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Literatura e Autoritarismo
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83 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, nº 20 – Julho-Dezembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num20/
REPRESSÃO, RETÓRICA E PODER – AS MULHERES, OS CLÉRIGOS E A FOGUEIRA: UMA LEITURA SEMIOLÓGICA DA PROTAGONISTA BRANCA
DIAS DE O SANTO INQUÉRITO, DE DIAS GOMES
Francisco de Souza Gonçalves1
RESUMO: O presente artigo visa a analisar os semas de Branca Dias, personagem
emblemática de O Santo Inquérito, obra prima do dramaturgo Dias Gomes. A semiologia, isto
é, estudo do sema é uma nova forma de leitura do teatro, modalidade que, no século XX, teve
sua perspectiva modernizada e modificada, juntamente com todos os campos da arte. Os
feixes sígnicos apresentam-se como utilíssimas ferramentas para uma visão mais global da
arte dramatúrgica: aqui, o aprofundamento investigativo dar-se-á nos signos constitutivos de
Branca Dias e daqueles que a circundam, pesquisando como essa interação nos fornece um
panorama de ―repressão‖ ao feminino jacente na obra. Polêmica, a obra de Gomes nos evoca
não só a Inquisição européia de fins da Idade Média, mas também o contexto em que foi
escrita: a ditadura militar brasileira. É uma pesquisa conjugada de texto (discurso), contexto
(histórico, sócio-político), rubrica, constituição das personagens insertas na trama, enredo e
outros elementos que, conjugados, promovem a ação dramatúrgica, o fim último do texto
teatral.
Palavras-Chave: repressão, teatro, personagens femininas, literatura brasileira.
ABSTRACT: This article aims to analyze the semas of Branca Dias, emblematic figure of O
Santo Inquérito, masterpiece of playwright Dias Gomes. Semiology, the study of the sema is a
new way of reading the theater, a modality that, in the twentieth century, has your perspective
changed and modernized, with all fields of art. Signic beams appear as extremely helpful tools
for a more global view of the dramaturgical art: here, the depth investigative give the signs will
constitute Branca Dias and those surrounding it, in researching how this interaction provides an
overview of "repression "in abeyance the feminine work. Controversial, the work of Gomes
evokes not only the Inquisition of the late European Middle Ages, but also the context in which it
was written: the Brazilian military dictatorship. It is a combined search text (speech), context
(historical, socio-political), heading up the inserts characters in the plot, plot and other elements
which, combined, promote dramaturgical action, the ultimate end of the theatrical text.
Keywords: repression, theatre, women characters, Brazilian Literature.
Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da
liberdade. Nem mesmo em troca do sol2.
A personagem pode ser a metáfora de muitas ordens de realidade3.
1 Doutorando em Literatura Comparada no Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); mestre em Letras – Literatura Portuguesa, na supramencionada IES; Professor Docente da SEEDUC-RJ e membro da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM). Email: [email protected]. 2 GOMES, Dias: 1985; p.140 in O Santo Inquérito (fala da personagem Branca Dias).
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1. Preâmbulos
O presente estudo propõe uma discussão sobre os semas, isto é, sinais,
que constituem a protagonista Branca Dias, de O Santo Inquérito, de Dias
Gomes. Munido do fito basilar de promover tal investigação, pretende-se lançar
mão dos signos que Gomes fornece ao expectador/ leitor ao longo da ação
dramática/ narrativa. Além de uma abordagem dos semas, signos, constituintes
da persona de Branca Dias dentro do cosmo ficcional de Dias Gomes,
pretende-se promover o cotejo do folclore que envolve a personagem provinda
do imaginário popular paraibano. Esses elementos folclóricos conjugar-se-iam
com outros, impressos pelo toque da pena de Gomes, trazendo à tona uma
Branca Dias totalmente singular, de uma inteireza única. Pretende-se, ainda,
contextualizar a personagem no tempo em que a narrativa se passa e na época
em que foi composta. A metodologia é comparativa e a pesquisa bibliográfica,
com premissas hipotético-dedutivas.
O Santo Inquérito é uma peça que tem o seu desenrolar na Paraíba do
século XVIII, mais precisamente em 1750. Foi composta por Dias Gomes e
encenada pela primeira vez em 1966, em pleno regime militar brasileiro.
Conta-se a história de Branca Dias, uma jovem aparentemente simples,
que um dia, ao ver um homem se afogando em um rio, salva-o da morte,
através de suas habilidades como nadadora e de respiração boca a boca. Este
homem, Padre Bernardo, é um jesuíta.
Branca Dias vive com seu pai Simão Dias e é uma jovem de um vivaz
fulgor pela vida, apaixonada por seu noivo Augusto. Sua família é de cristãos
novos, isto é, judeus obrigados a converter-se ao cristianismo, pelo Tribunal do
Santo Ofício, órgão responsável por uma conservação da fé católica a qualquer
preço. Os judeus eram obrigados a converterem-se, os que não o fizessem
eram abandonados ao braço secular, isto é, entregues à justiça secular para
que fossem presos, expatriados e, mais comumente, executados.
Assim, ao salvar Padre Bernardo, Branca cria laços de amizade com o
jesuíta, fazendo dele o seu confessor. Este, imbuído do aparente compromisso
3 UBERSFELD, Anne: 2005; p.78 in Para Ler o Teatro.
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obsessivo de salvar a alma da moça, lança-se num batel de imprecações
contra os atos da mesma. A simplicidade da protagonista deixa-se levar pela
suposta ―autoridade eclesiástica‖ da qual o Padre é representante. Seu mundo,
antes simplório, radiante, torna-se um redemoinho de atos de penitência, em
que tudo passa a ser condenável e pecaminoso; todos os atos da jovem
passam a ser considerados como uma ofensa ao divino.
A partir dessa relação íntima com Padre Bernardo, uma série de
acontecimentos é desencadeada, culminando com a morte de Augusto e
Branca, nos famosos autos de fé inquisitoriais. Simão Dias se salva abjurando;
isto é, declarando-se culpado por qualquer ofensa ao ―deus‖ ali preconizado,
qualquer prática de judaísmo e heresia contra a Instituição Católica. O pai de
Branca cede às invectivas da Inquisiçao, representando uma entrega de
qualquer ideal libertário que pudesse possuir, corroborando, pelo seu ato, o
sistema vigente, repressor e cruel.
Branca e Augusto morrem por não cederem aos desejos do Santo Ofício
de declarar qualquer culpa que não possuíam. Representam o ideal de
liberdade que se imola em nome da honra do ser humano e de sua dignidade.
Toda a ação se desenrola durante o julgamento de Branca num
esquema de flash-back e sobreposição psicológica os fatos vão sendo
mostrados. O esquema é ternário sendo o elemento desestabilizador da trama
dramatúrgica o salvamento de Padre Bernardo por Branca. A peça teatral,
apesar de sua construção mimética, reflete, perfeitamente, as propostas de
desconstrução, emergentes no século XX, com um desenrolar diametralmente
oposto ao esquema provindo do teatro romântico ou do teatro clássico. Deste
último, há o uso do coro, o que remete às peças clássicas.
2. Relações texto/contexto em O Santo Inquérito
Neste tópico do estudo, pretende-se analisar e levantar dados que
auxiliem um melhor entendimento da personagem de Branca Dias, tanto do
ponto de vista diegético quanto do extradiegético. Leva-se em conta o contexto
histórico o em que a obra dramatúrgica foi composta, e que qual é a época em
que ação se desenrola.
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Desde o início dos anos 60, o Brasil passava por drásticas mudanças no
campo sócio-político. A maior delas foi o Golpe Militar de 1964, que fixava
definitivamente o conservadorismo de direita no poder. Um governo autoritário
e repressivo se fixa no mais alto posto de poder da nação: o General Castello
Branco tornava-se presidente.
Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas: dirigentes populares, intelectuais, políticos democratas. A UNE
4 foi
proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos
invadidos à bala. Nas escolas e universidades, professores e alunos progressistas expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e muitos jornalistas postos na cadeia. A ordem era calar a boca de
qualquer oposição. (SCHMIDT, 1997, p.328/329)
Em nossa abordagem, podemos notar de forma bem pronunciada que
Gomes evoca uma realidade passada para promover uma visão crítica do
período em que estava inserto. A sua crítica se dirige, diretamente, aos
generais do regime militar instalado no Brasil desde o golpe militar. Essa
situação de repressão, apoiada por uma parte da população, que se não
corroborava com os militares do regime opressivo, era marcada pela
passividade ou não reação, acabando por constituir um apoio ao poder vigente,
levada pela implantação de um injustificável medo do ―comunismo‖: ―No Rio de
Janeiro – Copacabana, Ipanema –, a classe média confraternizava com a
burguesia (...) Abraços, choro de alegria, alívio pelo fim da desordem. O Brasil
estava salvo do comunismo!‖ (SCHMIDT, 1997, p.328)
Muitos foram os heróis e lutadores da liberdade que surgiram nesse
período, todos eles, discordantes da realidade que se impusera, foram mortos,
exilados e duramente punidos pelo regime violento, aparelho repressor da
Ditadura Militar. Como Branca Dias e Augusto Coutinho se sacrificaram em
nome de um ideal maior, a liberdade de ação e pensamento.
Uma forte arma de resistência contra a falta de liberdade foi a
Dramaturgia. Desde a década de 40, a prática de um teatro ligado ao
engajamento político se instala no Brasil, como uma artilharia escamoteada
visando a apregoar idéias interditadas pela censura do regime vigente.
Importante é a colocação do historiador Mario Schmidt (1997, p.318) sobre o
tema:
4 “União Nacional dos Estudantes”
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A primeira grande mudança do teatro brasileiro veio com a fundação do TBC
5 em São Paulo (1948), revelando jovens atores como Paulo
Autran, Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Fernanda Montenegro. A renovação da linguagem teatral brasileira já vinha acontecendo desde 1943, quando o pernambucano Nélson Rodrigues (1912-1980) lançou
Vestido de Noiva. (...) Nos anos 60, o TBC foi acusado de se prender a peças estrangeiras (...). Contra isso, surgem, em São Paulo, as cias. teatrais ―Teatro de Arena‖ e ―Teatro Oficina‖. [A voga de então]
eram as peças do alemão Bertolt Brecht (1898-1956), que defendia um teatro de distanciamento dialético, ou seja, que em vez de iludir o espectador [entreter] com a encenação, o levasse a refletir sobre a
peça e a realidade em que vive. Autores estrangeiros como Sartre, Górki e Tennessee Williams foram encenados junto com brasileiros como Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho,
Augusto Boal6, Ariano Suassuna. (GRIFO NOSSO)
Dentre essas peças encenadas, as tragédias e peças com o tema da
liberdade foram muito caras à resistência promovida pela arte ante os sistemas
repressores em plena vigência: tais peças clássicas, de forte característica
mimética apareciam como veiculadoras metáforas postuladoras de ―idéias
subversivas‖. ―O Santo Inquérito‖ traz em seu bojo esta forte carga de luta
política, como pode ser constatado pela citação do autor da peça entre os
acima relacionados. Assim, reitera-se a função libertária da cultura nesses
tempos:
De 1964 a 1968 a cultura brasileira viu o surgimento de novos
valores, que direta ou indiretamente anunciavam uma certa contestação ao acontecia no país e no mundo. A censura ainda aceitava algumas brechas (ela se tornou mais feroz a partir do final
de 1968). O teatro foi claramente de protesto, buscando conscientizar (...) o público através de choques culturais (―quebrar os tabus‖, ―romper com as normas sociais‖ [...]) usando recursos como
palavrões, nudez (...), cenário caótico, falas e gestos agressivos ou com sentido vago e uma temática abertamente politizada. O diretor José Celso Martínez, do grupo ―Teatro Oficina‖ (SP), o grupo do
―Teatro de Arena‖ (RJ), que projetou Dina Sfat e Paulo José, autores Oduvaldo Viana Filho, Plínio Marcos, Augusto Boal e João Cabral de Mello Neto (Morte e Vida Severina) marcaram época. (SCHMIDT,
1997, p.331) (GRIFO NOSSO)
Em ambos os casos, Inquisição e Golpe Militar de 64, incorrem na força
inibidora de liberdade que, por certas vezes, toma alguns grupos humanos.
Esse ―link‖ entre duas realidades fica patente na primeira rubrica da peça:
5 “Teatro Brasileiro de Comédia”
6 Grande teatrólogo brasileiro fundador do “Teatro do Oprimido”, suas idéias inovadoras e singulares o
levaram a ser estudado em inúmeros países como um dos insignes ícones do teatro contemporâneo.
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Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar
ao máximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até chegarem a um ponto máximo de saturação, quando cessa tudo, de súbito, e acendem-se as luzes. As
personagens estão todas em cena: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notário e os guardas. (GOMES, 1996, p.31)
O encontro entre dois cosmos históricos distintos se dá de forma
subreptícia, através do som da sirene e de feixes signatários que não nos
remetem ao século XVIII, tempo narrativo, mas à contemporaneidade da
encenação teatral. Dois universos se encontram para falar de uma situação
que lhes é comum: a força repressora.
É necessário destacar nesta rubrica os fatores técnicos característicos à
época referida, isto é, uma marca do teatro da década de 60/70: o uso de
praticáveis e diferentes planos em detrimento de outros artifícios cenográficos,
muito caros para as produções teatrais do período, esta é mais ―rústica‖.
Mostrando, além disso, por inserir tais indicações nas rubricas, a
contemporaneidade e o entendimento profundo sobre o fazer teatral que
Gomes possuía: ―O palco contêm vários praticáveis, em diferentes planos. Não
constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo para a representação,
que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no palco e na platéia‖
(GOMES, 1996, p.31).
3. A Inquisição
Partamos para uma melhor compreensão do processo inquisitorial e a
sua relação com o feminino, que é um dos principais leitmotivs de O Santo
Inquérito. Segundo Hilário Franco Jr. (2006), a Organização da Inquisição se
dá entre 1184-1229. No período medieval, ela é incipiente, todavia, já no Baixo
Medievo este destacamento eclesiástico irrompe os limites de sua ação e se
expande: ―o processo misógino efetivado na Idade Média ganha força de le i por
meio dos manuais de caça aos hereges‖ (MALEVAL, 2004, p.70). A figura do
herege começa a se destacar e com isso, a imagem da bruxa, já formada e
composta, construída no período medieval. Além disso, pretende-se
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contextualizar a obra dentro do período histórico-social em que está inserta,
levando em conta a fortíssima ideologia clerical e as manifestações do grupo
dos oratores7, a camada eclesiástica medieval.
A Gregório IX devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229, no Concílio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício. Os Dominicanos logo se puseram à disposição da nova
instituição cabendo-lhes a tarefa de legislar e condenar os heréticos, entregando-as ao braço secular. (...) mulheres, escravos ou crianças poderiam servir como testemunhas de acusação, mas nunca da
defesa (FALBEL, 2007, p.17).
Nos séculos XV e XVI, o processo de construto de uma mentalidade
misógina eclode no genocídio mundial, promovido pelo Tribunal da Santa
Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício. Tal Tribunal tinha por objetivo precípuo
o combate de heresias e de hereges, tanto homens quanto mulheres: antes, o
que era ameaça alienígena, com exceções aos movimentos do século XII
(albigenses), torna-se uma ―febre coletiva‖. Assim, apesar de ―as bulas papais
não fazerem distinção de gênero ao fomentarem a repressão, a maioria
esmagadora dos réus era constituída por mulheres‖ (MALEVAL, 2004, p. 71). O
feminino estigmatizado tornou-se o principal alvo, as mulheres tornaram-se a
principal vítima das fogueiras inquisitórias.
A prática da feitiçaria ou magia, isto é, do que se delimita como práticas
pagãs, e depois foram chamadas de bruxaria passa a ser a meta da repressão;
o termo bruxaria implicaria relação direta com o demoníaco e penetraria ou o
campo do satanismo ou do paganismo sincrético: superstições, sortilégios, ritos
camponeses, etc.
Salienta-se que já na década de 1320, o papa João XXII promulgou uma
bula condenando a magia ritual, tomando-a por diabolismo e heresia. A seguir,
buscar-se-á demonstrar, brevemente, a construção do estereótipo feminino do
mal, numa tentativa de jungir história e literatura nesta investigação, sem contar
que ―a violência do braço secular contra a heresia parece ter crescido na
proporção à sua difusão e influência‖ (FALBEL, 2007, p.16).
7 Georges Duby expressa tal classificação como maneira de divis ão da sociedade de acordo com a função
de cada estamento social dentro do imaginário medievo (DUBY, Georges. Guerreiros e Camponeses.
Lisboa: Estampa, 1993. [p.181])
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Analisa-se, sucintamente, como a ―sociedade teocêntrico-
fundamentalista‖ medieval via a mulher e qual era o padrão comportamental
instituído pelos clérigos para o sexo feminino neste período. Muito deste
padrão, como será visto, deve-se, principalmente, à mentalidade teocêntrica,
profundamente influenciada pelo legado patrístico e por heranças clássicas.
Durante a Idade Média, período embrionário da Inquisição, as questões
concernentes à mulher foram objeto de numerosos didáticos, que abordavam,
num campo de controvérsias, as virtudes e os defeitos femininos. Em linhas
gerais, o padrão comportamental que regia a postura feminina ideal na época
medieval era determinado pelos didáticos cristãos, visto que a Igreja ainda
conservava boa parte do monopólio da escrita. Esses autores, baseados na
interpretação das escrituras, vigente no medievo, ditavam as normas para o
procedimento da mulher no âmbito social.
O eixo mais sólido do sistema de valores a que se fazia na casa nobre para conduzir-se, apoiava-se sobre este postulado fundado na Escritura: que as mulheres, mais fracas e mais inclinadas ao pecado,
devem ser trazidas à rédea (DUBY, 1995, p.218) .
O homem deveria ser o maior dentro da família e da sociedade, toda a
organização institucional na Idade Medieval repousaria sobre a figura paterna,
na célula familiar, a mulher e os filhos estariam sujeitos ao poder e domínio
masculinos. Principalmente a esposa é quem deveria obedecer-lhe cegamente,
―apesar de suas responsabilidades como dona de casa, em suas relações com
o mundo as esposas estavam submetidas ao belprazer dos maridos‖ (Ibidem).
Filipe de Novare escreveu, em meados do século XIII, sobre os deveres
da mulher e sobre os cuidados que sua educação exigiria. A primeira virtude a
ser ensinada às meninas seria a obediência, pois a mulheres ―foram feitas para
obedecer‖: ―Não convinha ao sexo frágil, saber ler ou escrever. Cabia à mulher
aprender a fiar e a coser. A modéstia, o recato, a honestidade devem inspirar
todas as ações da jovem‖ (idem, p.210). Eis, resumidamente, alguns dos mais
importantes elementos que, segundo Novare, caracterizariam o tipo da mulher
da mulher ideal da época.
Aborda-se aqui o âmbito familiar, pois este era o lugar a que se
restringiria, segundo a norma dos didáticos medievais, o espaço onde a mulher
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poderia circular. Todavia, até mesmo neste espaço, sua liberdade era limitada.
A mulher, nessa mentalidade, constituía ―uma ameaça contra a ordem
estabelecida‖, pois, conforme salienta Georges Duby, ―o poder patriarcal sobre
a feminilidade via-se reforçado, porque a feminilidade representava o perigo‖
(Idem, p.218). O autor ainda complementa:
No espaço doméstico, o perigo era principalmente percebido como vindo insidiosamente das mulheres, portadoras do veneno, dos sortilégios, da cizânia, e dos desfalecimentos, as doenças
inesperadas, os falecimentos sem causa aparente (...). Tudo aparecia como artimanhas das mulheres, e da dama em primeiro lugar (Ibidem).
Reiteramos que tal visão, claramente dominada pela misoginia e
opressão do feminino por parte dos homens e instituições, era tido como
moralmente aceitável pelo clero, como uma norma de conduta a ser seguida,
principalmente, pelas damas das classes mais altas, as nobres. Fala-se, aqui,
no que era tido como padrão comportamental ideal pela ideologia da prelazia
radical, e, não o que na prática, necessariamente, ocorria, pois tal ponto ainda
apresenta controvérsias entre os historiadores. E, algumas mulheres, notórias,
justamente por isso, desobedeciam a este padrão pré-estabelecido.
Paolo de Certaldo, moralista medieval, afirma:
A mulher é coisa vã e frívola (...). Se tens mulheres em casa, vigia-as de perto; dá freqüentemente uma volta por tua casa e, enquanto te dedicas às tuas ocupações, mantém-nas (essas mulheres) na
apreensão e no temor (...) Que a mulher imite a Virgem Maria, que não saia de casa a tagarelar por todo lado, para trazer de olho os belos senhores e dar ouvidos às vaidades, não, ela permaneça
encerrada, fechada, no segredo de uma casa como se deve (Idem, p.219).
Duby conclui o tópico aqui abordado, afirmando que ―a sociedade
doméstica era então atravessada por uma separação nítida entre o masculino e
o feminino, institucional, e que repercutia sobre a maior parte dos
comportamentos e das atitudes mentais‖ (Idem, p. 219).
Há uma importante dicotomia entre os sexos, enraizada na ideologia
clerical, que também deve ser observada, influenciando, profundamente, o
protótipo da bruxa desenvolvido entre os séculos XV e XVI. É a dicotomia que
diz respeito à carne a ao espírito, cuja origem remonta crenças não só
baseadas no patriarcalismo judaico, mas também nas teorias filosóficas da
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Grécia Antiga de desapego à sensualidade, aos sentidos (platonismo), rejeição
à carne, e, principalmente uma sexização desta como feminina. Sendo o
cristianismo também um herdeiro destas significativas influências culturais
misóginas, observar-se-á que a nova religião as corrobora e inclui tais
conceitos entre suas prescrições morais ao neófito. Rose Marie Muraro
salienta:
O dualismo platônico mente/corpo, razão/emoção, que foi base de
todo o pensamento ocidental nesses últimos três mil anos (...) serviu apenas como racionalização do exercício de poder expresso nas relações senhor/escravo, homem/mulher, opressor/oprimido, etc
(MURARO, 2000, p. 39)
Assim, chegando ao período patrístico, poder-se-á observar uma
cristalização da visão antagônica entre carne e espírito ligada ao gênero
(MURARO, 2000): a misoginia do mundo helênico, mais mágica e fisiológica,
passa a uma misoginia teologizada no cristianismo nascente (BLOCH, 1995). O
homem seria o representante do espírito, da elevação através da razão,
enquanto a mulher é, como na Antiguidade, ligada à carne, aos aspectos
físicos e sexuais: a carne, passa aí, pelo processo de sexização: é feminina.
Com o Cristianismo, isso se agrava. A sexização da carne conduz a
mais um fator causador de misoginia, que leva à configuração da mulher como
a porta do diabo (ianua diaboli): o ascetismo, que ganhará grande voga nos
inícios do cristianismo, principalmente através dos movimentos monacais,
fomentará uma negação da carne e, por conseguinte uma exacerbação do
antifeminismo. Muraro estabelece tal relação da seguinte forma: ―a objetividade
tem haver com o ascetismo, que vem por sua vez de uma negação do corpo e,
portanto, da rejeição da mulher‖ (MURARO, 2000, p.45).
Todavia, o próprio cristianismo oferecerá novas contradições, já que
afirma a superioridade dos ―últimos‖ sobre os ―primeiros‖, da ―ovelha perdida‖
sobre o restante do ―rebanho‖, do filho pródigo sobre o sédulo. O que se quer
mostrar é que numa expressão antifeminista por excelência, que se dá
obviamente através de assertivas preconceituosas dos primeiros Padres leva a
uma nova relação antitética do feminino: o cristianismo imporá uma nova e
confusa articulação entre os gêneros.
Com efeito, na medida em que a fragilidade da carne é remetida para o lado feminino, ela acarreta, através da inversão de valores de
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fraqueza e força, sinônimos no catolicismo primitivo, a possibilidade de as mulheres serem mais fortes do que os homens (...). Portanto, as mulheres são consideradas candidatas especiais à salvação, uma
vez que, de acordo com a dicotomia que coloca o homem do lado do espírito e a mulher do lado dos sentidos e da sedução, os homens, estritamente falando, têm menos a superar para serem redimidos
(BLOCH, 1995, p. 38).
A mulher também será vista como a esposa de Cristo, aquela que pode
ser fazer incrivelmente santa, suplantando todas as suas ―más tendências‖ e se
tornando até superior aos homens por isso: aqui entra o importante papel de
Madalena no contexto religioso medieval. Multiplicam-se no período da
Patrística os escritos sobre as santas mulheres que foram mártires e virgens,
com feitos grandiosos em nome do Cristo Triunfante então difundido na época.
Isso tudo ao mesmo tempo em que se via o sexo feminino como um retrato da
falsa lógica, um sofisma, que derrota tanto a gramática quanto a dialética,
ciências tidas como as da verdade – a mulher era incontrolável, não-confiável,
apelativa e até enganadora dos sentidos: note-se que Eva convence Adão a
comer do fruto proibido através de suas palavras (Ibidem). Dessa forma,
justapostas às inúmeras imprecações contra o sexo feminino engendradas
pelos Padres da Igreja, encontrar-se-ão, facilmente, elogios a mulheres que
foram santas: ―encontram-se entre os Padres muitas descrições positivas de
mulheres lado a lado com o retrato mais abstrato da feminilidade‖ (Idem, p.40).
A transposição de tantos obstáculos para a santificação poderia fazê-la até
mais santa que o homem: é a mulher no ―entre‖, humanizada, porém dentro
das devidas delimitações, isso atrai as mulheres pela possibilidade de ascese.
Em outras palavras: A virtude mariana e da ―heróica‖ superação feminina
acaba sendo um pólo de atração às mulheres no cristianismo primitivo:
Não só é a mulher que é salva mais santamente do que seu congênere masculino, mas também é uma mulher que carrega a possibilidade de salvação. Maria, a redentora de Eva que a liberta da
maldição da Queda, é um dos grandes temas da era formadora cristã e um esteio da atração do cristianismo (Ibidem).
É imperativo estabelecer preponderante diferença entre a misoginia
cristã e a misoginia clássica (pagã, Greco-romana). Diferenciam-se,
basicamente, por ser a primeira ―teologizada‖, isto é, pensadas, fundadas, nas
premissas de uma interpretação fundamentalista dos textos bíblicos.
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As conseqüências da misoginia teologizada praticada e apregoada na
época patrística terá sérias conseqüências para a Idade Medieval que estava
por nascer. Não só contribuirá, significativamente, para a formação das
mentalidades deste período, mas para a contrução dos topoi antagônicos, que
farão presença simultânea no medievo e causarão a marginalização e uma
opressão ostensiva do sexo feminino, como padrão comportamental reflexivo
do teocentrismo imperante.
A atitude cristã simultaneamente bivalente torna o feminino tão abstrato que a mulher (não as mulheres) só pode ser concebida como
uma idéia e não como um ser humano. Ela polariza a definição do feminino a tal ponto que as mulheres são empurradas para as margens, excluídas do meio (...) afastadas da história. Novamente,
isto não é para negar a importância de mulheres individuais no âmbito da Igreja Primitiva, ou a importância de mulheres místicas no final da Idade Média (Ibidem).
Tendo em vista todas estas considerações, constata-se que a visão
medieval do gênero feminino terá raiz em muitas tradições pregressas, mas
principalmente na patrística. Não só a misoginia medieval como a idealização
da mulher, que se dará na Europa Medieval tanto pelo culto mariano como pelo
amor cortês, tendências cujas características influenciarão fortemente a
sociedade da Contra-Reforma, no século XVIII, inclusive nas colônias em que
os jesuítas foram os evangelizadores, como o Brasil, por exemplo.
Quanto ao misoginismo dentro dos umbrais eclesiáticos, vemos que há
muito já vinha sendo gestado no seio da Mater Ecclesiae, e vai ao encontro dos
anseios do ―dominador‖, do ―repressor‖ – membro do clero ou não, quem
legitima determinada ideologia é toda uma sociedade, não só um órgão dela –
numa incansável tentativa de erradicar de vez o substrato pagão e estabelecer-
se como única autoridade religiosa na Idade Média, posto que, numa lógica de
pensamento, era a própria Igreja quem ganharia mais com isso: ―segundo
Bakhtin, esta visão de mundo, elaborada no correr dos séculos pela cultura
popular, se contrapõe, sobretudo na Idade Média, ao dogmatismo e severidade
da cultura das classes dominantes‖ (GINZBURG, 1987, p.187).
É imperativo salientar que as áreas culturais acabam por entrecruzar-se.
Franco Jr. denomina tal fenômeno de ―reequilíbrio da Idade Média Central‖
(FRANCO JR, 2006, p. 121): ―com as acentuadas transformações sociais,
políticas, e econômicas ocorridas a partir do século XI, foi quebrada a clara
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predominância desfrutada pela cultura clerical na fase anterior. A cultura vulgar
ressurgia com força‖. Deste encontro, a cultura intermediária sofre a influência
de ambas as áreas culturais: o ―Renascimento do século XII (...) significou a
recuperação e revalorização da cultura Greco-Latina [cultura erudita], mas
também, ao mesmo tempo a reemergência de uma cultura folclórica‖ (Idem, p.
122), ou seja, ―não é globalmente expressão da cultura erudita, e sim da cultura
intermediária‖ (Ibidem). É assim que neste tipo de literatura, provindas da
classe intermediária, podemos notar elementos da ideologia clerical e de
―reação‖ folclórica, concomitantemente.
A ―Reação Folclórica‖ do século XI será duramente sufocada pela
intervenção do duplo Igreja-Classes Dominantes. A já citada Supper Illus
Specula é promulgada no século XIV, por João XXII, postulando verdadeiro
entrave e condenação a qualquer prática religiosa ligada à magia ritual, ou
costumes pagãos, o que acontecia, principalmente, na cultura subalterna8;
práticas, estas, que sempre existiram no folclore – ritos de fertilidade, culto de
Jano, oferendas nas fontes –, tudo foi estigmatizado como ―pactos com
demônio‖; e, em 1398, a Universidade de Paris corroborou todas estas
premissas e aderiu à posição papal (MALEVAL, 2004, p. 69). É importante
destacar a assertiva de Rose Marie Muraro, quando falamos de toda uma
classe dominante coadunada no processo inquisitorial, sem eximir a principal
gestora do acontecimento, a Igreja, de qualquer ―culpa‖: ―os quatro séculos de
perseguição às bruxas e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva, mas,
ao contrário foi uma perseguição muito bem calculada e planejada pelas
classes dominantes, para chegar à maior centralização do poder‖ (MURARO,
2000, p.78).
O campo estava semeado e germinando para o que haveria de vir:
Por exemplo, com base em arquivos judiciais foram documentados
288 casos de bruxaria no Norte da França entre meados do século XIV e finais do XVII, numa proporção de 82 mulheres para 100 casos (apud SALLMAN, 1992). No século XV, a perseguição das bruxas
chegaria ao seu apogeu, ocorrendo o auge das fogueiras entre 1455-60 e 1480-85 [já Idade Moderna] (MALEVAL, 2004, p. 71).
Ao levar-se em conta o período inquisitorial, deparamo-nos com o
interessante conceito de ―Sociedade Repressora‖, que como um gatilho 8Daí o principal alvo dos Tribunais serem, além das mulheres, pessoas pertencentes à cultura subalterna.
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desencadeador de acontecimentos de flagrante opressão pública e luta contra
os chamados hereges, é um postulado do medievalista Robert Moore
(MOORE, 1989, s.p.). Tal assertiva encaixa-se de forma muito plausível na
forma de abordagem que Dias Gomes adota para o tema de o Santo Inquérito.
Essa compleição de conformidade é dada, na peça, sob a representação do
alarido popular que acompanha algumas cenas em rubricas, ou seja, o som
seria um sema dessa participação de toda uma ―Sociedade Repressora‖.
Segundo a teoria de Moore (1989, s.p.), as Cruzadas (1095) e a Inquisição
(implantação entre 1184-1229) teriam a tácita aceitação de várias camadas
populares, não sendo somente atitude isolada de só uma instituição, mas da
realeza, dos nobres feudais, dos clérigos, do campesinato (populares e
pequenos comerciantes), da justiça, dos soldados e, principalmente, do ―braço
secular‖ que era quem aplicava as penas: o papel da Igreja era acusar os
hereges. Há de se levar em conta fatores como a contribuição da clericalização
aguda, vigente nos séculos XII-XIII-XIV (Idade Média Central), produto de um
contexto de pós-reforma gregoriana, com um lançar de raízes da
―Institucionalização da Igreja‖, conforme o supramencionado. É quando a
chamada ―Sociedade Repressora‖ (MOORE, 1989, s.p.), estabelece-se sócio-
culturalmente de forma mais ―aguerrida‖. Fomentando, além da Inquisição
(1184-1229), também as Cruzadas, que se tornam realidade de embate político
e cultural desde 1095 (Concílio de Clermont).
Com os movimentos de Reforma e Contra-Reforma, estas
características já agudas no Tardo-Medievo, levaram ao genocídio promovido
pelo Santo Ofício: uma matança geral, que atingia não só os hereges, mas
também os judeus. Especialmente em Portugal a prática de judaísmo tornou
grave crime na Idade Moderna, prolongando-se também às colônias, inclusive
ao Brasil, que é onde se passa a ação d‘ O Santo Inquérito.
Os jesuítas, responsáveis pela inquisição brasileira, juntamente com os
dominicanos aqui desembarcam em busca de crimes contra a fé e a coroa,
especialmente no período em que se passa a ação da peça de Gomes e a
narrativa que é sua raiz (folclore paraibano). Em Portugal, apesar de já
estarmos em um período pós-Restauração, ainda se faziam sentir os efeitos da
religião repressora promovida pela União Ibérica, com a mão poderosa da
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cristianíssima monarquia espanhola e a aguerrida perseguição aos inimigos da
Igreja Romana, tidos como inimigos do Estado.
Levando em conta o conceito de ―Sociedade Repressora‖ de Moore (op.
cit.), outra representação dessa aceitação tácita de uma realidade opressora
emerge, seria a personagem de Simão Dias, o exato antônimo de Augusto
Coutinho. O pai de Branca poderia ter salvado o noivo da moça com um
simples mover de dedos, mas por medo do Santo Ofício não o faz, permitindo
seu assassinato em um instrumento de tortura.
SIMÃO Estou vivo, pelo menos. E é isso que importa, não acha? (...)
SIMÃO É uma loucura pensar que, num momento desses, se possa salvar alguma coisa além da vida. Desde o primeiro momento
compreendi que devia aceitar tudo, confessar tudo, declarar-me arrependido de tudo. Vamos nós discutir com eles, lutar contra eles? Tolice. Têm a força, a lei, Deus e a milícia — tudo do lado
deles. Que podemos nós fazer? De que adianta alegar inocência, protestar contra uma injustiça? Eles provam o que quiserem contra nós e nós não conseguiremos provar nada em nossa
defesa. Bravatas? Também não adiantam. Eu vi o que aconteceu com Augusto. (...)
SIMÃO Em primeiro lugar, o homem tem a obrigação de sobreviver, a qualquer preço; depois é que vem a dignidade. De que vale agora
para nós, para os pais dele, para você, para ele mesmo, essa dignidade? (...)
SIMÃO (Faz uma pausa. As palavras custam a sair.) Ele não resistiu... BRANCA
(Num sussurro.) Morreu! (Mais forte.) Eles o mataram! (Seus joelhos vergam, repete baixinho.) Eles o mataram... Eles o mataram... SIMÃO
Eu sabia que ele não ia resistir. Estava vendo!... depois de tudo, ainda o penduraram no teto com pesos nos pés e o deixaram lá... Quando os guardas voltaram, ainda tentaram reanimá-lo, mas...
BRANCA (Sua dor se traduz por um imenso silêncio. Subitamente:) E o senhor não podia ter feito nada?!
(...) SIMÃO Pensei em baixar a corda. Mas...
(...) SIMÃO E o que me custaria esse gesto? Um homem deve pesar bem suas
atitudes, e não agir ao primeiro impulso. Eu podia ter tido o mesmo destino que ele. Era ou não era muito pior?
(GOMES, 1985, 137-139) (GRIFOS NOSSOS)
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Toda a realidade que a ―Sociedade Repressora‖ da Ibéria produz,
renova-se no século XVIII, tanto nas colônias quanto na metrópole. Dias
Gomes comenta um pouco de sua pesquisa, discutindo o tríptico teatro-
folclore-história.
Padre Bernardo era jesuíta, muito embora os inquisidores fossem, em geral, dominicanos. Mas, nas visitações ordenadas para o Brasil, os
jesuítas tiveram papel de destaque, vindo a ser, depois, suas maiores vítimas, com a perseguição a eles movida pelo Marquês de Pombal. Além disso, aqui, como em toda a peça, seguimos a lenda,
procurando harmonizá-la, sempre que possível, com a verdade histórica e subordinando ambas aos interesses maiores da obra dramática.(GOMES, 1985, p.21)
A Inquisição no Brasil é evocada para discutir a realidade em que
Gomes vive no Brasil de 1966, o que confirma a assertiva de Ubersfeld (2005,
p.71): ―não existe leitura nem encenação inocente”. (UBERSFELD, 2005,
p.71) (grifo nosso)
4. Branca Dias e seus semas
A personagem Branca Dias tem a sua ascendência no folclore
paraibano. Os seus caracteres são ampliados e revistos pelo autor Dias
Gomes, ornando todo o mito com sua criação ―cosmo-artística‖. Gomes focaliza
a personagem em seu lado ―humano‖, tirando-a do universo maravilhoso
popular, fantasmagórico e folclórico. Branca é transplantada do ―causo‖ à beira
da fogueira para um universo mais humanístico, na busca do mimético: heroína
dos palcos. Sobre a personagem teatral cabe comentar juntamente com
Ubersfeld:
Na medida em que o texto teatral é essencialmente não-linear, mas tabular, a personagem é um elemento decisivo da verticalidade do texto: é ela que permite unificar a dispersão dos signos simultâneos.
A personagem retrata, então, no espaço textual, o ponto de cruzamento ou, mais exatamente, de repercussão do paradigma sobre o sintagma; ela é um lugar propriamente poético. No campo da
representação, ela surge como o ponto de ancoragem em que se unifica a diversidade dos signos. (...) A noção de personagem (textual-cênica), em sua relação com o texto e com a representação,
é uma noção da qual a semiologia do teatro não pode abster-se. (UBERSFELD, 2005, p.72)
Sobre a personagem ainda é necessário dizer: Branca Dias funciona
como elemento agregador e unificador de todo um feixe signatário, de um
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grupo de semas que sem a sua persona estariam apartados. Aqui entra o
importante papel de uma abordagem semiológica do texto teatral:
O trabalho de uma semiologia da personagem é mostrá-la justamente como divisível, permutável: ao mesmo tempo articulada em
elementos e, ela mesma, elemento de um ou mais conjuntos paradigmáticos (...). A personagem é um agregado complexo reunido sob a unidade de um nome. (UBERSFELD, 2005, p. 73)
5. Os feixes signatários em Branca Dias e os loca adjacentes
O nome Branca, per se, já evoca uma pureza da qual a protagonista é
portadora. Possui a carga semântica, a significação da cor. A personagem
possui esta pureza, numa perspectiva dialógica com os componentes que a
circundam, podendo-se enxergar pelas ações e reações de Branca uma
amoralidade muito própria do naturalismo pagão. O que parece muito natural a
ela, configura-se em pecado mortal para aqueles que tem por função condená-
la, confundi-la e acusá-la:
BRANCA (Mostra-se perturbada com a acusação.) Heresia... Atos contra a
moralidade... Talvez essas palavras tenham outra significação para os senhores. Pelo que eu entendo que querem dizer, não posso, de modo algum, aceitar a acusação (GOMES, 1996, p. 34).
Em toda a duração do julgamento, o texto indica patente polarização
entre o naturalismo amoral de Branca (tendo por referentes preceitos
ideológicos teocêntrico-fundamentalistas) e a ideologia judaico-cristã
inquisitorial, carregada de preconceitos e de uma retórica jurídica voltada para
a condenação da protagonista. O trecho a seguir ilustra tal fato, demonstrando
que, o que aos olhos de Branca é um simples banho, e sua nudez natural para
ela, torna-se pecado mortal e ofensa contra o deus do Santo Ofício:
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade
têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo
de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou
não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a
civilização cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias
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triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos
inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua! BRANCA
(Desce até o primeiro plano.) Não é verdade! PADRE BERNARDO Desavergonhadamente nua!
BRANCA Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo o mundo. Ele é que não as enxerga!
Padre sai, horrorizado. BRANCA Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? É
verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banhar-me no rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos
jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não,
não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!
(GOMES, 1996, p. 31-32) (GRIFO NOSSO)
Aqui, é importante ressaltar o sema da rubrica ―Desce até o primeiro
plano.‖ (id.) demonstrando atitude firme de Branca Dias ao se defender. Daí
analisa-se a importância das didascálias, do gesto do actante e do diálogo para
o teatro, que funciona como um feixe de signos, que jungidos formam as
significantes dramatúrgicas.
O que é um texto de teatro? Ele é composto de duas partes distintas, mas indissociáveis: o diálogo e as didascálias (ou indicações cênicas
ou direção de cena). A relação textual diálogo-didascálias é variável de acordo com as épocas da história do teatro. Às vezes inexistentes ou quase (mas plenas de significação quando existem) as didascálias
podem ocupar um espaço enorme no teatro contemporâneo. (UBERSFELD, 2005, p.6)
Esta pequena digressão nos permite avaliar semiologicamente todo um
conjunto de teorias sobre a questão do gesto determinado pelas didascálias,
muito claras no texto de Dias Gomes, que já abordamos num outro tópico do
presente estudo. Aqui expõe-se a premissa de Tadeusz Kowzan (2006, p.106)
em A Semiologia do Teatro sobre o movimento cênico do actante e o signo:
O gesto constitui, depois da palavra (e sua forma escrita) o meio mais rico e maleável de exprimir os pensamentos, isto é, o sistema de
signos mais desenvolvido. (...) O terceiro sistema de signos cinestésicos compreende deslocamentos do ator e suas posiçoes no espaço cênico. É principalmente uma questão de: - lugares
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sucessivos ocupados em relação aos outros atores, aos acessórios, aos elementos do cenário [vd. primeira rubrica da peça], aos espectadores; (...) Estas categorias principais do movimento cênico
do ator, consideradas do ponto de vista semiológico, são suscetíveis de prover-nos os mais variados signos.
(KOWZAN, 2006, p.106)
Retornando à mundivisão de Branca Dias, pode-se entrever que esta
reflete uma naturalidade, principalmente a respeito do amor, das coisas simples
da vida. Para Branca, tudo seria um dom provindo do Divino, não poderia haver
pecado em desfrutar da Criação. A amoralidade de Branca Dias é exposta
através de seu discurso, sua visão de Deus é libertária e desprendida de uma
visão pétrea e institucionalizada:
Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos
corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim
que nasceram e assim devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês entendam... Porque eles, eles não entendem... Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída
pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!...
(GOMES, 1996, p.33)
Por exemplo, o signo ―tomar banho na madrugada‖ que, para a
protagonista, é uma necessidade natural, a fim aliviar o calor de uma noite
quente. Para os inquisidores é signo de malleficium, isto é, ato de bruxaria,
próprio de mulheres que copulam com o demônio (SPRENGER; KRAMER,
1991).
BRANCA
Não sei, não sei, não sei... Oh, a minha cabeça... Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro
segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando
ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar.
(GOMES, 1996, p.33)
Um dos fatores mais preponderantes para a condenação de Branca é a
sua transgressão quanto ao Eros, isto é, a sua sexualidade pronunciada e
declarada, sem qualquer máscara ou pretenso fingimento. Poderíamos dizer
que aos ouvidos dos inquisidores isso soaria como uma verdadeira declaração
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de culpa. Era uma legítima portadora da luxúria, da vaidade, da gula e de
outros pecados capitais, inscrevendo-se, como foi ilustrado na mundivisão
clerical tardo-medieva: é uma completa guerra de discursos completamente
opostos – ―a personagem pode estar integrada em um discurso que é o
discurso textual integral, em que ela figura como elemento retórico‖
(UBERSFELD, 2005, p.76):
BRANCA
No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo
isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. É verdade que Deus também fez coisas para o nosso sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e
aprendêssemos a dar valor às coisas boas. (GOMES, 1996, p.33)
Quando Padre Bernardo adentra no cenário, tudo é invertido. Ele é o
elemento desestabilizador. A pureza de Branca subverte-se. Em sua confusão,
nessa tentativa de mudar o pensamento e mundivisão da protagonista, o Padre
faz com que a culpabilização pese sobre o mais fraco (a própria Branca)
(MURARO, 2000) e sobre os elementos, antes enxergados com naturalidade
por Branca. A ponto de deixar-se confundir pelos aparelhos repressores
vigentes: cruéis, opressores e punitivos.
Ela, que era um signo da ―pureza original‖, deixa-se convencer, durante
certo tempo, por uma visão distorcida de mundo, justamente, por essa
simplicidade e fé pura que possuía. Todavia, no fim, a natura prevalece (cf.
primeira citação). Como no livro bíblico do Genesis ao deixar-se influenciar pelo
veneno ofídio de Bernardo passa a tapar-se, envergonhar-se de si, assim como
o par Adão e Eva, metáforas do homem em suas dimensões, cobrem a nudez
diante do Deus-Irado do Antigo Testamento (Ave Maria, s.d., p. 51). Branca em
uma fase intermediária passa a esquivar-se de si mesma, de sua própria
natureza.
Bernardo reveste-se da simbologia primeira do Barroquismo, do homem
em conflito com essa pureza, com essa limpidez, com sua natureza original.
Ele é o signo ―diabólico‖, isto é, divisor, desestabilizador do equilíbrio antes
existente; rompimento da unicidade existente antes de sua chegada. É o
dualismo que oprime, massacra, para que, destruindo Branca, objeto do seu
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desejo sexual latente, sugerido ao longo da obra e revelado no desfecho,
também seja aniquilado.
BRANCA Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar.
Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera. PADRE
(A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação.) Não... Isso não é direito...
(GOMES, 1996, p.35)
Aniquila o objeto, para que a natureza também seja aniquilada. A morte
de Branca representa uma busca cruel de ―cobrir-se‖, eclipsar seus desejos
mais primais despertados pela inocente Branca. A condenação de Branca é
como uma imagem figurativa do ―falo extirpado‖.
BRANCA Eu sei. E sei também que não sou a primeira. E nem serei a última.
Os guardas entram e amarram-na pelos pulsos e pelo pescoço com cordas e baraço, e a arrastam assim por uma rampa para o plano superior, onde surgem os reflexos avermelhados da fogueira. Padre
Bernardo, no plano inferior, a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas. Contorce-se também, como se sentisse na própria carne. Um clamor uníssono, a princípio de uma ou duas vozes, às quais vão
se juntando, uma a uma, as vozes de todos os atores, em crescendo, até atingirem o limite máximo, quando cessam de súbito.
PADRE (Caindo de joelhos.) Finalmente, Senhor, finalmente posso aspirar ao Vosso perdão!
(GOMES, 1985, p.143)
Numa outra clivagem interpretativa, os semas da luta libertária ficam
claros na figura de Augusto, o noivo de Branca. Também através do nome da
personagem de Augusto transparece o seu papel na tecitura dramatúrgica,
considerando o seu significado, isto é, o que ele sugeriria numa camada
inconsciente ao expectador: homem magnânimo, fiel aos seus valores mais
intrínsecos. Proviria do étimo latino augustus, ―adjetivo: augusto, sagrado,
venerado; religioso‖ (Porto Latim-Português, 2005, p.52), mutatis mutandis, por
flutuação semântica, este termo transplantado, adquire o significado de coisa
venerável, respeitável, moralmente ilibada; sublime, majestosa (Aurélio, 2001).
Branca torna-se esse reflexo dos atos de Augusto, isto é, dos ideais mais altos
e nobres que ela alimenta em si. Tanto pela orientação cultural que o jovem
advogado fornece quanto pela sua resignação diante das torturas do Santo
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Ofício, é obstinado em fazer o que é certo e não cede, sequer, ante as
ameaças de morte. É ele quem a ensina a ler, dá livros a Branca, e um dos
principais livros é a bíblia em português: o uso do vernáculo, das línguas
romance foi uma grande questão no Tardo Medievo e na Idade Moderna, sinal
herético até, (FALBEL, 2007), indicativo significante disso é o fato de uma das
primeiras medidas do monge Martinho Lutero, fundador do protestantismo, foi
traduzir da Bíblia do latim. Vem à baila a questão do conhecimento e da
mulher: a misoginia clerical (DUBY, 2001). Já cultivada por boa parte do
estamento dos clérigos na Idade Média Central e Baixa Idade Média, acentua-
se a partir da Contra-Reforma conforme o explicado (cf. o tópico Inquisição).
AUGUSTO Este livro é uma bíblia e fui eu quem lhe deu de presente. PADRE
Uma bíblia em português. Não sabia que estava lhe dando um livro proibido pela Igreja? AUGUSTO
Para mim a bíblia é a bíblia, em qualquer língua. VISITADOR O que está afirmando é uma grave heresia.
PADRE Não se arrepende de tê-la arrastado a essa heresia? AUGUSTO
Não. Não me arrependo porque assim a fiz conhecer a sabedoria e a beleza dos Evangelhos.
(GOMES, 1985, p. 117)
Ainda em outro trecho, como no anterior, o medo do conhecimento
feminino mostra-se como flagrante crime, digno de ser até chamado de
heresia. Aqui Branca toma uma postura questionadora inaceitável em qualquer
sociedade homogeneizadora e sob o julgo de uma férrea mão totalitária:
BRANCA Por que nunca aceitam moças nos colégios?
PADRE Porque moças não precisam estudar. BRANCA
Nem mesmo ler e escrever? PADRE Isso se aprende em casa, quando se quer e os pais consentem.
BRANCA (Com certo orgulho.) Eu aprendi. Sei ler e escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que qualquer escrivão de ofício.
PADRE Quem é Augusto? BRANCA
Meu noivo. Foi ele quem me ensinou. Mas foi preciso que eu insistisse muito e quase brigasse com meu pai. É tão bom. PADRE
Ler?
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(GOMES, 1996, p. 37)
Neste trecho, fica patente a discordância de Padre Bernardo, ícone de
uma Igreja Repressora, e o início de seu ódio por Augusto, como se este fosse
o instrumento de destruição da pureza de Branca, o intruso em um Éden que
teria por locus o seu próprio corpo: o paradoxo do feminino, entre o paraíso e o
inferno – Augusto apresentar-se-ia como o réptil maligno que seduz Eva (cf.
Ave Maria, s.d., p. 51).
Todos os circundantes devem ser levados em conta, como se busca
empreender no presente estudo, assim, salienta-se que outro fator significativo,
quanto às personagens, é o fato de os inquisidores não serem nomeados: são
designados por sua função no Inquérito: visitador, notário, padres; como se sua
função os definisse como pessoas, rotulados, inexoravelmente rotulados:
somente capas a serviço de um sistema, sem alma ou coração (emoções): ―a
personagem pode ser a metonímia ou a sinédoque (...) de um conjunto
paradigmático, ou a metonímia de uma ou várias outras personagens‖
(UBERSFELD, 2005, p. 76). UBERSFELD complementa, ainda:
A personagem textual, tal como se mostra na leitura, nunca está completamente isolada: apresenta-se rodeada de um conjunto de
discursos a respeito dela, discursos estes infinitamente variados conforme a história desse ou daquele texto (...)
(UBERSFELD, 2005, p. 70).
6. OS FEIXES SIGNATÁRIOS DE BRANCA DIAS EM PERSPECTIVA
RELACIONAL COM O DIVINO
Conforme o supramencionado, Branca Dias possui uma relação muito
naturalista com o divino, o que é visto como um malleficium pelos inquisidores
(SPRENGER; KRAMER, 1991) ou resquícios de um paganismo diabólico,
reprimido na Idade Média conforme determina a supramencionada Super Illus
Specula promulgada em 1320 que condenava, peremptoriamente, a magia
ritual.
Sua imagem está longe de ser o de uma ―santa‖, uma mártir, como se
poderia presumir. Como já foi sobejamente mostrado, a personagem dista
muito deste estigma, na imagética que uma legitima ―filha do sagrado‖ teria
para os inquisidores. Esta seria uma mulher desprovida de sua feminilidade,
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masculinizada, com ideais inalcançáveis e provida de uma espiritualidade
descarnada que não passaria pelo humano para chegar ao divino, visão
teológica moderna.
Todavia, pelos ideais subidos e heróicos, Branca se aproxima destas
imagens que a hagiografia até hoje indica como exemplos. Guardadas as
devidas proporções diferenciais, Branca, muitas vezes, é aproximada a santa
Joanna D‘Arc, por ter sido martirizada pelo Santo Ofício, pela simplicidade
desconcertante com que responde às perguntas capciosas dos maléficos
inquisidores e pelo crime de que é acusada: heresia.
Branca é, simultaneamente, uma santa e uma mulher comum, sendo
uma herege somente de acordo com a perspectiva doentia de fé, que os
homens do Santo Ofício possuíam.
VISITADOR Já lhe demos todas. Acho que nos iludimos com ela desde o
princípio. Sua obstinação e sua arrogância provam que tem absoluta consciência de seus atos. Não se trata de uma provinciana ingênua e desorientada; tem instrução, sabe ler e suas leituras mostram que
seu espírito está minado por idéias exóticas. Declara-se ainda inocente porque quer impor-nos a sua heresia, como todos os de sua raça. Como todos os que pretendem enfraquecer a religião e a
sociedade pela subversão e pela anarquia. (GOMES, 1985, p.142)
Reitera-se que Branca Dias é uma figura lendária do folclore paraibano,
dizendo-se que todos os dias, nas madrugadas, a sua alma vagaria até os
subsolos do Convento de São Francisco, onde Augusto Coutinho, seu amor,
estaria preso. Gomes a transplanta para a literatura de forma diferenciada, ela
se aproxima do mito pelo amor imortal a Augusto. Dias Gomes corrobora a
linha de pensamento aqui seguida: sintetiza tudo o que foi dito e detalha o
posicionamento sobre a personagem de Augusto.
Diz a lenda que, em noites de plenilúnio, quando o nordeste sopra na copa das árvores, Branca desliza pelas rua silenciosas da capital
paraibana e vai visitar o noivo prisioneiro e torturado nos subterrâneos do Convento de São Francisco. Um dos mais belos aspectos da estória é esse amor e a fidelidade a ele. Mas não é
apenas o amor que tem por Branca o que leva Augusto a preferir a morte a acusá-la; é a certeza de que sua vida não vale a indignidade que querem obrigá-lo a cometer. Augusto é o homem em defesa de
sua integridade moral, cônscio de que o ser humano tem em si mesmo algo de que não pode abrir mão, nem mesmo em troca da liberdade. Ele troca a vida pelo direito de vivê-la com grandeza, ao
contrário de Simão. Neste, prevalece o sentimento de salvar-se a qualquer preço. Mesmo ao preço da própria dignidade. É a voz que
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não se levanta diante de uma injustiça praticada contra outrem, que não protesta contra uma violência, se essa violência não o atinge diretamente, esquecido de que as violências contra a criatura humana
geram, quase sempre, uma reação em cadeia que talvez não pare no nosso vizinho. Seu receio de comprometer-se leva-o a assistir à morte de Augusto sem um gesto ou uma palavra em sua defesa.
Essa omissão o torna cúmplice, como cúmplices são todos aqueles que se omitem por egoísmo ou covardia, podendo fazer valer a sua voz. Quem cala, de fato, colabora.
(GOMES, 1985, p.23)
Assim, poder-se-ia compreender que os signos indicam para uma leitura
de Branca Dias mais como heroína romântica, com ideais humanistas bem
definidos, um exemplum de luta libertária e amor firme e decidido, do que uma
santa dentro dos paradigmas inquisitoriais.
Todavia as visões são conflitantes neste sentido. A visão sobre Branca
Dias não tende a uma uniformização. Uns a vêem como uma ―Joana D‘Arc
brasileira‖, outros como uma mulher forte e de ―sangue quente‖, longe do
estigma de uma santidade ―tradicional‖, canônica, que a amputaria de sua
plena feminilidade em todos os aspectos que o termo traz em seu bojo
semântico.
BRANCA Mas eu não quero ser santa. Minhas pretensões são bem mais
modestas. Não é pela ambição que o Capeta há de me pegar. Quero viver uma vida comum, como a de todas as mulheres. Casar com o homem que amo e dar a ele todos os filhos que puder.
(GOMES, 1985, p.46)
Branca seria mais uma mulher apaixonada pela vida, sábia em sua
simplicidade e na mundivisão da natureza. Encarna a própria Natura, o
―terreno-não-pisado‖, quase o bon sauvage de Rousseau, que presa acima de
tudo a vida em todas as suas pulsantes variadas e multicoloridas expressões.
BRANCA Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar
procissão de formigas. Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos
buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas.
(GOMES, 1985, p.113) BRANCA Mas senhores, eu não pretendi nada disso! Nunca pensei senão em
viver conforme a minha natureza e o meu entendimento, amando Deus à minha maneira; nunca quis destruir nada, nem fazer mal algum a ninguém!
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(GOMES, 1985, p.142)
Sobre a Sexualidade e a Nudez, traços inexoráveis da luxúria própria do
feminino, da vaidade e maldade de Eva consonante com o discurso clerical. O
sema discursivo ainda revela que a relação de Branca com Augusto é natural e
o afloramento de articulação feminino/masculino perfeitamente comum em sua
mentalidade, não haveria pecado em amar – justamente o oposto do que
ideologia clerical fundamentalista apregoava:
PADRE Não pensou em seu noivo nessa noite? BRANCA
É possível. Eu penso nele todas as noites, todos os dias. Tudo que me acontece de bom, eu penso em compartilhar com ele, tudo que me acontece de mau, eu acho que não seria tão mau se ele estivesse
a meu lado. PADRE E ele nunca a viu tomar banho no rio? Responda.
BRANCA Uma vez... sim. (Adivinha os pensamentos do Padre, reage prontamente.) Mas não foi naquela noite! Juro por Deus, não foi!
(GOMES, 1985, p.48/49)
Há uma clara batalha de discursos: a linguagem dos inquisidores não é
a linguagem de Branca Dias. A personagem encarna o que UBERSFELD
enuncia da seguinte maneira:
A personagem pode aparecer como aquela figura peculiar do
discurso, figura fundadora da teatralidade, figura essencial e essencialmente ‗dialógica‘, que é o oximoro (coexistência, no mesmo lugar do discurso, de categorias contraditórias: vida-morte, luz-noite,
lei-crime). (UBERSFELD, 2005, p.78)
A mundivisão diametralmente oposta entre ambas as ideologias fica
patente: representa uma hercúlea luta atemporal ―contra um esmagador poder
deturpador de valores‖ (MICHALSKI, 1985, p.12). Sobre isso salienta-se a
opinião de Baccega, em Palavra e Discurso, no que concerne à linguagem e
significação:
Para se enfrentar a questão dos discursos, temos, portanto, de
considerar que a linguagem não é meramente um exercício de significações circunscritas individualmente, delimitadas ―no‖ indivíduo. Há que se perceber o ―deslocamento‖ dessas significações: a
produção do sentido está na sociedade, está na história. (BACCEGA, 2000, p.27)
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Observa-se que a oposição de semas discursivos entre Branca e o
―Poder Esmagador Inquisitorial‖, dá-se no campo ideológico em vistas do que o
autor deseja representar: a situação da repressão militar – ―a ‗personagem‘ não
apenas ocupa o espaço de todas as incertezas textuais e metodológicas, como
é o próprio lugar do embate‖ (UBERSFELD, 2005, p.69). Baccega (2000)
estabelece, ainda, sobre a singular importância do discurso como sema e como
a subversão da linguagem é principal recurso funcional para a repressão do
indivíduo é o principal locus de enfrentamento:
A palavra (...) só existe no intercâmbio da vida social. Ela ―canta‖ sempre num salão de baile, onde ―dança conforme a música‖, utiliza-se de máscaras ou despe-se (...) a palavra nunca está só (...). Ela
está sempre num discurso (...) é no discurso que a palavra assume seu significado. (...) A Língua (...) é um todo dinâmico que abarca o movimento da sociedade: por isso é lugar de conflitos. Esses
conflitos se concretizam nos discursos, Neles, as relações lingüísticas trazem inscritas as diferenças de interesse, as propostas de direções diversas para o mesmo processo
histórico (...). Os discursos constituem um ―sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc.‖, que resultam em configurações diversas para cada um deles.
(BACCEGA, 2000, pp. 46.48.51)
Tal citação reitera a premissa de Ubersfeld de que não existe uma
―inocência‖ no processo criador do artista e que os discursos compõem um
feixe de alta significância no estudo da semiologia do teatro (UBERSFELD,
2005).
Yan Michalski9, em prefácio para edição de O Santo Inquérito (1985,
p.12), ressalta as similaridades entre a personagem Branca Dias e Zé do Burro,
o protagonista de O Pagador de Promessas10 (1960), tendo por fulcro
comparativo, justamente a naturalidade com que perspectivação do divino é
retratada em ambas as obras e o poder semiológico do discurso que envolve a
ambos:
Além desta trágica e obstinada luta contra um esmagador poder
deturpador de valores, Zé-do-Burro e Branca têm em comum o seu admirável, simples e modesto humanismo. Ambos são cheios de vida, ambos têm uma espécie de solidez que lhes vem do íntimo trato
diário com a terra e a natureza e ambos não pedem outra coisa senão viver com simplicidade, de acordo com os seus princípios, e cumprindo conscienciosamente a modesta e despretensiosa missão
que acreditam ter recebido para cumprir na terra.
9 Yan Michalski é renomado teatrólogo brasileiro, contemporâneo de Dias Gomes.
10 Tida por muitos críticos como a maior obra-prima de Dias Gomes, encenada em 1960 no TBC de São
Paulo.
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(MICHALSKI, 1985, p.12-13)
A importância do discurso como sema é que dá essa apreensão
interpretativa a Michalski, que é uma visão oposta a que Gomes possui de sua
própria obra. Ryngaert corrobora: ―Compreendemos melhor as dificuldades
teóricas ligadas à personagem quando consideramos como uma verdadeira
encruzilhada de diferentes discursos, como uma necessidade insubstituível e
complexa da ficção teatral‖ (RYNGAERT, 1995, p.140). Ryngaert ainda levanta
a seguinte assertiva sobre o sema do discurso, que complementa a perspectiva
relacional com o divino e o locus discursivo que a personagem traz em seu
bojo, é isso que desejamos salientar:
Quando constatamos literalmente o que a personagem faz (...), começamos a entrever que seu estatuto faz dela um agente da ação, um vetor que imanta desejos esparsos no texto, uma identidade
fictícia por vezes apenas esboçada sob a qual se reúnem discursos. Não nos parece possível como uma força abstrata intercambiável em varias situações dramáticas típicas.
(RYNGAERT, 1995, p.138-139)
Enfim, a palavra ao autor. Para Gomes Branca seria despida dessa
pretensa santidade da qual já falamos. O autor exprime o caminho de Branca
em direção à fogueira da seguinte forma:
Branca é realmente culpada de heresia. De acordo com a monitoria
do inquisidor-geral, instruções para a configuração das heresias, ela está ―enquadrada‖ em vários artigos, sendo, além disso, acusada de atos contra a moralidade e da posse de livros proibidos. Mas, do
princípio ao fim, ela caminha de coração aberto ao encontro de seu destino, acreditando que a sinceridade e a pureza que lhe moram no coração a absolvem de tudo. Mais importante do que conhecer e
seguir as leis e os preceitos ao pé da letra não é estar possuída de bondade? Se ela traz Deus em si mesma, e se Deus é amor, isso não a redime inteiramente? E é isto, justamente, que a perde, não
percebe que os homens que a julgam agem segundo uma idéia preconcebida, que subverte a verdade, embora eles também não tenham consciência disso e se considerem honestos e justos. E, sem
dúvida, o são, se os considerarmos segundo seu ponto de vista. Branca nada percebe até o fim, quando já é tarde demais. Sua perplexidade cede lugar então a um princípio de consciência, que
inicialmente a aniquila e depois a faz erguer-se na defesa fatal da própria dignidade. Branca nada tem de comum com Joana d‘Arc, a não ser o fim trágico. Ela não é uma iluminada, não ouve vozes
celestiais, nem se julga em estado de graça. É mulher. E para a mulher o amor é a verdadeira religião, o casamento a sua liturgia e o homem a humanização de Deus. Não se julga destinada a
grandes feitos, nem a uma vida excepcional. Quer casar-se e ter quantos filhos puder — seu ventre anseia pela maternidade. Nada tem das maneiras masculinas de Joana, nem de seu espírito de
sacrifício; é feminina, frágil e vê no prazer uma prova da existência de
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Deus. A grandeza que atinge, no final, ao enfrentar o martírio é dada pela sua recusa em acumpliciar-se com os assassinos de Augusto. É um gesto de protesto e também de desespero.
(GOMES, 1985, 20-21) (GRIFO NOSSO)
Tendo em vista tudo o que foi dito, é possível concluir que a perspectiva
relacional de Branca com o divino é de comunhão com um naturalismo patente,
sem a pecha de pecado e subversão da realidade que marca os veículos
repressores de toda e qualquer época. Ao lado de Augusto, Branca alça lautos
vôos, mais altos e belos sob a pena do grande artista que é Dias Gomes. Pelo
artista, Branca Dias deixa de ser um fantasma e passa a ser uma heroína no
mais legítimo sentido do termo, vista por diversas clivagens de inabalável
coragem indubitável. Branca deixa de ser ―assombração‖, se encarna pelo
texto e arte de outro Dias. Sai do limbo e parte para o imaginário de todos que
a lêem/ assistem:
A personagem de teatro é, no texto, um fantasma em busca de encarnação e, na representação, um corpo sempre usurpado, porque a imagem que nos é dada não é a única possível e jamais é
completamente satisfatória. Em nossas leituras, sucede de nos abandonarmos a essa parte do sonho e construirmos ao mesmo tempo um invólucro sólido para apreendê-la.
(RYNGAERT, 1995, p. 141)
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Santo Inquérito é mais uma das obras primas de Dias Gomes. A sua
genialidade fica impressa em Branca Dias como uma digital.
Os feixes semiológicos presentes em Branca atribuem universalidade à
personagem, fazendo com que sua causa não se prende a tempos ou espaços
definidos. Ela transcende qualquer dessas dimensões referenciais: é isso que
só a arte por excelência é capaz de promover.
Em suma, pode-se dizer que dentro de Branca, como dentro da cor
Branca podem-se encontrar inúmeros feixes de outros matizes, que lembram o
ser humano de suas fraquezas, forças e até mesmo de sua própria perfídia.
Fica clara a seguinte afirmação: ―O teatro (...) põe em jogo a própria
totalidade da vida social e de suas instituições, permitindo captar nexos
existentes entre a estética e a vida social, entre a criação artística e a trama da
existência coletiva‖ (FLORENTINO, s.d., p. 2).
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