realidade do trabalho doméstico na atualidade
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JOAZE BERNARDINO-COSTA, ANGELA FIGUEIREDO e TNIA CRUZ Organizadores
A REALIDADE DO TRABALHO DOMSTICO NA ATUALIDADE
1 edio
Braslia Centro Feminista de Estudos e Assessoria 2011
FICHA TCNICA
Organizao da verso eletrnica do livro Joaze Bernardino-Costa, Angela Figueiredo e Tnia Cruz Preparao dos originais e reviso final dos textos Daniela de Lima Pinto e Soraya Fleischer
Endereo: SCS Quadra 02, Edifcio Gois sala 602/04 Braslia DF 70317-900 Telefones: (61) 3224-1791 www.cfemea.org.br
Apoio: Fundo Holands para a Meta de Desenvolvimento do Milnio 3 Instituies parceiras ONU Mulheres, Organizao Internacional do Trabalho (OIT), Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada (IPEA), Federao Nacional de Trabalhadoras Domsticas (FENATRAD) 2011, by CFEMEA Centro Feminista de Estudo e Assessoria O contedo desta publicao pode ser reproduzido e difundido desde que citada a fonte. O livro tambm pode ser encontrado em sua verso eletrnica, no stio: (www.cfemea.org.br)
SUMRIO
Histria de vida Marinalva Barbosa
APRESENTAO Natalia Mori, Joaze Bernardino-Costa e Soraya Fleischer
PARTE I
Histria de vida Rosa Maria Mota de Jesus
Situao atual das trabalhadoras domsticas no pas Luana Pinheiro, Natlia Fontoura e Cludia Pedroza
PARTE II
Histria de vida Regina Semio
A PESQUISA QUALITATIVA SOBRE TRABALHO DOMSTICO: DISTRITO FEDERAL E SALVADOR
Trilha metodolgica da pesquisa: uma abordagem a partir das falas e vivncias das trabalhadoras domsticas das regies metropolitanas de Salvador e Braslia Tnia Cruz e Angela Figueiredo
Trabalhadoras domsticas no Distrito Federal e suas condies de trabalho Joaze Bernardino-Costa
Condies e contradies do trabalho domstico em Salvador Angela Figueiredo
Trabalho domstico em perspectiva comparada: Braslia e Salvador Angela Figueiredo e Joaze Bernardino-Costa
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ORGANIZADORES DO LIVRO
ANEXOS Roteiro de entrevista Questionrio
HISTRIA DE VIDA
Marinalva de Deus Barbosa Diretora do Sindomstico, Bahia
Eu nasci no interior da Bahia, na cidade de Maragojipe em 1967. Eram nove meninas, e quatro delas morreram com a doena do mal de sete dias, hoje sabemos que era o ttano das tesouras enferrujadas das parteiras. Meus pais no nos registraram por falta de informao e de dinheiro. Quando eu tinha sete anos, meu pai morreu e minha me se viu com cinco filhas, sem dinheiro e sem apoio familiar, e foi obrigada a distribuir cada uma de ns para casas de parentes, em geral, casais que no tinham [email protected] Ela dizia, Leva uma menina dessas pra criar. Ns nos separamos cada uma pra um lado. Quatro de ns sobreviveram e minha irm, Antonia, morreu de solido e tristeza. Hoje nos reencontramos. Chegando na casa desse casal, comecei a trabalhar na roa. Eles no me registraram nem me colocaram na escola. No tive mais contato com minha me. Passamos a infncia trabalhando e apanhando, sem estudar. Mas o poder de Deus foi to grande em nossas vidas que no sofremos violncia sexual. Passei nove anos com este casal. Um dia, falei pra eles que ia passar a semana Santa na casa de minha me e no retornei mais. Os dois ficaram magoados, mas eu precisava me registrar e correr atrs da escola, dos meus estudos. Em junho de 1981, minha irm me trouxe para Salvador para trabalhar como domstica. A, comecei outra trajetria. Eu me encontrei em uma cidade grande sem saber ler nem escrever, sem registro de nascimento, pegando nibus s pela cor de cada veculo. Mas o sonho da escola no acabou. Depois de dois anos, consegui juntar dinheiro e voltei ao meu lugar de origem, onde tudo comeou para retirar o meu registro de nascimento. Na busca para conhecer as primeiras letras, entrei para o Movimento Brasileiro de Alfabetizao (Mobral), mas no consegui compreender nada. Depois entrei na escola da parquia da Vitria, mas no aprendi nada. Tambm estudei na Escola Visconde de Cairu, mas no consegui a alfabetizao. Finalmente, em julho de 1988, encontrei a professora Lgia, no Colgio Hildete Lomanto, no bairro do Garcia. Foi a que ela pegou na minha mo e me ensinou a desenhar as letras e, finalmente em dois ou trs anos, eu consegui me alfabetizar.
Trabalhei em vrias casas e a carteira s veio ser assinada em 1989 em uma casa que passei 14 anos. Sempre trabalhei para dormir no emprego, pois queria juntar dinheiro para comprar a minha casa sem ter que, enquanto isso, pagar aluguel, pois no daria para juntar dinheiro. Esta uma profisso bonita. de muita responsabilidade cuidar de crianas e idosos, fazer alimentao. muito cansativo, mas prazeroso. Isso quando a gente encontra uma empregadora que no incomoda. O que desanima no ter direitos como FGTS, horas extras, seguro desemprego, adicional noturno e outros. Eu me sinto felizarda, pois as minhas empregadoras no me impediram de estudar e muitas vezes procuravam vagas para mim nas escolas. Quando iniciei a militncia no sindicato, os horizontes se abriram. Eu comecei a me valorizar como trabalhadora e como mulher negra. Trabalhava direto e nos finais de semana participava das atividades da associao. Em 2003, sa do trabalho que tinha carteira assinada e FGTS e assumi o mandato de presidenta do Sindomstico/BA. Foi a que acabou a minha liberdade, pois temos atividades de domingo a domingo e isso muito ruim, pois no tem tempo para o lazer. Seguir minha religio e continuar estudando para mim muito importante, pois conhecimento poder. No temos tempo nem para estar com a famlia, pois o aconchego familiar fundamental. So eles que cuidam de mim quando estou doente, que percebem quando no estou bem, que cuidam das feridas que o movimento se encarrega de abrir. Depois conheci outros movimentos de mulher, negro e poltico, conheci muita gente. Mas amigos eu no fiz, pois a militncia embrutece. Parei de estudar, no consegui fazer a faculdade e isso para mim frustrante, pois a caminhada foi longa para aprender as primeiras letras.
APRESENTAO
Natalia Mori Joaze Bernardino-Costa Soraya Fleischer
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O quadro geral
Hoje, o trabalho domstico a atividade profissional mais realizada pelas mulheres economicamente ativas no Brasil. Milhes de brasileiras dedicam grande parte do seu dia a limpar e cuidar da casa e da famlia de outras mulheres e homens. Alm disso, tanto essas mulheres quanto aquelas que no so trabalhadoras domsticas formais tambm cuidam das suas prprias casas, fazendo faxina, preparando alimentos, zelando por infantes e idosos, garantindo, assim, a reproduo da vida cotidiana. Ou seja, o trabalho domstico est presente na primeira, segunda e/ou terceira jornada da maior parte das mulheres brasileiras. O trabalho domstico tem uma longa relao com o trabalho das mulheres. Em nossas culturas patriarcais e capitalistas, esse trabalho foi destinado s mulheres como exerccio de atividades naturais do sexo feminino. Sendo assim, um trabalho visto sem necessidade de ser remunerado (ou quando pago, muito mal pago) para aquelas pessoas que o exercem, ou ainda, um trabalho cuja sociedade, governos e famlias no conferem qualquer valor contributivo para as riquezas do pas, mesmo havendo estimativas de que cerca de 12,7% do PIB brasileiro1 advm das atividades domsticas de reproduo social. Essa naturalizao gera ainda hoje discriminaes reais ao exerccio profissional das mulheres. De um lado, dificulta o reconhecimento via direitos de uma das maiores categorias profissionais de mulheres, as trabalhadoras domsticas remuneradas. Elas representam aproximadamente sete milhes de trabalhadoras que menos tm direitos em relao a qualquer outra categoria profissional no pas. Por outro lado, invisibiliza o trabalho
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Melo et al, 2005.
de manuteno da vida realizado cotidianamente pela maior parte das mulheres em suas casas, trabalho esse essencial para a prpria organizao da vida produtiva. E ainda, este tipo de trabalho refora uma guetizao profissional das mulheres em atividades ligadas aos cuidados, atividades essas muitas vezes entendidas como uma extenso das qualificaes naturais das mulheres.
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A importncia do tema: Por que devemos continuar pesquisando e debatendo
sobre o trabalho domstico no Brasil?
A anlise sobre trabalho domstico, tema to caro para as mulheres meninas, adolescentes e adultas , merece uma reflexo sobre suas implicaes para a vida das mulheres que se dedicam, remuneradamente ou no, a este trabalho. Consideramos primordial levantar questionamentos que nos permitam compreender a difcil tarefa de conquista de direitos para as mulheres, negras, pobres e que exercem atividades profissionais ou no no mundo privado e domstico, espao este j levantado por vrias tericas como o lugar do no-prestgio, da no-cidadania, do no-direito, da no-pessoa. As anlises feminista e antirracista pontuam a articulao entre patriarcalismo e escravismo na construo social deste trabalho. Estes dois sistemas ideolgicos perversos e fundantes da sociedade brasileira trazem decorrncias at hoje operantes na constituio de uma diviso sexual e racial do trabalho extremamente excludente e desigual. Anbal Quijano2 aponta a diviso racial como um dos elementos estruturantes da desigualdade na Amrica Latina. o fruto persistente do processo de colonizao. A noo de inferioridade racial construda pelos colonizadores, explicou naquela poca e sustenta ainda hoje, a desvalorizao do trabalho realizado pela populao negra e indgena. Ele argumenta que as formas de explorao do capitalismo colonial associaram o trabalho assalariado e no braal branquitude, que o padro de trabalho que confere dignidade e produz direitos a quem o exerce. Ao articularmos a estes elementos da diviso racial do trabalho, aqueles que operam em termos da diviso sexual do trabalho, ou seja, que relegam s mulheres a responsabilidade quase que exclusiva pelo trabalho domstico e de cuidado com a famlia, ento podemos
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Quijano, 2005.
compreender melhor os mecanismos que esto em pleno funcionamento para desvalorizar, invisibilizar e negar direitos s trabalhadoras domsticas. Acreditamos que a depreciao da atividade profissional do trabalho domstico est diretamente relacionada a quem o realiza (mulheres, na maioria das vezes negras), e ao tipo de trabalho que se faz (domstico, rotineiro, manual, reprodutivo, emocional). Porque, como assinala a feminista Betnia vila (2002: 37-38), o tempo despendido pelas mulheres com a reproduo da vida, com o cuidado de pessoas que no podem se autocuidar ([email protected], crianas, doentes, pessoas com deficincia), com aes essenciais para a prpria manuteno das atividades produtivas como educao, vestimenta, alimentao, sade e abrigo no contabilizado como vlido para a organizao social do trabalho, perodo este fruto da expropriao do trabalho das mulheres. Ou seja, a construo do tempo que validada pelo sistema capitalista empregado para as atividades da produo, aquele gerador de mais valia (com jornadas de trabalho definidas, de lazer contado como parte do tempo que sobra das atividades de produo). O tema do trabalho domstico como um trabalho no-produtivo ou reprodutivo esteve em voga nos anos 70, sobretudo devido s indagaes das feministas marxistas no contexto europeu e norte-americano. A leitura crtica feita pelas feministas marxistas s concepes de Marx reside na reduo do trabalho domstico reproduo, entendida como consumo direto da produo pelos produtores. Portanto, somente seria definido como produto o trabalho que colocasse um bem em circulao no mercado ou o ofcio que produzisse um valor de troca. Alm disso, outra crtica residia na reduo do trabalho domstico execuo de tarefas simples, definido como a fora de trabalho que na mdia existe no organismo de qualquer indivduo e que no requer treinamento nenhum. Dentro deste raciocnio, o trabalho domstico visto como um tipo de atividade que no requer qualificao e nem treinamento, sendo um atributo natural das mulheres (Cf. GutierrezRodriguez, 2010). Tanto a reduo do trabalho domstico a trabalho simples quanto a sua diminuio a trabalho reprodutivo explicariam o seu no pagamento, quando realizado pela dona de casa, e o seu baixo valor, quando executado pela trabalhadora domstica. Todavia, a importncia de um bem no naturalmente valorizado ou desvalorizado, mas produto das relaes sociais. Assim, a desvalorizao do trabalho domstico tem a ver no somente com
seu carter reprodutivo, mas com a codificao cultural que o v como um trabalho simples, braal, racializado e femininizado (Cf. Gutierrez-Rodriguez, 2010). Alm disso, como nos lembra a sociloga espanhola Encarnacin Gutirrez-Rodrguez (2010), durante os anos 1970, pontuava-se sobretudo o foco no trabalho reprodutivo das atividades realizadas no mbito domstico. J os anos 1990, inspirados pela sociloga estadunidense Arlie Russell Hochschild (1983), passam a incorporar que o trabalho domstico tambm produz trabalho emocional. Eis que desponta a importncia dos laos e relaes de afeto e constituio emocional que o trabalho domstico produz, s para citar alguns exemplos, a socializao de crianas, o cuidado de [email protected] e deficientes, o apoio em perodos ps-partos e ps-cirrgicos, o acompanhamento de viuvez e luto, domesticar plantas, animais e a prpria estrutura da casa etc. Esse trabalho emocional, to fulcral para a construo social das pessoas, precisa ser considerado e valorizado. Assim, o trabalho domstico tem passado, do ponto de vista acadmico, por vrias perspectivas tericas. Mas todas, de diferentes maneiras, tm reforado a localizao central desse trabalho na esfera social e apoiam que se continue o esforo intelectual, financeiro e poltico em pesquisar, compreender e dignificar esse trabalho. Assim, nos parece que falar sobre direitos sociais para uma profisso essencialmente feminina, negra, com baixa escolaridade e pobre e que se realiza na esfera do mundo privado, aquela esfera cujo Estado tem entendido que no deve legislar ou se intrometer (basta ver os impedimentos para a fiscalizao das relaes de trabalho violentas e discriminatrias que acontecem nas unidades residenciais) no tarefa fcil. Diante de todos os elementos apontados, podemos ter uma melhor compreenso dos padres de desigualdades que configuram o trabalho domstico: seja o trabalho da reproduo social, do cuidado ou do emprego domstico. Por isso, a discusso sobre o tema essencial para a conquista de relaes trabalhistas mais equnimes e igualitrias entre mulheres e homens, negras e negros, [email protected] e trabalhadoras, [email protected] e pobres.
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Uma breve apresentao dos (muitos) nmeros e das (poucas) leis
As pesquisas includas neste livro tero a oportunidade, nos captulos seguintes, de expor seus dados, detalhados e localizados. Por enquanto, nesta Introduo, nosso intuito apresentar um panorama rpido sobre esta categoria profissional, sobretudo no que
concernem os direitos que as trabalhadoras j garantiram e tantos outros que ainda esto longe de seus cotidianos de trabalho. De acordo com a PNAD/2009, o trabalho domstico entendido como trabalho remunerado desempenhado no interior de residncias particulares emprega aproximadamente 7,2 milhes de [email protected], o que corresponde a 7,8% da populao economicamente ativa. Como de amplo conhecimento, trata-se de uma ocupao predominantemente feminina: as mulheres correspondem a 93% dos trabalhadores domsticos no pas, o que corresponde a 6,7 milhes de mulheres ou a 17% da populao economicamente ativa feminina. Por essa razo e tambm s descritas acima sobre a relao entre trabalho domstico e trabalho das mulheres que empregamos o termo no feminino, trabalhadoras domsticas. Cruzando a quantidade de trabalhadoras domsticas do pas com as categorias raciais, percebe-se que 61,6% das profissionais so negras, enquanto 38,4% so brancas. Embora pelo decreto 6.481/2008, que regulamenta a Conveno 182 da OIT sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, o trabalho domstico esteja proibido para menores de 18 anos, ainda foram registrados cerca de 340 mil crianas e adolescentes entre 10 e 17 anos desempenhando o trabalho domstico no pas (IPEA, 2011). A situao das trabalhadoras domsticas no Brasil caracterizada pelo baixo ndice de formalizao e baixos salrios, para mencionar apenas dois traos recorrentemente citados nos estudos sobre esta categoria ocupacional, tem sido informado por um marco jurdico frequentemente restritivo. Obviamente, o sistema jurdico no se configura como um espao autnomo, imune s influncias da sociedade mais ampla. Os poucos avanos da lei mais do que serem produtos dos [email protected] [email protected], refletem a invisibilidade e desvalorizao do trabalho domstico em si, visto como um trabalho no-produtivo. Em outras palavras, a invisibilidade e desvalorizao do trabalho domstico tm sua expresso no sistema jurdico, possuindo, porm, mltiplas causas que reforam sua invisibilidade, como aventadas na seo anterior. A concepo do trabalho domstico como no-produtivo ou no-econmico pode ser verificada de maneira explcita na prpria lei por exemplo, na Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT) ou de maneira implcita nas discusses que os tmidos avanos legais tm provocado. Em 1943, quando a CLT foi aprovada, @s [email protected] [email protected] foram excludos sob a alegao de que desempenhavam atividades no-econmicas:
Artigo 7 - Os preceitos constantes na presente Consolidao, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrrio, no se aplicam: a) aos empregados domsticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam servios de natureza no-econmica pessoa ou famlia, no mbito residencial destas. (Cf. Saffioti, 1978, 37, grifo meu) Nesta importante lei para todo o trabalhismo brasileiro, a meno s trabalhadoras domsticas foi somente para a excluso de benefcios, sob o expresso e equivocado argumento de que o servio domstico no possui natureza econmica. Excludas das vantagens conferidas pela CLT, as trabalhadoras domsticas somente seriam alvo de benefcio legal em 1960, com a lei 3.807, Lei Orgnica da Previdncia Social, que atribua o direito das trabalhadoras domsticas se filiarem previdncia social como seguradas facultativas. Praticamente incua esta lei, haja vista a ausncia de indcios de que as trabalhadoras domsticas efetivamente tenham ingressado no campo da previdncia social. Somente com a lei 5.859/1972, regulamentada pelo decreto 71.885/1973, que se garantiram os primeiros direitos positivos s trabalhadoras domsticas. Esta lei significou o nascimento jurdico das trabalhadoras domsticas e garantiu os seguintes direitos: carteira de trabalho, 20 dias de frias remuneradas por ano, seguro obrigatrio da previdncia social, dando-lhes o direito de aposentadoria3. Outro captulo de avano na legislao pertinente s trabalhadoras domsticas ocorreria na promulgao da Constituio Federal de 1988. Paradoxalmente, essa carta legal maior da nao, conhecida como a Constituio Cidad, novamente no garantiu a igualdade de direitos para as trabalhadoras, a despeito da grande mobilizao feita pelas trabalhadoras domsticas organizadas que entregaram publicamente uma carta aos constituintes demandando sua isonomia. Assim, a ampliao de direitos s trabalhadores domsticos se deu com ressalvas. Dos 34 direitos expressos no Artigo 7, somente nove se aplicam s trabalhadoras domsticas. Esta restrio foi expressa no pargrafo nico deste artigo:
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Entre as reaes mais conservadoras e discriminatrias aprovao da lei 5.859/72, encontrou-se na seo Opinies do Estado de So Paulo, da edio de 23 de outubro de 1972, a seguinte matria, intitulada Ainda o Trabalho Domstico: Nos maiores centros urbanos do pas, os resultados da iniciativa se ela for avante no tardaro de se manifestar. A prostituio aumentaria rapidamente. Seria a sada inevitvel para muitas moas, que vindas das zonas rurais mais pobres, encontram soluo para seus problemas nos empregos domsticos () No preciso ser Cassandra para prever a enorme reduo de empregos domsticos na classe media, se o projeto do Sr. Ministro do Trabalho for transformado em lei. A contribuio de Cr$ 43,00 mensais para a previdncia provocaria uma queda brusca na oferta de empregos. (Cf. Kofes, 2001: 291)
Pargrafo nico So assegurados categoria dos trabalhadores domsticos os seguintes direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como sua integrao previdncia social (Constituio Federal, 1988: Artigo 7, Pargrafo nico).
Portanto, os direitos so os seguintes: IV salrio-mnimo (); VI irredutibilidade do salrio; VIII 13 salrio; XV repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVII gozo de frias anuais remuneradas com, pelo menos, um tero a mais do salrio normal; XVIII licena gestante, sem prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de 120 dias; XIX licena-paternidade (); XXI aviso prvio (); XXIV aposentadoria (Constituio Federal, 1988: Artigo 7).
Alm destes direitos, a Constituio Federal assegurou s trabalhadoras domsticas o direito sindicalizao, expresso no artigo 8. Somente em 2006, com a lei 11.324, garantiu-se expressamente: (a) 30 dias de frias, com o acrscimo de 1/3 a mais do salrio normal; (b) proibio da dispensa arbitrria ou sem justa causa da trabalhadora domstica desde a confirmao da gravidez at cinco meses aps o parto; (c) proibio de descontos no salrio por fornecimento de alimentao, vesturio, higiene e moradia. Ainda nesta lei, com a inteno de aumentar o ndice de formalizao do emprego domstico, garantiu-se /ao empregador/a a possibilidade de descontar do seu Imposto de Renda a contribuio paga pelo INSS de uma trabalhadora domstica, relativo ao valor pago previdncia social por um salrio mnimo. Embora bem intencionada, esta renncia fiscal do Estado no pode ser vista como ampliao de direitos da categoria, posto que beneficia @ empregador/a, ao invs da trabalhadora domstica. Importante dizer que essa legislao foi bastante discutida pelo movimento feminista e pelas trabalhadoras domsticas organizadas na Federao Nacional das Trabalhadoras Domsticas (FENATRAD). Na ocasio, se demandava primeiramente a igualdade de direitos antes de se beneficiar o patronato. Alertava-se para a preocupao de que a limitao a um
salrio-mnimo poderia trazer prejuzos s trabalhadoras que recebem mais de um salriomnimo, o que tem acontecido na prtica e ainda demandou-se do governo federal o retorno da possvel formalizao que o desconto no Imposto de Renda traria, o que significou nmeros nfimos. O Congresso Nacional tambm aprovou, no mbito dessa lei de 2006, o salrio-famlia e o FGTS obrigatrio, que acabaram sendo vetados pelo Executivo Federal, com o mesmo argumento conservador utilizado nos anos 1970 de que a ampliao desses direitos levaria a um possvel aumento do desemprego dessas trabalhadoras. A mais recente conquista legal da categoria foi alcanada pelo j citado decreto 6.481/2008, que regulamenta a Conveno 182 da OIT, listando o trabalho domstico infantil como uma das piores formas de explorao do trabalho infantil, proibindo menores de 18 anos de exercerem esta atividade profissional. Todavia no campo legal, trs questes esto na pauta de reivindicao do movimento das trabalhadoras domsticas: o FGTS obrigatrio (atualmente facultativo), a extenso dos direitos trabalhistas conquistados s diaristas e a igualdade de direitos com relao aos/s demais [email protected], tais como jornada de trabalho regulada em lei, horas-extra, salriofamlia, direitos de negociao coletiva, dentre outros. Apesar das reivindicaes histricas das trabalhadoras domsticas (Cf. BernardinoCosta, 2007) pelo FGTS obrigatrio, em 2001, desconsiderando o dilogo com as trabalhadoras domsticas, o governo aprovou a lei 10.208/2001, estabelecendo o direito facultativo ao FGTS, sendo a escolha por pagar ou no concedida ao/ empregador/a. Nestes termos, a lei tem se mostrado ineficaz, tendo um nmero irrisrio de trabalhadoras contribudo como o FGTS. Quanto s diaristas, os juristas negam a extenso das conquistas legais a estas trabalhadoras, fundamentados na lei 5.859/1792, que define o trabalhador domstico como aquele que presta servios de natureza contnua e de finalidade no lucrativa pessoa ou famlia, no mbito residencial destas (Cf. Lei 5.859/1972, artigo 1). O ponto da discrdia reside na interpretao do significado do termo natureza contnua da referida lei. Em estudo realizado por Dultra e Mori (2008) sobre decises judiciais tomadas pelos vrios Tribunais Regionais do Trabalho, tm se constatado que somente os trabalhos exercidos em trs dias ou mais, sem intervalo e com pagamentos mensais, puderam ter o vnculo de emprego reconhecido, sendo, portanto contemplados pelos direitos j adquiridos pelas trabalhadoras domsticas. (Cf. Dultra e Mori, 2008: 56).
preciso reconhecer, sobretudo, que esta longa jornada de poucas e insuficientes conquistas jurdicas resulta de um ativismo das trabalhadoras domsticas, iniciado na dcada de 1930. Tanto as discusses da CLT na dcada de 1940, a lei 5.859/1972, os avanos da Constituio Federal de 1988, quanto a lei 11.324 de 2006, embora insuficientes, foram resultados do ativismo das trabalhadoras domsticas. Inicialmente, desde 1936, organizadas em associaes profissionais, e posteriormente, a partir de 1988, em sindicatos, as trabalhadoras domsticas tm sido importantes atoras nas conquistas legais mencionadas. Atualmente quase 133 mil trabalhadoras domsticas encontram-se filiadas a sindicatos da categoria (Cf. IPEA, 2011). Em um primeiro olhar este nmero soa como bastante nfimo, entretanto, preciso considerar que a categoria vive num isolamento intramuro, no possui imposto sindical, no h dispensa do trabalho para o exerccio poltico-sindical, enfrenta um forte imaginrio social de desvalorizao da profisso etc. A despeito destas adversidades, a atuao dos sindicatos tem sido fundamental para o avano dos direitos da categoria e para o cumprimento dos direitos j existentes (Cf. Bernardino-Costa, 2007).
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A organizao deste livro
O presente livro tem, por principal objetivo, reunir resultados de projetos e experincias de vida sobre o trabalho domstico. Os dados esto organizados em dois blocos, uma pesquisa realizada pelo IPEA e outra, pelo CFEMEA, com pesquisadores da Universidade de Braslia e da Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Os dois estudos, recentes, nos mostram realidades complementares sobre o trabalho domstico. O IPEA apresenta uma excelente sistematizao de dados quantitativos. O segundo corpo de pesquisadores aprofundou-se numa mirada qualitativa em dois contextos especficos, ao realizar entrevistas com trabalhadoras domsticas em Braslia/DF e em Salvador/BA. Dada a importncia que o tema tem para ativistas feministas e de direitos humanos, essa iniciativa tem o mrito de agregar diferentes atores sociais que vm lutando para o reconhecimento e valorizao do trabalho domstico nos mais diferentes mbitos desde a luta travada diante do Congresso Nacional e do Executivo Federal para a ampliao de direitos, a exemplo do CFEMEA e da FENATRAD; at a produo de conhecimento sobre o tema realizado por [email protected] da academia, institutos de pesquisa e do movimento social; o apoio de organismos do sistema das Naes Unidas que promovem dilogos e
propem polticas pblicas. A partir da iniciativa do CFEMEA que pretendia realizar uma pesquisa piloto em Braslia com carter qualitativo sobre o tema, esses demais atores se juntaram ao desafio de pensar, elaborar e ampliar seu escopo, com vistas a contribuir para a efetiva ampliao de direitos das trabalhadoras, discutindo suas vivncias desse trabalho, a relao ou no com os sindicatos, bem como a presena ainda vigente do trabalho infantil. Toda a pesquisa coordenada por trs [email protected] interessados no tema, Angela Figueiredo (Universidade Federal do Recncavo da Bahia), Tnia Cristina Cruz e Joaze Bernardino-Costa (ambos da Universidade de Braslia). As experincias de vida aparecem ao longo da pesquisa qualitativa, mas tambm optou-se por privilegiar, em primeira pessoa, as narrativas de algumas das trabalhadoras domsticas que acompanharam todo o percurso da referida pesquisa, bem como do projeto que, em maior escala, possibilitou todas atividades aqui envolvidas: a pesquisa, o livro e o evento. O propsito foi conferir destaque para essas verses autobiogrficas resumidas e, assim, incluir estas partcipes tambm no produto impresso de todo esse percurso, bem como trazer descries inteiras (embora, infelizmente jamais completas) de uma mesma mulher trabalhadora domstica, j que, nos artigos, as vozes aparecem recortadas e analisadas. O projeto, Pesquisa qualitativa sobre trabalho domstico: Distrito Federal e Salvador, conduzido pelo CFEMEA com apoio direto do MDG 3 (Fundo Holands para a Meta de Desenvolvimento do Milnio 3), juntamente com o projeto Desbravando questes e percepes sobre o trabalho domstico remunerado a partir de pesquisa qualitativa no Distrito Federal e na Bahia", apoiado pela ONU Mulheres, compreendeu as reunies para preparao do projeto, a pesquisa de campo, as reunies para anlise dos dados. Depois, o mesmo estudo previu que esses resultados fossem reunidos na presente publicao, que foi lanada e discutida no seminrio homnimo, que aconteceu dia 29 de junho de 2011, em Braslia. Esse percurso foi plenamente polifnico e tambm assim desejamos organizar esse livro. Vrias vozes, vrias miradas, vrias vidas.
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Um livro, muitas esperanas
Assim, enquanto tantas mulheres se dedicam a cuidar da residncia, dos [email protected], dos animais de estimao e da famlia de outras mulheres e homens, o cuidado de suas prprias casas e vidas precisa ser remanejado. Na prtica, isso quer dizer, deixar seus [email protected] com outras mulheres; deixar seus pais e/ou [email protected] assistidos por outras mulheres, s vezes parentes; zelar pela sua casa depois do trabalho, j nos momentos mais cansativos do dia ou nos finais de semana, quando a maior parte da populao se dedica a momentos de lazer e descanso. As trabalhadoras domsticas, para manter seus postos, precisam terceirizar sua vida pessoal, tudo aquilo que fica para trs quando fecham a porta de casa para ir trabalhar todo dia de manh. Se no contam com filhas maiores, parentas ou vizinhas que tambm reproduzem a naturalizao entre as ideias de cuidado, feminino, voluntariado e gratuidade , precisam contratar outras trabalhadoras domsticas para essas tarefas em sua prpria casa. Enquanto lutam por direitos trabalhistas, to importantes, tambm ficam pendentes as questes: Quem so @s [email protected] dessas cuidadoras? Que tipo de cuidado recebero? Mais do que direitos, estamos falando de dignidade, afeto, respeito, tempo para viver. Encarnacin Gutirrez-Rodrguez nos ensina algo muito importante. O trabalho domstico, pelo fato de acontecer em um espao de intimidade e domesticidade, lida com relaes sociais muito bsicas: me e [email protected], pai e [email protected], irm/o com irm/o, marido e esposa, consanguneo e afim, [email protected] com [email protected], trabalhador e empregado etc. So todas bsicas no sentido de representarem relaes que encontramos em outros espaos, relaes que se replicam e se ampliam em esferas outras que a casa. Segundo Gutirrez-Rodrguez, o trabalho domstico funda formas de convivncia entre pessoas diferentes. Assim, exemplos positivos e justos de trabalho domstico podem servir como modelos de convivncia para a sociedade como um todo. Deste microcosmo que a casa, podemos lanar padres de profissionalismo e respeito humano a serem seguidos no macrocosmo social brasileiro.
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Agradecimentos
Por fim, gostaramos de registrar nossos agradecimentos a vrias pessoas que foram fundamentais nesse processo. As trabalhadoras domsticas que estiveram presentes em todas as etapas do projeto: Rosa Maria de Jesus, Nila Cordeiro, Regina Semio, Cleide Silva e Marinalva Barbosa e outras companheiras da FENATRAD como sua presidenta, Creusa Maria
de Oliveira. O CFEMEA, como principal organizao realizadora desta iniciativa, nas pessoas de Natalia Mori, como coordenadora geral do projeto, Patrcia Rangel e Fernanda Feitosa como consultoras, Leila Rebouas, Guacira Csar de Oliveira, Francisco Rodrigues Silva, Mirla de Oliveira Maciel e principalmente Sarah Reis que viabilizaram todo o apoio, logstica e tranquilidade para o dia-a-dia do projeto acontecer. Ainda, Daniela Lima e Paulo Roberto, da Ars Ventura, foram impecveis ao preparar os originais para a impresso. Sem o suporte financeiro e a confiana do MDG 3 (Fundo Holands para a Meta de Desenvolvimento do Milnio 3), e tambm o apoio da FENATRAD, IPEA, ONU Mulheres e OIT/Programa Internacional para a Eliminao do Trabalho Infantil, teria sido impossvel concluir esse projeto. Agradecemos, nominalmente, Natalia Fontoura, Luana Pinheiro, Claudia Mara Pedroza e Elizabeth Marins do IPEA, Danielle Valverde, Ana Carolina Querino e Cleiton Lima, da ONU Mulheres, e Maria Cludia Falco, Rafaela Egg e Mrcia Vasconcelos, da OIT. A todas que estiveram conosco, nosso muito obrigada. A todas que estaro conosco nas prximas pginas, boa leitura e boa inspirao, afinal, a luta continua.
PARTE I
HISTRIA DE VIDA
Rosa Maria Mota de Jesus Sindicato das Trabalhadoras Domsticas de Franca, SP
Meu nome Rosa Maria Mota de Jesus, 47 anos, trabalhadora domstica, nascida aos 26 dias do ms de novembro de 1963, na cidade de Guapu, SP. Cresci na fazenda e, com sete anos, j trabalhava na roa. Trabalhei at a idade de dez anos capinando arroz e milho, quebrando cana, batendo feijo e at no terreiro esparramando caf para secar. Em julho de 1975, perdi meu pai. Eu estava com dez anos e oito meses. ramos sete irms/os. Minha irm caula tinha um ano e seis meses. Depois que meu pai morreu, perdemos tudo que tnhamos na fazenda, ento fomos obrigados a deixar a fazenda sem nada e mudamos para a cidade de Franca, SP. Fomos morar num bairro chamado Vila Europa, em uma casa de taipa com cisterna, e o banheiro era um buraco no cho. Tomvamos banho na bacia, no tinha chuveiro. Diante da situao, minha me, que nunca trabalhou, s cuidava dos filhos, teve que trabalhar. O primeiro emprego dela foi numa fbrica de bolsas. Meu irmo com 12 anos foi trabalhar na fbrica de calados, e eu cuidava [email protected] minhas/meus irms/os enquanto mame estava no emprego. Um ano depois, a fbrica que mame trabalhava sofreu um incndio. Minha me teve queimaduras por todo corpo, ficando de cama por um ano, at que melhorou. Ento, tambm fui atuar na fbrica de calados, trabalhei por um perodo, depois fui trabalhar de bab. Sa desta casa que trabalhei como bab e fui executar atividades de domstica na casa de mdicos. Eu lavava, passava, arrumava, cozinhava e cuidava de duas crianas, porque minha patroa trabalhava fora. Meu horrio era das 7h da manh s 18h. Fiquei nesta casa por nove anos e meio e depois pedi demisso. Ento fui para outra residncia, o servio era dobrado, eu ia embora quase 10h da noite. Meus patres eram pessoas muito rgidas, mas eu sabia onde era meu lugar.
Alguns anos depois, comecei com problemas de sade por causa dos trabalhos forados. Tive uma doena chamada espandiloartrose-cervical. Fiquei por quase 30 dias no hospital, passei at por cirurgia. Neste emprego eu sofri demais por causa de preconceitos, no tive coragem de denunciar. Trabalhei nesta casa nove anos, depois que fiquei doente no voltei mais neste emprego e nem trabalhei em outro como domstica. Hoje sou uma dirigente sindical, atuo no Sindicato das Trabalhadoras Domsticas de Franca, onde luto para que no haja preconceito e discriminao no trabalho domstico.
Franca, SP, 9 de maio de 2011
SITUAO ATUAL DAS TRABALHADORAS DOMSTICAS NO PAS
Luana Pinheiro Natlia Fontoura Cludia Pedrosa
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Introduo
O presente captulo dedica-se anlise das condies de vida e de trabalho das trabalhadoras domsticas, que representam uma importante parcela das mulheres brasileiras ocupadas. A partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), busca-se apresentar um panorama atual do perfil dessas trabalhadoras, bem como analisar a evoluo dos principais indicadores relativos ao trabalho domstico na ltima dcada. Apesar de constituir-se em uma realidade para muitas mulheres desde a poca colonial, o trabalho domstico remunerado somente foi reconhecido como profisso em 1972, com a promulgao da lei n 5.859. De acordo com esta legislao, o trabalho domstico passa a ser definido como aquele realizado por pessoa maior de 16 anos que presta servios de natureza contnua e de finalidade no-lucrativa pessoa ou famlia, no mbito residencial destas 4. Isso significa, portanto, que at a dcada de 1970 as trabalhadoras domsticas eram desconsideradas como grupo produtor de um trabalho e objeto de direitos trabalhistas e sociais. A partir deste entendimento, foi instituda a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, ignorando a existncia desta ocupao profissional que, j naquele momento, empregava milhes de brasileiras, responsveis pelas tarefas de cuidados com casas e famlias de suas/seus patroas/es. Este tratamento desigual foi reafirmado e reforado pela Constituio Federal de 1988, que, apesar de garantir conquistas como o salrio-mnimo, o 13 salrio e a licena* As autoras agradecem a inestimvel colaborao de Cristiane Ala Diniz, responsvel pela produo dos dados, e de Marcelo Galiza, pela leitura atenta e ricos comentrios. 4 Compem a categoria, na legislao brasileira, as pessoas que trabalham como [email protected], governanta, bab, lavadeira, [email protected], vigia, motorista particular, [email protected], acompanhante de [email protected], entre outras. @ [email protected] tambm [email protected] [email protected] [email protected], quando o stio ou local onde exerce a sua atividade no possui finalidade lucrativa. SANCHES (2009, p.880)
maternidade de 120 dias, deixou de garantir s trabalhadoras domsticas o mesmo rol de direitos assegurados aos demais trabalhadores brasileiros. De fato, ao elencar, em seu artigo 7, os direitos [email protected] [email protected] [email protected] e rurais, a Constituio restringe, por meio da incluso de um pargrafo nico, quais seriam os direitos assegurados categoria [email protected] [email protected] [email protected] Tentativas de reverso desse quadro foram empreendidas, a partir do esforo de mobilizao da categoria, com intuito de equiparao de direitos. Entre as conquistas alcanadas, destaca-se a lei n 10.208/20015, que criou o Fundo de Garantia por Tempo de Servio (FGTS) e o seguro-desemprego para a categoria, que so, no entanto, facultativos, a depender da escolha [email protected] empregador/a. Cabe ressaltar, tambm, a Lei 11.324/20066, por meio da qual foram finalmente garantidos os direitos a frias de 30 dias (anteriormente estabelecida em 20 dias), estabilidade para gestantes, direito aos feriados civis e religiosos, e proibio de descontos de moradia, alimentao e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho, bem como o estabelecimento de incentivo fiscal, possibilitando ao contribuinte o abatimento dos valores devidos previdncia social na qualidade de empregador/a7, medida que vigorar at 2012, ano-calendrio 2011. Os esforos empreendidos tambm no campo do Executivo para o aperfeioamento da legislao que rege o trabalho domstico, na direo de ampliao de direitos, melhoria da qualidade da ocupao e reduo das desigualdades, ainda produzem resultados tmidos que apontam para a necessidade de que sejam pensados, pelo menos, trs aspectos relevantes: i) as especificidades da ocupao que, ao se realizar no domiclio, dificulta, por exemplo, a inspeo pelo Ministrio do Trabalho e Emprego do cumprimento das obrigaes trabalhistas e a organizao das trabalhadoras que desempenham suas atividades de forma isolada; ii) a permanncia de laos pessoais no ambiente de trabalho, influenciado pelas origens patriarcais e escravistas do servio domstico no Brasil e marcando essa ocupao como um espao desvalorizado e desqualificado, pleno de explorao, discriminaes e excluso; e iii) o surgimento de novas formas deste trabalho, a exemplo das diaristas, que, se por um lado podem apontar para uma maior
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BRASIL, lei n. 10.208, de 23 de maro de 2001. BRASIL, lei n. 11.324, de julho de 2006. 7 BRASIL, Ministrio do Trabalho e Emprego (2007).
profissionalizao da ocupao, de outro tambm trazem maiores riscos de desproteo social. A ideia deste texto apresentar algumas anlises sobre a evoluo do trabalho domstico ao longo da ltima dcada (1999-2009), que permitam identificar movimentos relevantes tanto no que se refere importncia desta ocupao no conjunto da economia, quanto na qualidade e nas condies de trabalho vivenciadas por este grande contingente de mulheres brasileiras. Para esta anlise importante considerar que existem distines internas ao campo do trabalho domstico remunerado que devem ser consideradas. Alm das diferenas existentes em funo da raa/cor ou da regio de trabalho destas mulheres, sero consideradas as caractersticas inerentes aos diversos tipos de vnculos estabelecidos entre trabalhadoras e [email protected], como o fato de morar ou no no local de trabalho e prestar servio em um ou em mais de um domiclio.
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Perfil geral do trabalho domstico 1999/2009
O trabalho domstico remunerado empregava, em 2009, cerca de 7,2 milhes de [email protected], ou 7,8% do total de [email protected] no pas. Esta atividade, porm, no tem a mesma importncia para homens e mulheres, ou para negros e brancos. De fato, o trabalho domstico e sempre foi uma ocupao desempenhada majoritariamente por mulheres e negras. O perfil dessa ocupao remonta no s s razes escravistas da sociedade brasileira, mas tambm s tradicionais concepes de gnero, que representam o trabalho domstico como uma habilidade natural das mulheres. O emprego domstico tem, assim, ocupado posio central nas possibilidades de incorporao ao mercado de trabalho, particularmente das negras, pobres e sem escolaridade ou qualificao profissional. As mulheres correspondem a 93% do total de trabalhadores domsticos proporo que no variou ao longo da dcada e as negras a 61,6% do total de mulheres ocupadas nesta profisso. A importncia quantitativa do grupo de profissionais negras entre as trabalhadoras domsticas tornou-se maior ao longo dos dez anos aqui analisados, uma vez que, em 1999, este mesmo grupo respondia por 55% do total de trabalhadoras. Tal constatao, muito provavelmente, reflete as mudanas na forma de autodeclarao, que so verificadas para a populao como um todo.
Do conjunto das mulheres ocupadas em 2009, 17%, ou 6,7 milhes, tinham o trabalho domstico como principal fonte de renda, valor que alcana quase 20% entre as ocupadas da regio Centro-Oeste e 18% entre as do Nordeste. Entre os homens, esta proporo no alcanava 1% (ver grfico 1) 8.Grfico 1 Proporo de [email protected] que so [email protected] [email protected], segundo sexo. Brasil, 1999 a 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
Se, para a populao masculina, o peso do trabalho domstico manteve-se exatamente o mesmo ao longo dos anos, para as mulheres possvel identificar duas alteraes durante o perodo de anlise. Desde 2001, quando a proporo de mulheres ocupadas no trabalho domstico era de aproximadamente 18% podia-se perceber um movimento contnuo de reduo da importncia desta ocupao que, em 2008, respondia por 15,8% do total das ocupadas. No entanto, em 2009, pode-se verificar uma mudana que contraria esta tendncia: apenas entre 2008 e 2009, houve uma elevao de 1,2 pontos percentuais na proporo de mulheres que estavam neste tipo de ocupao, valor que alcana 17%. Esta modificao foi mais intensa entre as trabalhadoras domsticas das regies Nordeste e Centro-Oeste e menos intenso entre as do Sul e do Sudeste.8
Interessante considerar que, alm de estarem presentes em magnitude bastante diferenciada no emprego domstico, homens e mulheres desempenham atividades tambm bastante diferentes neste campo. Enquanto s trabalhadoras cabem as tarefas de cuidados com a casa e as pessoas, como limpeza e alimentao, executadas no espao interno dos domiclios, aos homens fica a responsabilidade por atividades desempenhadas no espao externo da casa, como jardineiros, motoristas e caseiros.
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Caractersticas das trabalhadoras domsticas
O trabalho domstico ainda mais importante para as trabalhadoras negras, respondendo, em 2009, por 21,8% da ocupao das mulheres deste grupo racial contra 12,6% das atividades das trabalhadoras brancas. Este fenmeno est, tal como mencionado anteriormente, relacionado a uma herana escravista da sociedade brasileira que combinouse com a construo de um cenrio de desigualdade em que as mulheres negras tm menor escolaridade e maior nvel de pobreza e no qual o trabalho domstico desqualificado, desregulado e de baixos salrios constitui-se numa das poucas opes de emprego. Ao se observarem os dados regionais, interessante notar que esta funo torna-se ainda mais importante para as mulheres negras do Sudeste e do Sul, respondendo por cerca de, respectivamente, 25,1% e 24,5% da ocupao destes grupos, ainda que, ao longo da dcada, tenha se verificado uma queda substantiva nestas propores, superando, inclusive, a queda verificada entre as mulheres brancas. Ao longo dos ltimos anos possvel identificar outro fenmeno interessante no grupo das trabalhadoras domsticas: o envelhecimento deste segmento, com a queda proporcional nas faixas etrias mais jovens especialmente at 24 anos e um aumento entre as mais velhas (ver grfico 2). O trabalho domstico infantil entre crianas e jovens de at 17 anos considerado pelo decreto n 6.481/2008, que regulamenta a Conveno 182 da OIT, como uma das piores formas de trabalho infantil, sendo seu exerccio, portanto, proibido em territrio nacional. Ainda assim, em 2009 existiam cerca de 340 mil crianas e adolescentes de 10 a 17 anos no trabalho domstico, o que equivalia a 5% do total de trabalhadoras declaradas naquele ano. Vale registrar, porm, que tem se verificado uma queda contnua e expressiva neste indicador entre 1999 e 2009: naquele ano, eram cerca de 490 mil jovens ocupadas em emprego domstico, correspondendo a uma proporo de 9,7% do total das trabalhadoras domsticas existentes9.
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A queda no trabalho domstico infantil em especial das adolescentes de at 17 anos deve, porm, ser acompanhada de outras aes por parte do Estado, que ofeream alternativas de sobrevivncia para estas meninas. Tal como apontam Dultra e Mori (2008, p.53): Resta saber se, ao proteger essas adolescentes de um trabalho inadequado, esto sendo criadas outras oportunidades de ocupao, polticas pblicas que investem e garantem acesso escola, qualificao profissional. A proteo s ser completa se ao retir-las de espaos insalubres de trabalho, no se inviabilize sua sobrevivncia.
O mesmo movimento de queda tambm verificado entre as jovens de 18 a 24 anos: se, em 1999, elas correspondiam a quase 22% do total de jovens em emprego domstico, em 2009, este valor caiu para 11%. Uma das hipteses aventadas para explicar este fenmeno reside no crescente aumento da escolaridade das jovens mulheres que, com maior qualificao, sentem-se capazes de buscar novas possibilidades de insero no mercado de trabalho, diferentes do socialmente desvalorizado trabalho domstico10. Este, com baixas remuneraes, alto grau de precarizao e carregado de estigmas, parece se configurar como alternativa momentnea somente na ausncia de outras oportunidades. Esta hiptese ganha fora, pois, neste mesmo perodo, houve um aumento na quantidade de jovens mulheres de 18 a 24 anos que estavam disponveis para o mercado de trabalho, seja ocupadas, seja em busca de uma ocupao. Estas mulheres, porm, tm sido mais absorvidas em outras posies que no mais o trabalho domstico, reforando a ideia de que este cada vez mais rechaado por elas.
Grfico 2 Distribuio das trabalhadoras domsticas, segundo faixa etria. Brasil, 1999 e 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
Considerando que as oportunidades educacionais so mais abertas populao branca do que negra, mais jovens negras encontram-se ocupadas no emprego domstico do que brancas (12,6%, contra 10,5%). Evidencia-se, mais uma vez, a importncia desta atividade como alternativa de acesso renda para a populao negra.
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Com a reduo do trabalho domstico infantil e a abertura de outras oportunidades de emprego para as jovens mulheres, as trabalhadoras com idade acima de 30 anos passam a ter cada vez mais importncia neste grupo. De fato, enquanto em 1999 este grupo respondia por 56,5% do total de trabalhadoras domsticas, em 2009 este valor saltou para impressionantes 72,7%. Somente as trabalhadoras com 45 anos ou mais respondiam, sozinhas, por mais de 30% da categoria, em 2009. O fato que os dados apontam para a inexistncia de uma reposio geracional desta profisso, o que significa que o ofcio tem sido sustentado por um estoque de trabalhadoras que tende a se reduzir cada vez mais, seja pelo prprio aspecto demogrfico, seja porque conseguem aposentar-se e retirar-se do mercado. Assim, possvel pensar que, dado o processo de envelhecimento populacional e o surgimento de novas possibilidades ocupacionais para as jovens trabalhadoras, o trabalho domstico, da forma como conhecemos hoje, tende a reduzir-se drasticamente. Em relao aos estudos deste grupo ocupacional, nota-se que, acompanhando o movimento de ampliao da atividade escolar da populao brasileira em geral, as trabalhadoras domsticas saltaram de uma mdia de 4,7 anos de estudo, em 1999, para 6,1 anos, em 2009, um aumento mdio de 1,4 ano de estudo no prazo de uma dcada. Este crescimento, porm, no s no foi capaz de aproximar a escolaridade mdia das trabalhadoras domsticas do aprendizado observado para o conjunto de mulheres ocupadas (excluindo-se as trabalhadoras domsticas), como at mesmo ampliou essa desigualdade, j que, entre 1999 e 2009, o conjunto de mulheres trabalhadoras ampliou seu rendimento escolar em 1,9 ano de estudo, passando de 7,4 anos, em 1999, para 9,3, em 2009 (ver grfico 3). As diferenas regionais encontradas no so to expressivas, sendo que as trabalhadoras domsticas possuem melhor escolaridade no Norte 6,4 anos de estudo e pior no Nordeste 5,8 anos.
Grfico 3 Anos mdios de estudo das trabalhadoras domsticas e das ocupadas*, segundo raa/cor. Brasil, 1999 a 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA Nota: * Exclusive trabalhadoras domsticas.
Tal como nas demais ocupaes do mercado de trabalho, as trabalhadoras domsticas negras possuem escolaridade inferior das brancas. Em 2009, as primeiras possuam cerca de 6,4 anos de estudo, em mdia, contra seis das mulheres negras. Esta desigualdade reduziu-se ao longo do perodo analisado, o que converge com o observado para a populao de forma geral e reflete o maior acesso aos bancos escolares, provocado especialmente pela universalizao do ensino fundamental, que beneficia, inicialmente em maior intensidade, aqueles que mais estavam fora destes espaos, ou seja, as populaes negras. Nota-se, ainda, que as desigualdades raciais na escolaridade das trabalhadoras domsticas so significativamente menores que aquelas encontradas para as ocupadas de forma geral (que alcana 1,9 ano de estudo em favor das mulheres brancas), o que aponta para uma homogeneidade maior do grupo das trabalhadoras domsticas, marcado indiscutivelmente pela baixa escolaridade.
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Caractersticas das relaes de trabalho
Um primeiro aspecto a ser analisado na relao de trabalho no mbito do emprego domstico se refere sua formalizao, evidenciada pela posse de carteira de trabalho
assinada por parte da domstica. Esta , sem dvida, uma caracterstica de relevncia central nas discusses sobre qualidade do emprego domstico, uma vez que o acesso a grande parte dos direitos trabalhistas se d por meio da formalizao do vnculo de trabalho. Para que as trabalhadoras domsticas possam gozar de aposentadoria, licena-maternidade, frias de 30 dias, auxlio doena, aviso prvio, 13 salrio, entre outros, necessrio que a relao de trabalho esteja registrada em carteira. Outra opo o pagamento da contribuio previdncia social como autnoma, que garante alguns desses direitos, mas que depende das possibilidades da trabalhadora domstica arcar sozinha com a sua contribuio previdenciria, o que, como se ver adiante, constitui-se em situao ainda muito residual no contexto brasileiro. O Regime Geral de Previdncia Social (RGPS) est previsto no art. 201 da Constituio Federal como regime de carter contributivo, ou seja, o segurado deve contribuir para ter direito aos benefcios. A previdncia social garante a renda do contribuinte e de sua famlia, em casos de doena, acidente, gravidez, priso, morte e velhice. De maneira geral, a proteo se d com a substituio do salrio [email protected] trabalhador/a contribuinte pela renda que a previdncia transfere a [email protected] nestas situaes ou a/aos suas/seus dependentes, em caso de sua morte11. No caso das trabalhadoras domsticas, a lei n 5.859/1972, assegura a essa categoria, em seu artigo 4, os benefcios e servios da Lei Orgnica da Previdncia Social. Nesta categoria profissional, a contribuio ocorre de maneira diferenciada para a previdncia social. A/O empregador/a paga mensalmente 12% sobre o salrio de contribuio de sua(s)/seu(s) [email protected](s) [email protected](s) enquanto o recolhimento normal das demais categorias de 20% sobre a folha salarial e a profissional responsvel pelo pagamento do restante da contribuio de 8 a 11%, de acordo com o salrio-contribuio12. Assim, por
11
Os benefcios concedidos pela previdncia social, em geral, so: aposentadoria por idade; por invalidez; por tempo de contribuio e aposentadoria especial; auxlio-doena, acidente e recluso; penso por morte; salrio maternidade e salrio famlia. Porm nem todos estes benefcios so concedidos s trabalhadoras domsticas. A profissional contribuinte no far jus aposentadoria especial, s prestaes por acidente do trabalho e ao salrio-famlia. 12 De acordo com a Portaria Interministerial Ministrio da Previdncia Social/ Ministrio da Fazenda n 568, de 31 de dezembro de 2010, a tabela de contribuio segue a seguinte porcentagem: Tabela de contribuio dos segurados empregado, trabalhador/a [email protected] e trabalhador/a [email protected], para pagamento de remunerao (a partir de 1 de janeiro de 2011) Salrio-de-contribuio (R$) at R$ 1.106,90 Alquota para fins de recolhimento ao INSS (%) 8,00
exemplo, se a trabalhadora ganha R$ 545,00, o salrio-mnimo nacional em 2011, so descontados R$ 43,60 (8,0% da empregada) e R$ 65,40 (12% [email protected] empregador/a), gerando um total de R$ 109,00 a ser pago por meio da Guia da Previdncia Social (GPS). Ao longo da ltima dcada, pde-se verificar um movimento de ampliao da formalizao [email protected] [email protected] de modo geral. Este bom comportamento do mercado de trabalho, porm, esconde situaes de extrema precariedade e excluso. Este o caso das trabalhadoras domsticas que, em 2009, apresentaram ndice de formalizao de apenas 26,3%, o que significa que, do contingente de 6,7 milhes de ocupadas nesta profisso, somente 1,7 milho possua alguma garantia de usufruto de seus direitos. Ainda muito distante da mdia de formalizao das trabalhadoras assalariadas em outros setores (69,9%, em 2009), as trabalhadoras domsticas vivenciaram, ao longo da dcada, um crescimento tmido na proporo daquelas que contavam com carteira assinada, que no foi capaz de reduzir a desigualdade verificada entre elas e as trabalhadoras de outras categorias profissionais (ver grfico 4).
Grfico 4 Proporo de trabalhadoras domsticas e assalariadas* com carteira de trabalho assinada, segundo raa/cor. Brasil, 1999 a 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE
de R$ 1.106,91 a R$ 1.844,83
9,00
de R$ 1.844,84 at R$ 3.689,66 11,00 Fonte: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/65/MF-MPS/2010/568.htm
Elaborao: IPEA Nota: * Exclusive trabalhadoras domsticas.
A situao de desproteo grave para o conjunto de trabalhadoras domsticas, independentemente de sua cor/raa e da regio de residncia. Para alguns grupos, porm, esta condio ainda mais intensa, evidenciando que, na excluso e desamparo, existem grupos mais afetados e vulnerabilizados. Ao se observar a raa/cor das trabalhadoras, notase que a informalidade na ocupao mais expressiva para as mulheres negras, grupo que contava com uma taxa de formalizao de apenas 24,6%, do que para as brancas, cuja taxa alcanava 29,3%. Ao longo do perodo 1999-2009, as trabalhadoras negras conseguiram uma melhora de 3,4 pontos percentuais na sua formalizao, frente a 2,4 pontos entre as brancas, uma nfima aproximao entre dois grupos to precarizados. Na comparao regional, impressionam as desigualdades verificadas e as situaes de extrema excluso e precarizao do emprego domstico vivenciado por estas mulheres. Enquanto as domsticas do Sul e Sudeste apresentavam taxa de formalizao de 32% e 33%, respectivamente, no Nordeste esta proporo de 13,8% e no Norte alcana meros 12,5%. Isso significa que apenas 12 em cada 100 trabalhadoras nortistas so registradas e contam com a proteo do Estado frente a situaes de vulnerabilidade permanente ou temporria. As nordestinas foram, inclusive, aquelas que menos ganharam ao longo do perodo analisado, passando de um total de 13,0% de trabalhadoras formalizadas para 13,8%, em 2009. No outro extremo, as que mais cresceram no perodo foram aquelas residentes no Centro-Oeste, que saram de 16,3% para 26,4% (ver grfico 5).Grfico 5 Proporo de trabalhadoras domsticas com carteira de trabalho assinada. Brasil e Grandes Regies, 1999 e 2009
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
A alternativa que se abre s trabalhadoras que no desejam ou no conseguem estabelecer qualquer tipo de vnculo com suas/seus [email protected], sejam elas diaristas ou mesmo mensalistas sem carteira assinada, a filiao previdncia social na condio de contribuintes individuais. Neste caso, o recolhimento da contribuio previdenciria feito exclusivamente pela profissional, ms a ms, de acordo com os seus rendimentos, com as mesmas alquotas referentes contribuio da empregada com carteira assinada (8 a 11%). Esta opo foi adotada por aproximadamente 250 mil trabalhadoras domsticas em 2009, o que elevou a proporo de contribuintes da previdncia para 30,1%, valor que era de 25,9%, em 1999 (ver grfico 6). Assim como verificado para a questo da carteira assinada, as mulheres negras tambm contribuam menos para a previdncia do que as brancas (27,7% frente a 33,9%) e as ocupadas no Norte e Nordeste contribuam menos que as demais, alcanando apenas 13,4% das trabalhadoras no Norte e 38,3% no Sudeste.
Grfico 6 Proporo de trabalhadoras domsticas que contribuem para a previdncia social, segundo cor/raa. Brasil, 1999 a 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
O reduzido nmero de trabalhadoras que conseguem contornar a desproteo social via contribuio individual aponta para importantes gargalos que devem ser considerados pelos executores das polticas. Em primeiro lugar, h que se levar em conta que, diante dos baixos salrios recebidos pelas trabalhadoras e das precrias condies de trabalho e de
vida, o fato de terem que arcar sozinhas com a contribuio previdenciria (correspondente a 8 a 11% da renda) um peso que grande parte destas mulheres no consegue sustentar. Ademais, existe um grande desconhecimento acerca da prpria existncia da possibilidade de contribuio individual. A disseminao macia desse tipo de informao poderia contribuir na incluso de profissionais no registradas [email protected] [email protected], especialmente daquelas que prestam servios em mais de uma residncia e que tm, tal como mencionado anteriormente, dificuldades em estabelecer e/ou comprovar seus vnculos empregatcios. Uma varivel importante para a anlise das condies de trabalho das trabalhadoras domsticas a jornada de trabalho, entendendo-se esta como a soma da jornada no mercado de trabalho horas gastas no trabalho desempenhado para @s [email protected] com o tempo empreendido no trabalho reprodutivo horas gastas com os afazeres domsticos e os cuidados com a prpria famlia. Este aspecto particularmente interessante por, no mnimo, duas razes. A primeira delas remete ao fato de que a Constituio Federal de 1988 no estende s trabalhadoras domsticas o direito a uma jornada de at oito horas dirias e 44 horas semanais. A questo das horas gastas, portanto, permanece sem qualquer tipo de regulamentao, inviabilizando, entre outras questes, a demanda por pagamento de horas extras e dificultando as negociaes entre trabalhadoras e [email protected] sobre os limites para o tempo de trabalho. A segunda razo reporta to conhecida dupla jornada feminina, caracterizada pela soma do tempo dedicado ao trabalho no mercado e aos afazeres domsticos e cuidado com a famlia. Em 2009, as mulheres ocupadas em emprego domstico tinham uma jornada total de trabalho de 58 horas semanais, na mdia. Este perodo se decompunha em 35,3 horas dedicadas ao exerccio profissional e outras 22,7 horas s atividades de cuidados com a casa e a famlia. O mesmo cenrio podia ser encontrado para as mulheres ocupadas em outras atividades profissionais, que tambm gastavam em torno de 35,3 horas no trabalho dito produtivo e 21,6 horas no dito reprodutivo13. O interessante aqui que, no caso da trabalhadora domstica, o tema da dupla jornada adquire contornos especiais, pois, neste particular, tanto o trabalho produtivo, quanto o reprodutivo esto relacionados
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Ao investigar sobre durao das jornadas, a PNAD pede ao entrevistado que estime quanto tempo gastou em afazeres domsticos e na principal ocupao no mercado de trabalho ao longo de uma semana especfica. Como as atividades domsticas desempenhadas em benefcio prprio, e no como atividade profissional, so difusas, corriqueiras e invisveis, supe-se que os valores declarados estejam subestimados e sejam menores do que as horas efetivamente gastas com estas tarefas.
exatamente s mesmas atividades. Isso significa, portanto, que estas trabalhadoras ficam submetidas a um tempo quase integral em atividades domsticas, sendo uma parcela destas atividades usualmente remunerada e a outra no. J no caso das trabalhadoras ocupadas em outros setores profissionais, em geral h uma diferenciao entre o tipo de trabalho executado para o mercado e aquele desempenhado para o seu domiclio ou sua famlia. O grfico 7 apresenta as jornadas de trabalho produtivo e reprodutivo para vrios grupos de trabalhadoras domsticas, buscando evidenciar as possveis desigualdades existentes entre elas. De pronto interessante notar que no existem diferenas significativas quando se trata de analisar as jornadas das trabalhadoras segundo raa ou cor. J na anlise regional, percebe-se um perodo um pouco mais intenso para as trabalhadoras do Nordeste (60,1 horas semanais), resultado de um maior nmero de horas gastas no trabalho domstico intermediado pelo mercado (37,6 horas, comparadas a uma mdia nacional de 35 horas/semana).
Grfico 7 Jornada de trabalho total das trabalhadoras domsticas, segundo raa/cor, por tipo de trabalho. Brasil e grandes regies, 2009 (em horas semanais)
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
Especificamente para esta varivel, os dados apresentados recobrem apenas os anos de 2001 a 2009, uma vez que o IBGE somente comeou a coletar informaes sobre as horas gastas de trabalho em afazeres domsticos a partir de 2001. Observando a evoluo da jornada de trabalho ao longo deste perodo, nota-se o estabelecimento de um padro de reduo no tempo dedicado ao trabalho domstico total, seja ele voltado para o mercado,
ou no. Se, em 2001, as trabalhadoras domsticas trabalhavam em torno de 63 horas semanais nestas atividades, em 2009, este valor alcanou 58 horas, uma reduo de pouco mais de cinco horas no perodo. Esta queda se deve mais variao verificada na jornada de trabalho destinada ao mercado, que foi mais intensa do que aquela percebida nos afazeres domsticos da prpria trabalhadora quatro horas a menos no primeiro caso e 1,2 hora, no segundo. A reduo expressiva no perodo dedicado s atividades profissionais pode estar relacionada ao aumento da proporo de trabalhadoras diaristas que, como se ver a seguir, possuem jornadas inferiores s mensalistas e, especialmente, s residentes no mesmo domiclio de trabalho, grupos que tm perdido importncia ao longo dos anos. Interessante que esta queda na jornada total de trabalho das trabalhadoras domsticas foi acompanhada pelo mesmo fenmeno entre as profissionais ocupadas em outros setores: entre 2009 e 2011 verificou-se reduo de cerca de duas horas semanais no tempo total de trabalho. No entanto, esta alterao foi integralmente resultado da reduo do tempo que as ocupadas despendiam em afazeres domsticos14, j que quando se observa a jornada no mercado houve, inclusive, um aumento de 0,3 horas. Na comparao entre jornada de trabalho das trabalhadoras domsticas com e sem carteira de trabalho assinada destaca-se o fato de que as profissionais com carteira despendem, em mdia, 63 horas semanais em atividades domsticas voltadas para o mercado e para os afazeres domsticos, frente a um total de 56,2 horas gastas por aquelas que no possuem carteira assinada. Esta discrepncia pode ser explicada por uma maior jornada das trabalhadoras formalizadas em atividades dedicadas ao mercado, na qual foram gastas 43 horas semanais, em mdia, ao passo que, entre as sem carteira, esse valor foi de 32,4 horas. Importante destacar que a maior jornada de trabalho no mercado, para as domsticas com carteira, est relacionada ao fato de que estas so, em maior proporo, trabalhadoras que residem nos ambientes em que trabalham e/ou que prestam servios em apenas um domiclio, distines que, tal como ser visto a seguir, so mais favorveis explorao do tempo de trabalho da categoria. A PNAD permite identificar, ainda, o tempo mdio de permanncia [email protected] [email protected] na ocupao em que se encontram [email protected] Em 2009, as trabalhadorasA reduo no tempo gasto pelas mulheres em afazeres domsticos pode ser explicada por uma conjuno de fatores dentre os quais se destaca o aumento de sua presena no mercado de trabalho, o acesso a alguns equipamentos, como mquina de lavar roupas e geladeira bem como a servios de infraestrutura social, como energia eltrica e gua, via poltica de cisternas.14
domsticas encontravam-se empregadas no mesmo domiclio, em mdia, havia 58,2 semanas, ou aproximadamente 14 meses, sendo que entre as mulheres brancas esta mdia chegou a 60,5 semanas, ao passo que entre as trabalhadoras negras era um pouco inferior, de 56,8 semanas. Entre as regies, destaca-se, por um lado, o Norte, onde as domsticas permanecem cerca de 41 semanas no mesmo emprego e, por outro, o Sudeste, que emprega suas trabalhadoras por um perodo de 64,8 semanas. Algumas importantes questes devem ser destacadas nesta anlise. Em primeiro lugar, vale mencionar as significativas diferenas no tempo mdio de permanncia das mulheres ocupadas em emprego domstico ou em outros tipos de atividade. Em 2009, as ocupadas de modo geral ficavam 92,2 semanas no seu trabalho principal, o que corresponde a cerca de oito meses, em mdia, a mais do que as domsticas e evidencia a maior fragilidade do vnculo de trabalho destas trabalhadoras junto a suas/seus [email protected] H, em qualquer ocupao analisada, uma diferena importante entre mulheres e homens. Neste caso, os homens ocupados em trabalho domstico permaneciam aproximadamente cinco meses a mais em seus empregos do que as mulheres trabalhadoras domsticas, enquanto entre os trabalhadores em geral, essa diferena era de oito semanas. Esta desigualdade resultado, entre outros fatores, da maior precariedade do vnculo de trabalho das mulheres (entre as domsticas, cerca de 75% no possuam carteira e entre os homens na mesma ocupao esse valor era de 55%) e, tambm, dos desligamentos ocasionados pelo ciclo reprodutivo feminino e pelas responsabilidades familiares que ainda recaem majoritariamente sobre as mulheres e so percebidas, [email protected] [email protected], como custos associados ao trabalho feminino. Cabe destacar, ainda, nesta caracterizao do universo de trabalhadoras domsticas brasileiras, o tema da sindicalizao. A associao aos sindicatos e a atuao poltica via organizaes de classe envolviam, em 2009 apenas 18% do total de [email protected] e [email protected] Se esta proporo j pode ser considerada bastante baixa, a realidade do trabalho domstico ainda mais desanimadora. Os ltimos dados disponibilizados pelo IBGE apontam que nfimos 2% das trabalhadoras domsticas, ou aproximadamente 133,7 mil mulheres, eram filiadas a algum sindicato reconhecido pelo Ministrio do Trabalho ou registrado em cartrio como tal. Em 1999, porm, esta proporo era de 0,89% das trabalhadoras, o que mostra, por um lado, uma trajetria de ampliao da sindicalizao, mas, por outro, uma temporalidade que no condiz com as necessidades desta categoria em
termos de demandas por direitos e representao. Em termos regionais, as nordestinas foram as que apresentaram maior taxa de sindicalizao (4,3%), e as do Norte as que tiveram menor percentual (0,6%), o que, deve estar relacionado distribuio desigual dos sindicatos por todo o pas. Apesar de tambm apresentarem taxas reduzidas de sindicalizao, 4,1% dos homens ocupados em emprego domstico eram filiados a sindicatos, proporo superior verificada para as mulheres. De fato, as diferenas no tipo de trabalho domstico desempenhado por homens e mulheres explicam boa parte dessa desigualdade. Mas sobretudo a responsabilidade feminina pelas tarefas domsticas relacionadas sua prpria famlia e sua residncia que restringe o tempo livre para atuao nas organizaes de classe e pode explicar, em grande medida, essa desigualdade de gnero no que diz respeito sindicalizao, o que pode ser extrapolado para o conjunto de mulheres brasileiras ocupadas. Alguns estudos apontam, ainda, para o envolvimento das trabalhadoras domsticas com o movimento negro antes de ingressarem no movimento sindical e de defesa da categoria. Pelo fato de ser uma categoria explorada e marcada pelo racismo e pela herana da escravido, a atuao poltica iniciada via organizaes negras ou de mulheres negras parece constituir-se em um caminho importante para a entrada no movimento sindical. Em especial, porque rompe com o isolamento vivenciado pelas trabalhadoras em seu espao de trabalho, favorecendo a conscincia, a mobilizao e a articulao para uma atuao poltica em prol da categoria. Assim, a sindicalizao tem sido mais frequente entre trabalhadoras negras do que brancas: em 2009, 2,2% das primeiras e 1,6% das ltimas encontravam-se filiadas a um sindicato. A baixa taxa de associao a sindicatos o resultado de um conjunto de dificuldades tpicas das especificidades do trabalho domstico, mas tambm do fato de este ser um trabalho desvalorizado e precrio, exercido majoritariamente por mulheres. Assim, preciso, tal como aponta Bernardino-Costa (2007a, p.38) ter em mente que quando falamos em sindicalismo das trabalhadoras domsticas estamos falando, como elas mesmas definem, em um sindicalismo herico, que no tem contribuio sindical, no tem desconto em folha, onde as trabalhadoras no esto reunidas no mesmo local de trabalho, onde as trabalhadoras em geral no so remuneradas ao assumirem um cargo de direo no sindicato etc. Em funo deste modelo, conformou-se, no pas, uma pequena e limitada
rede de organizaes sindicais que representam as trabalhadoras domsticas15. Em meados de 2007, podiam ser contabilizadas apenas cerca de 45 organizaes polticas de trabalhadoras domsticas no pas, sendo que nem todas configuravam-se em sindicatos e/ou eram dirigidas por trabalhadoras domsticas16. Finalmente, como resultado de todas estas condies de insero profissional, uma importante caracterstica do emprego domstico brasileiro so as baixas remuneraes. Ao lado da precarizao devida falta de acesso aos direitos trabalhistas, e complementando-a, as remuneraes recebidas pelas trabalhadoras domsticas em geral so muito baixas. Em 2009, a remunerao mdia alcanou R$ 386,45 ao ms. No mesmo ano, o salrio-mnimo nacional era de R$ 465,00. Na srie histrica da dcada, percebe-se que, a despeito do aumento da renda da trabalhadora domstica, no h uma aproximao com o valor do salrio-mnimo (ver grfico 8), o que revela, mais uma vez, a desvalorizao dessa atividade no Brasil.Grfico 8 Salrio-mnimo e renda mdia das trabalhadoras domsticas. Brasil, 1999 a 2009
Isso no significa, porm, que este grupo no seja organizado e no procure interferir nos processos polticos, mas que essa mobilizao historicamente encontrou outros caminhos para se processar. De fato, ainda que o trabalho domstico s tenha sido reconhecido como profisso em 1972, as organizaes polticas de trabalhadoras domsticas ainda no formato de associaes e grupos datam de 1936, quando foi fundada a Associao dos Empregados Domsticos de Santos, por Laurelinda de Campos Melo. Somente em 1988, porm, quando foi promulgada a Constituio Federal, que estas associaes e grupos comearam a se transformar em sindicatos. (BERNARDINO-COSTA, 2007b) 16 H o registro de alguns sindicatos que foram fundados por outros profissionais (especialmente advogados e contadores) e que no tm uma atuao voltada para a luta poltica da categoria (BERNARDINO-COSTA, 2007b, p.333).
15
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA Obs.: Valores deflacionados para 2009 pelo ndice Nacional de Preos ao Consumidor (INPC).
Este considervel aumento da renda das trabalhadoras ao longo do perodo analisado pode ser explicado em grande medida pelo fato de que, apesar do alto grau de informalidade dessas profissionais e de a renda estar persistentemente abaixo do salriomnimo, este segue como parmetro para a remunerao das domsticas. Em nenhuma grande regio o rendimento mdio alcana o patamar do salrio-mnimo, mas as diferenas regionais so bastante relevantes. Enquanto no Nordeste, em 2009, a renda mdia era de R$ 254,46, a menor do pas, na regio Sudeste, era de R$ 451,06, ou 16,7% superior mdia nacional. Mesmo representando 62% do total de trabalhadoras domsticas no pas, as negras recebiam, em 2009, uma remunerao mdia de R$ 364,84, ao passo que as domsticas brancas recebiam R$ 421,58. Aqui, mais uma vez se revela a discriminao racial, que se soma e se mistura discriminao de gnero, colocando as trabalhadoras domsticas pretas e pardas numa posio de grande vulnerabilidade. Os baixos rendimentos das trabalhadoras domsticas se devem em grande medida aos altssimos nveis de informalidade dessa atividade, como tratado anteriormente. De fato, possuir ou no uma carteira de trabalho assinada tem repercusso direta sobre o salrio das trabalhadoras. Conforme pode ser visto no grfico 9, a renda das trabalhadoras com carteira assinada no somente alcana o patamar do salrio-mnimo, mas o supera em considervel medida. Em 2009, as trabalhadoras formalizadas apresentavam renda mdia de R$ 568,00, isto , mais de 100 reais acima do salrio-mnimo nacional.
Grfico 9 Salrio-mnimo e renda mdia das trabalhadoras domsticas, por posse de carteira de trabalho assinada Brasil, 1999 a 2009
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA Obs.: Valores deflacionados para 2009 pelo INPC.
Os
trabalhadores
domsticos
do
sexo
masculino
apresentam
rendas
consideravelmente mais elevadas que as mulheres na mesma posio: R$ 556,73, em 2009, ou 44% a mais do que recebiam as trabalhadoras domsticas. Uma das possveis explicaes para esta disparidade estaria no fato de que os trabalhadores domsticos assumiriam funes diferenciadas, como caseiros, motoristas e jardineiros. Resta saber por que esses ofcios merecem ser mais bem remuneradas, tendo em vista que, em geral, afiguram-se mais dispensveis para as famlias. Evidncia disso ocorreu no perodo da crise econmica de 2008/2009, durante o qual o trabalho domstico apresentou a maior queda relativa entre os homens (-5,66%, seguido pela indstria, com -4,81%), enquanto o trabalho domstico feminino apresentou queda inexpressiva (-0,89%)17. O que estes dados parecem mostrar que o trabalho domstico executado por homens no se configura em um bem de primeira necessidade para as famlias, podendo ser mais facilmente dispensado do que o executado por mulheres. Isso ocorre devido estrutura diferenciada do mercado de trabalho feminino e masculino, no qual as atividades desenvolvidas por [email protected] [email protected] so intrinsecamente diferentes: enquanto a eles cabem ocupaes como jardineiro, caseiro e17
Ver BRASIL, 2009.
motorista, s mulheres cabem as tarefas de cuidado com casa e crianas, que se constituem em atividades fundamentais para a reproduo cotidiana das famlias (BRASIL, 2009, p. 4950). A despeito da baixa remunerao que auferem, a renda das trabalhadoras domsticas aparece como bastante importante para o rendimento total de suas famlias. Em 2009, a receita do trabalho das domsticas respondia por 39,8% da renda familiar. Essa proporo maior entre aquelas com carteira assinada (47,5%) e para aquelas que trabalham em mais de um domiclio (41,6%), categorias com remunerao mdia superior. Esta importncia ainda maior ao se perceber que o valor do trabalho das ocupadas em geral (exclusive as domsticas) respondia por 35,3% de suas rendas familiares, o que demonstra que, apesar de receberem renda bastante inferior s ocupadas, o salrio destas trabalhadoras ainda mais decisivo para a manuteno de suas famlias. As situaes de baixas remuneraes e de significativa importncia destas para a renda familiar levaram a uma situao na qual, em 2009, 37,6% das residncias chefiadas por trabalhadoras domsticas se encontravam abaixo da linha de pobreza, sendo que 25,6% destes eram domiclios pobres e 12,0%, extremamente pobres18. Em 1999, esta proporo era de 55,6%. A considervel diminuio est certamente relacionada: i) ao aumento da renda do trabalho nos ltimos anos, especialmente em funo da valorizao do salrio mnimo, que se configura em um importante indexador da receita da trabalhadora domstica; e ii) s polticas de combate pobreza via transferncia de renda. No entanto, a ainda elevada proporo de domiclios chefiados por trabalhadoras domsticas em situao de pobreza leva reflexo a respeito dos chamados pobres que trabalham (working poor)19, entre os quais certamente a categoria das ocupadas em atividades domsticas tem grande relevncia.
Foram considerados pobres aqueles domiclios cuja renda per capita era de at salrio-mnimo e extremamente pobres aqueles nos quais a renda per capita no alcanava de salrio-mnimo. 19 Mesmo as pessoas que efetivamente obtm renda por meio do trabalho podem se defrontar com o fato de que sua insero to precria que no proporciona uma renda suficiente para suprir suas necessidades bsicas. (...) possvel que essa insero precria no seja temporria, contudo, no caso [email protected] [email protected] estarem confinados em ocupaes de baixa renda e terem pouca mobilidade, isto , serem incapazes de migrar para outras ocupaes. Isso seria o caso tanto de [email protected] com salrios reduzidos e com pouca capacidade de elev-los via ao coletiva quanto de [email protected] no assalariados atuando em atividades de baixa produtividade e/ou incapazes de se apropriar do valor produzido (...) Exemplos do primeiro caso seriam @s [email protected] [email protected] (IPEA, 2010, p. 289).
18
5
Trabalhadoras diaristas e mensalistas
As diferenas no perfil das trabalhadoras segundo tipo de vnculo estabelecido junto a suas/seus [email protected] so relevantes e merecem ateno especial, na medida em que apontam para condies de maior ou menor vulnerabilidade e precarizao do trabalho. Uma primeira distino importante a ser analisada refere-se quela estabelecida entre as trabalhadoras que prestam servios para um domiclio e aquelas que declaram trabalhar em mais de um, popularmente conhecidas como mensalistas e diaristas, respectivamente20. Entre 1999 a 2009, possvel verificar uma queda na proporo de trabalhadoras que prestavam servios em apenas um domiclio: este valor caiu de 82,8% para 70,7% do total de trabalhadoras. De forma complementar, a importncia do trabalho das diaristas cresce expressivamente no perodo, envolvendo, em 2009, quase 30% da categoria, valor que era de 17,2% uma dcada antes (ver grfico 10). Este fenmeno, que marca a reconfigurao do modelo tradicional de trabalho domstico brasileiro, foi um pouco mais intenso para as trabalhadoras brancas 32,1%, contra 27,6%, das negras e para aquelas que residem nas regies sul e sudeste respectivamente, 35,2% e 31,6% do total.
O questionrio da PNAD no levanta a informao sobre o arranjo de trabalho da trabalhadora domstica nem questiona se mensalista ou diarista, mas somente se trabalha em um domiclio ou em mais de uma residncia. No presente estudo, denominamos diaristas aquelas que responderam trabalhar em mais de uma casa e mensalistas aquelas que prestam servios somente em um domiclio. Sabemos, contudo, que podem existir trabalhadoras domsticas que recebem por ms, mas prestam servios em mais de um domiclio ou fazem dirias nos dias de folga, por exemplo, e, de forma anloga, diaristas que trabalham em somente uma casa, entre outros muitos arranjos possveis encontrados.
20
Grfico 10 Proporo de trabalhadoras domsticas que prestam servio em mais de um domiclio, segundo raa/cor. Brasil, 1999 a 2009.
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
Em relao escolaridade destes dois grupos de empregadas, vale destacar que no existem diferenas relevantes entre elas: tanto as diaristas, quanto as mensalistas, apresentavam, em 2009, mais de seis anos de estudo (6,3 para as primeiras e 6,4 para as segundas). As diferenas raciais ou regionais tambm no eram significativas, reforando, mais uma vez, a ideia de uma categoria marcada pela baixa escolaridade e, portanto, homognea neste sentido. Quanto jornada total de trabalho, as trabalhadoras que prestam servios em apenas um domiclio tm horas gastas de trabalho total ligeiramente superiores s que trabalham em mais de um ambiente. Em 2009, estes perodos eram de, respectivamente, 59 e 55 horas semanais. A diferena entre as duraes do trabalho integralmente explicada pela jornada em atividades profissionais, que alcana 32 horas entre as diaristas e superiores 36,7 horas entre as mensalistas. No caso do tempo gasto em afazeres domsticos prprios, ambos os grupos despendiam, em mdia, 23 horas semanais (ver grfico 11). Mais uma vez percebe-se a reduo das jornadas ao longo dos anos que, no entanto, foi da mesma magnitude para diaristas e mensalistas.
Grfico 11 Jornada de trabalho total das trabalhadoras domsticas, segundo tipo de vnculo empregatcio, por tipo de trabalho. Brasil, 2009. (em horas semanais)
Fonte: PNAD/ IBGE Elaborao: IPEA
Neste tipo especfico de distino do trabalho domstico, fica claro que as trabalhadoras diaristas contam com uma carga de trabalho menor em relao s mensalistas, o que seria um dos benefcios deste novo modelo de trabalho a compensar a reduo nos nveis de formalizao, mais baixos para esta categoria. Contudo, preciso ter em conta que este grupo de profissionais envolve diferentes arranjos entre empregadas e [email protected], indo desde aquelas trabalhadoras que desempenham atividades habituais algumas vezes por semana em poucos domiclios, nos quais a atividade, pela prpria habitualidade, tende a ser menos rdua, at aquelas que trabalham em muitas residncias, com menor regularidade, e nos quais a intensidade do trabalho tende a ser mais rigorosa, pois todas as tarefas devem ser desenvolvidas em um mesmo dia. A relao entre intensidade da jornada e do trabalho algo que deve ser investigado e que pode apontar para uma explorao da trabalhadora diarista relacionada ao excesso do trabalho, mais do que ao nmero de horas gastas. Parte da desigualdade da jornada de diaristas e mensalistas pode ser explicada pelo fato de que as mensalistas trabalhavam, em 2009, em mdia 4,9 dias por semana, ao passo que as chamadas diaristas trabalharam 4,1 dias por semana. O fato de que as diaristas trabalham quase um dia a menos que as mensalistas pode ser interpretado como uma opo
da trabalhadora que tem mais autonomia nas suas relaes de trabalho e, assim, pode reservar mais do seu tempo para outras atividades, ou, ainda, para o trabalho noremunerado de afazeres domsticos na prpria residncia. No entanto, tambm pode ser entendido como uma incapacidade ou impossibilidade de ocupar mais tempo de sua semana com a sua atividade profissional e, portanto, auferir menos renda do que o desejvel. O grande crescimento das trabalhadoras diaristas, ou seja, que prestam servios em mais de um ambiente e recebem, em geral, por dia ou por semana trabalhada, evidencia importantes mudanas nas relaes de trabalho estabelecidas entre a dona da casa e trabalhadoras domsticas, que trazem, simultaneamente, vantagens e desvantagens. Sem dvida h uma tendncia maior de profissionalizao do emprego domstico, marcado pelo fortalecimento de uma categoria que no reside no emprego, que tem menores possibilidades de explorao em termos de jornada, que vai at a casa [email protected] patroa/o para prestar um servio especfico, que tm vrios [email protected] e que reduz, portanto, a existncia de relaes de dependncia afetiva ou mesmo financeira, entre outros aspectos. Ampliam-se, assim, as chances de relativa autonomia destas trabalhadoras e a obteno de maior valorizao em termos de remunerao e reconhecimento pelo trabalho. Por outro lado, h menores probabilidades de que estas trabalhadoras sejam formalizadas, tenham suas carteiras de trabalho assinadas e encontrem-se socialmente protegidas quanto aos riscos temporrios ou permanentes de menor capacidade laboral ao longo da vida. Como a lei n 5.859/1972 define como trabalhador/a [email protected] aquele que presta servios de natureza contnua e de finalidade no lucrativa pessoa ou famlia no mbito residencial destas21, em geral tm sido excludas as assim chamadas diaristas, dado o entendimento de que o servio por elas prestado de natureza descontnua. Essa indefinio das diaristas percebida como fonte de maior precarizao, e foco de disputas judiciais sobre a possibilidade de reconhecimento do seu vnculo empregatcio. Em deciso de maio de 2009, o Tribunal Superior do Trabalho asseverou a inexistncia do vnculo, a partir do entendimento de que o vnculo empregatcio com @ [email protected] [email protected] est condicionado continuao na prestao dos servios, o que no se aplica quando o
21
BRASIL. lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972.
trabalho realizado durante alguns dias da semana22. Com isso, as diaristas so bem menos formalizadas do que as trabalhadoras em apenas um domiclio. Em 2009, a proporo de diaristas que contava com carteira assinada era 14,8%, enquanto para as mensalistas este valor era mais que o dobro, 31,1%. A compreenso de que inexiste um vnculo trabalhista entre trabalhadoras e [email protected] impacta negativamente o acesso a direitos e impe trabalhadora uma condio de autnoma que as afasta ainda mais da condio de proteo social, pois representa uma carga que suas baixas remuneraes no conseguem arcar. Ademais, algumas possveis vantagens desta ocupao como maiores salrios parecem no encontrar respaldo suficiente quando se analisam os dados disponibilizados pela PNAD. As trabalhadoras domsticas em mais de uma residncia percebiam uma renda mdia de R$ 421,65 em 2009, comparada a R$ 371,89 entre aquelas que declararam trabalhar em somente um domiclio. Ou seja, a renda mdia das diaristas superou a das mensalistas em apenas R$ 50, em mdia. O preo desta diferena, contudo, a desproteo, podendo-se dizer que a aparente vantagem em remunerao das diaristas parece no se confirmar caso se considere tambm o salrio indireto, no qual se contam todos os benefcios que @ trabalhador/a com vnculo formal de emprego tem acesso. A classe trabalhadora, em sua maioria, muito prejudicada pelos arranjos laborais mais flexveis, que geram instabilidade, comprometem direitos e aumentam a vulnerabilidade. Os dados aqui apresentados indicam que esta situao se reproduz no caso do emprego domstico.
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Trabalhadoras que residem ou no no local de trabalho
Outra importante distino entre as trabalhadoras domsticas pode ser identificada entre aquelas que residem nos domiclios em que trabalham frente s que no residem. Em 2009, 2,7% das trabalhadoras domsticas residiam no mesmo ambiente em que22
Acrdo da 7 Turma do Tribunal Superior do Trabalho, processo RR 17676/2005-007-09-00. Recurso de revista. Diarista que presta servios, em residncia, dois ou trs dias na semana. Inexistncia de vnculo empregatcio. Publicado no Dirio da Justia de 04 de maio de 2009. Na tentativa de dirimir definitivamente a querela sobre o que configuraria vnculo ou no no caso das diaristas, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado n 160, de 2009, que dispe sobre a definio de diarista, de autoria da senadora Serys Slhessarenko, com substitutivo do senador Lobo Filho. O texto aprovado no Senado prev a inexistncia de vnculo empregatcio somente para a diarista que presta servios at duas vezes por semana na mesma residncia, tendo sido encaminhado para aprovao na Cmara dos Deputados em maio de 2010 e encontrando-se em tramitao na Comisso de Trabalho, Administrao e Servio Pblico.
trabalhavam, o que equivale a aproximadamente 181,4 mil mulheres. Este um fenmeno mais frequente na regio Nordeste, onde 5,3% das trabalhadoras residiam nos locais de trabalho, e bem menos usual no Sul, regio na qual esse valor de 1,3%. Em relao raa/cor, 3,1% das ocupadas em emprego domstico eram mulheres negras e 2,1% das trabalhadoras brancas, moravam nas residncias em que trabalhavam. possvel observar uma forte tendncia de queda na proporo de trabalhadoras que residem nos locais de trabalho. De fato, em 1999, esta proporo era de 9%, alcanando 17,9% das trabalhadoras do Nordeste e 15,4% das do Norte. Desde ento, a queda tem sido continuada, indicando que este tipo de ocupao residual e cada vez menos se constitui em uma opo para as trabalhadoras. No entanto, mesmo que prevalea, na atualidade, a distino entre local de trabalho e moradia, ainda existe uma demanda por trabalhadoras que possam dormir nos domiclios, esp