(re)construÇÃo da memÓria relatos de resiliência

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES (RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA Relatos de resiliência Tania Mayté Alva Becerra Dissertação Mestrado em Design de Comunicação Dissertação orientada pela Profa. Doutora Sónia Isabel Ferreira dos Santos Rafael 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

(RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

Relatos de resiliência

Tania Mayté Alva Becerra

Dissertação

Mestrado em Design de Comunicação

Dissertação orientada pela Profa. Doutora Sónia Isabel Ferreira dos Santos Rafael

2021

3

Resumo

(Re)Construção da Memória: Relatos de Resiliência manifesta a importância da

memória na preservação e construção da identidade de uma sociedade; a forma como

promove consciência reflexiva do passado, da experiência vivida, do que vivemos e que

nos faz ser quem somos. Neste processo, a imagem, enquanto registo de um evento, por

si mesma, nunca corresponde totalmente ao passado, seja em termos documentais, seja

pela subjetividade que nela projetamos. Da mesma forma, lembrar não é reviver

experiências, já que a memória que construímos não é uma cópia exata do que vivemos,

mas antes o resultado de um processo seletivo.

Partindo destes pressupostos, o projeto procura reavivar a memória ao reunir e

contextualizar registos de dois importantes terramotos que tiveram lugar na Cidade do

México, respetivamente a 19 de setembro de 1985 e de 2017; no mesmo dia, 32 anos

depois.

Partindo desta história, e coincidência temporal, como ilustrativa da importância

da memória, foram compiladas fotografias dos Arquivos da Nação, entre outras fontes,

que permitiram estabelecer uma ligação entre as histórias dos envolvidos em ambos os

eventos, resgatando assim memórias a partir das suas semelhanças. Desta forma

(Re)Construção da Memória pretende estudar sobre modo como a perda material e a

morte podem ser motores para a esperança, o recomeço, e assim, um modo de criar

resiliência para o futuro.

Palavras-Chave:

Identidade; Memória; Narrativa; Resiliência; Arquivo.

4

Abstract

(Re)Construction of Memory: Reports of Resilience focuses on the importance of

memory in preserving and building the identity of a society; the way it promotes reflective

awareness of the past, of lived experience, of what we live and what makes us who we

are. In this process, an image, as a record of an event, by itself, never completely

corresponds to the past, either in documentary terms or by the subjectivity that we project

on it. Likewise, remembering is not reliving experiences, since the memory that we

construct is not an exact copy of what we lived, but rather the result of a selective process.

Based on these assumptions, the project seeks to revive memory by gathering and

contextualizing records of two major earthquakes in Mexico City, September 19, 1985,

and 2017, respectively the same day, 32 years later.

Taking this history, and temporal coincidence, as illustrative of the importance of

memory, photographs of the Archives of the Nation were compiled, among other sources,

which serve as a link between stories of those involved in both events, thus rescuing

memories from their similarities. In this way (Re)Construction of Memory seeks to raise

awareness of how material loss and death can be an agent for hope, for a new beginning,

and thus a way of creating resilience for the future.

Keywords:

Identity; Memory; Narrative; Resilience; Archive.

5

Agradecimentos

Poder viver essa experiência de estudos fora do meu país natal, não teria sido possível

sem o apoio da minha mãe, que sempre confiou em mim e sempre deu-me forças para

cumprir o que me propus. Obrigada por tudo mãe.

Tem sido também uma experiência de vida maravilhosa em Portugal, e sem a companhia

dos meus amigos e colegas que já se tornaram família nada disto tivesse sido igual, sou

grata por me acompanharem em cada nova aventura e em cada passo que eu dou.

À minha professora Sónia Rafael, por ter me dado total confiança desde o começo da

orientação, e por encorajar-me a continuar com os meus planos e, o mais importante, para

ir na procura duma vida melhor.

Depois de decidir-me por deixar atrás a minha vida no México, muitas coisas

aconteceram; mas nada como a oportunidade de construir e criar um lar ao lado de quem

eu nunca imaginei, mas que sempre protege-me e enche-me de amor, maite zaitut Gotzon.

Estar longe do México fiz-me valorizar tudo o que o representa, como país, como

sociedade e como cultura. Agora, sob outra perspetiva, meu maior reconhecimento às

pessoas que já perderam tudo e que ainda lutam todos os dias para reinventar-se. Graças

por tudo o que o México é para mim, que tanto ensinou-me sobre como viver a vida,

como continuar a aprender e como continuar em pé apesar das adversidades; é que esse

trabalho de investigação e re-conhecimento deixa-me para continuar onde quer que eu

vou.

6

Índice

Tabela de Figuras

Introdução

1. Contextualização teórica

1.1 Memória e discurso narrativo

1.2 Fotojornalismo

1.3 Storytelling (narrativa visual)

1.4 Design de comunicação como produção de valores e de conhecimento

1.5 As imagens de arquivo como objetos da memória

1.6 Reprodução (técnica) de memórias

2. Enquadramento histórico

2.1 Fenômenos naturais que se tornaram eventos mediáticos

2.1.1 O terramoto como acontecimento imprevisível no mundo

2.2 Imagens da memória coletiva

2.2.1 A fotografia como arquivo (morto)

2.2.2 Ativar as memórias graças às fotografias (vivas)

2.3 Relatos de Resiliência

2.3.1 Organização da sociedade e surgimento das “humanidades”

3. Estudo Prático

3.1 Descrição do projeto

Conclusão

Bibliografia

7

Tabela de Figuras

Fig. 01 Bruno Munari. A mensagem visual (2016) ___________________________ 25

Fig. 02 Ted Nelson. The Framing Problem (1965) ___________________________ 37

Fig. 03 Gravura em cobre, 1755 __________________________________________ 46

Fig. 04 Locais do terramoto de magnitude 7,1 de 19 de setembro de 2017 _________ 52

Fig. 05 Espessura da bacia sedimentar _____________________________________ 53

Fig. 06 Local de danos e colapsos durante o terramoto, 2017 ___________________ 54

Fig. 07 Esto, México, de 19 setembro de 2017 ______________________________ 57

Fig. 08 Reforma, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 58

Fig. 09 El Heraldo de México, México, de 19 de setembro de 2017 ______________ 59

Fig. 10 El Universal, México, de 19 de setembro de 2017 _____________________ 60

Fig. 11 Milenio, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 61

Fig. 12 El Economista, México, de 19 de setembro de 2017 ____________________ 62

Fig. 13 Crónica, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 62

Fig. 14 El Financiero, México, de 19 de setembro de 2017 ____________________ 63

Fig. 15 Excélsior, México, de 19 de setembro de 2017 ________________________ 64

Fig. 16 El Sol de México, México, de 19 de setembro de 2017 __________________ 65

Fig. 17 La Jornada, México, de 19 de setembro de 2017 ______________________ 66

Fig. 18 ¡Hola!, México, de 19 de setembro de 2017 __________________________ 67

Fig. 19 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 82

Fig. 20 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 83

Fig. 21 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 83

Fig. 22 Esquema de alinhamento dos vídeos, 2020 ___________________________ 92

Fig. 23 S. Einsenstein, em Battleship Potemkin, 1926 _________________________ 93

8

Fig. 24 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1923 – 1929 ________________________ 94

Fig. 25 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1923 – 1929 ________________________ 94

Fig. 26 Primeira lâmina de trabalho, Relatos de Resiliência, 2020 _______________ 95

Fig. 27 Safe area ou área de segurança, 2020 _______________________________ 99

Fig. 28 Distribuição proporcionada do ecrã, 2020 ____________________________ 99

Fig. 29 Storyboard (1), 2020 ___________________________________________ 101

Fig. 30 Storyboard (2), 2020 ___________________________________________ 101

Fig. 31 Storyboard (3), 2020 ___________________________________________ 102

Fig. 32 Still frame (1), 2020 ____________________________________________ 105

Fig. 33 Still frame (2), 2020 ____________________________________________ 105

Fig. 34 Still frame (3), 2020 ____________________________________________ 106

Fig. 35 Still frame (4), 2020 ____________________________________________ 106

Fig. 36 Still frame (5), 2020 ____________________________________________ 107

Fig. 37 Still frame (6), 2020 ____________________________________________ 107

Fig. 38 Still frame (7), 2020 ____________________________________________ 108

Fig. 39 Still frame (8), 2020 ____________________________________________ 108

Fig. 40 Still frame (9), 2020 ____________________________________________ 109

Fig. 41 Still frame (10), 2020 ___________________________________________ 109

Fig. 42 Still frame (11), 2020 ___________________________________________ 110

Fig. 43 Still frame (12), 2020 ___________________________________________ 110

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Introdução

Lembrar não é reviver experiências, já que a memória que construímos não é a

cópia exata do que vivemos. A captação das imagens que formam a nossa memória por

si só não corresponde totalmente ao que se passou, quer seja em termos de abrangência

total dos pormenores, quer seja pela subjetividade que nelas projetamos por serem

resultado de uma seleção baseada na memória que temos do passado.

A memória é a possibilidade para que uma pessoa, grupo ou nação tenha

identidade; identidade, como uma realidade aberta para o futuro e sempre em construção

no presente, é a consciência reflexiva do passado, da experiência vivida, do que vivemos

e do que nos faz ser o que somos. A memória, quando bem cultivada suscita e provoca o

desenvolvimento da sabedoria para o bem viver, e a sabedoria resulta do conhecimento

acumulado que vai sendo refletido, debatido, discernido, aperfeiçoado e aplicado nas mais

diversas situações do passado, do presente e do futuro.

Como tal, este projeto1 aborda a urgência por manter a memória viva. A 19 de

Setembro de 1985 e, 32 anos mais tarde, em 2017, fizeram-se sentir dois dos terramotos

mais fortes alguma vez registados na Cidade do México. Tomando esta história como

exemplo, foram compiladas uma série de fotografias e vídeo crónicas de fontes oficiais

dos Arquivos da Nação e de outras não oficiais, onde as histórias dos envolvidos são

ligadas com a intenção de criar a partir delas relações visíveis entre os dois eventos. É

resgatada a importância das histórias contadas a partir das imagens e as semelhanças entre

elas, apesar de se encontrarem distantes no tempo. Os espectadores de qualquer parte do

mundo podem, desta forma, identificar-se e sensibilizar-se com a ideia do efémero, da

perda material e da morte, com a esperança de sempre poder recomeçar e, assim, criar

resiliência para o futuro.

Este projeto de investigação surge então desde a questão de como é possível

manter a memória viva por meio dos relatos, das experiências dos envolvidos e sobre a

possibilidade da criação de artefactos digital storytelling para além do contexto

1 Ver projeto Relatos de Resiliência. Disponível Online em: https://vimeo.com/507171901

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arquivístico, pelo qual tenta colocar-se em prática um perfil profissional do designer de

comunicação como jornalista visual.

A partir da premissa de Deleuze de que a percepção que temos da unidade da

imagem num filme se deve à forma como o movimento das imagens comunicam entre si,

problematizamos o seu diálogo segundo a sua especificidade técnica e de acordo com os

códigos visuais específicos de cada uma (fotografia e vídeo), com vista a uma unidade

percetiva dentro do contexto audiovisual decorrente da presente investigação.

A pesquisa teórica para esta dissertação inicia-se com a procura de relações

possíveis entre a memória e o discurso narrativo. Analisamos os processos da memória

em Henri Bergson: as capacidades de armazenar informações, as correspondências com

o passado e os acontecimentos memorizados que escapam do pensamento crítico para o

futuro.

A partir de Todorov, analisamos a correlação dos elementos no âmbito da

narrativa literária, relacionando-a com o aspecto cinematográfico e com a construção da

diegese. Nessa relação foi proeminente a presença de Huberman ao nomear a linguagem

e a imagem como formas solidárias que surgem no discurso da memória como uma

compensação: quando uma falha surge a outra.

A fim de clarificar a perceção do todo no resultado do projeto, analisámos o filme

La Jetée de Chris Marker que, enquadrado na teoria da Gestalt, contribui para uma

perceção do tempo da imagem associada ao discurso narrativo. Os cruzamentos de

imagens estáticas com imagens em movimento permitiram, através da teoria da Gestalt,

um maior equilíbrio da obra no seu todo e na resolução dos problemas emergentes durante

o processo de construção do vídeo de Relatos de Resiliência.

Contextualizaremos o termo digital storytelling através de uma breve

aproximação conceptual e histórica. O storytelling aproxima-se do design de

comunicação quando a este adicionamos termos como visual ou digital storytelling, onde

a imagem não é um recurso secundário, mas um elemento estruturante da narrativa, que

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se associa a elementos multimédia como o vídeo, o som, ou o texto. A investigação

centrar-se-á no termo visual storytelling, um termo recente que se tem expandido graças

ao desenvolvimento da web, das publicações online e das plataformas digitais de vídeo

streaming.

Para a construção deste projeto, vamos partir da problemática de contar uma

história desde as muitas imagens de arquivo (digital e analógico) dos terramotos,

nomeadamente do 19 de setembro de 1985 e 19 e setembro de 2017, e propõe-se explorar

através da conjugação de fotografias e vídeos, a possibilidade de uma crónica formal no

processo audiovisual e complementá-la com às naturezas teórico-práticas incluídas desta

dissertação.

Para este projeto aplicara-se uma metodologia de trabalho técnico2 e digital que

vai dividir-se entre a manipulação fotográfica dos arquivos no software Adobe Photoshop,

a edição de imagens em vídeo no software de edição Adobe Premier Pro e a animação do

título do projeto inserida no segundo 00:50 do timeline no software Adobe After Effects.

Finalmente a apresentação de Relatos de Resiliência como projeto prático de

investigação, tenta desenvolve-se ao longo deste processo de trabalho, como um projeto

carregado de expectativas de comunicação sem códigos que procuramos responder

conforme revelar-se-o como um objeto audiovisual. Os dois vídeos (narrativas) que o

compõem serão aquilo que eles se propõem a ser: crónicas que convidam a ser memórias

de acontecimentos que, em si, manifestam-se a partir da montagem de imagens estáticas.

Nessa acção, as edições das crónicas existentes dos vídeos e as fotografías

funcionam à recordação de um acontecimento, e com ele, a criação de uma memória viva

que merece a pena existir para não voltar a re-viver os erros do passado.

2 Para obter coerência ao longo da dissertação foram feitas várias escolhas metodológicas. Aplicou-se o itálico tanto para o título das obras, quanto para expressões que se mantiveram na língua materna, como é o caso da palavra visual storytelling. No corpo do texto são colocadas citações traduzidas especialmente para o efeito, a remeter para nota de rodapé a citação na língua original. As referências bibliográficas obedecem à norma de Harvard ou sistema autor-data: (Nome, data: página). Em notas de rodapé estarão também explicações adicionais que complementam o discurso. As imagens incluídas na investigação serão mencionadas ao longo do texto e anexadas no corpo do trabalho.

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1. Contextualização teórica

1.1 Memória e discurso narrativo

As ligações entre a memória e a história têm sido alvo de um debate que se estende desde

pelo menos a segunda metade do século XX e para o qual muito contribuiu a

desconstrução das narrativas históricas ocidentais, hegemónicas. Se as conexões entre

estes dois domínios (entendidos nas suas clivagens individuais e coletivas) conhecem

uma larga teorização, já́ o seu encadeamento com a criação artística assume outra

complexidade face a uma simbolização, produzida a partir das suas linguagens

particulares.

Aqui não poderemos ignorar dois autores que de forma direta ou indireta nos poderão

clarificar melhor o papel da criação artística e das artes visuais em particular enquanto

dispositivos capazes de incluir a vertente memorialista na sua identidade.

Por um lado, a noção de memória proposta por Bergson que, tal como o discurso artístico,

se apresenta como um espaço congruente para materializar formas de reconhecimento e

reconfigurações capazes de serem comunicadas e partilhadas.

Por outro, o conceito de lugares de memória proposto por Pierre Nora (1993) abarca a

criação artística quando esta assume um papel evocativo, simultaneamente capaz de

problematizar e abalizar os paradoxos entre a relatividade do discurso histórico e o sentido

absoluto da memória.

Bergson em 1896 através da sua obra Matiére et Mémoire trouxe um novo olhar sobre o

estudo da memória, desconstruindo a ideia instituída de que existe dissociação entre

imagem e matéria, abordando a memória enquanto uma relação entre o externo e o

interno, e assim clarificando que o estudo da memória está interligado ao estudo da

percepção, que por sua vez tem tanta importância e complexidade quanto o próprio estudo

da memória.

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Segundo o filósofo francês, a palavra que sintetiza tudo o que existe é “matéria”, na qual

nós próprios estamos incluídos. Ao caracterizar os constituintes da matéria, Bergson

emprega uma palavra inesperada: “imagem”. Seguindo a sua teoria, a matéria é um

agregado de imagens, e por imagem considera algo que é menos do que um objeto, mas

é mais do que uma representação.3 Então, o nosso corpo faz parte da matéria enquanto

imagem, destacando-se das outras imagens ao ocupar uma posição privilegiada. Para

além de ser a única imagem relativamente à qual temos a capacidade de perceber o seu

exterior e sentir o seu interior, no ato perceptivo é aquela que ocupa o centro de acção, já

que dependendo da posição do nosso corpo, a aparência de todos os outros objetos é

alterada.

“Concreta” é a palavra escolhida por Bergson para designar tanto a percepção quanto a

memória que possuímos. Devido à ligação e complexidade de ambas, apresenta a teoria

que irá torná-las mais compreensíveis para o leitor: a “Memória Pura” e a “Percepção

Pura”, que se baseiam na possibilidade radical e hipotética4 de se libertar a percepção da

influência da memória do sujeito. A pureza a que se refere seria então a consequência

dessa libertação, uma conexão mais direta e instantânea ao que é percepcionado, à

matéria. Supondo que seria possível ter a experiência da percepção pura, sendo esta

baseada na ligação direta entre sujeito e objeto, sem qualquer auxílio de imagens

passadas, consegue-se entender que não é possível existir percepção sem a presença de

algo externo ao sujeito. «Rejeite o abastecimento da memória, considere a percepção no

seu estado puro, e será́ forçado a reconhecer que não existe nenhuma imagem sem um

objeto» (Bergson, 1939: 25)5. Após esclarecer que não pode existir percepção sem algo

para ser percepcionado, Bergson sublinha que a percepção não deve ser considerada como

mera contemplação. Isso seria aproximar de forma excessiva as características da

3 «La matière, pour nous, est un ensemble d' «images». Et par «image» nous entendons une certaine existence qui est plus que ce que l'idéaliste appelle une représentation, mais moins que ce que le réaliste appelle une chose, une existence située à michemin entre la «chose» et la «représentation». (Bergson,1939: 5-6) 4 Hipotética pois, além de não ser verificável, Bergson afirma que não existe percepção que não seja impregnada de memórias. «En fait, il n'ya pas de perception qui ne soit imprégnée de souvenirs». (Bergson,1939: 19) 5 «Rejetez donc l'apport de la mémoire, envisagez la perception à l'état brut, vous êtes bien obligé de reconnaître qu'il n'y a jamais d'image sans objet».

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memória e da percepção, como se a diferença entre elas fosse apenas em termos de

intensidade, quando o que se verifica é uma diferença radical. Se a memória está baseada

na ausência, a percepção está baseada na presença, e entre ausência e presença não existe

diferença em grau, mas diferença de tipo. A percepção pura não é verificável

empiricamente e difere em muito da percepção concreta na qual o processo não é direto

já que, segundo Bergson, existe uma seleção prévia ao ato perceptivo, isto é, existe

escolha sobre o que vai ser percepcionado. Existindo esta seleção perceptiva, a

possibilidade de a memória corresponder com exatidão ao que foi percepcionado, é

questionável logo ao nível da captação da experiência.

Como psicólogo especializado na percepção Rudolf Arnheim, escreveu o livro Visual

Thinking (1969), onde considera que a percepção não é um ato passivo de recepção

imaculada de informação e que mantém uma relação intrínseca com a memória. Arnheim

caracteriza a percepção como um processo ativo, seletivo e inteligente. Sobre o seu

carácter selectivo, e no domínio da visão, a seleção dá-se por motivos fisiológicos, isto é,

o observador não consegue ter uma imagem focada e simultânea de tudo o que existe no

ambiente que o rodeia. Tem de olhar uma coisa de cada vez, para poder discernir as

formas, e perceber aquilo que vê. Existindo esta seleção, não é possível existir uma

“gravação” impessoal e abrangente da totalidade do ambiente em que se encontra. Aquilo

que o observador vê, não corresponde com exatidão às circunstâncias em que se

encontram no momento da percepção. Esta impossibilidade protege o observador de uma

possível sobrecarga de informação, obrigando-o a limitar a sua atenção ao que lhe

importa, e assim a fazer escolhas. Essas escolhas são um dos motivos que levam Arnheim

a considerar a percepção como ativa e inteligente. Existe inteligência na escolha do que

vemos, já que é criada uma hierarquia na ordem definida para aquilo que olhamos. A

complexidade da percepção aumenta se considerarmos a relação que mantém com a

memória.

Não existe um olhar imparcial sobre as coisas, porque o ato perceptivo não é algo isolado

no tempo, é influenciado pelo que já se viu antes. «Um acto perceptual nunca está isolado;

é apenas a mais recente fase de uma série de inúmeros actos parecidos, realizados no

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passado, que sobrevivem na memória» (Arnheim, 1969: 80).6 As experiências que temos

do presente, juntamente com o que aconteceu no passado, pré-condicionam as percepções

que serão feitas no futuro. «(...) nós vemos as coisas de acordo com aquilo que esperamos

que elas pareçam» (Arnheim, 1969: 80).7

A memória que guardamos das coisas, torna-se assim uma condição para nos ajudar no

presente a uma correspondência com o passado, auxiliar nas recordações e a ligar os

acontecimentos ao instante a que eles pertencem.

Sem esta capacidade não haveria o «antes» nem a possibilidade de nenhuma recordação

ou reconhecimento de rostos, nenhuma referência aos dias, horas ou até aos segundos

passado. Neste sentido é possível acedermos a esse imenso armazém de recordações para

relembrar um qualquer acontecimento passado. No entanto, assim como cada

acontecimento é retido pela memória, ainda que por breve período, ele é «escorregadio,

sempre a ponto de nos escapar» (Bergson, 1939: 90). Esta forma “escorregadia” com que

Bergson se refere ao passado é como uma matéria líquida, evasiva, que tende a deslizar

sem controle através das nossas mãos.

Para ser memorizado, o passado teve que ser vivido, pois não existe memória sem

experiência do passado: a memória é um recipiente de imagens que provém de

experiências, durante um determinado tempo — um instante ou uma vida. A experiência

que tiramos de um acontecimento traduz-se em imagens e impressões transmitidas pelo

espaço exterior, percepcionadas através dos sentidos, na relação com o nosso corpo e com

os objetos que nos rodeiam. Essa percepção influencia a forma como as imagens são

retidas na memória, como se o nosso «corpo, com aquilo que o cerca, não fosse mais que

uma dessas imagens» (Bergson, 1939: 83).

6 «A perceptual act is never isolated; it is only the most recent phase of a stream of innumerable similar acts, performed in the past and surviving in memory». 7 «(...)we see things as we do because of what we expect them to look like».

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A este respeito, Pierre Nora (1993) diz-nos que as memórias acionam a sua presença

através da lembrança de acontecimentos tornando-se parte de um lugar, quando a

imaginação lhe atribui uma carga simbólica numa determinada unidade temporal.

Tem aqui lugar a imaginação, referida por Nora, como construtora de imagens. É na acção

do que se imagina, ou melhor, é através do movimento mental do que é lembrado que

decorrem as imagens na mente, relativas a um determinado momento tal como a diegese

de um filme — o espectador é um elemento passivo, pois não interfere diretamente nos

acontecimentos que decorrem no filme: apenas perceciona, interpreta e constrói, à medida

do seu entendimento, aquilo que vê no ecrã. Também na memória, a dicotomia imagem /

narrativa do passado está ligada à uma construção mental de um determinado momento.

Isto indica, colocar em movimento a narrativa dessa lembrança. Para que essa acção seja

afirmada neste contexto é necessário que haja «vontade de memória» (Nora, 1993: 21).

Entre memória e imagem constrói-se a narrativa de um certo episódio. Portanto, não é

mais do que «accionar uma espécie de cinematógrafo interior» (Bergson, 1939: 271),

como um «mecanismo do nosso conhecimento» (idem).

Tal como numa imagem, também na escrita «o sentido (ou a função) de um elemento da

obra é a sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos desta obra e com

a obra inteira» (Todorov, 1973: 210). Nesta interdependência, cada elemento afirma a sua

presença na construção da diegese, sugerindo ao leitor uma visão dos acontecimentos

quando aplicada essa sequência narrativa. Como num filme, a forma como os elementos

que compõem a história se relacionam é determinante para que decorra a acção da

narrativa, com a premissa de que seja o leitor a interpretar a própria história.

«Memórias relevantes são aquelas que, neste momento, a consciência admite e

incorpora com a sua experiência atual. Essa relevância pode talvez ser considerada

como pertencente a duas categorias; adjetivadas adequadamente como lógica e afetiva.»

(Pear,1922: 138)8

8 «Relevant memories are those which consciousness at the moment admits and incorporates with its present experience. Such relevance may perhaps be regarded as falling into two classes; fitly described by the adjectives logical and affective».

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O autor Tom Pear, sobre a categoria lógica em Remembering and Forgetting (Pear, 1922),

pode-se dizer que a memória estabelece ligações na consciência que são relevantes por

serem de fácil entendimento, no sentido em que o motivo das ligações é facilmente

descodificável, e assim torna-se simples memorizar. Já a categoria da afetividade explica

o facto de as memórias estabelecerem ligações entre si e entre a experiência

percepcionada devido à existência de compatibilidade com determinado humor ou

emoção. O autor afirma que entre estas duas categorias existe predominância da categoria

afetiva sobre a lógica. Determinada emoção provoca o aparecimento de ideias e memórias

que o intelecto pode rejeitar e considerar como inaceitáveis, mas estas podem-se impor

permanecendo no nosso pensamento mesmo quando não são bem-vindas.

Ainda sobre a ligação entre memória e emoção, Arnheim (1984) verifica que a memória

não é imutável. Segundo Rudolf Arnheim, existem duas forças opostas na memória que

modificam o que foi percepcionado de duas formas possíveis: através da redução da

tensão e através da sua acentuação. A força que reduz tensões torna as imagens mais

homogéneas, perdendo-se detalhes e adquirindo uma tendência para a simetria, enquanto

a força que acentua as tensões, numa tentativa de preservar as características principais,

intensifica-as. Arnheim (idem) explica que as duas tendências atuam em conjunto em

cada memória que se estabelece, acontecendo uma simplificação e acentuação em

simultâneo, existindo no entanto, a possibilidade de que uma tendência prevaleça sobre a

outra em determinada memória. Aqui podemos encontrar a emoção como elemento

potenciador de mudança, já que Arnheim (idem) afirma que aspetos da percepção que

tenham provocado reações emotivas no observador são geralmente os escolhidos para a

atuação da tendência que acentua os pormenores, enquanto, por exemplo, se um estímulo

percetual estiver incompleto por ser afetado pelo ponto cego do observador, a tendência

de simplificação é a aplicada como solução perceptual.

Para melhor compreensão da relação entre o conceito de memória associada à narrativa,

consideramos importante, neste ponto, definir o significado de narrativa como o ato de

relatar através do discurso falado e escrito, e também da imagem (cinema e fotografia).

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O sublime, que resulta da percepção da imagem a qual aponta para um imaginário que é

formado a partir da reunião de várias imagens, também está presente no filme La Jetée

(1962) de Chris Marker. O filme é composto inteiramente por fotografias montadas numa

narrativa, só possível de ser construída ligando uma imagem fotográfica a outra imagem.

La Jetée narra a história de um homem, prisioneiro da Primeira Guerra Mundial,

escolhido para fazer parte de experiências através do tempo, com o objetivo de trazer

memórias do passado para resgatar os acontecimentos do presente.

O Marker constrói neste jogo formal uma cumplicidade entre o espaço fílmico e o

espectador. De acordo com Deleuze (1983), o todo serve para interiorizar uma sequência

de imagens sendo que, no caso de La Jetée, a perceção que se tem do todo fílmico resulta

da união dos elementos (imagem) no processo dinâmico da montagem. Embora as

imagens sejam estáticas, isoladas no seu contexto fotográfico, a montagem sugere a acção

de um discurso inserido no tempo da narrativa. Na dicotomia, imagem/tempo, as imagens

não vivem isoladas, mas em sintonia. Ao se relacionarem, elas formam um discurso que

se desenvolve ao longo da diegese, garantindo ao filme uma unidade cinematográfica.

Neste sentido, os elementos que compõem La Jetée estão inseridos numa relação de

efeitos contrastantes (claro/escuro) e de equilíbrios formais relacionados com o seu

conteúdo. Cada imagem que compõe o todo do filme é uma peça da narrativa que interage

com as outras imagens. Ela detém uma expressão e uma função própria como imagem.

Contudo, agregam-se, pois, passam a exercer entre si um padrão visual: Arnheim recorda

que muitas das experiências dos teóricos da Gestalt, propõem «demonstrar que a

aparência de qualquer elemento depende do seu lugar e da sua função num padrão total»

(Arnheim, 1984).

Refira-se, neste ponto, a intersecção dos meios usados (fotografia e vídeo) no projeto

(Re)Construção da Memória), como um processo fundamental para a criação de efeitos

cambiantes dos elementos tendo como princípio a unidade visual. Esta intersecção das

imagens faz com que se estabeleça uma hierarquia de acontecimentos que dizem respeito

ao momento em que a imagem estática se transforma em movimento. Segundo esta

ordenação, a transformação da imagem decorre num discurso lógico e perceptivo.

Embora dissonantes, por registarem o instante a partir de diferentes formas, as imagens

19

(fotografias e vídeo) interligam-se numa unidade diegética e confrontam-se em harmonia

como parte da mesma linguagem: «Trata-se então da percepção da forma enquanto

unidade, enquanto configuração que implica a existência de um todo que estrutura as suas

partes de forma racional. (Aumont, 2009: 50).

A imagem fotográfica adquire aqui um papel fundamental: ela faz a transição do estático

para o movimento, como uma acção que faz parte da transição do tempo. Sendo, neste

caso, o resultado da passagem de uma fotografia para uma quantidade de unidades

fotográficas: «no cinema há sempre referência fotográfica, mas esse referente desliza e

não reivindica a favor da sua realidade» (Barthes, 2012: 100) mas a favor da constituição

de um todo em movimento.

1.2 Fotojornalismo

«[o fotojornalismo é] a prática fotográfica em que alguém conta uma história sobre algum aspecto do seu mundo, a qual é compilada em primeiro lugar usando tecnologias

de imagem baseadas na óptica e que têm uma relação com esse mundo. Isto abrange o que outros chamam fotografia documental, fotografia editorial e similares, mas exclui

obras de ficção visual produzidas por imagens geradas por computador.» (Campbell, 2016)9

Aprofundando esta definição, podemos adicionar que fotojornalismo é a prática

fotográfica que conta histórias visuais sobre o mundo e que visa auxiliar o público a

perceber os eventos que acontecem. Na visão da jornalista Anastasia Taylor–Lind10

preciso ter em conta que o registo fotográfico em contexto jornalístico é mais do que uma

9 “I’ll call photojournalism the photographic practice in which someone tells a story about some aspect of their world, where this story is compiled first using lens-based imaging technologies that have a relationship with that world. This encompasses what others call documentary photography, editorial photography, and the like, but excludes works of visual fiction produced with computer-generated images” (trad. livre). 10 Anastasia Taylor–Lind é uma jornalista inglesa-sueca que tem escrito sobre a sua experiência como fotojornalista no The New York Times, Vanity Fair, TIME e The Guardian, entre outros. Com formação em Fotografia Documental, além da publicação do seu primeiro livro sobre os protestos do Maidan na Ucrânia, colabora frequentemente com várias universidades, entre as quais, o MIT, Harvard e a Columbia University.

20

testemunha visual (2016), este vai “interpretando e traduzindo de forma criativa o caos

da vida num produto que possa ser distribuído aos leitores”11 (Panzer, 2005: 10).

Estando para além de um entendimento da fotografia como representação do mundo real,

o fotojornalismo deve ser considerado como uma atividade relacionada com as ideias,

para a qual, nas palavras de Taylor-Lind, (2016) “precisamos desesperadamente de mais

diversidade na forma como o abordamos”.12

A fotografia é uma tecnologia vital para uma sociedade democrática, permitindo dar a

conhecer ou destacar alguns eventos que de outra maneira nunca teriam chegado até nós,

embora possa ser em muitas ocasiões “convencional”, “sentimental” ou que “estetiza a

realidade”. A fotografia como trabalho de periodismo “está morto” se o entendemos só

como reprodução nos meios massivos de comunicação.

Qual é o conteúdo da mensagem fotográfica? O que é que a fotografia transmite? Por

definição, a própria essência, o real literal. Para ir da coisa real à fotografia, não é

necessário segmentar realidade em unidades e erigir essas unidades em signos

substancialmente diferentes do objeto cuja leitura propõem. Entre este objeto e a imagem,

não é necessário ter um relé, isto é um código. Assim é que aparece a particularidade da

imagem fotográfica: “Uma mensagem sem código, uma proposição da qual um

importante corolário deve ser imediatamente deduzido, a mensagem fotográfica é uma

mensagem contínua” (Barthes, 2009: 13).

O papel do designer em comunicação como jornalista visual, é uma premissa proposta

por Jan van Toorn (2010: 49), que procura evidenciar as devidas diferenças em relação

ao trabalho do jornalista e do fotojornalista.

O designer holandês Jan van Toorn definiu-se como alguém interessado na “história das

ideias” (Poynor, 2004), envolvido na “análise crítica, diálogo entre disciplinas e a

exploração das ideias” cujo “realismo sem remorso” (idem) está apoiado num “profundo

idealismo social” (idem). O tipo de prática que aplicamos trata os espectadores como

11 “creatively interpret and translate the chaos of life into a product that can be distributed to readers” (trad. livre). 12 “we desperately need more diversity in the way we approach it” (trad. livre).

21

“indivíduos pensantes” que desenvolvam uma visão crítica e formada do mundo que os

envolve (idem). Jan van Toorn dá mais um passo na sua visão crítica quando afirma que:

“Tudo é possível, podes citar tudo, usar todos os estilos, mas onde estão os argumentos

que realmente contribuem para uma mudança fundamental nas nossas condições

sociais?”13 (Toorn, 1990).

Definir um termo ligado a uma atividade prática eminentemente contemporânea traz

inevitavelmente dificuldades, e o caso do jornalismo visual (que engloba a produção de

conteúdos jornalísticos com base na imagem, como mapas, gráficos, vídeo, elementos

multimédia) não é uma exceção.

1.3 Storytelling (como narrativa visual)

«É possível pensar em fotografias – ou ainda partes de fotografias – como nós que unem uma variedade de meios, o que eu chamo hiperfotografia, em vez de como

imagens suficientes em si e para si. Desta maneira, o leitor envolve-se mais no desenrolar da história quando tem de escolher caminhos a percorrer como meio de

explorar várias ideias, em vez de ser apresentada uma só sequência possível.» (Ritchin, 2010:7-8)14

«(···) todos os termos são imperfeitos e a linguagem tem múltiplas interpretações, mas uma das coisas que nos propusemos fazer era não definir nada. (···) É muito limitador. (···) visual storytelling (···) é provavelmente o conceito mais aberto (···) [e] este não se

define pelas ferramentas, mas pelo seu propósito.» (Campbell, 2013)15

13 “Everything is possible, you can quote everything, you can use every style, but where are the arguments that are really contributing to a fundamental change in our social conditions” (trad. livre). 14 “It is possible to think of photographs or even pieces of photographs as nodes that link to a variety of other media, what I call hyperphotography, rather than as images that are sufficient in and of themselves. In this way, the reader becomes much more implicated in the unfolding of a story when she has to choose pathways to follow as a means of exploring various ideas, rather than being presented with only one possible sequence.” (trad. livre). 15 “All terms are flawed, and language has multiple interpretations, but one of the things that we set out to do was not to define anything. (...) It’s too limiting. (...) visual storytelling (...) is probably the most open concept (...) it’s not defined by tools; it’s defined by purpose” (trad. livre).

22

Campbell (2013), que tem conduzido vários projetos de investigação para o World Press

Photo, adota o termo Visual Storytelling, entendendo-o como uma forma mais persuasiva

de storytelling (Campbell, 2009). Contudo, muitos destes projetos não se restringem a

conteúdos visuais e são caracterizados pela utilização de múltiplos meios de expressão

(nomeadamente os sonoros). Os storytellers podem produzir histórias que utilizem ou

combinem texto, fotografia, vídeo, áudio, ilustrações gráficas e/ou redes sociais (...)

(National Geographic, 2017). A escolha do termo digital storytelling baseia-se na

percepção do que o ambiente digital permite transformar “objetos de meios antigos em

novas estruturas – tornando os media em meta-media” 16(Manovich, 2005).

Contar histórias relaciona-se frequentemente com mundos desconhecidos, baseados na

imaginação. Ainda assim, o storytelling pode estar presente na narração de factos, como

em certas práticas jornalísticas, onde estes são apresentados numa determinada ordem,

gerando uma sequência de eventos que facilite a transmissão e compreensão da

informação.

Campbell (2009) sublinha as vantagens dos artefactos de digital storytelling:

- Permitem aos fotógrafos focar-se numa história e produzir mais conteúdo

com grande controlo sobre as imagens que são apresentadas;

- Enquanto o significado de histórias visuais não pode ser controlado, podem ser

dirigidos através da construção duma narrativa que se baseie em som e texto,

assim como fotografias e vídeo;

- Potencialmente, podem superar as restrições de histórias mais longas e

complexas publicadas para uma audiência global, especialmente gerações jovens

que não consumem meios tradicionais;

- São uma resposta efetiva ao desafio conceptual de como fornecer o contexto

para uma fotografia;

- Podem superar a coisificação do fotojornalismo, ao apresentar a própria voz

dos sujeitos.

16 “Software allows us to remap old media objects into new structures – turning media into ‘meta-media’” (trad. livre).

23

Como assegura Lise Saffran (Saffran, 2017), “os factos são teimosos, de facto, porém o

significado de qualquer conjunto de factos é sujeito à interpretação”. A autora acredita

também que “à medida que a confiança nos especialistas se reduz, a autenticidade e as

ligações pessoais tornam-se mais relevantes”. Entende, por último, que o storytelling

“seja a reportar as notícias ou a escrever uma memória, implica uma seleção ativa e a

ordenação de alguma informação e omissão de outra”17 (Saffran, 2017).

O storytelling é um fenómeno transversal a todas as nações, sociedades e culturas,

tratando-se de uma prática adquirida através do processo natural de socialização. No

fundo, a narrativa encontra-se no núcleo da socialização humana e relaciona-se com ela

de forma intrínseca: por um lado, não existe sociabilidade sem narrativa, uma vez que é

a troca de histórias e experiências que sustenta as relações sociais; por outro, não existe

narrativa sem sociabilidade, dado que é o contacto entre as pessoas que possibilita a

criação de histórias.

Face a estes pressupostos, e mediante a visão de Arthur Asa Berger, começou a descrever-

se o ser humano não como Homo Sapiens, o conhecedor, mas como Homo Narrans, o

contador de histórias (Berger, 1997: 174). Corroborando esta visão, James Watson

salienta que a evolução para o termo Homo Narrans evidencia o lugar primordial do

storytelling no discurso humano – a racionalidade, enquanto capacidade de compreensão

do mundo, é determinada pela nossa condição de seres narrativos (Watson, 1998: 98-99).

Ao longo das últimas décadas a prática evoluiu, dado que as histórias deixaram de ser

apenas ouvidas ou lidas, para serem também vistas, ato contíguo à mudança de

preferências dos sujeitos. Como forma de rentabilizar-se todos os recursos, a articulação

dos vários elementos tem-se tornado frequente, o que gera a maximização da experiência

a partir dos múltiplos ângulos de acesso à narrativa. Neste contexto, surge o transmedia

storytelling, uma técnica de narrativa que, tal como o nome indica, recorre a uma

variedade de meios para contar uma história. Henry Jenkins, professor de comunicação

17 “Storytelling, whether it’s reporting the news or writing a memoir, involves the active selection and ordering of some information and the omission of other information.” (trad. livre).

24

responsável pela criação do conceito, explicou as suas características e particularidades

através de uma publicação na sua página digital18:

“Transmedia storytelling represents a process where integral elements of a fiction

get dispersed systematically across multiple delivery channels for the purpose of

creating a unified and coordinated entertainment experience. Ideally, each

medium makes its own unique contribution to the unfolding of the story”.

(Jenkins, 2007)

O transmedia storytelling é um processo que visa a promoção da discussão entre o

público, e não só́ a simples recolha de informação. Tal como atesta:

“Transmedia storytelling refers to a new aesthetic that has emerged in response to

media convergence – one that places new demands on consumers and depends on

the active participations of knowledge communities. Transmedia storytelling is

the art of world making. To fully experience any fictional world, consumers must

assume the role of hunters and gatherers, chasing down bits of the story across

media channels, comparing notes with each other via online discussions groups,

and collaborations to ensure that everyone who invests time and effort will come

away with a richer entertainment experience”. (Jenkins, 2006: 20-21)

1.4 Design de comunicação como produção de valores e de conhecimento

«Vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das causas neste momento»

(Clarice Lispector, 1977: 21)

Ao longo do tempo, muita polêmica foi gerada em relação à formalização de um conceito

que define o design gráfico de forma simples e concreta. Hoje as discussões em torno do

18 http://henryjenkins.org/blog/2007/03/transmedia_storytelling_101.html

25

que é ou não design tornaram-se mais complexas desde a imersão nos meios digitais. A

média de reprodução impressa evoluiu para uma “terceira dimensão” (Munari, 2016:16).

As imagens ganham vida e a funcionalidade de uma imagem em movimento, resolvendo

questões que não eram totalmente abordadas antes para a compreensão de uma

mensagem.

A comunicação visual dá-se por meio de mensagens visuais que fazem parte da grande

família de todas as mensagens (sonoras, térmicas, dinâmicas etc.) que atingem os nossos

sentidos.

Assume-se que um emissor emite mensagens e um recetor as recebe. Mas, o receptor está

imerso em um ambiente repleto de interferências que pode alterar a mensagem, e até

mesmo cancelá-la (ver figura 1).

Fig. 1 Bruno Munari. A mensagem visual (2016)

Se a mensagem for bem projetada para não perder o sentido (ou propósito original)

durante a transmissão, ela chegará ao receptor. Cada receptor, e cada um à sua maneira,

possui algo chamados “filtros” pelos quais a mensagem deve passar para ser recebida.

Esses três filtros não são diferenciados de forma rigorosa e, embora ocorram na ordem

26

indicada na figura, podem ocorrer reversões, alterações ou contaminações recíprocas

(Munari, 2016:16).

No caso deste estúdio, o que nos preocupa, é o facto de a mensagem não chegar ao

destinatário devido ao filtro chamado “cultural”. Com o qual os relatos que estamos a

apresentar no projeto, ao não serem do interesse das pessoas dos outros países nos quais

nem sequer saibam o que é um terramoto, (porque no seu país não exista um fenômeno

desse tipo, mas sim de qualquer uma outra natureza), não supõe que não exista; e então

os factos acontecidos distantes a essas pessoas, torna-os culturalmente distantes e faltos

de recursos comunicativos com o mundo.

Os artistas gráficos são capazes de manipular sentimentos e ideais por meio dos elementos

audiovisuais que compõem os seus produtos. Áudio e música, assim como animações

precisas em torno de um tema, dão lugar ao aprofundamento de uma ideia ou conceito

explorando novos territórios.

Hoje, a irrupção dos meios de comunicação de massa está presente e condiciona o nosso

modo de vida, costumes quotidianos e padrões de comportamento social, sem esquecer

as profundas transformações culturais que apresenta.

O design de comunicação não tem que ser considerado só para resolver problemas, mas

para produzir coisas; como resultado da pesquisa é um trabalho de metodologia de

investigação, orientado à criação de soluções. Portanto, o design é visto como construção

e produção de conhecimento. O designer de comunicação deve ter como função

primordial permitir ao público iniciar-se ou alfabetizar-se numa linguagem que tenha

regras próprias. Isso requer conhecimento, não apenas da imagem como tal, mas das

relações entre imagem, áudio, textos, arquivos históricos, etc.

O design é um processo de criação visual com um propósito, a mínima parte de um total

de qualquer projeto deve estar aos olhos do público e transmitir uma mensagem pré-

determinada. Todo design, mesmo o mais inovador, segue modelos, códigos, formas e

27

gêneros existentes, esses modelos constituem toda a rede da nossa linguagem visual, que

está em contínua evolução e expansão.

Desde os tempos mais remotos, o homem teve necessidade de compreender o que o

rodeia, de dar-lhe um sentido e de relacionar-se para obter o conhecimento. Desde a nossa

infância, registamos, interpretamos e coordenamos as diferentes percepções que nos são

apresentadas em nosso entorno, com o objetivo de interpretar o nosso habitat e explicar

os fenómenos que de uma forma ou de outra, nos confundem quando não temos

conhecimento deles.

Um dos média de comunicação mais importantes é o visual. A importância da visão

reside, além do facto de ser imediata e prática, ela remete-nos a imagens e associações

emocionais, que por sua vez são ancoradas em novas percepções e, dessa forma, novos

conceitos são formulados. O mecanismo pelo qual recebemos e gravamos imagens são os

olhos, que registam imagens complexas e simples, que nos ajudam a ter uma maior

sensação de espaço e, assim, criar nossas próprias experiências.

Mas, porque é que estamos acostumados a pensar que o que vemos é mais importante do

que o que ouvimos ou sentimos? O poder do som e da música em produções audiovisuais

tem sido frequentemente subestimado. Isso porque existe uma espécie de equívoco entre

educadores, cientistas, técnicos, artistas e o público em geral; que confere pouca

superioridade justificada à imagem e à percepção visual. Essa ideia encontra sua origem

em certas crenças perceptivas e, sobretudo, como já mencionamos, em “fatores históricos

e culturais” (Chion, 1993).

Segundo Daniel Chandler (2016), a análise da semiótica estrutural abrange a identificação

das unidades que são criadas no sistema da semiótica e as relações que estão entre elas

(Chandler, 2016). Saussure lidou exclusivamente com três tipos de relações sistemáticas:

isto é, entre o significante e o significado; estes, por sua vez, entre um sinal e os

componentes, conceitos que o cercam com um significado e concreto (Saussure, 1983).

O signo como unidade mínima de significado combina cada elemento de relação com o

sujeito receptor, para criar um contexto de compreensão entre o significado e o que é

28

compreendido. O signo representará um fragmento da realidade; conforme o nível de

significância progride, ele pode ser interpretado em conjunto com outros elementos de

representação para criar um significado como um todo. E dos quais, mesmo sendo

levantado, pode ser sujeito a manipulação de acordo com o que o receptor interpreta. Para

garantir o sucesso da mensagem, o designer como comunicador visual utiliza teorias

aplicadas ao raciocínio das mensagens; do quê e como é que vai transmitir a mensagem.

No processo criativo e comunicativo do projeto (Re)Construção da Memória, vamos

focar-nos na teoria da Persistência da Visão, um suposto fenómeno visual descoberto por

Peter Mark Roget.19 O olho humano apresenta um fenómeno muito interessante, o da

persistência retiniana. Se num instante um objeto é colocado à frente dos olhos e após um

certo intervalo é retirado repentinamente, o olho tem a sensação de continuar a ver o

objeto por um tempo muito curto, mesmo quando ele não está mais na frente do olho; ou

seja, a visão do objeto persiste.

Esse fenómeno parece ser devido ao facto de que, conforme a luz atinge a retina e o sinal

nervoso correspondente é enviado ao cérebro, leva algum tempo para que o sinal seja

processado, por assim dizer. O cérebro retém a impressão de iluminação por um intervalo

de cerca de 0,1 seg., depois que a fonte de luz foi removida. Esse facto foi aplicado para

criar ilusões de movimentos semelhantes como o cinematógrafo e a televisão. A base

dessas ilusões reside no facto de que, se duas imagens estáticas forem apresentadas

separadas uma da outra por pelo menos 0,1 segundo, o olho terá a sensação de que ocorre

um movimento.

Quando o sistema visual é rapidamente apresentado a uma série de imagens estáticas, elas

não são vistas descontinuamente; acontece que o cérebro “preenche”, por assim dizer, as

lacunas entre as imagens e imagina que se encontra perante um objeto em movimento

contínuo.

19 Peter Mark Roget (1779-1869) foi um médico, físico, matemático, filólogo, teólogo natural e lexicógrafo inglês. Em 1824 deu o primeiro passo para a explicação científica e a realização técnica do cartoon, cujo herdeiro imediato é o cinema.

29

Ao perceber movimentos, o sistema visual extrai muito rapidamente características

salientes e aplica leis de movimento para processar a informação. Tudo o que passamos

a perceber do nosso ambiente está estruturado e ordenado de tal forma que está ligado aos

nossos pensamentos e sentimentos de forma íntima e é impossível separá-los. Por

exemplo, quando por meio de uma imagem evocamos um sentimento.

A perceção é, na verdade, uma interpretação dos estímulos de um dado dos quais apenas

capturamos fragmentos. Portanto, a comunicação visual é praticamente tudo que nossos

olhos vêem, desde uma planta até nuvens em movimento no céu. Cada uma dessas

imagens tem um valor diferente, dependendo do contexto em que estão inseridas.

A relação entre design e outras disciplinas, como antropologia, sociologia, psicologia e

filosofia, não é tão simples quanto Donahue (Donahue, 2013) gostaria que fosse.

“Gostaria que os designers pudessem apenas seguir suas intuições e paixões ... [e]

conectar-se com essas disciplinas de uma forma que [eles percebessem] ... o design não

como um cidadão de segunda classe, mas como ... capital de conhecimento que é

executado de um modo diferente, através do conhecimento construído de uma forma

diferente e explorar o potencial disso e trazer de volta ao design para falar sobre essas

relações”.20

Os defensores de um design crítico, de uma prática de design de comunicação visual,

advogam que devemos construir a nossa atividade sobre uma maior e mais aprofundada

orientação sociopolítica, assim como construir uma prática que estenda e explore “um

mapa mais integrado de estratégias de comunicação e práticas simbólicas” (Toorn, 2010:

50). Entendemos o design de comunicação como uma produção simbólica “a produção

de valores” (idem) que nos liberta das “formas de dominação que o design e os seus

conceitos ainda exercem hoje” (ib. p.47). Esta atividade apresenta desafios e

oportunidades para alcançarmos um renovado compromisso social, cultural e

20 “I wish designers could just follow their intuitions and their passions … [and] connect with these disciplines in a way that [they would perceive] … design as not a second-class citizen but as … knowledge capital that is just executed through a different mode, through knowledge constructed in a different way and explore the potential of that and bring that back to design to talk about those relationships”

30

democrático, já que exercer design durante o atual contexto de crise socioeconómica

global acarreta também uma “confrontação com uma crise do simbolismo” (ib. p.48).

Devemos ter em conta que os projetos com maior relevância sempre foram projetos

ligados ao seu tempo, já́ que o design “captura e condensa de uma forma gráfica atraente”

(Poynor, 2001: 185) as caraterísticas dum determinado momento histórico e funciona

como um relatório que é atualizado constantemente e que descreve o nosso modo de vida

num determinado momento. Entenderemos o design como modelo de discussão ou debate

com meios visuais (Poynor, 2004), reconhecendo que as formas simbólicas são

essencialmente ambíguas e cheias de convenções (Toorn, 2010: 52). A forma torna-se

então o núcleo da contradição dialética entre “o dado e o novo”, entre “convenção e

inovação” e, ainda, entre “conteúdo e forma” sendo a sua estrutura final um elemento de

síntese superadora de uma certa inquietação. Esta inquietação exige a seleção de um

sujeito, de investigação, de recolha de material, e de nos tornarmos especialistas num

tema (Poynor, 2001: 187) para depois dar-lhe forma a partir de estratégias que vão desde

“um negativismo crítico” a “representações utópicas” (Toorn, 2010: 50). Esta variedade

de aproximações justifica-se na base de que não tanto o objeto, mas a sua interpretação

crítica deve ser avant-garde (id.) e que “nos sacuda da complacência moral e da

resignação política” (id.).

O design e a comunicação visual cumprem uma função muito importante na sociedade:

comunicar, o que implica uma certa aprendizagem. O design deve ir de acordo com as

mudanças que surgem na nossa sociedade, pois o público, suas necessidades e

preocupações devem ser reconhecidas; isso para cobrir cada vez mais e com maior

eficiência e eficácia tudo o que é exigido no tempo atual (Munari, 2016).

No que se refere à aprendizagem de conteúdos, pode-se dizer que se está a trabalhar muito

e de forma mais constante com o objetivo de obter melhores resultados de comunicação.

Por isto, é que projetos como o que estamos a desenvolver, são cruciais para o

entendimento das problemáticas (não só como conhecimento) mas como reconhecimento

dos factos sociais e históricos, e assim criar canais de comunicação e ferramentas

31

comunicativas com as quais enfrentar-se aos eventos catastróficos eminentemente

futuros.

«O que podemos fazer hoje neste ambiente que se multiplica e sobrepõe-se a cada vez?

Devemos lamentar os tempos que não voltamos, assim como os idosos que choram por

sua juventude perdida, devemos nos esforçar para intervir e ajudar a tentar colocar

alguma ordem no caos? Eu acredito na última solução.»

(Munari, 2016: 43)

1.5 As imagens de arquivo como objetos da memória

O exercício da memória não é regular e apresenta espaços em branco e pequenas lacunas

que tentamos preencher com o intuito de gerar novas significações que nos ajudem a

encontrar uma ordem no decurso da nossa existência.

O uso do arquivo não é útil apenas para lembrar coisas do passado, mas para criar novas

ligações com os eventos do presente e do futuro (e assim gerar novos conhecimentos).

O arquivo, com o intuito de compreender, tende a organizar e a guardar as efemeridades

impossíveis de controlar para sempre, tentando prolongar a existência do que desapareceu

ou do que ainda existe, mas que não se vê com clareza, reconstituindo ligações e

recuperando o que se perdeu no abismo.

Desde o século XIX, que os espaços de arquivo e as bibliotecas, ao abarcarem grandes

quantidades de documentos, fizeram emergir novos objetos e visões, sobretudo devido às

relações criadas e às possibilidades que o sistema hipertextual de conexões estabelece.

Cada arquivo, pessoal ou coletivo, terá determinadas características e significações.

O arquivo “estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos;

a nossa história, a diferença dos tempos e o nosso eu, a diferença das máscaras. Que a

diferença, longe de ser esquecida e recoberta, é essa dispersão que somos e que fazemos”

(Foucault, 1969: 10).

32

Se tivermos em conta uma visão tradicional, percebemos que o arquivo é visto como um

depósito de documentos verbais e visuais e que em potencial remete para uma história a

ser contada de um modo intimamente próximo dos factos ocorridos.

Contudo, o arquivo não é algo inerte que tem apenas como fim reconstituir o que um

homem ou um grupo de indivíduos ou instituição fez ou disse, mas cria sim, novas

relações entre os documentos e materiais disponíveis para que se façam novas análises e

se gere novo conhecimento. Para além da carga massiva de documentos, o arquivo é

também tudo aquilo que o rodeia e o que relaciona e organiza cada um dos discursos a si

inerentes, de modo a que não acabe numa massa amorfa e perdida no tempo.

Jacques Derrida em Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana (2001), não esquecendo

os princípios da Arqueologia do Saber de Michel Foucault (1969), transmite as lacunas

inerentes ao arquivo, ao seu caráter não linear e à perda da sua originalidade.

Sigmund Freud partilha da mesma opinião no mal de arquivo. Jacques Derrida analisa

esse “mal” que é a pulsão de morte, consistindo em algo que elimina os arquivos escritos

de modo a que o processo de arquivamento possa permanecer até ao infinito, já́ que de

outra forma o arquivo implodiria pela impossibilidade de outras escrituras. Esta questão,

permanentemente atual, é relevante na medida em que a tradição e a história se constituem

sobre o arquivo. Para o filósofo Jacques Derrida (2001), para que o processo de arquivo

possa continuar, existe esse mal de arquivo que apaga os arquivos escritos

impossibilitando essa implosão.

A desconstrução e a articulação de novas interpretações têm, em potencial, uma leitura

diversa da história que reescreve o que já foi dito e/ou escrito. Deste modo, podemos

pensar no arquivo como uma matéria viva e com um enorme potencial, devido aos novos

olhares que por ele passam, e que o reescrevem ou ajustam.

Podemos considerar que mesmo o arquivo e o mal de arquivo poderão encontrar-se e

confrontar-se, efetuando trocas e novas visões e esclarecimentos acerca do mundo. Para

Jacques Derrida, os traços inscritos no arquivo e a pulsão de morte, possibilitaria novas

inscrições no arquivo e no nosso tempo que dependem da análise e condição de cada

intérprete.

33

Existe, sem dúvida, um paralelismo entre o arquivo e a memória. Por um lado, a memória

é o resultado final de um processo complexo que envolve estímulos interiores e exteriores

que desencadeiam sensações, sentimentos e pensamentos que são manipulados, ajustados,

adequados e finalmente armazenados. Existe uma distância considerável entre o ambiente

onde estamos inseridos e aquilo que armazenamos sob a designação de realidade. A

memória é talvez mais semelhante a uma construção ou criação do que a uma

representação de um mundo que nunca ninguém viu de forma direta, mas no qual todos

vivemos, pressupondo que, de facto, existe algo material. Por outro lado, o arquivo é

também uma criação sujeita a manipulações, motivadas pelos interesses ou necessidades

dos indivíduos com responsabilidades na sua criação e manutenção.

«As imagens não são só visuais, são representações: criatividade, memória, imaginação.»

(Damásio, 2014)

Na sua obra, A Arqueologia do Conhecimento, Foucault (1969) propõe uma revisão

ontológica e metodológica das estruturas do conhecimento, segundo a qual o

conhecimento está sempre intimamente ligado às características de cada época, que

estabelece o que é falável e o não falável. Para o filósofo francês, a história do

conhecimento não se caracterizaria tanto pela tarefa de descobrir verdades do passado,

mas pelo trabalho sobre uma massa de informações, “massas discursivas”, que ele

organiza estabelecendo séries e relações. “O percurso das massas discursivas permite-nos

reconstruir aquelas verdades evidentes que constituem os sujeitos enquanto tais e que

foram percorridas por camadas arqueológicas que povoam a memória”.21 Cada época

viria definida, não tanto por um crescimento cumulativo de conhecimentos quanto por

uma realocação do esquema geral que os relaciona.

21 DÍAZ, S. et al., “El Análisis del discurso. Michael Foucault y la Arqueología del saber”. En: Reflexión Académica en Diseño y Comunicación No.XIX [ISSN: 1668-1673].

34

A formulação foucaultiana permite a Georges Didi-Huberman22 (2011) falar de uma

“Arqueologia do conhecimento visual”,23 a superposição em camadas arqueológicas das

imagens herdadas de nossa herança cultural, entrelaçadas numa miríade de relações

cruzadas, conscientes e inconscientes, em constante mutação e reposicionamento

Foucault propõe a ideia de heterotopia, ou “arranjo das coisas em lugares tão diferentes

que não há lugar comum”.24 Diante da utopia, que representa uma promessa de futuro e

estabilidade, a heterotopia é perturbada por seu conflito e instabilidade. Heterotopias

propõem espaços em crise e diversão; arranjos específicos de lugares incompatíveis e

tempos heterogêneos. Para Didi-Huberman, a heterotopia coloca máquinas de imaginação

que criam espaços de ilusão, também denunciando o espaço real como ainda mais

ilusório.25

Recuemos à mitologia grega para identificar a Mnemosina, a deusa da memória. Esta

deusa oferecia a cada alma um bloco de cera onde eram registados pareceres e sensações,

ou seja, já aqui a ideia de impressão (e arquivamento), mesmo que no sentido abstrato e

individual, marcava uma dimensão significativa do processo de memorização,

prolongando um determinado momento. Para Sócrates, quanto maior fosse a qualidade

da cera maior seria a perfeição do registo, evitando enganos tardios ou dificuldades no

reconhecimento da gravação de uma memória. A memória impressa na cera determinaria

o saber.

22 Didi Huberman (St. Etienne, 1953) Historiador da arte e grande divulgador da figura de Aby Warburg, da qual é considerado herdeiro. Muitas das ideias deste autor sobre o Atlas Mnemosyne de Warburg inspiraram este trabalho. 23 DIDI-HUBERMAN, G. Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da exposição do mesmo nome. MNRS, Madrid, 26/XI/2010-28/III/2011. 24 FOUCAULT, M., “Des espaces outres”, em Dichos y Escritos, 1994 Disponível em: http://foucault.info/ documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.fr.html 25 DIDI-HUBERMAN, G. Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da exposição do mesmo nome. MNRS, Madrid, 26/XI/2010-28/III/2011.

35

Para Sócrates a transmissão de ideias baseava-se sobretudo na oralidade e na presença de

duas ou mais pessoas. Até o mais abstrato dos pensamentos supunha a capacidade de uma

“textualidade muda” (Steiner, 2006: 11).

Platão desaprova o uso da escrita por considerá-la potenciadora de preguiça cerebral. O

arquivo será́ a concretização externa da nossa memória, que permitirá reter traços

individuais ou coletivos de uma cultura e estender o passado ao nosso presente, com maior

ou menor fiabilidade, tal como referia Paul Ricoeur26 (1969) ao indicar que o arquivo é

um modo de analisar o passado, podendo ocultar ou deixar ver certos factos, devido às

acções de reunião de fragmentos e reconstruções realizadas ao longo do tempo sobre

determinados acontecimentos (Babo, 2009: 50).

A resiliência na preservação de um tempo, tende a querer reter a existência e a

humanidade, mesmo depois de desaparecida cada uma das almas que a compõem. A

história é contada não apenas com base nos suportes originários do registo, mas no

arquivo total que vai sendo construído, ampliado e reproduzido.

A internet pode ser considerada um arquivo, remetendo para a ideia de infinito e

desenvolvido por um número incontrolável de indivíduos, parecendo ser a perda e a

dispersão mais comuns e frequentes devido ao seu caráter insoferável.

Hoje em dia, a prática do arquivo, quando analisados os desenvolvimentos tecnológicos

e a dinâmica das redes sociais online, trouxe uma difusão em grande escala de arquivos

pessoais, constituídos por fotos ou vídeos.

Com arquivos de dimensões antes inimagináveis, prevê-se a necessidade de definir

metodologias e ferramentas de acesso adequadas, prevendo uma correta utilização desses

meios e organização permanente, devido à constante adição de material em cada um dos

arquivos.

Existem múltiplos cenários e paisagens que moldam a nossa experiência enquanto

sujeitos ativos de uma determinada cultura. Esta ideia leva a uma inquietação devida à

26 Paul Ricoeur, foi um filósofo e antropólogo francês. Em Essais d’herméneutique (1969), propõe uma "hermenêutica da distância", o que faz surgir uma interpretação é o fato de haver uma distância entre o emissor e o receptor.

36

dificuldade de absorção de um todo que aparenta ser infinito, sendo que a técnica acaba

por se tornar mais rápida que a cultura (Stiegler, 1994). Assim, a tecnologia digital

interfere na forma como guardamos e acumulamos informação e no modo como

apreendemos as características e os acontecimentos de uma cultura.

A transição de arquivos analógicos para arquivos digitais transforma os arquivos

codificando-os numa mesma linguagem, independentemente da sua natureza, colocando-

os em bases de dados e disseminando-os de forma incontrolável. Manovich define as

bases de dados como uma lista não ordenada e não hierarquizada de elementos de leitura

não continua (Fernandes, 2015: 29). A memória passa a estar em permanente atualização

pois a internet consiste numa adição constante de informação sobre nós próprios e sobre

os outros, quase de modo incontrolável.

Algumas fotografias provocam em nós, mesmo sem vivermos o acontecimento na

primeira pessoa, espanto e empatia, entrando na nossa vivência e relacionando-se com

aquilo que somos: pós-memória (Rosengarten, 2012: 13-15).

A fotografia tem uma sombra que é a de embalsamar o tempo (Rosengarten, 2012: 13-

15). Contudo, esse tempo pode ser deteriorado e manipulado.

O arquivo, ao não abarcar apenas a fotografia, fará uma análise mais ampla do passado,

da morte de um tempo que se sabia um dia vir a ser analisado no futuro. A nostalgia do

arquivo e da fotografia convertem-se numa devoção e numa procura constante daquilo

que somos, através do nosso passado e do passado dos outros, mesmo que seja através de

um processo de empatia e de reconhecimento naquelas imagens.

«Às vezes descubro a foto que está à minha frente, recuando para isso no tempo, na minha memória, de modo imperceptível para quem está ao meu lado. A fotografia confirma uma existência, volta a trazer o morto. Interessante pensar que olho, por

vezes, para uma fotografia na tentativa de encontrar aquilo que não lembro de mim próprio, a minha presença anterior. A conservação da vida que desapareceu e não tem

mais movimento. Na foto posso ver o que foi e talvez o que será.»

(Roland Barthes, 1980)

O gesto de acumular e de procurar um sentido, são para o arquivo fotográfico um dos

seus fins. A procura de vida para lá da sua efemeridade é feita através das histórias,

37

verdadeiras ou não, e do espaço invisível de cada uma das fotografias guardadas e que

representam o que um dia foi visto por outro. O processo de olhar é complexo, o de ver

será ainda mais, consoante a alma que pretenda decifrar e prolongar a existência da

imagem.

Ao olharmos para uma fotografia, a verdade dessa imagem é sentida de acordo com o

nosso próprio passado e antecedentes, acordando a sua memória, mesmo que o objeto ou

pessoa representados, não sejam familiares, fazendo despertar sensações que se

relacionam com a existência.

A verdade da fotografia, apesar do caráter estático dela, torna-a viva, levando-nos a

recordar para não esquecermos o tempo (perdido). A memória individual parece perder-

se quando desaparecemos. Ainda assim, ao pensarmos que o registo passará para outros

olhos, acabará certamente por restituir um pouco daquilo que era a nossa vida, quase

numa tentativa de recuperação da alma perdida.

Ted Nelson (1965) (ver figura 02) entendia o hipertexto como escrita não sequencial. No

que respeita ao desenvolvimento de arquivos e à palavra hipertexto, hoje, o leitor

contemporâneo enuncia, observa e faz falar o texto e os objetos que preserva e relaciona

no arquivo.

Fig. 02 Ted Nelson. The Framing Problem (1965)

38

«A memória surge como um suporte de armazenamento e os ecrãs e outros dispositivos digitais consistem em suportes de visualização voláteis.»

(Furtado, 2009)

Antes de existirem registos escritos, as palavras faladas deixavam um rasto temporário,

na medida em que permaneciam no cérebro de cada um de forma mais ou menos

consciente. A fixação da memória de forma durável é uma das bases principais do

Arquivo, sendo, desse modo, aparentemente mais fácil a tentativa de preservar e

reproduzir a memória.

«O arquivo pede-nos, certamente, para afrontar a questão do inesgotável e do insondável. Mas o atlas (Bideratlas Mnemoyne), pelas suas próprias opções – ou mais

exatamente, pelas suas montagens – torna visíveis o inesgotável e o insondável enquanto tais.»

Georges Didi-Huberman

Se é possível congelar um instante através da fotografia, transformar momentos em

filmagens, e ter fisicamente um objeto que seja a chave de ignição para o despoletar de

memórias, então é possível arquivar-se um momento. No entanto, registar o momento, e

registar a experiência proporcionada por esse momento, é muito diferente. A experiência

lembrada não corresponde com exatidão ao que foi vivido. Assim, antes de se iniciar a

concepção de uma obra que se baseie na memória, é necessário saber qual o intuito da

sua construção.

Descobrir o que se pretende, através de um sistema de arquivo fotográfico, é validar a

veracidade das memórias relatadas, ou expor uma aproximação às imagens que formam

as memórias. No primeiro caso, a imagem real poderá constituir a principal base de

sustentação da obra, no sentido em que o espectador mais facilmente acredita na verdade

ali exposta, ao lhe serem mostradas imagens fiéis à realidade que o rodeia. No segundo

caso, visto a intenção ser proporcionar ao espectador uma aproximação plástica

(manipulada) às imagens da memória, a imagem real pode tornar-se num sistema

demasiado rígido para responder a este objetivo. Este ponto de partida será fulcral na

escolha do medium e da técnica apropriados para o que se pretende revelar.

39

1.6 Reprodução (técnica) de memórias

Conhecer a comunicação visual é aprender uma língua, uma linguagem feita apenas de

imagens, mas imagens que nem sempre têm o mesmo significado para pessoas de

qualquer país e de qualquer língua. A linguagem visual é uma linguagem, talvez mais

limitada do que falada, mas certamente mais direta. Um exemplo óbvio é o bom cinema,

em que, se as imagens contam bem uma história, as palavras não são necessárias (Munari,

2016: 56).

A imagem em movimento é resultado da imaginação, que constitui a trajetória a partir de

uma imagem estática. Há uma «concepção sublime no cinema» (Deleuze, 1985: 204) ao

se percecionar o todo numa imagem em movimento.

A respeito dos que, tal como Eisenstein, pensaram o cinema como um movimento

automático da imagem que se move em si mesma, Deleuze refere que o que constitui o

sublime é o choque transmitido pela imagem sobre a imaginação que, ao ser empurrada

para o seu limite, força o pensamento a pensar o todo e a ultrapassar a própria imaginação

(Deleuze, 1985).

A percepção do todo que, segundo Deleuze, não resulta da soma das partes que compõem

a unidade da imagem, mas aponta para o resultado de um novo «produto», uma unidade,

parece indicar que, ao fazerem parte do processo da montagem de um filme, as imagens

reúnem-se num corpo único com uma acção coletiva direcionada para o mesmo fim sendo

que esse resultado «é a própria forma de comunicação do movimento das imagens»

(Deleuze, 2006: 204).

«Para colocar nos termos de Kurt Lewin: a memória é um medium muito mais fluido do que a percepção porque está mais distante das verificações da realidade.»27

(Arnheim, 1969: 84)

27 «To put it in the terms of Kurt Lewin: memory is a much more fluid medium than perception because it is farther removed from the checks of reality». (trad.liv.)

40

Existe, uma obra à qual esta frase se aplica de forma intensa, pelo facto do potencial da

ligação entre a animação e a memória ter sido mais explorado. Esta foi realizada por

Yuri Norstein28 e intitula-se Tales of Tales.29

Tendo sido considerado em 1984 como «o melhor filme de animação de todos os

tempos», Tales of Tales retrata a memória do seu realizador, não apenas no sentido de

representar memórias pessoais, mas também no sentido em que caracteriza a sua

experiência subjetiva de lembrar. Paul Wells caracteriza esta obra como “um conjunto

de imagens que definem a psique e o ato de memória como um ato de criatividade”30

(Wells: 1961, 94). Cita ainda Yampolsy que diz «O que nos confronta não é

simplesmente um filme sobre a memória, mas um filme construído como a própria

memória, que imita na sua composição espacial a textura estrutural da nossa

consciência”31 (Wells, 1961: 94).

A “textura estrutural” a que se refere é o facto de Tales of Tales não ter sinais de um

argumento fixo, ou de uma narrativa linear. As ligações entre as imagens são de origem

associativa, caracterizando o pensamento do seu autor.

A sua não-linearidade está presente a outros níveis além da estrutura ou ordem de

aparecimento das imagens. Não existe censura ou separação entre o real e o imaginado,

consequentemente não existe certeza se o que se apresenta ao espectador é uma metáfora

para algo que aconteceu, ou se é mesmo a forma com que o artista se lembra dos eventos.

Esta incerteza permite que o próprio espectador crie livremente as suas próprias

associações de ideias sobre aquilo que está a assistir. Além disso, segundo Paul Wells

«Animação é especialmente adequada ao processo de ligações por associação»32 (Wells,

1961: 95), e nesta obra o potencial da animação é explorado mais profundamente

28 É um animador russo, mais conhecido por sua longa-metragem The Tale of Tales, considerada uma obra-prima da animação soviética. 29 Tales of Tales [Online] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hN1zimADh6Q 30 «a gathering of images which define the psyche and the act of memory as an act of creativity» (trad. liv.) 31 «What confronts us is not simply a film about memory, but a film built like memory itself, which imitates in its spatial composition the structural texture of our consciousness». (trad. liv.) 32 “Animation is especially suited to the process of associative linking” (trad. Liv.)

41

permitindo que essas ligações possam ser estabelecidas. Tal pode ser verificado no ritmo

das imagens, mas também na experimentação relativa à textura da tinta já que segundo

Wells, Norstein levou em conta que na animação o material pode causar impacto no

espectador, por propiciar que exista uma maior contemplação da imagem, evitando que o

espectador se concentre apenas na busca pelo sentido naquilo que observa.

É na travessia do resgate do passado, na memória, na escuta das vozes que foram

soterradas que reside, como diria Walter Benjamin, a possibilidade de realizar o encontro

secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Benjamin critica a visão

modernista da história entendida como continuidade linear, mas nem por isso defende o

seu fim. Aponta para a necessidade de uma re-escritura da história procurando nas

descontinuidades momentos críticos quando as mudanças podem ocorrer. Mais do que

como “o que foi”, com um passado inerte, a narrativa histórica é vista, para Benjamin,

como um “a se fazer”: como ação possível.

O conceito de re-escritura para Benjamin surge da necessidade de resistir, de reatar

possíveis laços com um passado arruinado pela violência e pela catástrofe. Benjamin

propõe a noção de montagem, tomando-a de empréstimo do cinema e das vanguardas

artísticas do início do século passado, como método estratégico para se pensar a escritura

historiográfica. Dentro desta perspetiva, a história e os média confundem-se: a história é

pensada como média, como uma espécie de colagem de tempos e memórias. Assim como

o editor edita/corta/interrompe o continuum fílmico, o historiador re-escreve a história:

implode o continuum da história da dominação e abre espaço para o tempo do agora. A

historiografia para Benjamin deve, portanto, ser redesenhada pelo trabalho da memória:

fruto de uma reescritura que produziria não a imitação/repetição de narrativas anteriores,

mas a ‘repetição diferente’.

Hoje o conceito de colagem e montagem tem sido explorado para se pensar os novos

formatos narrativos no contexto da era digital. Dentro do campo do cinema, por exemplo,

em diálogo também com o campo das artes, poderíamos lembrar de pensadores tais como

42

Gene Youngblood33 ou mais recentemente Lev Manovich34 e Peter Weibel35 que têm

trabalhado com conceitos tais como o de cinema expandido e pós-cinema no sentido de

repensar os novos formatos narrativos na cultura digital: imagens de síntese, imagens

imersivas, montagem não-linear, predominância de efeitos especiais, estética do

videoclipe dos planos fragmentados, novas formas de temporalidade, múltiplas ecrãs.

Acrescenta-se a esta discussão a ideia do cinema como interface, especialmente a

discussão da interrupção do fluxo narrativo pelo utilizador que passa a fazer parte da

construção e montagem da narrativa. O público também é um editor; produz sua própria

montagem/narrativa, define velocidades, cores, diálogos em um fluxo combinatório,

experimentando sensorialmente as imagens especializadas, de múltiplos pontos de vista.

No campo da história da arte podemos destacar pensadores como o historiador Aby

Warburg que, entre os anos de 1923 a 1929, desenvolveu o projeto Atlas Cultural

Mnemosyne. O Atlas consistiu num conjunto de 63 painéis em que o historiador agrupou

cerca de mil fotografias relacionadas com a história da arte através das quais queria

mostrar a permanência de certos valores expressivos que sobreviveriam como uma

espécie de património sujeito a leis de transmissão e recepção que a memória coletiva

conservaria e transformaria. Para Warburg, a história da arte é pensada como uma

memória errática de imagens que regressariam modificadas constantemente como espécie

de sintomas. Longe de entender a história da arte de forma cronológica onde o sentido já

está garantido a priori, Warburg pensa a história da arte dentro de uma visão sincrónica,

em que nada se situa antes ou depois, mas simultaneamente.

Dentro de perspetiva semelhante, o historiador da arte francês Georges Didi-Huberman,

revendo alguns dos preceitos desenvolvidos por Aby Warburg e trabalhando com a ideia

de um conhecimento por montagem apresenta, no Museu Nacional Centro de Arte Reina

33 Gene Youngblood é um teórico de artes e política de média e um estudioso respeitado em história e teoria de cinemas alternativos. 34 Lev Manovich é autor de livros sobre a teoria da nova média. 35 Peter Weibel é um artista pós-conceptual austríaco aclamado internacionalmente, curador e teórico de novas médias. Ele começou em 1964 como poeta visual, mas logo saltou de uma página para outra no sentido da metodologia pós-estruturalista.

43

Sofia, a curadoria Atlas: como carregar o mundo nas costas?36 A ideia da curadoria foi

justamente colocar em diálogo se as investigações de Aby Warburg tiveram influência

sobre a história da arte moderna. Trabalhando com a ideia de um “conhecimento por

montagem”, o historiador defende a formulação dos problemas da história da arte a partir

das próprias obras, abrindo mão da herança do comentário histórico linear tradicional.

O conceito de montagem, portanto, ao trabalhar por cortes, rupturas e simultaneidades,

abre possibilidades para uma re-escritura da narrativa da história da arte e para novos

olhares em direção à história de nosso tempo.

2. Enquadramento histórico

2.1 Fenômenos naturais que se tornaram eventos mediáticos

A 11 de setembro de 2001 e nos dias seguintes, ainda sob o efeito do ataque às Torres

Gémeas de Nova Iorque, os jornais, as rádios, as televisões e a internet anunciaram de

forma quase uníssona que o mundo tinha mudado naquele dia (Tavares, 2005: 11).

Os meios de comunicação profissionais têm por hábito decretar esse tipo de momentos

históricos; naquele dia, porém, até o observador mais desconfiado ou o leitor mais

imunizado contra esses exageros pôde atestar por si mesmo uma súbita mudança da

realidade, distribuída por inúmeros sinais inesperados.

Se possuímos ainda hoje uma memória sólida do lugar onde nos encontrávamos quando

se soube do ataque, daquilo que então sentimos e restantes circunstâncias pessoais é

porque, no fundo, já sabíamos que o mundo tinha mudado ainda antes de os media no-lo

dizerem (Tavares, 2005: 11).

36 [Online] Disponível em: https://www.museoreinasofia.es/publicaciones/atlas-como-llevar-mundo-cuestas

44

Nos dias que se seguiram aos atentados de 2001, quem não sentiu o efeito de repetição

daquelas mesmas imagens emitidas incessantemente na televisão? “Imagens em loop,

sempre iguais, repetidas por um exército de speakers”, disse Jean-Luc Godard37 na altura

com grande sucesso (Chéroux, 2013: 55).38

O 11 de setembro é sem dúvida o acontecimento mais fotografado da história dos meios

de comunicação, mas é, ao mesmo tempo, aquele do qual temos a impressão de ter visto

menos imagens. Milhares de câmeras apontadas para o evento e apenas 30 fotos

publicadas na primeira página dos jornais. Este paradoxo é facilmente explicado quando

os circuitos de difusão de imagens são estudados; já das 400 capas americanas estudadas,

289 imagens são da agência Associated Press,39 ou seja, cerca de 72%.

Os atentados do 11 de setembro de 2001 confirmaram o peso considerável que grandes

agências afiliadas como Reuters, AFP e, sobretudo, a Associated Press adquiriram nos

últimos anos, principalmente em situações de emergência. Assim, controlado por um

número reduzido de difusores, o mercado de imagens é canalizado, a oferta visual torna-

se rara, repetida e padronizada. Na verdade, o que o 11 de setembro nos permite entender

são os efeitos da globalização no mercado de imagens e, portanto, nas representações da

realidade (Chéroux, 2013: 57).

O tsunami de origem sísmica que arrasou, no dia 26 de Dezembro de 2004, grande parte

da costa do Índico ocorreu assim já em plena era histórica inaugurada pelo 11 de

Setembro.

O ataque de Nova Iorque foi pensado pela mente humana; o tsunami do Índico teve causas

naturais. Como é evidente, pode ser dito com máxima confiança que a relação de

causalidade entre os dois acontecimentos é nula, ou seja, que com certeza o tsunami teria

37 Cineasta franco-suíço. É um dos membros mais influentes da nouvelle vague, caracterizado tanto por sua acidez crítica quanto pela poesia de suas imagens. 38 ¿Qué hemos visto del 11 de septiembre? (CHÉROUX, 2013. Cuando las imágenes tocan lo real. Madrid: Círculo de Bellas Artes.) 39 https://www.ap.org/en-gb/#

45

ocorrido mesmo que os aviões de passageiros não tivessem no derradeiro momento

chocado contra os seus alvos (Tavares, 2005: 13).

Estes dois acontecimentos forçaram a humanidade a uma reflexão sobre a textura da

história, a identificação do bem e do mal ou as relações entre cultura, religião e realidade.

Essa reflexão, aparentemente típica de filósofos, historiadores e teólogos, foi feita em

conjunto, por efeito do processo a que vulgarmente se chama globalização; poucas

pessoas lhe terão escapado (ibidem).

2.1.1 O terramoto como acontecimento imprevisível no mundo

«A história é uma cadeia interminável de acontecimentos, mas está presa por fios.

Se cortarmos um dos fios já não podemos dar por certo acontecimento algum.»

“O Pequeno livro do Grande Terramoto” (Rui Tavares, 2005: 30)

No primeiro dia de 1755 Lisboa foi arruinada pelas forças combinadas de um sismo

violento e invulgarmente longo, um maremoto que lançou ondas gigantescas sobre a costa

e diversos incêndios, um dos quais consumiu todo o centro da capital portuguesa

(Tavares, 2005: 16). Pelo menos no que diz respeito à perceção que os contemporâneos

têm da sua história, é razoável estabelecer-se um paralelismo entre o Terramoto de 1755,

os terramotos do México de 1985 e 2017, os ataques de Nova Iorque ou o tsunami do

Índico. O “Desastre de Lisboa”, como foi chamado pelos contemporâneos estrangeiros,

era certamente uma singularidade, uma ruptura violenta da ordem histórica. Se há

candidatos sérios a «dia que mudou o mundo», o Iº de Novembro de 1755 é um deles.

Globalmente e do ponto de vista cultural, certas catástrofes são mais especiais do que

outras, gostemos ou não do facto: graças a sua articulação com os média. Pela sua

contiguidade e uso repetido, alguns meios deram mais importância aos acontecimentos

que veicularam. No quadro deste discurso, utiliza-se «globalização» no seu sentido

46

inaugural cunhado por Marshall McLuhan,40 a partir do qual a globalização é um efeito

do aumento da velocidade de informação, que resulta numa percepção de proximidade

física (McLuhan, 1994: 377).

Os acontecimentos de 2001 e 2004 foram vividos em simultâneo por virtude dessa

disseminação extremamente rápida de informação, e amplificados ainda pela diversidade

crescente de canais de comunicação.

Fig. 03 Gravura em cobre de 1755 mostrando Lisboa em chamas e um tsunami

dominando os navios no porto

O Terramoto de 1755 (ver figura 03) teve também a sua inscrição num determinado

panorama dos média, favorecido desde logo pelo facto de Lisboa ser um porto acessível

e plataforma das grandes rotas de navegação, famoso pela abundância real ou imaginada

de mercadorias e fortunas em metais preciosos — aspetos muito evocados após o sismo,

nomeadamente pelos estrangeiros.

40 Professor de literatura inglesa, crítica literária e teoria da comunicação, Marshall McLuhan é reconhecido como um dos fundadores dos estudos de média e caiu para a posteridade como um dos grandes visionários da sociedade da informação presente e futura.

47

Sem esse panorama — que ganhou forma através de correspondências manuscritas e

impressas em folhetos, gazetas à escala pan-europeia e relatos orais de marinheiros e

outros viajantes, e que foi precedido pelos próprios efeitos sísmicos do terramoto e do

maremoto em boa parte da Europa e do Norte de África — o terramoto não teria sido este

terramoto. Os folhetos fizeram o Terramoto — o meio já era a mensagem, mesmo há 265

anos atrás (Tavares, 2005: 27).

Não poderemos nunca saber como é que teria sido a história se subtraíssemos ou

acrescentássemos uma simples peça. Mas podemos especular — uma das maneiras de

nos apercebermos da importância das coisas é pensar como seria o mundo sem elas —

oferecendo várias alternativas de histórias possíveis e paralelas. Ao fazê-lo, acabamos por

entender como o Terramoto se extravasou e foi importante para os portugueses (Tavares,

2005: 49).

«No dia 19 de setembro, na capital (mexicana), muitos não tiveram a oportunidade de aprofundar o medo.»

“No sin nosotros”. Los días del terremoto (Carlos Monsiváis, 2005)41

Em 19 de setembro de 1985, a Cidade do México sofreu um grande terramoto que causou

um grande número de mortes (os números das autoridades nunca são estabelecidos

seriamente, as vítimas aproximam o número de vinte mil mortes). No dia seguinte, outro

terramoto (ou tremor) de menor intensidade retoma o pânico e revigora o espírito de

solidariedade. Medo, terror pelo que aconteceu com seus entes queridos e propriedades,

a perda de familiares e amigos, rumores, desinformação e sentimentos de impotência,

tudo — parece de repente — dá lugar à mentalidade que torna credível (compartilhável)

uma ideia até aquele momento distante ou desconhecido: a SOCIEDADE CIVIL

(Monsiváis, 2005: 15), que conduz, que chama, que distribui solidariedade. Diante da

notável ineficiência do governo do presidente Miguel de la Madrid, paralisado pela

tragédia, e ante o medo da burocracia, inimigo das ações espontâneas, o grupo de

empresas da capital organiza-se com rapidez e, como ao longo de duas semanas, um

milhão de pessoas (aproximadamente) trabalham na criação de abrigos, no fornecimento

41 «El 19 de septiembre, en la capital, muchos carecieron de la oportunidad de profundizar en su miedo.» (trad. Liv.)

48

de alimentos e roupas, na recolha de dinheiro, na localização de pessoas, no resgate dos

mortos e daqueles presos nos escombros, a organização do trânsito, o atendimento

psicológico, a prevenção de epidemias, o despejo das pirâmides de entulho, a demolição

de ruínas que representam um perigo. Esses voluntários são estimulados pelo

pertencimento à sociedade civil, pela abstração que quando materializada leva à rejeição

do regime, suas corrupções, sua falta de vontade e competência para cuidar das vítimas,

e dos seus familiares que os acompanham, pela primeira vez. Apenas, na hora e de

maneira organizada, quem protesta está focado na solução e não na melancolia que espera

a solução dos problemas. Centenas de milhares traçam novas formas de relacionamento

com o governo e, na prática, redefinem seus deveres de cidadão.

Sem debates prévios, sem esclarecimentos conceptuais, em quatro ou cinco dias o termo

sociedade civil prevalece, seja qual for, enquanto durar, garante aos seus utilizadores um

espaço de independência política e mental. Como é previsível, o impulso gera a pretensão

de “co-governo” no esforço de salvar vidas e restaurar ou instaurar a ordem urbana. A

rigor, eles nunca são governo, mas essa crença ilumina algo muito característico dos

governantes: sua banalidade total (Monsiváis, 2005: 15). Esta é a grande certeza de 1985:

a descoberta de que a comunidade só existe plenamente se intensifica deveres e anula

direitos, se a sociedade civil ainda é uma ideia vaga, as centenas de milhares que se

consideram seus representantes lhe dão energia e presença irrefutável.

O som de desabamentos, imagens de colapsos, e as poses dos edifícios reduzindo-se

abruptamente a escombros, aos poucos, em um período de duas ou três horas, os

habitantes da Cidade do México olharam a dimensão do ocorrido, os hotéis e condomínios

no chão, as escolas e os hospitais precários, os milhares e milhares de vítimas, a resposta

massiva ao desastre. Os termos são implantados, com reiteração orgânica, que em casos

extremos cobrem as duas funções: descrição e síntese, avaliação e punição, tragédia,

bombardeio, catástrofe; palavras que, em primeira instância, são declarações de

impotência frente às forças naturais, luto que quando ampliado é preciso, histórias que

não precisam mais ser ampliadas.

49

O primeiro panorama foi disponibilizado pela rádio, entre outros motivos porque grande

parte da cidade estava sem luz e porque Televisa42 ficou cinco horas sem sinal para

transmissão. A coordenação informacional da rádio possibilitou um panorama, que a

experiência pessoal complementou: trânsito congestionado, a colónia (bairro) Roma

cruelmente devastada, a área do desastre do Primeiro Plano da cidade, num raio de 30

quilómetros cerca de 500 colapsos totais ou parciais, explosões, alarmes insistentes sobre

vazamentos de gás, incêndios, corpos mutilados, notícias sobre o desaparecimento de

grupos inteiros de estudantes, turistas isolados em suas aflições, hospitais evacuados,

equipas de resgate e voluntários, parentes desesperados, crise de angústia nas ruas, gritos

de socorro desde os escombros, demanda por roupas, alimentos e remédios, pródigo

pedido de calma. Aos poucos, o medo cedeu (ou coexistiu) a dor, a incerteza, a vontade

de ajudar, o medo (Monsiváis (2005).

«A façanha absolutamente consciente e determinada de um importante setor da população que com seu impulso deseja restaurar harmonias e sentidos vitais é,

moralmente, um fato maior e mais significativo.» (Monsiváis, 2005)43

Da comoção surge uma cidade diferente (ou vista de maneira diferente), com ruínas que

já foram promessas de modernidade vitoriosa: o Hotel Regis, o SCOP com seus

extraordinários murais de Juan O'Gorman, o Multifamiliar Juárez, a Unidade Nonoalco-

Tlatelolco, Televisa, o Centro Médico, o Hospital Geral, a Secretaria de Comércio ... Lá,

enquanto procuravam resolver os problemas dos esgotos de água, eletricidade e

comunicação telefónica, 50 mil pessoas trabalham antes de um apocalipse de cascalho e

poeira. O luto homenageia genuinamente os milhares de vítimas e este sentimento de

tragédia que é lealdade nacional e humana é reafirmado por cada informação chocante: a

menina de seis anos que durou mais de um dia nos escombros protegida pelos cadáveres

de seus pais e que ao ser resgatada, ela exigiu que seus corpos fossem removidos; o jovem

que esperou mais de 20 horas imóvel, em frente ao prédio em que sua mãe está presa; os

bombeiros e marinheiros e salva-vidas e voluntários e polícias que anonimamente

42 A maior rede de média no México na altura. 43 “La hazaña absolutamente consciente y decidida de un sector importante de la población que con su impulso desea restaurar armonías y sentidos vitales es, moralmente, un hecho más vasto y significativo.” (trad. Liv.)

50

distribuíram ânimos e generosidade na vigília dos cordões e das pesquisas com grave

risco.

Ao acrescentar novos dados a velhas querelas, as catástrofes têm um papel considerável

na dinâmica cultural das sociedades. Os terramotos de Lisboa e do México, fizeram brotar

uma quantidade desmedida de discussões; tornou-se polémica sobre as causas dos sismos,

sobre a extensão dos danos e sobre as consequências futuras dos acontecimentos (Tavares,

2005: 18).

«Novamente em 19 de setembro». Esse pensamento assaltou milhares de cidadãos

minutos depois da uma da tarde de 2017, quando um poderoso terramoto de 7,1 graus na

escala Richter44 sacudiu a Cidade do México, deixando mais de 280 vítimas fatais. Desde

que um terramoto, naquela ocasião de 8,1 graus em 1985, deixou cerca de 10.000 mortos,

11.687 dias passaram sem outro terramoto causando uma única morte na capital. E, nesse

período, apenas cinco terramotos de sete graus ou mais deixaram danos. Era improvável

que tivesse acontecido em 19 de setembro, mas a história, às vezes, repete-se.45

No dia 19 de setembro de 2017, os habitantes da Cidade do México acordaram com o

conhecimento que era mais um aniversário do terramoto de 1985. Também sabíamos,

porque há dias todos os média e a propaganda em edifícios falavam-nos disso. Lembraram

que às 11 da manhã seria o exercício de simulacro para lembrar o 1985 e ter em mente as

formas convenientes de evacuação em cada situação em que nos encontramos. Houve

quem estivesse sem vontade de fazê-lo, e houve quem o levasse a sério, como todos os

anos.

O chefe de governo da Cidade do México, Miguel Ángel Mancera, informou sobre a

existência de uma aplicação para telemóvel que acionaria o alarme em caso de terramoto.

Foi um prenúncio de coisas que viriam pouco mais de duas horas depois. A verdade é que

pela primeira vez o conhecido alarme sísmico não soou antes do terramoto, mas 11

44 A escala sismológica Richter, também conhecida como escala de magnitude local (ML), é uma escala logarítmica arbitrária que atribui um número para quantificar a energia liberada por um terramoto, em homenagem ao sismólogo americano Charles Francis Richter. 45 Nota do jornal El País, 22 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://elpais.com/politica/2017/09/22/actualidad/1506039977_526653.html

51

segundos depois: antes sentimos o movimento e depois escutamos o som. Isso se deveu

à proximidade do epicentro.46

O terramoto de 1985 libertou 32 vezes mais energia sísmica do que o de 19 de setembro

de 2017. No entanto, em 1985, o epicentro era muito distante e sob a costa do estado de

Michoacán, a mais de 400 km da capital, enquanto 7.1 ocorreu apenas 120 km ao sul da

cidade.47 À medida que se espalham, as ondas sísmicas se atenuam rapidamente. Por isso,

apesar da rotura que gerou as ondas sísmicas dessa terça-feira ser bem menor que a de

1985, os choques na Cidade do México foram tão violentos.

Os governos e os cidadãos têm muito a aprender com os desastres naturais. Mas o

terramoto que atingiu o México em 19 de setembro de 2017 — que causou a morte de

369 pessoas no centro do país — evidenciou lições não aprendidas ou logo esquecidas.

A rotura do terramoto de 19 de setembro de 2017 ocorreu dentro da placa oceânica Cocos

(ou seja, terramoto intraplaca), abaixo do continente, a uma profundidade de 57 km (ver

figura 04). Embora esse tipo de terramoto não seja o mais comum no México, não é de

forma alguma extraordinário.

46 Dados emitidos pelo Serviço Sismológico Nacional, vinculado ao Instituto de Geofísica da Universidade Nacional Autônoma do México. http://www.ssn.unam.mx/ 47 “¿Qué ocurrió el 19 de septiembre de 2017 en México?”. Por Víctor M. Cruz Atienza, Shri Krishna, I. de Geofísica e Mario Ordaz, I. de Ingeniería, UNAM. [Online] Disponível em: http://ciencia.unam.mx/leer/652/-que-ocurrio-el-19-de-septiembre-de-2017-en-mexico-

52

Fig. 04 Locais do terramoto de magnitude 7,1 de 19 de setembro de 2017 e alguns outros do mesmo tipo na região

A Figura 04 mostra os epicentros e as profundidades de alguns terramotos semelhantes,

incluindo o do 19 de setembro de 2017. Essas roturas ocorrem em profundidades maiores

do que os terramotos de subducção típicos, como o de 1985, que ocorre sob a costa do

Pacífico Mexicano na interface de contato entre os Cocos e as placas tectónicas da

América do Norte (linha vermelha, Figura 04).

Terramotos entre placas, de profundidade intermediária, são produzidos por tensões

extensas ao longo da placa Cocos. As falhas geológicas associadas a esses terramotos são

conhecidas como "falhas normais". Deve-se mencionar que estudos realizados para

terramotos intraplacas no México mostram que, por ano, a probabilidade de que a

intensidade do abalo na Cidade do México devido a este tipo de terramoto seja grande é

muito semelhante à dos terramotos de subducção típicos, como o de 1985, entre outros

(ver figura 05).

53

Fig. 05 Espessura da bacia sedimentar onde grande parte da Cidade do México está localizada. Os pontos azuis indicam os locais de duas estações sísmicas que registaram os terramotos de 1985 e 2017

Isso implica que o perigo sísmico na capital, associado a terramotos intraplacas, como os

do 19 de setembro de 2017, é tão grande quanto o dos terramotos mais comuns que

ocorrem sob a costa mexicana do Pacífico.48

Cada vez que um evento de desastre natural acontece na cidade, os problemas são

enfrentados novamente do zero, principalmente com terramotos. No terramoto de

magnitude 8,1 de 1985, mais de 12.000 pessoas morreram e centenas de casas e edifícios

foram danificados49 (ver figura 06).

48 «Nos esforzamos por olvidar nuestras tragedias» (trad.livre). Conversa em torno do livro: “Aquí volverá a temblar” do Ricardo Becerra e Carlos Flores [Online] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5SI4udmhq94 49 No relatório do Instituto Belisario Domínguez do Senado da República. “Recuento de los daños 7S y 19S: a un mes de la tragedia” [Online] Disponível em: http://bibliodigitalibd.senado.gob.mx/bitstream/handle/123456789/3721/2017_16_NE_Recuento%20de%20da%C3%B1os_231017.pdf?sequence=1&isAllowed=y

54

Fig. 06 Local de sérios danos e colapsos durante o terramoto de 19 de setembro de 2017 (pontos vermelhos)

Muitas das vítimas foram resgatadas por grupos de cidadãos que se organizaram

voluntariamente para remover os escombros. Naqueles primeiros dias, as autoridades

estavam praticamente ausentes. Dos grupos civis, organizações e movimentos políticos,

que nasceram anos depois, passaram a fazer logo parte do governo de esquerda na capital

mexicana. Após a tragédia, diversas investigações revelaram que, em muitos casos, os

imóveis atingidos foram construídos de forma irregular, sem cumprimento da legislação

ou com materiais defeituosos.

Em 19 de setembro de 2017, ao tomarem conhecimento da magnitude da tragédia, os

habitantes da Cidade do México saíram às ruas para ajudar as vítimas. Os prédios

desabados no bairro Del Valle, no Roma, em La Condesa, em Xochimilco, foram

cercados por acampamentos e postos de socorro, onde rapidamente apareceram pessoas

55

dispostas a socorrer, doaram alimentos e remédios.50 À medida que as ruas próximas dos

prédios desabados ficavam congestionadas, grupos de ciclistas e motociclistas

organizavam-se para transportar alimentos, remédios e ferramentas. Nessa nova

mobilização e organização cidadã diante do desastre natural, as novas tecnologias tiveram

um papel central: telemóveis, internet, redes sociais. O Twitter e o Facebook

desempenharam um papel central na organização de brigadas e grupos de resgate. Pela

sua vez, os membros da UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México), da

Universidade Autónoma Metropolitana e do Instituto Politécnico Nacional formaram-se

em brigadas de apoio, resgate, assistência, recolha, recoleta e atendimento psicológico:

alunos, professores e operários deram o seu apoio em todas as tarefas. Professores e

estudantes de psicologia, medicina e serviço social ofereceram os seus serviços àqueles

que estiveram em crise. Por sua vez, a Faculdade de Arquitetura da UNAM treinou

milhares de alunos para rever edifícios e casas. Sobre a mobilização social juvenil, Héctor

Castillo Berthier destacou:51

Milhares de jovens organizaram o trânsito. Eles formaram correntes humanas para

remover os destroços. Muitos mais juntaram alimentos, remédios, ferramentas e

tudo o que era necessário para apoiar as vítimas.

O objetivo principal: resgatar o maior número de pessoas vivas.

Eles intervieram em algo que o governo não poderia resolver sozinho. Eles

mostraram que podiam fazer o que ninguém mais fazia: ajudar e trazer ordem.

Os voluntários obedeceram às ordens dos militares, polícias, bombeiros e

elementos da defesa civil. Isso permitiu, parece-me, uma ordem maior no resgate

das vítimas, processo que foi muito caótico em 1985.

50 Derrumbes, albergues, hospitales y voluntariado sismo CDMX, Morelos y Puebla. [Online] Disponível em:https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=13B_gbt3e5RWk_6xQoQ15xxhGOFs&ll=18.48104269147361%2C-97.48055053127155&z=6 51 Castillo Berthier, Héctor (2018). “Jóvenes, terramotos y cambio social”. Revista Mexicana de Sociología 80 (1): 233-239. [Online] Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-25032018000100233

56

Os jovens, em massa, se dedicaram a colocar a cidade de pé. Eles descobriram que

a sorte de um e os problemas de outros são importantes para todos nós. Como se

costuma dizer: "O México é uma família de estranhos, sem sobrenomes"; essa é a

enorme força do nosso povo.

Desta vez, foi como dar um abraço coletivo. Era uma forma de expressar amor

pelos outros.

Com isso apareceu o Nós: "Somos todos nós..."

Os pais desses jovens o fizeram antes, no terramoto de 1985, e sem dúvida que a

mobilização social ajudou a fortalecer o avanço da democracia ... Mas esse

processo não terminou (Castillo Berthier, 2018: 237).

Dos 11 jornais nacionais analisados em 20 de setembro de 2017,52 um dia após o

terramoto, oito mencionam claramente uma ligação entre 1985 e 2017 (El Universal,

Excélsior, La Jornada, Milenio, El Economista, El Sol de México, El Financiero,

Crónica), um é ambiguo (El Heraldo), e apenas dois não fazem referência ao terramoto

de 1985 (Reforma, Esto).

O Esto53 intitulou a sua edição de 20 de setembro de "#FuerzaMéxico", a hashtag que se

tornaria famosa e inundaria jornais, revistas, vídeos e redes sociais nos dias seguintes.

“Fuerza, México”, algo como “Adelante, México. Tu podes". A famosa revista de show

business ¡Hola!, em sua versão mexicana, usaria a mesma frase para ilustrar a sua capa

de 30 de setembro de 2017. Como uma bala, Esto indicaria: "Um terramoto de 7,1 graus

atingiu nosso país" (ver figura 07). Sem referência a 1985. O mesmo para o jornal

Reforma,54 que intitulou sua edição “Surge a Solidariedade”, com o marcador “São 224

mortos — 117 no CDMX — e 45 prédios desabados.”

52 Revista mexicana de sociología. Versão Online ISSN 2594-0651 Versão impressa ISSN 0188-2503 Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-25032018000500009 53 Esto, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.esto.com.mx/ 54 Reforma, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.reforma.com/

57

Fig. 07

O caso do jornal Reforma é de destacar-se (ver figura 08), já que toda a capa é dedicada

ao terramoto, mas não há uma única menção a 1985 em suas manchetes e notas de rodapé.

Todas as notas são dedicadas à catástrofe, mas a correspondência de data não é destacada.

Apenas a nota principal começa com referência a 1985; sob o título de “Terramoto

surpreendente 7.1; Apoio dos cidadãos em meio ao caos”, refere: “A Cidade do México

foi mais uma vez abalada por um novo terramoto ... e, mais uma vez, a solidariedade e o

heroísmo dos capitalistas emergiram incondicionalmente”. E continuava: “Trinta e dois

anos após o terramoto de 1985, o centro do país desabou novamente em 19 de setembro,

desta vez devido a um terramoto de magnitude 7,1 com epicentro em Morelos” (Reforma,

20 de setembro de 2017).

58

Fig. 08

No caso de El Heraldo,55 a manchete é ambigua: "19 negro y México en pie". Impossível

garantir que se faça referência a outro 19 de setembro (ver figura 09). A sua capa é

ilustrada com uma fotografia colorida de Leslie Pérez, na qual se observam três andares

de um edifício residencial. Do lado direito pode-se ver o que resta das janelas dos três

apartamentos: ruínas, e nas paredes laterais os tijolos sem cimento e sem tinta. El

55 El Heraldo de México, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://heraldodemexico.com.mx

59

Universal 56 tinha semelhanças com El Heraldo. O terramoto de 1985 está na capa, mas

não faz parte das manchetes, onde se lê "Tragédia e emergência terramoto em 19-S" (ver

figura 10). As balas também não se referem ao ‘85: "Terramoto de 7,1 graus sacode o

centro do país, com saldo de 216 mortos", "EPN: prioridade, resgate dos sobreviventes;

apela à unidade” e “O presidente ordena a abertura de serviços de saúde a todos os

feridos”. É em dois dos principais artigos que aparece a referência aos anos 1980: “No

mesmo dia da pior desgraça”, de Héctor de Mauleón, e “Um pesadelo tornado realidade”,

de Gerardo Lammers.

Fig. 09

56 El Universal, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.eluniversal.com.mx/

60

Fig. 10

No que se refere aos outros sete jornais nacionais que o fazem citar na primeira página,

de forma clara e nas manchetes, o que aconteceu 32 anos antes, cabe destacar que as

palavras mais utilizadas foram "de novo" e "outro". O Milenio57 liderou "Outro mortal

19-S", com a bala "Acerta um novo terramoto 32 anos após o devastador do 85 e 12 dias

após o último de 8,2" (ver figura 11). O mesmo El Economista,58 cujo título era "Outro

57 Milenio, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.milenio.com/ 58 El Economista, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.eleconomista.com.mx/

61

Setembro 19 amaldiçoado" (ver figura 12). Por seu turno, o Crónica59 anunciou:

"Tragédia e solidariedade novamente no 19-S", com a explicação "Terramoto de 7,1 deixa

226 mortos no centro do país e revive o trauma" (ver figura 13). El Financiero60 insistiu:

"De novo, 19-S" (ver figura 14). Na sua edição de 20 de setembro, os cabeçalhos das

notas não remetem para 1985, mas entre as várias fotografias que ilustram o número, duas

se destacam ao centro: uma a cores de 2017, outra a preto e branco de 1985. Estas são

duas imagens semelhantes: um prédio desabado e homens trabalhando nele. Mas em

2017, os homens também são observados no chão, fazendo diferentes tarefas de ajuda. A

legenda diz: “32 anos depois. Cerca de quarenta propriedades ruíram na Cidade do

México."

Fig. 11

59 Crónica, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.cronica.com.mx/ 60 El Financiero, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.elfinanciero.com.mx/

62

Fig. 12

Fig. 13

63

Fig. 14

Diante do "de novo" dos jornais citados, o Excelsior61 optou pela manchete "O pesadelo

voltou", explicada pelo projétil: "Foram 217 mortos no terramoto". Quanto às reportagens

de capa, eles notaram: "19 de setembro, a terra estremeceu novamente" e "Dor no

Rébsamen." Duas imagens acompanham a edição. Um, o pequeno, na parte inferior da

capa, mostra um homem carregando um corpo, ao lado um polícia e talvez um paramédico

que colocou a mão no ombro do indivíduo: uma demonstração de solidariedade diante do

que parece ser a perda de um ente querido. Acima, uma foto que ocupa dois terços da

capa: uma imagem colorida que mostra uma vista panorâmica da Cidade do México

momentos após o terramoto: uma nuvem de poeira envolve os prédios, a poeira deixada

por outros prédios quando desabam (ver figura 15).

61 Excélsior, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.excelsior.com.mx/

64

Fig. 15

Por sua vez, El Sol de México62 mencionou a palavra "Fraturada" como manchete,

explicando-a com o marcador: "32 anos depois, no mesmo dia" (ver figura 16). Suas

manchetes também faziam referência ao 85: “Cenas não vistas desde o terramoto de 85

voltaram às mesmas colónias que desabaram”, “A capital ficou paralisada:

telecomunicações, eletricidade, transportes públicos foram cortados, as principais

estradas ficaram saturadas e houve fugas de gás”, “Morelos, Puebla, Guerrero e o Estado

do México também sofreram o terramoto e contagem de mortos”. É um dos poucos jornais

de circulação nacional cujas principais manchetes lembram a tragédia em outras áreas do

país.

62 El Sol de México, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.elsoldemexico.com.mx/

65

Fig. 16

Para os trabalhadores de La Jornada,63 o terramoto de 19 de setembro de 1985 tem um

significado especial. Naquele dia estavam a fazer um ano de vida, e na noite anterior

tinham comemorado o acontecimento. Além disso, eles perderam vários dos seus

membros no terramoto. Portanto, não é por acaso que no dia 20 de setembro de 2017

intitularam a sua edição com o título “Como sempre solidariedade” (ver figura 17). O

jornal foi um dos principais atores na construção da solidariedade civil em torno do

terramoto de 1985, por isso não é surpreendente que tenham destacado a solidariedade

conhecida 32 anos antes.

63 La Jornada, México, de 19 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/

66

Fig. 17

A edição é ilustrada por uma grande fotografia que ocupa quatro quintos da capa, que

mostra ao fundo um prédio em ruínas, e na frente, acima, abaixo e nas laterais, um

formigueiro de gente passando baldes cheios de cascalho para libertar os edifícios à

procura de possíveis sobreviventes. Em primeiro plano, destacam-se quatro jovens com

as mãos levantadas: algumas dessas mãos cerradas, aquele punho que se tornou símbolo

de pedir "SILÊNCIO" perante o possível som dos sobreviventes. Esse mesmo punho que

ilustraria a capa de muitos jornais e revistas nos dias seguintes, como também pode ser

verificado no caso da revista ¡Hola!64 (ver figura 18).

64 ¡Hola!, México, 30 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://mx.hola.com/

67

Fig. 18

Por sua vez, a imprensa internacional não destacou a ligação com 1985 na mesma medida

que a imprensa nacional. Bild, The New York Times, USA Today, Le Figaro não se

referiram à catástrofe de 1985 nas suas primeiras páginas, ou nas manchetes, títulos,

legendas ou os primeiros parágrafos de seus textos. Houve, no entanto, alguns jornais

americanos e europeus que dedicaram linhas à relação com o terramoto de 1985. O

mesmo fez o The Houston Chronicle65, por exemplo. Também o The Washington Post66

que após sua manchete ("Scores dead after powerful quake jolts Mexico") declarou "um

tremor de magnitude 7,1 atinge o aniversário do evento devastador de 1985". O El País67

da Espanha não destacou o vínculo com 1985 nem na sua manchete nem nos primeiros

parágrafos da sua nota “Um novo terramoto sacode de novo a capital do México”, mas

fê-lo posteriormente na primeira página: “[…] Ainda ontem marcou o 32º aniversário do

65 Houston Chronicle, EUA, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.chron.com/ 66 The Washington Post, EUA, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.washingtonpost.com 67 El País, Espanha, de 20 a 26 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://elpais.com

68

terramoto mais mortal da história do país, que deixou dezenas de milhares de mortos, e

muitos mexicanos participaram de um exercício de evacuação organizado por ocasião

dessa catástrofe. O francês Le Monde68 mencionou em uma de suas manchetes: “C’est le

même cauchemar qu’en 1985” (“É o mesmo pesadelo de 1985”).

Na verdade, foram principalmente os jornais latino-americanos que se lembraram do

terramoto de 32 anos antes. O Página 1269 intitulava: “De repente, a terra se abriu”, para

depois explicar: “Exatamente 32 anos depois do terramoto que a destruiu em 1985, a

Cidade do México estremeceu novamente. […]” Por sua vez, o argentino Clarín70

também tinha a manchete: “México estremeceu novamente: pelo menos 149 mortes e

destruição na Cidade do México”, para afirmar: “No mesmo dia foi lembrado o terramoto

de 1985, que causou 10.000 mortos e devastou a capital mexicana, houve um terramoto

de 7,1 na escala Richter.” O Globo71 do Brasil intitulou sua edição "Terramoto mata mais

de 130 no México": "Exatos 32 anos depois do terramoto mais devastador da História do

México, que matou cerca de 10 mil pessoas, um sismo de 7.1 graus de magnitude destruiu

pelo menos 27 prédios na capital. […]”. O colombiano El Tiempo72 destacou: "México,

em desespero de resgate após um forte terramoto" e depois explicou: "Terramoto atinge

o país asteca exatamente 32 anos após o pior que já experimentou."

Em certo sentido, pode-se dizer que o terramoto de 19 de setembro permitiu que as

gerações de 1985 e 2017 se unissem, em muitos casos pais e filhos. Pais que, quando

jovens, viveram o terramoto de 1985 e que transmitiram o horror oralmente. Crianças que

em 2017 enfrentaram situações semelhantes às vividas pelos seus pais e que de alguma

forma tiveram a herança e a transmissão de conhecimentos, de saberes.

68 Le Monde, Francia, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.lemonde.fr/ 69 Página 12, Argentina, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/ 70 Clarín, Argentina, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://www.clarin.com/ 71 O Globo, Brasil, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: https://oglobo.globo.com/ 72 El Tiempo, Colombia, 20 de setembro de 2017. [Online] Disponível em: http://www.eltiempo.com/

69

Três gerações coexistem em cada evento histórico: a da formação (0-30 anos); o

hegemónico (30-60), que geralmente detém o controle do poder político, social e

económico; e o transmissor (60 em diante) (Aróstegui, 2004).73 Em 2017, 32 anos após o

terramoto de 1985, duas gerações que viviam angústia e horror em 1985 ainda estavam

vivas: a geração em formação e a geração hegemónica, agora convertida em hegemónica

e transmissora, respetivamente. O vínculo com a memória permaneceu forte para aquelas

gerações, que foram afetadas em momentos importantes de sua própria existência.

Portanto, não é por acaso que, diante da reativação do fenómeno natural com alto impacto

social, um grande número de cidadãos se valeu de sua aprendizagem psicológica, afetiva,

social e organizacional adquirida 32 anos antes.

Como resultado do terramoto de 1985, no entanto, um sistema nacional de proteção civil

também foi criado para evitar danos por desastres naturais, não apenas por terramotos,

mas também por furacões que atingem o México todos os anos.

Outro elemento foi um sistema especial para alertar,74 por meio de transmissões de rádio,

terramotos na costa sul do Oceano Pacífico, especialmente na fronteira com o estado de

Guerrero. É lá onde as placas tectónicas se movem com frequência e causam movimentos

de terra que afetam a região central do país. E, além do sistema de alerta sísmico,

programas de educação foram estabelecidos em escolas e locais de trabalho para conhecer

as ações em caso de terramotos. Simulações de evacuação, brigadas em cada posto de

proteção civil e informações sobre os locais para focar em um desastre fazem parte do dia

a dia da capital.

Durante 32 anos essas medidas funcionaram sem problemas, principalmente na capital

do país. Mas ao meio-dia de 19 de setembro de 2017, a situação mudou.75 E, como

73 Aróstegui, Julio (2004). La historia vivida. Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza Editorial. 74 O Serviço Sismológico Nacional, vinculado ao Instituto de Geofísica da Universidade Nacional Autônoma do México. http://www.ssn.unam.mx/ 75 Conversa em torno do livro: “Aquí volverá a temblar” do Ricardo Becerra e Carlos Flores [Online] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5SI4udmhq94

70

aconteceu há três décadas, as investigações posteriores revelaram uma série de

irregularidades que explicam os danos aos edifícios e a morte de dezenas de pessoas.

Durante 11 meses, a organização civil Mexicanos Contra a Corrupção e a Impunidade

(MCCI) investigou a história da construção de 28 edifícios que foram danificados ou

desabaram.

Quase em todos os casos, os funcionários foram os responsáveis pelas irregularidades,

disse à BBC Mundo a jornalista Thelma Gómez, uma das coordenadoras do projeto

documental “Terramoto en México: el largo y angustiante rescate en CDMX.”76 «Um

denominador comum é que sempre houve vizinhos que alertavam as autoridades, que

faziam denúncias de construção ilegal ou sem autorização», explica. «Sempre havia

vizinhos que alertavam e sempre havia autoridades que não ouviam».

O partido Morena, vencedor das eleições presidenciais em 2018, denunciou o suposto uso

de recursos para reconstrução em campanhas políticas do opositor Partido da Revolução

Democrática (PRD) ao Ministério Público da capital. Na Assembleia Legislativa da

Cidade do México, no Congresso da capital, três deputados foram acusados de tentar

controlar o uso do orçamento para as vítimas. Segundo organizações civis, a intenção era

usar os recursos na campanha eleitoral. Devido ao escândalo, os titulares e alguns

conselheiros da Comissão para a Reconstrução renunciaram. “É uma das lições que não

se aprendeu”, reconhece Carlos Flores77 (Becerra; Flores, 2018).

Outra lição é que, apesar da dimensão da tragédia em 1985 e em 2017, não foi

estabelecido um censo das condições dos edifícios e instalações de emergência. Assim,

três anos após o terramoto de 2017, é claro que, apesar das experiências, há questões que

ainda precisam ser percorridas. “Não aprendemos os mecanismos e protocolos de

proteção de segurança para enfrentar uma emergência como essa”, disse Flores.

(Becerra; Flores, 2018).

76 [Online] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Oj2GUrHNjLY&feature=youtu.be 77 É internacionalista e mestre em administração pública e políticas públicas. Ele foi funcionário público federal e local. No governo da Cidade do México, foi chefe do Gabinete da Secretaria de Governo de 2015 a 2017 e, após o terramoto de 19 de setembro, foi nomeado coordenador geral na Comissão de Reconstrução.

71

Esperamos um terramoto de maior intensidade na Cidade do México? «É muito

provável».78 Sob a costa do estado de Guerrero, por exemplo, há uma lacuna sísmica de

250 km (ou seja, segmento onde um terramoto significativo não ocorreu em mais de 60

anos) onde um terramoto de magnitude maior que 8 poderia ocorrer.

Este segmento está localizado a cerca de 300 km da Cidade do México. Ou seja,

aproximadamente 150 km mais perto do que a zona do epicentro do terramoto de 1985.

Estimativas feitas por sismólogos da UNAM sugerem que, se esse terramoto ocorrer no

futuro, as acelerações do solo por serem território não firme (já que a cidade foi construída

sob as águas) na Cidade do México poderiam ser, sob certas condições, maiores do que

as do terramoto de 2017 de magnitude 7,1, e 2 a 3 vezes maiores do que as de 1985, em

particular para edifícios com mais de 10 andares. A duração do movimento do solo seria

maior do que a vivida em 2017 (cerca de 3 minutos na sua fase intensa).

O terramoto de 1985 foi um fenómeno natural que teve impacto na vida política, social

e económica do país. Portanto, deve ser considerado também um evento histórico, social

e político. A natureza provocou um movimento telúrico com repercussões nas estruturas

habitacionais e coletivas. O terramoto de 1985 significou um terramoto político, social e

económico, se não para o país, pelo então para a Cidade do México – a sua capital.

O terramoto de 2017 foi novamente um fenómeno natural com impactos sociais e

habitacionais. No entanto, não parece ter tido o mesmo impacto em quase nenhum dos

níveis. Também, o número de vítimas e edifícios desabados foi muito menor. E embora

uma importante mobilização social tenha sido despertada, não parece ter gerado o mesmo

impacto que em 1985.

Em todo o caso, a partir das últimas comemorações, 1985 não ficará apenas na memória

dos cidadãos. O último terramoto, o de 2017, o acompanhará perpetuamente. As

memórias do horror, da tragédia, da solidariedade sempre presente da sociedade civil,

serão multiplicadas por dois, assim como a tragédia foi multiplicada.

78 Apontado pelo Dr. Víctor Manuel Cruz Atienza, Departamento de Sismología, Instituto de Geofísica, UNAM. [Online] Disponível em: http://ciencia.unam.mx/leer/652/-que-ocurrio-el-19-de-septiembre-de-2017-en-mexico-

72

2.2 Imagens da memória coletiva

2.2.1 A fotografia como arquivo (morto)

«O fato verdadeiro e normalmente desprezado do colecionador é sempre anarquista,

destrutivo. Pois esta é a sua dialética: ele liga a fidelidade às coisas, ao único, por ele

assegurado, ao protesto obstinado e subversivo contra o típico e classificável.»

Walter Benjamin

Como é que nos re-apropriamos da nossa história, se ela nos parece tão ‘distante’, caótica,

fragmentada, chegando até nós em sequências que duram poucos minutos? Como falar

em memória, em história, em uma sociedade que prega a instantaneidade do tempo real?

Como o design tem dialogado com as questões da memória e da sua história? Como é que

trabalha com os materiais de arquivo?

Re-arquivar factos, imagens, sons, a estabelecer a possibilidade, num mundo onde a

questão do arquivo se tornou algo tão banal, parece ser uma estratégia para lançar atenção

para acontecimentos que não poderiam, em meio à cultura do excesso, ter sido

‘apagados’. Ao revisitar materiais de arquivo, o design audiovisual tem a possibilidade

de devolver aos acontecimentos seu devido valor, ressaltando factos relevantes que nem

sempre são percebidos em toda sua extensão.

A arquivonomia, ou seja, a área científica que trata da organização e administração dos

arquivos, é um conhecimento que remonta às origens do que poderíamos chamar de nosso

processo de humanização. Desde então, ficamos cada vez mais confusos em arquivos e

códigos. Pelo menos é assim que, hoje, na era do "Mal de Arquivo" (Derrida, 2001),

passamos a ver e ler nossa história. Desse ponto de vista, as primeiras inscrições em

cavernas e desenhos no corpo, em flechas e tabuletas de argila, já eram proto-escritas que

procuravam organizar o mundo em pastas, “files”, arquivos.

O entendimento dos documentos, desde diferentes pontos de vista, levou a uma

disseminação do conhecimento. Trata-se do conhecido “Fim das grandes narrativas”, não

só no sentido benjaminiano, da “Morte do Narrador” (Benjamin, 2015: 79), mas também

da morte dos grandes discursos que procuraram dar sentido à humanidade e sua história

73

e futuro. Ao longo da Modernidade, existe cada vez mais uma outra forma de pensar e

agir que desconfia dos arquivos, em vez da razão e na sua capacidade de revelar a verdade.

Uma artista que explora de forma crítica a figura do arquivo é a Rosângela Rennó. Ela se

autodenomina especialista em "esquecimento", não em memória. E, de facto, as suas

imagens são imagens do esquecimento: ela recolhe o que estava no arquivo morto de uma

sociedade que prefere, como a brasileira, esconder sua história de violência e opressão.

Em “Imemorial”79, por exemplo, Rennó fez em 1994, um trabalho de memória e uma

tentativa de varrer a história contra corrente. Nessa obra, ela recolheu 50 fotografias de

um arquivo abandonado que encontrou no Arquivo Público do Distrito Federal referente

à construção de Brasília. É conhecido pelo domínio popular que inúmeros trabalhadores,

os chamados “candangos”, morreram tragicamente durante a construção de Brasília, que

marcou o governo do presidente Jucelino Kubitschek: uma cidade construída em menos

de 4 anos, com a explotação abusiva dos trabalhadores (com jornadas de 14 a 18 horas) e

repressão com balas das suas tentativas de organização e revolta. A apresentação da obra

de Rennó é uma homenagem aos mortos, pois as fotos, ampliações de fotos 3x4

deterioradas encontradas no arquivo abandonado e esquecido, apresentam ambiguidade,

oscilando entre as imagens das cerimónias oficiais de memória e esquecimento das

vítimas anónimas do "progresso" e da "civilização". O título Imemorial permite-nos

relembrar o conceito de contra-monumento, que passou a ser utilizado

concomitantemente por teóricos da memória da Shoah80 como James Young.81 Essas

expressões referem-se à aporia contida em todo ato de rememoração de eventos

traumáticos, a qual se agrava conforme a dimensão e intensidade da catástrofe que

originou o trauma. No caso de Imemorial de Rosângela Rennó, tenta iluminar o outro

lado da ideologia que despertou uma utopia brasiliense, que significou a morte de

“candangos”, além da expulsão dos pobres para cidades satélites. Renno faz-nos ver o

lado distópico dessa capital, passando, ao mesmo tempo, de forma crítica, os rituais e

79 Série Imemorial, 1994. Instalação para a exposição "Revendo Brasília”. [Online] Disponível em: http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/19/1 80 Termo hebraico que se refere ao holocausto. 81 James Young, At Memory's Edge: After-Images of the Holocaust in Contemporary Art and Architecture (New Haven y Londres: Yale University Press, 2000).

74

memoriais oficiais (arquivos, estes sim, mortos). Seu contra-arquivo serve como um

antídoto para o esquecimento e revela até que ponto não podemos separar mais os termos,

arte, política e ética da memória.

A memória só existe no presente, mas o artista (ou designer) tem que trabalhar com a

multiplicidade de tempos e gerações envolvidos em seu trabalho de arqueólogo também.

Paradigmaticamente, uma fotografia fixa um momento no tempo. Ao longo da história, a

exposição da imagem fotográfica passou de horas a frações de segundos, o que de certa

forma enfatizou o conceito de ‘verdade’ inerente a este meio: o registo de um determinado

acontecimento num momento exato do fluxo temporal.

Embora, como sugere Hubert Damisch (1978), a fotografia oferece «o verdadeiro rasto

de um objeto ou de uma cena do mundo real»,82 só o faz na medida em que «isola,

preserva e apresenta um momento retirado de um contínuo»,83 o que constitui um

paradoxo; olhamos para uma fotografia como um registo temporal, um registo histórico,

no entanto, se a fotografia congela um momento no tempo, acaba por o retirar da história.

Nesse sentido, tradicionalmente uma fotografia não tem antes nem depois, mas apenas o

momento em que foi produzida.

Como sugere Roland Barthes (2009), quando olhamos para uma fotografia olhamos para

algo que já não existe. O momento passou. Deste modo, uma fotografia replica sempre

aquilo que já perdemos, e acaba por sugerir uma necessidade de registar, de tentar reter o

mundo e aqueles que nos rodeiam.

Susan Sontag (1981) afirma que «as fotografias promovem ativamente a nostalgia. (...)

Todas as fotografias são um memento mori. Tirar uma fotografia é participar na

mortabilidade, vulnerabilidade, mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente

por descontextualizar um momento e congelá-lo, todas as fotografias atestam a dissolução

82 Hubert Damisch (1978), “Five Notes for a Phenomenology of the Photographic Image”, Classic Essays on Photography, TRACHTENBERG, Alan, ed., p. 288. 83 John Berger, “Understanding a Photograph”, Classic Essays on Photography, TRACHTENBERG, Alan, ed., p. 293.

75

implacável do tempo. (...) As fotografias exprimem a inocência, a vulnerabilidade das

vidas em direção à sua própria destruição» (Sontag, 1981: 15).

Como Sontag (idem) esclarece, “as fotografias não são um instrumento para a memória,

mas uma reinvenção da mesma, um substituto para as memórias.”

Cumpre lembrar, que o nosso contato com a realidade seja do passado ou do presente se

dá hoje invariavelmente por meio de imagens, dos média e dos novos meios tecnológicos,

pela via da representação. Nossa relação com a história sempre passou por algum tipo de

mediação (oral, escrita), porém o que parece caracterizar a nossa época contemporânea é

a saturação, o excesso, o simulacro, a velocidade na produção de imagens além de seu

caráter onipresente e invasivo nos contextos público e privado; na ideia da curadoria da

obra ATLAS, que foi a de justamente colocar em diálogo se as investigações de Aby

Warburg tiveram influência sobre a história da arte moderna. De facto, a perceção que

temos do mundo, de seus acontecimentos e de nós mesmos tem se transformado

radicalmente no contexto da cultura da visualidade mediática.

No campo da arte e do design contemporâneo, é perceptível um movimento de artistas

que trabalham com questões que dizem respeito ao arquivo, quer seja através da utilização

de materiais de arquivo ou a partir da criação de arquivos fictícios colocando muitas vezes

em debate a maneira como construímos nossas histórias.

Em 88 de 14.00084 a artista de Rio de Janeiro Alice Micelli, apresenta um vídeo formado

por 88 retratos de identificação, selecionados pela artista no arquivo fotográfico da antiga

prisão S-21, em Phnom Penh, capital do Camboja, onde 14 mil pessoas, entre homens,

crianças e mulheres, foram executadas pelo regime do Khmer Vermelho. No trabalho, as

imagens dos 88 prisioneiros mortos são projetadas em uma cortina de areia, de acordo

com o tempo vivido por cada um, dentro da prisão: um dia de vida na S-21 equivale a um

quilo de areia, o que significa quatro segundos de visibilidade no vídeo. Neste projeto, a

artista trabalhou com negativos originais que hoje estão no Museu do Genocídio no local

84 88 de 14.000. País de produção: Brasil. Edição: 2005. Formato: instalação. [Online] Disponível em: https://transmediale.de/content/88-from-14000

76

da antiga prisão no Camboja. A partir destes negativos, fez ampliações e registou, em

vídeo, as fotografias projetadas sobre uma cortina de areia. As fotografias originais foram

tiradas, como relata a artista, instantes antes da morte dos retratados: “estas pessoas

sabiam, no momento em que sua fotografia era tirada, que iriam morrer, senão instantes

depois da fotografia, certamente poucos meses depois.”

Nesta operação, na passagem da fotografia para o vídeo, Alice Micelli cria um novo tipo

de imagem que revela o indizível. O vídeo, formado pelas imagens dos retratos, memórias

de rostos minutos antes do seu sacrifício, incorpora a ideia de uma imagem que, de alguma

forma, captura o silêncio dramático, pleno de memória, de vidas executadas, durante

quase 1 hora de duração. Trata-se de um tempo morto porque é incapaz de reter as

imagens que se projetam no intervalo entre a última foto da vida/primeiro instante da

morte de cada um desses 88 rostos de uma multidão de 14 mil.

O trabalho é um duplo testemunho: o testemunho que a artista esteve lá e que pode

ter acesso aos arquivos e o testemunho, exposto para o público, das barbáries

cometidas na história. Neste sentido funciona como uma espécie de válvula contra

o esquecimento de situações e arquivos que muitas vezes são soterrados na nossa

história. Ao depararmo-nos com estas imagens somos convertidos de espectadores

em cúmplices de um silêncio lancinante que parece ficar entranhado na nossa

memória. Em 88 de 14.000, Alice Micelli busca a re-significação dos fatos e

realiza a releitura de imagens representativas de situações-limites que foram

banalizadas e apagadas da memória social recente (Arantes, 2010: 84).

O discurso sobre o arquivo desdobra-se a partir de três estruturas principais: o estado, a

nossa psique e o nosso corpo. Esse olhar arquivístico sobre a cultura, portanto, tem

origens diversas. Em termos mais remotos, esse olhar remonta à história da arte da

memória (em termos de Mnemónica, como Frances Yates85 nos reativou em meados do

século XX, no caminho aberto por Aby Warburg.

85 Historiadora inglesa, foi professora do prestigioso Instituto Warburg da Universidade de Londres. Seu notável trabalho em mnemônicos da Renascença, The Art of Memory, e seus vários ensaios sobre Giordano Bruno ou John Dee e Shakespeare são particularmente notáveis.

77

Mais perto de nós, os arquivos eram instituições centrais nos Estados modernos e

contemporâneos ao triunfo do historicismo com seu criticado "excesso de história" do

Nietzsche.86 No século XX, a falta de interesse geral no arquivo central serviu para

desencadear um trabalho de rememoração e coleta dos arquivos e suas histórias. A

mudança biológica, por sua vez, entronizou a noção de herança genética e o processo de

recadastramento dos arquivos herdados. Já a cibernética transforma discursos

generalizados sobre memórias, arquivos, registos e rascunhos de informações e tudo

relacionado à ideia de armazenar conhecimentos e fatos (On the Anarchivation. A

Concatenation from Walter Benjamin. Márcio Seligmann-Silva, 2015).

2.2.2 Ativar as memórias graças às fotografias (vivas)

A história antiga, ou seja, aquela que abordava o passado a partir de uma visão totalizante

e que, ao fazê-lo, o estabelecia como algo monódico e definitivo, é substituída pelo

florescimento de “micro-histórias”, histórias pessoais e portanto sempre subjetivas que,

longe de perseguir o objetivo abrangente, universal e unívoco que regeria a historiografia

tradicional, submetem suas pesquisas a uma escala muito menor em que elementos

individuais não são sacrificados a uma generalização mais ampla.87

86 Friedrich Nietzsche (1988) Unzeigemässe Betrachtungen II: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, en Kritische Studienausgabe, org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV/ Berlin-New York: Walter de Gruyter. 87 A "Nouvelle Histoire" ou "Nova História" começou a ganhar forma em 1929 com a fundação da revista Annales: économies, sociétés, civilizations, de Marc Bloch e Lucien Febvre, e consolidou-se definitivamente com os contributos teóricos das gerações subsequentes, liderado por Fernand Braudel e Jacques Le Goff. Nas palavras de Peter Burke, a Nova História poderia ser definida precisamente como “uma história escrita como uma reação deliberada contra o tradicional paradigma” que se estende por todo o mundo - do Japão à Índia, passando pela América Latina - durante os anos 1970 e 1980. Ver Peter Burke, “Ways of making History” (Madrid: Alianza Editorial, 1993: 18).

78

Entramos plenamente na era da comemoração, na era da nostalgia, ou seja, num presente

cuja relação com o passado assumiu as mais diversas formas e reconsiderou inúmeros

debates e reflexões em torno delas.88

Da mesma forma, proliferam monumentos, memoriais, homenagens, comemorações e

museus que tentam relembrar traumas históricos de diversos tipos. Ao mesmo tempo,

novelas históricas, biografias, memórias, diários e confissões são publicadas no mercado

editorial na mesma proporção em que, na televisão, reportagens históricas e

documentários ocupam seções importantes e, no campo das artes visuais, são inauguradas

exposições que também divulgam diversas práticas de memória. Tudo isso sublinha e, ao

mesmo tempo, provoca na sociedade um profundo respeito pelo passado, ao mesmo

tempo em que incentiva nele o sentimento de coletividade e de identidade nacional.

Essa preocupação constante, tanto na esfera cultural quanto na política, pela memória

histórica e pela memória individual, familiar e coletiva, tem incentivado novas

categorizações e subclassificações das formas como sobreviventes e seus descendentes

lembram o passado traumático. Entre esses rótulos recentes, destaca-se o da “pós-

memória”, um neologismo que se configura nos debates e reflexões em torno da

representação (e seus problemas) do Holocausto, metáfora por excelência de outros

capítulos traumáticos da história universal.

Quando Holocaust,89 a série americana de 1978 da NBC, estreou na Alemanha, o sucesso

do público era inédito. Mais de 20 milhões de espectadores viram este documentário

dramático criado por Marvin J. Chomsky, uma ficção histórica que pela primeira vez

enfocou o genocídio nazi dos judeus a partir da perspetiva das vítimas. A série provocou

críticas fervorosas e incentivou a criação de arquivos de memórias de sobreviventes por

instituições como a Universidade de Yale, que temiam que fenómenos da "média de

massa" como o Holocausto acabassem banalizando e falsificando a história, ao mesmo

88 Jeffrey K. Olick e Joyce Robbins, "Social Memory Studies: From ‘Collective’ Memory to the Historical Sociology of Mnemonic Practices", Annual Review of Sociology, Vol. 24 (1998: 117 e 120). 89 HOLOCAUST. Direção de Marvin J. Chomsky. EUA: Titus Productions, 1978. (7h 55min.).

79

tempo que a transformavam em espetáculo melodramático e reducionista, um escravo das

leis da narrativa clássica de Hollywood.90

Apesar das reações que a série provocou nos círculos intelectuais, o Holocausto despertou

a memória coletiva e o luto de uma sociedade até então letárgica pela culpa, pela

responsabilidade de dar nome e forma a um horror de dimensões incomensuráveis, e

também por um silêncio opaco vindo daqueles que sobreviveram e não conseguiam

lembrar (e assim reviver) o trauma dos campos (HOLOCAUST, Marvin J. Chomsky,

1978).

Segundo o Clément Chéroux (2001), a primeira causa que move, por um lado, as gerações

mais novas a trabalhar artisticamente a memória traumática dos seus antecessores, e, por

outro, sociólogos, filósofos e teóricos do cinema e da arte a reivindicar o valor ético e

estético dessas criações, é o desaparecimento gradual e inevitável dos sobreviventes

diretos do horror. Com efeito, a morte de quem o sofreu ou o perpetrou acarreta

irrefutavelmente «a perda da memória coletiva de que são tutores»91 e a transferência,

consequentemente, da prova para o documento, do testemunho para a representação. É

precisamente como resultado deste progressivo silenciamento das vítimas — causado

tanto pelo seu afastamento temporário dos acontecimentos (que altera a sua memória),

como pelo seu próprio desaparecimento físico (que as destrói completamente) — que

ocorre uma lenta, mas imparável substituição da memória comunicativa pela memória

cultural. Em outras palavras, a memória transmitida pelas testemunhas diretas do

acontecimento histórico em questão — uma memória, portanto, de duração limitada,

embora sua transmissão cubra no máximo três ou quatro gerações — aos poucos cederia

a uma memória baseada em produções culturais que, com base nos relatos preservados

dessas testemunhas, garantem a continuidade da transmissão dessa memória no futuro

(Chéroux, 2001).

90 Uma das críticas mais ferozes veio de Elie Wiesel, escritor e sobrevivente de Auschwitz e Buchenwald. Após a estreia da série, Wiesel registou sua indignação no New York Times quando o chamou de produto "falso, barato e ofensivo". Segundo ele, a série procurou mostrar o que não era nem imaginável, transformando um acontecimento ontológico em novela. Veja Elie Wiesel, "Trivializing the Holocaust: Semifact and Semifiction", New York Times (New York, 16 de abril de 1978). 91 Clément Chéroux (2001) Mémoire des Camps, photographies des camps de concentration et d’extermination nazis (1933-1999) (Paris, Marval: 221).

80

Em todas as práticas ligadas ao conceito de pós-memória, as imagens — arquivísticas ou

familiares — adquirem lucro. Embora em alguns casos, sobretudo nas produções

audiovisuais, estas funcionem como complementos ou peças de uma engrenagem mais

complexa, noutros as imagens assumem uma total importância, tornando-se o instrumento

de memória por excelência para uma geração que também quer se distanciar do texto

escrito e das histórias testemunhais de caráter mais tradicional. Extraídas algumas da

média e outras — a maioria — de álbuns de família, as imagens são erigidas neste tipo

de produções como talismãs de memória e como prova irrefutável dos laços de sangue

que unem o sobrevivente ou ausente à sua prole. Além do seu caráter probatório, esses

legados visuais são, nas palavras de Marianne Hirsch, «os únicos vestígios materiais de

um passado irrecuperável»92 e, portanto, a arma por excelência para o combate à amnésia

pessoal e coletiva. O visual, portanto, adquire um destaque incomum nessas novas

narrativas, pois é o meio ideal para que, como em uma banda de Moëbius,93 passado e

presente, memória e esquecimento, vida e morte, pais e filhos possam dialogar e

reconciliar em uma única superfície. Porém, a apropriação que esses autores costumam

fazer desse tipo de material é, sem dúvida, altamente produtiva. Pois é, a re-significação

a que são submetidas as imagens herdadas — seja da média, dos álbuns de família ou dos

vídeos caseiros — para que não acabem sendo vítimas de um consumo automatizado e

acrítico, corre em paralelo e isso se explica pelo fato de todos terem nascido e sido criados

em uma cultura que privilegia justamente a expressão audiovisual. Consumidores naturais

e frequentadores da televisão, da banda desenhada e do cinema, não é de estranhar que a

maioria recorra às imagens como instrumentos para transmitir não só o desejo de conhecer

o passado e de estarem ligados a ele como raiz e origem, mas também para projetar seus

afetos, medos, necessidades e desejos do seu presente.

92 Marianne Hirsch. (2012), Family Frames. CreateSpace Independent Publishing Platform: 5. 93 A tira ou fita Möbius é uma superfície com uma única face e uma única aresta. Ele tem a propriedade matemática de ser um objeto não orientável. É também uma superfície regulada. Foi descoberto de forma independente pelos matemáticos alemães August Ferdinand Möbius e Johann Benedict Listing em 1858.

81

Um dos exemplos mais significativos nesse sentido é a obra Arqueologia da Ausência, da

Lucila Quieto (2011). À semelhança da artista Muriel Hasbun,94 a cuja trajetória Hirsch

alude em “The Generation of Memory”,95 Quieto realiza em seu trabalho de estreia aquela

alteração na imagem de arquivo a que Hirsch se refere:

Invariavelmente, as imagens fotográficas de arquivo aparecem em textos pós-

memoriais de forma alterada: são recortadas, aumentadas, projetadas em outras

imagens; eles são reenquadrados e descontextualizados ou recontextualizados;

elas estão embutidas em novas narrativas, novos textos; elas estão rodeadas por

novos quadros.96

A Lucila Quieto nasceu em Buenos Aires em 1977, durante a ditadura argentina e cinco

meses depois que seu pai, Carlos Quieto, desapareceu nas mãos dos militares. Vinte e

dois anos depois, e diante da angústia de não ter uma fotografia com o pai, resolveu

produzir a lembrança com que sempre sonhou, imagem que se tornaria o ponto de origem

da Arqueologia da Ausência. Era uma espécie de autorretrato impossível, em que a

fotógrafa se posiciona diante da projeção do slide de uma foto-passaporte do pai (ver

figura 19). Com a sua interferência física nos raios de luz do projetor, parece que Quieto

pretende contrariar o carácter burocrático, descontextualizado, frio e funcional que

habitualmente recai sobre este tipo de imagens, com a emocionalidade que emerge da luta

pela restauração, do pessoal e artístico, alguns laços familiares e biológicos que a ditadura

tentou destruir.

94 Hasbun é filha de um judeu polonês que se refugiou na França após a Segunda Guerra Mundial e de um palestino que emigrou para El Salvador, onde nasceu e foi criado antes de se estabelecer em Washington, DC. Fortemente marcado pelo Holocausto, a diáspora e o exílio palestino, o projeto artístico de Hasbun, em especial a série intitulada “Protegida” - na qual incorpora imagens claramente manipuladas de sua tia-avó, acompanhadas de objetos e do murmúrio hipnótico da Ave Maria caracteriza-se por explorar o microcosmo da herança familiar e pela vontade, portanto, de conhecer e interpretar suas origens. 95 Marianne Hirsch (2012) The Generation of Postmemory. Columbia University Press: 68. 96 “Invariably, archival photographic images appear in postmemorial texts in altered form: they are cropped, enlarged, projected onto other images; they are reframed and de- or re-contextualized; they are embedded in new narratives, new texts; they are surrounded by new frames.” (trad.liv.)

82

Fig. 19

Como afirma Fernando Reati (2007), a utilização deste tipo de fotografias em trabalhos

de memória e pós-memória realizados na Argentina pode ser explicada pela vontade dos

familiares de subverter, com eles, “o poder regulador do Estado que cometeu os

crimes”.97 A partir dessa primeira montagem, Quieto começou a realizar por encomenda

de outros colegas que se encontravam na mesma situação, uma série de composições

semelhantes. Sempre partindo da encenação do corpo da criança na projeção de uma ou

mais fotografias dos pais ausentes, Quieto montou as fotografias seguindo diferentes

estratégias: em alguns casos optou por manipular diretamente os negativos, ou seja,

riscar levemente a cópia final e, assim, simular o estado precário em que foram

encontradas muitas das fotografias originais fornecidas pelos filhos dos desaparecidos

(ver figura 20); em outras ocasiões, e somente quando tinha mais de uma fotografia,

recorreu à técnica da colagem, na tentativa de reunir em um único plano as poucas mas

97 Fernando Reati, “El monumento de papel: La construcción de una memoria colectiva en los recordatorios de los desaparecidos”, en Políticas de la memoria. Tensiones en la palabra y la imagen, ed. Sandra Lorenzano y Ralph Buchenhorst (Buenos Aires: Gorla; México: Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007), 168.

83

essenciais imagens do álbum fotográfico das famílias (ver figura 21). Como

complemento a essas composições, Quieto inclui breves textos nos quais, à maneira de

uma epígrafe, cada filho fotografado tornava público algum detalhe significativo de sua

vida ou de seus pais: sua profissão, seus hobbies, o nível de militância e as

circunstâncias de seu desaparecimento, etc.

Fig. 20

Fig. 21

84

É desse jogo entre ausências e presenças, entre passado e presente, que as narrativas

criadas a partir do exercício da pós-memória tendem a fugir das estratégias da

representação mais canónica (a do realismo), para recorrer a um conjunto de mecanismos

que se enquadram plenamente no pensamento pós-moderno – que considera, por um lado,

que tanto a noção de identidade quanto às tentativas de representá-la (seja por meio da

escrita ou da linguagem cinematográfica) foram despojados de toda transcendência e

essencialidade e, por outro lado, ele argumenta que a imagem do passado não pode ser

um traço separado do presente e que o presente é continuamente re-significado de uma

evocação sempre problemática do passado (Reati, 2007). São histórias que, como aponta

Andrea Liss (1998),98 apresentam-se como aproximações que, longe de serem

conclusivas e absolutas, procuram investigar certas passagens do passado de forma

provisória e parcial e, portanto, totalmente reinterpretáveis e intersubjetivas.

Defender a pós-memória como categoria de análise que pode ajudar-nos a compreender,

explorar e refletir, em sentido amplo, sobre os álbuns de fotografias que, de geração em

geração, acontecem nas narrativas sobre a família e o passado coletivo, implica abrir o

raio da ação do conceito para outros capítulos históricos.

Investigar como, nesses contextos, a memória traumática foi transformada nas mãos da

segunda e terceira gerações pode significar descobrir novas narrativas do passado que,

por meio da experimentação e da pergunta inquisitiva, são capazes de abalar as meta-

histórias que dominaram a história sobre esses episódios e que têm dominado a opinião

pública de cada contexto político e cultural. A capacidade de uma primeira pessoa

fraturada pelas dificuldades de conseguir responder a todas as perguntas, faz com que em

geral as histórias costuradas da pós-memória lancem luz sobre questões do passado que

muitas vezes são expressamente esquecidas e contornadas pela memória oficial.

Falar de pós-memória requer, portanto, ter em conta alguns modos de representação que,

embora não possamos mais classificar como novos, supõem uma regeneração e

reformulação dos parâmetros expressivos do cinema e da fotografia anterior. E é aí que

reside o leiv motiv dessas obras: voltar a enfrentar o indizível, repensar a linguagem para

98 Andrea Liss, Trespassing through Shadows. Memory, Photography, and the Holocaust (Minneapolis, Londres: University of Minnesota Press, 1998: 14).

85

poder, senão dizê-la, sim, pelo menos, gaguejá-la por meio de palavras, depoimentos e

imagens que deveriam ser postos sob suspeita, sob um olhar crítico que os

contextualizam, analisam e reconstroem. Só assim este material poderá funcionar como

uma “imagem fragmentada”, isto é, e utilizando o termo cunhado por Didi-Huberman,

como traço de uma experiência limite que faz emergir de dentro de si uma “explosão de

realidade”99 (Didi-Huberman, 2004: 124), uma lágrima de “horror absoluto”, um

punctum que, por fim, surge em cena “como uma flecha”100 (Barthes, 1968: 64) e oprime

– e assim desperta, encoraja e conscientiza – o sonolento espectador / leitor / cidadão.

2.3 Relatos de Resiliência

O conceito de resiliência tem vindo a ser bastante estudado e discutido, relacionado com

características da personalidade individual. Cada vez mais se tenta perceber como

conseguem as pessoas superar as adversidades e continuar as suas vidas depois de

situações potencialmente traumáticas que podem ter vivido.

Como se pode definir a resiliência? Existem diversas definições de vários autores, mas

parecem encontrar-se quase sempre pontos em comum em todas elas. O Dicionário

Houaiss da Língua Portuguesa (2003) fornece duas definições para resiliência: a) a

propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido

submetidos a uma deformação elástica, e b) a capacidade de se recobrar facilmente ou se

adaptar à má sorte ou às mudanças. De facto, uma boa definição de resiliência pode ser a

que a descreve como a adaptação pessoal bem-sucedida a situações adversas, da qual

fazem parte aspectos intrapsíquicos (recursos internos) e aspectos externos, como o meio

social e afetivo (Laranjeira, 2007, citado por Cabral & Levandowski, 2013).101

99 Georges Didi-Huberman (2004), Imágenes pese a todo. Memoria visual del Holocausto (Barcelona: Paidós). 100 Roland Barthes (1968) La cámara lúcida. Notas sobre la fotografía (Barcelona: Paidós). 101 Cabral, S. A., & Levandowski, D. C. (2013). Resiliência e psicanálise: aspectos teóricos e possibilidades de investigação. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 76(l), 42-55.

86

Quando expostos a estas situações adversas, eventos isolados e disruptivos, os indivíduos

podem ter a capacidade de manter níveis de funcionamento psicológico e físico

relativamente estáveis e saudáveis e gerar experiências e emoções positivas (Bonanno,

2004, citado por Garcia-Dia, DiNapoli, & Garcia-Ona, 2013).102 A associação de

condições biológicas e psicossociais que resultam numa adaptação positiva e que permite

o desenvolvimento de capacidades internas liga-se à resiliência (Rutter, 2012, citado por

Böell, Silva, & Hegadoren, 2016).103

Daí a importância de desenvolver projetos como (Re)Construção da Memória que

influenciam as lembranças e ativam experiências traumáticas, desde uma perspetiva

diferente, que por sua vez evita o esquecimento e cria novas memórias de manejo da dor

para transformá-la em experiências fortalecedoras do espírito pessoal e coletivo.

Outro vetor das práticas de re-escrituras para a criação de resiliência é o das poéticas do

testemunho, entendidas, neste contexto, como a utilização, no campo do design, de

narrativas individuais/pessoais através de entrevistas, depoimentos, entre outros

dispositivos. Dentro desta perspetiva, projetos que incorporam narrativas pessoais, são o

ponto de partida para a re-construção, ou melhor, para a re-escritura da história.

Márcio Seligmann-Silva104 (2003) tecendo um relato sobre a literatura e as práticas de

testemunho sinaliza que “a historiografia tradicional, tal como ela se expressou do modo

mais claro no historicismo alemão, parte do pressuposto de que a historiografia pode

subsumir a experiência privada/pessoal do passado (eliminando assim a modalidade do

testemunho); para ela, o passado deve ficar restrito à ciência do passado” (Seligman-

Silva, 2003: 393). A literatura de testemunho seria, exatamente, uma estratégia contrária

à historiografia tradicional.

102 Garcia-Dia, M. J., DiNapoli, J. M., Garcia-Ona, L., Jakubowski, R., & O'Flaherty, D. (2013). Concept analysis: Resilience. Archives of Psychiatric Nursing, 27, 264– 270. Ver: http://dx.doi.org/10.1016/j.apnu.2013.07.003. 103 Böell, J. E. W., Silva, D. M. G. V., & Hegadoren, K. M. (2016). Sociodemographic factors and health conditions associated with the resilience of people with chronic diseases: a cross sectional study. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 24, 1-9. Ver: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.1205.2786. 104 Tradutor, teórico e crítico literário, além de professor universitário na UNICAMP.

87

Entende-se, à luz ainda de Seligmann-Silva (2003), o conceito de testemunho dentro de

uma perspetiva mais expandida: “não só aquele que viveu um martírio pode testemunhar”,

mas a literatura e a arte “sempre têm um teor testemunhal” (Seligman-Silva, 2003: 47)

«É a lei da memória masoquista: à medida que as diferentes etapas de sua vida

caem no esquecimento, o ser humano livra-se de tudo o que não gosta

e se sente mais leve, mais livre.»

La Ignorancia (Milan Kundera, 2009: 98)

- Dia 19 de setembro de 1985. Hora: 07:19. O medo. A realidade quotidiana

desmorona em oscilações, ruídos categóricos ou minúsculos, o estilhaçar de vidro, o

colapso de objetos ou revestimentos, gritos, gritos, o rangido intenso que anuncia a

próxima metamorfose imprevisível da sala, do apartamento, da casa, do edifício. ... O

medo, o fascínio inevitável do abismo, contido e anulado pela preocupação da família,

pelo vigor do instinto de sobrevivência. Os segundos duros, carregados de uma energia

que confunde, corrói, intimida, tornam-se a fraqueza de quem os sofre. "O fim do mundo

é o fim da minha vida", versus "Nada acontece, não entre em pânico. Vamos ficar calmos

"... E o conselho não se pronuncia, o pânico é segunda ou primeira pele, para ganhar a

saída, para tramar a fuga desta prisão que é o meu quarto, para se distanciar daquela

armadilha mortal que era minha residência provisória. O rangido se aguça, na oscilação

a catástrofe se estabiliza, as pessoas se vestem como podem ou se vestem apenas com seu

pânico, o medo é um místico tão poderoso que ressuscita ou atualiza outros místicos, os

aprendidos na infância, os que vão da superstição à convicção, frases primordiais,

fórmulas de salvação na última hora (Monsiváis, 2005: 23).

O mais insuportável durante o dia eram os gritos por ajuda. Eram aquelas

montanhas de entulho, feitas de aço e cimento, e nós sem o equipamento

necessário, sem lanças (guindastes) ou escadas telescópicas ou engates, apenas

com pás e picaretas e alicates. O desamparo diante da agonia de quem está a

poucos passos de distância é a pior coisa que já me aconteceu, juro.

Olha, nós resgatamos uma senhora que gritava incontrolavelmente para salvar seu

marido e filhos que estavam bloqueados por um telhado. Ela estava chorando, e

os cadáveres de seus parentes ali muito próximos, mas ela não os reconheceu, ela

88

não viu nada mesmo que quisesse. Ele apenas chorava e gemia, e repetia nomes.

Um voluntário muito jovem não conseguiu resistir e começou a gritar também.

Ele não conseguia pensar em outra maneira de ajudá-la.

Absorvidos, os sobreviventes peregrinam, ansiosos por um ponto de apoio

confiável para seu olhar. Os testemunhos, com ligeiras variações, seguem uma

linha fixa, a da angústia extrema entre as convulsões da terra, o ranger de edifícios,

as demolições da natureza, as cenografias da devastação: Os momentos antes do

terramoto, os detalhes de confiança: "Eu ia à casa de banho ... dormi ... fiz o

pequeno almoço ... levava as crianças para a escola." O sentimento intraduzível

de medo, do fim dos seres e das coisas. O processo de salvação individual. A

solução inesperada. As anedotas do resgate. A culpa e a alegria de estar vivo.

Preocupação imparável com os outros, filhos, mãe, parceiro, família, amigos,

vizinhos. A pressa em resgatar os próximos ou os perfeitos estranhos. O confronto

com a autoridade, representada pelos cordões do exército e da polícia, cujo senso

de disciplina vai além das exigências da dor ou da solidariedade. A crise de

impotência em indivíduos e grupos. As primeiras conclusões morais e políticas,

inclusive a própria dilacerante: a ação da natureza foi promovida pela corrupção,

ineficiência e descuido. Isso se traduz em críticas ao governo, que deve exigir

qualidade na construção e manutenção e respeito às normas de segurança.

“No sin nosotros”. Los días del terramoto (Carlos Monsiváis, 2005)

De quinta-feira 19 ao domingo 22, o mais vivo na capital mexicana é o novo

protagonista, a multidão obrigada a agir por conta própria, a autogestão que

substitui uma burocracia estupefata ou sobrecarregada. Ao ritmo imposto pela

tragédia, forma-se subitamente uma sociedade inexistente ou adiada: são as

brigadas de voluntários, as crianças que carregam pedras com rígida disciplina, os

adolescentes em plena “estreia da cidadania”, as enfermeiras espontâneas, os

grupos católicos e os protestantes, as senhoras que preparam alimentos e fervem

água, os médicos que prestam seus serviços de um lugar a outro, os engenheiros

que formam brigadas de especialistas (idem).

89

Esta é a grande certeza de 1985: a descoberta de que a coletividade só existe plenamente

se intensifica deveres e anula direitos, se a sociedade civil ainda é uma ideia imprecisa,

as centenas de milhares que se consideram seus representantes lhe dão energia e presença

irrefutável (Monsiváis, 2005: 42).

As recapitulações são essenciais. Em outubro de 1985, o poeta mexicano Octavio Paz

(1914-1988) declarou ao jornal francês Libération: “A capacidade das empresas privadas

que construíram todos esses prédio era extraordinária, a megalomania do governo que

erguia prédios por toda parte muito rápido e muito mal, que caíam como castelos de cartas

de jogar. E aqui podemos dizer que existe uma espécie de justiça poética .... Sim, eu

conhecia o caráter do meu povo, tinha visto à luz da desonestidade, do individualismo,

achei muito passivo, muito resignado...”105

- Dia 19 de setembro de 2017. Hora: 13:14. A partir do momento do terramoto,

muitos cidadãos que vivenciaram o terramoto de 1985 começaram a se lembrar dele e a

fazer comparações. Nos dias que se seguiram, por sua vez, a média fez comparações, viu

semelhanças e diferenças.

A partir do 19 de setembro, após os momentos mais profundamente catárticos de choro,

dor, a busca de familiares e amigos, a penosa ocupação de calçadas e cumes, o estupor

das perdas simultâneas. Então, a céu aberto, no rearranjo em acampamentos e abrigos,

amontoadas nas brechas oferecidas por parentes e companheiros, as perguntas adquirem

um tom feroz: por que nunca nos organizamos para viver de forma mais humana?

Diante do desastre, palavras de esperança e força são necessárias; porque a vida continua

e, como sociedade, temos que seguir em frente. Na sexta-feira, 22 de setembro de 2017,

poucos dias após o terramoto, os mexicanos acordamos com um poema que mexeu com

105 Ver: https://www.banrepcultural.org/noticias/octavio-paz-escribir-es-dialogar-con-el-mundo-con-el-lector-y-conmigo-mismo

90

todas as redes sociais. Foram as palavras do escritor e jornalista Juan Villoro, publicadas

em sua coluna no jornal Reforma, que nos atingiram no fundo, na alma, no coração.106

Tu és do lugar onde pegas

o lixo.

Onde dois raios caem

No mesmo lugar.

Porque tu olhaste o primeiro,

esperas pelo segundo.

E aqui ficas tu.

Onde a terra se abre

e as pessoas ficam juntas. [...]

Uma estreita colaboração entre a juventude, o governo e a iniciativa privada é essencial

para unir a força e os meios de reconstrução. Os 40 objetivos do humanismo: “Devemos

ser mais humanos; devemos ser mais solidários; devemos ser mais compreensivos. Não

devemos ser egoístas e pensar apenas nos nossos interesses”.107

2.3.1 Organização da sociedade e surgimento das “humanidades”

«Não vamos dizer a palavra da música, vamos cantar. Em torno dos ossos, nos

panteões, vamos cantar. Junto com os moribundos, as parturientes, os falidos, os presos,

os operários, vamos cantar. Vamos dançar, vamos beber, vamos voar. Rodada de fogo,

círculo de sombras, com os braços erguidos, essa morte chega...»

Jaime Sabines, de “Sigue la muerte”108

106 Juan Villoro. El puño en alto. REFORMA (22 set. 2017). Ver completo [Online] Disponível em: https://www.reforma.com/aplicacioneslibre/editoriales/editorial.aspx?id=120530&md5=172fc9d25f7b14973ef62559ef094509&ta=0dfdbac11765226904c16cb9ad1b2efe&lcmd5=57e7df95786271f492d2b47baf4a9d22 107 Josep Belda Beneyto (2010). La teoría universal del humanismo. Valencia: Pedro Aullón de Haro (ed.), Teoría del Humanismo, Verbum/Medialab-Prado, Madrid, 7 vols. + ed. en dvd. 108 Jaime Sabines (1951) Sigue la muerte. “No digamos la palabra del canto, cantemos. Alrededor de los huesos, en los panteones, cantemos. Al lado de los agonizantes, de las parturientas, de los quebrados, de los presos, de los trabajadores, cantemos. Bailemos, bebamos, volemos. Ronda del fuego, círculo de sombras, con los brazos en alto, que la muerte llega.” (trad. liv.)

91

No dia 19 de setembro, os voluntários (a grande maioria deles jovens) que se distribuíram

pela cidade organizaram o trânsito, criando “cordões” populares em torno de hospitais ou

deslizamentos de terra e participando ativamente – e com as mãos sangrando – das tarefas

de resgate, mostrou a compreensão humana mais profunda e reivindicou poderes cívicos

e políticos estranhos a eles até então. No dia 19, e em resposta às vítimas, a Cidade do

México experimentou uma tomada de poder, uma das mais nobres de sua história, que

transcendeu em muito os limites da simples solidariedade, foi a conversão de um povo ao

governo e à desordem oficial na ordem civil. A democracia também pode ser a

importância repentina de cada pessoa.

Como resultado dessas organizações “espontâneas”, surgem as chamadas humanidades

que, como define Mariana Garcés no ciclo de palestras Humanidades em Ação, «não são

apenas o conjunto de disciplinas que tradicionalmente chamamos de 'letras'. Eles são tudo

com o qual elaboramos nossa experiência como seres humanos. É arte, linguagem,

pensamento, cultura. Mas também é ativismo e compromisso» (Garcés, 2019).

Da nostalgia que idealiza o passado, todos esses aspectos históricos da cultura humanista

perdem seus efeitos, e correm o risco de receber seu legado como um património refinado

que só podemos preservar e venerar, ou diante de cuja perda só podemos lamentar e temer

as consequências derivado disso (Garcés, 2019: 20). É através da dominação pela cultura

e pelo humanismo quando “somos humanos na medida em que podemos conceber,

pessoalmente e com os outros, a vida como um problema comum” (Ibid.: 26).

92

3. Estudo Prático

3.1 Descrição do projeto

Para abrir este capítulo, tomemos como referência Deleuze (1985) ao dizer-nos que a

percepção que temos da unidade da imagem num filme se deve à forma de como o

movimento das imagens se comunicam entre si. A partir desta premissa do autor,

problematizamos o diálogo entre as imagens segundo a sua especificidade técnica e de

acordo com os códigos visuais específicos de cada uma (fotografia e vídeo), com vista a

uma unidade percetiva dentro do contexto audiovisual decorrente na presente

investigação.

Assim, as duas narrativas lineares que compõem o projeto Relatos de Resiliência109 (ver

figura 22), propõem projetar imagens que decorrem dentro dos tempos específicos,

nomeadamente a duração dos dois terramotos da Cidade do México (2min. em 1985 —

1min. 30seg. em 2017) a demonstrar uma unidade visual que as imagens causam enquanto

articuladas com outras, tendo em conta o discurso narrativo produzido por essa interação.

Fig. 22 Esquema de alinhamento dos vídeos

109 Ver projeto Relatos de Resiliência. Disponível Online em: https://vimeo.com/507171901

93

O mecanismo característico da inter-relação direta de imagens diferentes é a

MONTAGEM. Sergei Einsenstein (1928) (ver figura 23) o define como uma rotura na

continuidade do discurso narrativo clássico de Hollywood, com a introdução de

“concordâncias impossíveis”, que acrescentam novos significados (olho + água = choro).

Fig. 23 S. Einsenstein, fotogramas da montagem das escadas de Odessa, em Battleship Potemkin

Em seu ensaio Palavra e Imagem (1937), Einsenstein descreve até 5 tipos de montagens

(métrica, rítmica, tonal, associativa, intelectual) dependendo do tipo de conjunto e / ou do

material utilizado. Para o cineasta soviético, a montagem é, antes de tudo, um conflito

dialético, onde novas ideias emergem do choque de imagens muito diferentes.

No campo da criação plástica a COLAGEM de elementos dispersos corresponderia à

MONTAGEM cinematográfica. A introdução do tempo do filme só pode ocorrer em uma

sequência de imagens / montagens sucessivas, tal como a Série ou Atlas (Aby Warburg,

Atlas Mnemosyne, 1923 - 1929) (ver figura 24 e 25). O Atlas propõe uma cartografia

aberta, regida por critérios próprios, com limites semânticos difusos (muitas vezes

beirando as obsessões pessoais), sempre aberta a extensões sucessivas do campo ou

conteúdo.

94

Fig. 24

Fig. 25

95

O Atlas é por definição necessariamente incompleto, uma rede aberta de relações

cruzadas, nunca fechadas ou definitivas, sempre expansível à incorporação de novos

dados ou à descoberta de novos territórios. O Atlas constitui um Work in Progress stricto

sensu.

Porém, em Relatos de Resiliência o uso de técnicas como a montagem paralela e a

colagem de imagens, tornaram-se ferramentas base no âmbito do projeto (ver figura 26).

Sujeitas a um trabalho simples de EDIÇÃO, as imagens determinaram a sua expressão

formal relativa a cada um dos relatos que acompanham uma narrativa linear dos factos

“segundo a segundo” eles aconteceram, sendo estas posteriormente inseridas no discurso

narrativo total.

Fig. 26 Primeira lâmina de trabalho para seleção e montagem das fotografias do projeto Relatos de Resiliência

96

Embora o projeto final tenha resultado na criação de duas narrativas apresentadas em

vídeo, os quais propõem uma concordância entre as imagens, não era premente que dessa

relação resultasse uma cosmética ou um acabamento visual sublimado para disfarçar as

imperfeiçoes das imagens de arquivo segundo o ponto de vista do espectador.

Consideremos que uma imagem de arquivo transmite visualmente a memória dum lugar

a alguém e que, tal como na fotografia, a imagem existente é imposta pelo registo desse

lugar — a representação de um momento passado. Numa imagem, essa percepção pode

ser acentuada pela sua condição estática. Estando estática, a imagem é entendida como

um acontecimento cristalizado pela câmara: Por exemplo, a imagem fixa ocasiona

exploração ocular, scanning, que manifesta a existência inevitável de um tempo de

percepção, de apreensão da imagem (Aumont, 2009: 162). No entanto, uma imagem pode

ser uma unidade e fazer parte, entre muitas, dum movimento fílmico. A imagem em

sequência acrescenta e sobrepõe outra exploração que se desenrola também no tempo

(ibidem).

Neste caso, a perceção do tempo é clara, pois o movimento da imagem incide na mudança

e na permanência dos terramotos.

Pensar uma narrativa estrita dos factos, caracterizado por um conteúdo de memórias, foi

como um retorno ao passado. Recordar acontecimentos, experiências e lembrar pessoas

que fizeram parte desses momentos, levou-nos a refletir que essas recordações, antes

estáticas e guardadas na memória, se movimentavam no pensamento à medida que iam

sendo apresentadas.

Quando nos referimos à percepção do passado em Relatos de Resiliência, não se pretende

que seja o nosso passado ou de alguém em particular, mas que, esse passado, pertença

simplesmente ao “antes” e não esteja ligado a qualquer referência temporal da história.

Esse passado que transcende o momento concreto e se propõe como discurso visual no

vídeo, foi uma permanência que abraçou o projeto desde o início, o qual levou-nos a

utilizar crónicas e declarações, da mesma forma, se tivessem questionado relativamente

aos conceitos da memória e do esquecimento.

97

Ao incluí-los na montagem e respeitando a ordem do tempo após os terramotos, pretende

transmitir as sensações vivenciadas perante aquelas cenas de destruição, e também “dar

voz” a aquelas pessoas que retribuíram com valentia as ações precisas para a reconstrução

da sociedade.

É importante notar que, para Aby Warburg, o Bilderatlas (1929) não é de forma alguma

um resumo gráfico de seu pensamento, mas uma pura essência dele. O Atlas propõe uma

máquina para ativar ideias e relacionamentos. Warburg entende que as ideias não

respondem tanto às formas fundadas quanto às formas em constante transformação ou

"migrações"(Wanderungen), propondo um conhecimento "nômade e desterritorializado";

como assinala Didi-Huberman, o Atlas "exibe na montagem a capacidade de produzir,

por meio de encontros de imagens, um conhecimento dialético da cultura ocidental"

(Didi-Huberman, 2011: 17).

Partindo da problemática de contar uma história desde as muitas imagens de arquivo

(digital e analógico) dos terramotos, propomos explorar através da conjugação de

fotografias e vídeos, a possibilidade de um jogo formal de cumplicidades no processo

audiovisual, complementar às naturezas teórico-práticas incluídas nesta dissertação.

Procuramos que a abordagem teórica se mantivesse ligada a uma base de reflexão durante

todo o trabalho prático, de forma a delimitar o foco para a essência do projeto.

A este projeto aplicou-se uma metodologia de trabalho que se dividiu entre a manipulação

fotográfica dos elementos no software Adobe Photoshop, a edição de imagens em vídeo

no software de edição Adobe Premier Pro e a animação do título do projeto inserida no

segundo 50 do timeline no software Adobe After Effects.

Na fotografia, as imagens foram sujeitas a um trabalho de retoque para serem incluídas

no vídeo e assim serem editadas com as mesmas características técnicas requeridas.

Para a finalização dos vídeos a fim de poderem ser lidos e projetados num aparelho de

reprodução (videoprojector ou ecrã de televisão), exportaram-se com os codecs H.264

98

(MPEG-4) para o vídeo (imagem) e AAC para o som e usou-se um formato de1920 x1080

(formato 16:9) para uma melhor reprodução.

Procuramos que som e imagem obedecessem a um sincronismo para que, na sua projeção

final, os vídeos expressassem uma unidade de leitura. Embora cada uma destas expressões

não dependem uma da outra, elas contêm todas as características, visuais ou sonoras, para

se expressar isoladamente. Ao tentarmos colocá-los em sincronia (synchresis) neste

projeto, interessava que as duas expressões se aglutinassem num todo. Esse todo que

Michel Chion (1993) chama um valor acrescentado, cujo fenómeno é basicamente o

«trabalho de sincronismo de som/imagem, através do princípio da sincronização, a

criação de uma relação imediata e necessária entre algo que alguém vê e algo que se

ouve» (Chion, 1993: 5) – o que percecionamos quando assistimos a um filme, sem nos

darmos conta que som e imagem estão juntos.

Para chegarmos à conclusão de qual seria a duração final do vídeo mais adequado para a

apresentação e codificação da narrativa, procuramos entender primeiro de que forma se

pode criar um lugar que transmita a ideia de um espaço de memórias. Interessava que

cada vídeo surgisse nesse espaço durante o tempo necessário para a sua observação e

desaparecesse para que outro começasse de seguida em sequência. Houve a percepção

que passar os vídeos num espaço bem definido e trazado em regra de terços segundo o

formato Full HD 16:9 era a melhor opção pelo facto de estarem ligados a uma moldura,

limitando a sua observação nesse espaço. Concluímos então, que o foco de atenção

principal seria a linha central no ecrã, para depois acrescentar em colagem outras imagens

sempre bem distribuídas e justificadas nos Safe Margins de transmissão (ver figura 27 e

28).

99

Fig. 27 Safe area ou área de segurança é um termo criado para designar diversas margens utilizadas na edição de vídeo para que todos os aparelhos, independente de sua resolução, possam reproduzir os

elementos sem haver cortes de informação na exibição

Fig. 28 Distribuição proporcionada do ecrã para a montagem e colagem das imagens no projeto

100

Assim, para a construção deste dispositivo reunimos na primeira parte fotografias do

Arquivo Geral da Nação, que protege materiais gráficos e audiovisuais e que mostraram

a magnitude do terramoto; de arquivos digitais online principalmente os nomeados blogs

de fotojornalismo independente mexicano; e também os vídeos das videotecas abertas de

televisão pública como o foi o de Televisa acompanhado das crónicas do jornalista Jacobo

Zabludovsky, que tornou-se uma referência obrigatória por ter a possibilidade de

transmissão nos minutos imediatos ao terramoto de 1985 e assim recolher os primeiros

relatos dos acontecimentos. Para a segunda parte, a disposição de fotografias e vídeos

online nas plataformas de redes sociais, jornais nacionais e internacionais; e de Agências

de fotojornalismo tais como a AFP que publica até 3.000 fotos por dia, oferecendo

cobertura abrangente de notícias globais; assim como os vídeos em alta definição tirados

com drone e disponibilizados gratuitamente pelo fotógrafo Santiago Arau no seu site

oficial, após o 19 de setembro de 2017.

Foi importante, que a apresentação do primeiro vídeo estivesse em sincronismo do tempo

real da crónica ao vivo que a apresentadora do noticiário da manhã Lourdes Guerrero,

dera como aviso de que o terramoto estava a acontecer, antecedente de forma a que,

quando termine a sua reprodução, um som de corte na transmissão dê início à narrativa

audiovisual de como foi que se deram as reações e momentos mais representativos após

o terramoto de 1985 (ver figura 29). No segundo vídeo, tenta contar a mesma história

desde perspetivas similares, para ressaltar a magnitude do terramoto de 2017 e as

similitudes vividas na Cidade do México, ainda com as supostas aprendizagens do

passado, e de como no futuro as histórias parecem repetir-se. Para isso, introduzimos um

espaço preto no início da timeline de cada vídeo, exatamente com duração de 32 frames

(referindo-se aos 32 anos de separação no tempo real entre um e outro) que dê forma a

que enquanto o primeiro termine de ser reproduzido, o segundo percorra esse espaço preto

com esse tempo de duração do primeiro vídeo, até este terminar. Após percorrer o espaço

preto, a imagem do segundo vídeo aparece enquanto a sinal do alarme sísmico e junto a

crónica do apresentador do noticiário de meio-dia, Enrique Campos, contasse ao vivo o

que estava por começar (ver figura 30). Desta forma, o espectador pode assistir a cada um

dos vídeos um após outro e reproduzidos em diferentes momentos, sem haver

sobreposição nas apresentações, mas sim com similitudes claras entre eles.

101

Fig. 29 Storyboard (1) correspondente a primeira parte do vídeo

Fig. 30 Storyboard (2) correspondente a segunda parte do vídeo

102

A duração total do vídeo resulta da soma dos dois terramotos (2min + 1min 30seg

respetivamente) e ao acrescentar os tempos entre um e outro referindo-se aos anos

decorridos (32 frames) mais o tempo da alarme sísmica soar como aviso do começo entre

os terramotos (50seg); é portanto uma narrativa linear de 3 min 58 seg, e para conseguir

transmitir a ideia de constante repetição, ao final do segundo vídeo, deixam-se os mesmos

frames em preto para o primeiro vídeo começar, e assim é proposta uma reprodução em

loop com a possibilidade de continuar até quiser (ver figura 31). A enfatizar esse constante

modo de o passado voltar ao futuro menos esperado.

Fig. 31 Storyboard (3) correspondente ao final do vídeo e à representação do loop proposto para a reprodução

Os dois vídeos de Relatos de Resiliência são construídos segundo um processo de

experimentação no qual a imagem, nas suas duas expressões (estática e movimento), se

associa ao discurso narrativo. O facto de se ligar a imagem à memória através de

referências lógicas — colapso, movimento, organização, aparecimento e

desaparecimento — como uma ferramenta necessária para visualizar o que em si é um

princípio imaterial (memória), leva a que estes vídeos confrontem estes dois tipos de

imagens com vista a dialogarem num todo. Esta unidade visual propõe explorar a

memória como uma possibilidade de esta se transformar numa imagem.

103

Assim, os dois vídeos são como um serial de memórias manifestando-se em imagens

através das montagens que, como um arquivo de acontecimentos, se identificam com o

passado e com o possível futuro. Igual que Aby Warburg concebeu seu Atlas em 1905,

mas só começou a desenvolvê-lo em 1924, a obra foi interrompida após a morte do

historiador em 1929, apenas 5 anos depois. No entanto, sua forma de trabalhar perturba

toda a metodologia usual nas análises usuais da História da Arte; ao contrário dessas,

Warburg propõe uma metodologia que vai além do papel usual de observador para se

envolver como ator: a suposição constitui um posto avançado no campo da criação do

século XXI. Até então, o processo criativo era investido em um caráter unitário e finalista,

cujo objetivo era a realização da “obra-prima”, descartando todos os trabalhos

preparatórios anteriores como mero auxiliar.

O trabalho de criação (muito especialmente criação gráfica) é enquadrada em sequências

ou conjuntos que definem interesses múltiplos e relações cruzadas. A Série, a Opera

Aperta, o Work in Progress, nada mais fazem do que consolidar a ideia de um processo

aberto, contínuo e infinito cujos resultados pontuais — sempre provisórios — mal

podemos vislumbrar, como frames de um filme.

Por outro lado, as possibilidades derivadas dos confrontos na técnica de montagem são

enriquecidas com novos acréscimos. O desaparecimento da moldura da imagem introduz

formatos operacionais mais adequados aos processos criativos: como Warburg (1929)

tinha defendido, a mesa de trabalho se constitui como um hábil suporte de trabalho, onde

as disposições podem ser materializadas, revistas e modificadas indefinidamente,

podendo verificar os resultados em tempo real a qualquer momento. O confronto de

imagens nas mesas de trabalho define suas próprias cartografias, universos regidos por

critérios não estritamente regidos por razões lógicas, mas por referências e obsessões que

decompõe a realidade em múltiplas camadas de significados sobrepostos.

Aby Warburg fala de uma rede de relações entre objetos estabelecidas, parafraseando

Kant, "por relações que a razão não compreende". As referências que emergiram rompem

os limites da temporalidade e da contiguidade (estilística ou espacial), permitindo

104

constantes releituras; em 1927 afirmou: “si continua — Coraggio — ricomiciamo la

lettura”.110

Warburg escreveu na década de 1920, Foucault na década de 1960, Deleuze na década de

1980, no entanto, todos parecem antecipar a estrutura atual –extensa, hierárquica, aberta,

em constante expansão, em constante mutação– que configura a informação digital na

rede, com infinitas referências cruzadas em forma de “links”. E foi assim que o projeto

Relatos de Resiliência quer que seja entendido, como um arquivo em constante

crescimento e com múltiplas possibilidades de expansão e compreensão. Novas gerações

vão vir, mas sempre ficará na memória aquelas coisas que outras já viram e viveram com

um episódio que muito provavelmente poderia acontecer em qualquer altura das nossas

vidas.

Embora autónomos, os vídeos completam-se entre si pois reproduzem eventos através da

imagem, daquilo que poderá constituir a imaterialidade de uma memória. Por outro lado,

estas imagens vêm conferir aos vídeos uma ideia de estranheza, imaterial e intemporal,

devido à transformação que ela sofre ao interatuar entre o estático e o movimento.

A imagem cinematográfica é um campo muito favorável ao imaginário, razão pela qual a

sua teoria foi privilegiada. Mas, por direito, toda a imagem socialmente difundida num

dispositivo específico resulta da mesma abordagem, já que, por definição, a imagem

representativa atua no duplo registo (na “dupla realidade”) de uma presença e de uma

ausência. Toda a imagem encontra o imaginário, provocando redes identificadoras e

acionando a identificação do espectador consigo mesmo como espectador que olha

(Aumont, 1990: 120).

110 WARBURG, A., Begrüssungsworte zu Eröffnung des kunsthistorischen Instituts im Palazzo Guadagni zu Florenz am 15 Oktober, 1927“. em DIDI-HUBERMAN, G. Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da exposição do mesmo nome. MNRS, Madrid, 26/XI/2010-28/III/2011. p.46.

105

Fig. 32 Still frame (1) Relatos de Resiliência, 2020. 00:13 seg.

Fig. 33 Still frame (2) Relatos de Resiliência, 2020. 00:38 seg.

106

Fig. 34 Still frame (3) Relatos de Resiliência, 2020. 00:43 seg.

Fig. 35 Still frame (4) Relatos de Resiliência, 2020. 00:58 seg.

107

Fig. 36 Still frame (5) Relatos de Resiliência, 2020. 01 min.:16 seg.

Fig. 37 Still frame (6) Relatos de Resiliência, 2020. 01 min.:35 seg.

108

Fig. 38 Still frame (7) Relatos de Resiliência, 2020. 01 min.:40 seg.

Fig. 39 Still frame (8) Relatos de Resiliência, 2020. 01 min.:55 seg.

109

Fig. 40 Still frame (9) Relatos de Resiliência, 2020. 02 min.:31 seg.

Fig. 41 Still frame (10) Relatos de Resiliência, 2020. 03 min.:01 seg.

110

Fig. 42 Still frame (11) Relatos de Resiliência, 2020. 03 min.:08 seg.

Fig. 43 Still frame (12) Relatos de Resiliência, 2020. 03 min.:17 seg.

111

Conclusão

Este projeto surgiu do interesse em analisar e entender como a imagem estática da

fotografia e a imagem em movimento do vídeo, ao se interligarem, se relacionam e se

manifestam diante do espectador. Este interesse originou o desenvolvimento de um vídeo,

o qual teve como metodologia de trabalho o corte, a intersecção e a montagem de imagens

que, construídas num discurso narrativo e em modo de loop, resultaram num trabalho

audiovisual que veio remeter para o conceito de Relatos de Resiliência.

Para o desenvolvimento da pesquisa teórica, foi fundamental compreendermos

alguns princípios básicos relacionados com a noção de memória associada a diferentes

contextos: discurso narrativo na imagem (vídeo) e na dimensão literária cujas obras se

concentram no registo de memórias visuais de acontecimentos; o mito, numa relação

particular com o simbolismo das alarmes sonoras (elemento que surge no projeto como

um aviso materializado da memória); o discurso visual das imagens de arquivo

percecionado no seu todo, teorizada pela Gestalt.

A presença de Henri Bergson permitiu, neste projeto, tratarmos a memória como

um processo que reúne imagens ao longo do tempo, tornando-se estas uma recordação de

acontecimentos os quais Pierre Nora menciona como fazendo parte da experiência do

lugar. A partir destas referências, tratou-se as montagens dos dois vídeos como objetos

de memória, permitindo representá-los como contentores de imagens, a partir de lugares

e momentos experienciados anteriormente por alguém.

Ao nível da intersecção das imagens, tornou-se importante evocar a teoria da

Gestalt para uma maior noção do equilíbrio visual nos vídeos do projeto. Para tornar clara

a percepção de unidade na imagem, numa perspetiva do todo, tomamos como referência

autores como Arnheim, Aumont e Deleuze.

Paralelamente, reunimos o filme La Jetée de Chris Marker, pelo facto de que

aponta para um discurso narrativo formado a partir da reunião de várias imagens

fotográficas. Ao relacionarem uma imagem com outra imagem formando uma diegese, o

autor garante ao filme uma unidade narrativa, através do processo dinâmico da

112

montagem. Este jogo de intersecções, permitiu desenvolver no projeto Relatos de

Resiliência uma hierarquia de acontecimentos visuais respeitante à importância da

imagem dentro do seu todo. As imagens estáticas e as imagens em movimento teriam de

interligar-se numa unidade, através do corte e da colagem e da montagem de imagens,

para assegurar um discurso lógico e perceptivo num corpo único.

Perante a questão que iniciou esta investigação, sobre a possibilidade da criação

de artefactos digital storytelling para além do contexto jornalístico, visou-se colocar em

prática um certo perfil profissional: o designer de comunicação como jornalista visual. A

partir das reflexões de Jan van Toorn, que considerava ser tarefa do designer “fazer o

nosso próprio poema com o poema que se apresenta à nossa frente” (Toorn, 2010: 51), e

aproveitando a capacidade técnica dos meios digitais para a conceção, produção e

circulação de um objeto, tentou-se criar uma história do início até ao fim, e com

caraterísticas similares às analisadas nos exemplos de digital storytelling.

Este trabalho de investigação constituiu-se como uma primeira aproximação ao

estudo e produção em digital storytelling, testando as potencialidades específicas do

designer de comunicação. Consideramos todo o processo como um início, e acreditamos

que de futuro, e em particular no contexto do digital storytelling, o design possa assumir

um papel mais relevante na elaboração destes artefactos comunicativos.

Para finalizar esta Dissertação importa dizer que, no futuro, tenho interesse

aprofundar o discurso narrativo na imagem e alguns conceitos inscritos nesta

investigação, nomeadamente o conceito de memória histórica. Dar continuidade a

projetos audiovisuais construídos em torno de um pensamento associado ao processo de

intersecção da imagem estática com a imagem em movimento, a privilegiar o corte, a

colagem e a montagem de fotografias em contexto de vídeo.

113

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