registros e processos formativos na educaÇÃo infantil...
TRANSCRIPT
REGISTROS E PROCESSOS FORMATIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
AUTORIA E DIÁLOGO
Os artigos que compõem o painel destacam a importância do registro e da
documentação como espaços de memória e narração de histórias e que, por suas
características, engendram diálogos e aprendizagens. Propondo a discussão sobre
processos formativos do professor de educação infantil, as autoras argumentam que o
exercício do registro, em suas múltiplas modalidades e possibilidades, potencializa a
reflexão e fertiliza autorias docentes; ou seja: ao documentar a experiência vivida o
professor reafirma sua condição de sujeito da formação e autor de sua prática. As
propostas de registro são diversas: pensamentos anotados em papéis ou no aplicativo do
celular, fotografias, escrita em cadernos de registro, produção de álbuns de imagens,
recorte e colagem, pinturas, desenhos, áudio-gravação, pequenas filmagens, etc. Nas
tramas do cotidiano educativo e da prática pedagógica, a intencionalidade reflexiva do
registro permite ao professor ampliar possibilidades de, revisitando o passado, projetar o
futuro. Seja revelando e problematizando meandros das relações entre os diferentes
profissionais na educação infantil – buscando e construindo sentidos da profissão,
reveladas nos dizeres sobre fazeres e saberes, específicos e do coletivo –, seja
apresentando e discutindo conceitos e práticas que contribuem para repensar propostas
de cursos de formação continuada – contemplando experiências do corpo sensível, de
educação estética –, as pesquisas que deram origem aos trabalhos apresentados afirmam
que a dinâmica de registrar o vivido possibilita o alargamento do olhar dos educadores,
contribuindo para (re)significar suas experiências. Como vem sendo apontado pela
bibliografia especializada sobre o tema, no âmbito nacional e internacional, ao compor
quadros imagéticos – descrevendo fatos, atividades e aprendizagens –, ou formular
análises do vivido – repensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado –,
quando intencionalmente produzido e coletivamente partilhado o registro transforma-se
em documentação das histórias construídas no espaço educativo, reconhecendo e
validando diferentes saberes.
Palavras-chave: Formação Continuada, Saberes Docentes, Registro
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8925ISSN 2177-336X
2
CORPO, ARTE E NATUREZA: CAMINHOS DA FORMAÇÃO MARCADOS
EM REGISTROS DE UM CURSO DE EXTENSÃO
Adrianne Ogêda Guedes - UNIRIO
Resumo:
No percurso de formação dos professores da Educação Infantil, os registros apresentam-
se como espaços potentes de documentação, nos quais e pelos quais são marcadas as
experiências docentes, potencializando processos de reflexão. Resultado de uma
pesquisa-formação desenvolvida em uma universidade pública localizada na cidade do
Rio de janeiro, o presente artigo discute questões suscitadas pela realização e análise da
proposta do “Curso de Extensão em Educação Infantil: Corpo, Arte e Natureza”.
Oferecido nos anos 2013 e 2014 como parte do convênio firmado entre o Ministério da
Educação (MEC) e a referida universidade, aberto aos professores de Educação Infantil
em exercício, da rede pública do estado do Rio de Janeiro, o curso teve por objetivo
pensar e propor processos formativos sob o viés da estética, dos sentidos e das
sensibilidades corporais. Algumas questões nortearam a pesquisa-formação: que
espaço/tempo é o da formação continuada? Quais os seus limites, possibilidades e o que
aprendem os professores nesses espaços? Quais os subsídios necessários para que seja
uma experiência relevante? Como dialogam espaços formativos e escola? Nesta direção,
o registro e a documentação foram propostos como instrumentos que, alinhavados às
reflexões acerca da autoria e criação do professor, reafirmavam sua condição de sujeito
da formação e autor de sua prática. As propostas de registro foram diversas, desde
pensamentos anotados em papéis ou no aplicativo do celular, até imagens e textos
postados nas redes sociais. Culminando no chamado “Álbum da Vida”, imagens, textos,
colagens, pinturas, recortes e uma série de outros recursos se fundem à experimentação,
vivência, bases teóricas e reflexão acerca de como se dá o processo de formação do
professor da Educação Infantil.
Palavras chave: Formação de professores; Educação estética; Documentação.
Introdução: um curso de extensão, muitas questões
No estágio de ser essa árvore um irmão aprendeu de sol, de céu
e de lua mais do que na escola. No estágio de ser árvore meu
irmão aprendeu para santo mais do que os padres lhe ensinaram
no internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus. Seu
olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul. No
estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são
vaidosas. (Manoel de Barros)
Manoel de Barros nos convida, poeticamente, a pensar/sentir a experiência
formativa a partir do contato mais amplo do sujeito com elementos e espaços diversos.
No caso do poema, a natureza e a experiência sensível corporificam essa formação.
Como construir uma prática de formação que possa, efetivamente, contribuir para o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8926ISSN 2177-336X
3
professor em exercício? Essa é a pergunta-chave que, como uma bússola, orienta as
reflexões que teço sobre o projeto de formação continuada que coloco em cena.
Neste trabalho, a partir da apresentação do “Curso de Extensão Educação
Infantil: arte, corpo e natureza”, oferecido por uma universidade pública do Rio de
Janeiro, em parceria com o Ministério de Educação (MEC), nos anos de 2013 e 2014,
colocamos em discussão conteúdos e processos formativos. O espaço do curso
possibilitou o desenvolvimento de uma pesquisa de colaboração, e é sobre essas
possibilidades, que configuram um campo de pesquisa-formação que trataremos,
focando na análise de um específico instrumento: o registro de práticas produzido ao
longo do referido curso.
A análise estará voltada para os dados do curso oferecido em 2014 que, assim
como o primeiro, teve como público-alvo professores de Educação Infantil (creches e
pré-escolas) da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Participaram 80 professores,
sendo que o critério de seleção, indicado pelo MEC, consistiu em que todos os
candidatos estivessem atuando na área. É importante destacar que esta iniciativa
constitui-se em uma das ações referentes à Política Nacional de Formação de
Profissionais do Magistério da Educação Básica, na qual a formação inicial e
continuada desses professores encontra-se entre as prioridades, buscando garantir
educação de qualidade, centrada no aprendizado do educando.
Funcionando aos sábados pela manhã, o curso de extensão teve como objetivo
central oportunizar aos professores participantes experiências variadas no campo da
educação estética, no campo das artes visuais, expressão corporal, dança, teatro, cinema
e literatura, e foi operacionalizado em dois módulos. O primeiro módulo focalizou a
educação estética e as infâncias, tendo como objetivo o estudo e reflexão sobre os
conceitos e fundamentos estéticos da arte, o estudo dos conceitos de cultura e infâncias,
imaginação e criação na infância e as múltiplas linguagens artístico-culturais em suas
especificidades. O segundo módulo tratou da Arte na educação infantil. Nesse módulo,
a ênfase esteve voltada para o relacionamento e interação das crianças e, principalmente
dos professores, com diversificadas manifestações estéticas e culturais – música, artes
plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura.
No aspecto metodológico, o curso foi marcado pela proposição de vivências,
articuladas com as reflexões teóricas e os espaços de troca e compartilhamento de
experiências docentes. Assim, mais do que discutir e estudar sobre a importância das
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8927ISSN 2177-336X
4
artes na Educação Infantil e o aprendizado de um conjunto de técnicas e/ou formas de
trabalhar com as crianças, a cada sábado os professores participantes eram convidados a
colocarem seus corpos, imaginação, sensibilidade em ação. As experiências foram
focalizadas no corpo e no movimento, uma dimensão pouco presente nos espaços
formativos, tanto na formação inicial do professor (Cursos de Pedagogia) quanto nas
formações continuadas. Como bem nos coloca Vianna (1998, p.11-12), “O corpo é um
meio de expressão, não um meio de atuar automático. O trabalho corporal desenvolve a
sensibilidade, a imaginação, a criatividade e a comunicação”.
Lecionaram no curso, além de professores, artistas dos diversos campos
abordados, considerados, então, especialistas. Desta forma, os professores cursistas
tiveram contato com profissionais que não apenas trabalhavam com formação, mas que
também estavam envolvidos com a experiência criadora. Como parte da proposta do
curso, foram contempladas idas a espetáculos de dança e de teatro (dos professores
convidados para as aulas) que estavam em cartaz na época. O curso contou com um
grupo de 13 professores especialistas, assim distribuídos: 3 na área de Artes Plásticas e
Visuais; 3 em Consciência corporal; 3 referentes à Dança, 2 em Literatura e 2 em
Teatro. Duas professoras-formadoras que atuavam ao final de cada vivência com esses
especialistas, trazendo propostas que seriam experimentadas nas salas de aula de cada
cursista. Os 80 cursistas foram divididos em dois ou três grupos que variavam de acordo
com a proposta.
As premissas teórico-metodológicas que fundamentaram as estratégias
priorizadas, tais como garantir espaços de vivencias em todos os encontros, se
assentavam na compreensão de que a formação de professores precisa necessariamente
envolver o plano das vivências estéticas. Por estética tomamos o conceito utilizado por
Freire (2003), como algo que acontece na realidade, nas relações, na escola, na sala de
aula, chegando a dizer que “é impossível educar sem fazer uma experiência estética”
(FREIRE, 2003 citado por TREZZI, 2011, p. 74). A estética da qual falamos é, então,
algo visceral, que vem de dentro, ou que nos atinge por dentro, despertando e/ou
aguçando sentidos, nos atravessando e afetando. O estético reside nas vivências e no
que fazemos com elas.
Na proposta implementada, o professor cursista foi compreendido como sujeito-
professor e, nessa perspectiva, a formação tinha como foco levar o professor a refletir “a
respeito de seus próprios processos de apropriação dos conhecimentos, de suas relações
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8928ISSN 2177-336X
5
com os alunos, de seus dilemas, de suas conquistas e de suas histórias” (GUIMARÃES;
NUNES; LEITE, 1999, p. 161). Como sujeito da formação, torna-se importante ser ele
quem explicita, intervém e reorienta o processo (JOSSO, 2010). Ao narrar e registrar
suas vivências na formação, o sujeito-professor constrói sentidos sobre o ato de educar
crianças pequenas.
Fazer, compartilhar, refletir: registrar
Desta maneira, compreendendo a importância das narrativas dos professores, de
suas marcas do percurso formativo experienciado, foram produzidos registros de
diversas formas: fotografias, entrevistas, interação na rede social e confecção do Álbum
da Vida – livrão em que os professores-narradores registravam com diferentes recursos
as experiências, reflexões, aprendizagens vividas ao longo do curso. A produção e
documentação possibilitaram acompanhar as impressões dos professores cursistas
revelando como as experiências afetaram e contribuíram em cada prática.
A rede social, modo encontrado para socialização de experiências e criação de
um espaço de rápida comunicação entre todos os participantes, com o passar do tempo
assumiu funções antes não previstas. Ao longo do curso eram visíveis o
compartilhamento de trabalhos e atividades realizadas, e também sugestões além do que
fora proposto no grupo; questionamentos acerca das próprias práticas no cotidiano
educativo; e trocas referentes a eventos, cursos e programas culturais.
Observando a forma e o conteúdo dos registros digitais, nota-se a presença de
muitas imagens, carregadas de sentido e afetividade, para quem as postava e quem
compartilhava/visualizava. Mas também apresentavam uma narrativa carregada de
simbolismo e especificidades, pois o tempo de uma postagem na rede é diferente do oral
e da escrita.
A escrita também esteve presente, sobretudo na produção dos “Álbuns da Vida”,
reafirmando a potência das narrativas e a autoria dos professores. A respeito do ato de
narrar, próprio das pesquisas narrativas, Benjamin (1994) nos diz que as experiências
narrativas têm se tornado cada vez mais raras na contemporaneidade, em função de um
tempo que dá relevo à velocidade das informações, ao consumo em detrimento da
experiência e da convivência.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8929ISSN 2177-336X
6
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.
Quando se pede a um grupo que alguém narre alguma coisa, o
embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências (BENJAMIN, 1994, p. 197-8).
As pesquisas narrativas buscam abrir espaço para que a experiência dos sujeitos
seja contada e interpretada, possibilitando para aqueles que tenham acesso a ela, a
reflexão sobre a sua própria trajetória no contato e na interlocução com a trajetória do
outro. Além disso, contribuem para pensar/ponderar sobre as questões e problemas
educacionais, ao trazer via bio-história aspectos da trajetória profissional e de seus
contextos à tona. Ao desenvolver de modo sistemático a prática de escrita e análise
sobre os relatos, com os professores, este tipo de estudo configura um tipo de pesquisa
de colaboração, à medida que os professores envolvidos nesse processo se tornam
simultaneamente objetos e sujeitos da pesquisa. Desta forma, o estudo aqui apresentado
comunga de tais princípios, configurando-se uma pesquisa-formação.
Os itens a seguir apresentam e analisam as formas de registro propostas pelo
curso e como foram produzidos esses registros e documentação por parte dos
colaboradores, os professores participantes.
Registros fotográficos: olhares dos professores
Analisando o vasto material produzido, uma forma de registro bastante utilizada
pelos cursistas foi a fotografia. Nos compartilhamentos da rede social, muitos eram
feitos através das fotos, seja dos momentos entre o grupo nas aulas, imagens de
propostas realizadas com as crianças nas diferentes instituições em que atuavam
(algumas inspiradas no que viviam no curso) ou os registros das amizades firmadas a
partir daquele encontro semanal.
A fotografia, segundo Lopes (1998), pode ser vista como uma possibilidade de
concretização da imagem visual por um observador atento e sensível à realidade.
Considerar a educação em uma perspectiva estética, ou seja, como algo que nos
atravessa, marca e motiva, implica refletir sobre as emoções no percurso de formação,
nas companhias que escolhemos e na maneira como nos expressamos. No material
analisado, a fotografia foi instrumento para a comunicação dos sentidos expressos
artisticamente em imagens pelo observador-professor. Na escolha do que compartilhar,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8930ISSN 2177-336X
7
nas atividades com as crianças, é possível ver o encontro e as relações estabelecidas.
Nas imagens, identificamos também, entre conhecimento, arte e prática docente, o
estranhamento, o prazer do encontro e a emoção nas vivências.
Imagem 1: Registro fotográfico e relato na rede social da ação com crianças pela professora cursista.
Fonte: da autora
Imagem 2: Registro fotográfico de vivência com o grupo feito por cursista
Fonte: da autora
Registros nas redes: multiplicam-se as trocas
O grupo virtual foi criado na rede social por iniciativa dos coordenadores do
curso, para facilitar a interação e a comunicação entre cursistas, especialistas e
formadores; também foi veículo de divulgação de informações do curso e outros
eventos relacionados à arte para os cursistas. Interessante destacar que apenas uma
cursista não fazia uso da tecnologia e, para não ficar de fora das trocas, essa professora
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8931ISSN 2177-336X
8
levava sua contribuição na aula seguinte e compartilhava com a turma. Com os
compartilhamentos de atividades e a interação entre o grupo, o espaço tornou-se de
todos. Ao longo dos meses, os cursistas já faziam convites para participação de eventos
e atividades, já identificavam e informavam o que poderia enriquecer o repertório
cultural do grupo. Pelo material postado, revela-se claramente a ressonância das
experiências vividas em cada um dos integrantes da turma.
Ao longo do curso as formadoras propunham experiências a serem realizadas
nos espaços escolares em que atuavam as professoras cursistas. Essas “tarefas”
semanais consistiam em ações simples de pesquisa ou propostas a serem vividas com as
crianças. Essas atividades podiam ser propostas também pelos especialistas, como em
uma das aulas, onde a professora especialista pediu que os cursistas escolhessem uma
obra de arte que dialogasse com eles e postassem no grupo da rede social. A atividade
visava ampliar o repertório de imagens dos cursistas. E a participação foi intensa.
Muitos olhares, relatos e Marc Chagall. O grupo revelou a descoberta algo de
inspirador no pintor, pois compartilharam vários de seus quadros. A interação e os
comentários a partir dessa proposta foram significativos, aconteceram fora das aulas,
mas não da formação, um espaço permanente de reflexão e construção.
Imagem 3: Fotografia de uma das obras de Chagall selecionada por uma das professoras cursistas,
seguida do comentário: “Esse quadro de Chagall me tocou, pois como vivenciamos muitas memórias na
aula passada, tenho a sensação de que a mulher do quadro também está recorrendo às suas memórias...”
Fonte: http://en.musees-nationaux-alpesmaritimes.fr/chagall/node/55
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8932ISSN 2177-336X
9
Podemos afirmar que a rede social se tornou um espaço de reflexão sobre si e
sobre o outro – esse outro era às vezes um colega de escola, a criança presente nas
instituições em que trabalhava ou o colega cursista, que por meio das imagens e
comentários postados se abria para receber críticas, sugestões e até provocações, no
sentido de fazê-lo repensar a própria prática e buscar conhecimento teórico que as
fundamentassem. Percebe-se que nesse processo os cursistas não apenas narravam e
(re)construíam seus percursos, mas também rememoravam as práticas que os
constituíram, ou seja, a memória atuava como experiência formadora (GUEDES;
FRANGELLA, 2013). Esse destaque para a memória e narrativa dos professores é dado
também por Guimarães, Nunes e Leite (2012) ao afirmarem que “torna-se um desafio
resgatar a memória, a palavra e as narrativas dos professores, a fim de que possamos
compreender, nas suas histórias de vida, os sentidos que constroem sobre o mundo” (p.
164). O que muda aqui, ou melhor, acrescenta, é a utilização da internet como receptora
expositora e mediadora das narrativas docentes.
Álbum da vida: escritos e marcas
O vivido só se torna recordação na lei da narração (...). E aí, se
torna outra vez vivo, aberto, produtivo. A memória que lê e que
conta é a memória em que o “era uma vez” converte-se em um
“começa”! (Jorge Larrosa).
O registro e a documentação – na formação, na prática docente e na vida –, são
importantes, uma vez que somos sujeitos de narrativas: como seres sociais, faz-se
essencial a constituição de nossa memória e história. O curso em análise propunha que
os cursistas registrassem todo o percurso do curso. A proposta não se limitava às aulas
ou aos momentos em que estavam realizando alguma das atividades, mas que
buscassem registrar toda a trajetória de reflexão, emoção e ação desde o início, até o
final do curso. Para tanto, todos mantinham um livro de registro, o qual recebia marcas
a cada encontro. As atividades vivenciadas nos diferentes módulos do curso – arte,
dança, consciência corporal, literatura, teatro –, tornavam-se registros escritos a partir
das narrativas dos cursistas.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8933ISSN 2177-336X
10
Dialogando com as produções, vê-se que aos relatos do vivido juntavam-se
objetos ou gravuras: diferentes materialidades eram anexadas ao álbum para expressar e
comunicar as relações estabelecidas. Por meio do álbum, nota-se a abertura para
visualizar as conexões vividas em cada módulo, em cada encontro, em cada aula,
ampliando os modos de pensar. Como nos instiga o filósofo,
(...) considerando-se o saber como problema, pensar é ver e é falar,
mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e
do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha
de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas
palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com
que o ver atinja seu limite próprio, e o falar atinja o seu, de tal forma
que os dois estejam no limite comum que os relaciona um ao outro
separando-os (DELEUZE, 1991, p. 124).
O que essas aulas, os módulos de corpo, arte, dança faziam pensar? Quais as
produções, os sentidos produzidos em cada um? Nota-se que o Álbum da vida foi uma
ferramenta a serviço dos pensamentos vividos nas aulas e pós-aulas. Um registro que
narrava as histórias e experiências dos professores a partir do curso, mas que não
findava ali; ao contrário, assegurava, marcava e firmava a autoria e expressão desse
cursista como sujeito-autor de sua história, formação e do conhecimento.
Imagem 4: Registro de cursista – álbum da vida (instrumento de documentação das narrativas e
experiências do curso de extensão)
Fonte: da autora
A experiência de utilizar outros tipos de registros, diferentes dos formais, mais
usuais nos espaços de formação, convidou os participantes a experimentarem novas
linguagens expressivas, ampliando a possibilidade de dizer de si e da experiência, pois
como traduzir o vivido? Quais sentidos o vivido produz no grupo e em cada um? O
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8934ISSN 2177-336X
11
Álbum da Vida torna-se mais que um instrumento de “aferição” do conhecimento, mas
um convite para que cada um pudesse abrir em seu cotidiano um espaço-tempo para
tecer suas lembranças, ideias, sentimentos, vontades, enfim, o que se passa em cada um.
Imagem 5: Fotografia com relato de experiência e apontamentos para a narrativa sobre a visita à uma
casa de cultura com o grupo do curso.
Fonte: da autora
Destaque-se uma condição para que tais propostas e experiência se realizassem:
o tempo. A experiência é algo que necessita da percepção, de um tempo para a
apreciação e reflexão.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza,
abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,
ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p.25).
O fator tempo é um aspecto que pode ser questionado nos cursos de formação,
inicial e continuada: como os professores podem viver e se apropriar de suas
experiências, podem refletir e tecer novas compreensões sobre a prática, se o tempo
corre, se não há tempo para a reflexão, para o fazer, para o dizer, para o compartilhar?
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8935ISSN 2177-336X
12
Esses álbuns, construídos ao longo do curso e apresentados no dia do encerramento, em
uma grande mostra, onde todos puderam ver, manusear, interagir e se encantar com as
produções dos colegas, testemunham que outros percursos podem ser propostos e
trilhados pelos cursos de formação.
Considerações finais
Uma educação do sensível só pode ser levada a efeito por
educadores cujas as sensibilidades tenham sido desenvolvidas e
cuidadas. (João Duarte Jr. )
Da análise empreendida, compreendemos que a experiência formadora implica
uma articulação conscientemente elaborada entre atividade, sensibilidade, afetividade e
ideação. Nesta direção, o “Curso de Extensão em Educação Infantil: Arte, corpo e
natureza”, integrou experiências vivenciadas pelo professor-cursista à possibilidade de
produzir sentido sobre as mesmas, mobilizando afetos e ideias, tocando as sensibilidades.
Na concepção, na organização, nos conteúdos e formas, os registros da
experiência realizados pelos cursistas reiteram que se faz mais do que necessário
articular razão e sensibilidades, considerando a realidade dos espaços escolares,
principalmente de Educação Infantil, onde ainda nos deparamos com corpos
precarizados, instituídos e diariamente violentados, tanto dos educadores quanto dos
educandos (ARROYO, 2012).
No modelo de formação apresentado e analisado, o professor não foi mero
expectador, que colhia receitas prontas, mas um vivente, “experimentante” de práticas
que primavam pelo sensível, pelo afetamento do encontro com seu „eu‟ e dele com o(s)
outro(s). Uma formação estética começa pelo educador, de maneira que seus sentidos
sejam alargados da mesma forma que o mar, quando olhamos para o horizonte. Seu
corpo deve estar aberto como as asas de um pássaro ao sobrevoar as rochas. E a mente,
aberta como um guarda-chuva em dia de temporal, mesmo que nos molhemos um
pouco, afinal, como é bom tomar um banho de chuva! O estético reside nas vivências e
no que fazemos com elas.
Uma formação estética requer olhares, escutas, falas, disponibilidade para o
outro; vontade de se expressar verdadeiramente e acolhimento para receber o que se
expressa, sem julgamentos, valores, pudores; sempre afetando de alguma forma,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8936ISSN 2177-336X
13
deixando marcas que muitas vezes são sentidas no mais profundo silêncio e que se
expressam num gesto, num toque, num olhar. E essa sensação ficará para sempre, pois a
vida acontece enquanto há movimento, processos emergindo.
Referências bibliográficas
ARROYO, M. Corpos precarizados que interrogam nossa ética profissional. In SILVA,
M. R. ; ARROYO, M. (orgs.). Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por
outras pedagogias dos corpos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DELEUZE, G. Foucault. 2.ed., São Paulo, Brasiliense, 1991.
DUARTE JR. J.F. O sentido dos sentidos, a educação (do) sensível. 2004.
GUEDES, A. O. ; FRANGELLA, R. de C. P. Bordando palavras, costurando memórias:
práticas de formação-ação. In: KRAMER, S. (Org.). Educação Infantil: formação e
responsabilidade. Campinas, SP: Papirus, 2013.
GUIMARÃES, D. ; NUNES, M. F. R. ; LEITE, M. I. História, cultura e expressão:
fundamentos na formação do professor. In: KRAMER, S. (org). Infância e Educação
Infantil. Campinas, SP: Papirus, 2012.
JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2014.
LEITE, M. I. Linguagens e autoria: registro, cotidiano e expressão. In OSTETTO, L. E.;
LEITE, M. I. Arte, infância e formação de professores: autoria e transgressão.
Campinas, SP: Papirus, 2012.
LOPES, A. E. Fotografia e meios digitais: novas interfaces na produção de narrativas.
In PASSOS, M. C. P.; RIBES, R. M. Identidade, Diversidade: práticas culturais em
pesquisa. Petrópolis, RJ: DP&A; Rio de Janeiro: Faperj, 2009.
RESENDE, C. O que pode um corpo? O método Angel Vianna de conscientização do
movimento como um instrumento terapêutico. Phisys: Revista de Saúde Coletiva.
Physis vol.18 no.3 Rio de Janeiro Set. 2008
TREZZI, C. Schiller e Freire: um olhar sobre a educação estética. Revista Eletrônica
de Ciências da Educação. Campo Largo, v.10, n. 1, p.68-77, jul. 2011.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8937ISSN 2177-336X
14
A PRÁTICA DO REGISTRO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIÁLOGOS ENTRE
ORIENTADORA PEDAGÓGICA E PROFESSORAS
Maria de Lourdes Gomes da Silva – UNICAMP
Resumo:
O artigo, cujo conteúdo advém de uma pesquisa de mestrado, propõe a discussão sobre
situações e temas do cotidiano da Educação Infantil, a partir de relações estabelecidas
entre professoras e coordenadora pedagógica. No percurso, tanto da pesquisa (que
buscou discutir sentidos da orientação pedagógica em circulação na educação infantil)
quanto da ação educativa evidenciada, a produção e a retomada de registros escritos
revelam aspectos insuspeitados de tais relações, permitindo aprofundar a análise dos
complexos elementos envolvidos nas relações profissionais dentro da escola. Na busca
dos sentidos da profissão e atuação, foram tomados como objeto de análise os registros
escritos de situações de trabalho vividas pela autora em três escolas municipais de educação
infantil de Campinas, no período de 2012 a 2014. Para o texto aqui apresentado, destaca-
se a importância do registro na Educação Infantil, a qual vem sendo amplamente
pautada entre os educadores brasileiros e, no diálogo com experiências internacionais,
sobretudo do norte da Itália, tem crescido a apropriação de práticas e princípios que
contemplam diferentes tipos de registros, articulados ao conceito de documentação
pedagógica. Nesta abordagem, a concepção de documentação insere-se em uma
proposta pedagógica que considera a importância da escuta e da observação – das
crianças e das práticas dos seus professores. A potencialidade do registro é afirmada,
pois, como um recurso utilizado para documentar as histórias vividas e compartilhadas
entre professores e crianças, com o intuito de não perder as riquezas do cotidiano e
potencializar o processo de construção do trabalho pedagógico. Na pesquisa e no texto
apresentado, tal importância é referendada, descortinando, por sua vez, processos
formativos possibilitados pela prática do registro e pela análise crítica dos mesmos.
Palavras-chave: educação infantil; orientação pedagógica; registro.
Introdução
O presente texto, produzido a partir de uma pesquisa de mestrado, propõe a
discussão sobre situações e temas do cotidiano da Educação Infantil, a partir de relações
estabelecidas entre professoras e orientadora pedagógica. No percurso, tanto da pesquisa
quanto da ação educativa evidenciada, a produção e a retomada de registros escritos
revelam aspectos insuspeitados de tais relações, permitindo aprofundar a análise dos
complexos elementos envolvidos nas relações profissionais dentro da escola.
Incialmente apresento o contexto da pesquisa, situando referencial teórico e
abordagem teórico-metodológica. Em seguida trago um episódio a partir do qual faço
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8938ISSN 2177-336X
15
um exercício de análise, tecendo algumas considerações a respeito da produção de
registros na educação infantil e do diálogo entre professoras e Orientadora pedagógica
na busca por atribuir sentidos a essa prática no contexto da escola.
A pesquisa: contexto e percurso
A referida pesquisa teve por objetivo apreender os sentidos da atividade de
orientação pedagógica que circulam nas relações cotidianas da educação infantil, a
partir de questões suscitadas pela experiência da autora como orientadora pedagógica
(OP) na Rede Municipal de Ensino de Campinas. Tais questões estavam relacionadas ao
sentido dessa atividade (afinal de contas, o que caracteriza a orientação pedagógica?) e
se assentavam na sensação de perda do sentido e da eficácia do trabalho realizado.
Procurei aproximar-me desses sentidos, a partir das interlocuções produzidas no
cotidiano das instituições de Educação Infantil, onde atuo desde o ano de 2009. Elegi
como objeto de análise, registros escritos de situações de trabalho vividas em três escolas
municipais de educação infantil de Campinas, no período de 2012 a 2014, que
posteriormente foram analisados à luz dos pressupostos de Vigotski (1984; 2000), Paulo
Freire (1983) e Mikhail Bakhtin (1995; 2011) no que se refere à constituição histórico-
cultural da pessoalidade e da profissionalidade dos sujeitos e à centralidade da
linguagem nesse processo. Também utilizei, nesse processo de investigação, alguns
conceitos da psicologia do trabalho de Yves Clot (2007) e o conceito de experiência do
historiador Edward Thompson.
As situações documentadas em meus registros cotidianos deram visibilidade às
interações produzidas entre mim e os demais sujeitos, sobretudo as professoras, na
imediaticidade do cotidiano das escolas. Nelas, a orientação pedagógica não era
propriamente o objeto das interlocuções. As referências a essa atividade emergiam no
âmbito de outros assuntos, em especial de temas da Educação Infantil. Os sentidos da
orientação pedagógica apareciam na forma de comentários, de perguntas, de pedidos de
intervenção, de sugestões, de negociações e indiciavam expectativas, incômodos,
concordâncias e discordâncias em relação à atuação da orientadora pedagógica.
Da perspectiva assumida, as situações registradas foram tomadas, então, como
fonte de indicadores dos sentidos da atividade de orientação pedagógica em circulação e
em elaboração nas interações sociais, produzidas tanto nas condições imediatas, quanto
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8939ISSN 2177-336X
16
nos contextos mais amplos. Para apreender tais compreensões, não bastava analisar o
conteúdo comum, de significação estável, sobre o qual os participantes das ocorrências
interativas documentadas produziam seus enunciados, era necessário também,
considerar os modos como eles enunciavam esse conteúdo, a quem, com que
entonações, com quais apreciações valorativas e em que condições (Bakhtin, 1995;
2011).
Em função do indicado acima, para conduzir tal análise, foi necessária a imersão
nos registros a partir de alguns passos: caracterizar os contextos das situações, seus
participantes e o assunto principal da interlocução onde se indiciavam sentidos da
orientação pedagógica; explicitar o motivo que me levou a registrar a situação;
explicitar os sentidos da orientação pedagógica apreendidos no registro e os elos
existentes entre eles e aqueles presentes na literatura científica da área pedagógica e na
literatura relativa às normas e regimentos que normatizam essa atividade, entendidos
como sua tradição, como seus sentidos cristalizados no âmbito das relações culturais;
explicitar os usos dados aos sentidos da orientação pedagógica no âmbito da situação
imediata registrada e o que se apreendeu em termos de estilos pessoais.
Diante do volume de registros escritos produzidos por mim, no processo de
elaboração da dissertação a necessidade de uma análise mais detalhada me conduziu à
seleção de seis episódios, nos quais se destacavam três temas da Educação Infantil: o
acolhimento, a incorporação de múltiplas linguagens ao processo educativo e o registro.
Nos limites do presente artigo destaco, para apresentação e análise, um episódio que
traz um fragmento do meu cotidiano como orientadora pedagógica, escrito na época em
que ocorreu. Esse episódio tematiza, justamente, a prática do registro na Educação
Infantil, permitindo múltiplas considerações e análises; sobretudo, a situação descrita
revela ações, interações, mediações cotidianas que implicam, em última análise,
processos formativos.
Do “Como você quer que eu faça?” à autoria: aprendizagem em processo
A situação que trago à discussão analítica é uma conversa entre eu e uma
professora ingressante em uma das escolas em que atuo como OP. A conversa
aconteceu no início do ano letivo e foi motivada pelo ingresso da professora em uma
nova unidade escolar e o seu interesse em conhecer os tipos de registros praticados
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8940ISSN 2177-336X
17
naquela unidade escolar. Em meu caderno de registros, descrevi o episódio da seguinte
forma:
Numa das escolas em que atuo temos, nesse ano, uma professora que
veio removida de outra escola. Já é uma professora experiente, com
mais de 20 anos como docente, trabalhava há nove anos numa outra
escola e resolveu se remover. A professora me procurou com uma
pequena lista de dúvidas. Havia anotado para não esquecer. Queria
saber sobre algumas questões de funcionamento do cotidiano da
escola. Eram questões que tinham um caráter de “Como vocês
costumam fazer nesta escola”. E uma das questões era sobre registro.
Embora não tenha se expressado com essas palavras, senti que a
pergunta que ela gostaria de fazer era: “que registros você, como OP,
me cobrará?” Conversei com ela sobre as várias possibilidades de
registro que poderiam ser feitas: registro do trabalho desenvolvido
pela turma, registro do desenvolvimento e aprendizagem das crianças,
registro de suas reflexões como professora a partir do vivido no
cotidiano. Falei que ao final do primeiro e do segundo semestre eu
costumo solicitar que as professoras elaborem um relatório do
trabalho desenvolvido pela turma, que faz parte da avaliação do
Projeto Pedagógico e que pode ser enviado aos pais. Além disso,
havia professoras que faziam “Livro da vida” para registrar o trabalho
com a turma, mas que os registros não eram feitos como resposta a
uma demanda apontada pela OP, ou seja, o registro não era pra mim,
mas uma necessidade do próprio trabalho. Mostrei para ela alguns
registros feitos pelas professoras das escolas para que ela pudesse dar
concretude à minha fala e ela também me apresentou alguns de seus
registros do ano anterior. Fiquei pensando: se o registro escrito fosse
inerente à sua prática profissional, concebido como uma necessidade,
ela provavelmente daria continuidade ao que sempre havia feito e se,
posteriormente, houvesse necessidade, sua forma de registrar poderia
ser adaptada às formas de registro desta escola. Por que ainda temos
na escola, tanta dificuldade em se utilizar da escrita como instrumento
de registro da prática? Será que na prática desta professora o registro
escrito só existia por que havia uma cobrança da OP para que
houvesse? (Registros pessoais, 14 de fevereiro de 2013).
A compreensão da orientadora pedagógica (utilizo-me da forma feminina, tanto
ao referir à OP, quanto às professoras, porque faço referência ao grupo com o qual atuo,
onde somos todas mulheres) como aquela que determina a forma como o trabalho
pedagógico deve ser conduzido e converte o professor em mero executor de tarefas traz
um sentido da orientação pedagógica que circula nas relações do cotidiano da escola e
emerge em diversas situações e de diversas formas, entre as quais as mais recorrentes
são as perguntas “o que você quer que eu faça?”, “como você quer que eu faça?”,
dirigidas à orientadora.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8941ISSN 2177-336X
18
Essas perguntas me incomodam por trazerem ecos e lembranças da herança
tecnicista de minha atividade e de outros enunciados já constituídos sobre as relações de
poder dentro da escola, que legitimam uma posição de mando e de superioridade da
equipe gestora sobre o trabalho docente. No episódio transcrito acima, são esses os
sentidos que eu ouço nessas perguntas e é a eles que eu respondo. O incômodo
suscitado pela fala da professora e seus efeitos sobre o meu modo de escuta e de réplica
conduziram minha participação na conversa analisada. Seus indicadores ficaram
marcados em meus registros.
Como já haviam se passado duas semanas do início do ano letivo, nós duas já
vínhamos nos conhecendo. Nesse período tivéramos reuniões de planejamento e
reuniões de Trabalho Docente Coletivo (TDC) coordenadas por mim. E eu observara a
professora em seu processo de integrar-se ao seu novo grupo profissional.
Sentadas à mesa onde costumamos fazer as reuniões de equipe, iniciamos a
conversa solicitada por ela. A professora trouxe uma pauta escrita. Esse detalhe chamou
a minha atenção porque tenho o cuidado de trazer sempre digitada a pauta das nossas
reuniões semanais. Esse cuidado me aproximou dela. Interpretei a pauta como um
indicador da seriedade de que se revestia a nossa conversa para ela.
Na sua lista de perguntas, ela trazia dúvidas práticas acerca do funcionamento da
escola, e em especial uma das dúvidas mereceu a minha atenção. Era sobre os registros
e eu a ouvi nos seguintes termos: “que registros você, como OP, me cobrará?”.
Embora eu tenha documentado que a professora não me perguntou literalmente
“que registros você, como OP, me cobrará?”, minha compreensão foi essa, não só pelo
incômodo que me acompanha diante de perguntas com esse caráter, que coloca a OP na
função de determinar a prática docente, mas também porque, em alguns momentos da
conversa, ela havia feito referências à orientadora pedagógica da escola anterior e à
forma como ela cobrava alguns registros. Além de tematizar o papel atribuído à OP, a
professora fez uma pergunta sobre um tema que tem ocupado um espaço importante nas
minhas reflexões como orientadora pedagógica: a questão da escrita como forma de
registro do trabalho pedagógico.
A importância do registro na Educação Infantil vem sendo amplamente pautada
entre os educadores brasileiros, inicialmente com as contribuições de Madalena Freire
(1983) e, posteriormente, com a difusão da abordagem Reggio Emilia para a educação
infantil, que traz como um dos seus princípios fundamentais a documentação
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8942ISSN 2177-336X
19
pedagógica. Nesta abordagem, a concepção de documentação insere-se em uma
proposta pedagógica que considera a importância da escuta e da observação e vê as
crianças como portadores de “cem linguagens” (Malaguzzi, 1999). O que se denomina
documentação pedagógica envolve os registros escritos, mas não se restringem a eles,
ampliando as formas de documentar as práticas.
A expressão documentação pedagógica tem sido utilizada para
registrar e problematizar essa forma de acompanhar e potencializar o
desenvolvimento de um trabalho pedagógico e as aprendizagens das
crianças pequenas. Ao documentar pedagogicamente o dia-a-dia na
escola, vão sendo criados elementos de memória, recuperação de
episódios e de acontecimentos. Nesse processo, os adultos
(educadores, pais e administradores) e as crianças vão construindo a
historicidade, vivenciando processos coletivos e, ao mesmo tempo,
preservando a singularidade e os percursos individuais (BARBOSA,
2008, p.94).
Em tempos em que a tecnologia faz parte do cotidiano, as máquinas digitais e os
celulares que fotografam e filmam costumam estar sempre à mão de todos na escola. A
fotografia, antes utilizada para registrar ocasiões especiais, festas e eventos passou a
fazer parte do dia a dia. Fotografa-se tudo e todos na escola, centenas de imagens são
produzidas, mas poucas vezes são utilizadas para uma reflexão sobre o trabalho
pedagógico. Na experiência com o grupo de professores com o qual trabalho, vejo que
vários deles têm utilizado as imagens para compor o relatório da turma ou até mesmo
como recurso da memória para resgatar os acontecimentos de um determinado período.
Acredito na potencialidade do registro como um recurso utilizado para documentar as
histórias vividas, com o intuito de não perder as riquezas do cotidiano com as crianças e
potencializar o processo de construção do trabalho pedagógico.
Compartilho com Shiohara (2009) a ideia de um registro amplo, que inclua
apontamentos, esboços que ajudam o professor a ir além daquilo que é percebido de
imediato e que contribua para o planejamento, o acompanhamento, a retomada e
redefinições de rumos do trabalho pedagógico a ser desenvolvido com as crianças. O
registro, como destaca Ostetto (2012), pode se transformar num instrumento valioso no
trabalho do professor da Educação Infantil e para sua contínua formação, na medida em
que se converte em espaço-tempo de reflexão:
Por meio do registro, travamos um diálogo com nossa prática,
entremeando perguntas, percebendo idas e vindas, buscando respostas
que vão sendo elaboradas no encadeamento da escrita, na medida em
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8943ISSN 2177-336X
20
que o vivido vai se tornando explícito, traduzido e, portanto, passível
de reflexão (OSTETTO, 2012, p.14).
Assumindo esses pressupostos acerca do registro, várias questões sobre sua
prática nas escolas e sobre meu papel no seu fortalecimento entre os professores têm me
ocupado. Quais práticas de registro compõem a atividade docente na Educação Infantil?
O que mobiliza estas formas de registro? De que formas esses registros mediam a
relação das professoras com sua própria prática profissional e com outros sujeitos
(outros professores, famílias, orientadora pedagógica, gestores da escola, Secretaria
Municipal de Educação?). Qual o papel da orientadora pedagógica no fortalecimento da
escrita como registro pedagógico? Como transformar o registro escrito como prática
cotidiana na escola de Educação Infantil?
Através do registro: professoras e orientadora pedagógica tecendo sentidos
Tenho buscado, como orientadora pedagógica, fortalecer junto ao grupo algumas
ações que tem, entre outros, o objetivo de contribuir para o fortalecimento da prática do
registro entre as professoras. Entre elas destaco: o estudo de textos que abordam a
temática, o fortalecimento da prática da escrita através de relatórios individuais das
crianças e de relatórios de turma através de discussões coletivas sobre as diversas
possibilidades de construção deste gênero textual, a socialização dos relatórios depois
de prontos, assim como a possibilidade de cada professor relatar seu percurso de escrita,
explicitar dúvidas e dificuldades, possibilitando a circulação de saberes construídos na
prática. Além disso, coloco-me como interlocutora durante o processo da produção
escrita, trazendo subsídios e contribuindo na própria escrita.
Com práticas dessa natureza, envolvendo a leitura e o exercício da escrita, tenho
reunido indicadores de que aprendizagens diversas estão sendo construídas e que os
sentidos nelas elaborados nem sempre correspondem a compreensões por mim
esperadas.
Mesmo que muitas professoras não questionem mais a necessidade da escrita
dos relatórios de turma, ainda assim, ao final do semestre, quando todos já espreitam as
férias com um olhar cheio de vontade de desacelerar e os pensamentos já se conectam
com os planos das viagens a serem realizadas e o corpo já pede descanso, acaba sendo
difícil reavivar a lembrança de que avaliar o trabalho realizado com a turma é
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8944ISSN 2177-336X
21
fundamental. Cabe à orientadora pedagógica essa empreitada de retomar e relembrar
essa necessidade. É muito comum ouvir, nessas condições, falas como as que se
seguem: “Mas eu preciso mesmo fazer esse relatório?”; “Eu passei o final de semana
com você. Meu marido perguntava por que eu não saía do computador e eu dizia – a
culpa é da minha OP. Tenho que terminar esse relatório”. (Registros pessoais)
Por outro lado, após o desafio vencido, não é raro encontrar na fala de várias
professoras o reconhecimento do valor da escrita e da apresentação do trabalho para o
grupo: “a gente reclama, mas é muito bom retomar o que fizemos no semestre. A gente
fez tanta coisa...”; “Nessa foto a Manu está chorando para não ir para casa. Ela queria
ficar na escola. Isso é tão significativo para uma turma que teve tanto choro na
adaptação.”. As falas revelam uma aparente contradição entre a relutância em fazer os
registros e o reconhecimento da potência, das possibilidades que eles guardam em si.
Ao longo da produção deste texto sobre a pesquisa que realizei, eu mesma
rememorei a minha relação contraditória com o registro escrito do meu trabalho. A
utilização da escrita no contexto de trabalho da orientadora pedagógica é uma constante.
Escrever é uma ação diária. Escrevem-se as atas das diversas reuniões, relatórios e
outros documentos que fazem parte do nosso cotidiano. Com isso, poderia se supor que
a escrita não representasse nenhuma dificuldade, mas não é assim que acontece.
“Escrever é duro como quebrar rochas”, sugere Clarice Lispector (1999). Em função das
dificuldades da escrita, o registro livre da obrigatoriedade acaba sendo esparso, eu
mesma vivenciei essa experiência no processo da pesquisa, tendo dificuldade em manter
o ritmo do registro, necessário para a produção dos dados empíricos.
Na atuação como orientadora pedagógica, é fundamental o incentivo e a reflexão
com as professoras sobre a importância do registro e as variadas formas de fazê-lo.
Conforme documentado em relato do dia 14/02/2014, compartilhado anteriormente, na
conversa com a professora, inicialmente eu elenquei “várias possibilidades de registro
que poderiam ser feitas”. Ao fazê-lo, não só não respondi diretamente à pergunta feita,
como também sinalizei que a escolha seria dela. Em seguida, respondendo à questão
mais específica que ela me colocava, disse-lhe que, “ao final do primeiro e do segundo
semestre eu costumo solicitar que as professoras elaborem um relatório do trabalho
desenvolvido pela turma, que faz parte da avaliação do Projeto Pedagógico e que pode
ser enviado aos pais.” Minha cobrança foi explicitada no contexto da avaliação do
Projeto Pedagógico e da comunicação com a família. Ao situar a cobrança no contexto
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8945ISSN 2177-336X
22
desses dois aspectos, eu sinalizava que a solicitação feita não nascia em mim. Eu
intermediava a cobrança de uma tarefa que atendia a interesses da escola.
Na sequência da descrição da conversa, anoto que retomei o leque de
possibilidades de registro com a professora e reiterei que essa atividade não era feita
para responder a uma demanda da orientadora pedagógica.
Nos segmentos analisados, foi se caracterizando um modo de me enunciar como
orientadora pedagógica que antecipava para a professora o que esperar de mim nas
relações profissionais que nos articulam na escola. A orientadora pedagógica que
prefigurei para minha interlocutora caracteriza-se por não definir tarefas, nem modos de
fazer a serem cumpridos pelas professoras. Conforme o meu registro, coerentemente
com essa imagem, mostrei à professora alguns registros feitos pelas professoras da
escola.
Durante o processo de análise, flagro contradições na imagem de orientadora
pedagógica por mim enunciada. Ao mesmo tempo em que insisto em apontar que as
possibilidades de registro são diversas, indico que uma dessas formas, por fazer parte de
uma prática consolidada na escola, seria solicitada. E mais, ao tomar distância do vivido
na escola em relação à prática do relatório semestral de turma, fui-me dando conta de
que sua incorporação foi impulsionada por mim e que minha participação poderia ter
sido mais significativa do que aquela que eu vinha sugerindo à professora.
Do ponto de vista de minhas intenções como educadora, meu objetivo ao propor
a incorporação dos registros de trabalho era trazer a concretude das aprendizagens
docentes e discentes para o texto do relatório de avaliação do semestre, era dar
visibilidade a outras vozes neste documento, aproximando-o da diversidade e
complexidade dos modos de fazer e pensar a prática concreta no cotidiano escolar.
Outro objetivo contido nessa proposta era o de transformar a avaliação semestral em
uma possibilidade efetiva de diálogo das professoras comigo, com as famílias e entre
elas mesmas. O que fiz foi uma proposição e não a imposição de uma prática, pois não
queria que esta se transformasse em uma obrigatoriedade, em mais uma tarefa a ser
realizada pelas professoras.
No entanto, o lugar social por mim ocupado mediou a adesão das professoras a
essa proposta. Porque a atividade de orientação pedagógica se produz entre sujeitos que
ocupam lugares sociais hierarquicamente distintos - o lugar de orientador/a e o lugar de
professoras – e, por mais "democráticos" que sejamos em nossas intenções, a posição
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8946ISSN 2177-336X
23
hierárquica ocupada pela orientadora configura suas intervenções e sugestões como
"uma fala de autoridade" e antecipa a possibilidade de que suas propostas sejam levadas
em conta pelos professores. Nesse sentido, a tradição instaurada na escola passou por
minhas ações e intenções, mesmo que eu avaliasse que sua incorporação à rotina do
grupo fora mediada pelas experiências de professoras, que contribuíram para o
reconhecimento de sua importância.
Essas considerações me trouxeram de volta à interlocução registrada. Embora eu
não me enunciasse como autoridade dentro da escola, essa era uma dimensão
constitutiva de minha atividade que eu vinha tentando desconstruir em minha
interlocução com a professora que chegava à escola. No meu registro evidencia-se o
interessante movimento da nova professora, de incorporação ao grupo, de desejo de
conhecer “como se faz aqui nesta escola”. Ao agendar a conversa e se preparar para ela,
organizando por escrito as perguntas que queria fazer e trazendo os registros que fizera
no ano anterior, a professora indicia seu interesse em conhecer a „memória social do
trabalho‟ do grupo ao qual se integrava.
Embora essa “memória do trabalho”, como sinaliza Clot (2007), esteja
disponível para os sujeitos na ação, os iniciantes precisam de tempo para apreender o
que é reconhecido, esperado, valorizado ou interditado em um meio profissional dado.
Tempo, durante o qual, o conhecimento das regras que compõem essa memória social
faz falta, uma vez que ela funciona como um conjunto de recursos graças ao qual a ação
individual se organiza, se realiza e tem sentido para o próprio sujeito e para seus
interlocutores.
Ao perguntar sobre a memória de trabalho do grupo, a professora pede à
orientadora que a “ensine a olhar”, tal como dissera o menino a seu pai, no conto de
Eduardo Galeano (2002), que a ajude a compreender os signos relevantes para o grupo
em que se inseriu. O sentido da orientação pedagógica que ela privilegia ao solicitar a
conversa é o de formação, o de intervenção no processo de vir a ser em que ela se inicia.
Esse movimento, todavia, é minimizado em meu relato. A ele sobrepus minha
dúvida acerca de suas práticas e de suas intenções: Fiquei pensando: Se o registro
escrito fosse inerente à sua prática profissional, concebido como uma necessidade, ela
provavelmente daria continuidade ao que sempre havia feito e se, posteriormente
houvesse necessidade, sua forma de registrar poderia ser adaptada às formas de registro
desta escola. Por que ainda temos na escola, tanta dificuldade em utilizar da escrita
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8947ISSN 2177-336X
24
como instrumento de registro da prática? Será que na prática desta professora o registro
escrito só existia por que havia uma cobrança da OP para que fosse feito?
Embora eu não tenha feito apontamentos sobre o que suscitou em mim tais
dúvidas, nem consiga reconstruir os indícios que me levaram a elas, no momento da
análise reconheço indícios de uma desatenção aos processos de constituição profissional
da professora. Meus apontamentos se referem à imagem que fiz da professora e não ao
que ela me mostrou. Registrei minha réplica a uma imagem idealizada do que “deveria
ser” a prática docente, com o registro incorporado à sua rotina. Do mesmo modo,
idealizo a relação professora/orientadora. Com isso, deixei de lado os processos do “vir
a ser” indiciados no episódio.
Registro: da memória a outras histórias
Para finalizar, importa ressaltar que toda a discussão e análise empreendidas, ao
longo da pesquisa e escrita da dissertação, assim como no âmbito do artigo aqui
apresentado, foram possibilitadas pela prática da documentação, da memória marcada
na escrita, feito história. História que, como discuti, permite a apreensão de múltiplos
sentidos, visualizando e dando visibilidade às vozes em interlocução, a enunciados e
réplicas, que no contexto da escola são potentes oportunidades formativas.
Referências Bibliográficas
BAKTHIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKTHIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 6ª ed.,
2011.
BARBOSA, Carmen S. B. e HORN, Maria da Graça S. Projetos pedagógicos na
educação infantil. Porto Alegre: ArtMed, 2008.
CLOT, Yves. A função psicológica do trabalho. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007.
FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo: relato de uma professora. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8948ISSN 2177-336X
25
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: LP&M, 2002.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. São Paulo: Rocco, 1999.
MALAGUZZI, L. História, ideias e filosofia básica. In: EDWARDS, C. et al. As cem
linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emília na Educação da Primeira
Infância. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
OSTETTO. Luciana E. (org.). Educação infantil: saberes e fazeres da formação de
professores. 5ª ed., Campinas, SP: Papirus, 2012.
SHIOHARA, Aline. O registro como mediação criadora de possibilidades. 192 fls.
Dissertação (Mestrado em educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, SP, 2007.
VIGOTSKI, L.S. A Formação Social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação e Sociedade, Campinas, n. 71, p. 21-
44, 2000.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8949ISSN 2177-336X
26
PERCURSOS DE APRENDIZAGENS DOCENTES: PRÁTICAS DE REGISTRO
E FORMAÇÃO CONTINUADA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Luciana Esmeralda Ostetto - UFF
Resumo:
O presente artigo, resultado de pesquisa realizada com um grupo de educadoras
(professoras e outros profissionais) de uma instituição pública de educação infantil de
Niterói-RJ, discute a prática do registro diário e da documentação pedagógica enquanto
caminho potente e profícuo de reflexão, de produção de autoria docente, caracterizando-
se como um espaço contínuo de formação. Compreende-se que o professor, à medida
que escreve e reflete sobre o conteúdo registrado, pode tomar sua prática nas mãos,
redimensionando conquistas e desafios, articulando velhos e novos conhecimentos.
Desta forma, realimenta e fortalece a essencial relação entre teoria e prática. A dinâmica
de registrar possibilita o alargamento do olhar, contribuindo para significar e melhor
compreender as tramas do cotidiano e da prática pedagógica que protagoniza. Neste
movimento, articulando passado e presente na intencionalidade reflexiva do registro, o
professor amplia possibilidades de projetar o futuro, ou seja, de formular (por vezes
reformular) o planejamento. O registro apresenta-se, pois, como um dispositivo que
fertiliza o processo de formação continuada. A partir do traçado teórico que apresenta
concepções de registro e documentação, especialmente no âmbito da prática pedagógica
na Educação Infantil, o artigo dá visibilidade a percursos de aprendizagens das
professoras e da instituição (campo da pesquisa) como um todo, privilegiando o diálogo
com as experiências construídas pelo coletivo de educadoras, narrando e discutindo o
observado. Seja compondo quadros imagéticos e/ou descrevendo fatos, atividades,
aprendizagens e comportamentos do professor e das crianças, seja analisando o vivido,
pensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado, quando intencionalmente
produzido e coletivamente partilhado, o registro transforma-se em documentação das
histórias construídas no espaço educativo, reconhecido e validado entre profissionais,
crianças e famílias. Para tanto, professores precisam ser apoiados em suas práticas,
valorizados em suas tentativas e criações para que cresça os sentidos e os significados
da prática.
Palavras-chave: registro; documentação pedagógica; formação continuada.
Ponto de partida: tramas da formação
Que um professor se faz sob a influência de diferentes fatores que perpassam as
dimensões pessoal e profissional, assim como história de vida, formação e prática
docente tramam e tecem percursos docentes, são premissas amplamente discutidas e
confirmadas no âmbito da pesquisa sobre formação de professores, didática e docência
(NÓVOA, 1992; PIMENTA, 1999; FARIAS et. al., 2011, entre outros). Também é
consenso afirmar que na trama da profissionalidade docente, considerando-se fios e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8950ISSN 2177-336X
27
matizes diferenciados que constituem cada pessoa-professor como tal, há uma linha que
dá o tom, que firma a tessitura da identidade: o trabalho docente. Como dizem Farias et
al (2011, p.70), “É no trabalho e pelo trabalho que o professor se define como um
profissional”. Envolvendo-se no contexto da escola o professor vai formando e sendo
formado na cultura docente e, pelo “patrimônio simbólico” compartilhado pelos pares,
em conjunto, vai constituindo sua identidade como um coletivo (FARIAS et. al., 2011).
De outra forma, o fazer do professor não é linha reta, rígida, imutável.
Pressupõe um percurso de necessárias transformações e crescimento pelas
aprendizagens do ofício, como pessoa e como profissional. A ampliação de saberes e a
mudança de fazeres implicam movimentos de reflexão-ressignificação da prática
docente. Vai assim o professor, experimentando o infindável processo de formação: à
medida que ousa afrontar a segurança do já conhecido (e, por vezes, rotineiramente
feito), questionando as verdades estabelecidas e arraigadas no processo ensino-
aprendizagem cotidiano, em diálogo com o real que se lhe apresenta; à medida que
busca, interroga criticamente sua própria prática, refletindo sobre a teoria que lhe deu
sustentação até então. Pois formar-se é continuamente rever percursos, ampliando
aprendizagens, afirmando autoria.
Comungando de tais pressupostos e possibilidades, a pesquisa aqui apresentada
discute a prática do registro diário e da documentação pedagógica enquanto caminho
potente e profícuo de reflexão, de produção de autoria docente, caracterizando-se como
um espaço contínuo de formação. Desenvolvida na interlocução com a Unidade
Municipal de Educação Infantil (UMEI) Rosalda Paim, da rede pública de Niterói-RJ, a
pesquisa contou com a participação de vinte e dois profissionais, sendo dezoito
professoras, uma diretora, uma diretora adjunta e duas pedagogas (em virtude da
presença de diferentes profissionais, quando me referir ao conjunto das participantes,
utilizarei “educadoras”, e não apenas “professoras”). Localizada na região central da
cidade, a instituição recebe 157 crianças com idades entre 2 e 5 anos, em turno integral,
organizadas em Grupos de Referência de Educação Infantil (GREI) por faixa etária,
sendo que em cada GREI trabalham duas professoras. Durante um ano letivo vivi a
dinâmica da UMEI, convivendo semanalmente com seus protagonistas, participando de
encontros de planejamento e de estudos, conversando em momentos não estruturados,
observando tempos, espaços e atividades cotidianamente organizados, tomando notas e
fotografando.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8951ISSN 2177-336X
28
No presente artigo, privilegiando o diálogo com as experiências de
documentação construídas pelo coletivo de educadoras daquela UMEI, os aspectos
conceituais apresentam-se como fios que atravessam o texto e articulam a reflexão
proposta. A narrativa aqui constituída busca dar visibilidade aos percursos de
aprendizagens das professoras e da instituição como um todo, os quais falam de
experiências, caminhos, reinvenção de práticas; histórias, enfim, de sucessivas
aprendizagens, contínua formação.
Movimentos: observar, registrar, refletir
No contexto da prática pedagógica na Educação Infantil, para que serve um
registro? Eis uma pergunta que admite respostas múltiplas: mapear questões envolvidas
no cotidiano educativo para dar visibilidade ao percurso; recolher e sistematizar
observações sobre o dia a dia, sobre o proposto e o realizado; anotar dúvidas e
descobertas; organizar ideias e reflexões sobre a prática pedagógica, alimentando o
planejamento e apoiando o prosseguimento da jornada educativa; traçar memória; tecer
autoria; documentar o trabalho e reunir subsídios para avaliação da proposta
desenvolvida.
A contribuição do registro diário – refiro-me essencialmente à escrita do
professor, àquela escrita marcada em seu caderno de registro, como um diário –, para a
qualificação do trabalho pedagógico e para a contínua formação docente já foi apontada
e discutida, no contexto brasileiro, por vários autores (entre outros, cito: FREIRE, 1983,
1996; WARSCHAUER, 1993; MAGALHÃES e MARINCEK, 1995; OSTETTO et.al.,
2001; OSTETTO, 2008). Uma ideia mobiliza tais estudos: à medida que escreve e
reflete sobre o conteúdo registrado, o professor pode tomar sua prática nas mãos,
alimentando a ligação entre teoria e prática, entre os velhos e os novos conhecimentos,
entre as conquistas e os desafios.
[...] o registro ajuda a guardar na memória fatos, acontecimentos ou
reflexões, mas também possibilita a consulta quando nos esquecemos.
Este “ter presente” o já conhecido é de especial importância na
transformação do agir, pois oferece o conhecimento de situações
arquivadas na memória, capacitando o sujeito a uma resposta mais
profunda, mais integradora e mais amadurecida, porque menos
ingênua e mais experiente, de quem já aprendeu com a experiência.
Refletir sobre o passado (e sobre o presente) é avaliar as próprias
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8952ISSN 2177-336X
29
ações, o que auxilia na construção do novo. E o novo é a indicação do
futuro. É o planejamento (WARSCHAUER, 1995, p. 62-63).
O registro configura-se, assim, como instrumento por meio do qual o professor
marca seu olhar sobre sua própria prática docente e sobre o grupo de crianças; portanto,
espaço privilegiado de reflexão, de (auto)formação. A dinâmica de registrar possibilita o
alargamento do seu olhar – que olha para o trabalho que realiza, para si e para o grupo –
, podendo então significar e melhor compreender as tramas do cotidiano e da prática
pedagógica que protagoniza. Neste movimento, articulando passado e presente na
intencionalidade reflexiva do registro, o professor amplia possibilidades de projetar o
futuro, ou seja, de formular (por vezes reformular) o planejamento.
Em diálogo com as experiências italianas (em especial aquelas desenvolvidas
nas regiões da Emilia-Romagna e da Toscana), a discussão sobre as funções, objetivos e
formas de registro na Educação Infantil pode ser ampliada. Em tais experiências
encontramos o conceito “documentação” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999;
GANDINI; EDWARDS, 2002; DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003; FORTUNATI,
2009; RINALDI, 2012; entre outros). Compreendida como um dispositivo pedagógico
que vai além do registro diário escrito, a documentação incorpora outras linguagens,
como pequenos vídeos, fotografias, slides de crianças e professores em atividades,
gravações em áudio de diálogos das crianças entre si, além da reunião e organização das
produções das crianças e fotografias dessas produções (GANDINI; GOLDHABER,
2002).
Na proposição e prática do registro-documentação está a incorporação da ideia
de uma criança competente: todas as situações das quais as crianças participam são
momentos potencialmente significativos para seu desenvolvimento e aprendizagem;
sendo assim, para além daquelas atividades organizadas e dirigidas pelo adulto,
precisam ser observadas com cuidado e atenção à multiplicidade de ações, interações,
gestos, silêncios, expressões enfim, protagonizadas pelas crianças em tempos e espaços
diversificados, reconhecendo os valores e conteúdos nelas envolvidos (TOGNETTI,
2003). O que importa, portanto, não é a tipologia dos registros, mas o que é registrado,
seu foco: as crianças, seu protagonismo na cena pedagógica.
A principal razão da documentação, dizem-nos a experiência e a literatura sobre
o tema, é revelar cada vez mais as crianças e seus modos próprios de conhecer, se
relacionar com o mundo e se expressar. Os educadores-observadores, registrando
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8953ISSN 2177-336X
30
através de formas variadas, podem construir um entendimento compartilhado sobre “as
maneiras como as crianças interagem com o ambiente, como elas se relacionam com os
adultos e com outras crianças e como constroem o próprio conhecimento” (GANDINI;
GOLDHABER, 2002, p.151).
Como um meio que contribui para ampliação da compreensão dos conceitos e
das teorias sobre as crianças, a documentação é ferramenta para que os educadores
observem, registrem e analisem os acontecimentos cotidianos que envolvem
experiências, descobertas, construções e hipóteses que meninos e meninas formulam
sobre/com o mundo; é também canal de comunicação com as famílias. Nesta
perspectiva, a documentação cumpre três funções decisivas:
[...] oferecer às crianças uma “memória” concreta e visível do que
disseram e fizeram, a fim de servir como um ponto de partida para os
próximos passos na aprendizagem; oferecer aos educadores uma
ferramenta para pesquisas e uma chave para melhoria e renovação
contínuas; e oferecer aos pais e ao público informações detalhadas
sobre o que ocorre nas escolas, como um meio de obter suas reações e
apoio (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p.25).
A documentação nasce da observação, mas observar não é um ato neutro, que
simplesmente espelha ou reproduz a realidade. É um ato interpretativo, que revela
intenções, compreensões, valores, expectativas e representações do observador. Por isso
requer reflexão e discussão crítica (FORTUNATI, 2009). Sendo assim, é importante
destacar que a documentação “não representa um relatório final, uma coleção de
documentos, um portfólio que apenas ajuda com a memória, avaliações, arquivos; é um
procedimento que sustenta a ação educativa (o ensino) no diálogo com os processos de
aprendizagem das crianças” (RINALDI, 2012, p.109). Ou seja, não contempla apenas o
levantamento e recolhimento de dados, mas, sobretudo, exige a análise coletiva do
observado, pressupõe a interpretação junto com outros educadores e crianças – é
processo e conteúdo (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003).
Na base de tal concepção de observação e documentação, é necessário assinalar,
está a ideia de um educador que em seu ofício de educar respeita a identidade das
crianças, escuta e reflete sobre o que testemunha, sem simplificar ou desqualificar os
gestos, as palavras, as expressões de meninos e meninas com os quais convive
(FORTUNATI, 2003).
Interlocução de saberes, pesquisa-formação
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8954ISSN 2177-336X
31
Com um movimento investigativo que parte da observação e identificação das
formas e conteúdos dos registros produzidos no interior da UMEI e se expande no
compartilhamento e discussão de narrativas do vivido, a pesquisa problematizou as
práticas e alimentou o diálogo que aponta para a teorização coletiva dos princípios da
documentação pedagógica. O objetivo principal foi identificar os caminhos das
professoras, sua compreensão e prática de documentação, suas escolhas – gestos,
palavras, formas, expressões, materialidades e suportes utilizados –, por meio das quais
o processo vivenciado se revela.
Buscou-se um fazer investigativo participativo, traçado junto às educadoras, no
convite à interlocução de saberes, assumindo uma dinâmica relativa aos processos de
pesquisa-formação: o exercício da narrativa fertilizada na aventura-apropriação da
experiência-palavra das participantes foi privilegiado, procurando evidenciar a
necessidade e importância de o educador ver-se como autor e narrador do seu fazer-
saber educativo.
Na abordagem da documentação pedagógica, tal como já apontado, a observação
carrega a qualidade da escuta (MALAGUZZI, 1995; HOYUELOS, 2006; DAHLBERG,
MOSS; PENCE, 2003; RINALDI, 2012; FORTUNATI, 2003) impulsionada pelo
compromisso, desejo e disposição de conhecer cuidadosa e atentamente os contextos e
as maneiras próprias das crianças se relacionarem e construírem conhecimentos sobre e
no mundo. Como assinalou Carla Rinaldi (2012), a curiosidade, o desejo, a dúvida, o
interesse, a emoção estão normalmente por trás do ato de escuta.
Nesta direção, esse mesmo procedimento de observação, constitutivo da
abordagem da documentação pedagógica, fundou o caminho metodológico assumido na
pesquisa: estar junto com as educadoras, escutar com todos os sentidos a multiplicidade
de formas e sinais que falam sobre o que está acontecendo no cotidiano educativo e
revelam maneiras de ser educadora. Escuta que não é tão somente acionada para a
recolha de dados, ou para a apreensão de respostas certas às questões formuladas; ao
contrário, a escuta como abertura para a constituição de um campo de significações que
poderão ser produzidas no processo.
O princípio metodológico adotado pode ser assim definido: pesquisar a
documentação por meio de observações e registros que contam histórias e, de certa
forma, as fecundam, haja vista que a documentação é um “processo: dialético, baseado
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8955ISSN 2177-336X
32
em laços afetivos, e também poético; não apenas acompanha o processo de construção
do conhecimento como, em certo sentido, o fecunda” (RINALDI, 2012, p.134).
Compreendendo que documentar é contar histórias, testemunhar narrativamente as
práticas, as ideias e as diversas formas de pensar das crianças, no caso da pesquisa é
testemunhar as diversas formas de fazer e de dizer das professoras – como inventam
tramas, narram e poetizam os acontecimentos, dão sentido à existência, constroem
canais de ruptura com a linguagem “escolarizada”, tradicionalmente cinzenta, rígida,
enquadrada, que tantas vezes silencia adultos e crianças. Documentação é autoria, é
criação (HOYUELOS, 2006).
Modos de fazer, olhar e dizer: aprendizagens docentes
No encontro com a UMEI Rosalda Paim – o cotidiano educativo, o trabalho
pedagógico dos educadores, a organização administrativo-pedagógica –, percebe-se que
o registro está pautado no seu Projeto Político-Pedagógico. É evidente o
direcionamento/convite para que as professoras registrem: todas possuem seus cadernos
de registro, nas salas de referência dos grupos existem os blocões (blocos grandes de
folhas A3 para anotações, desenhos e outras marcas coletivas) e, especialmente, nas
reuniões pedagógicas e de planejamento estudam e discutem formas de observar e
escrever o cotidiano vivido com as crianças.
As paredes dos espaços coletivos, na entrada, nos corredores, também falam da
preocupação com o registro, com a dimensão estética dos modos de dizer e compartilhar
o vivido: as paredes comunicam os objetivos do projeto pedagógico. Nos murais
existentes, além das imagens (às vezes fotos, às vezes produções originais das crianças)
encontram-se títulos e pequenos quadros explicativos, narrando o processo que deu
origem ao que o espectador está vendo. Nota-se o cuidado com o interlocutor, os pais
potencialmente, oferecendo informações que situam os fazeres das crianças e revelam a
proposta educacional.
Diante do volume de dados produzidos na pesquisa e considerando os limites
formais do presente artigo, detenho-me às notas que captaram o percurso de criação de
uma particular forma de registro, sistematização de outros registros: uma experiência de
elaboração de um folder explicativo/informativo sobre a organização e montagem de
um aquário na sala de um determinado grupo. A história, contada a partir de anotações,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8956ISSN 2177-336X
33
observações e conversas com os envolvidos, pretende revelar percursos de
aprendizagens das professoras – mudanças de atitudes, na ampliação de olhares para as
crianças e suas produções.
Tudo começou na sala de atividades do GREI 3, constituído por dezessete
crianças na faixa etária dos três anos e duas professoras. A proposta, encaminhada
como desdobramento do projeto de trabalho que desenvolviam sobre a região nordeste,
em especial sobre o Ceará (estado de procedência das famílias da maioria das crianças
daquele grupo), era montar um aquário. Houve muita participação na empreitada,
crianças, professores, direção, pais, todos entraram na roda para materializar o projeto.
Depois de efetivado, surgiu a ideia de apresentar o aquário às outras turmas e aos pais.
Essa é uma prática da instituição: projetos desenvolvidos são compartilhados entre os
grupos. Como não seria um mural, recurso costumeiro, mas a obra-instalação montada
na sala de referência do GREI, impôs-se a questão: como fazer tal apresentação? A
diretora adjunta, que estava em interlocução direta com as professoras daquele grupo,
dando apoio e incentivando a experiência argumentou em forma de pergunta: o que a
gente recebe quando visita um museu, ou uma exposição? E sugeriu a produção de um
folder. Folder? Questionaram as professoras. Como fazê-lo? As professoras mostravam-
se abertas a novas ideias e propostas, mas o questionamento revelou um
desconhecimento sobre o “objeto”.
Depois de conversas e apropriação do significado de um folder, o ponto de
partida foi a documentação produzida até então: o texto que haviam elaborado sobre o
projeto e os desenhos das crianças que mostravam aspectos do aquário e do mar,
assinalando diferenças entre um e outro. O texto e os desenhos foram produzidos com
tranquilidade, pois esses dois instrumentos já fazem parte da proposta da instituição
(ainda que a escrita das professoras não seja tão fluida ou estruturada com clareza e
densidade analítica). Na dinâmica de interlocução com a equipe gestora-pedagógica, o
texto inicialmente produzido foi analisado e problematizado: onde estavam as vozes das
crianças? A escrita trazia marcadamente as vozes das professoras, de maneira mais
protocolar, com informações sobre todo o projeto, o Ceará, os costumes e tradições, o
mar; falavam também de aquários, tipos de peixes, etc. De outra forma, era muito
extenso para ser incorporado a um folder.
Com relação aos desenhos, ao contrário, pareciam abreviados. Notava-se uma
produção gráfica esquematizada, com linhas tênues, meio apagadas, parecendo esboços
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8957ISSN 2177-336X
34
em grafite. Por que não cultivar aqueles desenhos, propor às crianças-autoras o
aprofundamento da linguagem, uma espécie de revelação das imagens?
Com novas indicações, a partir do processo reflexivo compartilhado, o texto foi
revisado e adequado ao material que seria divulgado naquele específico formato.
Também os desenhos foram revistos com as crianças: como poderiam ser realçados,
haja vista que agora seriam as “figuras” para o folder que apresentaria o aquário para as
outras turmas e para os pais?
Importante destacar a atitude das professoras, sua empolgação e alegria
estampadas em seus olhos, que sorriam com a possibilidade de enriquecimento do
trabalho, que se sentiam valorizadas no percurso da proposta que nascera com elas, com
o grupo de crianças, resultado de um processo, de um projeto vivo que recebera
acolhida.
As crianças também estavam eufóricas. Antes mesmo que o folder ficasse
pronto, não se furtavam de explicar a cada pessoa que por ventura fosse à sala, sobre a
construção do aquário: como fizeram, como conseguiram os peixinhos, do que precisa
para manter os peixinhos vivos e o aquário limpo.
Neste clima de participação e alegria, próprio de um processo coletivo
expressivo, o trabalho continuou. O texto para o folder foi revisto, tendo sido resumido
nas informações, dando destaque para as falas das crianças; os desenhos foram
vivificados, por assim dizer, pois na nova versão notava-se a exploração das cores e dos
traços, que enriqueceu sua forma final. Enquanto o grupo trabalhava, a diagramação do
folder ia sendo esboçada no computador, com o apoio da diretora adjunta. Com a
aprovação do grupo, desenhos e texto foram transportados para o folder projetado no
computador. E pronto. Era só imprimir e compartilhar.
Como observadora, acompanhando o processo, vendo a proposta tomar forma e
se concretizar, testemunhei elementos de um percurso criador. Tão simples e tão
complexa produção! Um olhar rápido poderia taxar: elementar. Todavia, no exercício de
escuta atenta do pesquisador em diálogo, revela-se a qualidade do experimento: singelo,
comum, mas ao mesmo tempo tão forte no significado pedagógico e pessoal, sobretudo
para aquelas professoras, mas para as crianças igualmente.
A forma foi se constituindo e se mostrando, na mesma proporção em que as
professoras iam pesquisando e ampliando sua compreensão sobre os modos de dizer.
Por fim, ficou estampado claramente que a forma escolhida para divulgar o projeto, para
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8958ISSN 2177-336X
35
comunicá-lo, amplificou tanto o conteúdo quanto o processo documentado. Mas,
quando não se conhece possibilidades, fica-se restrito ao padrão, em regra cinzento, de
textos formais, escolarizados, didatizados, onde se ouve apenas a voz do professor.
Quando se trata de documentação, na perspectiva que vimos discutindo, não
basta dizer. É preciso escolher como dizer. É preciso dizer com beleza. E o belo, como
valor estético, já afirmou Hoyuelos (2006), não é um adorno vazio, mas a condição que
nos leva a melhorar nossa sensibilidade interpretativa e criativa.
A experiência observada revelou que quando os professores são acolhidos em
suas iniciativas e compreendidos em seus limites, o trabalho se transforma e ganha
maior qualidade. Tal como afirmara o pedagogo italiano (MALAGUZZI, 1999), é
fundamental não abandonar os professores a si mesmos e seguir, ao contrário, apoiando-
os em suas inciativas e processos de trabalho: neste caso, está em jogo não apenas a
produção de boas experiências pedagógicas cotidianas, mas a intensificação de
processos autorais, que pressupõem transformação de papéis, assumindo a centralidade
da reflexão critica sobre as práticas produzidas.
Nota-se, pois, a importância do acompanhamento e da interlocução com a equipe
gestora-pedagógica, confirmando a aprendizagem coletiva das professoras no processo,
participativo e dialógico, que é marca do trabalho da UMEI Rosalda Paim. Por trás do
percurso aqui documentado, no que concerne às ações das professoras em diálogo
constante com a equipe gestora-pedagógica, está a observação e a escuta, que “é
premissa de qualquer relação de aprendizado – aprendizado que é determinado pelo
sujeito aprendiz e toma forma na mente desse sujeito por meio da ação e da reflexão,
que se torna conhecimento e aptidão por intermédio da representação e da troca”
(RINALDI, 2012, p.125; grifo do original).
De outro modo, mostra que o processo de documentação pode ser potencializado
no diálogo, no apoio ao que as professoras já fazem, ampliando as possibilidades de
atuação e construção de interpretações, na medida mesma em que ampliam seu
repertório no fazer.
No âmbito da pesquisa ficou evidente esse movimento de diálogo e apoio,
percebido em atitudes que revelam intencionalidade e o compromisso de toda a equipe
na condução de práticas que buscam a qualidade no desafio de educar e cuidar meninas
e meninos no coletivo da Educação Infantil. Por exemplo, o estudo sobre registro e
documentação está na pauta da instituição, e vai ganhando densidade compreensiva e
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8959ISSN 2177-336X
36
interpretativa pari passu com as tentativas das professoras de dizer o vivido, revelando
as crianças e suas aprendizagens, revelando a crença nas crianças, mas com um
diferencial: partindo da crença em seus próprios saberes-fazeres como docentes-autoras.
Assim, com coerência, competência e responsabilidade, a teoria vai sendo nutrida pela
prática, pelas questões advindas da prática, num intenso movimento de formação
continuada.
Há nisso um longo exercício, fertilizado no coletivo, admitindo idas e vindas,
articulando prática-teoria-prática. Por meio de tal dinâmica, ação e reflexão vão sendo
dialeticamente incorporadas, encorajando o professor a ocupar um espaço privilegiado
de pesquisador e produtor de teorias, e não simplesmente um “consumidor da certeza e
da tradição” (EDWARDS, 1999, p.164).
Seja compondo quadros imagéticos e/ou descrevendo fatos, atividades,
aprendizagens e comportamentos do professor e das crianças, seja analisando o vivido,
pensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado, quando intencionalmente
produzido e coletivamente partilhado, o registro transforma-se em documentação das
histórias construídas no espaço educativo, reconhecido e validado entre profissionais,
crianças e famílias.
Para tanto, professores precisam ser apoiados e reconhecidos em suas práticas,
valorizados em suas tentativas e criações para que cresça os sentidos e os significados
da prática. É preciso ouvir os professores com todos os sentidos, para acolher os
percursos de aprendizagem, acionar outras dimensões do ser professor. É fundamental
dialogar, cultivando sensibilidade.
Referências bibliográficas
DAHLBERG, G.; MOSS, P. e PENCE, A. Qualidade na educação da primeira
infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003.
EDWARDS, C.; GANDINNI, L. e FORMAN, G. As cem linguagens da criança.
Porto Alegre:Artmed, 1999.
FARIAS, I.M.S. de et.al. Didática e docência: aprendendo a profissão. Brasília:Liber
Livro, 2011.
FORTUNATI, A. Processi in relazione. In: TOGNETTI, Gloria. Creare esperienze
insieme ai bambini:la documentazione delle esperienze dei bambini nel nido.
Azzano San Paolo: Edizioni Junior, 2003.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8960ISSN 2177-336X
37
FORTUNATI, A. A educação infantil como projeto da comunidade: a experiência de
San Miniato. Porto Alegre: ARTMED, 2009.
FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, M. Observação, registro, reflexão – instrumentos metodológicos I. 2ª. ed.
São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996.
GANDINI, L. e GOLDHABER, J. Duas reflexões sobre documentação. In: GANDINI,
L. e EDWARDS, C. Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto
Alegre: Artmed, 2002. (p.150-169).
HOYUELOS, A. La estética en el pensamiento y obra pedagógica de Loris
Malaguzzi. Barcelona: Ediciones Octaedro; Rosa Sensat, 2006.
MAGALHÃES, L. ; MARINCEK, V. Instrumentos de registro da reflexão do professor.
In: CAVALCANTI, Z. (Org.). A história de uma classe. Porto Alegre: Artes Médicas,
1995.
MALAGUZZI, L. História, ideias e filosofia básica. In: EDWARDS, C.; GANDINNI,
L. e FORMAN, G. As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Artmed, 1999 (p.59-
104).
NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992.
OSTETTO, L. E. et al. Deixando marcas... A prática do registro no cotidiano da
educação infantil. Florianópolis: Cidade Futura, 2001.
OSTETTO, L. E. Observação, registro, documentação: nomear e significar as
experiências In: OSTETTO, L. E. (Org.) Educação infantil: saberes e fazeres da
formação de professores. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p.13-32).
PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo:Cortez,
1999.
RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. São
Paulo: Paz e Terra, 2012.
TOGNETTI, G. Creare esperienze insieme ai bambini:la documentazione delle
esperienze dei bambini nel nido. Azzano San Paolo: Edizioni Junior, 2003.
WARSCHAUER, C. A roda e o registro: uma parceria entre professor, alunos e
conhecimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
8961ISSN 2177-336X