redacção tese

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA CENTRO REGIONAL DO PORTO INCLUSÃO DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS NA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE Joana Azevedo Martins DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM DIREITO, NA ÁREA DE DIREITO FISCAL SOB A ORIENTAÇÃO DO EXMO. SENHOR DOUTOR ANTÓNIO FRADA DE SOUSA. Maio 2013

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  • UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA

    CENTRO REGIONAL DO PORTO

    INCLUSO DOS CRDITOS TRIBUTRIOS NA

    EXONERAO DO PASSIVO RESTANTE

    Joana Azevedo Martins

    DISSERTAO DE MESTRADO EM DIREITO, NA REA DE DIREITO FISCAL SOB A

    ORIENTAO DO EXMO. SENHOR DOUTOR ANTNIO FRADA DE SOUSA.

    Maio 2013

  • 2

    Aos meus pais por todo o carinho e incentivo. Ao Daniel

    e ao Diogo por estarem sempre presentes.

    O meu agradecimento ao Dr. Antnio Frada de Sousa,

    por todos os conselhos, apoio e disponibilidade.

  • 4

    LISTA DE ABREVIATURAS

    al. alnea;

    art. artigo;

    arts. artigos;

    CC cdigo civil;

    Cfr. conferir/confrontar;

    CIRE Cdigo de Insolvncia e Recuperao de Empresas;

    Consult. consultado em;

    CPEREF Cdigo dos Processos Especiais de Recuperao de Empresas

    e de Falncias;

    CPT Cdigo de Processo Tributrio;

    CPPT Cdigo de Procedimento e Processo Tributrio;

    CRP Constituio da Repblica Portuguesa;

    CSC Cdigo das Sociedades Comerciais;

    DL Decreto-Lei;

    DR Dirio da Repblica;

    EUA Estados Unidos da Amrica;

    InsO Insolvenzordnung;

    IRS Imposto sobre o rendimento de pessoas singulares;

    LGT Lei Geral Tributria;

    LOE Lei do Oramento de Estado;

    n. nmero;

    n.os

    nmeros;

    op. cit. opere citato;

    p. pgina;

    pp. pginas;

  • 5

    pargrafo;

    pargrafos;

    ss seguintes;

    STA Supremo Tribunal Administrativo;

    STJ Supremo Tribunal de Justia;

    Vol. Volume.

  • 6

    INTRODUO

    Atualmente, o Direito da Insolvncia encontra-se na ordem do dia, e tudo porque o

    nmero de processos tem sofrido um crescimento exponencial. Por conseguinte, nos

    ltimos anos, e muito por fora da crescente relevncia prtica que o ramo em questo tem

    assumido, a Doutrina e a Jurisprudncia tm-se debruado sobre inmeras questes.

    Propomo-nos pela nossa parte, abordar a questo da excluso dos crditos tributrios da

    exonerao do passivo restante na insolvncia de pessoas singulares. A problemtica da

    exonerao do passivo restante encontra-se regulamentada no CIRE, sendo fruto de uma

    reproduo, quase integral, mas nem sempre ajustada realidade portuguesa do regime

    previsto da Insolvenzordnung da lei alem.

    Trata-se de um assunto que desperta e merece toda a nossa ateno pois,

    paralelamente ao aumento dos referidos processos de insolvncia, tem-se assistido a um

    crescimento muito significativo das dvidas tributrias, fazendo com que a Administrao

    Tributria, enquanto rgo representativo do Estado, guardi dos crditos tributrios e

    credora implacvel tenha, cada vez mais, um papel mais interventivo nos processos de

    insolvncia. Nestes termos, fundamental a existncia de um casamento harmonioso entre

    estes dois ramos do Direito: o Direito da Insolvncia e o Direito Tributrio esbatendo,

    assim, as caractersticas to discrepantes de cada um e redirecionando-os para o que

    pensamos ser um objetivo comum.

    Ainda no que toca a esta necessidade de harmonizao, rapidamente percebemos

    que nas malhas de tal desfasamento jurdico que o instituto da exonerao do passivo

    restante surgiu, exatamente em 15 de Setembro de 2004, aquando da entrada em vigor do

    CIRE, surgindo como soluo para aquelas famlias portuguesas que se encontram em

    situao de insolvncia, permitindo a sua reintegrao plena na vida econmica1.No

    entanto, as perguntas permanecem: ser que a medida que excluiu as dvidas tributrias

    deste instituto se revela um entrave a este objetivo? E, no que toca ao peso de tais dvidas,

    ser que as mesmas representam uma grande fatia no passivo das pessoas singulares

    insolventes?

    O intuito da elaborao do presente trabalho alcanar linhas orientadoras que,

    pelo menos, indiquem o caminho para as respostas quelas perguntas e, caso seja possvel,

    tentar compreender quais as razes que se encontram por detrs desta excluso dos crditos

    1 Ponto 45 do Prembulo do CIRE, aprovado pelo DL n. 53/2004, de 18 de Maro

  • 7

    tributrios da exonerao do passivo restante na insolvncia das pessoas singulares, saber

    se essa medida se revela ou no proporcional relativamente aos objetivos que almeja

    alcanar. Para tal, iremos comear por expor as origens, os objetivos e os fins da

    exonerao para que, posteriormente, se possa atingir o cerne da questo: a alnea d) do

    artigo 245. do CIRE, onde se consagra a excluso das dvidas tributrias.

    Para alm disso, pretendemos que esta reflexo sirva de guia para futuras alteraes

    legislativas ou, pelo menos, sirva para despertar a ateno relativamente a algumas

    consideraes que consideramos da maior relevncia, numa discusso que importa fazer

    sobre a excluso dos crditos tributrios da exonerao do passivo restante.

  • 8

    1. A EXONERAO DO PASSIVO RESTANTE

    Para uma melhor compreenso do que se seguir, cabe-nos, primeiramente, definir a

    figura que vamos tratar: a exonerao do passivo restante.

    De harmonia com o ponto 45 do prembulo do DL n. 53/2004, de 18 de Maro, o

    Cdigo conjuga de forma inovadora o princpio fundamental do ressarcimento dos

    credores com a atribuio aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se

    libertarem de algumas das suas dvidas, e assim lhes permitir a sua reabilitao

    econmica.

    O princpio geral nesta matria , como decorre do disposto no artigo 235. do CIRE,

    poder ser concedida ao devedor pessoa singular, a exonerao dos crditos sobre a

    insolvncia que no forem integralmente pagos no processo de insolvncia ou nos cinco

    anos posteriores ao encerramento deste.

    Porm, para se obter tal benefcio necessrio que o devedor pessoa singular, aps a

    sujeio ao processo de insolvncia, permanea por um perodo de cinco anos, intitulado

    perodo de cesso, submetido ao pagamento dos crditos da insolvncia que no hajam

    sido integralmente satisfeitos. Durante o perodo de cesso, o devedor ter, entre muitas

    outras obrigaes, de ceder o seu rendimento disponvel a um fiducirio2, conforme resulta

    da alnea c) do n. 4 do artigo 239. do CIRE, cujos montantes recebidos sero afetos ao

    pagamento dos credores.

    Terminado o perodo de cesso, tendo o devedor cumprido, para com os seus credores,

    todos os deveres que sobre ele recaam, proferido despacho de exonerao tendo como

    efeito a libertao do devedor das dvidas que no foram integralmente pagas ao longo do

    processo de insolvncia.

    Tendo o juiz verificado o cumprimento por parte do devedor de todos os deveres que

    sobre ele recaam, verificando ainda que o devedor adotou sempre uma boa conduta, -lhe

    concedido o benefcio da exonerao do passivo restante, permitindo-se a sua

    reintegrao plena na vida econmica3.

    Cabe-nos agora evidenciar, muito brevemente, o processo histrico e evolutivo que

    pautou a criao da figura em questo.

    2 Entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvncia.

    3 Ponto 45 do prembulo do CIRE.

  • 9

    1.1 ORIGEM E EVOLUO

    O instituto em questo uma manifestao jurdica cuja gnese se reporta ao modelo

    norte-americano de nova oportunidade, comumente designado por fresh start,4encontrando

    nele traos de grande tradio, na medida em que o discharge do Banckruptcy Code

    (datado de 1898) 5

    consubstancia, ainda hoje, o modelo mais liberal de recuperao da

    pessoa singular insolvente, pois prev uma exonerao de dvidas automtica6.

    Conhecido o seu bero, e j amplamente difundido nos EUA, emigrou para outras

    fronteiras7. A exonerao do passivo restante foi assim acolhida no Cdigo da Insolvncia

    Germnico (Insolvenzordnung), levando-nos a concluir que o legislador alemo procedeu,

    de certa forma, a uma espcie de transplante jurdico. Mais tarde, e por fora de um efeito

    alastrante, tambm o ordenamento jurdico portugus acabou por ir beber fonte da lei

    alem, inspiradora direta da nossa legislao.

    Assim, o nosso ordenamento jurdico abriu as portas figura jurdica em questo, com

    a entrada em vigor do Cdigo de Insolvncia e Recuperao de Empresas8, integrada no

    ttulo XII, concernente insolvncia de pessoas singulares9.

    Tendo em conta o at agora exposto, poderemos considerar que a inteno do

    legislador foi, ao importar tal instituto, libertar o devedor das suas obrigaes, para que

    4 Esta expresso surgiu pela primeira vez em 1934, numa deciso de um Tribunal norte-americano como

    assinalam MARQUES, M. M. Leito e FRADE, Catarina. Regular o Sobreendividamento. Ministrio da Justia-

    Gabinete de Poltica Legislativa e Planeamento (Ed.) Cdigo da Insolvncia e da Recuperao de Empresas Comunicaes sobre o Anteprojecto de Cdigo, Coimbra Editora, 2004, nota de rodap n. 2, p. 88. 5 [O]rigens mais remotas deste instituto encontram-se, em todo o caso, no Direito da Insolvncia ingls,

    onde se encontra a primeira referncia discharge, j no sculo XVIII, como assinala CATARINA SERRA, O

    novo regime portugus da insolvncia Uma introduo, 4. Edio, Almedina, 2010, pp. 132-133 O Bankruptcy Reform Act de 1978 (Pub.L. 95-598, 92 Stat. 2549, November 6, 1978) foi codificado, como

    Bankruptcy Code, no Title 11 do US Code (11 USC 727), podendo aceder-se no U.S. Code Online via GPO

    Access (www.gpoaccess.gov). O Bankruptcy Code veio substituir o Bankruptcy Act de 1 de Julho 1898 (ch.

    541, 30 Stat. 544) que tinha estabelecido, nos Estados Unidos, pela primeira vez, uma regulamentao

    uniforme da falncia, SOUSA, Antnio Frade de. Exonerao do passivo restante e frum shopping na

    insolvncia de pessoas singulares na Unio Europeia. In Estudos em Memria do Prof. Doutor J.L. Saldanha

    Sanches, Vol. II, Coimbra Editora, 2011, nota de rodap n. 3, p. 58. 6 Cfr. CUENA CASAS, Matilde. "Fresh start" y mercado crediticio espaol y estadounidense. In: Revista de

    derecho concursal y paraconcursal: Anales de doctrina, praxis, jurisprudencia y legislacin, N. 15, 2011, p.

    2. 7 O modelo de fresh start disseminou-se, ao longo dos ltimos anos, pela Europa Ocidental. Em Frana

    deparamo-nos, atualmente, com o artigo L 643-11 do Code de Commerce introduzido com a reforma de 2005

    (), na Alemanha trilhou-se idntico caminho, com a instituio nos 286 e seguintes do Insolvenzordnung, do regime da exonerao dos devedores singulares pelo passivo restante

    (Restschuldbefreiung) SOUSA, Antnio Frada de, op. cit., pp. 60 e 61. 8 O CIRE entrou em vigor a 15 de Setembro de 2004 atravs do DL n. 53/2004, de 18 de Maro.

    9 Nem poderia ser de outra forma, dado que, no caso das pessoas colectivas, o encerramento do processo de

    insolvncia leva extino ou liquidao da sociedade comercial devedora, conforme o disposto no artigo

    234., n. 2 e 3 do CIRE.

  • 10

    aps o encerramento do processo de insolvncia, decorridos cinco anos10

    sem que todos os

    credores fossem satisfeitos, o devedor pudesse retomar a sua vida, entrando no mercado

    livre de dvidas, reabilitado enquanto agente econmico e, sobretudo, enquanto agente

    dinamizador e capaz de gerar riqueza na sociedade.

    Deste modo, a exonerao do passivo restante tem como objetivos, por um lado, a

    preservao do capital humano11

    , incentivando o esprito empreendedor12

    do devedor. Por

    outro lado, incentivando aqueles que concedem crdito a ponderarem previamente, de

    modo mais criterioso, os riscos intrnsecos da sua atividade creditcia13

    .A compreenso dos

    objetivos deste instituto afigura-se fulcral para a anlise, que iremos levar a cabo, da

    excluso dos crditos tributrios da exonerao do passivo restante, prevista pelo legislador

    portugus na alnea d) do artigo 245. do CIRE.

    2. O OBJETIVO DA EXONERAO DO PASSIVO RESTANTE, A PRESERVAO

    DO CAPITAL HUMANO, CONSCIENCIALIZAO NA CONCESSO DE

    CRDITO E OS BENEFCIOS DESTE INSTITUTO JURDICO

    2.1 O OBJETIVO DA EXONERAO DO PASSIVO RESTANTE

    A preservao do capital humano constitui um dos objetivos primordiais da

    exonerao do passivo restante.

    Deste modo, este instituto tem em vista a prossecuo de um interesse pblico, o

    revitalizar econmico do devedor, ou seja, pretende dar quele uma nova oportunidade,

    inserindo-o novamente no mercado. Essa insero ser feita sem que o devedor se encontre

    subordinado a dvidas passadas e s quais no conseguiu, em momento oportuno, dar

    resposta.

    10

    Esse prazo de cinco anos j foi considerado um verdadeiro purgatrio. CRISTAS, Maria de Assuno Oliveira. Exonerao do devedor pelo passivo restante. In: Themis: Revista de Direito, N. Extra 1, 2005

    (Exemplar dedicado a: Edio especial (2005) "Novo direito da insolvncia"), p. 167. Note-se ainda que o

    perodo de cesso de 6 anos no ordenamento jurdico alemo, 12 meses no Reino Unido e 18 meses em

    Frana, SOUSA, Antnio Frada de., op. cit., pp. 61 e 62. 11

    Para mais desenvolvimentos, JACKSON, Thomas H. The Fresh Start Policy In Bankruptcy Law. In: Harvard

    Law Review,1985, pp.1396 ss. e pp. 1432 ss, a respeito da finalidade de proteo do capital humano que

    assume um papel determinante na discharge dos EUA e TANGER, Marga. La faillite en Droit Fdral des

    Etats-Unis: Prface de Jacques Larrieu. Economico, 2002, p. 448. 12

    [E]vitando tambm que os insolventes se mantenham na penumbra da economia paralela, SOUSA,

    Antnio Frada de, op. cit., p. 59. 13

    SOUSA, Antnio Frada de, op. cit., p. 59.

  • 11

    A exonerao recicla o devedor, dando-lhe uma nova utilidade, ao invs de o tornar

    numa pessoa intil, amarrado s dvidas passadas, sem quaisquer perspetivas futuras.

    Assim, possvel considerar que a exonerao, tal como se encontra concebida, est

    desprovida de qualquer inteno punitiva pois, caso contrrio, no mais o devedor poderia

    tornar-se economicamente ativo, o que nos leva a um ltimo passo: o carter de insero

    social que a figura da exonerao do passivo restante comporta. A este respeito, a seguinte

    expresso ganha todo o sentido: quando um homem honesto tem m sorte e falha

    financeiramente, a sociedade no ganha nada mantendo-o submerso e, com tal situao, em

    nada beneficiam os credores pois, de igual maneira, aqueles no vo ver satisfeitos os seus

    crditos por quanto a permanncia dos seus direitos de crdito bloqueia a capacidade

    produtiva do devedor14

    .

    Assim, haver de conceder-se uma nova oportunidade ao devedor com esperana de

    que tenha xito, podendo, caso assim acontea, contribuir-se para a criao de riqueza na

    sociedade e, consequentemente, para o crescimento econmico.

    2.2 A PRESERVAO DO CAPITAL HUMANO

    O capital humano, representado pelo conjunto de indivduos com qualificaes de

    nvel superior e/ou relevantes experincias profissionais, mostra-se como impulsionador

    que, necessariamente, produz efeitos transversais a todo o mercado.

    Neste sentido, o principal motor do crescimento econmico a acumulao de

    capital humano...e a principal fonte das diferenas nos padres de vida entre as naes so

    as diferenas em capital humano15

    .

    O capital humano obtido atravs do investimento nas pessoas16

    e, na lgica

    estruturante do fresh start indissocivel da pessoa que o detm. Em situao alguma, o

    capital humano dever ser perdido ou mesmo deteriorado. Importa preservar o capital

    humano de cada indivduo.

    Contudo, o capital humano s assume relevncia quando se encontra associado

    capacidade de inovao da economia, tendo um reflexo significativo na taxa de 14

    CUENA CASAS, Matilde, op.cit., p. 5. 15

    LUCAS, R. Making a miracle. In: Econometrica, V. 61, n 2, 1993, p. 270. Robert Emerson Lucas, Jr.

    economista americano que recebeu, em 1995, o prmio Nobel em cincias da economia. 16

    NELSON, R. and Phelps, E. Investment in Humans, Technological Diffusion, and Economic Growth. In:

    American Economic Review, 1966, Vol. 56, pp. 69-75.

  • 12

    crescimento econmico. O stock de capital humano no poder ser visto apenas como um

    simples fator de produo, mas sim como um pressuposto fundamental para a sustentao

    da capacidade de inovao de uma economia. So os agentes econmicos que, motivados

    pela obteno de lucro, desenvolvem atividades econmicas com a inteno de colocar no

    mercado novos ou melhores produtos/servios. Simultaneamente, este incremento dos bens

    ou servios conduzir, grande parte das vezes, a uma maior produtividade e receita fiscal.

    No entanto, a tnica incidente no capital humano, enquanto fator primordial para o

    desenvolvimento econmico, no , em nada, novidade. J nos anos 60, Becker17

    apontava

    para a enorme importncia do investimento nas pessoas18.

    Assumindo uma outra perspetiva sobre a questo, e semelhana do capital fsico e do

    trabalho, o capital humano, sendo essencial para o empreendedorismo, acaba por

    manifestar um input produtivo.

    Dissecando o capital humano, rapidamente verificamos que a educao no s a sua

    componente principal como se relaciona, de forma intrnseca, com o processo de inovao

    e desenvolvimento. Assim, quanto maior for o nvel de escolaridade ou de competncia

    dos variados sectores de atividade, ou seja, a existncia de um capital humano mais

    qualificado, maior ser, obviamente, a probabilidade de ocorrncia de inovaes, ou pelo

    menos, a capacidade de absoro de determinados contedos processa-se de forma mais

    inconsciente e natural, o que no mbito empresarial poder significar um desenvolvimento

    mais acelerado e, principalmente, consolidado. Encontrando-se tais ingredientes reunidos,

    no sero ao crescimento econmico colocados quaisquer entraves e, consequentemente,

    poder surgir um mercado mais forte e concorrencial.

    A ligao entre a proteo do capital humano e o investimento necessrio para o criar

    bem clara nos EUA. Com efeito, nos EUA, os emprstimos destinados educao e

    formao encontram-se excludos da discharge, por serem considerados como um

    elemento inseparvel do indivduo que a detm.19

    Quer isto dizer que o individuo visto

    17

    BECKER, Gary S. Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis In: Journal of Political Economy,

    Vol. 70, No. 5, Part 2: Investment in Human Beings (Oct., 1962), pp. 9-44. 18

    Omiti-los [investimentos em capital humano], no estudo do crescimento econmico, como tentar

    explicar a ideologia Sovitica sem Marx, SCHULTZ, Theodore W. Investment in Human Capital. In: The

    American Economic Review, 1961 Vol. 51, No. 1, p. 1. 19

    11 USC 523 do Bankruptcy Code: (a) A discharge ... does not discharge an individual debtor from any

    debt- (8) for an educational benefit overpayment or loan made, insured or guaranteed by a governmental unit,

    or made under any program funded in whole or in part by a governmental unit or nonprofit institution, or for

    an obligation to repay funds received as an educational benefit, scholarship or stipend, unless excepting such

    debt from discharge under this paragraph will impose an undue hardship on the debtor and the debtor's

    dependents;. USC.BANKRUPTCY. Disponvel em: http://www.law.cornell.edu/uscode/text/11.

  • 13

    como o produto intelectual de todo um processo educativo e evolutivo crescente que,

    obviamente, comportou encargos financeiros. Em suma, todo o seu conhecimento, ou a

    maior parte dele, foi adquirido atravs dos estabelecimentos de ensino que frequentou. Por

    essas razes, e por a educao representar uma das formas mais importantes de criao de

    capital humano, as dvidas emergentes da educao no se encontram nos EUA includas

    na exonerao do passivo restante. As instituies de educao como potenciadoras, por

    excelncia de capital humano, so assim protegidas no vendo os seus crditos serem

    abrangidos pela exonerao do passivo restante daqueles cujo capital humano ajudaram a

    criar. Assim, a razo de no se inclurem as dvidas emergentes da educao na discharge

    do Bankruptcy Code precisamente por se considerar que o indivduo tem que pagar por

    aquilo que hoje, pelos emprstimos que contraiu nas instituies de crdito e de ensino,

    que lhe forneceram as ferramentas essenciais para o seu progresso, preservando-se, com

    esta medida, a criao de capital humano na sociedade.

    2.3 A CONSCIENCIALIZAO NA CONCESSO DE CRDITO

    A concesso de crdito uma atividade de risco, o que pressupe que o

    sobreendividamento20

    seja algo a ter previamente em conta por aqueles que concedem

    crdito, ou seja, os credores21

    . O emprstimo reconduz-se ao negcio das instituies de

    crdito, mediante os quais aquelas recebem juros. Este fenmeno, altamente rentvel para

    quem os fornece, desencadeia uma poltica de financiamento desenfreado e sem critrio na

    sua concesso22

    o que poder exponenciar, grande parte das vezes e na perspetiva dos

    financiados, um maior risco de solvabilidade.

    20

    [] algum que se excedeu, embora tenha sido tambm em parte vtima de um sistema de crdito de fcil acesso e de constantes apelos ao consumo, MARQUES, M. M LEITO. e FRADE, Catarina. op. cit. ,p. 90. 21

    A este respeito, cfr. ponto 2 (regulao e superviso do sector financeiro) do memorando de entendimento

    Troika, Estado Portugus, cujos objetivos passaro por preservar a estabilidade do sector financeiro, manter

    a liquidez e apoiar uma desalavancagem equilibrada e ordenada do sector bancrio; reforar a regulao e

    superviso bancria; concluir o processo relacionado com o Banco Portugus de Negcios e racionalizar a

    estrutura do banco pblico Caixa Geral de Depsitos; reforar o enquadramento legal da reestruturao,

    saneamento e liquidao das instituies de crdito e do Fundo de Garantia de Depsitos e do Fundo de

    Garantia de Crdito Agrcola Mtuo; reforar o enquadramento legal de insolvncia de empresas e de

    particulares., disponvel em http://www.portugal.gov.pt/media/371372/mou_pt_20110517.pdf., [Consult. 12

    de Fevereiro de 2013]. 22

    Como a concesso de crdito por telefone, atravs de envio de formulrios para as caixas postais, etc.

  • 14

    Ora, um dos objetivos do instituto da exonerao do passivo restante o de fomentar

    uma maior consciencializao das instituies de crdito para a concesso dos crditos.

    Deste modo, a exonerao acaba por produzir um impacto positivo na economia:

    quanto mais restrito o acesso ao crdito mais exigente quem o concede e mais

    responsvel quem o pede menor o risco de sobreendividamento e menos provvel a

    insolvncia dos consumidores e dos empresrios em nome individual23

    .

    A restrio do crdito mostra-se como a nica via de limitar o sobreendividamento,

    caso contrrio os crditos seriam to facilmente concedidos como no cumpridos e, sendo

    estes includos na exonerao, levaria a um incumprimento sistemtico do lado dos

    devedores e a crditos gorados, por parte dos credores.

    Ainda a este respeito, muitas vezes os devedores, na qualidade de consumidores, so

    induzidos em erro por fatores como a publicidade, a informao pr-contratual, ou seja,

    causas externas produzidas pelos credores que levam os primeiros situao precria da

    insolvncia, devendo, deste modo, dar-se uma nova oportunidade aos devedores, enquanto

    agentes econmicos, criadores de riqueza, porque s vezes, situaes especiais requerem

    solues especiais, e por isso podem superar-se mediante a concesso de uma nova

    oportunidade24

    .

    Assim, o devedor, entendido enquanto consumidor e agente econmico ativo que,

    semelhana das empresas, quando tem dificuldades financeiras deve ser reintegrado no

    mercado para que volte a consumir (a ideia do consumidor, Lda.) 25. Alm do exposto,

    dever ser reintegrado na sociedade para que volte a produzir, salvaguardando-se o esprito

    empreendedor.

    Mesmo no mbito da sociedade importante que o devedor se insira o mais

    rapidamente possvel pois, caso contrrio, a existncia de uma grande percentagem de

    pessoas irremediavelmente insolventes poder criar instabilidade poltica e dificuldades

    para outros membros da sociedade26

    .

    23

    SERRA, Catarina. O regime portugus de insolvncia. 5 ed. rev. e act. luz da Lei n 16/2012 de 20 de

    Abril, e do DL n 178/2012, de 3 de Agosto. Coimbra: Almedina, 2012, p. 158. 24

    RUBIO VICENTE, Pedro . A vueltas con la exoneracin del pasivo restante en el concurso. In: Revista de

    derecho concursal y paraconcursal: Anales de doctrina, praxis, jurisprudencia y legislacin, N. 6, 2007, p.

    134. 25

    MARQUES, M.M. LEITO e FRADE, Catarina, op. cit., p. 89. No mesmo sentido, CUENA CASAS, Matilde, op.

    cit., p. 2. 26

    TABB, Charles J. Scope of the Fresh Start in Bankruptcy: Collateral Conversions and the Dischargeability.

    Debate. George Washington Law Review, 1990, Vol. 59, No. 1, p. 94.

  • 15

    Alm do referido, outras consequncias negativas podero advir da no exonerao

    daqueles que se encontrem insolventes, a saber: primeiramente, a ingresso dos mesmos

    numa economia ou mercado paralelo, sendo que os lucros obtidos em tais circunstncias

    no sero tributados27

    . Consequentemente, a inverso dos efeitos pretendidos, ou seja, a

    no exonerao, para alm de cativar os agentes econmicos insolventes para o mercado

    ilegal, por no lhes ter sido dada segunda oportunidade de vingar, tambm aliciar os

    outros a ingressar naquele, prejudicando, em suma, quer o Estado quer a sociedade em

    geral.

    2.4 OS BENEFCIOS DA EXONERAO DO PASSIVO RESTANTE

    Face ao exposto, podemos concluir, com algum grau de certeza, que a exonerao do

    passivo restante proporciona benefcios tanto para o devedor, como para os credores, bem

    como para a sociedade em geral.

    Aps a sujeio do devedor ao processo de insolvncia, onde lhe foram penhorados

    todos os seus bens para fazer face s dvidas contradas, este apresenta um ativo

    praticamente inexistente e os seus lucros so, grosso modo, simblicos.

    Assim, a probabilidade de os credores recuperarem os seus crditos diminuta.

    Caso no existisse a figura da exonerao do passivo restante, as execues

    continuariam o seu rumo de forma a penhorar os bens do devedor na medida da sua

    existncia, o que constituiria o arrastar de uma situao precria para ambos os sujeitos28

    .

    Em primeiro lugar porque os credores teriam que suportar os custos inerentes aos

    processos e, como o devedor saiu recentemente de uma insolvncia, as hipteses de

    recuperao dos crditos seriam praticamente nulas e, mesmo que assim no fosse, o

    crdito iria ser cumprido de forma faseada, o que poderia levar, inclusive, desvalorizao

    (em caso de bens) ou mesmo ao desinteresse total por parte do credor.

    27

    O que claramente consubstancia uma prtica fiscalmente evasiva. Apesar de, na prtica, durante o perodo

    de cesso da exonerao poder ocorrer prticas evasivas e ocultao de bens. Porm, consideramos que sero

    mais difceis de ocorrer, dado o controlo permanente do fiducirio. 28

    O processo executivo desenvolve-se exclusivamente para os credores e em seu benefcio, podendo dizer-

    se que foi atingido o seu fim quando ele foi capaz de realizar, atravs da liquidao dos bens penhorados, a

    satisfao integral do credor. Deste modo, ao no existirem bens, no se atinge o fim do processo executivo.

    SERRA, Catarina. A falncia no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crdito: o problema da natureza

    do processo de liquidao aplicvel insolvncia no direito portugus. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p.

    294.

  • 16

    Em segundo lugar, agora no mbito processual, o processo arrastar-se-ia

    indefinidamente no Tribunal, sem quaisquer perspetivas de evoluo ou margem de

    recuperao do crdito pretendido. Estaramos, neste caso, na presena de um processo

    totalmente estagnado que apenas arrecadaria despesas para os credores, bem como para os

    Tribunais. Assim, consideramos que se violariam princpios como a celeridade e a

    economia processual, alm de que, na perspetiva dos tribunais, dar-se-ia um efeito

    paralisante da justia.

    Importa assinalar que o prolongamento excessivo da responsabilidade do devedor no

    constitui qualquer garantia de pagamento29

    , muito pelo contrrio, na medida em que o

    devedor fica cada vez mais debilitado financeiramente, no podendo fazer face s despesas

    contradas.

    Alm disso, e recuperando uma ideia j anteriormente referida, a eterna subjugao s

    dvidas contradas resultariam numa total desmotivao para continuar a exercer a sua

    atividade econmica, o que tambm baixaria drasticamente o seu nvel de empenho no

    trabalho30

    , sabendo que todos ou grande parte dos frutos colhidos seriam entregues aos

    seus credores.

    Ao entrarem novamente nesse pesadelo, possivelmente poder-se-iam gerar

    comportamentos fraudulentos31

    , ocultando bens ou quantias pecunirias, para que os

    credores no os descobrissem. Libertando-se de tais dvidas, o devedor ter, com certeza,

    mais motivao para comear de novo, ponderando correr novos riscos e assumindo uma

    atitude mais preventiva32

    . Ser um indivduo reabilitado, inserido novamente na sociedade

    como membro produtivo e consumidor.

    Face a todas as vantagens mencionadas, torna-se difcil de compreender como em

    alguns Estados este instituto da exonerao continua a no ser acolhido. O caso Espanhol

    digno de nota. A Ley Concursal espanhola ainda no adotou este instituto. Apesar de ter

    existido recentemente uma reforma da Ley Concursal, esta voltou a ignorar a problemtica

    da insolvncia das pessoas singulares. Deste modo, para o legislador espanhol irrelevante

    o anterior comportamento do devedor, o presente ou posterior declarao de insolvncia,

    29

    RUBIO VICENTE, Pedro J., op. cit., p. 5. 30

    SPRINZ, Petr. Fresh-Start Policy of Bankruptcy in Visigrad Countries: Economic and Legal Analysis, p. 18.

    Disponvel em: http://www.etd.ceu.hu/2011/sprinz_petr.pdf. [Consult . 15 de Maro de 2013]. 31

    LVAREZ RUBIO, Julio A. Algunas reflexiones en torno a la reforma del "fresh start" del consumidor en

    US. In: Anuario de derecho concursal, n. 14, 2008, p. 236. 32

    O grau de averso ao risco tem um impacto muito significativo sobre a deciso de se tornar ou no um

    empreendedor, SPRIZ, Petr, op. cit., pp. 7-9.

  • 17

    ou seja, irrelevante quais as razes que levaram o devedor situao de insolvncia,

    condenando todos os devedores, sem qualquer distino, excluso social33

    .

    Em resultado de pases como a Espanha, que no adotaram a exonerao do passivo

    restante, os credores no vm os seus crditos satisfeitos e, o devedor, de forma a no ser

    perseguido pelos credores, reinicia a sua atividade atravs de testas de ferro para evitar

    que os seus ganhos sejam entregues aos seus credores. A adoo do instituto da exonerao

    do passivo restante constituiria uma medida de poltica econmica que seria aconselhvel

    introduzir em Espanha, e que poderia contribuir notavelmente para a sada da crise

    econmica, dado que se trata de uma medida que estimula o esprito empreendedor do

    devedor34

    .

    3. A EXCLUSO DE ALGUNS CRDITOS DA EXONERAO DO PASSIVO

    RESTANTE

    Apesar de todos os objetivos e benefcios inerente ao instituto da exonerao do

    passivo restante, a verdade que, adotando uma anlise mais cuidada, podemos constatar

    que nem todos os crditos da insolvncia35

    deixam de ser exigveis ao devedor, decorridos

    cinco anos contados do encerramento do processo de insolvncia, sem que tenham sido

    todos os credores ressarcidos.

    Assim, dispe o n. 2 do artigo 245. do CIRE que a exonerao no abrange: a) os

    crditos por alimentos; b) as indemnizaes devidas por factos ilcitos dolosos praticados

    pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade; c) os crditos por multas,

    coimas e outras sanes pecunirias por crimes ou contra-ordenaes; d) os crditos

    tributrios36

    . Este preceito no , diga-se desde j, absolutamente original no plano

    comparatstico, ao excluir certos crditos da exonerao, cada um dos ordenamentos

    jurdicos que acolheram a exonerao do passivo restante tm um elenco mais ou menos

    alargado de crditos que se encontram excludos do mesmo. Em consequncia, verifica-se

    que os pases que estipulam um menor nmero de crditos excludos da exonerao do

    33

    CUENA CASAS, Matilde, op. cit., p. 3. 34

    CUENA CASAS, Matilde, op. cit., p. 4. 35

    So crditos da Insolvncia todos os crditos de natureza patrimonial que existam sobre o insolvente ou

    garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior data da declarao de

    insolvncia, artigo 47. n. 1 e 2 do CIRE. 36

    Os crditos sobre a massa insolvente esto implicitamente excludos (artigo 245., n.1 a silentio).

    SERRA, Catarina. O Regime Portugus da Insolvncia, op. cit., p. 166.

  • 18

    passivo restante tendem a ser mais atrativos para os devedores, provocando, deste modo, o

    chamado forum shopping37

    , dado que as vantagens que se podem retirar em cada pas so

    distintas em funo das denominadas excees.

    Deste modo, e a ttulo de exemplo, os crditos por alimento encontam-se excludos no

    nosso ordenamento jurdico, bem como na lei italiana, por fora do artigo 142 da Legge

    Fallimentare38

    .

    As indemnizaes devidas por factos ilcitos dolosos praticados pelo devedor, que

    hajam sido reclamadas nessa qualidade, tambm se encontram excludas no ordenamento

    jurdico francs, luz da L.643-11.I Code du Commerce39

    , no ordenamento jurdico

    alemo atravs do 302.1 InsO40

    e no Italino, tambm no artigo 142 da Legge

    Fallimentare41

    .

    No que toca aos crditos por multas, coimas e outras sanes pecunirias por crimes

    ou contra-ordenaes, estes encontram-se igualmente excludos no ordenamento jurdico

    alemo ( 302.2 InsO)42

    , no Italiano (artigo 142 Legge Fallimentare)43

    e no Francs

    (L.643-11.I,1. Code du Commerce)44

    .

    37

    Os legisladores nacionais devem modernizar ou simplesmente emendar as suas leis se no querem que os

    seus cidados vo para outros pases com uma legislao mais atrativa. Por exemplo a Alemanha est a

    procurar melhorar a sua legislao sobre a insolvncia mas no s a Alemanha, h uma agitao quase febril

    dos Estados Europeus para superar os outros na correo das suas leis. Por exemplo vrias reformas ocorreram na Itlia, Frana, Pases Baixos, Grcia e Repblica Checa. Cada uma destas jurisdies esto a

    lutar para melhorar. A caraterstica comum de todos estes pases que liquidao se proceder, na medida

    do possvel o resgate do devedor e o procedimento de insolvncia considerado como uma oportunidade de

    reorganizao, PAULUS, Christoph G. Una visin del Derecho Europeu de la Insolvencia. In: Anuario de

    derecho Concursal. 2009, n. 17, pp. 254-255. Neste sentido SOUSA, Antnio Frada de, op. cit., e, em geral, A

    europeizao do direito internacional privado [Texto policopiado]: os novos rumos na regulamentao das

    situaes privadas transnacionais na UE. Porto: UCP, Escola de direito, 2012. 38

    Restano esclusi dallesdebitazione: a) gli obblighi di mantenimento e alimentari e comunque le obbligazioni derivanti da rapporti estranei

    allesercizio dellimpresa; (3). ASSUCIAZONI CURATORI FALLIMENTARI. legge fallimentare. Disponvel em: http://www.associazionecuratori.it/fallimenti/lfa142.html. 39

    Le jugement de clture de liquidation judiciaire pour insuffisance d'actif ne fait pas recouvrer aux

    cranciers l'exercice individuel de leurs actions contre le dbiteur, sauf si la crance rsulte :D'une

    condamnation pnale du dbiteur. LEGIFRANCE. Code du commerce. Disponvel em: http://www.legifrance.gouv.fr/. 40

    Verbindlichkeiten des Schuldners aus einer vorstzlich begangenen unerlaubten Handlung, sofern der

    Glubiger die entsprechende Forderung unter Angabe dieses Rechtsgrundes nach 174 Abs. 2 angemeldet

    hatte. ALEMANHA. Leis, decretos, etc. [et al.]. Mnchener Kommentar zur Insolvenzordnung. Mnchen :

    Beck, 2001-2003. Band 3: 270-335. 2003. 41

    b) i debiti per il risarcimento dei danni da fatto illecito extracontrattuale nonch le sanzioni penali ed

    amministrative di carattere pecuniario che non siano accessorie a debiti estinti. ASSUCIAZONI CURATORI

    FALLIMENTARI. legge fallimentare. Disponvel em: http://www.associazionecuratori.it/fallimenti/lfa142.html. 42

    2. Geldstrafen und die diesen in 39 Abs. 1 Nr. 3 gleichgestellten Verbindlichkeiten des Schuldners;

    ALEMANHA. Leis, decretos, etc. [et al.]. Mnchener Kommentar zur Insolvenzordnung. Mnchen : Beck,

    2001-2003. Band 3: 270-335. 2003.

  • 19

    Mas, resgatando a norma contida no CIRE, e fazendo uma anlise comparatstica com

    os restantes ordenamentos jurdicos j enunciados, o que nos salta mais vista, no elenco

    das excluses dos crditos do artigo 245. do CIRE, a excluso dos crditos tributrios,

    ou seja, a exceo vertida na alnea d) de tal preceito.

    Em primeiro lugar, esta excluso surge apenas no nosso ordenamento jurdico, o que

    no mnimo inusitado, dado que o instituto da exonerao do passivo restante foi

    transplantado do ordenamento jurdico alemo. Contudo, este no prev no 302 InsO esta

    excluso, levando-nos a concluir que o legislador portugus, ao acrescentar a alnea d) do

    artigo 245. do CIRE, adaptou a exonerao do passivo restante ao que mais lhe conveio,

    sem qualquer respeito pelas razes que se encontram por detrs da criao da prpria

    exonerao45

    .

    A Doutrina tem encarado com alguma preplexidade esta excluso. Catarina Serra

    questiona se a mesma no representa uma generosidade excessiva da lei para com o

    Estado ou se tal opo no configura uma discriminao injustificada no universo dos

    credores46

    . Tambm Carvalho Fernandes se interroga se com esta excluso no se retira

    ao instituto jurdico da exonerao do passivo restante muita da sua essncia e interesse

    prtico atendendo, claro, ao peso que os crditos tributrios representam47

    .

    43

    b) i debiti per il risarcimento dei danni da fatto illecito extracontrattuale nonch le sanzioni penali ed

    amministrative di carattere pecuniario che non siano accessorie a debiti estinti. ASSUCIAZONI CURATORI

    FALLIMENTARI. legge fallimentare. Disponvel em: http://www.associazionecuratori.it/fallimenti/lfa142.html. 44

    D'une condamnation pnale du dbiteur ; LEGIFRANCE. Code du commerce. Disponvel em:

    http://www.legifrance.gouv.fr/. 45

    302 Ausgenommene Forderungen

    Von der Erteilung der Restschuldbefreiung werden nicht berhrt:

    1. Verbindlichkeiten des Schuldners aus einer vorstzlich begangenen unerlaubten Handlung, sofern der

    Glubiger die entsprechende Forderung unter Angabe dieses Rechtsgrundes nach 174 Abs. 2

    angemeldet hatte;

    2. Geldstrafen und die diesen in 39 Abs. 1 Nr. 3 gleichgestellten Verbindlichkeiten des Schuldners;

    3. Verbindlichkeiten aus zinslosen Darlehen, die dem Schuldner zur Begleichung der Kosten des

    Insolvenzverfahrens gewhrt wurden..

    Traduo livre:

    302

    Crditos excludos

    Da concesso da exonerao do passivo restante no sero afetadas:

    1. Indemnizaes devidas por factos ilcitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados

    nos termos do 174 pargrafo 2.

    2.Multas e equivalentes 39 seco 1 tratadas como passivo do devedor.

    3. Obrigao por emprstimos sem juros concedidos ao devedor para pagar as custas do processo de

    insolvncia. ALEMANHA,. Leis, decretos, etc. [et al.]. Mnchener Kommentar zur Insolvenzordnung.

    Mnchen : Beck, 2001-2003. Band 3: 270-335. 2003. 46

    SERRA, Catarina. O regime portugus da insolvncia, op. cit., p. 167. 47

    FERNANDES, Lus A. Carvalho; LABAREDA, Joo, co-aut. Colectnea de estudos sobre a insolvncia.

    Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 304.

  • 20

    Nas pginas que se seguem, tentaremos perceber quais as razes que se encontram por

    detrs desta excluso, qual a ratio legis desta alnea, que constitui uma originalidade do

    Direito de Insolvncia Portugus, face aos outros ordenamentos jurdicos onde este

    instituto da exonerao da exonerao do passivo restante consagrado.

    3.1 O ANTEPROJETO DO CIRE

    Como referimos anteriormente, o instituto da exonerao do passivo restante foi

    introduzido no nosso ordenamento jurdico com a entrada em vigor do CIRE, em 2004.

    Analisando o anteprojeto do CIRE, podemos verificar que nos crditos excludos da

    exonerao do passivo restante no constavam os crditos tributrios nem os crditos por

    alimentos, tal como no Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung.

    Assim, no anteprojeto do CIRE, estipulava o n. 2 do artigo 220.48

    , referente aos

    efeitos da exonerao, que esta abrangia apenas: a) As indemnizaes devidas por factos

    ilcitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade; b)

    Os crditos por multas, coimas e outras sanes pecunirias por crimes ou contra

    ordenaes49

    .

    Deste modo, tentaremos fazer uma reconstruo com o intuito de perceber quais os

    motivos que levaram o legislador a acrescentar os crditos tributrios lista dos crditos

    que se encontram excludos do instituto jurdico da exonerao do passivo restante.

    A razo que parece mais evidente, partida, ser a baseada no princpio da

    indisponibilidade do imposto, que veremos a seguir.

    48

    Atual n. 2 do artigo 245. do CIRE. 49

    Cfr. Anteprojecto de Cdigo que acompanhou a proposta de lei de autorizao. In: Ministrio da Justia Gabinete de poltica Legislativa e Planeamento (Ed.), op. cit., p. 187.

  • 21

    3.2 O PRINCPIO DA INDISPONIBILIDADE DO IMPOSTO

    O princpio da indisponibilidade do imposto50

    encontra-se consagrado no n. 2 do

    artigo 30. da Lei Geral Tributria, segundo o qual o crdito tributrio indisponvel, s

    podendo fixar-se condies para a sua reduo ou extino com respeito pelo princpio da

    igualdade e da legalidade tributria. O n. 3 acrescenta ainda que o disposto no nmero

    anterior prevalece sobre qualquer legislao especial51

    , prevalecendo, desta forma, sobre

    o CIRE52

    . Concordamos totalmente com Maria do Rosrio Epifnio quando refere que o

    n. 3 do artigo 30. da LGT contraria os objetivos previstos no ponto 2.19 do Memorando

    de entendimento sobre condicionalidades de poltica econmica, (firmado entre Portugal e

    a Comisso Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetrio Internacional)53

    .

    Atravs do acrscimo do n. 3 ao artigo 30. da LGT, as medidas para alcanar os objetivos

    presentes no ponto 2.19 do Memorando, no qual se salientam a reestruturao da dvida

    atravs da disposio Administrao Tributria e Segurana Social de uma

    multiplicidade de instrumentos de reestruturao assentes em critrios claramente

    determinados, caem por terra em detrimento do princpio da indisponibilidade do

    imposto54

    .

    Para alm deste acrscimo ao artigo 30. da LGT no se coadunar com os objetivos do

    Memorando, tambm pe em causa o regime normativo geral previsto no n. 3 do artigo 3.

    do CC, segundo o qual a lei geral no revoga a lei especial exceto se for esta a inteno

    inequvoca do legislador. Ora, no nos parece que foi esta a inteno inequvoca do

    legislador pois que, se assim fosse, o legislador tambm alteraria os artigos 97. e 196. do

    CIRE que extingue os privilgios creditrios do Estado, das autarquias locais e das

    instituies de segurana social que permitem a reduo e modificao dos crditos no

    plano de pagamentos. Concluindo-se, deste modo, que esta alterao proveio da inteno

    do legislador fiscal que, com a mesma, viu os seus crditos ficarem, ainda, mais

    protegidos. Este aditamento para alm de pr em causa os fundamentos e as normas

    50

    Como refere LOURENO, Lcio Augusto Pimentel. A indisponibilidade do imposto. IN: Cincia e tcnica

    fiscal, Lisboa.1999, n.395 (Jul.Set.), p. 80. 51

    Com esta alterao, no restam dvidas que o que o legislador pretendeu foi alargar o alcance da proteo

    aos crditos tributrios para o CIRE SERRA, Catarina. Crditos tributrios e princpio da igualdade entre os

    credores dois problemas no contexto da insolvncia de sociedades. In: Direito das Sociedades em Revista, 2012, ano 4, Vol. 8, p. 92. 52

    Aditado pela Lei n. 55-A/2010 de 31 de Dezembro, que aprovou a Lei do Oramento de Estado para 2011. 53

    EPIFNIO, Maria do Rosrio, Manual de Direito da Insolvncia, Manual de direito da insolvncia. 5 ed.

    Coimbra: Almedina, 2013, p. 312. 54

    Apesar de MARIA DO ROSRIO EPIFNIO referir-se ao plano de insolvncia, entendemos que tal

    entendimento poder aplicar-se exonerao do passivo restante.

  • 22

    constantes no CIRE, pe ainda em causa a prpria sobrevivncia da debilitada economia

    nacional, ao condicionar a recuperao das escassas empresas que nos restam. Deste modo,

    com este aditamento o Estado alm de no lucrar com a liquidao das poucas empresas

    que sobrevivem, ainda levar todos os seus credores para incumprimentos adicionais e

    aumentar a taxa elevadssima de desemprego que, consequentemente trar, a mdio prazo,

    mais encargos para o prprio Estado55

    .

    Voltando ao n. 2 do artigo 30. da LGT, tal norma tem carcter imperativo,

    implicando que a indisponibilidade da obrigao tributria seja irrenuncivel e

    imodificvel, salvo na medida em que a lei expressamente preveja de forma diferente56

    .

    A indisponibilidade do imposto prende-se com a funo primordial do Estado, a

    criao do bem-estar dos seus cidados e a preservao do Estado Social, que s pode ser

    assegurada com a obteno das indispensveis receitas fiscais57

    . Deste modo, este princpio

    constitui o meio para a obteno do fim, ou seja, o bem comum, o Estado Social58

    . O

    crdito tributrio, por ser do Estado, tambm de todos os cidados e em nome destes

    que o Estado, agindo atravs da Administrao Tributria, tem o dever de proteger os seus

    crditos de forma a salvaguardar o interesse pblico.

    Porm, mesmo que o Estado invoque o princpio da indisponibilidade do imposto, no

    lhe suficiente o argumento abstrato do interesse pblico59

    . Na realidade, tambm o

    instituto da exonerao do passivo restante tem em vista um interesse pblico, a

    preservao do bom funcionamento do mercado60

    e o empreendedorismo. Alm do mais,

    55

    Veja-se a este propsito o Acrdo do Supremo Tribunal de Justia (processo n. 2049/06.TBVCT.G1.S1)

    de 15 de Dezembro de 2011, relator: Silva Gonalves, disponvel em http//: www.dgsi.pt. 56

    MORAIS, Rui Duarte. A execuo fiscal. 2 ed. Coimbra : Almedina, 2006, pp. 198 e 199. 57

    A atividade de perceo das receitas fiscais ganha uma importncia crescente medida que a conscincia

    social e a opinio pblica no Estado Social de Direito vo transformando em direitos sociais da populao o

    uso de bens e servios que satisfazem necessidades bsicas e/ou de bem-estar. A satisfao dessas

    necessidades nessa conceo incumbe ao Estado, GUIMARES, Vasco A. Branco, 1956- Consideraes sobre

    a reviso do rendimento tributvel. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martnez.

    Lisboa. Vol. 2, p. 429. 58

    Note-se a este respeito que os impostos tm constitudo o principal meio de obteno de receias para que o

    Estado concretize todas as necessidades pblicas e semi-pblicas selecionadas pelos governantes

    (Assembleia da Repblica e Governo) em funo do critrio da delegao de poderes ou mandato expresso

    pelo voto popular LOURENO, Lcio Augusto Pimentel., op. cit. p. 82. 59

    GUERREIRO, Lima. Os crditos fiscais no novo cdigo dos processos especiais de recuperao e de falncia.

    In: Fisco. Ano.5, n. 54 (Maio 93), p. 15. 60

    Cfr. MARTINS, Lus M. Crditos do Estado no Plano de Insolvncia. Insolvncia, portal de reestruturao e

    insolvncia de empresas e pessoas singulares, disponvel em http://www.insolvencia.pt/artigos/42-creditos-

    do-estado-no-plano-de-insolvencia.html, [Consult. 3 de Janeiro de 2013].

  • 23

    ao excluir os crditos tributrios da exonerao do passivo restante das pessoas singulares,

    ignorou-se por completo o interesse pblico que o mecanismo da exonerao prossegue61

    .

    Olhando para a ltima parte do n. 2 do artigo 30. da LGT, podemos concluir que toda

    a atividade da Administrao Tributria se rege pelo princpio da igualdade e da legalidade

    tributria62

    .

    Deste modo, toda a atuao da Administrao Tributria deve procurar alcanar um

    tratamento igualitrio e uniforme para todos os seus contribuintes, tanto na exigncia e na

    modificao como na extino das suas obrigaes tributrias63

    .O princpio da

    indisponibilidade do imposto confere certeza e segurana aos contribuintes. Estes sabero

    a priori que no se depararo com situaes de concesso injustificada de perdo de

    dvidas tributrias a outros contribuintes.

    A esta luz se compreender que s o legislador e um legislador particularmente

    habilitado, em razo da dimenso formal do princpio da igualdade e da legalidade

    tributria64

    possa definir as situaes em que tal tratamento, aparentemente desigual, se

    pode verificar, pois s ele est habilitado para estabelecer as condies em que deva

    ocorrer a extino da obrigao fiscal65

    .

    61

    Iremos aprofundar mais frente, as referidas razes de interesse pblico. 62

    [L]egalidade como condio e limite do seu exerccio, no sentido de a Administrao no poder agir sem

    lei, ou norma de efeito equivalente(legalidade como condio), nem agir alm do que ela dispuser (legalidade

    como limite na perspetiva do contribuinte, a legalidade, atua como garantia do seu patrimnio contra

    investidas do Poder Pblico, GRECO, Marco Aurlio. Trs papis da legalidade tributria. In: Fiscalidade:

    revista de direito e gesto fiscal, 2010 (Abril e Junho), p. 5. Para mais desenvolvimentos DOURADO, Ana

    Paula. O princpio da legalidade fiscal: tipicidade, conceitos jurdicos indeterminados e margem de livre

    apreciao. Coimbra: Almedina, 2007. 63

    Note-se que a igualdade na tributao alcanada atravs da capacidade contributiva individual que

    corresponde verificao, na pessoa de um contribuinte, dos factos que a lei configura como geradores da

    obrigao de imposto. verificao de tais factos a lei faz corresponder a suposio da existncia de uma

    determinada riqueza individual, parte da qual pretende que seja partilhada com a comunidade, transferida

    para esta, atravs do mecanismo do imposto () o que acontece, em geral, nos nossos sistemas fiscais que a existncia da riqueza determinante da obrigao de imposto aferida em relao a um dado momento,

    sabendo que o pagamento do imposto assim devido acontece noutro momento, por vezes distanciado. E,

    nesse intervalo temporal, as circunstncias podero ter-se alterado: a riqueza a transferir para o Estado j no

    existe(). Portanto, h que reconhecer que, ao menos em relao aos impostos peridicos em que o que se tributa um mesmo facto duradouro, poderemos ter imposto sem capacidade contributiva. O perdo do

    imposto no seria, nestes casos, mais que o reconhecimento (por fora de dados novos, surgidos a posteriori)

    da inexigibilidade do imposto, MORAIS, Rui Duarte. A execuo Fiscal. op. cit., pp. 223 e 224. 64

    MORAIS, Rui Duarte. A Execuo Fiscal, op. cit., p. 219. 65

    S tem competncia para extinguir ou beneficiar, quem tem competncia para criar ou agravar

    CARLOS, Amrico Brs. Impostos: teoria geral. Coimbra: Almedina, 2006, p. 96. Sobre a

    intransmissibilidade da competncia dos rgos constitucionais, vide, MIRANDA, Jorge, 1941. Manual de

    direito constitucional. 4 ed. Coimbra : Coimbra Editora, 1998. Vol. 4: Direitos fundamentais.2008, p. 57.

  • 24

    Seguindo a tese de Rui Duarte Morais66

    , essas situaes de tratamento aparentemente

    desigual, apenas poderiam ser definidas por Lei67

    . Atendendo ao facto do CIRE ter sido

    criado por Decreto-Lei68

    , nestes termos, no poderia definir situaes em que se verificaria

    um tratamento aparentemente desigual.

    Porm, a nova alterao ao CIRE foi feita por Lei69

    e o legislador, lamentavelmente,

    no dispensou uma nica palavra problemtica.

    Contudo, de estranhar o facto de se exclurem os crditos tributrios da exonerao

    do passivo restante, quando, no mbito de um plano de insolvncia, o CIRE parece aceitar,

    sem quaisquer restries, a afetao dos crditos tributrios, a sua reduo ou perdo70

    .

    Todavia, h quem defenda que, nestes casos, no existe violao de normas fiscais

    imperativas por vontade das partes ou dos credores mas antes a criao pelo prprio

    legislador de um regime especial com o objetivo de estabelecer um tratamento igualitrio

    para todos os credores, sendo que, nestes casos, so legtimas as alteraes aos crditos do

    Estado mesmo sem a aquiescncia deste71

    . No obstante, o que acontece na prtica que o

    credor (Estado) no recetivo a negociaes nos casos de afetao/reduo ou perdo dos

    crditos tributrios. Dando-se assim cumprimento pleno ao princpio da indisponibilidade

    dos crditos tributrios. Da, talvez, no se ter sentido necessidade de fazer qualquer

    meno aos crditos tributrios no plano de insolvncia, porque a deciso de negociar ou

    no est inteiramente72

    nas mos da Administrao Tributria.

    Em respeito ao princpio da indisponibilidade do crdito tributrio, defende Rui

    Duarte Morais73

    que num plano de pagamentos, em que a deciso da sua aprovao cabe

    66

    MORAIS, Rui Duarte. Os credores tributrios no processo de insolvncia In : Direito e Justia. - Lisboa.

    2005, Vol. 19, t. 2, p. 225. 67

    Nos termos do disposto no n. 1, al. i) do artigo 168. da CRP da exclusiva competncia da Assembleia

    da Repblica legislar sobre a criao de impostos e sistema fiscal. 68

    DL n. 53/2004, de 18 de Maro. 69

    Lei n. 16/2012, de 20 de Abril. 70

    Exemplos do exposto so os artigos 196., n. 1 e o 197. do CIRE. O primeiro enumera as providncias

    com incidncia sobre o passivo que o plano de insolvncia pode conter. O artigo 197. estabelece o regime

    supletivo de certos crditos. Em nenhum ponto do regime jurdico do plano de insolvncia existe qualquer

    regime imperativo dirigido salvaguarda dos crditos tributrios. As normas mencionadas confirmam a ideia

    que resulta deste silncio: para os efeitos do plano, os crditos tributrios no se distinguem dos outros

    crditos, nota de rodap n. 31,SERRA, Catarina. Crditos tributrios e princpio da igualdade (), op. cit., p. 89. 71

    Cfr., neste sentido, Acrdo do Supremo Tribunal de Justia (processo n. 08A3763), de 13 de Janeiro de

    2009, relator Fonseca Ramos e Acrdo do Supremo Tribunal de Justia (processo n. 4554/08.5TBLRA-

    F.C1.S1), de 2 de Maro de 2010, relator Silva Salazar, disponveis em http://www.dgsi.pt. SERRA, Catarina.

    Crditos tributrios e princpio da igualdade (), op. cit., pp. 89 e 90. 72

    Destacado nosso. 73

    MORAIS, Rui Duarte. Os credores tributrios no processo de insolvncia. Op. cit., p. 219.

  • 25

    integralmente aos credores, seja inaceitvel que o Estado reduza ou extinga os seus

    crditos pois, constituiria um autntico benefcio fiscal74

    .

    Porm, no que concerne exonerao do passivo restante, a sua concesso no

    depende dos credores. o juiz75

    que decidir, segundo a sua convico pessoal, nos termos

    previstos na lei, se aquele devedor merece o benefcio da exonerao do passivo restante,

    se aquele devedor merece ou no uma nova oportunidade, de forma a entrar no mercado

    liberto de dvidas e pronto para comear de novo.

    Obviamente que a Administrao Tributria (tal como os restantes credores) esto

    contra a concesso da exonerao do passivo restante. No entanto, cumpridos os requisitos

    e obrigaes exigveis para a concesso da exonerao do passivo restante, ao juiz que

    cabe a ponderao e, por fim, a deciso de conceder ou no ao devedor este instituto,

    conforme o disposto no artigo 244., n. 1 do CIRE.

    Deste modo, no Administrao Tributria que cabe esta deciso, no estando

    aqui em causa um perdo ou uma disponibilidade do crdito por parte do Estado, mas sim

    uma deciso por parte de um juiz, aplicando num quadro normativo da exonerao do

    passivo restante que visa prosseguir razes de interesse pblico especialmente relevantes

    que j assinalmos76

    .

    Apesar de a deciso estar sujeita ao parecer dos credores77

    e do fiducirio, o juiz78

    no est vinculado deciso dos credores, no s porque a letra da Lei nada diz, mas

    tambm porque as decises podem no ser coincidentes79

    .O Estado, tal como os outros

    credores, pode estar contra a concesso da exonerao do passivo restante e, mesmo assim,

    o juiz pode conceder esse benefcio ao devedor.

    74

    um perdo ou moratria relativos a dvidas fiscais decididas em assembleia de credores constituiriam um

    autntico benefcio fiscal, uma medida excecional a determinar a no cobrana do imposto ditada por

    interesses econmicos e sociais que se entenderia deverem prevalecer no caso concreto, MORAIS, Rui

    Duarte. A execuo fiscal. Op. cit. p. 220. 75

    O juiz como um rgo judicial e independente dos restantes que compe o Estado um rgo autnomo.

    Contudo, e por fora do princpio da legalidade o juiz decide em funo do caso concreto, da sua experincia

    e a sua deciso, por sua vez, relativamente discricionria, na medida em que aquele se encontra vinculado

    obrigao de fundamentar os atos decisrios (artigo 203. da CRP). 76

    Vide supra, proteo de capital humano, empreendedorismo, em particular. 77

    Incluindo o prprio Estado. 78

    o juiz que verifica se o devedor teve ou no um comportamento pautado pela honestidade, transparncia,

    boa-f e licitude no que respeita sua situao econmica e aos deveres inerentes ao processo de insolvncia

    para que seja merecedor do benefcio da exonerao do passivo restante. 79

    FERNNDES, Alberto de Carvalho. La exoneracin del pasivo restante en la insolvencia de las personas

    naturales en el derecho portugus. In: Revista de derecho concursal y paraconcursal: Anales de doctrina,

    praxis, jurisprudencia y legislacin, N. 3, 2005, p. 7.

  • 26

    No pretendendo alongar em demasia a nossa anlise desta questo, passaremos para a

    segunda razo que poder estar na origem da excluso dos crditos tributrios da

    exonerao do passivo restante: a fonte legal como elemento comum dos crditos que se

    encontram excludos.

    A este respeito, Catarina Serra80

    afirma que a razo que poder estar por detrs desta

    excluso remonta ao facto de existir um elemento comum, um critrio uniformizador para

    a excluso dos crditos elencados no n. 2 do artigo 245. do CIRE: todos eles tm fonte

    legal.

    3.3 O ELEMENTO COMUM DOS CRDITOS EXCLUDOS DA EXONERAO DO

    PASSIVO RESTANTE A FONTE LEGAL?

    Neste momento, cabe-nos analisar cada uma das alneas do supra citado artigo 245.

    do CIRE, de forma a perceber se tais crditos excludos provm ou no de fonte legal.

    No existem dvidas que provm, apenas, de fonte legal, as indemnizaes devidas

    por factos ilcitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa

    qualidade, os crditos por multas, coimas e outras sanes pecunirias por crimes ou

    contra-ordenaes e, finalmente, os crditos tributrios.

    Porm, quanto aos crditos por alimentos, temos dvidas se provm apenas de fonte

    legal.

    A obrigao alimentcia81

    pode, tambm, e como dispe o artigo 2014. do CC, ter por

    fonte um negcio jurdico, realizado por acordo entre as partes interessadas.

    Alm do mais, existem outros crditos que provm de fonte legal e no se encontram

    excludos na exonerao do passivo restante. A ttulo de exemplo, a responsabilidade direta

    dos scios para com os credores sociais numa sociedade por quotas, em que esteja

    estipulado no contrato que um ou mais scios, alm de responderem para com a sociedade

    nos termos do n. 1 do artigo 197. do CSC, respondem tambm perante os credores

    sociais at determinado montante; essa responsabilidade tanto pode ser solidria com a da

    sociedade, como subsidiria a esta e a efetivar apenas na fase da liquidao, n. 1 do

    80

    SERRA, Catarina. O regime portugus da insolvncia. Op. cit., p. 168. 81

    Note-se ainda que os casos de obrigao alimentcia proveniente de negcio jurdico podem ser a ttulo

    gratuito (atravs de doao) ou a ttulo oneroso, a que se refere o n. 1 do artigo 2014. do CC, PORTUGAL.

    Leis, decretos, etc.; LIMA, Fernando Andrade Pires de, anot; VARELA, Joo de Matos Antunes, 1919-2005,

    anot. Cdigo Civil anotado. [anot.] Fernando Andrade Pires de Lima, Joo de Matos Antunes Varela.

    Coimbra: Coimbra Editora, 1967- Vol. 5: Artigos 1796 a 2023. 1995, p. 605.

  • 27

    artigo 198. do CSC. Tambm os artigos 207., n.os

    1 e 2, 209., n. 1 e 268., n. 1, todos do

    CSC, estipulam crditos a efetuar pelos scios a ttulo individual e, tais crditos no se

    encontram no elenco dos crditos excludos da exonerao do passivo restante, apesar de

    todos advirem de fonte legal.

    Deste modo, entendemos, salvo melhor opinio, que este argumento no vlido para

    a excluso dos crditos tributrios da exonerao do passivo restante.

    Para alm disso, na nossa opinio, no existe qualquer correspondncia entre as

    excluses constantes nas alneas do artigo 245. do CIRE e as razes que fundamentam a

    exonerao, ou seja, a preservao do capital humano, a promoo do empreendedorismo e

    o correspondente incentivo criao de riqueza na sociedade.

    Diferentemente no 11 USC 533 do Bankruptcy Code, como referimos

    anteriormente, os emprstimos destinados educao e formao encontram-se excludos

    da discharge. Esta excluso, ao contrrio das excluses plasmadas no artigo 245. do CIRE

    coerente com as razes que fundamentam a exonerao do passivo restante, dado que

    tem em vista prosseguir um objetivo da exonerao, a preservao do capital humano.

    Esta coerncia est tambm presente no ordenamento jurdico alemo quando, no 302

    da Insolvenzordnung, se excluiu, no ponto 3 da referida norma, os emprstimos sem juros

    para o pagamento das dvidas com a insolvncia. Esta excluso tambm se coaduna, de

    uma certa forma, com as razes que fundamentam a criao da exonerao do passivo

    restante. Est aqui presente a ideia que o devedor insolvente tem de pagar a terceiros,

    aquilo que estes tenham despendido para que o devedor alcanasse o benefcio da

    exonerao do passivo restante, ou seja, deve-se pagar queles que contriburam para que

    se obtivesse a exonerao do passivo restante.

    Passaremos agora terceira razo que poder subjazer excluso dos crditos

    tributrios da exonerao do passivo restante: o interesse pblico.

  • 28

    3.4 O INTERESSE PBLICO

    A propsito do elenco das dvidas que se encontram excludas da exonerao do

    passivo restante, Maria Manuel Leito Marques e Catarina Frade referem que a razo que

    estar subjacente excluso das dvidas fiscais o interesse pblico82

    , sendo que este

    consistir na preservao do Estado Social, s alcanado com a arrecadao de receita83

    .

    No temos dvidas que essa excluso se fundamenta no interesse pblico. Contudo,

    consideramos que esse fundamento no poder ser nico para tal excluso, como teremos

    oportunidade de demostrar mais frente.

    Tambm Catarina Serra justifica tal facto, ou seja, a excluso das dvidas tributrias na

    exonerao do passivo restante, com a salvaguarda do interesse pblico. Para a autora, o

    legislador ter efetuado uma ponderao de interesses84

    e confronto, considerando nessa

    anlise que o interesse patrimonial de que titular o ente pblico merece ser equiparado a

    um interesse pblico e por isso, prevalece sobre o interesse do insolvente em retomar a sua

    vida livre de anteriores vnculos85

    .

    Acontece que, e ao contrrio do alegado pela autora, a exonerao do passivo restante

    no tem apenas como objetivo o interesse do indivduo, sendo mais abrangente, na medida

    em que tem em vista a prossecuo de outro interesse pblico, nomeadamente a

    preservao do bom funcionamento do mercado, o empreendedorismo, a preservao do

    capital humano.

    Deste modo, levanta-se a questo de saber qual dos dois interesses referidos deve

    prevalecer.

    O caminho a traar para a resposta pretendida dever ser norteado pelo princpio da

    proporcionalidade, que funcionar como limite interno ao exerccio do poder

    82

    MARQUES, M.M. LEITO e FRADE, Catarina, op. cit., p.95 83

    Porm, estas razes de interesse pblico dos crditos de imposto no se podem sobrepor, aos crditos de

    terceiros, isto , outros credores do mesmo devedor, sob pena de a insegurana criada no comrcio jurdico

    inquinar no prprio mercado financeiro, obstando concesso de crdito- to importante em determinados

    casos, em especial para a vida das empresas que so o chamado motor da economia, NETO, Vnia Lopes.

    Privilgios Creditrios Fiscais. In Fiscalidade, Revista de Direito e Gesto Fiscal. 2005, n24 (Outubro Dezembro), p. 77. 84

    Tambm RUI DUARTE MORAIS fala-nos da necessidade de uma ponderao de interesses referindo-se porm

    recuperao de empresas que com toda a certeza, h que perguntar se a administrao fiscal no deveria

    ser admitida a perdoar crditos de imposto quando tal se mostrar indispensvel recuperao de uma

    empresa. () [A] questo tender a ser perspetivada sob uma tica poltica. Primeiro, numa ponderao de interesses, saber se e quando o interesse pblico na recuperao de empresas dever ter prioridade sobre o

    direito do Estado a cobrar (tentar cobrar) os impostos legalmente devidos. A Execuo Fiscal. Op. cit., p.

    222. 85

    SERRA, Catarina. O regime portugus da insolvncia. Op. cit., p. 168.

  • 29

    discricionrio, sendo a prpria lei e o interesse pblico residente no esprito da mesma um

    limite externo quele. Tudo somado, caber saber, ou tentar perceber, se a excluso dos

    crditos tributrios da exonerao do passivo restante ou no uma medida proporcional

    para a obteno do fim que visa prosseguir, que ser, em suma, a arrecadao de receita

    fiscal e, consequentemente, a preservao do Estado Social.

    Analisando inicialmente a composio do princpio da proporcionalidade, este significa

    que o mal provocado com o meio usado no pode ser superior ao bem conseguido com

    esse meio, sob pena de, se assim no suceder, ser violado o seu contedo.

    Desta forma, podem distinguir-se trs subprincpios: a idoneidade, a necessidade e a

    proporcionalidade em sentido restrito86

    .

    O princpio da idoneidade ou adequao refere-se aptido objetiva ou formal de um

    meio adequado para realizar um fim. O que se requer um juzo de razoabilidade,

    bastando provar que razoavelmente, em circunstncias normais, o meio escolhido apto

    para alcanar o fim de interesse pblico que justifica a medida estadual.

    Quanto ao princpio da necessidade, trata-se aqui de avaliar se a medida necessria,

    no sentido de que no existe outra menos onerosa, capaz de assegurar o objetivo com igual

    grau de eficcia. Trata-se, ento, de verificar se no haver um outro meio que sendo, em

    princpio, to eficaz ou idneo para atingir o fim, seja sensivelmente menos agressivo, com

    menos custos, nuns casos, e como mais benefcios, noutros87

    .

    Finalmente, na proporcionalidade em sentido restrito pretende-se aferir se a medida

    adotada foi ponderada e equilibrada ao ponto de, atravs dela, serem atingidos

    substanciais e superiores benefcios ou vantagens para o interesse geral, quando

    confrontados com outros bens ou valores em conflito, equivalendo tal subprincpio justa

    medida, implicando que o rgo proceda a uma correta avaliao quer em termos

    qualitativos quer em termos quantitativos, de forma a no ficar aqum do resultado

    pretendido88

    .

    Face ao exposto, adiantamos desde j que consideramos que a excluso dos crditos

    tributrios da exonerao do passivo restante constituir uma medida desproporcional, pois

    o mal provocado com esta excluso, afigura-se, a nosso ver, muito superior ao bem

    conseguido com ela.

    86

    MIRANDA, Jorge, 1941. Manual de direito constitucional. 4 ed. Coimbra : Coimbra Editora, 1998. Vol. 4:

    Direitos fundamentais. 2008, p. 284. 87

    MIRANDA, Jorge, op. cit, pp. 284 e 285. 88

    MIRANDA, Jorge, op cit., p. 285.

  • 30

    Quando se excluem as dvidas fiscais da exonerao do passivo restante, atendendo ao

    peso que possuem, a exonerao perde necessariamente grande parte do seu efeito til, ou

    seja, os objetivos que esto na sua criao: a reabilitao do devedor, a preservao do

    capital humano, o empreendedorismo que, como vimos, trar previsivelmente mais receita

    fiscal.89

    . Concluindo, possivelmente, a medida da incluso dos crditos tributrios traria

    mais benefcios para o errio pblico do que a sua excluso efetivamente traz, no se

    verificando com esta medida, uma relao custo-benefcio positiva, revelando-se por isso

    manifestamente desproporcional. Contudo, tal resposta apenas poder ser dada atravs de

    uma anlise emprica.

    4. PRIVILGIOS CREDITRIOS E A SUA INFLUNCIA

    Para alm do princpio da indisponibilidade dos crditos tributrios, que ser a razo

    que suporta a excluso consagrada na alnea d) do artigo 245. do CIRE, os crditos

    tributrios esto repletos de privilgios creditrios que permitem Administrao

    Tributria ver os seus crditos serem liquidados com preferncia aos restantes. Assim, e na

    grande maioria dos casos, por fora destes tais privilgios, a Administrao Tributria

    recebe os seus crditos mesmo antes do encerramento do perodo de cesso da exonerao

    do passivo restante.

    certo que o Estado, por representar todos os cidados e por prosseguir o interesse

    pblico, tem determinadas regalias ou privilgios que os restantes credores no possuem.

    Desta forma, consideramos mais do que legtima a ideia de que a satisfao de alguns

    crditos, quando comparados com os restantes, se considera mais importante, o que levar,

    automaticamente, a que os primeiros tenham preferncia sobre os segundos, at pelas

    razes que j referimos.

    Deste modo, tais privilgios creditrios consubstanciam um desvio ao princpio da

    igualdade entre os credores90

    ,que tem por base o princpio de que a incapacidade do

    patrimnio do devedor para satisfazer os direitos de todos os credores comporta a

    89

    [P]orque em geral os empresrios que fracassam aprendem com os seus erros e tm mais xito em

    posteriores intentos, COMISSO EUROPEIA. Proyecto del Procedimento best Sobrerrestucturacin,

    quiebray nuevo comienzio informe final del grupo de .2003. disponvel em:

    http://ec.europa.eu/enterprise/policies/sme/files/sme2chance/doc/failure_final_es.pdf. [ Consult. 5 de Maro

    de 2013]. 90

    Par conditio creditorum.

  • 31

    necessidade de se proceder repartio dos bens segundo um critrio de

    proporcionalidade91

    .

    Porm, no panorama internacional, a adoo do Regulamento 1346/2000, que

    estabelece uma regulamentao uniforme de Direito Internacional Privado da Insolvncia,

    revela uma grande originalidade, como reala Antnio Frada de Sousa. Assim, com a

    adoo do Regulamento, esta desigualdade entre credores deixa de existir. Colocando tal

    regulamento em p de igualdade os crditos tributrios relativamente aos particulares dado

    que, quer uns quer outros podem reclamar os seus crditos por escrito. O que

    perfeitamente compreensvel tendo em conta os princpios da unidade e universalidade do

    processo de insolvncia estabelecidos no regulamento. Deste modo, os crditos tributrios

    sero graduados em conformidade com o que estabelecer a lex fori concursos, no se

    encontrando submetidos ao regime de graduao e de privilgios do Direito do Estado-

    Membro titular do crdito92

    .

    Voltando ao panorama nacional, o Legislador Portugus atribui privilgios aos

    crditos tributrios por estes visarem a prossecuo do interesse pblico. Contudo,

    necessrio que a Administrao Tributria tenha um comportamento pautado pela

    legalidade e, nessa conformidade, cumpra o seu dever de cobrana atempada, promovendo

    execues fiscais nesse sentido. Estas razes de interesse pblico dos crditos tributrios

    no se podem sobrepor, sem quaisquer regras, aos interesses dos restantes credores, sob

    pena de criar insegurana jurdica aos ltimos. Alm de que, em Portugal, na grande

    maioria dos casos, as garantias dos crditos tributrios no esto sujeitas a registo, o que

    leva a um efeito surpresa indesejvel para os restantes credores93

    , especialmente para os

    credores hipotecrios na grande maioria bancos, que concedem crditos hipotecrios

    tendo como consequncia uma grande insegurana no comrcio jurdico e instabilidade no

    prprio sistema financeiro94

    .Seguimos o caminho traado por Vnia Lopes Neto, segundo

    o qual apenas deveriam existir garantias para os crditos tributrios se as mesmas fossem

    registadas, sendo uma via idnea para acautelar a segurana jurdica, acabando-se com as

    aludidas surpresas indesejveis para os restantes credores95

    .

    91

    SERRA, Catarina. A Falncia no quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crdito. Op. cit., p. 153. 92

    SOUSA, Antnio Frada de, op. cit.,p. 63. 93

    Neste contexto, para uma maior segurana jurdica, apenas deveriam existir garantias para os crditos

    tributrios se as mesmas fossem registadas. 94

    NETO, Vnia Lopes, op. cit., p. 76. 95

    NETO, Vnia Lopes, op. cit., p. 77.

  • 32

    Para a autora este conflito de interesses (entre os credores privilegiados e os

    restantes) que deve ser analisado sob o ponto de vista da eficincia econmica das solues

    alternativas, para que se perfilhe aquela que menor prejuzo provoque, pois estando em

    causa interesses incompatveis, a escolha de um envolve inevitavelmente prejuzo para o

    outro96

    .

    De um ponto de vista de eficincia econmica, os excessivos privilgios creditrios

    concedidos Administrao Tributria conduzem, a nosso ver, a um desinteresse do rgo

    na cooperao no processo de insolvncia pois, quando se constitui parte em processo de

    insolvncia j sabe, antecipadamente, que os seus crditos vo ser pagos com prioridade

    em relao aos restantes credores, no contribuindo ou contribuindo muito pouco para o

    bom desfecho do processo, pelo menos na perspetiva dos restantes credores.

    Ao estar munida de privilgios creditrios, a Administrao Tributria acaba por ver

    os seus crditos satisfeitos, sem qualquer tipo de esforo, sendo um free rider dos outros

    credores, mais diligentes97

    .

    Esta passividade da Administrao Tributria perante o processo de insolvncia

    inaceitvel, uma vez que o Estado em nome do interesse pblico deveria, ser o primeiro a

    dar exemplo na participao do sacrifcio comum que os deveres de solidariedade

    econmica e social ditam que sejam feitos em ordem, por exemplo, da recuperao de

    empresas98

    .

    De forma a evitar este desinteresse do Estado no processo de insolvncia, ou melhor,

    nos objetivos que visam o processo da insolvncia, j o antigo CPEREF99

    tomou algumas

    medidas. Tal objetivo foi concretizado pelo artigo 152.100

    do referido diploma, que

    extinguiu os privilgios creditrios do Estado, das autarquias locais e das instituies de

    segurana social, passando os respetivos crditos a ser exigidos como crditos comuns.

    Contudo, o artigo 97. do CIRE101

    ao manter os privilgios de que fruem os crditos do

    Estado, das Autarquias Locais e da Segurana Social, ou seja, dos impostos constitudos ou

    vencidos h menos de 12 meses da data do incio do processo de insolvncia, acabou por

    introduziu um novo retrocesso relativamente a esta matria102

    .

    96

    NETO, Vnia Lopes, op. cit., p.77. 97

    NETO, Vnia Lopes, op. cit., p. 82. 98

    MORAIS, Rui Duarte. Os credores tributrios no processo de insolvncia. Op. cit., p. 219. 99

    Ponto n. 6 do prembulo do DL n. 132/93,de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF. 100

    Alterado pelo DL n. 315/98, de 20 de Outubro. 101

    DL n. 52/2004 de 20 de Abril. 102

    H aqui que salientar um pormenor no despiciendo. Tratando-se de privilgios gerais, extinguem-se os

    constitudos mais de doze meses antes da data do incio do processo de insolvncia. Como o nascimento

  • 33

    Nestes termos, cremos, em consonncia com Rui Duarte Morais, que se aplica e se

    mantm vlido o decidido pelo STJ, em sede de revista ampliada103

    , no domnio da

    legislao anterior, julgando que tal extino de privilgios no abarca os que garantem

    crditos do Estado104

    .

    Apesar dos impostos constitudos ou vencidos h menos de 12 meses da data do

    incio do processo de insolvncia permanecerem com privilgios creditrios (alnea a) do

    artigo 97. do CIRE a contrario), a verdade que os restantes crditos tributrios acabam

    por ter a possibilidade de gozar igualmente de privilgios dado que o novo regime geral

    permite administrao fiscal a qual dispe de uma ampla prerrogativa para constituir

    hipotecas105

    , manter, por esta forma, o carcter preferencial dos seus crditos, mesmo que

    muito antigos (salvaguardando os prazos prescricionais). Assim, temos que, em frustrao

    dos objetivos visados pelo legislador quando decidiu tornar efeito normal da declarao

    de insolvncia a abolio dos crditos associados aos crditos fiscais, estes mantero o

    seu carcter de crditos garantidos ou privilegiados, independentemente da respetiva

    antiguidade, sempre que a administrao fiscal seja diligente na constituio de hipotecas

    legais106

    .

    Para alm deste desinteresse demostrado, a respeito do bom desenlace do processo de

    insolvncia, bem como na recuperao do devedor, a inrcia da Administrao Tributria

    faz com que os restantes credores percam igualmente o interesse para impulsionarem o

    processo de insolvncia, dado que sabem a priori que tm um rival muito poderoso que

    ir, seguramente, ganhar esta batalha. Assim, se os privilgios creditrios fiscais j

    encerram em si mesmos uma grande dose de desigualdade face ao credor comum, mais

    beneficiados ficam com a sua excluso da exonerao107

    .

    (constituio) do privilgio contemporneo do nascimento do crdito a que est associado, tal significa que

    cessam os privilgios gerais relativos a tributos cujo facto gerador (ou a sua concluso, no caso dos impostos

    peridicos) tenha acontecido h mais de doze meses. Mas, relativamente aos privilgios creditrios especiais,

    o prazo conta-se relativamente data do vencimento da dvida de imposto assim garantida. Significa isto que,

    por exemplo, se mantm os privilgios creditrios especiais que garantem o pagamento da Contribuio

    Autrquica/IMI relativa a anuidades anteriores que tenham sido inscritas para cobrana (para utilizar a linguagem do artigo 744., n.1, do Cdigo Civil) no ano anterior ao da declarao de insolvncia, MORAIS,

    Rui Duarte. A execuo Fiscal. Op. cit., nota de rodap n. 513, p. 229. 103

    STJ, Jurisprudncia n. 1/2001, DR, I-A, 5/01/01, p. 52 e ss. 104

    MORAIS, Rui Duarte. Os crditos tributrios no processo de insolvncia. Op. cit., p. 219. 105

    Como se pode verificar pelo artigo 195. do CPPT quando o risco financeiro envolvido o torne

    recomendvel, o rgo de execuo fiscal, para garantia dos crditos tributrios, poder fundamentadamente

    constituir hipoteca legal ao penhor, de forma a que assegure a totalidade da dvida exequenda e acrescido. 106

    MORAIS, Rui Duarte. Os crditos tributrios no processo de insolvncia. Op. cit., pp. 220 e 221. 107

    MARTINS, Lus M.Recuperao de Pessoas Singulares. Vol. I, 2011, Almedina, p. 92.

  • 34

    Contudo, as regalias dos crditos tributrios no se ficam por aqui, tambm o regime

    da sua prescrio merece alguns comentrios, os quais sero dados no ponto que se segue.

    5. O REGIME DA PRESCRIO DAS OBRIGAES TRIBUTRIAS

    Segundo o exposto no n. 1 do artigo 48. da LGT, as dvidas tributrias prescrevem,

    salvo o disposto na lei especial, no prazo de oito108

    anos contados, nos impostos

    peridicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributrio e, nos impostos

    de obrigao nica, a partir da data em que o facto tributrio ocorreu, exceto no imposto

    sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributao seja

    efetuada por reteno na fonte a ttulo definitivo, caso em que aquele prazo se conta a

    partir do incio do ano civil seguinte quele em que se verificou, respetivamente, a

    exigibilidade do imposto ou o facto tributrio.

    Ou seja, aliado ao carter privilegiado dos crditos tributrios pertencentes mquina

    fiscal e sua excluso da exonerao, aqueles crditos gozam, ainda, de um regime

    claramente mais favorvel, em relao aos restantes crditos, prevendo a lei causas

    interruptivas e suspensivas que, nos crditos em questo, encontram-se tipificadas em

    maior nmero. Nesta lgica, enquanto no direito privado o instituto da prescrio encontra

    o seu fundamento na negligncia, no desinteresse do credor, que seriam interpretados

    como renncia tcita ao seu direito, no direito fiscal a prescrio encontra o seu

    fundamento na certeza e estabilidade das relaes sociais, que no se compadece com a

    cobrana de impostos cujos pressupostos, ou cujo vencimento, se situem em pocas muito

    remotas109

    .

    Ainda quanto ao regime da prescrio dos crditos tributrios, a Lei do Oramento de

    Estado para 2007110

    eliminou o anterior n. 2 do artigo 49. da LGT que disciplinava a

    converso da interrupo111

    da prescrio em suspenso112

    da prescrio sempre que o

    108

    Prazo esse que em geral era de 10 anos- artigo 34. do CPT, LOURENO, Lcio Augusto Pimentel, op.

    cit., p. 77. 109

    Cfr. MARTNEZ, Pedro Soares. Direito Fiscal. 7 ed. Coimbra, 1993, p. 274. No mesmo sentido,

    RODRIGUES, Benjamim Silva. A Prescrio no Direito Tributrio, in: AAVV, Problemas Fundamentais do

    Direito Tributrio, Vislis Editores, 1999, pp. 264-265. 110

    Lei n. 53-A/2006 de 29 de Dezembro que aprovou o Oramento de Estado para 2007. 111

    Note-se que com a interrupo o prazo comea a contar de novo, desaproveitando todo o tempo decorrido

    anteriormente.

  • 35

    processo estivesse parado por perodo superior a um ano por facto no imputvel ao sujeito

    passivo, passando a prever que a interrupo tem lugar uma nica vez, com o facto que se

    verificar em primeiro lugar, conforme dispe o n. 3 do artigo 49. da LGT.

    Contudo, esta regra no tem aplicao retroativa, no abrangendo as interrupes

    geradas at 31 de Dezembro de 2006. O mesmo ser dizer que as interrupes ocorridas

    antes daquela data, caso tenham ocorrido sucessivas causas de interrupo da prescrio,

    so contabilizadas na sua totalidade, desde que ocorram aps a cessao do efeito

    interruptivo das anteriores113

    . Assim, existindo uma interrupo, comea a correr novo

    prazo a partir do ato impeditivo, o qual se pode suspender, enquanto no existir deciso

    definitiva ou trnsito em julgado que ponha termo ao processo. Tal acontece nos casos de

    reclamao graciosa, impugnao judicial ou recurso judicial, que determinam a suspenso

    da cobrana da dvida exequenda, conforme o exposto no n. 1 do artigo 169. do CPPT.

    Acontece que, e de harmonia com o disposto no n. 2 do artigo 169. do CPPT, a

    reclamao graciosa, a impugnao judicial ou o recurso judicial s suspendem a cobrana

    coerciva se tiver sido prestada garantia ou se a penhora garantir a totalidade da quantia

    exequenda e do acrescido. Caso no haja lugar a prestao de garantia por parte do

    devedor, ou melhor, do executado, ou se a penhora no garantir a quantia exequenda, o