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QUESTÕES DE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS: UMA COLEÇÃO DE RECURSOS
EDUCACIONAIS ABERTOS DE APOIO À MOBILIZAÇÃO
LETÍCIA RODRIGUES1
LUIZ ERNESTO MERKLE2
MARINÊS RIBEIRO DOS SANTOS3
Resumo: O contexto dos jogos digitais apresenta-se em um processo de transformação, onde
vários grupos têm reivindicações de participação. Parte dessas mudanças é decorrente da
maneira como determinadas pessoas vem sendo marginalizadas e invisibilizadas devido à
questões de sexo/gênero, raça/etnia e outras clivagens. Estas pessoas ou grupos têm
reivindicado de modo crescente, a partir de diversas táticas, seu reconhecimento. Este trabalho
discorre sobre a construção, ainda em andamento, de uma coleção de recursos educacionais
aberta que visa facilitar o a preservação, a recuperação e o acesso, assim como a circulação e a
aproriação de recursos que possam auxiliar na problematização de questões de gênero e suas
transversalidades no âmbito dos jogos digitais. Fundamentamos a análise destas questões na
perspectiva dos estudos de gênero e do feminismo interseccional, e procuramos refletir sobre a
atividade de jogar através do conceito de tecnologias de gênero, no qual relações de gênero
específicas são muitas vezes reiteradas ou até mesmo forjadas, considerando como estes jogos
são muitas vezes desenvolvidos, divulgados, jogados individual ou coletivamente e
participados através de práticas diversas. O caráter aberto da coleção visa proporcionar futuras
contribuições ao seu “acervo”, ou conjunto de itens depositados e disponibilizados, permitindo
atualizações frente as transformações recorrentes no cenário dos jogos digitais em relação às
dimensões históricas, culturais, sociais e axiológicas. Uma tal coleção é um primeiro passo no
reconhecimento de participantes desse meio cuja invisibilização é clara.
Palavras-chave: Jogos Digitais, Estudos Queer, Feminismo Interseccional, Recursos
Educacionais Abertos, Coleção Aberta.
PORQUE GÊNERO EM JOGOS DIGITAIS
No presente artigo apresentamos o projeto de construção de uma coleção de recursos
educacionais abertos (AMIEL, 2012) referente às intersecções entre jogos digitais e questões
de gênero com objetivo de questionar padrões vigentes na comunidade que perpetuam práticas
excludentes e violentas contra determinados grupos de pessoas que são marginalizadas nesse
meio. Por meio desta coleção, ainda em projeto e estudo piloto, buscamos a elaboração de um
artefato de empoderamento e mobilização para grupos subalternizados, por meio da
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.
E-mail: [email protected]. 2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.
E-mail: [email protected]. 3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná/ Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.
E-mail: [email protected].
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disponibilização de recursos de diversos formatos que possam eventualmente embasar
discussões, críticas e práticas mais inclusivas e pedagógicas, tanto para a compreensão, para a
avaliação, como o desenvolvimento de tais jogos e de suas comunidades.
O atual cenário nos jogos digitais mostra-se um terreno complexo de disputa social por
representatividade, respeito e inclusão. Nos jogos ainda é comum que a identidade branca seja
a privilegiada em termos de reconhecimento e representação, sendo naturalizada através das
escolhas que ilustram produtos de merchandising, as próprias personagens presentes nos jogos
e nos/nas profissionais presentes nas divulgações, eventos e demais atividades públicas. Por
exclusão, ocasionam assim a invisibilidade de outras identidades que não a branca, esta,
frequentemente associada à nacionalidade norte-americana ou europeia. Identidades africanas,
indígenas e asiáticas, por exemplo, acabam por ser invisibilizadas na indústria de
desenvolvimento de jogos digitais, de modo semelhantemente a outros foros da sociedade.
Dentro de uma lógica heteronormativa (LOURO, 2004), da mesma forma, a heterossexualidade
é frequentemente compulsória nas narrativas e representações presentes e nas relações sociais
isso se reflete sob uma constante homofóbica, bifóbica e transfóbica de violência simbólica para
com identidades Lésbicas, Gays, Bis, Transsexuais, Transgêneras, Queer e Intersex
(LGBTTQI) e a internalização de aceitação de atitudes violentas para com pessoas sob estas
identidades.
Da mesma maneira a identidade das mulheres é constantemente questionada quanto ao
seu direito de ocupar espaço no meio dos jogos digitais. Reflexo de culturas machistas e
misóginas, o ambiente dos jogos mostra-se na maior parte do tempo um espaço hostil para
meninas e mulheres (CONSALVO, 2012), resultando em casos de ameaça de morte, ameaça de
estupro ou outras formas de violência psicológica destinadas às pessoas que passam a ocupar
esses espaços declarando-se abertamente como mulheres (FOX, TANG, 2016). O documentário
estadounidense “GTFO:Get the F&#% Out” (2015) dirigido e escrito por Shannon Sun-
Higginson ilustra parte desse cenário de violência vivenciado por muitas mulheres na indústria
e na comunidade de jogos.
Tendo em vista panoramas como estes a coleção objetiva, por meio da compilação de
recursos educacionais diversos visibilizar a presença de sujeitos marginalizados no meio dos
jogos digitais de maneira a provocar reflexão, apontar regimes hierárquicos e fomentar os
discursos de diversidade.
REFERENCIAL TEÓRICO
3
A escolha pelos recursos educacionais abertos (REA) dá-se pelos discursos presentes
em seu uso, como mostra Tel Amiel (2012), referente a práticas flexíveis de ensino e ambientes
colaborativos que se interseccionam com as ideias presentes nos embates sobre diversidade e
representação nos jogos digitais contemporâneos, ao incentivar espaços em que ocorra a livre
troca de ideias de forma a otimizar a interação entre pessoas e a produção de conhecimento de
maneira mais democrática e acessível. Amiel caracteriza que: “recursos educacionais abertos
[...] são verdadeiramente propulsores de novas configurações de ensino e aprendizagem”
(AMIEL, 2012, p.24) e que a circulação de “bens comuns” é capaz de “expandir radicalmente
o acesso à cultura e a educação de um povo” (AMIEL, 2012, p.34).
O sítio de internet Recursos Educacionais Abertos4 define em seu FAQ5 que por
“recursos” é possível entendermos qualquer conteúdo que possa ser aplicado com intuitos
educacionais. Como exemplo, o site apresenta itens que podem ser considerados REA, como:
“livros, planos de aula, softwares, jogos, resenhas, trabalhos escolares, vídeos, áudios, imagens
e outros recursos compreendidos como bens educacionais essenciais ao usufruto do direito de
acesso à educação e à cultura” (REA Site).
É necessário ter em mente que nem todo recurso gratuito essencialmente configura-se
em REA. O diferencial do REA encontra-se na distribuição compartilhada dos direitos acerca
do conteúdo disponibilizado, para que este possa ser “estudado”, “redistribuído”, “remixado”,
“reconfigurado”. Estas são consideradas as quatro liberdades do REA, os 4Rs do inglês: review,
reuse, remix e redistribute6. Em suma, a pessoa responsável deixa o conteúdo “aberto” para que
quem dele se utilizar tenha liberdade para criar novas possibilidades a partir do que já está
disponível, mas exige a atribuição a sua autoria, e em alguns casos a redistribuição em licença
igual. Assim se evidencia a ideia do termo “aberto” presente na designação dos REAs. É
necessário também ter em mente que o não pagamento pelos REA dependerá da licença
escolhida (REA Site).
Mackenzie e Wajcman (1999) descrevem a tecnologia como algo que perpassa
diversos aspectos da vida cotidiana. “Para o bem ou para o mal” (MACKENZIE, WAJCMAN,
4 Recursos Educionais Abertos. Disponível em: <http://www.rea.net.br>. Acesso em 9 de junho de 2016.
5 Frequently Asked Questions, ou seção que responde perguntas recorrentes.
6 I.4. Quais são as quatro liberdades dos REA?. Disponível em: <http://www.rea.net.br/site/faq/#a4>. Acesso em
9 de junho de 2016.
4
1999, p.1) ela envolve a própria existência da vida humana, seja nos artefatos produzidos seja
na configuração dos sistemas técnicos. Para o senso comum, entretanto, nas palavras do autor
e da autora, a visão empregada é a do determinismo tecnológico (MACKENZIE, WAJCMAN,
1999, p.1). Feenberg aponta esse mesmo aspecto ao dizer que a visão comum, muitas vezes
ingênua, mas interessada, que se tem de tecnologia é aquela “puramente instrumental”, “isenta
de valores” e “irrefletidamente assumida” (FEENBERG, 2003).
Os jogos digitais, dados seus suportes material e lógico e suas origens facilmente
identificadas na computação, são costumeira e ligeiramente considerados “tecnológicos”, sem
uma maior problematização ou refinamento. A visão que assumimos ao tratar de jogos,
entretanto, visa pensar sua relação com a tecnologia de outras maneiras menos deterministas e
cristalizadas. Mary Flanagan (2009) distingue-se ao pensar os jogos a partir de uma perspectiva
histórica, baseada na arte, e não somente em função exclusiva de seus suportes em
computadores e consoles, indo além dos artefatos ditos técnicos e suas transformações.
Flanagan aponta que visões tradicionais não consideravam as práticas de jogo fora do contexto
de computadores e não se aprofundavam em pensar as origens dos jogos contemporâneos em
aportes estéticos e criativos, assim como raramente elaboravam diálogos entre os jogos e a arte
(FLANAGAN, 2009).
A perspectiva de Flanagan nos é interessante ao pensar jogos digitais, pois realça um
contexto político no qual manifestam-se as práticas artísticas. A autora apropria-se do termo
“artista” para definir pessoas que estejam criando para além de objetivos comerciais e
frequentemente “criando pelo bem de criar” (FLANAGAN, 2009, p.4). Flanagan. ao propor o
conceito de “jogar criticamente” (critical play), aponta que “crítico” vai além de apenas uma
abordagem minuciosa ou acadêmica, mas nos é conveniente dada a influência cultural e social
que as práticas de “brincar” e “jogar” tem em nossas sociedades (2010). Outro ponto
interessante é que Flanagan considera jogos como tecnologias não dado seu suporte eletrônico,
pois jogos que não envolvem gadgets e aparelhos eletrônicos também são tecnologias em sua
perspectiva. Para ela jogos e brincadeiras, graças aos seus arranjos e convenções são tecnologias
capazes de produzir maneiras de se relacionar, sujeitas a regras e contextos temporais e
executadas através de padrões de comportamentos (FLANAGAN, 2009, p.8). Essa definição
de Flanagan é interessante, pois pode nos ajudar a pensar os jogos enquanto tecnologias
produtivas também como “tecnologias de gênero”, cuja definição exploramos mais adiante.
É possível compreender as diferenças entre jogos e brincadeiras/ jogar e brincar a partir
de algumas referências acadêmicas nos estudos dos jogos. Seguindo a abordagem de Bo
Kampmann Walther (2003) a princípio faz-se necessário distinguir “jogo” (game) de
5
“brincadeira” (play). Walther localiza os jogos (games) no terreno de um espaço mais amplo da
brincadeira (play), a diferença mais evidente se dá pelos esquemas de regras e progressão
presentes nos jogos que os diferenciam do ato de brincar (play). Para Huizinga (1938),
conforme Walther, o ato de brincar é intrínseco a instituição cultural, em seu meio são
construídos significados e códigos no âmbito da semiótica social (WALTHER, 2003). Em
termos sintéticos, jogos poderiam ser diferenciados de brincadeiras por sua estrutura,
complexidade e formas de organização (HACKMAN, GOUGLAS, 2014).
Flanagan comenta sobre a grande variedade de definições que podemos encontrar para
pensar o que são jogos através da pesquisa acadêmica que se debruça sobre eles. Uma das
citações da autora que pode nos ajudar, define os jogos como “inerentemente não-lineares e
dependentes de decisões a serem feitas” (COSTIKYAN APUD FLANAGAN, 2009, p.7) e tais
decisões devem ser significativas ou não se caracterizam como decisões “reais”. Essa
característica a autora destaca relaciona-se ao conceito de “agência da jogadora ou do jogador”
(FLANAGAN, 2009, p.7).
Pensamos esses aspectos dos jogos até aqui, pois nos são úteis ao considerar a
capacidade dos jogos em construir espaços políticos de agência e reflexão e de que maneiras
seus processos de desenvolvimento, seus conteúdos, regras e temáticas podem nos auxiliar para
explorar questões sociais, como as relações de gênero abordadas pela coleção. Andrea Gunraj,
Susana Ruiz e Ashley York (2011) trabalham nesse conceito ao elaborar “diretrizes” que visam
pensar os jogos digitais como instrumentos de mobilização social efetiva a partir do que elas
chamam de “framework anti-opressão”. Tal conceito envolve dentre diversos fatores, uma
inclusão significativa e realmente participativa de vozes subalternizadas que podem ser
valorizadas através das organizações e jogabilidade proporcionadas pelos jogos de cunho
ativista.
Flanagan define Jogos Ativistas (Activist Games) por sua maior preocupação de cunho
pedagógico e social, deixando a princípio o caráter de entretenimento em segundo plano para
que determinada mensagem seja comunicada através da obra. O ativismo no espaço midiático
torna-se relevante devido às desigualdades transversais à sua existência, a autora aponta que:
“questões de gênero, raça, etnia, linguagem e desigualdade de classes são também manifestas
na apropriação e produção tecnológica” (FLANAGAN, 2009, p13). Fica evidente por meio de
análise dos espaços ocupados por mulheres no campo dos jogos digitais que “videogames são
espaços gendrados” (FLANAGAN, 2009, p.13).
Compreendemos “gênero” na perspectiva de Judith Butler que o articula da seguinte
forma:
6
Gênero não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”.
Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino
se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e
performativas que o gênero assume (BUTLER, 2014, p.253).
Butler aponta ainda para a questão de que não se deve supor a noção de gênero somente
em uma articulação binária que é extrapolada por permutações que nela não se encaixam e dessa
maneira, em suas palavras: “Gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e
feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do
qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2014, p.253). A
autora evidencia assim os espaços de contestação das prescrições de gênero.
Justine Cassel e Henry Jenkins (1998) apontam para o uso do termo gênero como um
manifesto de “rejeição do determinismo biológico” (CASSEL, JENKINS, 1998, p.5) e
comentam sobre o caráter culturalmente construído das oposições binárias entre atributos
considerados masculinos e femininos. Noções de masculinidades e feminilidades são
“concebidas diferentemente em diferentes culturas, períodos históricos, e contextos”
(CASTELL, JENKINS, 1998, p.6).
Nas palavras de Guacira Lopes Louro (1997) o uso do termo “gênero” nos permite
"rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual"
(LOURO, 1997, p.21), evidencia-se assim o processo da constituição da diferença projetada
sobre a biologia dos corpos. Teresa de Lauretis (1994) aponta as limitações que o conceito da
diferença sexual traz para o pensamento crítico feminista ao universalizar as mulheres sem
considerar “a diferença entre e nas mulheres”.
Para De Lauretis o gênero constrói-se através de “discursos institucionais” e de diversas
“tecnologias de gênero”, das quais ela traz como exemplo suas áreas de estudo o cinema, a
narrativa e a teoria. Em The Violence of Rethoric, a autora define por tecnologia de gênero:
“técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído” (DE LAURETIS,
1987, p.38).
Visamos argumentar, a partir da proposta de De Lauretis que os jogos digitais são
tecnologias de gênero, através dos quais são reproduzidos discursos que reforçam a ideia de
binarismo homem/mulher e determinismos biológicos, assim como a naturalização de conceitos
de masculino e feminino como os apontados por Butler. A maneira como esses discursos de
gênero são empregados nos jogos serve para segregar e legitimizar a violência e opressão de
determinados sujeitos, assim como manter e reforçar hierarquias sociais vigentes. Contudo,
procura-se ilustrar que jogos podem servir também como aparatos para a desconstrução destes
mesmos aspectos quando trabalhados de maneira diferenciada. Como aponta Louro, por meio
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de Butler, a regulação e materialização do sexo dos sujeitos em sociedade ocorre através de
normatizações, estas “precisam ser constantemente repetidas e reiteradas” para que a
materialização seja concretizada (LOURO, 2004, p.43-44), no entanto, os corpos jamais estarão
completamente conformados a estas normas. Assim sendo, mesmo que os discursos presentes
na maioria dos jogos apresentem reforços normativos, haverá sempre o espaço para contestação
e os contra-discursos dos mesmos.
Outro aspecto que podemos analisar é o uso de estereótipos, frequentes em diversas
mídias, com os jogos isso não é diferente. Estereótipos podem configurar-se em uma estratégia,
no sentido apontado por Patricia Collins (2000), de projetar “imagens de controle” que
naturalizem práticas sexistas e racistas, dentre outras formas de segregação social, de maneira
a formular uma ideia de “inevitabilidade” e aceitação coletivas (COLLINS, 2000). Esse
discurso naturalizado apresenta-se nas discussões e embates por mudanças tanto no conteúdo
dos jogos, como nas atitudes assumidas pelas pessoas frente às contestações que visam a
inclusão de sujeitos marginalizados e o exercício do reconhecimento de sua dignidade humana
na comunidade de jogos digitais.
Nos jogos, como em outras mídias, a objetificação da figura feminina é constante assim
como o assédio e a violência sexual. Mulheres que publicamente contestem o tratamento
recebido na comunidade são alvo de perseguição e estratégias de silenciamento (GTFO: ...,
2015). Da mesma maneira, jogadoras que se apresentem como mulheres publicamente em
comunidades, ou jogos online, estão sujeitas a misoginia, ameaças de violências sexual, entre
outras formas de violência (FOX, TANG, 2016). Esse tipo de tratamento, longe de estar
presente apenas em ambientes online estendem-se a eventos de jogos, ou “cultura nerd” onde
assédios também ocorrem (CONSALVO, 2012). Problemas de representação racial e de
sexualidade mostram-se igualmente frequentes. A heterossexualidade é retratada como norma
no conteúdo de grande parte dos jogos, personagens homossexuais e transgêneros/as podem ser
objetificados/as ou ridicularizados/as por meio de estereótipos e a comunidade mostra-se
amplamente homofóbica e transfóbica em suas falas recorrentes, seja na publicidade, entre
jogadores/as ou em fóruns de discussão, dentre outros espaços.
Se nesta perspectiva o cenário atual dos jogos digitais parece fatalista, entretanto,
tensionamentos propostos por militâncias sociais e pelo entrave entre os grupos sociais
relevantes para a concepção dos jogos mostra-se um terreno fértil para questionamentos. É
justamente nessa arena de disputas que essa pesquisa se inscreve. Por meio do enfoque desejado
para a coleção REA, em construção, buscamos reconhecer e contemplar as vozes destas
militâncias e dos sujeitos marginalizados ou omitidos nos discursos hegemônicos que revolvem
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no meio dos jogos digitais. A coleção mostra-se também uma maneira de constituir uma
compilação capaz de organizar estes recursos em um espaço de fácil acesso, democrático e
pedagógico para aproximar potenciais comunidades às reflexões sobre gênero/sexualidade e
raça/etnia nos jogos digitais. Não obstante, através da coleção procuramos incrementar estes
tópicos, que frequentemente não são observados nas formações acadêmicas tradicionais sobre
jogos digitais presentes no ensino nacional.
METODOLOGIA
A elaboração da coleção caracteriza-se por uma pesquisa documental e bibliográfica
que viabilize o embasamento teórico para a análise crítica dos jogos, considerando as clivagens
de gênero e suas transversalidades. Coletamos, indexamos e disponibilizamos materiais de
diversos formatos (multimídia, artigos, testemunhos). Por meio dos conteúdos almejamos
alcançar um campo de análise ainda pouco formalizado em relação à visibilidade de alguns
sujeitos marginalizados no meio dos jogos digitais, tais como: mulheres e pessoas LGBTTQI,
de diferentes etnias e faixas-etárias.
Ao buscar a visibilidade dessas pessoas, este trabalho procura assumir um caráter
ativista e somar-se às produções de coletivos feministas, LGBTTQI e de combate ao racismo.
A pesquisa documental visa dar suporte teórico à coleção de maneira a sistematizar um recurso
bibliográfico que conceitue e ajude na divulgação dos estudos realizados nestes tópicos no que
concerne o desenvolvimento de jogos digitais. Os recursos compilados podem se apresentar em
diversos suportes, sendo eles: texto, vídeo, documentário ou mesmo, e com ênfase, jogos. Eles
podem ou não ser armazenados na própria coleção, conforme seu licenciamento legal.
Com isto em mente, a abordagem para o desenvolvimento da pesquisa pode ser
considerada a partir das seguintes etapas, não necessariamente estanques:
a. Contextualização do panorama dos jogos digitais e seus conflitos em relação às
categorias de gênero/sexualidade e questões étnico-raciais.
b. Contextualização do cenário dos REAs, seleção e produção de material que realce as
dimensões de gênero/sexualidade e raça/etnia na coleção.
c. Por fim, disponibilização da coleção inicial finalizada e sua divulgação em diversos
espaços, como em grupos de pesquisa sobre jogos e em cursos de especialização e graduação
de jogos digitais, apenas para citar alguns exemplos. Embora tenhamos um enfoque nas áreas
tangenciais aos jogos, nada impede que a coleção seja apropriada por outras áreas que não
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tenham inicialmente alguma relação com jogos, ou jogos digitais, valorizando assim o potencial
dos jogos para conceber formas diferentes de pensar processos educacionais.
RESULTADOS
A construção da coleção, como já dito, está em progresso, assim como a dissertação de
mestrado. Até a presente data foram compilados artigos, documentários, livros, notícias e
exemplos de jogos através dos quais podemos realizar reflexões acerca das questões de gênero
no universo dos jogos digitais. Estes materiais têm sido organizados inicialmente através da
plataforma online Zotero7 no grupo denominado “Gênero e Jogos”. Ressaltamos que ao optar
pelo uso do termo “jogos” e não “jogos digitais” buscamos a abertura para adição de todos os
tipos de jogos e não apenas os considerados digitais ou eletrônicos (videogames), pensamos na
posterior adição de conteúdo sobre jogos de tabuleiro, jogos de interpretação (“RPG de mesa”),
jogos de cartas, etc. Para a presente dissertação e pesquisa, entretanto, nosso foco são os jogos
digitais, mas cabe citar os outros tipos dada sua importância e contribuições na comunidade
como um todo.
Na Zotero a coleção atualmente encontra-se dividida nas seguintes subcategorias:
Acervos, sites e blogues/ Cursos / Depoimentos / Desenvolvedoras, estúdios
e empresas / Grupos de pesquisa e mobilização social / Introdução aos
Estudos de Gênero/ Introdução aos Estudos de Gênero em Jogos Digitais/
Jogos/ Notícias, posts de blogs e artigos online/ Pesquisa Acadêmica/
Podcasts/ Vídeos, séries e documentários
Essas subcategorias são parâmetros iniciais e informais, ainda fluídos e passíveis de
alterações, que se formaram a partir do material encontrado e selecionado até então. A partir
dessas categorizações procuramos proporcionar um espaço de acesso facilitado e didático para
que a ferramenta possa ser utilizada de maneira abrangente, a eficiência das estratégias de
apresentação entretanto só poderá ser verificada a partir de testes com a comunidade.
Nesta compilação observamos algumas barreiras como a questão do idioma, pois
grande parte destes recursos não está em português. Outro aspecto que pudemos notar é
7 Zotero Groups: Gênero e Jogos. Disponível em:
<https://www.zotero.org/groups/gnero_e_jogos/items/collectionKey/FBUNV6MR>. Acesso em 9 de
junho de 2016.
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quantidade ainda tímida e dispersa de itens de origem brasileira ou latinoamericana, em
particular as que trabalham as questões de gênero e inclusão no ensino e desenvolvimento de
jogos, e almejam uma comunidade mais inclusiva.
Para a versão final planejamos que a plataforma de apresentação seja o Arcaz, um
repositório de recursos educacionais abertos que é iniciativa do Departamento Acadêmico de
Informática – DAINF e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade – PPGTE
da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR8.
CONCLUSÕES/CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma das possibilidades levantadas com este trabalho é de que por meio de práticas
e recursos pedagógicos que problematizem as questões de gênero sejamos capazes de
democratizar o espaço do desenvolvimento de jogos digitais, de maneira a viabilizar uma
indústria mais diversificada, com projetos e jogos com discursos mais inclusivos e
transformadores. Outra é de que, uma vez consolidadas uma educação e uma indústria abertas
a reflexão, ou mais abertas em um primeiro momento, desenvolvedoras/es ou jogadoras/es que
transitam esse meio também possam ter viabilizados e garantidos seus direitos de participação
e reconhecidas suas contribuições em igualdade de condições.
Procuramos também incentivar a análise crítica da dimensão cultural dos jogos digitais
e suas repercussões nas sociedades nas quais as tecnologias digitais se mostram mais difundidas
e acessíveis. Nas denominadas culturas digitais, os jogos são bastante disseminados. Suas
implicações, e desdobramentos devem ser considerados para que possam ser apropriados como
ferramentas auxiliares nos processos de democratização e utilizados também como alternativas
pedagógicas na educação.
Investigações na área podem ampliar o horizonte dos jogos digitais, quiça consolidando
seu estudo como área de conhecimento. Considerar as desigualdades sociais que permeiam
nosso cotidiano é o primeiro passo para exercer seu questionamento. Eduardo Aibar (1996)
aponta que o futuro da pesquisa em Ciência Tecnologia e Sociedade precisa considerar os
aspectos políticos das tecnologias e as relações de poder que as permeiam. Denunciar as
pedagogias de socialização de sujeitos seguindo normas - compulsórias de gênero ou
sexualidade, de segregação étnico-racial é uma das maneiras de considerar as relações entre
8 Arcaz: Recursos Educacionais Abertos. Disponível em: <http://arcaz.dainf.ct.utfpr.edu.br/rea/about>.
Acesso em 9 de junho de 2016.
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tecnologia e sociedade enquanto um campo direcionado e gerido por hierarquizações e
assimetrias que dificultam sua democratização.
Por fim, almejamos que possa ser realizada a implementação da coleção, a partir da
proposta iniciada na Zotero e posteriormente no Arcaz, nos espaços relacionados aos jogos,
assim como a disseminação e apropriação da mesma através da sua livre circulação pela rede
mundial de computadores, de maneira a proporcionar às pessoas uma ferramenta de
mobilização que possa viabilizar pontos de partida ou de reforço para o tensionamento da
conturbada relação entre gênero e jogos digitais, com ênfase numa abordagem múltipla, fluída
e em constante transformação que se enquadra no cenário contemporâneo dos jogos e em suas
apropriações.
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