoliacutenguardquo contiacutenua e ininterruptamente Mas se a onipresenccedila dessa linguagem jaacute pode ser considerada assente o seu caraacuteter ainda merece consideraccedilotildees mais detidas Comeccedilo por salientar que essa linguagem natildeo se mostra arbitraacuteria poderia ser sem nexo poderia ser natildeo-loacutegica mas natildeo o pensador de Eacutefeso reconhece nessa linguagem uma gramaacutetica um ritmo um andamento Soacute e apenas por isso o conhecimento eacute possiacutevel Se a linguagem que a vida exibe se a linguagem que a natureza nos mostra fosse absolutamente arracional e incompreensiacutevel natildeo-identificaacutevel e irredutiacutevel a formas de compreensatildeo o conhecimento seria de todo impossiacutevel Considerar que essa linguagem possibilita o conhecimento significa dizer que ela eacute de algum modo articulada conformando um discurso concatenado e consequumlentemente reconheciacutevel O loacutegos portanto natildeo contradiz a si mesmo respeitando a sua gramaacutetica

Tomemos um exemplo banal a gravidade Ao soltar um pedaccedilo de giz observamos invariavelmente que seraacute atraiacutedo verticalmente agrave superfiacutecie da Terra Se esse mesmo fenocircmeno o ato de abandonar o peso do giz agrave sorte da gravidade resultasse em experiecircncias diversas isto eacute se num dado momento o giz em vez de cair pudesse orientar-se casual e arbitrariamente para a direita ou para a esquerda ou mesmo subisse se lhe fosse portanto possiacutevel a cada vez alterar o seu comportamento entatildeo a linguagem do

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mundo e a sua composiccedilatildeo seriam completamente arbitraacuterias e singulares natildeo oferecendo a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura e de um princiacutepio pelo qual eacute reconhecido o modo da sua fala especialmente como natildeo-contradiccedilatildeo Percebe-se por essas consideraccedilotildees por que o termo loacutegos mais tarde e mesmo jaacute em Heraacuteclito assume uma polissemia consideraacutevel espraiando os seus campos semacircnticos no sentido da racionalidade da loacutegica da coerecircncia e da proporccedilatildeo5 Eacute que o discurso da phyacutesis o loacutegos da natureza natildeo eacute de forma alguma casual ou precaacuterio a ele pertencem como jaacute aludido uma gramaacutetica um ritmo e um andamento constitui-se pois de forma regrada e daiacute a possibilidade de conhecermos a sua regra a sua norma e a sua medida ndash o seu noacutemos e o seu meacutetron Essa gramaacutetica esse andamento e esse ritmo revelam uma estrutura reconhecida por Heraacuteclito pelo nome de harmonia6

Antes poreacutem que eu proceda a anaacutelise do que venha ou possa vir a ser a ideacuteia de harmonia em Heraacuteclito conveacutem frisar que essa harmonia eacute mostrada pela proacutepria linguagem ao exibir-se fenomenalmente ela expotildee a sua harmonia Assim se o loacutegos eacute linguagem e se essa linguagem possui uma gramaacutetica a principal regra ou estrutura de ambas resume-se em uma palavra ndash harmonia Eis a palavra que Heraacuteclito escolhe para designar a loacutegica do loacutegos

Essa loacutegica da linguagem denominada harmonia resume-se num movimento antiteacutetico A harmonia consiste em conjugar contraacuterios Essa accedilatildeo entretanto jaacute estaacute sendo sempre realizada pelo loacutegos uma vez que natildeo se movimenta consoante nenhum outro modo A vida eacute um jogo de tensotildees em que o que haacute e existe eacute sempre a tensatildeo mesma a luta dos antagocircnicos como se numa luta de boxe natildeo pudeacutessemos vislumbrar a possibilidade de os lutadores dirigirem-se ao coacuterner mantendo-se tatildeo atrelados entre si a ponto de confundirem-se num soacute Os poacutelos antiteacuteticos natildeo possuem no fundo existecircncia autocircnoma na medida em que natildeo

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teriam como se qualificar como tais se natildeo fosse o seu opositor E vice-versa Sendo assim eacute a justiccedila e a justeza do pensamento que reconhecem um e outro poacutelo e a sua dualidade mas o que se daacute eacute tatildeo-somente a proacutepria tensatildeo a luta Por isso afirma Heraacuteclito que a justiccedila separa e a guerra une ldquoeacute necessaacuterio saber que a guerra eacute comum e a justiccedila discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidaderdquo7 A guerra eacute da ordem do comum ou seja da mesma ordem da linguagem sendo universal e onipresente como o loacutegos Com efeito harmonia natildeo eacute a uacutenica palavra com que Heraacuteclito batiza a loacutegica do loacutegos a guerra eacute a outra sendo sua sinocircnima Todos os fenocircmenos da realidade encontram-se em perpeacutetuo estado de guerra em permanente estado de harmonia Quer-se dizer com isso que o sentido das oposiccedilotildees antiteacuteticas em Heraacuteclito natildeo eacute a oposiccedilatildeo mesma mas a composiccedilatildeo Natildeo estamos consequumlentemente diante de dicotomias e dualismos auto-excludentes pelo contraacuterio satildeo mutuamente includentes mas para que essa composiccedilatildeo se decirc eacute preciso que duelem como se opostos fossem Opostos compostos eis a harmonia e a guerra Qualquer fenocircmeno da natureza encontra-se sob a forccedila e o rigor dessa tensatildeo seja a gravidade jaacute aqui aludida seja tambeacutem e por exemplo um fenocircmeno simples como a chuva haacute sempre uma guerra um jogo de forccedilas haacute sempre a harmonia de contraacuterios propiciando o proacuteprio fenocircmeno E onde estaratildeo os contraacuterios mesmos No proacuteprio jogo na proacutepria luta Natildeo se datildeo jamais isoladamente apartados natildeo tecircm realidade alguma

Eacute ceacutelebre a legenda relatada pelos antigos sobre o desdeacutem de Heraacuteclito ao ouvir certa vez a passagem da Iliacuteada em que Homero lastima haver a discoacuterdia entre os deuses causa e motivo da guerra entre os homens Ao ouvir esse trecho do hino homeacuterico Heraacuteclito teria balanccedilado a cabeccedila e dito que se o desejo de Homero se cumprisse o mundo simplesmente desapareceria Afinal a concoacuterdia desejada por Homero natildeo poderia ser assim qualificada se natildeo fosse a discoacuterdia e da mesma forma a justiccedila

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pela injusticcedila ldquonatildeo teriam retido o nome da justiccedila se essas coisas natildeo fossemrdquo8 Um tal desaparecimento corromperia a estrutura da proacutepria realidade desmanchando-a Efetivamente como pode haver por exemplo a unidade sem a multiplicidade Ou ainda como algueacutem pode se concentrar sem ao mesmo tempo se distrair Como enfim separar o andar e o passo Os opostos copertencem-se inextrincavelemente Eacute como se Heraacuteclito nos quisesse dizer que todo toque que a vida imprime realiza-o atraveacutes de uma dupla impressatildeo digital A harmonia eacute portanto um paradoxo e o paradoxo a uacutenica ideacuteia capaz de traduzir a complexa realidade dos entes ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes a mais bela harmoniardquo9 Assim embora distintos os opostos natildeo se apartam jamais resumem-se num mesmo ato Num mesmo ato e constituindo um mesmo ldquoespaccedilordquo de guerra conjugam-se harmonicamente ser e devir o uno e o muacuteltiplo vida e morte ldquoo nome do arco vida sua obra morterdquo10 Na tensatildeo do arco armado em sua corda uma e a mesma vibram vida e morte simultaneamente

Natildeo se trata de um mero jogo de palavras mas sim de uma compreensatildeo do que seja a phyacutesis do que seja enfim o comportamento que ela denuncia por seu loacutegos um jogo de forccedilas contiacutenuo que confere ao koacutesmos o seu equiliacutebrio Esse equiliacutebrio contudo natildeo eacute estaacutetico eacute dinacircmico daiacute seu modo de ser caracterizar-se pelo movimento O movimento resulta justamente da anteposiccedilatildeo origina-se das forccedilas que contrapondo-se provocam-se mutuamente gerando-o Entende-se por que Heraacuteclito escolhe uma palavra para designar a ideia de igualdade entre forccedilas em oposiccedilatildeo que significa original e etimologicamente tensatildeo forccedila e mesmo violecircncia Sim esses satildeo os significados primeiros da palavra ldquoharmoniardquo em grego Como explicar entatildeo ter passado a significar historicamente um apaziguamento um momento de equiliacutebrio e sossego Diria Heraacuteclito que soacute haacute equiliacutebrio entre dois exeacutercitos de mesma forccedila

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e intensidade Eacute como pensar a brincadeira do cabo de guerra quando praticado por dois grupos que detendo a mesmiacutessima forccedila forcejam entretanto para lados opostos Um observador fixando o seu olhar sobre a corda nada notaraacute a natildeo ser a proacutepria ausecircncia de movimento Mas se tocaacute-la sentiraacute ressoar por toda a extensatildeo da corda a comunhatildeo das forccedilas antagocircnicas o calibre da tensatildeo que promovem A forccedila desse ressoar a intensidade com que a corda vibra denomina-se harmonia Alimenta-se portanto sempre de forccedilas contraacuterias e equivalentes conjugando-as naquilo que por fim estabelece o equiliacutebrio dinacircmico do koacutesmos Eis aqui compreendida desde a sua raiz por que Heraacuteclito eacute um mobilista convicto sem cair todavia na esparrela de que soacute haacute movimento como pretenderam alguns de seus inteacuterpretes Se assim fosse incorreria no mesmo equiacutevoco que acusa em Homero ao querer nulificar a discoacuterdia o que retiraria do koacutesmos o seu equiliacutebrio proacuteprio a sua harmonia Da mesma forma o movimento compotildee-se com o natildeo-movimento alimentando uma das tensotildees que por sinal satildeo das mais fundamentais em sua filosofia que poderia ser assim resumida lsquotudo no mundo eacute movimento menos esta regrarsquo Ou de outra forma lsquoo uacutenico aspecto imutaacutevel e imoacutevel do koacutesmos eacute que tudo muda e se movimenta permanentementersquo Vecirc-se entatildeo que ocorre harmonia quando os antagocircnicos em luta natildeo conseguem se superar Eacute este por sinal o estado de natureza de todas as coisas e entes que satildeo e deveacutem no koacutesmos uma contiacutenua e equilibrada luta entre exeacutercitos de mesma grandeza que uma vez mais paradoxalmente ao anularem-se pela sua igualdade promovem a intensidade da vida

Eis entatildeo exposta a gramaacutetica que rege a linguagem de tudo Para Heraacuteclito ela se resume na harmonia que define desde dentro o caraacuteter de todas as coisas Trata-se pois de uma tensatildeo imanente a todo fenocircmeno a todo ente Assim como natildeo se escapa agrave linguagem tambeacutem natildeo se escapa agrave harmonia11 sua estrutura ldquoconjunccedilotildees completas e natildeo-completas convergente

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e divergente consonante e dissonante e de todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo12

A citaccedilatildeo a este uacuteltimo fragmento lembra-me de perguntar se toda essa concepccedilatildeo de harmonia pode ter influenciado a migraccedilatildeo deste conceito para o acircmbito da teoria musical A resposta a essa pergunta me parece claramente positiva muito embora o modo e as circunstacircncias dessa migraccedilatildeo pareccedilam por outro lado complexas e nada faacuteceis de sondar Em todo caso eacute bom notar que ao menos por duas vezes Heraacuteclito exemplifica a sua ideacuteia de harmonia utilizando-se de elementos pertencentes ao mundo musical Uma delas na citaccedilatildeo acima mencionando a harmonia da contradiccedilatildeo consonante-dissonante a outra delas ao opor arco e lira como siacutembolos da oposiccedilatildeo na vida humana entre alegria e dor o instrumento musical pontua aqui como alusivo agrave graccedila ao prazer e ao aspecto luacutedico da existecircncia enquanto o arco artefato de guerra remete agrave porccedilatildeo brutal violenta e dolorosa dessa mesma existecircncia Uma vez mais que vida poderia pender para apenas um desses lados Quando apreciamos o sabor da vida sentimo-lo agridoce a um soacute tempo ldquoignoram como o divergente consigo mesmo concorda harmonia de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo13 Seria interessante pensar igualmente na composiccedilatildeo una e antiteacutetica entre som e imagem como as duas formas fundamentais da esteacutetica e da sensibilidade o que se estende ao homem na composiccedilatildeo audiccedilatildeo-visatildeo Decerto som e imagem no domiacutenio da natureza e muacutesica e artes plaacutesticas nas artes humanas comporiam respectivamente a totalidade esteacutetica do koacutesmos propriamente dito e do koacutesmos artiacutestico ou artificial realizado pelo homem Eacute sem duacutevida um paralelo pertinente que ajuda a estimar a influecircncia da ideacuteia de harmonia heracliacutetica junto agrave histoacuteria posterior do uso deste conceito na muacutesica porque efetivamente se a harmonia diz respeito agrave proacutepria estrutura comportamental da phyacutesis e da sua linguagem revelando-se em todo e qualquer ente essa harmonia natildeo estaria

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ausente no sistema da muacutesica em que a conjugaccedilatildeo de notas e demais elementos reproduziriam por analogia o mesmo caraacuteter koacutesmico De fato os dois fragmentos citados acima traccedilam jaacute esse paralelo o de uma harmonia koacutesmica que se verifica por correspondecircncia no universo da muacutesica Esse paralelismo entre um macrocosmo universal e um microcosmo musical veio a ser um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento grego em termos de teorias sobre a muacutesica o que vemos por exemplo na equivalecircncia que observamos entre as teorias cosmograacuteficas e musicais de Ptolomeu ou mesmo Aristoacutexeno o que pode apontar para a decisiva e seminal influecircncia de Heraacuteclito nesse campo

Consequumlentemente segundo a compreensatildeo de Heraacuteclito a vida e o mundo satildeo um discurso em contiacutenuo movimento um andamento do ser ndash o devir ndash que ao instaurar-se como a linguagem da phyacutesis natildeo soacute natildeo pode deixar de ser ouvida como deve ser ouvida Se a natureza fala o homem natildeo pode deixar de ouvi-la mas pode ouvi-la desde a sua surdez caracterizando assim uma escuta deficiente

Desse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo14

Ouvir o loacutegos desde uma audiecircncia precaacuteria eacute possibilidade que parece estar aberta apenas ao homem Significa afirmar ainda que apenas o homem eacute capaz de corromper a harmonia constitutiva de todos os eventos e fenocircmenos do koacutesmos Essa possibilidade abre-se-lhe justamente por ser o uacutenico ente a quem natildeo soacute eacute possiacutevel obter uma compreensatildeo ou leitura acerca da realidade

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a que estaacute submetido ndash bem como da sua proacutepria existecircncia ndash assim como se encontra obrigado a possuir essa compreensatildeo O pensamento e a possibilidade de conhecer fazem dele o animal que se vecirc condenado a interpretar o que se passa ao seu redor e consigo mesmo e uma vez sendo um inteacuterprete irrecusaacutevel da natureza torna-se fadado ao erro e agrave erracircncia agrave desarmonia Cabe aqui recuperar aqueles dois momentos mencionados anteriormente se a apreensatildeo da linguagem por parte do homem natildeo eacute da ordem de suas decisotildees voluntaacuterias visto que os seus sentidos a colhem esteticamente a sua irremissiacutevel condiccedilatildeo de inteacuterprete faz com que escolha o significado que empresta a todo e qualquer fenocircmeno que lhe suceda ou presencie resultando daiacute tanto a possibilidade do acerto e do erro da harmonia e da desarmonia como tambeacutem de uma escuta e de uma atitude consonantes ou dissonantes diante da muacutesica do mundo O homem vem a ser portanto o ente que habita extremos um verdadeiro acumulador de paradoxos e contradiccedilotildees por viver constantemente submetido ao perde-e-ganha que se impotildee a partir de sua singular condiccedilatildeo na ordem do koacutesmos ldquoignorantes ouvindo parecem surdos o dito lhes atesta presentes estatildeo ausentesrdquo15

Pelo mesmo motivo disse certa vez Wittgenstein que agrave diferenccedila do homem o catildeo natildeo pode mentir mas tambeacutem natildeo pode ser sincero Essa amplitude de vida a extensatildeo de um arco tatildeo amplo de existecircncia parece ser a caracteriacutestica mais decisiva do humano Eacute ele quem aberto ao ouvir o loacutegos pode desviar do que lhe eacute transmitido e isto por ser justamente aquele a quem pertence a possibilidade do conhecimento

Em contraposiccedilatildeo a essa surdez provavelmente majoritaacuteria dentre os homens visto haver como menciona Aristoacuteteles em sua Eacutetica a Nicocircmaco incontaacuteveis possibilidades de viacutecio e apenas um ponto de excelecircncia a cada caso e a cada vez ndash o que faz do acerto algo finito e do erro infinito16 ndash ergue-se a possibilidade da homologiacutea que significa literalmente lsquodizer o mesmo que o

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loacutegos dizrsquo A homologiacutea representa para o homem a possibilidade estreita e exata de concordacircncia entre o seu loacutegos contingente e o loacutegos comum e universal o discurso da phyacutesis Quando ocorre forma-se a harmonia a concordacircncia entre esses dois gecircneros distintos de linguagem numa possivelmente rara situaccedilatildeo de coincidecircncia entre ambos A essa possibilidade Heraacuteclito chama sabedoria e afirma dever ser esse o ideal de orientaccedilatildeo do homem em geral e do filoacutesofo em particular ldquoouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo17

Quando se alude portanto ao ldquodeverrdquo ouvir o loacutegos menciona-se entatildeo a ideacuteia de uma obediecircncia uma tentativa de ouvir afinada e unissonamente ao que eacute dito configurando assim a atitude de escuta que Heraacuteclito denomina homologiacutea Por outro lado se o homem indolente e distraiacutedo natildeo se empenha por reconhecer o que esse discurso mostra e diz a sua escuta assim como todos os seus demais sentidos funcionaratildeo para ele como um veiacuteculo de afastamento e desorientaccedilatildeo ldquopara homens que tecircm almas baacuterbaras olhos e ouvidos satildeo maacutes testemunhasrdquo18 e da mesma forma ldquonatildeo sabendo ouvir natildeo sabem falarrdquo19 Conforma-se assim um espectro de audiccedilatildeo humana que guarda incontaacuteveis possibilidades desde a mais absoluta ldquosurdezrdquo ateacute a homologiacutea Cada um dos pontos desse amplo espectro eacute determinado pelo modo mais ou menos afinado e desafinado com que ouvimos o loacutegos Eacute esse modo que define o nosso daiacutemon o modo da nossa escuta determina o que cada um de noacutes eacute20 Entende-se por fim a partir dessa relaccedilatildeo entre ldquoo que se ouverdquo e ldquocomo se ouverdquo qual seja o lugar o ecircthos do homem posto que se ouvir lhe eacute irremissiacutevel e comum a todos os homens o modo da sua audiccedilatildeo eacute inevitavelmente particular variando a cada instante hora e segundo A cada evento dessa tensa relaccedilatildeo entre o loacutegos humano e o loacutegos da phyacutesis o homem finca todo o seu ser na posiccedilatildeo a que eacute arremessado consoante a eficiecircncia ou deficiecircncia da sua audiccedilatildeo aproximando-se ou afastando-se do loacutegos Por isso diz

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Heraacuteclito que o ecircthos do homem eacute o daiacutemon21 A cada homem pertence portanto um daiacutemon especiacutefico a construccedilatildeo singular de atitude pensamento e caraacuteter que empreende a partir do que colhe do loacutegos e do que escolhe como sentido de interpretaccedilatildeo para esse colher O daiacutemon define por extensatildeo o que cada um de noacutes efetivamente eacute e por sua vez ele vem a ser definido pela nossa escuta Conclui-se assim que o homem eacute aquilo que ele ouve Sua grandeza ou sua pequenez sua harmonia ou desarmonia em relaccedilatildeo agrave linguagem do real e agrave afinada ldquomuacutesicardquo do koacutesmos seratildeo decididos pela sua escuta Entre um extremo e outro Heraacuteclito decide-se pela possibilidade de homologiacutea e consonacircncia posto que quanto mais se aproxima da concordacircncia com o loacutegos mais favorece a sua proacutepria condiccedilatildeo e natureza mais intensa e feliz a sua vida ldquobem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo22

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Notas1 Fala de Soacutecrates no Filebo de Platatildeo

2 A numeraccedilatildeo dos fragmentos de Heraacuteclito remonta aos filoacutelogos alematildees Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960) Todas as citaccedilotildees aos fragmentos de Heraacuteclito presentes neste ensaio referem-se agrave minha tradu-ccedilatildeo desses mesmos fragmentos publicada em COSTA Alexandre Heraacuteclito fragmentos contextualizados Rio de Janeiro Difel 2002

3 Fragmento 55

4 Fragmento 2

5 Os Fragmentos 31 e 108 oferecem bons exemplos dessa polissemia jaacute em meio ao corpus heracliacutetico

6 Sobre andamento e ritmo eacute curioso observar como Heraacuteclito sempre emprega os verbos associados ao loacutegos na forma do particiacutepio-presente grego forma anaacuteloga ao nosso geruacutendio O tempo que indica o ser do loacutegos natildeo eacute um ldquoeacuterdquo mas um ldquosendordquo Com isso Heraacuteclito expotildee o modo e o caraacuteter do seu movi-mento o geruacutendio que aponta portanto o modo e o caraacuteter de todo e qualquer movimento da natureza Tambeacutem isto natildeo se altera nem se contradiz sendo o movimento dessa linguagem um movimento possuidor de uma cadecircncia e ritmo caracteriacutesticos

7 Fragmento 80

8 Ou seja as coisas injustas Fragmento 23

9 Fragmento 8

10 Fragmento 48

11 Cf Fragmento 16

12 Fragmento 10

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13 Fragmento 51 Uma mesma remissatildeo a essa composiccedilatildeo harmocircnica pra-zer-dor encontra-se exposta no Fragmento 15 em que Heraacuteclito se serve dos deuses Hades e Dioniso para aludir a essa mesma relaccedilatildeo alegria-tristeza ou mesmo vida-morte atraveacutes dessas figuras divinas ldquose natildeo fosse para Dioniso a procissatildeo que fazem e o hino que entoam com as vergonhas realizariam a coisa mais vergonhosaraquo afirma Heraacuteclito laquomas eacute o mesmo Hades e Dioniso a quem deliram e festejam [nas Leneacuteias]rdquo

14 Fragmento 1

15 Fragmento 34

16 No caso especiacutefico de Heraacuteclito pululam os exemplos a respeito dessa des-proporccedilatildeo expondo a ideacuteia de que o erro e a natildeo-homologiacutea satildeo muito mais recorrentes do que a possibilidade homoloacutegica Ver por exemplo Fragmentos 2 17 34 96 104 108 117 e 125a dentre tantos outros que poderiam ser aqui mencionados

17 Fragmento 50

18 Fragmento 117

19 Fragmento 19

20 Eacute geralmente difiacutecil a tarefa de compreender o que significa daiacutemon Repito aqui algumas consideraccedilotildees jaacute feitas por mim em publicaccedilotildees anteriores ldquoOp-tei por natildeo traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais proacuteprio no tocante ao pensamento de Heraacuteclito As usuais tra-duccedilotildees por ldquodivindaderdquo e ldquonumerdquo ou mesmo por ldquodestinordquo por exemplo con-sidero mais tolhedoras do que reveladoras pois muito embora sejam formal-mente corretas natildeo parecem dar conta da abrangecircncia da palavra A associaccedilatildeo entre o verbo ldquoouvirrdquo e o termo daiacutemon eacute bastante recorrente na liacutengua grega em todas as suas diversas eacutepocas Na Apologia Platatildeo apresenta um Soacutecrates que ouve o daiacutemon constantemente minus para Soacutecrates o daiacutemon eacute audiacutevel Em periacuteodos mais tardios os gnoacutesticos cristatildeos concebiam o daiacutemon como a voz interna do homem aquela que antes de tudo deve ser ouvida Ainda mais tar-diamente a cristandade de liacutengua grega designava como daiacutemon os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao peacute do ouvido Vecirc-se que atraveacutes das mais distintas eacutepocas a despeito do que venha a ser o daiacutemon propriamente dito o termo manteve-se ladeado pelo fenocircmeno da escuta O daiacutemon podia ser pensado como a proacutepria divindade o destino o nume o gecircnio o conselho

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dos anjos a voz interior o espiacuterito o democircnio o que fosse isto variou O que natildeo se alterou eacute que em cada momento o que quer que fosse o daiacutemon ele esteve sempre associado agrave escuta Seria entatildeo uma mera coincidecircncia o fato de a palavra daiacutemon em Heraacuteclito tambeacutem estar ladeada pelo verbo ldquoouvirrdquo justamente na obra de um autor em que a escuta eacute uma questatildeo filosoficamente primordial Isso comprova que o daiacutemon sobretudo no acircmbito do pensamento heracliacutetico eacute acima de qualquer identificaccedilatildeo ou definiccedilatildeo tatildeo cabal quanto empobrecedora como se ouve aquilo que se ouve Por outro lado sabemos que em Heraacuteclito o que se ouve eacute o loacutegos Isso torna absolutamente legiacutetimas as seguintes versotildees para os dois fragmentos em questatildeo [Fragmentos 79 e 119] ldquoDiante do loacutegos o homem ouve infantil como diante do homem a crianccedilardquo e ldquoO ecircthos do homem a escutardquo Atraveacutes do segundo teriacuteamos entatildeo a confirmaccedilatildeo () de que a escuta define o ecircthos humano assim como o modo da escuta define como o homem se comporta dentro dos limites desse ecircthos No outro fragmento teriacuteamos uma vez mais uma alusatildeo ao fato de o homem estar diante do loacutegos e com ele conviver escutando-o muito embora ouccedila-o no mais das vezes de forma inadequada o que eacute ilustrado pelo adjetivo ldquoin-fantilrdquo e pela comparaccedilatildeo com a crianccedila a crianccedila ouve o homem mas natildeo o compreende assim como o homem ouve o loacutegos sem entendecirc-lordquo COSTA A Opcit pp 230-231

21 Fragmento 119 ldquoo eacutethos do homem o daiacutemonrdquo

22 Fragmento 112

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Notaccedilatildeo interpretativa invenccedilatildeo e descoberta

Por Edson Zampronha(Professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de

Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha)

Charles Seeger separa as notaccedilotildees musicais em prescritivas e descritivas (Seeger 1977) No entanto em certo momento de minhas investigaccedilotildees verifiquei que um conjunto de aspectos presentes em certas partituras natildeo se encaixavam nesta tradicional classificaccedilatildeo Depois de realizar um cuidadoso estudo pude constatar que de fato existia um terceiro tipo que por suas caracteriacutesticas resolvi denominar interpretativo

O que eacute e quais consequumlecircncias traz a inclusatildeo deste novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa De que forma ele pode ter uma aplicaccedilatildeo praacutetica na muacutesica Que questotildees este novo tipo apresenta que termina por promover um dialogo com a filosofia e cujo resultado eacute a abertura de novas possibilidades de sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica

Este novo tipo interpretativo eacute de fato uma lente que permite enxergar coisas que antes natildeo se via especialmente no que se refere ao modo como se relacionam pensamento composicional e notaccedilatildeo musical (ou mais amplamente sistemas de representaccedilatildeo) O feacutertil ponto de contato que a notaccedilatildeo interpretativa estabelece com a filosofia ilustra como uma classificaccedilatildeo aparentemente teacutecnico-musical quando conectada em profundidade com o conceito de representaccedilatildeo na verdade amplifica ainda mais este novo olhar sobre as coisas e possibilita outras aplicaccedilotildees praacuteticas originais

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Apresento a seguir a classificaccedilatildeo de Seeger que separa as notaccedilotildees em prescritivas e descritivas Em seguida explico em que consiste o que denominei notaccedilatildeo interpretativa Ilustro como esta nova classificaccedilatildeo pode ser aplicada na praacutetica analisando um fragmento de uma obra de Olivier Messiaen Finalmente realizo uma incursatildeo dentro do contexto filosoacutefico observando as notaccedilotildees musicais como fenocircmenos de representaccedilatildeo e extraio daiacute consequumlecircncias que podem novamente ser aplicadas agrave muacutesica

Notaccedilotildees Prescritivas e Descritivas

Segundo Seeger (1977) a notaccedilatildeo prescritiva eacute ldquoum esquema de como um trecho musical especiacutefico deve ser realizado para soarrdquo Jaacute a notaccedilatildeo descritiva eacute ldquoum registro de como uma performance especiacutefica de uma muacutesica realmente soa Como pude demonstrar em outra oportunidade (Zampronha 2000 p55)

a notaccedilatildeo prescritiva diz ao inteacuterprete quais accedilotildees ele deve tomar frente ao seu instrumento para produzir a muacutesica O resultado sonoro seraacute uma decorrecircncia de tais accedilotildees Jaacute a notaccedilatildeo descritiva diz qual o resultado sonoro desejado sem indicar ao inteacuterprete como deve tocar seu instrumento para produzir tal resultado

A maior parte das notaccedilotildees eacute um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva Haacute casos interessantes nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas aparecem simultaneamente em uma partitura separadas uma da outra com o objetivo de uma muacutetua complementaccedilatildeo (o que demonstra que natildeo satildeo excludentes) A notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais em um violino por exemplo pode ser realizada da seguinte maneira

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Figura 1 - Notaccedilatildeo de harmocircnicos artificiais para instrumentos de cordas

Nesta notaccedilatildeo o doacute grave e o faacute em losango compotildeem uma notaccedilatildeo prescritiva e o doacute agudo entre parecircntesis eacute uma notaccedilatildeo descritiva A parte prescritiva da notaccedilatildeo indica que deve-se pressionar a corda na posiccedilatildeo do doacute central e simultaneamente deve-se tocar levemente a nota faacute na mesma corda de modo a obter-se um harmocircnico No entanto o resultado sonoro natildeo eacute nenhuma destas duas notas O que realmente soa eacute o doacute que estaacute entre parecircntesis Este doacute entre parecircntesis que nem sempre aparece escrito nas notaccedilotildees descreve o resultado sonoro que se quer obter e geralmente eacute inserido para evitar eventuais duacutevidas

Embora a maior parte das notaccedilotildees seja um misto de notaccedilatildeo prescritiva e descritiva eacute possiacutevel encontrar casos limites nos quais um tipo eacute claramente predominante com relaccedilatildeo ao outro Exemplos nos quais notaccedilotildees prescritivas e descritivas tendem a aproximar-se de casos limites satildeo os seguintes

Figura 2 - Tablatura italiana para alauacutede de Petrucci Veneza 1507 (Apel 1942 p63) Reproduccedilatildeo parcial

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Na tablatura para alauacutede a notaccedilatildeo eacute praticamente soacute prescritiva As linhas horizontais representam as cordas do instrumento os nuacutemeros indicam em que casa cada corda deve ser pressionada e os sinais de colcheia e semicolcheia satildeo indicaccedilotildees riacutetmicas A prioridade eacute indicar a digitaccedilatildeo do instrumento mais que o resultado sonoro que pode ser muito diferente em funccedilatildeo da afinaccedilatildeo utilizada para cada corda

Figura 3 - Notaccedilatildeo no modelo de St Gall seacuteculo IX proveniente de Mainz ndash manuscrito GB-Lbm 19768 FF18v-19r (Bent et alii 1980 p352)

A notaccedilatildeo de St Gall ao contrario eacute praticamente soacute descritiva A notaccedilatildeo acima do texto descreve movimentos meloacutedicos e a notaccedilatildeo na margem direita representa os movimentos meloacutedicos acrescidos de informaccedilotildees riacutetmicas (formando o que se denomina neumas compostos) No entanto natildeo prescreve os intervalos dos movimentos meloacutedicos nem prescreve exatamente (do ponto de vista atual) os movimentos riacutetmicos Descreve essencialmente os movimentos meloacutedicos como um todo sem discriminar os intervalos que compotildeem estes movimentos

Estes exemplos satildeo reveladores as notaccedilotildees prescritivas e descritivas quando se aproximam dos casos limites isto eacute dos casos em que satildeo praticamente soacute descritivas ou praticamente soacute prescritivas parecem incompletas Uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente prescritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre

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o resultado sonoro que se quer obter Por outro lado uma notaccedilatildeo que tende a ser puramente descritiva deixa de dar informaccedilotildees importantes sobre como deve ser executada para que se obtenha o resultado descrito Prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo se complementam mutuamente na maior parte dos casos podendo chegar a ser inseparaacuteveis Por esta razatildeo entendo que a classificaccedilatildeo de Seeger se refere mais a aspectos que os signos da notaccedilatildeo musical podem assumir e menos a classes excludentes e individualizaacuteveis

e InterpretativasMas vejamos agora o seguinte caso extraiacutedo da Sonata

em Laacute menor K 310 de Mozart

Figura 4 - W Mozart Sonata em Laacute menor K 310 compassos 56-58

Esta partitura eacute para piano No primeiro compasso deste segmento aparece um acorde de doacute maior com seacutetima menor isto eacute do-mi-sol-si bemol No segundo compasso a nota si bemol agora aparece escrita como laacute sustenido e forma o acorde do-mi-sol-la sustenido No entanto as notas laacute sustenido e si bemol se referem exatamente agrave mesma tecla no instrumento portanto o som destas notas eacute exatamente o mesmo1

Considerando que esta eacute uma obra para piano escrever uma nota como laacute sustenido ou si bemol significa exatamente a mesma accedilatildeo no instrumento do ponto de vista prescritivo jaacute que a tecla a ser acionada pelo inteacuterprete eacute a mesma Do ponto de vista descritivo as duas notas representam um mesmo som jaacute que o som produzido pela tecla eacute tambeacutem exatamente o mesmo

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Portanto esta diferenccedila na grafia natildeo se justifica nem porque descreve sons diferentes nem porque prescreve accedilotildees diferentes mas sim porque interpreta de modo diferente uma mesma accedilatildeo no instrumento e um mesmo resultado sonoro Esta interpretaccedilatildeo que a notaccedilatildeo revela ao escrever uma nota de uma maneira ou de outra torna compreensiacutevel o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo da obra neste trecho Daiacute haver optado dar o nome interpretativo para este aspecto peculiar da notaccedilatildeo musical

Se a notaccedilatildeo musical se limitasse a descrever sons e prescrever accedilotildees no instrumento esta mudanccedila de si bemol a laacute sustenido seria indiferente De fato natildeo seria necessaacuterio sequer realizar esta mudanccedila e poderiacuteamos manter o si bemol durante todo este segmento No entanto esta mudanccedila natildeo eacute indiferente do ponto de vista do modo como se desenvolve o pensamento composicional nesta obra e eacute justamente isso o que torna esta informaccedilatildeo interpretativa de grande relevacircncia Ao interpretar esta nota como laacute sustenido e natildeo como si bemol a partitura termina por revelar o pensamento do compositor tornando-se uma marca de seu processo criativo e de seu procedimento construtivo Mesmo em um exemplo simples como este eacute possiacutevel observar o quanto o aspecto interpretativo da notaccedilatildeo natildeo se confunde com os aspectos descritivo e prescritivo

Outros exemplos podem ser tatildeo simples como as ligaduras de frase que podem chegar a ter como funccedilatildeo exclusiva a segmentaccedilatildeo das frases musicais sem qualquer funccedilatildeo prescritiva ou descritiva De modo similar em corais de Bach as fermatas podem ter uma funccedilatildeo de pontuaccedilatildeo das frases e nos casos em que estas fermatas satildeo realizadas sem nenhum rallentando o aspecto interpretativo torna-se predominante O emprego de uma barra de colcheia para unir diversas notas pode indicar que as notas unidas por esta barra formam uma unidade Em certos casos a barra de colcheia pode diretamente substituir a ligadura de frase Em minha Modelagem X-a para vibrafone a maioria das

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barras de colcheia natildeo indicam ritmos Elas servem para agrupar notas em diferentes unidades No fragmento ilustrado na Figura 5 o primeiro grupo dura dois segundos e eacute uma improvisaccedilatildeo controlada segundo indicaccedilotildees da partitura O segundo grupo tem quatro notas que satildeo tocadas muito rapidamente (o mais raacutepido possiacutevel) O terceiro satildeo duas notas tocadas simultaneamente como uma apojatura e o quarto grupo tem dezessete notas tambeacutem tocadas muito rapidamente As respiraccedilotildees de frase indicadas por apoacutestrofes as dinacircmicas as distintas articulaccedilotildees a utilizaccedilatildeo de pedal de sustentaccedilatildeo e a mudanccedila de timbre resultante das trocas de baquetas (de Ratan para Hard Mallet) auxiliam a segmentaccedilatildeo dos grupos Estes grupos se tornam facilmente visualizaacuteveis por estarem unidos por barras de colcheia e a sucessatildeo destes grupos termina por formar uma ideacuteia musical mais ampla

Figura 5 - E Zampronha Modelagem X-a p3 Reproduccedilatildeo parcial

Podemos encontrar aspectos interpretativos em diversos outros signos da notaccedilatildeo musical sem correspondecircncia necessaacuteria seja com prescriccedilatildeo ou descriccedilatildeo Compassos com barras duplas podem referir-se agrave forma da obra uma partitura barroca com baixo cifrado linha meloacutedica e ornamentaccedilotildees separa as notas meloacutedicas estruturais das ornamentais sendo uma verdadeira anaacutelise das diferentes camadas sonoras envolvidas na obra a partitura de escuta2 de uma composiccedilatildeo eletroacuacutestica (ou uma partitura de execuccedilatildeo) pode realizar uma interpretaccedilatildeo visual dos objetos

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sonoros no que se refere agrave sua morfologia tessitura e tipologia No exemplo a seguir extraiacutedo de minha obra Recycling Collaging Sampling para percussatildeo e sons eletroacuacutesticos a representaccedilatildeo graacutefica dos sons eletroacuacutesticos eacute realizada diferenciando os objetos sonoros atraveacutes de suas morfologias e tessituras no registro agudo estatildeo representados objetos percussivos curtos e de frequumlecircncia difusa no meacutedio objetos em glissando e no meacutedio-grave objetos pontuais irregulares A notaccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos nesta obra eacute principalmente interpretativa e descritiva A prescriccedilatildeo estaacute praticamente limitada agraves indicaccedilotildees em segundo que informam o iniacutecio e o teacutermino deste segmento Satildeo portanto uma referecircncia para a sincronizaccedilatildeo da percussatildeo com os sons eletroacuacutesticos

Figura 6 - E Zampronha Recycling Collaging Sampling p14 Reproduccedilatildeo parcial

Uma aplicaccedilatildeo praacutetica

Quando se observa uma partitura a partir da perspectiva de uma notaccedilatildeo interpretativa aspectos aparentemente simples podem ser profundamente reveladores do pensamento composicional presente em uma obra e natildeo deveriam ser desprezados por sua aparente simplicidade O iniacutecio do Abime decircs Oiseaux que eacute o 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen estaacute escrito da seguinte maneira

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Figura 7 - Olivier Messiaen Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps fragmento inicial

Este segmento estaacute construiacutedo sobre a seguinte escala octatocircnica que na classificaccedilatildeo de Messiaen recebe o nome de segundo modo de transposiccedilatildeo limitada (Messiaen 1944 v1 p52)

Figura 8 - Segundo modo de transposiccedilatildeo limitada de O Messiaen (1944 v2 p52)

Esta escala divide a oitava de maneira simeacutetrica (semitom - tom ndash semitom ndash tom ndash semitom ndash etc) e por esta razatildeo em termos prescritivos e descritivos eacute indiferente se suas notas estatildeo escritas com sustenidos ou bemoacuteis3 O si bemol que estaacute escrito nesta escala bem que poderia ter sido escrito como laacute sustenido Aliaacutes quaisquer das notas desta escala poderiam ter sido escritas de uma ou outra forma Eacute indiferente

No entanto observa-se Messiaen eacute sistemaacutetico destes acidentes utilizando consistentemente bemoacuteis em certos momentos e sustenidos em outros Eacute portanto perfeitamente legiacutetimo perguntar se o fato de Messiaen escrever as notas sistematicamente ora de uma forma ora de outra pode revelar alguma informaccedilatildeo sobre seu pensamento composicional e eacute exatamente isto que seraacute buscado a seguir4

O aspecto interpretativo da notaccedilatildeo desta partitura revela

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um traccedilo muito importante da sofisticada estrutura que esta linha meloacutedica apresenta Os oito primeiros compassos deste segmento podem ser esquematizados nos graacuteficos que apresento a seguir Os compassos 3 4 e 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 Para que a apresentaccedilatildeo dos resultados desta anaacutelise seja mais simplificada esta ligeira variaccedilatildeo natildeo seraacute considerada

Figura 9 - Representaccedilatildeo esquemaacutetica das notas estruturais e prolongaccedilotildees dos oito primeiros compassos do Abime decircs Oiseaux 3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du

Temps de O Messiaen Os compassos 3 a 5 satildeo uma repeticcedilatildeo ligeiramente variada dos compassos 1 e 2 e natildeo estatildeo sendo considerados nestes graacuteficos

Nestes oito primeiros compassos o faacute eacute escrito com sustenido e todas as demais notas com acidentes satildeo escritas com bemoacuteis O relevante eacute que esta diferenccedila coincide de forma natildeo casual com a estrutura profunda deste segmento uma bordadura superior e outra inferior em torno da nota si bemol que satildeo realizadas sobre um pedal em faacute sustenido (Figura 9 graacutefico C) O graacutefico A mostra com detalhes como o faacute sustenido forma de fato um pedal que perpassa este trecho Neste mesmo graacutefico A vemos como as bordaduras prolongam a nota si bemol A bordadura superior parte da nota si bemol se dirige ao doacute o qual

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eacute prolongado com uma bordadura com o reacute bemol que por sua vez eacute tambeacutem prolongado por outra bordadura realizada com o mi bemol finalmente o mi bemol desce ao reacute bemol que desce ao doacute que finaliza seu movimento no si bemol Tratam-se de trecircs bordaduras uma dentro da outra (sib ndash doacute ndash sib doacute ndash reacuteb ndash doacute reacuteb ndash mib ndash reacuteb) Jaacute a bordadura inferior parte do si bemol se dirige ao laacute que em seguida desce ao sol o qual por sua vez retorna para o laacute formando uma nova bordadura no entanto esta mesma nota sol eacute prolongada por uma bordadura superior e inferior sol ndash laacute ndash faacute ndash sol que reproduz em pequena escala a estrutura de todo este segmento de oito compassos e vemos que nesta figura a nota faacute sustenido eacute puramente ornamental finalmente a nota laacute retorna ao si bemol Satildeo tambeacutem trecircs bordaduras uma dentro da outra No entanto neste caso a uacuteltima bordadura eacute superior e inferior (sib ndash laacute ndash sib laacute ndash sol ndash laacute sol ndash laacute ndash faacute ndash sol) O graacutefico B apresenta o prolongamento das bordaduras atraveacutes das notas laacute e doacute durante todo este fragmento e a permanecircncia da nota faacute sustenido O graacutefico C apresenta a siacutentese da bordadura em torno ao si bemol sobre o pedal de faacute nestes oito primeiro compassos

Observamos novamente a partitura de Messiaen ilustrada antes (Figura 7) podemos constatar que os compassos 9 e 10 os dois uacuteltimos da ilustraccedilatildeo incluem as notas doacute sustenido e reacute sustenido que antes haviam sido escritas respectivamente como reacute bemol e mi bemol E mais uma vez isso natildeo eacute indiferente Isso ocorre porque a nota mi torna-se estruturalmente importante e as notas doacute sustenido e reacute sustenido passam a ser notas de passagem que conduzem o movimento meloacutedico a este mi estrutural

Estas observaccedilotildees permitem afirmar que a notaccedilatildeo interpretativa

1 pode auxiliar a identificaccedilatildeo de quais satildeo as notas estruturais e ornamentais em segmentos musicais natildeo tonais e tambeacutem podem auxiliar a identificaccedilatildeo de perfis meloacutedicos e do modo como as notas que compotildeem estes perfis conectam-se entre si

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2 pode sugerir caminhos analiacuteticos originais No caso revelando que o pensamento composicional de Messiaen neste segmento eacute hieraacuterquico e que a estrutura desta hierarquia (no caso o prolongamento de uma nota por bordaduras que soam sobre um pedal) concorda com a forma como os aspectos interpretativos da notaccedilatildeo aparecem neste segmento De fato este eacute um exemplo do frequumlente uso de ornamentaccedilotildees complexas como recurso de prolongamento de uma nota ou acorde em obras natildeo tonais no seacuteculo XX e

3 pode auxiliar a observaccedilatildeo de estrateacutegias composicionais No caso do fragmento apresentado observa-se que embora Messiaen utilize uma escala octatocircnica a qual divide a oitava em partes iguais e portanto eacute uma escala natildeo-tonal o modo como a utiliza neste segmento eacute essencialmente diatocircnico Em outras palavras embora a soma total das notas forme a escala octatocircnica os movimentos meloacutedicos formam breves segmentos diatocircnicos (no caso deste fragmento possiacuteveis de explicar dentro da tonalidade de sol menor)

Finalmente tal como notaccedilatildeo prescritiva e descritiva podem ter seus casos limites a interpretativa pode ter como caso limite certos graacuteficos de anaacutelise musical como eacute o caso da anaacutelise schenkeriana5 por exemplo Os graacuteficos A B e C mencionados antes satildeo ilustraccedilotildees simples de anaacutelises deste tipo O resultado desta anaacutelise (que de fato eacute uma interpretaccedilatildeo realizada pela escuta com apoio da partitura) eacute uma interpretaccedilatildeo realizada atraveacutes do uso de signos musicais que satildeo praticamente todos tradicionais demonstrando o quando o potencial interpretativo da notaccedilatildeo tambeacutem pode ocupar o primeiro plano em detrimento dos demais

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A notaccedilatildeo musical enriquecida pela filosofia

A temaacutetica filosoacutefica que permeia o que foi mencionado ateacute o momento eacute a que se refere agrave noccedilatildeo de representaccedilatildeo6 Ao olhar a notaccedilatildeo musical como um sistema de representaccedilotildees ampliamos o horizonte desta reflexatildeo e obtemos um diversificado conjunto de constataccedilotildees que oferecem novas possibilidades para a muacutesica Para ser breve destaco as seguintes

a) Pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo Natildeo existe a muacutesica por um lado e o sistema de representaccedilatildeo (notaccedilatildeo musical) por outro Satildeo os sistemas de representaccedilatildeo que tornam possiacutevel que pensemos a proacutepria muacutesica

Poderiacuteamos imaginar que por um lado a muacutesica eacute pensada fora da notaccedilatildeo musical e que por outro a notaccedilatildeo eacute um sistema de representaccedilatildeo que simplesmente registra a muacutesica no papel no computador ou em outro suporte No entanto quando buscamos saber que meio eacute este no qual se pensa a muacutesica fora da notaccedilatildeo musical enfrentamos um problema complexo jaacute que para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio algum suporte que permita que seja pensada e este suporte natildeo pode ser outra coisa que um sistema de representaccedilatildeo

Podemos recordar mentalmente uma muacutesica e parece claro que esta memoacuteria eacute uma representaccedilatildeo mental da experiecircncia musical Podemos representar os sons a partir das causas que os geram ou simplesmente do modo como damos iniacutecio agrave sua geraccedilatildeo como eacute o caso do teclado de um piano de uma orquestra e todos seus instrumentos ou de segmentos sonoros representados visualmente em um monitor de um computador para serem acionados por mouse teclado dedo ou outro meio Tambeacutem podemos escutar um conjunto diversificado de sons e

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utilizar alguma propriedade comum para representaacute-los Este eacute o caso da nota musical a nota musical natildeo eacute um som Eacute a abstraccedilatildeo7 (representaccedilatildeo) de uma propriedade que nossa escuta detecta em certos sons e que possibilita representar uma coleccedilatildeo de sons muito diversificados atraveacutes dela Eacute tatildeo forte o poder de representaccedilotildees deste tipo que eacute possiacutevel construir sistemas musicais inteiros a partir delas e eacute possiacutevel que algueacutem se sinta tatildeo familiarizado com estas representaccedilotildees que finalmente se esqueccedila de que no fundo satildeo exatamente isto representaccedilotildees Estes satildeo alguns exemplos de formas de representaccedilatildeo na muacutesica Natildeo satildeo os uacutenicos casos e na praacutetica podem estar todos associados em uma rede complexa de representaccedilotildees

Se para pensar a muacutesica eacute necessaacuterio um sistema de representaccedilatildeo ao escrever uma muacutesica o sistema de representaccedilatildeo utilizado deve deixar algum rastro que evidencie que a muacutesica foi pensada dentro deste sistema e esta eacute exatamente uma das virtudes que oferece olhar a notaccedilatildeo musical por seu aspecto interpretativo jaacute que eacute capaz de detectar estes rastros Aleacutem disto a notaccedilatildeo interpretativa tem outra propriedade fascinante eacute ela que permite conectar as notaccedilotildees prescritivas e descritivas Como vimos antes estas notaccedilotildees natildeo se opotildeem elas frequumlentemente se complementam Mas sendo aspectos tatildeo diferentes da notaccedilatildeo como ocorre esta complementaccedilatildeo que dizer o que torna possiacutevel que se conectem Uma simples nota laacute escrita em uma partitura para piano prescreve parcialmente uma accedilatildeo no instrumento ao mesmo tempo que descreve algo do resultado buscado As informaccedilotildees satildeo incompletas jaacute que eacute possiacutevel tocar uma nota de distintas formas por mais precisa que seja a prescriccedilatildeo e eacute possiacutevel obter resultados sonoros diversos por mais detalhada que seja a descriccedilatildeo Eacute a notaccedilatildeo interpretativa que revela o pensamento composicional que efetivamente direciona o modo como deve ser tocada a nota (prescriccedilatildeo) para que um certo resultado seja obtido (descriccedilatildeo) Em outras palavras natildeo eacute suficiente realizar

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a accedilatildeo prescrita para obter o resultado descrito esta conexatildeo natildeo eacute automaacutetica Como os signos natildeo satildeo inteiramente precisos eacute a notaccedilatildeo interpretativa que conecta prescriccedilatildeo e descriccedilatildeo e daacute sentido a esta uniatildeo Ou dito de outra forma eacute a compreensatildeo deste sentido que efetivamente regula a relaccedilatildeo entre o modo de tocar e o resultado sonoro

b) Escrever uma muacutesica que foi pensada em um sistema de representaccedilatildeo diferente daquele que utilizamos para a notaccedilatildeo musical eacute um fenocircmeno de traduccedilatildeo com grande potencial criativo

Para pensar a muacutesica necessitamos um sistema de representaccedilotildees No entanto natildeo eacute necessaacuterio que este sistema seja o mesmo que utilizamos para escrever a muacutesica Considerando-se que cada sistema representa as propriedades do fenocircmeno musical de forma distinta no processo de traduccedilatildeo de um sistema a outro algumas propriedades podem ser atenuadas ou perdidas No entanto outras podem ser amplificadas ou criadas Um dos aspectos mais interessantes e reveladores e com grande potencial criativo ainda pouco explorado eacute que podemos pensar a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo distinto da notaccedilatildeo que utilizamos para escrever a muacutesica para propositalmente termos que realizar uma traduccedilatildeo agrave notaccedilatildeo musical daquilo que criamos em outro sistema Nesta traduccedilatildeo o pensamento musical pode crescer abrindo novas possibilidades de criaccedilatildeo musical e inclusive fazendo coexistir no resultado final uma muacutesica que foi propositalmente pensada em dois sistemas de representaccedilatildeo distintos natildeo necessariamente convergentes

Um exemplo simples (e parcialmente realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) poderia ser a construccedilatildeo de figuras simeacutetricas literalmente visiacuteveis no teclado do piano para a construccedilatildeo de desenhos meloacutedicos em uma obra Estas simetrias visiacuteveis no

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teclado podem desaparecer por completo quando satildeo escritas em um pentagrama tradicional No entanto o pentagrama tambeacutem eacute um sistema de representaccedilatildeo visual e permite construir outras relaccedilotildees de simetria que podem enriquecerdialogar com as possibilidades oferecidas pelo teclado Assim (e isto natildeo foi realizado no iniacutecio do seacuteculo XX) eacute possiacutevel buscar alguma configuraccedilatildeo que eacute simultaneamente simeacutetrica no teclado e no pentagrama e a partir daiacute produzir dois caminhos distintos de desenhos meloacutedicos motivados por dois sistemas de representaccedilatildeo diferentes com resultados esteacuteticos potencialmente muito ricos Este eacute somente um exemplo de traduccedilatildeo entre diversos outros e que busca despertar a atenccedilatildeo agraves ricas possibilidades criativas neste campo de especulaccedilatildeo ainda embrionaacuterio

c) A notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

Aqui toda a aparente neutralidade da notaccedilatildeo musical eacute abandonada em favor de sua natildeo neutralidade A notaccedilatildeo musical natildeo eacute neutra com relaccedilatildeo agravequilo que representa (Zampronha 2000) e se pensamos a muacutesica em um sistema de representaccedilatildeo nosso pensamento eacute de certa forma determinado por este sistema Uma flauta doce e um cravo entre outros satildeo exemplos conhecidos de instrumentos que apresentam limitaccedilotildees para realizar dinacircmicas embora sejam muito ricos para a realizaccedilatildeo de outros aspectos da muacutesica No entanto dada esta limitaccedilatildeo (que insisto natildeo eacute algo negativo mas sim uma caracteriacutestica idiomaacutetica destes instrumentos) ao concebermos uma muacutesica diretamente neles muito possivelmente nossos esforccedilos compositivos estaratildeo dirigidos menos agraves dinacircmicas que a outros aspectos da muacutesica que estes instrumentos realizam muito bem Neste sentido estes instrumentos determinam parte do processo compositivo Mas vamos supor que a muacutesica a ser composta seja para flauta doce

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e que tenha como inspiraccedilatildeo uma muacutesica vocal com diversas sutilezas de dinacircmica que a flauta doce natildeo eacute capaz de realizar Poderiacuteamos neste caso traduzir (como mencionado antes) certas propriedades do canto a certas propriedades que a flauta doce sim pode realizar Como a flauta doce tem uma dinacircmica que de grave a agudo vai do piano ao forte poderiacuteamos (como realiza Vivaldi) saltar de uma oitava a outra para conseguir dinacircmicas do tipo fortepiano Em termos praacuteticos o que deve soar piano eacute escrito no registro grave da flauta e aquilo que deve soar forte eacute escrito no registro agudo Outra possibilidade eacute deslocar as dinacircmicas para as articulaccedilotildees muito eficientes na flauta doce Ou ainda podemos utilizar os ornamentos como recursos que simulam em outro paracircmetro musical efeitos que a voz realiza e que se associam agrave dinacircmica Estes satildeo casos muito interessantes de transferecircncia nos quais um crescendo que a voz realiza (e a flauta doce natildeo) pode ser reinventado na flauta doce como um trinado que comeccedila lento e acelera progressivamente Casos similares ocorrem quando consideramos exclusivamente as notaccedilotildees musicais por exemplo quando um canto gregoriano originalmente escrito em notaccedilatildeo neumaacutetica eacute escrito em notaccedilatildeo tradicional ou quando a muacutesica contemporacircnea desloca os signos da notaccedilatildeo tradicional de suas funccedilotildees habituais para a obtenccedilatildeo de outros resultados que natildeo encontram correspondecircncia na escrita tradicional como eacute o caso do timbre Em todos estes casos os sistemas de representaccedilatildeo transformam (ou condicionam) o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica

O potencial de certos sistemas de representaccedilatildeo para transformar o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica eacute muito claro no caso da muacutesica eletroacuacutestica Considero que o estudo da composiccedilatildeo deveria ainda que por um curto periacuteodo incluir a experiecircncia de compor uma obra eletroacuacutestica porque neste meio aprendemos a pensar e a concretizar a muacutesica de uma forma distinta Ganhamos novas formas de abordagem do

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fenocircmeno sonoro e musical despertamos substancialmente nossa sensibilidade auditiva para outros aspectos do som e enriquecemos nossa paleta compositiva com novas ferramentas de composiccedilatildeo que a notaccedilatildeo tradicional natildeo eacute capaz de representar e manipular Trata-se de um pensar diferente que pode repercutir de forma muito criativa na muacutesica como eacute possiacutevel observar em exemplos histoacutericos como o de Gyoumlrgy Ligeti na deacutecada de 1950 ou mais recentes como eacute o caso da Muacutesica Espectral e diversas outras linhas de composiccedilatildeo atuais8

Consideraccedilotildees finais

Depois de ter apresentado a claacutessica separaccedilatildeo entre notaccedilotildees descritivas e prescritivas de Seeger este texto introduziu um novo tipo denominado notaccedilatildeo interpretativa No transcorrer deste texto foram realizadas diversas consideraccedilotildees sobre este novo tipo entre as quais que possibilita detectar o pensamento composicional que guia a construccedilatildeo de uma obra que possibilita detectar o modo como o pensamento musical se desenvolve dentro de um certo sistema de notaccedilatildeo musical ou de outro sistema de representaccedilatildeo que eacute traduzido agrave notaccedilatildeo musical e que esta notaccedilatildeo conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas em torno de um pensamento composicional especiacutefico

A aplicaccedilatildeo praacutetica das notaccedilotildees interpretativas foi realizada em um fragmento do iniacutecio do Abime decircs Oiseaux (3ordm movimento do Quatuor pour la Fin du Temps) de Olivier Messiaen Uma observaccedilatildeo da partitura a partir dos aspectos interpretativos da notaccedilatildeo desta obra revelou que este segmento utiliza uma escala octatocircnica (ou o segundo modo de transposiccedilatildeo limitada na classificaccedilatildeo de Messiaen) mas seu pensamento musical neste segmento eacute diatocircnico (simulando uma tonalidade de sol menor sobre um pedal de faacute sustenido) e elaborado sob a forma de bordaduras expandidas Eacute de fato a conjunccedilatildeo de

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uma escala natildeo-tonal (a escala octatocircnica) com movimentos diatocircnicos internos associados a teacutecnicas de expansatildeo meloacutedica tambeacutem convencionais que oferece a este segmento uma forma de construccedilatildeo original e muito especial

Finalmente a uma incursatildeo filosoacutefica realizada a partir da noccedilatildeo de representaccedilatildeo foi realizada a partir de trecircs afirmaccedilotildees Sinteticamente (a) pensamos a muacutesica sempre dentro de um sistema de representaccedilatildeo (b) podemos traduzir um sistema de representaccedilatildeo a outro e obter resultados criativos nesta traduccedilatildeo (c) a notaccedilatildeo transforma o modo como pensamos e concretizamos a muacutesica Esta incursatildeo filosoacutefica de fato oferece novas aplicaccedilotildees praacuteticas agrave muacutesica especialmente ferramentas de traduccedilatildeo de um sistema a outro cujo potencial criativo foi ilustrado Tambeacutem se observa que a notaccedilatildeo interpretativa eacute a que de fato conecta notaccedilotildees prescritivas e descritivas e esta conexatildeo toca levemente o complexo problema do sentido musical Observa-se tambeacutem como o uso de distintos sistemas de representaccedilatildeo possibilitam uma expansatildeo da paleta compositiva atraveacutes da vivecircncia do processo composicional em sistemas de representaccedilatildeo distintos daqueles com os quais temos mais familiaridade Essencialmente esta rica incursatildeo filosoacutefica se reflete na proacutepria muacutesica gerando ferramentas composicionais de grande interesse vias de construccedilatildeo musical ainda natildeo testadas plenamente e novos caminhos ainda natildeo trilhados agrave muacutesica atual Efetivamente trata-se de observar os grandes benefiacutecios que uma reflexatildeo de cunho interdisciplinar pode propiciar aprimorando e ampliando de forma significativa nossa visatildeo sobre a muacutesica

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Notas1 Na eacutepoca de Mozart o acorde de doacute maior com seacutetima menor (escrito com o si bemol) eacute considerado uma dissonacircncia cuja resoluccedilatildeo mais tiacutepica eacute em faacute mas quando escrito com laacute sustenido este acorde passa a ser uma sexta aumentada tambeacutem uma dissonacircncia que agora resolve com mais frequumlecircncia em si Esta transformaccedilatildeo de si bemol a laacute sustenido eacute favorecida pela introduccedilatildeo de um si bequadro na quarta semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso desenhando um movimento do ndash si ndash laacute (que de fato eacute um movimento diatocirc-nico) levando a entender a nota depois do si natural como um laacute sustenido o qual reforccedilado por uma mudanccedila de figuraccedilatildeo na matildeo direita conduziraacute ao acorde de si maior

2 Uma Partitura de Escuta eacute aquela na qual os eventos grafados servem para o estudo e anaacutelise da obra De fato a partitura em si mesma jaacute eacute uma anaacutelise da obra por separar os objetos sonoros em tipos distintos No entanto esta partitura pode transformar-se em Partitura de Execuccedilatildeo ao incluir novas in-formaccedilotildees (e eventualmente suprimir outras) se seu objetivo for o de oferecer indicaccedilotildees para sua interpretaccedilatildeo em concertos ou se seu objetivo for o de ser-vir de referecircncia para a sincronizaccedilatildeo de instrumentos que tocam ao vivo com sons eletroacuacutesticos Para uma visatildeo dos diferentes tipos de partituras usadas na muacutesica eletroacuacutestica ver Zampronha (2000 cap 2) Para um estudo de como diferentes partituras de execuccedilatildeo representam sons eletroacuacutesticos para que possam ser sincronizados com instrumentos ao vivo ver Zurita (2011)

3 A simetria de uma escala eacute uma das formas de atonalizaccedilatildeo existentes (outras duas formas satildeo a falsa-relaccedilatildeo e a anti-neutralizaccedilatildeo cf Zampronha 2009) Por causa desta simetria quaisquer das oito notas desta escala pode ser consi-derada sua fundamental o que equivale a dizer que estruturalmente esta escala natildeo possui uma fundamental A escala gira sobre si mesma e por natildeo haver uma nota fundamental que funcione como referecircncia suas notas natildeo possuem funccedilotildees definidas e podem ser escritas de uma maneira ou outra

4 Embora minha abordagem neste texto natildeo seja psicanaliacutetica a anaacutelise que apresento a seguir tem exatamente neste ponto uma conexatildeo muito interessan-te com o texto ldquoFilosofia Psicanaacutelise Muacutesica ndash Tema e variaccedilotildeesrdquo da Profa Dra Maria de Lourdes Sekeff incluiacutedo neste volume De fato o que denomino

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notaccedilatildeo interpretativa talvez natildeo seja senatildeo uma das formas atraveacutes das quais se expressa aquilo que a Profa Sekeff explica Recomendo vivamente a leitura de seu texto jaacute que a excelente abordagem psicanaliacutetica que realiza revela por um vieacutes muito original e pertinente porque aquilo que comento natildeo eacute pura casualidade e porque de fato expressa um pensamento (possivelmente incons-ciente) do compositor

5 Existem muitas referecircncias sobre a anaacutelise schenkeriana Dentre elas sugiro Salzer (1962)

6 Neste texto natildeo incluo uma discussatildeo filosoacutefica sobre representaccedilatildeo Dire-tamente assumo o seu sentido mais comum dentro da semioacutetica de Charles S Peirce aquele que se associa agrave definiccedilatildeo de signo e cuja definiccedilatildeo mais sinteacutetica e simplificada talvez seja algo que representa (estaacute no lugar de estaacute para significa) algo para algueacutem Ver Peirce (1931-35 paraacutegrafos 2227 a 2308) para um conhecimento profundo da estrutura do signo Para um exce-lente estudo sobre a estrutura do signo e as diversas definiccedilotildees que recebe den-tro da semioacutetica de Peirce ver Santaella (1995) Para uma visatildeo panoracircmica das correntes semioacuteticas (incluindo a de Peirce) e sua aplicaccedilatildeo agrave muacutesica ver Zampronha (2001)

7 A afirmaccedilatildeo de que uma nota eacute uma abstraccedilatildeo jaacute foi suficientemente demons-trada haacute algumas deacutecadas em anaacutelises realizadas tanto por Francegraves (1958) como por Schaeffer (1966) Para uma visatildeo mais recente da complexidade envolvida no fenocircmeno denominado nota musical e das possibilidades que abre agrave composiccedilatildeo recente ver por exemplo Pressnitzer amp McAdams (2000)

8 Para uma visatildeo de diferentes abordagens compositivas tanto espectrais como similares ver o jaacute claacutessico livro organizado por Barriegravere (1991)

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Referecircncias

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da falsa-relaccedilatildeo e da anti-neutralizaccedilatildeo In SEKEFF Maria de Lourdes ZAMPRONHA Edson Arte e cultura IV ndash estudos interdisciplinares Satildeo Paulo Annablume 2006 p 105-138ZURITA Trino El inteacuterprete ante la obra electroacuacutestica mixta In CALVO

Partituras

MESSIAEN Olivier Quatuor pour la Fin du Temps Paris Durand 1942MOZART Wolfgang Amadeus Sonata em Laacute menor K 310 Disponiacutevel em lthttpwwwmusopencomsheetmusicphptype=sheetampid=15gt Acesso em 2 dez 2009ZAMPRONHA Edson Modelagem X-a Strasbourg Editions Franccedilois Dhalmann 2009 Vibraphone________ Recycling Collaging Sampling Manuscrito do autor 2006-6 Percussatildeo e eletroacuacutestica

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Filosofia psicanaacutelise muacutesica tema e variaccedilotildees

Por Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008)

Freud natildeo foi nunca um filoacutesofo diz-se Tampouco foi um naturalista ou culturalista Era psicanalista e como psicanalista um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relaccedilatildeo naturezacultura para ali encontrar aquela intersecccedilatildeo que modula as duas dimensotildees da experiecircncia humana (exatamente natureza e cultura)

Ora como o pensador eacute necessariamente um filoacutesofo pode-se pensar em Freud tambeacutem como filoacutesofo sim muito embora ele mesmo tenha quantas vezes manifestado certo antagonismo em relaccedilatildeo ao discurso filosoacutefico No ensaio Novas Conferecircncias Introdutoacuterias sobre a Psicanaacutelise (Freud 1933 v XXII 1976)1 por exemplo ele chega a opor psicanaacutelise agrave filosofia

Sobre o assunto diz o psicanalista Renato Mezan Freud considerava a disciplina socraacutetica uma maneira embrulhada de dizer bobagens de interesse muito secundaacuterio Para ele na verdade a filosofia estaacute muito proacutexima do deliacuterio e do espiacuterito de sistema (MEZAN 2002 p 352)

Sabe-se entretanto que embora por diversas vezes registrasse divergecircncias entre filosofia e psicanaacutelise Freud acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena buscou apoio em Empeacutedocles Platatildeo Schopenhauer para ilustrar o caraacuteter intangiacutevel da atividade psiacutequica inconsciente e dedicou-se quando estudante agrave traduccedilatildeo

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de textos filosoacuteficos Sem que se esqueccedila o que ele afirmou a seu amigo Wilhelm Fliess que com a invenccedilatildeo da psicanaacutelise finalmente estava realizando o seu desejo de ser um filoacutesofo (BIRMAN 2003 p 12)

Daiacute pode ateacute parecer estranho num Coloacutequio de Filosofia adentrar-se em Psicanaacutelise e Muacutesica Eacute um ruiacutedo na referida temaacutetica Absolutamente haja vista que a despeito de natildeo ser filoacutesofo (e de certo modo ele o foi sim) Freud natildeo era inimigo da filosofia apesar de suas contraditoacuterias declaraccedilotildees

Com a psicanaacutelise saber fundado na interpretaccedilatildeo e no que esta implica ele circunscreve questotildees teoacutericas que permeiam o universo filosoacutefico como a questatildeo do sujeito Tomado pelos filoacutesofos como um dado racional o sujeito para Freud nunca eacute plenamente presente em si mesmo na medida em que sofre a influecircncia de um inconsciente que o leva a agir mesmo contra a sua vontade E aiacute a psicanaacutelise acaba por levantar uma seacuterie de questionamentos em que simultaneamente incorpora algumas das questotildees formuladas pela filosofia e faculta a esta inscrever em seu corpo teoacuterico algumas das questotildees enunciadas pela psicanaacutelise

Enquanto o discurso filosoacutefico objetiva a fundamentaccedilatildeo da accedilatildeo humana e da possibilidade do conhecimento partindo para tanto da interpretaccedilatildeo no discurso psicanaliacutetico o analista na posiccedilatildeo de objeto convoca um sujeito particular a produzir um saber sobre a sua verdade saber que por ser absolutamente singular tem nesse limite valor universal (FONTENELE 2002 p 11)

Eacute nesse jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da filosofia que se observa o esforccedilo de Freud para sublinhar as fronteiras e os fundamentos da psicanaacutelise E o que se tem entatildeo em conta eacute que sustentado na interpretaccedilatildeo e no deciframento Freud acaba por se aproximar do discurso filosoacutefico Mas ele pretendia um discurso cientiacutefico e natildeo filosoacutefico e como a psicanaacutelise natildeo se

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ajustava ao ideaacuterio neo-positivista da ciecircncia elaborada entatildeo pelo Ciacuterculo de Viena ele exorcizava a filosofia ainda que o meacutetodo de interpretaccedilatildeo e deciframento construiacutedo pela psicanaacutelise fosse aproximado do discurso filosoacutefico

Dentro desse contexto muitos filoacutesofos adotaram entatildeo a seguinte linha jaacute que a psicanaacutelise natildeo eacute testaacutevel empiricamente pois ningueacutem jamais pode fotografar o inconsciente Freud pode ser tranquilamente ignorado

Infere-se assim que Freud natildeo se considerava um filoacutesofo mas com a construccedilatildeo da psicanaacutelise e particularmente com os novos pressupostos que estabeleceu sobre a subjetividade e a natureza do sujeito seu pensamento acabou por se ligar ao filosoacutefico Eacute dessa forma que a interlocuccedilatildeo filosoacutefica perpassa o seu discurso legitimando a escolha da presente reflexatildeo

Sujeito Subjetividade

A psicanaacutelise interpelou a filosofia particularmente na concepccedilatildeo de sujeito Enquanto para a filosofia o sujeito estava inscrito no campo da consciecircncia enunciando-se no registro do eu para a psicanaacutelise tem-se o descentramento da consciecircncia e do eu A concepccedilatildeo de inconsciente e o conceito de que a subjetividade transcende os registros do eu e da consciecircncia resultaram no descentramento do sujeito E de tal modo que se Freud natildeo foi de fato um filoacutesofo ele acabou por estruturar a psicanaacutelise com seus pressupostos como um novo campo do saber No futuro Rosset inscreveria a psicanaacutelise no campo da ldquofilosofia traacutegicardquo e Deleuze enfatizaria o conceito de pulsatildeo de morte no campo da ldquofilosofia da diferenccedilardquo

Categoria essencial do corpus teoacuterico psicanaliacutetico o sujeito do inconsciente surge na histoacuteria do pensamento num momento de crise aquele momento que gerou o surgimento da ciecircncia moderna e com ela sua separaccedilatildeo da filosofia Mas noacutes

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teriacuteamos que esperar por Freud para compreender a relaccedilatildeo entre as formas que entatildeo emergem da ciecircncia e filosofia modernas que satildeo o sujeito e a anguacutestia Uma relaccedilatildeo que como lembra Luciano Elia eacute de equivalecircncia na medida em que a emergecircncia da anguacutestia Eacute a emergecircncia do sujeito (ELIA 2004 p 13)

Atrelando a categoria da existecircncia ao registro do pensamento fundado num paradigma racionalista a proposiccedilatildeo cartesiana cogito ergo sum (penso logo sou) inaugura a modernidade filosoacutefica Utilizando princiacutepios racionais que possibilitassem a construccedilatildeo de um sistema seguro de conhecimento e fazendo da duacutevida o seu meacutetodo para Descartes todo o conhecimento das coisas externas adveacutem da mente e a essecircncia do ser eacute o pensamento Eacute agora pela primeira vez que o discurso do saber se volta para o agente do saber e pela primeira vez coloca-se em questatildeo o proacuteprio pensar sobre o ser que se torna assim pensaacutevel Um seacuteculo depois num novo diaacutelogo entre ciecircncia e filosofia Kant introduziria o chamado sujeito transcendental aproximado este do inconsciente freudiano

E enquanto o cogito cartesiano definia a categoria de existecircncia como atrelada ao registro do pensamento para a psicanaacutelise a formulaccedilatildeo da existecircncia do inconsciente como um outro registro psiacutequico que vai aleacutem da consciecircncia asseguraria o fundamento e a certeza da subjetividade atrelada ao registro do inconsciente

Constituiacutedo por representaccedilotildees permeadas de intensidades o psiquismo (campo do sujeito constituiacutedo) foi configurado por Freud em diferentes registros de relaccedilatildeo intrincados entre si inconsciente preacute-consciente consciente 1ordf toacutepica Jaacute na 2ordf toacutepica (O eu e o isso 1923) o isso (poacutelo pulsional) o eu (mantendo o seu antigo lugar) e o supereu (instacircncia de interdiccedilatildeo do desejo) datildeo consistecircncia aos pressupostos teoacutericos de uma subjetividade fundada no inconsciente A leitura do psiquismo assim esboccedilada nas diferentes toacutepicas exigiu um outro discurso teoacuterico ao qual

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Freud deu o nome de metapsicologia A metapsicologia termo criado por esse psicanalista para se referir agrave pesquisa especulativa utilizada no esclarecimento dos processos psiacutequicos (dinacircmica topografia - id ego superego e economia) facultaria agrave psicanaacutelise uma aproximaccedilatildeo com a esteacutetica em razatildeo da pequena positividade de seus enunciados o que acabaria acontecendo a partir da publicaccedilatildeo de A interpretaccedilatildeo dos sonhos (1900 vs IV e V 1972) E no entanto a esteacutetica ciecircncia das faculdades sensitivas humanas Eacute tambeacutem parte da filosofia jaacute que voltada agrave reflexatildeo do fenocircmeno artiacutestico e da beleza sensiacutevel Mas ainda assim Freud continuaria ldquoconfrontandordquo a filosofia particularmente em sua concepccedilatildeo de sujeito

Enquanto para a filosofia o sujeito se inscreve no campo da consciecircncia e se enuncia no registro do eu para a psicanaacutelise a subjetividade transcende os referidos registros resultando no descentramento do sujeito descentramento que remete agrave pulsatildeo e que implica em se conceber o psiquismo construiacutedo em torno dos conceitos de sentido e significaccedilatildeo como movido por um confronto interminaacutevel de forccedilas

Lembrando que o inconsciente freudiano eacute um sistema de elementos materiais articulados como cadeias desprovidas em si mesmas de significaccedilatildeo e passiacuteveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituiacutedo Freud coloca em questatildeo a tradiccedilatildeo da filosofia do sujeito constituiacutedo estabelecida por Descartes conceituando que a produccedilatildeo da verdade eacute realizada natildeo no registro do pensamento e sim nos registros do inconsciente e do desejo

A desconstruccedilatildeo do cogito cartesiano se realiza assim em 3 direccedilotildees

bull do consciente para o inconsciente bull do eu para o outro e bull da representaccedilatildeo para a pulsatildeo

E eacute desse modo que Freud se aproxima das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer Spinoza e distancia-se das referecircncias a Hegel

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O sujeito da psicanaacutelise eacute o sujeito do inconsciente Ele natildeo ldquonascerdquo natildeo se ldquodesenvolverdquo simplesmente ldquose constroacuteirdquo Concebido como um aparelho de linguagem permeado por intensidades o suporte metodoloacutegico encontrado foi a linguagem Soacute esta oferece o fundamento necessaacuterio a uma teoria do inconsciente haja vista o significante aiacute constituir-se material e simboacutelico ao mesmo tempo O estatuto material remete agrave imagem sonora unidade material da fala humana e o estatuto simboacutelico envolve sua articulaccedilatildeo em cadeia engendrando o significado que natildeo se encontra constituiacutedo desde o comeccedilo antes da articulaccedilatildeo significanterdquo (ELIA 2004 p 38) Tudo isso postula a inscriccedilatildeo de Freud na modernidade deslocando-o da semiologia para a hermenecircutica

Nesse processo Lacan subverteria a associaccedilatildeo saussuriana significante significado conferindo primazia ao significante na produccedilatildeo do significado que lhe eacute secundaacuterio e que se produz a partir da articulaccedilatildeo entre os significantes Afinal lembra natildeo vivemos num mundo de realidades mas num mundo de siacutembolos de significantes E ao afirmar que o inconsciente tem a estrutura de uma liacutengua ele quer dizer que este inconsciente funciona atraveacutes de metaacuteforas metoniacutemias siacutembolos representaccedilotildees (LACAN 1999)

Muacutesica x Inconsciente

Nesse momento adentra-se no eixo do presente ensaio Filosofia e Muacutesica levantando uma questatildeo principal

muacutesica envolve o inconsciente e se envolveo que significa dizer existe inconsciente na muacutesica Para responder a essa questatildeo considera-se inicialmente o

estabelecimento da 2ordf toacutepica freudiana id (isso) ego (eu) superego (supereu) tendo em conta que nada absolutamente nada fica fora

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do campo do inconsciente Eacute como dizia o psiquiatra Faacutebio Landa natildeo se pode pensar em nada que existe no inconsciente que um dia natildeo tenha estado fora dele e em nada que existe no inconsciente que hoje natildeo tente se articular com a realidade (LANDA 1981)

Em fins do seacutec XIX a ideacuteia de inconsciente jaacute corria a Europa sendo utilizada entre outros por Charcot (psiquiatria) Taine (psicologia) Dostoievski (literatura) Schopenhauer Nietzsche Von Hartmann (filosofia) Caberia a Freud transformar este termo de adjetivo em substantivo com o substantivo designando um lugar acerca do qual tudo o que se sabe eacute que nada do que nele haacute pode ser sabido

Afirmando em sua teoria do inconsciente a existecircncia de processos psiacutequicos que nos escapam pondo a nu essa outra cena que revela que natildeo pensamos e sim que somos pensados e que a dimensatildeo social eacute essencial agrave constituiccedilatildeo do sujeito (sem reduzi-lo a uma sociologia culturalista) Freud revela a possibilidade de um modo de pensamento diferente do racional acrescentando dessa maneira uma nova ferida agraves anteriormente desferidas por Copeacuternico e Darwin

Da ordem do simboacutelico o inconsciente tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo comparece em expressotildees musicais sem nunca patentear qualquer significado Rico em operaccedilotildees analoacutegicas ele faculta na experiecircncia da muacutesica o surgimento de elementos que escapam ao domiacutenio do racional como por exemplo a emoccedilatildeo intuiccedilatildeo associaccedilatildeo integraccedilatildeo evocaccedilatildeo Mesmo porque nascendo de nosso corpo nossa mente nossas emoccedilotildees a praacutetica musical envolve nosso corpo mente e emoccedilotildees mexe com nosso tempo espaccedilo e movimento psiacutequicos possibilita nos sentirmos muito mais intensamente e contra isso somos relativamente indefesos

Propiciando a inscriccedilatildeo da singularidade na cultura pode-se tambeacutem afirmar como o fez Adorno que muacutesica eacute um tipo de linguagem diferente da significante acrescentando-se diferente

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daquilo que se entende comumente como significante Isso haja vista existirem experiecircncias em outras formas de pensamento que constituem linguagens E como o inconsciente eacute lugar da realidade psiacutequica tem-se aiacute a instauraccedilatildeo de uma forma de pensamento outra que natildeo a racional

Considerando ainda a muacutesica como linguagem naquele sentido tomado por Heidegger que entende a linguagem como tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade pode-se asseverar que a linguagem musical possui significantes significantes especiacuteficos proacuteprios particulares diferentes do que se concebe no sentido usual da palavra (daiacute a asserccedilatildeo de Adorno) Satildeo significantes singulares resultantes de uma sintaxe de semacircntica proacutepria significantes vaacutelidos somente para uma determinada obra para ldquoaquelardquo obra especiacutefica

Nesse momento recorre-se novamente ao psicanalista Renato Mezan em sua abordagem do inconsciente na obra de cultura (e muacutesica eacute obra de cultura) procurando responder agrave questatildeo anteriormente levantada existe inconsciente na muacutesica Sim existe inconsciente na muacutesica e este se manifesta em trecircs dimensotildees

bull nos sentidos e relaccedilotildees latentes que a obra expotildee ao receptor e que natildeo satildeo legiacuteveis na superfiacutecie

bull nos traccedilos que o autor pode ter deixado na construccedilatildeo de sua obra

bull e tambeacutem nos ecos e ressonacircncias que a escuta da obra suscita no receptor (MEZAN 2002 p 376)

A primeira dimensatildeo remete a uma outra camada de significaccedilatildeo alcanccedilaacutevel pela anaacutelise que necessariamente natildeo necessita ser psicanaliacutetica Pode-se aiacute fazer uso da anaacutelise histoacuterica musicoloacutegica esteacutetica ou mesmo recorrer agrave psicanaacutelise em extensatildeo agrave psicanaacutelise aplicada Figurando no subtiacutetulo da revista Imago esse tipo de psicanaacutelise significa sendo aplicada agravequilo que natildeo eacute estritamente cliacutenico como por exemplo fenocircmenos sociais literatos culturais musicais

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A segunda dimensatildeo diz respeito ao trabalho realizado pelo compositor O inconsciente se insere no trabalho do artista seja pela seleccedilatildeo que este faz das figuras motivos temas ritmos utilizados tanto quanto por mil e um outros fatores entranhados no trabalho de estruturaccedilatildeo musical O que se quer dizer com isso Que o inconsciente se revela no modo como o compositor diz o que diz e sem que ele mesmo tenha consciecircncia disso Afinal satildeo seus interesses fantasias sensibilidade e outros fatores mais (elementos transindividuais coletivos) que lhe facultam a escolha de determinados temas e que o impulsionam a um modo uacutenico de os organizar E nesse processo ressalte-se haacute sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio Tem-se assim na constituiccedilatildeo da obra musical elementos que datildeo conta de sua especificidade tornando-a uacutenica impar singular

Quanto agrave terceira dimensatildeo lembrando que a obra musical soacute se completa no ouvinte pode-se dizer que o inconsciente na muacutesica como tambeacutem afirma Mezan constroacutei-se entre dois parceiros compositor e receptor e o equivalente disso na anaacutelise da obra

eacute o surgimento de uma hipoacutetese interpretativa apta a desvendar nela um aspecto ateacute entatildeo insuspeitado e capaz de ser elucidado em termos psicoloacutegicos com o instrumental psicanaliacutetico pois refere-se agraves emoccedilotildees ao comportamento dos personagens e ao efeitoque a obra produz sobre quem a estaacute fruindo () (MEZAN 2002 p 376)

Ora enquanto na muacutesica eacute-se penetrado por uma cadeia de sons e silecircncios na psicanaacutelise eacute-se penetrado por palavras dotadas de muacutesica subjacente que ecoa Assim se a psicanaacutelise envolve o inconsciente e a realizaccedilatildeo de desejos a vivecircncia musical tambeacutem envolve o inconsciente e possibilita a realizaccedilatildeo de desejos configurando-se como um jogo um jogo que se joga com sons que natildeo servem a nada servindo a tudo ao mesmo

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tempo Essa a razatildeo do criacutetico inglecircs Waster Pater afirmar que todas as artes aspiram constantemente agrave condiccedilatildeo de muacutesica (apud Nestrovski 1996) Tornando presente o que existe em ausecircncia na linguagem a vivecircncia musical faculta por fim a singularidade do compositor e do receptor com o proacuteprio inconsciente do receptor podendo modificar a percepccedilatildeo do discurso que desse modo acaba por adquirir um sentido inesperado

A soluccedilatildeo metodoloacutegica para o acesso ao inconsciente foi encontrada por Freud no uso da linguagem como ferramenta jaacute se sabe E assim como as palavras produzem dialogicamente ressonacircncias de vozes lugares e tempos distantes no caso da muacutesica linguagem caracterizada psicologicamente pela aconceitualidade e induccedilatildeo sons silecircncios harmonias ritmos melodias timbres ruiacutedos facultam ressonacircncias que induzem os jaacute citados movimentos de associaccedilatildeo emoccedilatildeo evocaccedilatildeo e integraccedilatildeo de experiecircncias Como no inconsciente nada pode ser encerrado este pode por fim se revelar nas lacunosidades do discurso consciente nos gratildeos de loucura impliacutecitos no discurso musical vivenciados pelo compositor no momento da criaccedilatildeo e pelo ouvinte no prazer da escuta Fendido descentrado desejante esse sujeito encontra na muacutesica um modelo de preenchimento da falta com o recurso de jogos musicais e imagens sonoras tudo suscitando ecos na experiecircncia da escuta

Som silecircncio escuta elementos carregados das experiecircncias do sujeito em sua relaccedilatildeo com o outro constituem o criador e o receptor enquanto sujeitos E embora resultando de um trabalho essencialmente racional trabalho que exige teacutecnica e domiacutenio do material manuseado haacute sempre na criaccedilatildeo e vivecircncia musicais ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio como jaacute se disse antes

Daiacute que se para o freudismo o inconsciente se caracteriza pela produccedilatildeo de um saber que natildeo se sabe este tanto quanto o signo imaginaacuterio que insiste na simbolizaccedilatildeo acaba por

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comparecer em expressotildees musicais sem no entanto patentear significados

Como potecircncia de linguagem a muacutesica estaacute situada entre a partitura e o instrumento o que significa dizer para aleacutem da partitura e do instrumento com apelo ao oniacuterico e inscrito imaginaacuterio da cultura Daacute-se num tempo regido pelo desejo e sua vivecircncia propicia ressonacircncias remetendo agrave dimensatildeo do inefaacutevel facultando desse modo uma abertura agrave multiplicidade de sentidos destinos ao pulsional

Mas observe-se que Freud nunca se dedicou a pesquisas musicais nem pleiteou uma interlocuccedilatildeo psicanaacutelise x muacutesica Eacute o compositor Arnold Schoumlnberg nascido 21 anos depois do psicanalista que possibilitaria tal empreitada Com o dodecafonismo ele promoveria um sentido de descentramento musical objetivando dizer algo que nunca foi dito Fundamentando com o dodecafonismo novas relaccedilotildees entre as notas e abdicando de um centro tonal ele tornaria possiacutevel uma outra forma de subjetivaccedilatildeo facultando a escuta do novo e a consciecircncia da muacutesica como pensamento dando iniacutecio agrave modernidade musical Eacute o socialismo musical como costumava dizer Stravinski

Para tanto Schoumlnberg suspende familiaridades tonais renova a forma a linguagem abusa de elementos disruptivos procura natildeo ser familiar e propicia natildeo uma escuta modulada mas sim a invenccedilatildeo Com isso ele pretende vivecircncias musicais como forma de experiecircncia alteritaacuteria propiciando agraves obras tornarem-se acontecimentos singulares uma experiecircncia do sensiacutevel Eacute desse modo que ele pensa o inconsciente em muacutesica Eacute tal como dizia

Muacutesica eacute o resultado da combinaccedilatildeo e sucessatildeo de sons simultacircneos de tal forma organizados que a impressatildeo causada sobre o ouvido seja agradaacutevel e a impressatildeo sobre a inteligecircncia seja compreensiacutevel e que estas impressotildees tenham o poder de influenciar os recantos ocultos de nossas almas e de nossas esferas sentimentais e que esta influecircncia transporte-nos para

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uma terra de sonho de desejos satisfeitos ou para um pesadelo infernal de etc etc (SCHOumlNBERG apud LEIBOWITZ 1981 p 14)

E por que Porque sem nada dizer a muacutesica forccedila a significaccedilatildeo haja vista ela ser intimamente ligada agraves emoccedilotildees Como criar escutar natildeo eacute reproduzir especularmente um texto mas produzir um discurso de sentido volta-se mais uma vez agrave pergunta jaacute levantada o que significa dizer existe inconsciente na muacutesica E novamente traz-se Renato Mezan ratificando o que jaacute foi dito [que] a obra possui sentidos e relaccedilotildees latentes natildeo legiacuteveis na superfiacutecie que expotildee ao receptor e [que] essa segunda camada de significaccedilotildees eacute alcanccedilaacutevel por meio da anaacutelise que natildeo necessita necessariamente ser psicanaliacutetica (MEZAN 2002 p 176)

Como o compositor possui vida psiacutequica proacutepria esta se presentifica na criaccedilatildeo musical natildeo de forma direta mas animada por suas fantasias interesses ideaacuterio Como exemplo tome-se o modo como Beethoven estrutura suas Sonatas para piano Particularmente nas sonatas de seu segundo periacuteodo composicional ele nos daacute aiacute uma maneira peculiar de escrita uma forma dramaacutetica de estruturaccedilatildeo que responde pela singularidade de seu estilo

Estas obras constituem-se autecircnticos dramas em movimentos de sonata Mozart tambeacutem escreveu sonatas Mas o que vai diferenciar as sonatas de Beethoven das de Mozart Algo intriacutenseco a cada compositor uma exploraccedilatildeo riacutetmica uma ecircnfase meloacutedica a valorizaccedilatildeo tiacutembrica a concepccedilatildeo temaacutetica a elaboraccedilatildeo constitutiva do discurso elementos que a anaacutelise formal harmocircnica musicoloacutegica potildee em evidencia

Beethoven se caracteriza por construir dramas em forma-sonata Ele eacute o criador do drama em movimentos de sonata particularmente em suas sonatas para piano Esses dramas se aproximam do sistema filosoacutefico de Hegel tese antiacutetese e

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siacutentese As sonatas tambeacutem satildeo constituiacutedas de duas partes A (tese antiacutetese) e Arsquo (siacutentese) partes que englobam trecircs seccedilotildees AB-Arsquo

A seccedilatildeo A compreende a exposiccedilatildeo de um drama de um conflito expresso por temas (tema a tema b) e tonalidades que se opotildeem (tema a no tom da tocircnica e tema b no tom da dominante ou do relativo maior) Esses temas constituiacutedos agraves vezes de 2 3 ou mais motivos satildeo ldquopersonagensrdquo que se movimentam no interior de A definindo o que Beethoven chamou de ldquoprinciacutepio contrarianterdquo e ldquoprinciacutepio imploranterdquo (tese antiacutetese)

Esse conflito eacute resolvido no Arsquo reexposiccedilatildeo a siacutentese com o tema a e o tema b agora integrados ao tom da tocircnica gerando unidade Mas natildeo sem antes passar pelo desenvolvimento B seccedilatildeo que corre por fora da regiatildeo da tocircnica constituindo uma radicalizaccedilatildeo do conflito Eacute um momento livre dramaacutetico de consideraacutevel instabilidade tonal e tensatildeo deflagrando o cliacutemax da obra e conduzindo por fim ao tom da tocircnica campo no qual vai se constituir a siacutentese reexposiccedilatildeo Arsquo

O allegro-de-sonata beethoveniano aponta para Hegel manifesta a dialeacutetica de seu pensamento e estabelece na reexposiccedilatildeo um novo significado diferente da exposiccedilatildeo na medida em que como resultado de raciociacutenio e construccedilatildeo os temas satildeo agora trabalhados no tom da tocircnica gerando uma 3ordf significaccedilatildeo

Voltando ao inconsciente freudiano registre-se que como suas formaccedilotildees satildeo caracterizadas por um enigma o meacutetodo de interpretaccedilatildeo utilizado pela psicanaacutelise eacute o do deciframento Do mesmo modo embora a muacutesica natildeo represente como na psicanaacutelise a codificaccedilatildeo de um enigma ela comporta um enigma que eacute decifrado na escuta pelo receptor num processo de reconstruccedilatildeo de seu sentido processo que natildeo prescinde do conhecimento das relaccedilotildees operatoacuterias dos signos musicais Entretanto nessa reconstruccedilatildeo racional observa-se ainda assim e sempre uma ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Essas satildeo reflexotildees que comprovam o inconsciente na muacutesica legitimando uma interlocuccedilatildeo muacutesica x psicanaacutelise Suas familiaridades ainda que remotas apontam movimentos cujas dimensotildees psiacutequicas e afetivas rompem mecanismos de defesa favorecendo escape e expressatildeo O mais significativo desses movimentos aduz agrave referecircncia de ambas (muacutesica psicanaacutelise) ao inconsciente e ao papel exercido pelo imaginaacuterio essa instacircncia de produccedilatildeo de sentido parte integrante e vital do homem atraveacutes da qual ele constroacutei e desenvolve sua realidade

Trabalho laborioso consciente a muacutesica natildeo fala natildeo pensa natildeo descreve natildeo representa natildeo tem endereccedilo nem carrega mensagens (estaacute se falando aqui de um determinado tipo de muacutesica instrumental e de uma determinada cultura ocidental Muacutesica natildeo eacute o que se pretende que sugiram suas estruturas sonoras nem tampouco eacute representaccedilatildeo do que sentia o compositor no momento de sua criaccedilatildeo Claro ela pode resultar do que este sentia sim haja vista implicar em expressatildeo mas uma vez concluiacuteda ela se constitui alteridade autonomia (liccedilatildeo de Proust e Valery) e as respostas suscitadas por sua escuta satildeo tributaacuterias da relaccedilatildeo que se estabelece entre a obra e o receptor e do jogo poeacutetico que sustenta essa referida relaccedilatildeo Muacutesica natildeo possui significado possui sim sentido e por isso mesmo sempre forccedila agrave significaccedilatildeo

Lembre-se tambeacutem que o compositor natildeo eacute unicamente um inspirado que tomado pela magia da emoccedilatildeo expressa seus ocultos pensamentos Sua genialidade que sempre vai muito aleacutem da inspiraccedilatildeo reside eacute no trabalho competente que ele faz (em termos de organizaccedilatildeo de ideacuteias de estruturaccedilatildeo e construccedilatildeo do texto) Nesse trabalho ele envolve o seu eu e logicamente o seu inconsciente sua teacutecnica e desejo (sem que ele mesmo tome consciecircncia disso) encadeando selecionando combinando condensando e deslocando elementos do coacutedigo Sempre (diz-se mais uma vez) haacute ingerecircncia do processo primaacuterio no secundaacuterio

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Daiacute resulta o sentido singular de uma obra e seu poder de ostranienie (estranhamento)

Eacute dentro desse contexto que a produccedilatildeo musical ldquodesvelardquo informaccedilotildees sobre o modo de criaccedilatildeo do compositor e o modo de recepccedilatildeo do ouvinte Do compositor embora nunca fale dele (nem tampouco autorize leituras psicobiograacuteficas ou sintomaacuteticas) haja vista que uma vez composta a muacutesica soacute fala de si ela soacute se mostra embora nesse ldquose mostrarrdquo possibilite um reconhecimento do modo como o compositor diz o que diz E do ouvinte em razatildeo dos ecos e ressonacircncias suscitados Eacute assim que a muacutesica remete agrave psicanaacutelise e agrave filosofia

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Rubens Russomanno Ricciardi e Edson Zampronha (Organizadores)

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Nota

1 A ediccedilatildeo de referecircncia freudiana eacute a ESB (Ediccedilatildeo Standard Brasileira) Obras Psicoloacutegicas Completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro Imago 1970-77)

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Referecircncias

BIRMAN Joel Freud e a filosofia Rio de Janeiro Zahar 2003ELIA Luciano O conceito de sujeito Rio de Janeiro Zahar 2004FONTENELE Laeacuteria A interpretaccedilatildeo Rio de Janeiro Zahar 2002FREUD Sigmund Obras psicoloacutegicas completas de Sigmund Freud Ediccedilatildeo Standard Brasileira Rio de Janeiro Imago 1970-77 GOLDGRUB Franklin O complexo de Eacutedipo Satildeo Paulo Aacutetica 1989LACAN Jacques As formaccedilotildees do inconsciente Rio de Janeiro Zahar 1999 LANDA Faacutebio Arte incomum sob efeito de choques e drogas In Jornal O Estado de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 08 nov 1981LEIBOWITZ Reneacute Schoumlnberg Traduccedilatildeo de Heacutelio Ziskind Satildeo Paulo Perspectiva 1981MEZAN Renato Interfaces da psicanaacutelise Satildeo Paulo Cia das Letras 2002NESTROVSKI Arthur As ironias da modernidade ensaios sobre literatura e muacutesica Satildeo Paulo Aacutetica 1996SEKEFF Maria Lourdes Curso e dis-curso do sistema musical Satildeo Paulo Annablume 1996

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Rubens Russomanno Ricciardi e Edson Zampronha (Organizadores)

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Sobre os autores

RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI (Ribeiratildeo Preto 1964) compositor maestro pianista e musicoacutelogo eacute formado pela ECA-USP (aluno de Olivier Toni Gilberto Mendes e Stephen Hartke) tendo sido bolsista da Universidade Humboldt de Berlim (orientando de Guumlnter Mayer) Mestre doutor livre docente e professor titular pela ECA-USP Suas linhas de pesquisa satildeo Filosofia da Muacutesica e Muacutesica Brasileira (histoacuteria performance e ediccedilatildeo) Atualmente como professor titular do Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP eacute coordenador cientiacutefico do Nuacutecleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM) e do Centro de Documentaccedilatildeo Memoacuteria Musical Brasileira bem como diretor artiacutestico da orquestra sinfocircnica USP-Filarmocircnica do Ensemble Mentemanque do Madrigal Ademus e do Festival Muacutesica Nova Gilberto Mendes (este uacuteltimo projeto numa parceria com o SESC-SP)

ALEXANDRE DA SILVA COSTA (Rio de Janeiro 1972) historiador e filoacutesofo Possui graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela Universidade Federal Fluminense (1994) mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) doutorado em Filosofia pela Universitaumlt Osnabruumlck Alemanha (2009) e um segundo doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) Atualmente eacute bolsista da FAPESP de poacutes-doutorado junto ao Nuacutecleo em Performance Musical (NAP-CIPEM) - Departamento de Muacutesica da FFCLRP-USP na aacuterea de teoria musical na Antiguidade sob supervisatildeo do Prof Dr Rubens Russomanno Ricciardi Em funccedilatildeo desta pesquisa eacute atualmente tambeacutem poacutes-doutorando no Institut fuumlr klassische Philologie da Humboldt Universitaumlt zu Berlin na qualidade de bolsista de poacutes-doutorado BEPE da FAPESP Eacute tambeacutem pesquisador integrante

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do nuacutecleo de pesquisa em filosofia antiga do Laboratoacuterio OUSIA (IFCSUFRJ) Concentra as suas atividades na aacuterea de Filosofia com ecircnfase em filosofia antiga (e na relaccedilatildeo que o pensamento contemporacircneo com ela estabelece) fenomenologia esteacutetica e filosofia da arte

EDSON ZAMPRONHA (Rio de Janeiro 1963) compositor pesquisador e performer eacute doutor em comunicaccedilatildeo e semioacutetica ndash artes ndash pela PUCSP com pesquisa de poacutes-doutorado na Universidade de Helsinque (Finlacircndia) e na Universidade de Valladolid (Espanha) Eacute mestre em composiccedilatildeo musical pela UFRJ e graduado em Composiccedilatildeo e Regecircncia pela UNESP Eacute professor especialista no Conservatoacuterio Superior de Muacutesica de Astuacuterias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana ambas na Espanha Eacute autor do livro Notaccedilatildeo Representaccedilatildeo e Composiccedilatildeo Publicou mais de 40 artigos especializados e possui mais de 90 composiccedilotildees para orquestra banda sinfocircnica coro baleacute teatro instalaccedilotildees sonoras muacutesica eletroacuacutestica muacutesica de cacircmara e cinema Recebeu diversos precircmios entre os quais dois precircmios da Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte (APCA) e o 6ordm Precircmio Sergio Motta pela instalaccedilatildeo Atrator Poeacutetico realizada com o Grupo SCIArts (wwwzampronhacom)

MARIA LOURDES SEKEFF (Satildeo Luiacutes 1934 ndash Satildeo Paulo 2008) Apoacutes dedicar-se agrave carreira de pianista passa a dedicar-se agrave pesquisa e agrave docecircncia Doutora em muacutesica (UFRJ) livre-docente (UNESP) e profa titular (UNESP) com formaccedilatildeo em filosofia (UFRJ) e poacutes-graduaccedilatildeo (niacutevel doutorado) em comunicaccedilatildeo e semioacutetica (PUCSP) Publicou os livros Curso e (dis)curso do sistema musical (Annablume 1996) Da Muacutesica seus usos e recursos (UNESP 2007) Recursos terapecircuticos da muacutesica (UNESP 1985) e Muacutesica esteacutetica de subjetivaccedilatildeo (Annablume 2009 ndash Publicaccedilatildeo poacutestuma) Tambeacutem organizou

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a seacuterie Arte e cultura estudos interdisciplinares (5 volumes) uma publicaccedilatildeo conjunta da AnnablumeFAPESP Premiada pela APCA foi indicada ao precircmio professor emeacuterito ldquoGuerreiros da Educaccedilatildeordquo do CIEE e do jornal O Estado de Satildeo Paulo jornal no qual escreveu sobre muacutesica por quatro anos Criou e dirigiu (15 anos) a Associaccedilatildeo de Jovens Pianistas (AJP ndash RJ) e criou e dirigiu por 20 anos o movimento nacional ldquoRitmo e Somrdquo da UNESP

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