reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches

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  eflexão sobre o culto moderno dos deuses fe i)tiches

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Bruno Latour

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  • Reflexo sobre o culto moderno dos deuses

    fe(i)tiches

  • Coordenao Editorial Irm Jacinta Turolo Garcia

    Assessoria Administrativa Irm Teresa Ana Sofiatti

    Coordenao da Coleo Filosofia e Poltica Luiz Eugnio V scio

    FILOSOFIA(i.'J'POUTICA

  • Reflexo sobre o culto moderno dos deuses

    fe(i.)ti.ches

    Bruno Latour

    TRADUO Sandra Moreira

    ED Edltoro do Unlvorllldodo do Sagrado Coroio

    sTITUTO OE PSICOLOGIA - Uftt(;;-;;tiRI IOTECJ

  • Nota do tradutor

    O original francs grafa faitiche. Este termo, sem equiva-lente em portugus, condensa duas fontes etimolgicas que apresentam, ao mesmo tempo, fonemas quase idnticos: fait adj. feito; s.m. feito, faro e ftiche s.m. fetiche. Isro permite que se estabelea, em francs, um jogo suril entre os sentidos e as sonoridades das palavras faitiche e ftiche. O termo aqui suge-rido, fe(i)riche, busca conservar tais sutilezas, condensando, igualmente, os sentidos dos termos em portugus, "feito" e "fe-tiche", tomados na acepo proposta pelo autor, onde o primei-ro "parece remeter realidade exterior", e o segundo, "s cren-as absurdas do sujeito". A grande dificuldade, em portugus, consiste em reproduzir a sonoridade do termo em francs.

  • j;j~J::! Prefcio 1rJl!li~ Prlogo

    Sumrio

    Primeira parte: objetos-encantados, objetos-feitos* ,fll~1~ Como os modernos fabricam fetiches entre aqueles com quem

    entram em contato

    ;~,li Como os modernos conseguem construir seus prprios fetiches ia~~; Como os modernos esforam-se para distinguir os fatos e os fe-

    ' tiches sem, contudo, consegui-lo

    fj~l$ Como fatos e fetiches confundem suas virtudes, mesmo entre os modernos

    11~li Como a prtica dos fe(i)tiches escapa teoria (!~'~:~ Como estabelecer o perfil de um antifetichista liJl~! Como representar os fe(i)tches clivados dos modernos

    Segunda parte: Trans-pavores**

    JM!' Como obter, graas aos migrantes de periferia, as divindades de contrabando

    JJ$1 Como se privar da interioridade e da exterioridade ~!'1~:~ Como estabelecer o "caderno de encargos" das divindades iL~l~i Como transferir os pavores .~~~ Como compreender uma ao "superada pelos acontecimentos"

    * No original: objets-fes,objets-faits. Os termos se valem dos diferentes sentidos de dois fonemas quase idnticos, em francs: fe adj. aquilo que encantado, que possui poderes mgicos; s.f. fada, feiticeira, efait adj. feito; s.m. feito, fato. A traduo no consegue captar a sutileza desta relao. (N.T.) ** No original: transfrayeurs. Termo que condensa os sentidos de transferncias [tran.iferts] e pavores (frayeurs] conforme designado pela Psicologia. O termo original estabelece um duplo sentido sonoro en-tre trans/erts [transferncias] e trans-frayeurs [trans-pavores}. (N.T.)

  • Prefcio

    Tobie Nathan e ~a equipe receberam-me durante trs me-ses em suas consultas de etnopsiquiatria. Isabelle Stengers pe-diu-me que viesse explicar em seu seminrio o efeito desta expe-rincia, que tento definir h alguns anos, sobre a antropologia dos modernos. Philippe Pignarre props-me acolher esta refle-xo, muito provisria no mbito de sua coleo, a fim de acele-rar o dilogo entre aqueles que falam dos fatos e aqueles que fa-lam dos fetiches. Aceitei a oportunidade que me ofereceram de comparar certos efeitos da sociologia das cincias com alguns traos da etnopsiquiatria.

    Escolhi centrar minha comparao na noo multiforme de crena. De fato, nossos antepassados, adeptos do pensamento li-vre, ao zombarem de nossas crenas extravagantes e, ao mesmo tempo, das dos outros, nos legaram a ironia qual Voltaire, aps tantos, soube dar o tom. Mas para ridicularizar assim todos os cultos, para derrubar todos os dolos, seria preciso acreditar na ra-zo, nica fora capaz de refutar todas essas loucuras ... Como fa-lar simetricamente de ns como dos outros sem acreditar nem na razo nem na crena, respeitando, ao mesmo tempo, os fetiches e os faros? Esforcei-me para realizar isso, de forma um tanto desa-jeitada, definindo o agnosticismo como uma forma de no acre-ditar, em absoluto, na noo de crena.

    Por meio de seus prudentes conselhos, Isabelle Stengers, Antoine Hennion, milie Hermant, Tobie Nathan, tentaram tornar este texto menos bizarro, mas como eu os assessorei mal,

  • eles quase no conseguiram realizar tal tarefa, donde esse "ob-jeto compacto" que fala de outros objetos compactos.

    Agradeo igualmente aos pesquisadores do Cresal, de Saint-tienne, por suas teis sugestes.

  • Prlogo ~~1~~r:g;;~~;~~~~m~m~mmH%

    "Diz-se que os povos de pele clara que habitam a faixa se-tentrional do Atlntico praticam uma forma particular de culto s divindades. Eles partem em expedio a outras naes, apro-priam-se das esttuas de seus deuses, e as destroem em imensas fogueiras, conspurcando-as com as palavras 'fetiches! fetiches!', que em sua lngua brbara parece significar 'fabricao, falsida-de, mentira'. Ainda que afirmem no possuir nenhum fetiche e ter recebido apenas de si prprios a misso de livrar as outras na-es dos mesmos, parece que suas divindades so muito podero-sas. Na verdade, suas expedies aterrorizam e assombram os po-vos assim atacados, por meio de deuses concorrentes, que eles chamam de Mau Din, cujo poder parece ser to misterioso quan-to invencvel. Acredita-se que tenham erguido vrios templos e que os cultos realizados no interior dos mesmos sejam to estra-nhos, assustadores e brbaros quantO os realizados no exterior. No decorrer das grandes cerimnias, repetidas de gerao em gerao, eles destroem seus dolos a golpes de martelo; aps o que, declaram-se livres, renascidos, no tendo a partir de ento, nem ancestrais, nem mestre. Acredita-se que tirem grande be-nefcio destas cerimnias, pois, livres de todos os seus deuses, podem fazer, durante este perodo, tudo o que quiserem, combi-nando as foras dos quatro Elementos quelas dos seis Reinos e dos trinta e seis Infernos, sem se sentirem, de modo algum, res-ponsveis pelas violncias assim provocadas. Uma vez termina-das tais orgias, diz-se que entram em grande desespero, e que,

  • aos ps de suas esttuas destrudas resta-lhes apenas, acreditar-se responsveis por tudo que aconteceu e a que chamam 'humano' ou 'sujeito livre de si', ou ao contrrio, que no so responsveis por nada, e se encontram inteiramente submetidos ao que cha-mam 'natureza' ou 'objeto causa de tudo' - os termos se tradu-zem mal na nossa lngua. Assim, como que aterrorizados por sua prpria audcia e para pr fim ao seu desespero, restauram as di-vindades Mau Din que acabaram de destruir, oferecendo-lhes milhares de oferendas e milhares de sacrifcios, recolocando-as nos cruzamentos, protegendo-as com arcos de ferro, como faze-mos com o fundo dos tonis. Diz-se, por fim, que forjaram um deus sua imagem, isto , como eles, ora senhor absoluto de tudo que fabrica, ora inteiramente inexistente. Estes povos br-baros parecem no compreender o que agir quer dizer." (Relat-rio do conselheiro Dobale, enviado China pela corte da Co-ria, na metade do sculo XVIII).

  • Pri rte Objetos-encantados,

    objetos-feitos

  • Como os mod aqueles com quem

    am fetiches entre am em cantata

    A crena no um estado mental, mas um efeito das rela-es entre os povos; sabe-se disso desde Montaigne. O visitante sabe, o visitado acredita ou, ao contrrio, o visitante sabia, o vi-sitado o faz compreender que ele acreditava saber. Apliquemos este princpio ao caso dos modernos. Por todos os lugares onde lanam ncora, estabelecem fetiches, isto , os modernos vem, em todos os povos que encontram, adoradores de objetos que no so nada. Como tm que explicar a si prprios a bizarria des-ta adorao, onde nada de objetivo pode ser percebido, eles su-pem, entre os selvagens, um estado mental que remeteria ao que interno e no ao que externo. medida em que a frente de colonizao avanava, o mundo se povoava de crentes. mo-derno aquele que acredita que os oucros acreditam. O agnstico, ao contrrio, no se pergunta se preciso acreditar ou no, mas por que os modernos tm tanta necessidade da crena para en-trar em contato com os outros.

    A acusao, pelos portugueses, cobertos de amuletos da Vir-gem e dos santos, comea na costa da frica Ocidental, em algum lugar na Guin: os negros adoravam fetiches. Intimados pelos portugueses a responder primeira questo: "Vocs fabricaram com suas prprias mos os dolos de pedra, de argila e de madei-ra que vocs reverenciam?", os guineenses responderam sem hesi-tar que sim. Intimados a responder segunda questo: "Esses do-los de pedra, de argila e de madeira so verdadeiras divindades?", os negros responderam com a maior inocncia que sim, claro, sem

  • o que, eles no os teriam fabricado com suas prprias mos! Os portugueses, escandalizados mas escrupulosos, no querendo con-denar sem provas, oferecem uma ltima chance aos africanos: "Vo-cs no podem dizer que fabricaram seus fetiches, e que estes so, ao mesmo tempo, verdadeiras divindades, vocs tm que escolher, ou bem um ou bem outro; a menos que, diriam indignados, vocs no tenham miolos, e que sejam insensveis ao princpio de con-tradio como ao pecado da idolatria". Silhcio embotado dos ne-gros que, na falta de discernimento da contradio, provam, fren-te ao seu embarao, quantos degraus os separam da plena e com-pleta humanidade ... Pressionados pelas questes, obstinam-se a repetir que fabricaram seus dolos e que, por conseqncia, os mesmos so verdadeiras divindades. Zombarias, escrnio, averso dos portugueses frente a tanta m f.

    Para designar a aberrao dos negros da Costa da Guin e para dissimular o mal-entendido, os portugueses (muito catli-cos, exploradores, conquistadores, at mesmo mercadores de escravos), teriam utilizado o adjetivo foitio, originrio de feito, particpio passado do verbo fazer, forma, figura, configurao, mas tambm artificial, fabricado, factcio, e por fim, fascina-do, encantado. 1 Desde o princpio, a etimologia recusa-se,

    1. L-se no dicionrio Aurlio de portugus as seguintes defini-es (observar que em portugus feitio vem do francs, por in-termdio do presidente de Brosses): -feitio [de feito + io}; 1. adj. artificial, factcio; 2. postio, fal-so; 3. malefcio de feiticeiros; 4. ver bruxaria; ). ver fetiche; 6. encanto, fascinao, fascnio. Provrbio. "virar o feitio contra o feiticeiro"; - feitio [de feito + io]; forma, figura, configurao, feio; - fetiche; l. objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribu poder sobrenatural e se presta culto, dolo, manipanso; {depois, so os mesmos signi-ficados do francs}. Observar o aspecto admirvel do italiano, que d ao mesmo verbo fatturre o sentido de: 1. flsficar, adulterar; 2. faturar; 3. enfeitiar.

  • como os negros, a escolher entre o que toma forma atravs do trabalho e o artifcio fabricado; essa recusa, ou hesitao, con-duz fascinao, induz aos sortilgios. Ainda que todos os di-cionrios etimolgicos concordem sobre tal origem, o presi-dente de Brosses, inventor, em 1760, da palavra "fetichismo", agrega aqui o Jatum, destino, palavra que d origem ao subs-tantivo fada {fe}, como ao adjetivo, na expresso objeto-en-cantado {objet-fe]. 2

    Os negros da Costa Ocidental da frica, e mesmo os do inte-rior das terras at a Nbia, regio limtrofe do Egito, tm por objeto de adorao algumas divindades que os europeus chamam de fetiches, termo forjado por nossos comerciantes do Senegal, sobre a palavra portuguesa Fetisso (sic), isto , coisa encantada, divina ou que ptonuncia orculos; da raiz latina Fatum, Fanum, Pari. (p.l5)

    Qualquer que seja a raz preferida, a escolha cominatria permanece; escolha evocada pelos portugueses e recusada pelos negros: "Quem fala no orculo o humano que articula ou o ob-jeto-encantado? A divindade real ou artificial?" - "Os dois", respondem os acusados, sem hesitar, incapazes que so de com-preender a oposio. - " preciso que vocs escolham", afirmam os conquistadores, sem menor hesitao. As duas razes da pala-vra indicam bem a ambigidade do objero que fala, que fabri-cado ou, para reunir em uma s expresso os dois sentidos, que faz falar. Sim, o fetiche um fazer-falar.

    Pena que os africanos no tenham devolvido o elogio. Te-ria sido interessante que eles perguntassem aos traficantes por-tugueses se eles haviam fabricado seus amuletos da Virgem ou

    2. Brosses, Charles de. Du cu/te des dieux ftiches (1760), reedio Corpus des oeuvres de philosophie. Fayard, Paris: 1988. A eti-mologia de Charles de Brosses no retomada em nenhum ou-tro lugar. Trata-se de urna contaminao entre as palavras fadas e fetiches?

  • se estes caam diretamente do cu. - "Cinzelados com arte por nossos ourives", teriam respondido orgulhosamente. - "E por isso eles so sagrados?", teriam ento perguntado os negros. "Mas claro, benzidos solenemente na igreja Nossa Senhora dos Remdios, pelo arcebispo, na presena do rei". - "Se vocs reco-nhecem ento, ao mesmo tempo, a transformao do ouro e da prata no cadinho do ourives, e o carter sagr~do de seus cones, por que nos acusam de contradio, ns que no dizemos outra coisa? Para feitio, feitio e meio."- "Sacrilgio! Ningum pode confundir dolos a serem destrudos com cones a serem louva-dos", teriam respondido os portugueses, indignados, uma se-gunda vez, com tanta imprudncia.

    Podemos apostar, contudo, que eles teriam apelado a um telogo para livr-los do embarao no qual os mergulhara um pouco de antropologia simtrica. Teria sido necessrio um sbio sutil para ensin-los a distinguir "latria" e "dulia". "As imagens religiosas", teria pregado o telogo, "no so nada por si prprias, j que apenas evocam a lembrana do modelo que deve ser, so-mente ele, objeto de uma adorao legtima, enquanto que seus dolos monstruosos seriam, segundo suas declaraes, as prprias divindades, que vocs confessam fabricar impunemente." Por que se comprometer, alis, com discusses teolgicas com sim-ples primitivos? Envergonhado por tergiversar, tomado por um zelo sagrado, o telogo teria derrubado os dolos, queimado os fe-tiches e consagrado, em seguida, nos casebres desinfetados, a Ver-dadeira Imagem do Cristo sofredor e de sua Santa Me.

    Mesmo sem a ajuda deste dilogo imaginrio, compreen-demos bem que os negros idlatras no se opem aos portugue-ses sem imagens. Vemos povos cobertos de amuletos ridiculari-zar outros povos cobertos de amuletos. No temos de um lado iconfilos e do outro iconoclastas, mas de iconodlios e mais iconodlios. Entretanto, o mal-entendido persiste, pois todos se recusam a escolher os termos que lhes so prprios. Os portu-gueses remsam-se em hesitar entre os verdadeiros objetos de pieda-de e as mscaras patibulares cobertas de gordura e de sangue dos sacrifcios. Cada portugus, na Costa do Ouro, tomado pelo

  • zelo indignado de Moiss contra o veado de ouro. "Os dolos tm olhos e no vem, ouvidos e no escutam, bocas e no falam." Quanto aos guineenses, eles no percebem bem a diferena en-tre o fetiche derrubado e o cone colocado em seu lugar e espa-o. Relativistas at'ant la lettre, pensam que os portugueses agem como eles. justamente essa indiferena, essa incompreenso que os condena aos olhos dos portugueses. Esses selvagens no discernem nem mesmo a diferena entre "latria" e "dulia", entre seus fetiches e os cones santos de seus invasores; recusam-se cfJm-preender o abismo que separa a construo de um artefato feito pelo homem e a realidade definitiva daquilo que ningum ja-mais construiu. Mesmo a diferena entre a transcendncia e a imanncia parece escapar-lhes ... Como no v-los como primi-tivos, e o fetichismo como uma religio primitiva/ visto que es-ses selvagens persistem diabolicamente no erro?

    3. Pietz resume de man;it;;';~~~~~~~e a inveno do presidente de Brosses: "Fetishism was a radically nove! category: it offered an acheological explanation of the origin of religion, one that accoun-ted equally well wich theistic beliefs and nontheistic superstitions; it dencified religious supersttion wth false causal reasoning about physical nature, making people's relation to material ob-jeccs rather rhan to God the key question for hiscorans of reli-gion and rnychology; and ir reclassified the entire of ancient and contemporary religious phenomerna ( ... ). ln short rhe discourses about fetishism displaced the grear object of Enlightenmenc cri-ticisrn- religion- into a causative problematic suited to its own secular cosmology, whose "reality principie" was the absolute splt between the mechanistic-macerial realrn of physical nature (the blnd determnisms of whose events excluded any principie of teleological causality, that is, Providence) and the end-oriented human realm of purposes and desires (whose free incencionality discinguished its events as moral accion, properly determined by racional ideais rather chan by rhe material contingency of merely natural beings). Fetishisrn was the definitive rnistake of pre-en-lighcened mind: ir supersciciously attribuced intencional purpose and desire to material entiries of the natural world, while allowing social action to be determined by the (clercally interprered) wills

  • Trs sculos mais tarde, no Rio de Janeiro contemporneo, mestios de negros e de portugueses obstinam-se em dizer, no mesmo tom, que suas divindades so, ao mesmo tempo, cons-trudas, fabricadas, "assentadas" e que so, por conseqiincia, reais. Vejamos como a antroploga Patricia de Aquino compila e tra-duz o testemunho dos iniciados dos candombls:

    '

    of contingently personified things, which were, in truth, merely the externalized material sites fixing people's own capricious li-bidinal irnaginings (fancy in the language of that day )". Wil-liam Fetishism as Cultltral Discwrse. Pietz, Cornell University Press, Ithaca: 1993. p. 138. (0 fetichisrno era urna categoria radicalmente nova: oferecia uma explicao ateolgica da origem da religio que levava em conta tanto as crenas tesricas quanto as supersties no-testicas; associava a superstio religiosa com um falso raciocnio causal sobre a natureza fsica, fazendo da relao das pessoas com objetos materiais, e no com Deus, a questo-chave para os historiadores da religio e da mitologia; e reclassificava todos os fenmenos religiosos antigos e contem-porneos ( ... ). Em resumo, os discursos sobre fetichisrno substi-turam o grande objeto da crtica iluminista- a religio - por uma problemtica causativa que se adequava sua prpria cos-mologia secular, cujo princpio de realidade era a absoluta sepa-rao entre a esfera material-mecanicista da natureza fsica (os determinismos cegos cujos eventos excluam qualquer princpio de causalidade teleolgica, ou seja, a Providncia) e a esfera humana de propsitos e desejos (cuja intencionalidade livre dis-tinguia seus eventos corno ao moral, propriamente determina-da pelos ideais racionais e no pela contingncia material de meros seres naturais). O fetichisrno foi o erro definitivo da mente pr-iluminista: ele atribua, de modo supersticioso, propsito e desejo intencionais s entidades materiais do mundo natural, ao mesmo tempo em que permitia que urna ao social fosse deter-minada pelas vontades (dericamente interpretadas) de coisas contingentemente personificadas que eram, na verdade, mani-festaes concretas que estabeleciam as prprias fantasias libidi-nosas e extravagantes das pessoas.

  • Eu fui raspado (iniciado) para Osala em Salvador mas preci-sei assentar Yewa (que pediu atravs da divinao para ser assen-tada) e me Aninha (sua iniciadora) me mandou para o Rio de Janeiro porque j na poca Yewa era por assim dizer um Orisa em via de extino. Muitos j no conheciam mais os oro (Yo-ruba para palavras e ritos] de Yewa.

    Eu sou de Oba, Oba quase que j morreu porque ningum sabe assentar ela, ningum sabe fazer, ento eu vim para c (nes-te candombl) porque aqui eu fui raspada e a gente no vai es-quecer os awo [segredos em Yoruba] para fazer ela 4*

    O antifetichismo que repousa em ns no pode suponar o despudor destas frases. Escondam essa fabricao, esse fazer, que ns no conseguiramos ver! Como vocs podem confessar de ma-neira to hipcrita que preciso fabricar, assentar, situar, construir essas divindades que se apoderam de vocs e que, entretanto, lhes escapam? Vocs ignoram ento a diferena entre construir o que provm de vocs e receber o que provm de outro lugar qualquer?

    Por todos os lugares onde desembarcam, os portugueses, chocados com o mesmo despudor, tiveram que compreender o fe-cichismo relacionando-o, ora ingenuidade, ora ao cinismo. Se vo-cs reconhecem que fabricam inteiramente seus fetiches reconhe-cem, ento, que manejam os fios como faria um marionetista.

    4. Patricia de Aquino (comunicao pessoal). Agradeo-lhe por ter me autorizado a utilizar estes dados extrados de seu DEA (Di-plme d' studes approfondies I Diplomas de estudos aprofunda-dos) '"la construction de la personne dans le candombl", Rio de Janeiro: Museu Nacional. Ver tambm Patricia de Aquino; Jos Flavio Pessoa de Barros ( 1994), ""Leurs noms d 'Afrique en cerre d'Amrique", Not~velle retwe d'ethnopsychiatrie, vol. 24, p. 111-25. '"Um Orisa em via de extino" uma expresso da ecologia que designa as espcies em via de desaparecimento! * Em portugus no original. As palavras entre parnteses so do original francs. (N.T.)

  • Vocs os manipulam furtivamente para impressionar os outros. Manipuladores das crenas populares, vocs se juncam portanto, a essa legio de sacerdotes e de falsificadores que compem, aos olhos dos anticlericais, a longa histria das religies. Ou ento, se vocs se deixam surpreender por suas prprias marionetes, e acrescentam f aos disfarces das mesmas (ou anres, aos seus pr-prios), isto prova uma tal ingenuidade que vocs engrossaro as

    ' massas eternamente crdulas e ludibriadas que formam, sempre aos olhos lcidos, a massa de manobra da histria das religies.5

    Da boca dos Fontenelle, dos Voltaire, dos Feuerbach, sur-ge sempre a mesma escolha cominatria: "Ou bem vocs mani-pulam cinicamente as cordas, ou bem se deixam enganar". Mais ingenuamente ainda: "Ou bem isso construdo por vocs ou bem verdade".6 E os adeptos raspados do candombl a insisti-rem tranqilamente:" Eu sou de Dada mas como no se sabe fa-zer Dada, a gente entrega a Sango ou Osala pra eles pegarem a cabea da pessoa"* ... Enquanto os adeptos designam algo que

    5. Rejeitando a crena ingnua na crena ingnua, Paul Veyne no escapa a essa alternativa, seno fazendo de rodas as cultu-ras, criadoras demirgicas de mundos incomensurveis sem re-lao entre si, e sem relao com as coisas , les Grecs ont-ils cru leurs mythes? Essai mr l'imagination constituante, Paris: Le Seuil: 1983. "Basta dar imaginao constituinte dos homens esse poder divino de constituir, isto , de criar sem modelo pr-vio" (p.13 7). A diferena entre saber e crer, mito e razo, en-contra-se abolida, mas ao preo de uma virada geral da imagi-nao criadora, ligada, alis, sem ambigidade vontade de potncia nietzschiana. "Elas [as doutrinas mticas} provm da mesm~ capacidade organizacional das obras da natureza; uma rvore no verdadeira nem falsa; ela complexa" (p. 132). So-bre o modelo do "poder divino", que inspira os mais implac-veis anti-religiosos, ver a ltima parte. 6. a "m f" do "canalha" sartriano, permitindo, contudo, ope-rar a passagem de uma escolha a outra. Veremos mais adiante o que pensar destes argumentos. *Em portugus no original. (N.T.)

  • no nem inteiramente autnomo nem inteiramente constru-do, a noo de crena quebra em duas partes essa operao deli-cada, essa ponte frgil lanada entre fetiche e fato, e permite aos modernos ver em todos os outros povos, crentes ingnuos, h-beis manipuladores ou cnicos que iludem a si prprios. Sim, os modernos recusam-se a escutar os dolos, quebram-nos como co-cos, e de cada metade, retiram duas formas de logro: pode-se en-ganar os outros, pode-se enganar a si prprio. Os modernos acre-ditam na crena para compreender os outros; os adeptos no acreditam na crena nem para compreender os outros nem para compreender a si prprios. Poderamos recuperar para nosso uso estas maneiras de pensar?

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  • Como definir um antifetichista? aquele que acusa um ou-tro de ser fetichista. Qual o contedo desta denncia? O fetichis-mo, segundo a acusao, estaria enganado sobre a origem da fora. Ele fabricou o dolo com suas mos, com seu prprio trabalho hu-mano, suas prprias fantasias humanas, mas ele atribui este traba-lho, estas fantasias, estas foras ao prprio objeto por ele fabrica-do. O fetiche, aos olhos do menor dos ancifetichistas, age, se as-sim podemos dizer, maneira de um retroprojetor. A imagem produzida pelo professor que colocou sua transparncia no vidro fosco da lmpada, mas ela "parece" jorrar da cela em direo ao au-ditrio, como se nem o professor, nem o retroprojeror tivessem nada a ver com isso. Os espectadores, fascinados, "atribuem ima-gem uma autonomia" que ela no possui. Derrubar o fetichismo equivale, portanto, a inverter a inverso, a recificar a imagem e restituir a iniciativa da ao ao seu verdadeiro mestre. No cami-nho, contudo, o verdadeiro mestre desapareceu no crajeto! O ob-jeto que no era nada realiza algo. Quanto origem da ao, eis que ela se perde em uma disputa terrivelmente emaranhada.

    Assim que o antifetichista desvenda a ineficcia do dolo, ele mergulha, na verdade, em uma contradio da qual no sai mais. No momento em que se quer que o fetiche no seja nada, eis que o mesmo comea a agir e a deslocar tudo. Ele capaz, em particu-lar, de inverter a origem da fora. Melhor ainda, j que, segundo os antifetichistas, o efeito do fetiche s tem eficcia se seu fabricante ignorar a origem do mesmo, ele deve ser capaz de dissimular total-mente sua prpria fabricao. Graas ao fetiche, com um s golpe de condo, seu fabricante pode se metamorfosear de manipulador cnico em enganador de boa f. Assim, ainda que o fetiche no seja

    nas mos do Cristo morto, a enorme chaga em seu flanco, as marcas de lanas ou de pregos cravados com martelo, diferem dos ferimentos infligidos a martelo sobre a face de mrmore da me de mrmore, por um louco perigoso, no domingo de Pente-costes de 1972, ou do golpe desferido em Moiss pelo prprio es-cultor, lanando sobre ele o martelo e cinzel, ordenando-o a fa-lar? Ou dos golpes que o calharam?", p.203.

  • nada seno aquilo que o homem faz dele, ele acrescenta, contudo, al-guma coisa: ele inverte a origem da ao, ele dissimula o trabalho hu-mano de manipulao, ele transfwma o criador em criatura.8

    Mas o fetiche faz ainda mais: ele modifica a qualidade da ao e do trabalho humanos. Entretanto, ao revelar que s a ao do homem d voz e fora aos objetos, o pensador crtico deveria inverter a origem inversa da fora e, colocar fim, de uma vez por todas, iluso dos fetiches. Aquele que acreditas-se (ingenuamente) escutar vozes, se transformaria em ventrlo-quo. Ao tomar conscincia de seu jogo duplo, ele se reconcilia-ria consigo mesmo. Aquele que acreditasse depender das divin-dades, perceberia que est, na verdade, sozinho com sua voz in-terior, e que aquilo que as divindades possuem, foi dado apenas por ele. Enfim desenganado, ele veria que no h nada a ser vis-to. Ele teria dado fim sua alienao- mental, religiosa, eco-nmica, poltica - visto que nenhum alien viria mais parasitar a construo de suas mos calejadas e de seu esprito criador. Entusiasmado pela denncia crtica o homem se encontraria, enfim, nico senhor de si prprio, em um mundo para sempre esvaziado de seus dolos. O fogo que Prometeu furtara aos deu-ses, o pensamento crtico furtaria ao prprio Prometeu. O fogo teria origem apenas no homem, e somente nele.

    Somente nele? No totalmente, e a que as coisas se com-plicam novamente. Tal qual um escrivo que tem que dividir a herana de um incestado, o pensador crtico no sabe jamais a q11em restituir a fora, atribuda, por erro, aos fetiches. neces-srio devolv-la ao indivduo, senhor de si como do Universo, ou a uma sociedade de indivduos? Caso responda-se que preciso devolver sociedade o que a ela pertence, perde-se novamente o domnio. A herana dos fetiches, agora recuperada, dispersa-se em uma nuvem de herdeiros, todos eles, legtimos. Aps ter in-vertido a inverso da idolatria, aps ter "retroprojetado" a retro-

    8. Retomo aqui o argumento esboado por Hennion, Antoine; Latour, Bruno (1993). "Objet d'art, objet de science. Note sur les limites de l'ant-ftichisme". Sociologie de l'art, v. 6, p. 7-24.

  • projeo da fora, no comigo, o indivduo trabalhador, que se pode deparar de imediato, mas com um grupo, uma multido, uma colecividade. Sob a fantasia do fetiche, agora dissipada, o humano esclarecido percebe que, por isso, no est mais sozi-nho, que divide sua existncia com uma multido de agentes. O alien que se acreditava eliminado, retorna sob a forma terrivel-mente complicada da multido social. O ator humano nada fez seno trocar uma transcendncia por outra, como se v bem em Durkheim, nas mos do qual, o social aparece um pouco menos opaco que a religio que explica e que ofusca. Marx, em sua c-lebre definio do fetichismo e da mercadoria, ilustra, primoro-samente, como prolifera aquilo que, entretanto, nada faz:

    somente uma determinada relao social dos homens entre si que assume a forma fanrasmagrica de uma relao entre as coisas. Para encontrar uma analogia para este fenmeno, temos de ir busc-la na regio nebulosa do mundo da religio. Aqui, os produtos do crebro humano tm o aspecto de figuras autno-mas, dotadas de vida prpria, que mantm relaes entre si e com os homens. D-se o mesmo com os produtos da mo huma-na no mundo da mercadoria. o que chamo por fetichismo, que adere aos produtos do trabalho, to logo se apresentam como mercadorias, fetichismo inseparvel deste modo de produo.9

    A antropologia econmica testemunha disso de forma bas-tante eloqente; as relaes entre os homens, fetichizadas ou no por intermdio das mercadorias, no parecem mais simples nem mais transparentes que as relaes entre as divindades. 10 Se as mer-cadorias perdem sua aparente autonomia, ningum recupera, em funo disso, o domnio, muito menos o trabalhador incansveL

    9. Marx, Karl. !e Capital, Paris: p. 69. t. 1. Gamier-FLammarion. 10. Ver, por exemplo, Thomas, Nicholas. Entang!ed Objects Exchange, Material Cultt(Ye and Colonialism in the Pacific. Univer-sity Press, Cambridge, Mass: Harvard 1991, e sobretudo o cls-sico Polanyi, Karl. la Grande Transformation. Aux origines politi-ques et conomiques de 1zotre temps. Paris: Gailimard, 1983. (1945).

  • O mundo sem fetiche povoado por tantos aliens quanto o mundo dos fetiches. A inverso da inverso d acesso a um uni-verso to instvel quanto o mundo pretensamente invertido pela crena ilusria nos fetiches. Os antifetichistas, tanto quanto os fe-tichistas, no sabem quem age e quem se engana sobre a origem da ao, quem senhor e quem alienado ou possudo. Assim, longe de ser esvaziado de sua eficcia, mesmo encre os modernos, o fetiche parece agir constantemente para deslocar, confundir, in-verter, perturbar a origem da crena e a certeza de um domnio possvel. A fora que se quer retirar ao fetiche, ele a recupera no mesmo instante. Ningum acredita. Os brancos no so mais an-tifetichistas do que os negros so fetichistas. Acontece que, so-mente os brancos estabelecem dolos por toda parte, entre os outros, para em seguida destru-los, multiplicando por toda parte, entre eles mesmos, os operadores que disseminam a origem da ao. Sim, os antifetichistas, como os fetichistas, prestam aos dolos um culto bastante estranho, que precisamos esclarecer. li

    11. Ao faz-lo, dou continuidade ao movimento iniciado por Boltanski Luc; Thvenot, l.aurent. De la justi/ication. les conomies de la grandeur, Paris: Gallimard, 1991, que conduz da sociologia crtica sociologia da crtica. Pode-se dizer mesmo que estendo a anlise reflexiva feita por alguns antroplogos, sobre o prprio conceito de fetiche. A palavra traz aos antroplogos ms lem-branas, e no aparece nem mesmo em Bonte, Pierre; Izard, Mi-chel (Org.). Dictionnaire de l'ethnologie et de l'anthropologie, Paris: PUF, 1991. O pequeno livro, de Alfonso Iacono, Le Ftichisme. Histoire d'tm concept, Paris: PUF, 1992, reconstri a histria do fe-tichismo em corno da noo de recusa do outro e desconstri em detalhes o livro de Charles de Brosses. Contudo, como na obra de Pietz, William (1993 ). op.cit., ele no saberia nos guiar muito longe, visto que ele nunca questionou as virtudes do antifetichis-mo. Se ambos criticam, com razo, o mito racista de uma reli-gio primitiva e as extravagncias sistemticas de Auguste Com-te, esses dois livros tomam com a maior seriedade e sem o menor distanciamento, o partido de Marx e de Freud. Nas mos destes, as cincias sociais, nicas livres das fantasias da crena, julgam todos os outros, negros e brancos.

  • Como os mo os fatos e os fetich

    para distinguir ntudo, consegui-lo

    Por que os modernos devem recorrer a formas complica-das a fim de acredirar na crena ingnua dos outros ou no seu prprio saber sem crena? Por que devem fazer como se os ou-tros acreditassem nos fetiches enquanto eles prprios pratica-riam o mais austero antifetichismo? Por que no confessar sim-plesmente que no h nem fetichismo nem antifetichismo, e re-conhecer a eficcia singular desses "deslocadores de ao" aos quais nossas vidas esto intimamente 1igadas?'2 Porque 'os mo-dernos esto muito ligados a uma diferena essencial entre fa-tos e fetiches. A crena no tem por objecivo nem explicar o es-tado mental dos fetichistas nem a ingenuidade dos antifetichis-tas. Ela est ligada a algo inteiramente diverso: a distino do saber e da iluso, ou antes, como veremos mais adiante, a sepa-rao entre uma forma de vida prtica que no faz essa distin-o, e uma forma de vida terica que a mantm.

    Olhemos mais de perto como funciona o duplo repertrio que a noo de crena est encarregada de manter em comparti-

    12. O maior interesse do livro de Cassin, Barbara. I'Effit sophis-tiq!(e. Paris: Gallimard, 1995, descrever positivamenre os sofis-tas, que no teriam jamais acreditado na crena, ao invs de rea-bilit-los, segundo a maneira usual, imputando-lhes sua ligao aos dissimulados. Ela desenha a "cena primitiva" onde se que-brou (pela primeira vez?) a sinonmia emre o que fabricado e o que real.

  • mentos separados. A partir do momento em que o antifetichis-ta denunciou a crena ingnua, com o intuito de revelar o traba-lho do ator humano, projetado, por erro, sobre dolos de madei-ra e de pedra, denunciar, por conseguinte, a crena ingnua que o ator individual humano acredita poder atribuir sua prpria ao. Nada fcil, aos olhos dos anrifetichistas, comportar-se como um ator comum! No seu ritmo, no se consegue jamais acompanhar a dana. Se vocs acreditam ser manipulados pelos dolos, vamos mostrar-lhes que vocs os criaram com suas pr-prias mos; mas se vocs se vangloriam orgulhosamente de po-der acreditar to livremente, vamos mostrar-lhes que vocs so manipulados por foras invisveis e organizados sua prpria re-velia. O pensador crtico triunfa duplamente sobre a ingenuidade consumada do ator comum: ele v o trabalho invisvel que o ator projeta sobre as divindades que o manipulam, mas v tambm as foras invisveis que movimentam o ator quando ele acredita estar manipulando livremente! (0 pensador crtico, filho das Luzes, v-se bem, no pra de manipular os invisveis; o grande libertador multiplica os aliens).

    Como os modernos fazem para enquadrar a ao dos atores comuns por meio de duas denncias to contraditrias? que, ao invs de utilizar um s operador, eles utilizam dois: o objeto-encan-tado de um lado, o objeto-Jeito do outro. Quando denunciam a cren-a ingnua dos atores nos fetiches, os modernos se servem da ao humana livre, centrada no sujeito. Mas quando denunciam a cren-a ingnua dos atores na sua prpria liberdade subjetiva, os pen-sadores crticos se servem dos objetos tal como so conhecidos pe-las cincias objetivas que eles estabeleceram e nas quais confiam plenamente. Eles alternam ento, os objetos-encantados e os obje-tos-fetos, a fim de tornarem a se mostrar duplamente superiores aos ingnuos comuns.

    Como a situao arrisca complicar-se rapidamente, um es-quema poder nos servir de guia. Consideremos, inicialmente, a primeira denncia crtica. O ator humano cr-se determinado pela fora dos objetos, fora esta que lhe prescreve um comporta-mento. Felizmente, o pensador crtico controla e denuncia o du-

  • plo jogo do ator que, "na verdade", projeta sobre um objeto iner-te a fora de sua prpria ao.' 3

    Poderamos acreditar que o trabalho de denncia termina-ra. Sbrio, liberado e libertado, o sujeito agora retoma a energia que lhe pertencia e recusa, s suas construes imaginrias, a au-tonomia que elas nunca souberam possuir. Entretanto, o trabalho de denncia no pra por a, e retomado em seguida, mas, no outro sentido. O sujeito humano livre e autnomo se vangloria um pouco rpido demais de ser a causa primeira de todas as suas pro-jees e manipulaes. Felizmente, aqui ainda, o pensador crti-co, infatigvel, revela, desta vez, o trabalho da determinao sob as iluses da liberdade. O sujeito acredita-se livre, quando "na verdade" levado de um lado para outro.

    Ator humano revelado como livre mon,pvlador

    Denncia crtica: a foro projetodo pelo olor sobre um objeto que no foz nocla

    Crena ingnua no foro do objeto sobre o olOr humano

    Objeto tomado como projao Fetiche

    Figura 1: a primeira denncia crtica inverte as direes da crena, re-velando, sob a fora do objeto, a projeo de seu prprio trabalho por um ator humano livre e automanipulado.

    13. Retomo aqui o argumento desenvolvido, de maneira mais aprimorada, por Hennion, Antoine./a Passion musica/e. Une socio-logie de la mdiation. A.-M. Paris: Mtaili, 1993. p. 227 s.

    lll:i III uI u OE PSICOLOGIA - UfK~ BIBLIOTECA

  • Para explicar tais determinaes, recorreremos aos fatos objecivos tais como nos so revelados pelas cincias naturais, hu-manas ou sociais. As leis da biologia, da gentica, da economia, da sociedade, da linguagem, vo calar o sujeito que se acredita-va senhor de seus atos e gestos.

    Ator humono manipulado pelas determinaes objetivo

    Crena ingnuo no lo

  • sujeito; quatro listas que no devem se confundir sob hiptese al-guma. Dito de maneira brutal, o pensador crtico colocar na lista de objetos-encantados tudo aquilo em que ele no acredita mais- a religio, claro, mas tambm a cultura popular, a moda, as supers-ties, a mdia, a ideologia, etc.- e, na lista dos objetos-causa, tudo aquilo em que acredita com1ictamente- a economia, a sociologia, a lingstica, a gentica, a geografia, as neurocincias, a mecnica, etc. Reciprocamente, ele vai compor seu plo sujeito, inscrevendo no crdito todos os aspectos do sujeito pelos quais tem considera-o- responsabilidade, liberdade, invenrividade, intencionalidade, etc. -e no dbito, tudo o que lhe parece intil ou malevel- os es-tados mentais, as emoes, os comportamentos, as fantasias, etc. Segundo os pensadores, a extenso, como o contedo das listas, iro variar, mas no essa quadriparrio.

    PLO SUJEITO

    11: Ator numono determinado

    Primeiro denncia crtico

    Segundo denncia crtico PLO OBJETO

    Figura 3: o duplo jogo das duas denncias crticas e seu duplo reper-trio, mantidos distncia pela crena na crena, a qual no remete nem a uma paixo nem a uma capacidade de conhecimento, mas for-ma de vida total dos modernos.

    Assim, a crena ingnua, aos olhos dos antifetichistas, en-gana-se, a cada vez, de direo. Ela atribui aos objetos-fetiche um poder que vem da nica engenhosidade humana - algo que lhe bruscamente revelado pela primeira denncia (no alto da

  • figura 3); ela se atribui uma liberdade que lhe concedida por um grande nmero de determinaes causais, que agem em des-peito do que isso lhe provoca, revelando-lhe, de forma compla-cente, a segunda denncia crtica (parte inferior da figura 3). Mas a semelhana entre as duas formas de procedimento no surpreende jamais o esprito, pois o objeto-feito, que serve se-gunda crtica, provm de uma lista de slidas causas objetivas, enquanto que o objeto-encantado, que denunciado na primei-ra, apenas a projeo de uma miscelnea de crenas mais ou menos vagas sobre um substrato sem importncia. Inversamen-te, o sujeito ativo que serve primeira denncia se v confiado ao papel de um ator humano em revolta contra a alienao, e que reivindica corajosamente sua plena e inteira liberdade, enquan-to que aquele da segunda denncia, constituiu uma marionete despedaada por todas as determinaes causais que a mecani-zam em todos os sentidos. Com a condio de manter uma estri-ta separao entre a parte superior e a inferior da figura 3, o pen-samento crtico no ter, portanto, nenhuma dificuldade em pretender que o ator humano livre e autnomo crie seus prprios fetiches e que, ao mesmo tempo, seja completamente definido pelas determinaes objetivas reveladas pelas cincias exatas ou sociais.

    Podemos agora chamar por crena o conjunto da operao es-tabelecida pela figura 3. Tornamos a compreender que a crena no remete, de modo algum, a uma capacidade cognitiva, mas a uma configurao complexa pela qual os modernos constroem a si prprios ao proibirem, com o objetivo de compreender suas aes, o retorno aos fetiches, os quais, como veremos, todavia eles utilizam.

  • Como fatos e virtudes, mes

    suas

    Portanto, a crena, longe de explicar as atitudes dos feti-chistas, longe de justificar as atitudes dos antifetichiscas, permi-te manter distncia dois repertrios de ao opostos, e mesmo contraditrios, que esco encarregados de dissimular o ponto transposto, desde sempre, pela tranqila afirmao dos negros da Costa do Ouro, segundo a qual eles constroem aquilo que os supera. Ora, os modernos, mesmo para produzir as cincias exa-tas, no se utilizam jamais desta diferena, sobre a qual parecem, conrudo, realmente insistir. A partir do momenro em que se suspende o aparato da crena, percebe-se que todos os cientistas falam como os negros, condenados ao silncio, pelos portugue-ses, um pouco rpido demais.

    Escutemos, por exemplo, Louis Pasteur, um cientista de la-boratrio, defensor daquilo que demonstrvel pela prova; falar, no de fatos e fetiches, mas daquilo que coma forma em seu la-boratrio. Ao aplicar a definio que damos sobre a crena, deve-ramos intim-lo a escolher entre construtivismo e realismo. Ou bem ele construiu socialmenre seus fatos e acrescenta ao repert-rio do mundo apenas suas fantasias, preconceitos, hbitos e me-mria, ou bem os fatos so reais, mas ento, ele no os fabricou em seu laboratrio. Esta contradio parece to fundamental que ocupa, ininterruptamente, h trs sculos, a filosofia das cincias.

    Ora, ela ocupa muito pouco Pasteur, que se obstina, como o bom negro, a no compreender a intimao, a nem mesmo ver a dificuldade. Ele afirma, no mesmo tom que os negros, que o fermento de seu cido ltico real porque montou com precau-

  • o, com suas prprias mos, a cena onde ele- o fermento- se revela por si s. Indignao dos realistas: "Voc concede muito aos construtivistas ao confessar que fez tudo sozinho!" Simtrica indignao dos construtivisras sociais: "Como pretender que o fermento do cido ltico exista por si s e sem voc, enquanto voc maneja seus fios!". E Pasteur obstina-se tranqilamente, como a velha senhora raspada entrando no candombl para "as-sentar" ou para "fazer" sua divindade:

    No decorrer desta lembrana, refleti sobre hiptese de que a nova levedura est organizada, que se trata de um ser vivo e que sua ao qumica sobre o acar correlativa de seu desenvolvi-mento e de sua organizao. Se me dissessem que nestas conclu-ses vo11 alm dos fatos, responderia que isco verdade, medida que me posiciono francamente em uma onkm de idias que, falando rigorosamente, no podem ser irrefucavelmente demonstradas. Eis minha maneira de ver: Toda vez que um qumico ocupar-se desces fenmenos misteriosos, e se tiver a felicidade de dar um passo importante, ele ser insthrtivamente levado a colocar as causas pri-meiras de cais fenmenos em uma ordem de reaes em relao aos resultados gerais de suas prprias pesquisas. o movimento lgico do esprito humano em todas as questes controversas (sem grifo no original). '4

    No se poderia ser mais construtivista. Thomas Kuhn ou Harry Collins poderiam ter redigido estas frases, onde se revela, com primor, o trabalho do cientista para construir seus faros, ne-les projetando seus hbitos profissionais, seus pressupostos, at mesmo seus preconceitos, os hbitos do grupo ao qual pertence, os instintos de seu corpo, a lgica do esprito humano. Infeliz-mente, para os socilogos das cincias, Pasteur acrescenta, sem nenhuma soluo de continuidade, a seguinte frase:

    14. A anlise completa e as referncias encontram-se em "Les ob-jets ont-ils une hstoire? Rencontre de Pasteur ec de Whitehead dans un bain d'acide lactique", ln: Stengers lsabelle (org.). !'Ef-ftt Whitehead, Paris: Vrn, 1994. p. 197-217.

  • Ora, suponho que no ponto em que se encontram meus co-nhecimentos a respeito da questo, toda aquele que julgar com im-parcialidade os resultados deste trabalho e daqueles que publica-rei em breve, reconhecer, como eu, que a fermentao se mostra aqui, correlativa da vida, da organizao dos glbulos, no da morre e da putrefao destes glbulos, tanto quanto tal fermen-tao no surge como fenmeno de contato, onde a transforma-o do acar se faria na presena do fermento, sem lhe dar nada, sem lhe tomar nada. Estes ltimos fatos, veremos em breve, so contestados pela experincia.

    Traio! Ele mudou com um s golpe sua filosofia das cincias. O construcivismo tornou-se realista, e da espcie mais rasa, mais comum. Os fatos falam por si s aos olhos dos cole-gas imparciais!

    Pasteur se contradisse? Sim! aos olhos do pensamento crti-co. No! aos seus prprios olhos e, portanto, aos nossos. Para ele construrivismo e realismo so termos sinnimos. Os faros so fatos, sabemos desde Bachelard, mas o pensamento crtico nos prepara-ra para ver nesta etimologia ambga, o fetichismo do objeto. Enquanto fabricamos os fatos em nossos laboratrios, com nossos colegas, nossos instrumentos e nossas mos, eles se tornariam, por um efeito mgico de inverso, algo que ningum jamais fa-bricou, algo que resiste a toda variao de opinies polticas, a to-das as tormentas da paixo, algo que resiste quando se bate vio-lentamente com a mo sobre a mesa, exclamando: "Aqui esto os fatos imutveis!".'s Aps o trabalho de construo, os antifeti-chistas sustentam que os fatos "conquistariam sua autonomia". Ainda que a mesma palavra queira dizer na realidade, no mesmo tom, aquilo que foi fabricado e aquilo que no foi fabricado por ningum, deveramos ver aqui uma contradio recoberta por

    15. Encontraremos em Ashmore; Malcolm; Edwards, Derek; Potter, Jonathan (1994). "The Bottom Line: the Rhetoric of Realcy Demonstrations". Configurations, v. 2, n. 1, p. 1-14, uma encantadora descrio etnolgica dos gestos do realismo.

  • uma operao mgica, depois dissimulada na crena, antes de ser, enfim, soterrada sob a m f? 16 No necessariamente. Uma outra soluo nos oferecida, mas ela supe o abandono do pensamen-to crtico, a renncia das noes de crena, de magia, de m f, de autonomia, a perda desse fascinante domnio que nos transfor-mara em modernos e, orgulhosos por s-los.17

    O novo repertrio surge to logo se contorna o antifetichis-mo para dele fazer, no mais o recurso essencial de nossa vida in-telectual, mas o objeto de estudo da antropologia dos modernos. O primeiro repertrio nos obriga a escolher entre dois sentidos da palavra fato: ele construdo? Ele real? O segundo, acompa-nha Pasteur, quando ele toma por sinnimo as duas frases: "Sim, verdade que eu o constru no laboratrio", e "por conseguinte, o fermento autnomo surge por si s, aos olhos dos observadores imparciais" .18 Enquanto o repertrio moderno - alto da figura 4 - impede que acontea, seja o que for no seu meio, sob a condi-

    16. Eu mesmo utilizei essa metfora em la Vie de Laboratoire. Pa-ris: La Dcouverte, 1988. Nesta poca, em 1979, o fracasso da ex-plicao social no se mostrava ainda. S tirei concluses disso mais tarde, ao suprimir a palavra "social" da reedio do livro, e depois, ao desenvolver com Michel Callon o princpio da simetria generalizada, em les Microbes, gum-e et paix, seguido de Irrdttctions, A.-M. Mtal, col. Paris: Pandore, 1984 e em seguida, em la Science em action. Paris: La Dcouverte, 1989. J havia detectado tal fenmeno, mas foram necessrios vime anos para eu com-preender a sinonmia destes dois verbos: construir-superar. 17. Sobre a histria desse domnio e da noo de antropologia si-mtrica, ver Nous n'avons jamais t modernes. Essai d'anthropologie symtrique. Paris: La Dcouverte, 1991. 18. No considero aqui o tema referente ao "verum" e ao "tctum" (por exemplo, em Vico) que reutiliza, no que diz respeito ao ho-mem, o argumento teolgico sobre o conhecimento que pode ter de um mundo aquele que o criou. Ver Amos Funkenstein, Theo-logy and the Scientific lmagination from the Middle Ages. Princeton: Princeton University Press, 1986. Na verdade, o tema supe uma teologia e uma antropologia da tcnica que se ope totalm~nte lio que procuro tirar dos fetiches. Ver a ltima parte.

  • o de se prender pelos ps s piruetas da dialtica, tudo ocorre no interior do repertrio no-moderno, no momento crucial quando Pasteur, por ter trabalhado bem, pde deixar seu fermen-to, enfim autnomo e visvel, agir, alimentando-se com prazer da cultura que acabava de ser inventada para ele. Enquanto a noo de fato est quebrada em duas partes no alto do diagrama, ela ser-ve, na parte inferior, de passe para estabelecer o que se chama jus-tamente por ''uma soluo de continuidade" entre o trabalho hu-mano e a independncia do fermento. O laboratrio aciona o faz-fazer. A dupla articulao do laboratrio de Pasteur permite ao faz-fazer de fazer-falar, reencontrando assim as duas etimologias da palavra fetiche e da palavra fato. O laboratrio torna-se, se nos atrevemos a dizer, o aparelho de fonao do fermento do cido ltico assim como de Pasteur, da articulao de Pasteur e de "seu" fermento, do fermento e de "seu" Pasteur.

    Repertrio modemo

    FATO fabricado

    quebra

    Construdo pelo homem e, portanto, irreal

    FATO ~ no-fabricado

    Real e, portanto, no construdo pelo homem

    Repertrio no-moderno

    Articula~o

    posse FATO

    FATO

    fermento autnomo

    Pasteur autnomo

    Fa:&-fa:&er Fa:.:e...-falar

    Figura 4: o repertrio moderno obriga Pasteur a escolher entre constru-tivismo e realismo, o repertrio no-moderno permite acompanhar Pas-teur quando ele toma fabricao e verdade por dois sznimos para um s e nico "faz-fazer".

  • Compreende-se a importncia decisiva das "science stu-dies" ou da antropologia das cincias. Elas agem como um ver-dadeiro clinamen, quebrando a simetria invisvel que permitia crena exercer seus direitos. 19 De faro, ao forar a teoria a levar em conta a prtica dos cientistas, a anlise social das cincias combina os dois repertrios e fora a explicar os faros incontes-tes das cincias por meio de recursos elaborados para dar conta dos fetiches! 20 Ela certamente fracassa. No se pode explicar os buracos negros por meio da primeira denncia crtica inventada contra os fetiches e contra os deuses. Mas o fracasso mesmo des-tas explicaes deixa desamparado, pouco a pouco, rodo o pen-samento crtico. Descobre-se ento, claramente, ao aplic-las so-bre "objetos verdadeiros", a fraqueza congnita da primeira de-

    19. Pouco importa o momento exato deste clinamen. Quanto a mim, o situo na exemplar antropologia das cincias que Michel Serres conduziu de Lucrece Stat11es assim corno no livro smbo-lo de Bloor, David Sociologie de la logique ou les limites de l'pistmo-logie. Paris: Pandore, 1976 (1982), mesmo se outros preferem re-conhecer tal distino no trabalho de Kuhn, Thomas la Stmctu-redes rvolutions scientifiques, Flammarion, Paris [1962) (1983). O que importa a virada pela qual as humanidades e as cincias so-ciais retomam as cincias exatas ao abandonar as quatro postu-ras: da reconstruo racional, do ceticisrno, do irracionalismo e da hermenutica, que as haviam guiado at ento na relao des-tas com o saber reconhecido como cal. Exagero, evidentemente, a importncia de minha disciplina ao afirmar que no consegui-ramos superestimar a importncia histrica! Na verdade, ela coincidiu com a imensa reviravolta do modernismo, que lhe deu sentido e energia. 20. Para uma apresentao do fracasso da explicao social afron-tada com objeros demasiadamente complexos, ver Callon, Mi-chele lacour, Bruno les Scientifiques et leurs allis. Pandoce, Paris (1985), Callon, Michel; Latour, Bruno (Org.). la Science telle qt/elle se fait. Anthologie de la sociologie des sciences de la lang11e alt-glase. Paris: La Dcouverce, 1991. (Edio revista e amplianda). O fracasso possui virtudes filosficas superiores ao sucesso, con-tanto que se possa tirar dali concluses.

  • PLO SUJEITO

    11: Atar humano determinado

    Primeiro denncia crtica

    . .--~----

    __ ,.

    --~----

    Segundo denncia crtico

    / ./

    1: Objet~ncantado

    11. Ob jeto-feito

    PLO OBJETO

    Figura 5: por um erro de manipulao as "science scudies" cruzam as duas denncias e comam visveis suas simetrias perfeitas, suspendendo, de repente, o conjunto da operao que permitiria a crena na crena.

    nncia, mas se compreende simetricamente a impotncia dos objeros controversos, socializados, enredados em suas condies (sociais?) de produo, que servem de bigorna e de martelo na determinao causal das vontades humanas. A explicao social no valeria talvez nada, mas a causalidade objetiva no valeria mais tampouco. Era preciso retomar tudo do zero, e escutar no-vamente os propsitos do ator comum.

    Felix culpa, que permite no mais acreditar na diferena es-sencial, radical, fundadora dos fatos e dos fetiches. Mas ento, para que serve esta diferena se ela no permite nem mesmo jus-tificar a produo cientfica?" Porque insistir tanto sobre uma distino absoluta que no se pode jamais aplicar? Porque ela serve justamente para completar as vantagens da prtica atravs

    21. Paradoxalmente, as "science srudies", longe de politizar a cin-cia, permitiram ver a que ponto todas as teorias do conhecimento, desde os gregos at nossos dias, esto sob o jugo de uma definio poltica que obriga separao dos fatos e dos fetiches. Liberadas da polcca, as cincias voltam a ser apaixonantes e abertas a uma des-crio antropolgica que resta ainda ser amplamente feita.

  • das vantagens da teoria. O duplo repertrio dos modernos no pode ser desvendado pela distino dos fatos e dos fetiches, mas pela Jegunda distino, mais sutil, entre a separao dos fatos e dos fetiches, feira, teoricamente, por um lado, e a passagem da prtica, que difere totalmente desta, por outro. A crena toma um outro sentido ento: o que permite manter distncia a forma de vida prtica - onde se faz fazer- e as formas de vida tericas - onde se deve escolher entre fatos e fetiches. o meio de purificar indefinidamente a teoria, sem arriscar, entretanto, as conseqncias desta purificao.

  • Como a prtica d es escapa teoria

    Desde que comeamos a avaliar a prtica, percebemos que o ator comum, moderno ou no, pronuncia exatameme as mes-mas palavras dos negros da Costa e dos adeptos do candombl, na companhia dos quais iniciei esta pequena reflexo. O ator co-mum afirma, diretamente, aquilo que a evidncia mesmo, a sa-ber, que ele ligeira~mnte .superado por aquilo que construiu. "So-mos manipulados por foras que nos superam", ele poderia dizer, cansado de ser sacudido de todos os lados e de ser acusado de in-genuidade. "Pouco importa se as chamamos divindades, genes, neurnios, economias, sociedades ou emoes. Ns nos engana-mos talvez sobre apalavra que designaria tais foras, mas no so-bre o fato que elas so mais importantes do que ns." O ator co-mum poderia continuar a dizer, ao contrrio, "temos ra2o em di-zer que fabricamos nossos fetiches, j que estamos na origem des-sas foras diversas das quais vocs querem nos privar, nos fazen-do de marionetes manipuladas pelas foras do mercado, da evo-luo, da sociedade ou do intelecto. Talvez nos enganemos sobre o no~m a ser dado nossa liberdade, mas no sobre o fato que agi-mos de acordo com outros, que os chamemos divindades ou a!iens. O que fabricamos jamais possui ou perde sua autonomia".

    A palavra "fetiche" e a palavra "fato" possuem a mesma eti-mologia ambgua- ambgua para os portugueses como para os fi-lsofos das cincias. Mas cada uma das palavras insiste simetrica-mente sobre a nuance inversa da outra. A palavra "fato" parece re-meter realidade exterior, a palavra "fetiche" s crenas absurdas

  • do sujeito. Todas as duas dissimulam, na profundeza de suas ra-zes latinas, o trabalho intenso de construo que permite a verda-de dos fatos como a dos espritos. esta verdade que precisamos distinguir, sem acreditar, nem nas e1ucubraes de um sujeito psi-colgico saturado de devaneios, nem na existncia exterior de ob-jeros frios e a-histricos que cairiam nos laboratrios como do cu. Sem acreditar, tampouco, na crena ingnua. Ao juncar as duas fontes etimolgicas, chamaremos je( i)tiche a firme certeza que per-mite prtica passar ao, sem jamais acreditar na diferena en-tre construo e compilao, imanncia e transcendncia.22

    To logo comeamos assim a considerar a prtica, sem mais nos preocuparmos em escolher entre construo e verdade, todas as atividades humanas, e no somente aquelas dos adeptos do candombl ou dos cientistas de laboratrio, comeam a falar sobre o mesmo passe, sobre o mesmo fe(i)tiche. Os romancistas no dizem tambm que so "levados por seus personagens"? Ns os acusamos, verdade, de m f, submetendo-os primeiramen-te questo: "Vocs fabricam seus livros? Vocs so fabricados por eles?" E eles respondem, obstinadamente, como os negros e

    22. Seria necessrio acrescentar aqui o artefato - em um sentido emprestado do ingls - e que designa, nos laboratrios, um pa-rasita, tomado erroneamente como um novo ser- como quando Tintin (a despeito das leis da tica!) tomou uma aranha que pas-seava sobre o telescpio do observatrio por uma estrela que ameaava a Terra. Ao contrrio do fato, o artefato surpreende, porque descobrimos ali a ao humana quando no espervamos por isso. A palavra assegura, portanto, a transio entre a surpre-sa dos fatos e a dos fetiches. No h mais razo para abdicar da palavra ''fetiche" como da palavra "fato", sob o pretexto de que os modernos teriam acreditado na crena e quiseram desacredi-tar os fatos para ater-se aos fetiches. Na verdade, ningum nun-ca acreditou nos fetiches, e cada um preocupou-se, astuciosa-mente, com os fatos. As duas palavras continuam, portanto, in-tactas. Como a diferena entre os fonemas "f" e "jait'' nem sem-pre audvel, poderamos preferir "factiche", entretanto menos elegante lfactish , em ingls).

  • como Pasteur, atravs de uma de suas admirveis frmulas, cujo sentido corre sempre o risco de ser perdido: "Somos os fios de nossas obras". E que no venham nos dizer que eles esto se va-lendo da dialtica, e que o sujeito, ao se autoposicionar no obje-to, revela a si prprio, alienando-se atravs dele, pois os artistas, ao zombarem do sujeiro assim como do objeto, passam justa-mente entre os dois, sem tocar, em nenhum momento, nem o su-jeiro, senhor de seus pensamentos, nem o objeto alienante. 23 To-dos aqueles que se sentaram na frente de um teclado de compu-tador, sabem que tais romancistas tinham conscincia do que pensavam sobre aquilo que estavam escrevendo, mas que no se pode, por isso, confundi-los em um jogo de linguagem ou ima-ginar que um Zeitgeist lhes diria o que escrever sua prpria re-velia, pela excelente razo que esses manipuladores de segunda categoria no teriam maior controle sobre tal Zeitgeist do que o autor possui sobre o texto. Experincia banal, cornada incom-preensvel pela dupla suspeita da crtica e remetida, por esta ra-zo, ao meio-silncio da "simples prtica".

    Por que exigir dos negros que escolham entre a fabricao humana dos fetiches e suas verdades transcendentes, enquanto que ns, os brancos, os modernos, jamais escolhemos, exceto se nos submeterem a essa questo e nos forarem a quebrar a passagem contnua que, na prtica, acabamos de explorar?24 Em cada uma de nossas atividades, aquilo que fabricamos nos supera. Do mesmo

    23. Cada pintor poderia dizer que sua cela "acheiropoeitos" (no feita pela mo do homem), entretanto, ele no espera ingenua-mente, v-la cair do cu inteiramente pronta. 24. Explicarei, mais adiante, o sentido dessa ruptura. A fabrica-o tcnica, apesar das aparncias, no escapa questo comina-tria, visto que os tecnlogos dividem-se consideravelmente en-tre os que seguem os determinismos materiais da/uno e os que se ligam ao arbitrrio do capricho humano ou social da forma. So-bre este dualismo ver Larour, Bruno; Lemonnier, Pierre (rg.). De la prhistoire aux missiles balistiques - !'Intelligence socia!e des techniques. Paris: La Dcouverte, 1994 e a disputatio entre os dois autores em Ethno/ogiefranaise. v. XXVI, n. 1, p. 17-36, 1996.

  • modo que os romancistas, os cientistas ou feiticeiros e os polticos so intimados a se deitar na mesma cama de Procusto, sob pena de passarem por mentirosos. "Vocs constroem a representao nacio-nal?" - "Sim, diriam eles, necessariamente e completamente." -"Vocs inventam, portanto, atravs da manipulao, da propagan-da e do conchavo, aquilo que os representados devem dizer?" -"No, somos fiis a nossos mandatos porque construmos justa-mente a voz artificial que eles no teriam sem ns."- "Eles blasfe-mam!", exclamariam os crticos. "Por que temos que ouvi-los por mais tempo? Eles no conseguem nem mesmo, no seu illusio, per-ceber suas prprias mentiras!."2s Entretanto, do mesmo modo que os polticos, condenados ao silncio h dois longos sculos, se acham todos os dias, de manh noite, entre essa construo arti-ficial e essa verdade precisa; os cientistas, obrigados a escolher en-tre construo e verdade (ao menos nos manuais), levam dias e muitas noites, para construir no laboratrio a verdade verdadeira.

    A escolha proposta pelos modernos no se d, portanto, en-tre realismo e construtivismo, ela se d entre a prpria escolha e a existncia prtica, que no compreende nem seu enunciado nem

    25. Pode-se ler em Bourdieu "La dlgation et le ftichisrne po-litique". ln Choses dites. Paris: Minuit, 1987. p. 185-202, a ex-posio desse desprezo pela representao poltica na qual o an-tifetichisrno levado ao seu limite extremo. "O mistrio do mi-nistrio s pode agir caso o ministro dissimule sua usurpao, bem corno o in1perium que ela lhe confere, afirmando-se corno um simples e hwnilde ministro" (p.l91), e ainda: "Logo, a violncia simblica do ministro s pode ser exercida com essa espcie de cumplicidade que lhe concedem, pelo efeito de desconhecimen-to que a denegao estimula, aqueles sobre os quais se exerce essa violncia" (id.). No se pode menosprezar mais o trabalho dare-presentao assim como sabedoria dos representados. Somente o illusio permite aos socilogos no ver a contradio gritante do antifetichisrno, enquanto ela utilizada (ingenuamente?) pelo socilogo crtico para retratar a incapacidade dos ateres comuns em ver a contradio gritante do fetichisrno! Nenhum outro rei est mais nu do que o socilogo crtico, que se cr o nico lci-do em um asilo de loucos.

  • sua importncia. Se antes s podamos nos alternar violentamen-te entre os dois extremos do repertrio moderno - ou "super-los'' por meio da dialtica, como o Baro de Mnchhausen "su-pera" as leis da gravidade - podemos, agora, escolher entre dois repertrios: aquele onde somos intimados a escolher entre constru-o e verdade, e aquele onde construo e realidade tornam-se si-nnimos. Por um lado, estamos paralisados como um asno de Bu-ridan, que deveria escolher entre fatos e fetiches; por outro, pas-samos graas aos fe(i)tiches.

    Assim, o ator comum quando por ns interrogado, mul-tiplicar explicitamente, e com uma inteligncia absurda, as for-mas de vida que permitem passar, graas aos fe(i)tiches, sem ja-mais obedecer escolha cominatria do repertrio moderno. En-tretanto, essas teorias refinadas continuaro encobertas, visto que o nico meio de represent-las oficialmente situa-se na escolha a ser feita entre construo e autonomia, sujeito e objeto, fato e fe-tiche. Tenhamos o cuidado em no simplificar a situao: no se pode ignorar nem a multiplicidade dos discursos que falam do passe, ao se desviar da escolha moderna, nem a importncia da teoria dos modernos que obriga a uma escolha, que parece nun-ca servir para nada. Existe algo de sublime na comparao desta colcha de discursos, de dispositivos, de prticas, de reflexes re-finadas, pelas quais os "zatoreszelesmesmos"* declaram a evidn-cia da fcil passagem entre os dois lados da palavra "fato" como da palavra "fetiche", e a preocupao minuciosa, farisaica, com a qual, desde que procuramos nos acreditar modernos (isto , radi-calmente e no relativamente diferences dos negros), acreditava-se que a passagem estava fechada para sempre.26

    *No original: les "zacteurszeuxmmes". (N.T.) 26. Da o fato, sem o qual, dificilmente explicvel, de que a so-ciologia dos "zatoreszelesmesmos" possa afirmar que se conten-ta, ao mesmo tempo, em coletar as declaraes dos atores e que acrescenta alguma coisa, entretanto, que eles jamais dizem. Lon-ge de dar uma voz aos sem-voz, ou de fazer a simples teoria de suas prticas, ela se contenta em fazer passar, contra os diktats do

  • Avancemos um pouco. a noo mesmo de prtica que provm da exigncia imposta pelos modernos. Na falta de po-dermos nos exprimir segundo os termos cominatrios do pensa-mento crtico, somos obrigados a continuar fazendo o que sem-pre fizemos, mas, clandestinamenteY A prtica a sabedoria dis-simulada do passe que insiste em dizer (mas como ela no pode mais diz-lo, ela se contenta justamente em faz-lo, em murmu-r-lo meia voz) que construo e realidade so sinnimos. Es-tranha clandestinidade, diramos, j que ela tambm, na expe-rincia comum, um segredo de polichinelo, confessado de mil maneiras e segundo mil canais. Sim, mas a teoria continua, e por razes to boas que precisamos agora compreender e no levar a srio essas mltiplas confisses. Chamaremos agora crena, a operao que permite manter uma teoria oficial o mais longe possvel de uma prtica oficiosa, sem nenhuma relao entre as duas alm desta preocupao apaixonada, ansiosa, meticulosa, para manter a separao. Chamaremos agnosticismo a descrio antropolgica desta operao.

    pensamento crtico, as formas de vida comuns, que vo desde a sala dos fundos at a vitrine de uma loja. Donde, as noes de mediao, de ator-rede, de traduo, de modos de coordenao, de simetria, de no-modernidade, noes infratericas, que no visam nem a expresso- muito bem mantida pelos acores- nem a explicao - igualmente nas mos dos atores - mas somente sua compilao - que os atores poderiam de fato encontrar, graas ao leve excedente que lhes oferecido pelas humanas cincias. O socilogo comum se encontra, portanto, no mesmo nvel dos ato-res comuns, como os negros e os brancos e, pelas mesmas razes. 27. Coisa curiosa; o pragmatismo, que poderamos acreditar ser a filosofia da prtica, continua de tal modo intimidado pela po-sio de autoridade de seus adversrios que obrigado a descre-ver a prtica sob um aspecto modesto, limitado, utilitrio, hu-manista, cmodo, ocupando assim, sem questionamento, o lugar que lhe foi preparado pela filosofia crtica. A modstia s uma virtude filosfica se ela decide, por si prpria, a maneira pela qual se privar de fazer seu dever ou de propor fundamentos.

  • Como estabelecer um antifetichista

    Para compreender a eficcia misteriosa desta separao en-tre teoria e prtica, seria preciso poder dispor de descries de an-tifetichistas. Poderamos, ento, contra-analisar os modernos fa-zendo a descrio etnogrfica de seus gestos iconoclastas. Como no dispomos ainda desses estudos/8 pelo que sei, escolhi junto a um romancista da ndia contempornea uma anedota esclarece-dora.29 Jagannath era um brmane do tipo modernizador. Ele queria destruir os fetiches e liberar da alienao os prias empre-gados por sua tia, forando-os a tocar a pedra sagrada das nove cores, o shaligram de seus ancestrais. Um fim de tarde, aps o tra-balho, ele agarrou a pedra do altar, depois, diante de sua tia e do

    28. A histria da arte ofereceria, concudo, um rico repertrio para esta ancropologia histrica da iconoclasia antiga e moderna. Ver Christin, Olivier. Une rvolution symbolique. Paris: Minuit, 1991; Koerner, Joseph Leo. "The lmage in Quotations: Cra-nach 's Portraits ofluther Preaching", ln Shop Talk. Studies in H o-nor of Seymottr Slive. Mass: Cambridge, Harvard Universicy Press, 1995. p. 143-6, assim como os trabalhos de Dario Gamboni (1983). "Mprises et mpris. lments pour une tude de l'co-noclasme contemporain", Actes tk la recherrhe en sciences sociafes, vol. 49, p.2-28. Ver tambm Heinich, Nathalie (1993). "Les ob-jets-personnes. Ftiches, religues et oeuvres d'art". Sociologie de l'art, v. 6, p. 25-56. 29. U.R. Anantha Murthy Bharathipura, ln: Another lndia. Pen-guin, Harmondsworch: 1990. p. 98-102. (traduo do autor).

  • sacerdote, horrorizados, quis lev-la aos servos, reunidos em um canto qualquer. Mas, no meio do ptio, Jagannath hesitou ares-peito do que estava fazendo, ento parou e se indagou.

    As palavras pararam na sua garganta. Esta pedra no nada, mas meu corao se ligou a ela e peguei-a para vocs: coquem-na, toquem aquilo que se tornou o ponto vulnervel de meu es-prito. Toquem-na! Aqueles que esto atrs de mim [minha tia e o sacerdote} procuram me deter atravs das inumerveis ligaes de obrigao. Bom, o que vocs esto esperando? Qual o pre-sente que eu lhes trago? No sei ao cerco: isto se tornou um sha-ligram porque o apresento como urna pedra. Se vocs o tocarem, enco ele se tornar urna pedra tambm para minha tia e para o sacerdote. Porque eu a ofereci, porque vocs a tocaram, porque todos foram testemunhas desce acontecimento, ao cair da noite, que esta pedra se transforma em shaligram! Que este shaligram se transforme em pedra! (p. 101)

    Mas, para grande surpresa de Jagannath, destruidor de dolos, libertador, anrifetichista, os prias recuaram, aterroriza-dos. Ele ficou sozinho, no meio do ptio, com um objeto meio-pedra, meio-divindade; o sacerdote e a tia gritando de vergonha atrs dele, enquanto aqueles que ele queria libertar se amontoa-vam o mais longe possvel do sacrificador sacrlego.

    Jagannath tentou seduzi-los. Ele proferiu em seu tom profes-soral: '" s uma pedra. Toquem-na e vocs vero bem. Se vocs no a tocarem, sero sempre pobres homens".

    Ele no compreendia o que acontecia com os prias. Todo o grupo amontoava-se o mais longe possvel, assustado, sem ousar fugir ou ficar. Como ele desejara, contudo, este momento sagra-do! Este momento quando os prias tocariam, enfim, a imagem de Deus. Ele falou-lhes com uma voz raivosa: "Vo! Toquem-na"!

    Jagannath avanou em direo a eles. Eles recuaram. Ele se sen-tiu tomado por urna crueldade monstruosa. Os prias lhe parece-ram como criaturas horrveis que rastejavam sobre seus ventres. Ele mordeu seu lbio e ordenou com uma voz firme e inflexvel: "Pilla! Toque-a, sim, toque-a!".

    Pilla {o contramestre] continuva em p, piscando os olhos. Jagannath sentiu-se esgotado e perdido. Tudo o que tentara en-

  • sinar-lhes no servira para nada. Ele ameaou rrmulo: "Toquem, toquem, vocs VO TOC -LA!" Foi como se o grito de um lou-co animal enfurecido o dilacerasse por inteiro. Ele era s violn-cia; ele no sentia nada alm disso. Os prias o achavam mais ameaador que Bhutaraya {o esprito demnio do deus local]. O ar exalava um odor infecto de seus griros. "Toquem, toquem, to-guem!" Para os prias, a tenso era muito forre. Mecanicamente, eles avanaram, tocaram de leve aquela coisa que Jagannarh lhes apresentava e partiram no mesmo instante.

    Esgotado pela violncia e pela decepo, Jagannath lanou o shaligram para o lado. Uma grande angstia terminara de modo grotesco. Mesmo a tia podia continuar humana quando tratava os prias como intocveis. Ele, por sua vez, perdera sua huma-nidade, por um instante. Ele tomara os prias por coisas despro-vidas de significao. Ele meneava a cabea sem perceber que os prias haviam partido. A noite cara quando compreendeu que estava sozinho. Desgostoso de sua figura comeou a andar sem rumo. Ele se indagava: "quando os prias tocaram a pedra, per-deram, tanto quanto eu, sua humanidade? Estamos mortos? Onde est a falha nisso tudo, em mim ou na sociedade?" No havia resposta. Aps uma longa caminhada, ele voltou para casa, aparvalhado. (p. 102)

    O golpe que Jagannath destinou ao fetiche, ao dolo, ao passado, s correntes da servido, foi desviado. O que jaz agora, destrudo, disperso, no o fetiche, mas a sua humanidade, como a dos prias, de sua tia e do sacerdote. Ele acredirou ter destrudo o fetiche, e foi o fe(i)tiche que se rompeu. De repente, ele se tornou um "animal selvagem", e os prias, "criaturas hor-rveis". A objetividade estpida da pedra, aquela que Jagannath queria faz-los verificar com suas prprias mos, passou pelos servos, eles prprios transformados em "coisas desprovidas de significao". Invertendo os dons mgicos do rei Midas, Jagan-nath fez do Jhaligram algo que transforma em pedra aqueles que o cocam para dessacraliz-lo. Ele queria dissipar a iluso dos

    . deuses e, amarga ironia!, aqui est ele, mais "ameaador que Bhutaraya". Se ele conseguiu enfim, que os prias lhe obedeces-sem, porque eles cederam ao terror desta coalizo de divinda-des ameaadoras, aquelas de seu senhor, acrescentadas s does-

  • prito-demnio. E ainda, os servos s lhe obedeceram "mecani-camente". Animais, coisas, mquinas, eis que eles passam por todas as nuanas do inumano. Mais grave ainda, o senhor e os servos "esto mortos", porque o fe(i)tiche, uma vez destrudo, no consegue mais manter, externamente, o que os tornava hu-manos. "Onde est a falha?", pergunta-se Jagannath. O humano no residiria mais no sujeito liberado de suas correntes, no des-truidor de dolos, no modernizador que possui um martelo, mas em outro lugar, ligeiramente em outro lugar? preciso real-mente manter-se sombra dos fe(i)tiches para no morrer? Para no se tornar bicho, pedra, animal, mquina? preciso uma simples pedra para no se tornar duro e frio como uma pedra?

    Ao se enganar de alvo, o indiano modernizador nos ensina muito sobre ele prprio, mas, sobretudo, sobre os brancos. esta lio que precisamos seguir.30 Para que sejam cientistas, criado-res, polticos, cozinheiros, sacerdotes, fiis, operadores, artesos, salsicheiros e filsofos, preciso que os modernos passem, como todos, da construo autonomia. Se vivessem sem os fe(i)ti-ches, os brancos no poderiam viver, eles seriam mquinas, coi-sas, animais ferozes, mortos.

    No lhes pedido, por isso, que "acreditem" nos fetiches, que atribuam almas s pedras, segundo a horrvel cenografia do antifetichismo. Justamente, o shaligram uma pedra, apenas uma pedra; todos concordam com isso, s o denunciador, o destruidor de dolos no o sabe. Ele aprendeu isso muito tarde. Ele equivo-ca-se com os gritos do sacerdote e de sua tia. Jagannath acredita que eles assistem, horrorizados, a um sacrilgio libertador. Ora, por ele, somente por ele que os dois se sentem cobertos de vergo-nha. Como ele pode conferir-lhes sentimentos to terrveis; como ele pode atribuir-lhes a adorao das pedras, a idolatria monstruo-sa? O sacerdote, a tia e os prias j sabiam o que Jagannath des-

    30. Sobre os prias, ver o admirvel livro de Viramma, Racine, Josiane, Racine, Jean-Luc Une vie de paria. Le rire des asservis. Inde d11 SJ(d, Paris: Plon-Terre Humaine, 1995.

  • cobre ao falhar seu golpe: no se trata absolutamente de crena, mas de atitude. No se trata da pedra-fetiche, mas de fe(i)tiches, esses seres deslocados, que nos permitem viver, isco , passar con-tinuamente da construo autonomia sem jamais acreditar em uma ou em outra. Graas aos fe(i)tiches, construo e verdade per-manecem sinnimos. Uma vez quebrados, tornam-se antnimos. No se pode mais passar. No se pode mais criar. No se pode mais viver. preciso, ento, restabelecer os fe(i)tiches.

    Graas a Jagannath a eficcia dos fe(i)tiches torna-se agora mais clara. Partimos da escolha cominatria que impunha deci-dir se construamos os fatos e os fetiches ou se, ao contrrio, eles nos permitiam atingir realidades que ningum jamais cons-truiu. Percebemos que essa escolha jamais obedecida na prti-ca, cada um passa por outro lugar, discretamente, sem dificulda-des, atribuindo, no mesmo tom e aos mesmos seres, a origem humana assim como a autonomia. Para falar de filosofia, nin-gum nunca soube distinguir entre imanncia e transcendncia. Mas essa obstinao em recusar a escolha, compreendemos ago-ra, sempre existiu, como uma simples prtica, como aquilo que no pode ser acolhido nem com palavras, nem na teoria, mesmo se os "zatoreszelesmesmos" no param de diz-lo e de oferecer a sua descrio com grande luxo de precises. 3'

    O golpe em falso do destruidor de dolos, como a felix cul-pa dos estudos sobre as cincias, nos permitiro examinar defi-

    31. Isto torna a generalizar, como Miche! Callon e eu freqen-temente mostramos, a virada etnometodolgica, estendendo-a, por intermdio da semitica, metafsica, como nico organon nossa disposio que pode conservar, sem assombro, a diversida-de dos modos de existncia- ao preo, verdade, da transposi-o para uma forma textual e para uma linguagem; rescrio que procuramos contudo superar, estendendo s prprias coisas as definies demasiado restritivas da semitica. Recamos, ento, sobre as entidades que nos interessavam desde o incio - sob o vago nome de ator-rede - e que so, a um s tempo, reais, so-ciais e discursivas.

  • nitivamente o antifetichismo, a fim de descrever, do exterior, o aparato da crena. A antropologia simtrica possui agora um operador, o fe(i)tiche, que vai ajud-la a retomar o trabalho de comparao, mas sem se perder nos ddalos do relativismo cul-tural e sem mais acreditar na crena. Ao levar o agnosticismo a este ponto, no temos mais que nos opor aos modernos sem fe-tiches, revelando aos olhos dos negros e dos prias, ora a realida-de exterior, sem disfarces, ora o abismo de suas prprias repre-sentaes interiores. No temos mais que ridicularizar os mo-dernos que acreditariam no antifetichsmo to ingenuamente quanto os negros acreditavam em seus fetiches e as velhas tias em seus shaligrams. Os modernos tm tambm um fe(i)tiche, apaixonante, sutil, trickster astucioso. Resta esboar rapidamen-te sua forma e compreender sua eficcia.

  • 7 Como re fi}trches clivados

    Zomba-se, s vezes, do carter grosseiro dos fetiches, tron-cos mal esculpidos, pedras mal talhadas, mscaras caricatasY Desculpem-me, portanto, propor uma descrio sobre os fe(i)ti-ches modernos tambm desajeitada, um esquema sobre Macin-tosh muito pouco desbastado. A particularidade interessante de nossos fe(i)tiches reside no fato que ns os quebramos duplamen-te, uma primeira vez verticalmente, uma segunda vez lateral-mente. A primeira ruptura permite separar, violentamente, o plo sujeito e o plo objeto, o mundo das representaes e o das coisas. A segunda, separa obliquamente, de modo mais violento ainda, a forma de vida terica, que leva a srio esta primeira dis-tino dos objeros e dos sujeitos e, uma forma de vida prtica, completamente diferente, atravs da qual conduzimos nossa existncia, muito tranqilamente, confundindo sempre o que fabricado por nossas mos e o que est alm de nossas mos. 33

    32 Desde o presidente de Brosse, faz-se muito caso sobre estes fe-tiches materiais, pesados, toscos, estpidos e brutos. Isto signi-fica esguecer gue ares extmsa s brutal aos olhos de um espri-to conhecedor. Suas matrias de madeira, osso, argila, pluma ou mrmore, pensam, falam e se articulam como todas as outras ma-trias. Uma pedra no tem nada de particularmente informe. Suas articulaes permitem tanto o "fzer-falar" guanro aguelas do fermento ltico. 33. Este diagrama oferece um pouco de corpo aos esguemas ex-cessivamente abstratos do livro sobre os modernos op.cit., 1991.

  • Primeira fratura realidade construo

    restaurao

    passagem cotidiano comentada por um discurso sutl e entrecortado

    ALTO: ESCOlHER ClARAMENTE ENTRE FATOS E FETICHES

    BAIXO: NO ESOLHER, PASSAR GRAAS AO FEUJTICHE MAS SEM DIZE-LO EM ABSOLUTO, OU MOSTRA-LO

    Figura 6: o fe(i)tiche moderno possui a particularidade de tornar trs vezes invisvel aquilo que o torna eficaz; no alto no h fetiche, em ab-soluto, mas uma escolha cominatria entre dois extremos; embaixo, o fe(i)tiche permite a passagem, o faz-fazer, mas no se deve jamais diz-lo claramente; enfim, alto e baixo so hermeticamente distintos.

    Frente astcia deste dispositivo compreendemos por que os modernos podem acreditar que, nicos entre os demais povos, escapam s crenas e aos fetiches. No alto da figura 6, a quebra entre os sujeitos construtores e os objetos autnomos no permi-te mais ver aqui o fe(i)tiche. Embaixo, a eficcia do fe(i)tiche desdobra-se, mas o discurso indefinido que fala desta eficcia no pra de interromper sua continuidade, de se deslocar, como se ele devesse codificar o trabalho incessante de suas mediaes para torn-las invisveis teoria. Entre os dois a separao to-tal, separao que protege, ao mesmo tempo, a eficcia dos pas-ses, embaixo, e a pureza da teoria, no alto. O fe(i)tiche dos mo-

    Substituo a dupla separao natureza/sociedade de um lado, pu-rificao/mediao de outro, por um objero que mantm ambos e cuja presena, a descrio, a composio podero ser objeto de es-tudos empricos.

  • dernos permanece, portanto, trs vezes invisvel, canto que ou-tros, em outros lugares, como Jagannath, no nos fornecem a imagem unificada desses fe()tiches. To logo compreendemos essa imagem, esse retrato, percebemos que o fe(i)tiche reside no conjunto desse dispositivo. necessrio estabelecer o fe(i)tiche por completo, a fim de compreender por que os modernos acre-ditam na crena e se acreditam desprovidos de fetiches.

    Em todo lugar onde os modernos tm que, ao mesmo tem-po, construir e se deixar levar por aquilo que os arrebata, nas pra-as pblicas, nos laboratrios, nas igrejas, nos tribunais, nos su-permercados, nos asilos, nos atelis de artistas, nas fbricas, nos seus quartos, preciso imaginar que tais fe(i)tiches so erigidos como os crucifixos ou as esttuas dos imperadores de outrora. Mas todos, como os Hermes castrados por Alcibades, todos so des-trudos, quebrados a golpes de martelo por um pensamento crti-co, cuja longa histria nos remeteria aos gregos, que abandonaram os dolos da Caverna, mas erigiram as Idias; aos judeus destrui-dores do Bezerro de ouro, mas construtores do Templo; aos cris-tos queimando as esttuas pags, mas pintando os cones; aos protestantes c:aiando os afrescos mas erguendo sobre o plpito o texto verdico da Bblia; aos revolucionrios derrubando os anti-gos regimes e fundando um culto deusa Razo; aos filsofos que se valem do martelo, auscultando o vazio cavernoso de todas as es-ttuas de todos os cultos, mas tornando a erigir os antigos deuses pagos do desejo de poder. Como se pode observar nos dois So Sebastio feitos por Mantegna, em Viena ou no Louvre, os moder-nos s podem substituir os antigos dolos que jazem destrudos a seus ps, por uma outra esttua, tambm de pedra, tambm sobre um pedestal, mas tambm quebrada pelo mrtir, atravessada por fle-chas, logo destruda. Para fetiche, fetiche e meio.

    Mas no, estou enganado, preciso acrescentar ainda algu-ma coisa a esses fe(i)tiches. preciso retomar o diagrama e acres-centar o trabalho pelo qual restaurou-se, emendou-se, remendou-se as esttuas destrudas. Sabemos que os etnlogos como os et-nopsiquiatras admiram, com razo, os pregos, os cabelos, as plu-mas, os bzios, escarificaes e tatuagens com os quais os antigos

  • fetiches eram marcados - quero dizer os fetiches destitudos dos negros da Costa, antes de serem jogados na fogueira ou no museu. O que dizer ento, da extraordinria proliferao de marcas, de pe-daos de barbante, de pregos, de plumas, de arame farpado, de fita adesiva, de alfinetes, de grampos, com os quais restaura-se, desde sempre, o alto clivado dos fe(i)tiches modernos, assim como o gancho que os mantm sobre seus pedestais? Todo mundo, desde sempre, restaurou o duplo rasgo com remendos incessantes.

    Primeira fratura

    realidade

    plo objeto

    Segunda fratura

    construo

    passagem cotidiana comentada por um discurso sutil e entrecortado

    Figura 7: dupla quebra dos fetiches, preciso acrescentar, para se compreender os modernos, o remendo indefinido que permite restau-rar os pedaos esparsos, por uma sucesso de operaes de salvamento, de restauraes e de expiaes.

    Por que os etnlogos se interessam to pouco por esses ma-ravilhosos remendos, que permitem restaurar todos os dias, e de mil maneiras diferentes, a eficcia do fe(i)tiche, ainda que a teo-ria tenha destrudo a passagem entre a construo e a realidade? Se eles tivessem sido realmente destrudos, ningum, em parte alguma, no poderia mais agir. Mas se eles no tivessem sido destrudos por um slido golpe de martelo, os modernos no se distinguiriam radicalmente dos outros. No haveria nem mes-mo diferena entre a parte de baixo de seus fe(i)tiches e a parte

  • de cima. Eles passariam ao como sempre se fez na Costa da frica Ocidental, como sempre se faz no vasto pas tagarela e si-lencioso da prtica. Por que esta bizarra configurao? Por que destruir para restaurar em seguida, fato que surpreendeu o co-reano cujo texto inventei no prlogo? que ao remeter prti-ca subterrnea a preocupao de resolver a contradio continua imposta pela quebra violenta dos fe(i)riches transportadores e mediadores, os modernos puderam mobilizar foras extraordin-rias, sem que elas jamais aparecessem como ameaadoras ou monstruosas. O alto destrudo dos fetiches no um illmio a mais, uma ideologia que dissimularia, pela falsa conscincia, o verdadeiro mundo da prtica. Este alto desorganiza a teoria da ao, cria o mundo independente da prtica, e lhe permite des-dobrar-se sem ter que prestar contas instantaneamente. Graas aos dolos destruidos, pode-se realizar inovaes sem risco, sem res-ponsabilidade, sem perigo. Outros, mais tarde, em algum outro lugar, suportaro as conseqncias, mediro o impacto, avaliaro as repercusses e limitaro os estragos.

    O pesquisador do Instituto Pasteur que se apresenta para mim inocentemente dizendo: "Bom dia, eu sou o coordenador do cromossomo 11 da levedura de cerveja", diz apenas esta famosa frase: "Os Bororo so Araras". O pesquisador tambm confunde suas propriedades com a da levedura de cerveja, como Pasteur confundia seu corpo ao do cido ltico, e como as naes do Ama-zonas confundiam suas culturas com suas naturezas domsticas . .14 Claro que nosso pesquisador no se toma por um cromossoma tanto quanto os Bororo por um papagaio. Mas ao fim da conver-sa, aps ter discorrido, durante trs horas, sobre a Europa, a in-dstria da cerveja, os programas de visualizao das bases de DNA sobre Macintosh, o genoma de Saccharomyces cerevisiae, ele

    34. Ver sobre estas confuses, o belo livro de Descola, Philip-pe/a Nature domestique. Symbolisme et praxis dans l'cologie des Acbuar. Paris: Maison des Sciences de I'Homme, 1986 e sua reinterpretao literria e reflexiva em les Lances dtt Crpuscule, Paris: Plon, 1994.

  • confessa-me, tambm inocentemente: "Mas eu estou fazendo apenas cincia!''. Aqui se encontra a pequena diferena, a quebra de simetria. Pois se o mundo das Araras no pode se movimen-tar sem que o mundo dos Bororo se abale, e vice-versa, possvel que esse cientista se tome por um cromossoma e que movimen-te toda uma indstria, toda uma cincia, como se este duplo aba-lo s perturbasse fatos homogneos. Quando o cromossoma 11 da levedura de cerveja surgir no mundo, ele apenas preencher, de uma s vez, inesperadamente, a nica natureza, no alto, na clari-dade. Em frente, tomados de assalto, outros devero subitamen-te ocupar-se das conseqncias- ticas, polticas, econmicas-desta ao. O pesquisador faz, ter feito, far "apenas cincia".

    Voc pode, no fundo de seu laboratrio, revolucionar o mundo, modificar os genes, dar nova forma ao nascimento e morte, implantar prteses, redefinir as leis da economia, tudo isso s aparecer como uma simples prtica, opaca e silenciosa. No alto, na claridade dos fetiches destrudos, s se falar de cin-cia, de um lado, e, de liberdade, de outro, sem que jamais os dois lados de confundam, mesmo se, por um prodigioso remendo, graas a circuitos de retroao, graas a flechas, idas e vindas, juntarmos as duas partes quebradas sem nunca restaurar-lhe no-vamente a alma. Todas as vantagens da crtica- no alto-; todas as vantagens da prtica- embaixo. Todas as vantagens da distin-o meticulosa entre os dois lados. Todas as vantagens da passa-gem de um lado para outro com todo o conhecimento (prtico) dos trs repertrios, o da quebra, o do passe e o da restauraoY Vocs percebem que os brancos so tambm dignos de interes-

    35. Ao querer que os modernos sigam, em suas idas e vindas, a