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REPRESENTAÇÃO DO SISTEMA DE ATIVIDADES E SUA INTERAÇÃO COM O
SISTEMA DE TRANSPORTES
André Soares Lopes
Carlos Felipe Grangeiro Loureiro
Programa de Pós-graduação em Engenharia de Transportes - PETRAN Universidade Federal do Ceará - UFC
RESUMO Já há algumas décadas, as comunidades técnico-científicas da Engenharia de Transportes e do Urbanismo vêm
construindo modelos conceituais da interação entre os subsistemas urbanos de uso do solo e transportes.
Esforços isolados das duas comunidades conseguiram alcançar certo êxito na representação parcial deste sistema
tão complexo que é a cidade, mas ainda esbarram na dificuldade de tratar um fenômeno multidimensional como
uma única problemática. A interdependência entre as duas disciplinas e a dinamicidade do fenômeno exigem
uma abordagem mais integradora e sistêmica. Propõe-se, portanto, uma representação mais coesa do sistema de
atividades, visto que os modelos conceituais existentes para tal subsistema ainda apresentam fragilidades que
criam barreiras para o processo de planejamento urbano integrado. Esta proposta tira partido dos avanços
alcançados pelos esforços revisados, construindo uma linguagem comum e confiável às duas comunidades, em
analogia à já bem consolidada representação do sistema de transportes.
ABSTRACT
For some decades, the technical and scientific communities of Transportation Engineering and Urbanism have
been constructing conceptual models for the interaction between the land use and urban transportation
subsystems. Isolated efforts from both communities achieved a certain success in partially representing such
complex system as it is the city, but still face the difficulties of treating a multidimensional phenomenon as a
single set of problems. The interdependency between the two disciplines and the dynamicity of the phenomenon
require a more systemic and integrated approach. It is proposed, therefore, a more cohesive representation for the
land use subsystem, since its existing conceptual models still present weaknesses which rise barriers to the
integrated urban planning process. This paper builds on the advancements of revised modeling efforts,
developing a dependable common language for both communities, in analogy to the well consolidated
transportation system conceptual model.
1. INTRODUÇÃO
Por décadas as comunidades técnico-científicas da Engenharia de Transportes e do Urbanismo
esforçam-se em construir modelos conceituais que representem a problemática urbana de
forma integrada. Estes esforços vêm encontrando grandes dificuldades em avançar nesta
representação devido à grande complexidade que o fenômeno urbano apresenta. De modelos
baseados em simples interação espacial, tais como modelos gravitacionais, passando por
tentativas de modelagem econométrica, microssimulação e modelos baseados em agentes,
todos os esforços esbarram na dificuldade de comunicação entre essas duas comunidades mais
diretamente ligadas com o tema. Empreendendo por muito tempo esforços individuais, tais
comunidades trabalharam como “ilhas” de conhecimento, isoladas uma da outra.
Acredita-se que uma abordagem mais articulada entre as duas disciplinas permitiria aproximar
o resultado da modelagem a uma representação conceitual mais fiel do fenômeno de interesse.
Para se alcançar tal integração, deve-se partir dos elementos comuns às duas comunidades, e
tentar reconhecer quais avanços apontam na mesma direção; mas também exige um esforço
de tornar comum aos engenheiros e urbanistas a linguagem e os significados desta
representação, para que as contribuições sejam mutuamente recíprocas em seus benefícios. A
aproximação dos modelos conceituais para os subsistemas urbanos de atividades e de
transportes parece ser um passo imprescindível na tentativa de unificar os esforços de
entendimento das cidades. Já se sabe que das duas disciplinas é possível distinguir dois
principais interesses: o de desempenhar atividades, distribuídas no solo urbano, e o de
deslocar-se, para alcançar tais atividades dispersas. Apropriando-se de conceitos econômicos,
já bem consolidados pela engenharia de transportes, acredita-se que uma melhor
representação das relações de oferta e demanda entre os dois subsistemas permitiria, primeiro,
entender os seus ciclos de decisões, desde o desejo de desempenhar atividades até as escolhas
de transportes associadas, e o efeito deste processo decisório na maneira como o solo é
utilizado; e segundo, entender melhor o papel de cada ator envolvido na composição urbana:
quem oferece o quê, quem consome o quê.
O objetivo geral deste artigo é avançar na representação conceitual do sistema de atividades
para que este se torne mais robusto e compatível com a representação do sistema de
transportes, já bem consolidada pela comunidade técnico-científica da engenharia de
transportes. O intuito final é uma representação sistêmica, ilustrando o funcionamento do
fenômeno urbano a partir da visão conjunta desta disciplina com a disciplina do urbanismo.
Para chegar a este objetivo, foi realizada uma revisão bibliográfica dos esforços de
modelagem da interação entre os dois subsistemas (item 2), seguida do desenvolvimento de
uma proposta unificadora representativa do sistema de atividades, que seja compatível com as
duas comunidades (item 3); por fim, elaborou-se uma representação integrada dos dois
subsistemas, a partir da revisão e adaptação de conceitos inerentes ao sistema de transportes
(item 4).
2. CONECTANDO DUAS DAS ILHAS DO PLANEJAMENTO URBANO
Os primeiros esforços integradores de representação do fenômeno urbano, encabeçados pelas
disciplinas do Urbanismo e da Engenharia de Transportes, limitaram-se à interpretação da
interação entre dois dos subsistemas da cidade: o uso do solo, também denominado de sistema
de atividades, e o sistema de transportes. Timmermans (2006) reforça a importância da
relação entre estes dois subsistemas ao afirmar que são fortemente interligados, com cada um
tendo uma grande influência na dinâmica de funcionamento do outro. Waddell (2011) apoia
este argumento ao dizer que mesmo o senso comum, corroborando o que as pesquisas
acadêmicas já apontam, percebe que mudanças no sistema de transportes influenciam os
padrões de ocupação e desenvolvimento do solo urbano, escolhas de moradias e locais de
realização de atividades. Da mesma forma, mudanças nos padrões de uso do solo afetam
diretamente as origens e os destinos dos deslocamentos dentro da cidade, bem como a própria
quantidade e frequência das viagens, assim como a escolha do modo de transporte.
As diversas tentativas de representação integrada do fenômeno urbano mostraram-se
fundamentadas em duas visões bem distintas. Duas interpretações destas visões destacam-se,
sendo a primeira proposta por Pietrantonio et al. (1996), e a segunda por Wegener (2004). Em
sua interpretação dos processos de planejamento urbano, Pietrantonio et al. (1996) propõem a
separação dos vários esforços em duas óticas: uma segmentada, que compõe a abordagem
compatibilista (não sistêmica) entre uso do solo e transportes; e a ótica estrutural, como
contraponto à primeira, que propõe uma conceituação de complementaridade (sistemicidade),
que deve permear o esforço integrador desde sua gênese. Mais tarde, Wegener (2004) aponta
para formatos de interpretação dos modelos de integração de planejamento dos transportes e
do uso do solo. Em sua proposta são apresentados os conceitos de modelos compostos, como
aqueles em que a cidade é vista como um sistema hierárquico de subsistemas interconectados,
mas estruturalmente autônomos; e o conceito de modelos unificados, que propõem uma
abordagem fundamentada em princípios básicos unificadores dos diversos subsistemas
tratados. É uma interpretação altamente integrada, partindo de conceitos básicos comuns aos
vários subsistemas constituintes da cidade.
Deve-se reconhecer, entretanto, que apenas a interação entre estas duas disciplinas não é
suficiente para se alcançar um conceito mais pleno de planejamento urbano integrado; que
deve envolver também as demais disciplinas que tratam das múltiplas dimensões da cidade.
Esta é uma tarefa bastante desafiadora, mas percebe-se um poder de abrangência destas duas
disciplinas que, segundo Waddell (2011), poderá surtir efeitos positivos em outras, em
especial nos estudos do meio ambiente. Reconhecendo essa limitação, este trabalho busca
esclarecer as relações e os avanços na representação dos sistemas de atividades e de
transportes.
2.1. A visão dos engenheiros de transportes
Os modelos mais evoluídos de representação sistêmica dos componentes do fenômeno urbano
foram elaborados em grupos multidisciplinares e apresentam-se hoje em estágio bem
avançado de desagregação de dados. Há décadas suas teorias alimentam programas
computacionais robustos com modelos representativos dos sistemas estudados, apresentando
relativo sucesso (Iacono, 2008). Para os estudiosos, a compreensão do funcionamento do
sistema de transportes parece estar bem consolidada, uma vez que se percebe alto grau de
homogeneidade na maneira como tal sistema é representado. A seguir, são discutidas três
representações desenvolvidas por esta comunidade para a relação entre uso do solo e
transportes.
Figura 1: Relação entre os sistemas de atividades e de transportes (Meyer e Miller, 2001)
Meyer e Miller (2001) construíram, em seu modelo descritivo apresentado na Figura 1, dois
sistemas paralelos associados, sendo o primeiro (esquerda) representativo do sistema de
atividades, conectado ao sistema de transportes (direita), de modo a permitir interações. Estas
relações se dão por elementos que não fazem parte de nenhum dos dois sistemas,
constituindo-se como indicadores externos, porém dependentes das características dos dois
sistemas.
Ortuzar e Willumsen (2011) buscam uma representação que procura ilustrar a grande
influência que os transportes tem na configuração do sistema de atividades. Os autores
reconhecem um paralelismo entre os sistemas de uso do solo e transportes, apesar de não tão
evidente quanto na Figura 1, assim como a existência de um ciclo de alimentação. O que
Meyer e Miller (2001) entendem como elementos externos (indicadores de interação espacial
e de acessibilidade), aqui aparecem como parte do modelo representativo do uso do solo.
Embora não esteja ilustrada na Figura 2, a representação do sistema de transportes é defendida
pelos autores como sendo baseada em uma porção de oferta, que vai alimentar o sistema de
atividades com dados de desempenho e custo, e uma porção de demanda, que é alimentada
pelas mudanças demográficas e de empregabilidade. Para os autores esta interpretação de
oferta e demanda também existe para o uso do solo, sendo o solo ocupável o elemento
demandado. A definição de oferta de uso do solo, por sua vez, não fica clara.
Figura 2: Proposta de Ortuzar e Willumsen (2011) de representação do sistema de atividades
Já na proposta mostrada na Figura 3, mais recente e robusta que as anteriores, Cascetta (2009)
mantém a representação em paralelo, com o sistema de transportes sendo descrito como um
balanço entre componentes de oferta e demanda. Esta representação demonstra, de modo
geral, a consolidação da interpretação do sistema de transportes pela sua comunidade, que
culminou em uma descrição baseada em um modelo de equilíbrio, quantificável pelas
medidas de oferta e demanda de deslocamentos, além de alimentado por características de
localizações e avaliado por medidas de desempenho. Reconhece-se em Cascetta (2009) o
resultado que resume tais avanços da representação.
Constata-se, com base nesta análise de revisão da literatura, que a comunidade dos transportes
construiu historicamente um formato de interpretação do seu sistema que parece contemplar
as necessidades de representação da realidade, possibilitando a quantificação e qualificação da
mesma através de um modelo homogêneo para toda a comunidade. Todos os autores visitados
mostram que a dinâmica de funcionamento da parcela relativa aos deslocamentos se dá por
meio de um sistema de homeostase, ou seja, de aparente equilíbrio, que busca nas medidas de
oferta e demanda do sistema um meio para quantificar as relações e permitir a caracterização
do fenômeno específico. Modelos de equilíbrio, segundo Simmonds et al.(2011), assumem
que o sistema converge para um estado de equilíbrio entre oferta e demanda, focando na
análise comparativa estática desta situação. Modelos de não-equilíbrio, ou dinâmicos, exigem
o que se chama de “feed-back positivo”, que desafia o modo de pensar as relações entre
sistemas tão mutáveis. Os modelos estudados aqui são todos de equilíbrio. Na busca de uma
representação mais fiel à realidade, pretende-se incorporar a idéia de não-equilíbrio, ou de
desequilíbrio, entre os diversos componentes dos dois subsistemas em análise. O desequilíbrio
será representado pela possibilidade de medição do resultado de superávit ou déficit das
relações paralelas. Tais resultados geram novas relações entre sistemas, sem, no entanto,
convergir espontaneamente para uma situação ideal. O desequilíbrio é necessário para que se
possa representar a dinamicidade do fenômeno e suas transformações ao longo do tempo.
Figura 3: Interação dos sistemas de transportes e de atividades (Cascetta, 2009)
Apesar dos pontos em comum na comunidade de transportes, reconhecem-se ainda
fragilidades na tentativa de representação do funcionamento do fenômeno urbano. A que mais
chama a atenção é a incapacidade desta comunidade de interpretar de maneira mais coesa e
consistente a porção relativa ao sistema de atividades. Percebe-se maior dificuldade em
apresentar os elementos formadores do uso do solo, incluindo suas relações internas. As
características descritas para tal sistema não se repetem nas diversas explicações, deixando
também em aberto a maneira como este sistema interage com o sistema de transportes. Sendo
esta a situação, é notória a necessidade de se melhorar a representação do sistema de
atividades. Para isto, reconhece-se a importância de se buscar na comunidade acadêmica do
urbanismo uma proposta mais avançada de representação deste sistema.
2.2. A visão dos urbanistas
À procura de elementos comuns na interpretação do funcionamento do sistema de atividades
foram revisadas tentativas no Urbanismo de representação integrada deste sistema. Em
algumas delas é possível verificar a utilização de medições de oferta e demanda, tal como na
representação clássica do sistema de transportes. Apesar de não se utilizar a palavra
“demanda” explicitamente, muitos dos desenvolvimentos teóricos do Urbanismo tratam das
classificações das atividades entendidas como essenciais para o funcionamento das áreas
urbanas; sendo estas reconhecidas como necessidades básicas da vida nas cidades. Estas
discussões foram sistematicamente construídas desde a carta de Atenas (CIAM, 1933),
influenciando ainda autores na segunda metade do século passado (Ferrari, 1977; Kaiser,
1995), tendo em Torrens (2000) a utilização explícita da nomenclatura oferta-demanda. A
seguir, três interpretações do funcionamento do sistema de atividades, elaboradas por
urbanistas, são revisadas em busca de representações alternativas para o uso do solo.
Em sua representação, Torrens (2000) descreve um conjunto de sistemas paralelos (Figura 4),
aos moldes dos modelos da comunidade de transportes; entretanto, seu modelo parece ser bem
simplificado. Inicialmente, resume bastante a porção relativa aos transportes, limitando-a à
descrição do modelo clássico sequencial de quatro etapas de decisões dos usuários. Outras
fragilidades seriam a fraca representação das inter-relações entre sistemas, chamando-as
apenas de loop de retroalimentação, além de as interações internas do sistema de atividades
não apresentarem qualquer relação causal explícita em sua descrição. Verifica-se, entretanto,
que o autor contribui com a discussão para a representação do sistema de atividades ao ser o
primeiro a descrevê-lo como um sistema homeostático. Vários autores da comunidade dos
urbanistas também criticam muito a adoção da lógica do equilíbrio para sistemas complexos
(Wegener e Fürst, 1999; Timmermans, 2006; Batty, 2011; Simmonds, 2011), muitas vezes
destacando sua incapacidade de tratar adequadamente as relações temporais e os ritmos de
transformações dos diversos elementos formadores de tal fenômeno; entretanto, busca-se aqui
o reconhecimento de que o termo homeostase representa não o equilíbrio estático de sistemas
fechados, mas sim as relações de desequilíbrio e complementaridade entre as porções
componentes do sistema, suas mudanças, declínios e restaurações.
Figura 4: Interação dos sistemas de transportes e de atividades; uso do solo como um sistema
de equilíbrio aparente entre oferta e demanda (Torrens, 2000)
Wegener e Fürst (1999) propõem o que ficou conhecido como o ciclo de retroalimentação
entre o sistema de transportes e o uso do solo (Figura 5). Nesta representação, o sistema de
atividades é descrito como um conjunto de etapas cronológicas, desde a influência dos níveis
de atratividade do solo, passando por decisões locacionais de usuários e investidores,
culminando na atividade propriamente dita. O espaço demandado depende da natureza da
atividade a ser conduzida; por este motivo, as decisões locacionais diferenciadas entre
usuários e investidores indicam que atores diversos podem assumir uma mesma função. Tanto
as decisões locacionais do usuário, quanto às do investidor, geram os desdobramentos
descritos para os transportes; apesar de a Figura 5 indicar que a decisão do investidor aponta
diretamente para a decisão do usuário.
Quanto à sua representação do sistema de transportes, o autor dá um passo adiante em relação
à representação de Torrens (2000) ao utilizar as setas de retroalimentação e a conotação de
ação do usuário, introduzindo um grau bem maior de complexidade; apesar de se aproximar
bastante do modelo quatro etapas, o que parece ser recorrente para esta comunidade. O autor
critica a construção de modelos exclusivamente baseados nos preceitos de transportes, em que
as relações são simplesmente limitadas às interações de movimentos. Seus argumentos são
que as interações espaciais tornam-se atemporais e meramente de equilíbrio estático, não
levando em consideração mudanças, adaptações, ou mesmo aprendizado por parte dos atores
envolvidos, entre outros fatores tidos como relevantes tais como: a interação entre oferta e
demanda, as regras de mercado da terra, limitações legais, etc.
Figura 5: Ciclo de uso solo e do sistema de transportes (Wegener e Fürst, 1999)
Uma terceira interpretação sistematizada (Figura 6) é apresentada por Geurs e Van Wee
(2004) que constroem para o uso do solo uma relação direta de oferta (representada pela
disponibilidade de terra e edifícios) e demanda por atividades, que se inter-relacionam. Este
sistema está representado paralelamente ao sistema de transportes, também interpretado por
uma relação homeostática; sendo os dois sistemas conectados por medidas que os autores
chamam de intermediárias, não representadas graficamente. Estas medidas são descritas como
sendo: distribuição espacial das atividades, volume de transportes e níveis de acessibilidade.
Reconhece-se neste esforço a contribuição de distinguir, dentro do modelo conceitual do uso
do solo, as atividades como elemento diretamente demandado; diferindo das demais
representações que tratam o solo ocupável ou as localizações como tal elemento. O lado da
oferta também distingue tal abordagem das demais ao reconhecer a importância das
edificações (infraestrutura urbana), lado a lado com a terra como elemento ofertado.
A inexistência de uma abordagem comum para a representação da porção relativa ao sistema
de atividades entre os autores visitados denota a dificuldade de se tratar de maneira
homogênea e coerente tal parcela do fenômeno urbano. Tendo como objetivo maior a
compreensão deste fenômeno complexo, a partir de uma abordagem integrada (limitada aqui
aos subsistemas do uso do solo e transportes), perfilha-se a necessidade de se construir um
novo modelo conceitual do sistema de atividades que permita aproximar as duas visões.
Figura 6: Interpretação de Geurs e Van Wee (2004) para a relação Uso do Solo/Transportes
Como analisado anteriormente, pode-se constatar que a construção do modelo conceitual de
compreensão da realidade do sistema de transportes formou-se objetiva e sistematicamente ao
longo de décadas, culminando em um formato amplamente aceito pela sua comunidade
científica, o que aponta este como um modelo a ser seguido. Adotar o formato de
representação construído pela comunidade dos transportes tem como maior fim a
compatibilização entre os modelos representativos dos sistemas, para que possam ser
trabalhados em conjunto, sem perdas de significado ou incompatibilidades, incorporando os
avanços de ambas as comunidades.
3. USO DO SOLO COMO SISTEMA HOMEOSTÁTICO
Em todas as representações de interação dos dois sistemas revisadas anteriormente é possível
verificar que, assim como na abordagem tradicional do sistema de transportes, existe uma
possível interpretação do sistema de atividades como uma relação de desequilíbrio, explícita
ou implícita, entre oferta e demanda. Tal relação, chamada de homeostática, é verificável
graficamente, do lado do Urbanismo, somente nas propostas de Torrens (2000) (Figura 4) e
Geurs e Van Wee (2004) (Figura 6), mas textualmente descrita nas demais representações por
meio do reconhecimento da existência de atores diversos que demandam ou oferecem
atividades.
No modelo conceitual proposto por Cascetta (2009) (Figura 3), que pode ser entendido como
a representação mais bem resolvida dentre as abordagens da comunidade dos transportes, os
três elementos que constituem a porção relativa ao sistema de atividades são vistos de tal
modo que formem dois subconjuntos referentes ao que se identificou como oferta e
demanda.Nos elementos “nível e localização de atividades econômicas” e “número e
localização de residências por tipo”, percebe-se uma proposta conceitual de caracterização
indireta, utilizando as palavras “nível” e “número”, do grau de desejo por atividades
econômicas e por residências, verificações da materialização dos desejos de exercer
atividades. Nesta análise, esta porção do conceito foi relacionada a medidas de demanda. No
restante da representação do sistema de atividades, que compreende o item “espaço disponível
por área e tipo”, fica evidente a intenção de representar a quantificação do sistema disponível
para que as atividades possam ser desempenhadas, na forma de espaço organizado por tipo de
uso (qualificação). A esta porção da representação relacionou-se o termo oferta.
A interpretação do modelo conceitual de Cascetta (2009) para o sistema de transportes (Figura
3), que servirá de base para a representação do sistema de atividades, passa por uma
simplificação dos elementos que o compõem (Figura 7a). A demanda por deslocamentos
surge a partir do desejo de se deslocar (01), sendo este desejo diretamente dependente da
distribuição espacial das atividades. Uma vez desejados os deslocamentos, observa-se que tais
demandas podem ser interpretadas como fluxos origem-destino (OD), também conhecidos
como linhas de desejo, a serem alocados nas redes multimodais (02). Já para a oferta,
reconhece-se a necessidade da infraestrutura (03) sobre a qual o deslocamento acontece,
apresentando um correspondente nível de capacidade (04). A interação homeostática ocorre
na materialização dos deslocamentos na forma de volumes de tráfego sobre a rede ofertada,
reconhecendo-se sua condição de desequilíbrio (05). Este desequilíbrio alimenta o que será
entendido como desempenho do sistema ofertado (06), sendo tão melhor quanto mais
minimizar as necessidades (e correspondentes impedâncias) de deslocamentos.
Figura 7: (a) Simplificação do sistema de transportes proposta por Cascetta (2009); (b)
Proposta conceitual de representação da demanda e oferta no sistema de atividades
Uma vez definido que o sistema de atividades pode ser analisado a partir de uma relação
homeostática (de aparente equilíbrio) entre oferta e demanda, torna-se crucial o
reconhecimento de quais elementos constituem estas duas porções. Apresenta-se, na Figura
7b, uma proposta de modelo conceitual das relações entre demanda e oferta no sistema de
atividades, partindo da analogia com a modelagem do sistema de transportes de Cascetta
(2009) e incorporando o que se reconheceu de importante dos demais autores revisados.
Na porção relativa à demanda, é descrito, como elemento basal do deste subsistema, o desejo
dos usuários de realizarem suas atividades (07). Assim como no sistema de transportes, no
qual se faz uma separação entre deslocamentos demandados de base domiciliar daqueles que
não se destinam nem se originam no domicílio do usuário, para o sistema de atividades esta
separação, entre atividades residenciais ou não, também se torna importante. A função
residencial é responsável pela ocupação de aproximadamente 50% do espaço urbano (Kaiser
et al., 1995), sendo portanto a “atividade” mais numerosa e demandada. Para que a relação da
demanda, expressa pelo desejo por atividades, e oferta se concretize em um modelo
homeostático torna-se importante a mensuração destes desejos (08), assim como acontece na
(07)
(08)
(09)
(10)
(11)
(12)
(03)
(04)
(01)
(02)
(05)
(06)
(a) (b)
modelagem da demanda dos transportes, em que as linhas de desejo são definidas a partir da
estimativa de uma matriz de origens e destinos (OD) obtida por meio de pesquisas
domiciliares.
Do lado da oferta, mais uma vez busca-se a analogia com o sistema de transportes. A oferta,
entendida como a infraestrutura necessária para que a atividade se materialize no espaço, é
inicialmente descrita como a simples existência de espaço urbano organizado onde as
atividades podem ser exercidas (09). Tal espaço urbano pode ser entendido como solo urbano
devidamente zoneado e passível de construção, assim como também pode ser espaço já
edificado, propício a receber atividades. Deve-se reconhecer que estes espaços apresentam
limitações físicas e operacionais que impedem sua indiscriminada fruição. Este limite pode
ser mensurado pela capacidade de tal equipamento ou infraestrutura de atender à sua demanda
(10). A relação entre a capacidade da infraestrutura instalada (conjuntamente com
características operacionais e gerenciais) e a efetiva ocupação do solo por atividades em
exercício é entendida como uma relação de homeostase (desequilíbrio) que pode resultar em
déficit ou superávit (11) desta infraestrutura. Esta relação aponta para uma medida de
desempenho do subsistema como um todo, caso a demanda seja ou não atendida a contento
(12). Entende-se como melhor desempenho para este sistema a condição de maximização das
possibilidades de se exercer atividades; ou seja, melhor desempenho implica em maior
atratividade do uso em questão.
4. PROPOSTA DE MODELO SISTÊMICO
Uma vez elaborada uma nova representação para o sistema de atividades, que contemple as
necessidades de compatibilidade entre as disciplinas envolvidas, o próximo passo lógico passa
a ser a construção da inter-relação entre os dois subsistemas dentro da nova representação. A
interação entre subsistemas vem sendo historicamente construída como um ciclo em que as
interações entre oferta e demanda de atividades e transportes se alimentam e retroalimentam
de maneira a formar um conjunto de relações causais. Da proposta de Cascetta (2009), vista
na Figura 3, é possível interpretar, através do entendimento que tanto o sistema de atividades
quanto o sistema de transportes apresentam homeostase entre oferta e demanda, um modelo
em que a oferta de atividades fica parcialmente de fora do ciclo, sem conexão direta com os
transportes (Figura 9a). Dado que a “demanda pessoal por transporte é derivada da
necessidade de participar em atividades de vários tipos que ocorrem em locais dispersos pela
área urbana” (Meyer e Miller, 2001 [p.333]), que “mudanças nas demandas de uso do solo
geram alterações em certas áreas urbanas (em como estes espaços são usados), de modo que
tais alterações nas localizações dos usos afetam os padrões de deslocamentos” (Ortuzar e
Willumsen, 2011 [p.493]), ou ainda que “o sistema de uso do solo co-determina a necessidade
de uso, criando daí a necessidade de deslocamento de pessoas e bens, que servem para vencer
as distâncias entre atividades oferecidas no espaço” (Geurs e Van Wee, 2004 [p.335]),
propõe-se, portanto, que a dispersão espacial de atividades seja entendida como o principal
motivador para os deslocamentos, o que permite reconhecer aqui a necessidade de integrar a
oferta do sistema de atividades ao ciclo causal. A sua inserção acontece conectando
diretamente esta porção da oferta de atividades à demanda por deslocamentos, como a
principal causa de necessidade de deslocamentos, como pode ser visto na Figura 9b.
Figura 9: Representação simplificada das propostas integradoras dos dois sistemas: (a)
Interpretação da proposta de Cascetta (2009) e (b) Ciclo de relações paralelas
Desta proposta, associada às releituras dos modelos conceituais apresentados anteriormente,
aponta-se para uma nova representação da interação entre os sistemas de transportes e uso do
solo, vista na Figura 10.
Figura 10: Proposta de interação entre os sistemas de atividades e transportes.
5. COMENTÁRIOS FINAIS
Questões ainda em aberto, sobre as maneira de inter-relacionar os dois sistemas, passam pela
interpretação dos indicadores externos de ligação. A partir da análise de revisão dos modelos
conceituais, aponta-se para indicadores de acessibilidade como o melhor elemento de conexão
entre os dois sistemas. Entretanto, com base na interação proposta na Figura 10, percebeu-se
uma assimetria na representação, que contava com a acessibilidade como elemento conector
apenas entre a oferta de transportes e a demanda por atividades. A partir do reconhecimento
que a oferta de atividades tem papel importante como alimentador da demanda por
deslocamentos, verifica-se a assimetria pela inexistência de indicador, aos moldes da
acessibilidade, que sirva de conector. Esta questão em aberto está ilustrada na Figura 10 pela
caixa descrita “Dispersão/Concentração”, que representa a influência da manifestação
espacial das atividades na maneira como as demandas por deslocamento ocorre.
A partir deste ponto dois possíveis passos podem ser dados na direção de fortalecer a
representação proposta através da melhor definição de seus elementos constituintes. O
primeiro é a construção do indicador faltante, que relaciona oferta de atividades à demanda
por transportes. O segundo trata de uma tentativa de validação, tendo em vista que muitos
esforços de interação entre os dois subsistemas já resultaram no desenvolvimento de
ferramentas computacionais, aparenta ser lógico o questionamento se a interpretação, tal
como pode ser vista na Figura 10, tem relação com a maneira como os modelos
computacionais de simulação entendem as dinâmicas de uso do solo.
Agradecimentos
Os autores agradecem o apoio financeiro e institucional concedido pela CAPES.
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