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Capítulo sobre a fixação em partituras de músicas populares cabo-verdianas, no livro "Noticias que fazem a história. A música de Cabo Verde pela imprensa ao longo do século XX", da autoria de Gláucia Nogueira, ed. autor, Praia, Cabo Verde, 2007.

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Capítulo 6

REGISTO ESCRITO DA MÚSICA POPULAR

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Partituras e textos – alguns apontamentos

Muitas vezes se tem falado, no âmbito da música popular cabo-ver-diana, sobre as deturpações que letras e músicas vão sofrendo ao longo do tempo, facto natural num contexto de oralidade e em que

a liberdade de criação desdenha argumentos ortodoxos.

Contudo, a fi xação das composições, ainda que não possa deter a tendên-cia do “quem canta um conto aumenta um ponto”, tem a sua importância, ao garantir para o futuro o conhecimento do passado e também para o ensino da música.

Antes de existir a tecnologia que permite o registo áudio, as partituras cum-priam essa função, e é assim que chegam ao nosso tempo as obras da tradição europeia a que chamamos clássicas e que na altura da sua criação eram toca-das em salões de baile e saraus – em outras palavras, o pop da época.

Quanto à produção cabo-verdiana, pouco foi registado, o que não impediu que – com ou sem eventuais alterações, com ou sem equívocos quanto à auto-ria – alguns temas tenham resistido até hoje, enquanto outros, embora grafa-dos, tenham fi cado pelo caminho.

No primeiro caso temos como exemplo o Manchê, cuja partitura é a primeira de uma brochura de nove páginas intitulada Músicas Populares de Cabo Verde, que terá sido possivelmente a primeira compilação de músicas cabo-verdianas a ser publicada (sem letras).

Segundo o índice de publicações da Sociedade de Geografi a de Lisboa, res-ponsável pela edição, este documento é de 1885. Esta data, porém, não vem impressa na brochura, assim como não há qualquer menção a quem seleccio-nou os temas ou a quem os grafou em pauta.

Tudo o que dispomos, quanto aos dados bibliográfi cos, é o título repetido na capa em caracteres menores em inglês e francês – pelo que se pode supor que teria uma utilização extra lusófona, eventualmente nalguma exposição co-lonial na Europa – e o nome da tipografi a: “Lith-Guedes – Lisboa”.

Além do Manchê, indicado como andantino, a publicação traz os seguintes temas, com as respectivas indicações de andamento: Oh! Nhô João Miranda (al-legro), Xabai (andamento de tango), E ca Sissi (andamento de valsa), João Faria (allegro), Fra Néné (allegro), Galope de José Carolino (allegro), Nhô Eufronio (anda-mento de tango) e Bate Caramba (allegro).

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Figura activa na vida cultural cabo-verdiana nos primeiros anos do século XX foi o bravense José Bernardo Alfama, funcionário das fi nanças, poeta, colaborador da imprensa da época, contemporâneo e amigo de Eugénio

Tavares, a quem defendeu da acusação de desfalque aos cofres públicos de que este fora vítima.

Além disto tudo – e o mais que se pode encontrar sobre este personagem na obra A Imprensa Cabo-Verdiana – 1820-1975, de João Nobre de Oliveira – José Bernardo Alfama publicou Canções Crioulas e Músicas Populares de Cabo Verde (Imprensa Comercial, Lisboa, 1910).

O que torna interessante este pequeno livro de 23 páginas, com nove temas (letras e partituras), é o facto de ser revelador de como as coisas se passavam na altura, no que se refere à morna. Ao que dá a entender, Alfama, pelo menos em alguns casos, compõe versos para músicas já existentes, provavelmente melodias em voga na altura, não necessariamente da sua autoria.

É interessante refl ectir sobre a “Advertência” com que ele nos introduz à obra, elucidativa quanto a este aspecto:

“Sem tirar o tic popular – antes procurando imprimir-lhe o morno sabor (seja permitido o termo, visto que se trata de mornas) – o obscuro autor dos singelos e despretensiosos versos ao adiante publicados teve, contudo, que alterar algumas das músicas, pois que não foram estas que se subordinaram aos versos, mas sim estes áquellas.

“É natural, pois, que aqui ou ali appareça um ou outro verso duro ao canto, que a pobreza do meu engenho não pode evitar, mas, como o meu único fi m, encetando esta publicação, é apenas tornar conhecidas as muito faladas ‘mor-nas’ de Cabo Verde, ouso esperar que a malleabilidade da voz da gentil crio-linha – que honrar os meus pobres versos, cantando-os – supprirá quaesquer faltas que, porventura, n’elles ou nas músicas encontrar.”

Assim, encontramos lado a lado versos e partituras em que os títulos – note-se, dos poemas em português – não coincidem. Os versos de Desillusão corres-pondem à música Despedida da Brava; os de Iddylio a Pepita. Mal Sabes corres-ponde à música com o mesmo título em crioulo: Mudjer, Mal Nhâ Sabê...

Os restantes temas do livro, com letra em crioulo, são: Nha Djedjê, Indjetadi-nha (dedicada a Eugénio Tavares), Xico Nhâ Fidjo, Tambradinha, Saudação – Nhô Dom Luiz Filippe e Saudação – Nhô Arze d’Órnela. Com excepção desta última, todas coincidem nos títulos (poema/partitura).

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Estas duas últimas composições são alusivas à passagem por Cabo Verde, em 1907, do príncipe real D. Luiz Filippe, e integram a publicação intitulada Cabo Verde – Número Comemorativo da passagem por esta província de S. Alteza o Príncipe Real Senhor Dom Luiz Filippe, editada pela “Comissão encarregada da organização das diversões populares”. A publicação traz a indicação de que os versos para D. Luiz Filippe são para serem cantados na sua morna, cuja músi-ca é assinada por A. Abelha. Aquela dedicada ao conselheiro Ayres d’Ornellas traz a indicação de ser cantada com a morna Maria Adelaide.

Haveria mais que dizer sobre José Bernardo Alfama – republicano que, por ocasião desta visita, fez versos ao príncipe e dedicou à rainha D. Amélia o poema Fidjo Orpho, mas que por trás do tom laudatório falava da pobreza e reivindicava uma escola. A educação, aliás, foi sempre a grande causa pela qual lutou.

Para não fugir ao tema, retemos a questão da letra das mornas. Poderíamos pensar que, nessa fase da sua evolução, haveria melodias tocadas aqui e acolá, com letras eventualmente improvisadas, evoluindo e alterando-se na esponta-neidade das interpretações, às quais em determinados momentos um dos lite-ratos da época adaptou os seus próprios versos, acabando por fi xá-las assim?

Isso poderia explicar algumas controvérsias quanto à autoria de algumas músicas desse período, ou os versos em português de Brada Maria, apontada como a mais antiga que se conhece, que não fazem pensar numa origem popu-lar crioula. Brada Maria, aliás, segundo A Voz de Cabo Verde (5 de Maio de 1915) foi posta em música por Valentim Lopes Tavares, regente da banda da Praia na altura, como já aqui referimos, com letra em português de Eugénio Tavares, “sobre o tema crioulo”.

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Na tentativa de encontrar partituras com músicas de Cabo Verde, além docasos já referidos – a brochura editada pela Sociedade de Geografi a de Lisboa em 1885, José Bernardo Alfama, no início do século XX, e o

maestro Burgo, emigrado no Brasil nos anos 30 –, foi possível obter não as pró-prias partituras mas alguns indícios da existência desses registos em tempos recuados – quem sabe adormecidos nalgum arquivo ainda por desbravar.

Cinco dias depois da informação sobre Brada Maria que acabámos de referir, em Maio de 1915, A Voz de Cabo Verde trazia, sob o título Serafi m Djom, a seguin-te informação: “Assim se intitula a primeira série das verdadeiras Mornas de Cabo Verde, escrita no próprio ritmo da origem pelo Sr. Loff de Vasconcelos (fi lho), a quem não consentiu o amor que tem à sua terra ver correr por aí as mornas sem o ritmo sincopado que tanto as caracteriza, que tanto requebro e graça lhes dá.”

Poucas linhas, mas reveladoras do ponto de evolução em que se encontrava a morna naquela altura e da resistência – revelada pela atitude de Vasconcelos – às mudanças que lhe iam sendo introduzidas. Corresponde ao período em que o “ritmo sincopado” e o “requebro” vão cedendo lugar à melancolia e sentimentalidade que Eugénio Tavares introduz na morna, aspectos que ainda hoje a caracterizam, apesar das inovações posteriores.

Data precisamente de um ano antes do que referimos acima a publicação, por Pedro Cardoso, sob o pseudónimo Afro, do poema A Morna (04.05.1914 do mesmo A Voz de Cabo Verde). Com dedicatória ao “Exmo. Sr. José Bernardo Alfama”, o poema inclui a certa altura, entre duas estrofes de Afro, o texto da morna que fala da passarinha de pena azul, ave endémica em Cabo Verde: Canal di Brava suluça-m sodade / Mar di golfo suluça-m cudado...

No fi m, há seguinte nota explicativa:

– Reproduzo a canção tal qual a ouvi, ai! quantos anos já lá vão! – a uma camponesa da minha terra: cantava na música do “Perdão Emília”.

Os versos são mancos e brancos. Não os corrigi, porém, para não tirar à canção a sua espontaneida-de e sabor populares.

Assim a arquivei no meu poemeto, onde – ciclo contemporâneo – outros espécimes do folklore cabo-verdiano se reproduzem.

A.

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O texto a que Afro se refere é, com pouquíssima diferença, o que Moacyr Rodrigues indica no livro A Morna na Literatura Tradicional com o título Passari-nha e como sendo da autoria de Pedro Cardoso. Contudo, este revela que ape-nas a recolheu. A mesma letra, ainda que com um pouco mais de diferença, é a que, na melodia intitulada Maria Adelaide, aparece gravada por Teté Alhinho no CD Sentires. Esta melodia, em versão instrumental e com o mesmo título – Maria Adelaide – está no disco Travadinha no Hot Club. Por outro lado, também em versão instrumental, aparece no álbum Memórias Atlânticas, de Vasco Mar-tins, como Passarinha di Pena Azul.

De onde se conclui que a letra a falar da passarinha colou-se – pelo menos é como chega aos nossos dias – à melodia de Maria Adelaide, embora esta, no início do século XX, tenha servido para veicular outras letras. Pelo menos de uma temos a certeza – a que Alfama dedicou ao conselheiro do príncipe. No primeiro caso, Maria Adelaide parece ter tomado o lugar da melodia de Perdão Emília, a que Afro se refere, já que passado cerca de um século esta letra e mú-sica surgem indissociáveis, pelo que as gravações mostram.

Perdão Emília, por sua vez, chega aos nossos dias com versos que nada têm a ver com a passarinha – uma gravação recente e de fácil acesso é a de Albertino Évora em Confi dencial. Quanto à origem desta composição, que alguns supõem brasileira, o compositor Daniel Rendall chama a atenção para o facto de, na série televisiva Kananga do Japão, da rede Globo, exibida em Cabo Verde há al-guns anos, a certa altura uma personagem referir-se ao tema dizendo tratar-se de uma nova música, recém chegada de Portugal.

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Nos primeiros anos do século XX, as novas tecnologias do audiovisual, como o cinematógrafo e o gramofone, já estão disponíveis em Cabo Verde – um da marca Pathé é posto à venda num anúncio que A Voz…

publica a 4 de Dezembro de 1916. A era do disco tornará as partituras um ana-cronismo no que se refere à divulgação das músicas do momento – sendo que, em centros maiores, elas chegaram a ser um produto com grande impacto, tal como mais tarde veio a ser o disco, e geravam empregos para os que as escre-viam e para os que as executavam nas casas editoras. Mostra bem esse facto, no Brasil, a biografi a (que teve adaptação para série televisiva) da compositora e pianista Chiquinha Gonzaga, extraordinária personagem da história da mú-sica brasileira, do fi m do século XIX.

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Mas voltando a Cabo Verde e à fi xação das músicas através de partituras, um verdadeiro militante neste domínio foi Jorge Monteiro. Infl exível contra as alterações às obras originais que músicos e cantores costumam fazer, o compo-sitor não lhes perdoava liberdades criativas nos arranjos ou na interpretação, e envolveu-se em várias polémicas pela imprensa, defendendo a sua causa.

À parte a sua luta – inglória, pela vivacidade da música popular que a sua perspectiva ortodoxa não lhe permitiu aceitar – mas muito provavelmente por causa dela, Jotamonte deixou um grande legado à música de Cabo Verde na forma de partituras de composições suas e de outros músicos. Mesmo daque-les a quem chamava simplesmente “tocadores”, por lhes faltar a erudição que ele próprio possuía.

Jorge Monteiro publicou, entre 1987 e 1988, pelo menos cinco títulos de obras com partituras, todos editados pela Gráfi ca do Mindelo:

• Música Cabo-Verdiana – Mornas de Jorge Fernandes Monteiro (Jótamont) (27 mor-nas com partitura e letras);

• Músicas de Cabo Verde – Mornas de Eugénio Tavares transcritas por Jótamont (19 mornas com partitura e letras);

• Mornas e Contra-Tempos Coladeiras de Cabo Verde (recolhas e explicação sobre a coladeir a, com mornas de B.Léza, Lela d’Maninha, Pitrinha, Jorge Barbosa, Sérgio Frusoni, Luluzim, Tututa e Paulino Vieira e os chamados contra-tem-pos Tartaruguinha (Jotamonte), Nha Codé (Pedro Cardoso), Oi Armando (Goy) e Manchê (popular).

• Música de Cabo Verde – Mornas de Francisco Xavier da Cruz (20 mornas de B.Léza transcritas por Jotamonte.)

• Mornas para Piano (56 mornas de vários autores).

E ainda: Música Caboverdeana – Mornas para Piano, conjunto de 29 partituras editado pelo Instituto Camões, 1995, acompanhado por brochura biográfi ca da autoria de Carlos Gonçalves; e Música ao Alcance de Todos [1991], uma introdu-ção à teoria musical e método prático de violão.

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Jotamonte, em Junho de 1998, no coreto da Praça Nova. Na altura, já afastado da Banda Municipal de S. Vicente, mas sempre a acompanhá-la.

FOTO: GLÁUCIA NOGUEIRA

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Publicada em 1910, brochura de José Bernardo Alfama

traz partituras e letras de nove músicas em voga na época.

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Brochura com partituras, editada pela Sociedade de Geografi a de Lisboa em 1885, provavelmente.

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