resenha homo ludens

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IH-UFRJ Nome: Lucas Cabral de Castro Resenha de HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 6ª ed. São Paulo: ed. Perspectiva, 2010. Huizinga, historiador da cultura holandês é conhecido pela sua grande obra O Outono da idade média, um estudo sobre a mentalidade do homem do século XIV-XV. Homo Ludens é, em comparação, uma obra menos conhecida, mais tão importante quanto, na lista de clássico da história da cultura. Em seu prefácio, o autor já instiga ao leitor – que, vivendo no período entre guerras, provavelmente conhece outras críticas ao modelo de Homem racional iluminista – a repensar a forma de se denominar a espécie humana: nem Homo Sapiens, nem Homo faber e sim Homo ludens. Aos que procuram uma teoria sobre a utilização de jogos e/ou uma analise de diferentes formas de lazer na cultura, os títulos dos capítulos em que a obra está dividida deve causa algum estranhamento: o jogo é analisado em áreas que, hoje, a utilização do adjetivo “lúdico” seria incomum, como Guerra e com o Direito. O autor ressalta, para a estranheza até daqueles interessados nos estudos culturais e não conhecem a tese da obra, que sua obra é uma pesquisa do jogo como elemento da cultura e não na cultura. O jogo não é, segundo Huizinga, uma manifestação da cultura; é

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Resenha do livro Homo Ludens de Huizinga.

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Page 1: Resenha Homo Ludens

IH-UFRJ

Nome: Lucas Cabral de Castro

Resenha de HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 6ª

ed. São Paulo: ed. Perspectiva, 2010.

Huizinga, historiador da cultura holandês é conhecido pela sua grande obra O Outono da

idade média, um estudo sobre a mentalidade do homem do século XIV-XV. Homo Ludens é,

em comparação, uma obra menos conhecida, mais tão importante quanto, na lista de clássico da

história da cultura.

Em seu prefácio, o autor já instiga ao leitor – que, vivendo no período entre guerras,

provavelmente conhece outras críticas ao modelo de Homem racional iluminista – a repensar a

forma de se denominar a espécie humana: nem Homo Sapiens, nem Homo faber e sim Homo

ludens. Aos que procuram uma teoria sobre a utilização de jogos e/ou uma analise de diferentes

formas de lazer na cultura, os títulos dos capítulos em que a obra está dividida deve causa algum

estranhamento: o jogo é analisado em áreas que, hoje, a utilização do adjetivo “lúdico” seria

incomum, como Guerra e com o Direito.

O autor ressalta, para a estranheza até daqueles interessados nos estudos culturais e não

conhecem a tese da obra, que sua obra é uma pesquisa do jogo como elemento da cultura e não na

cultura. O jogo não é, segundo Huizinga, uma manifestação da cultura; é sim, um elemento

constituinte da cultura, estando presente em suas diversas manifestações.

No primeiro capítulo, Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultura

(p. 3-31) Huizinga procura definir o significado daquilo que entende por Jogo. Inicia a discussão,

em tom provocativo, colocando que o jogo teria surgido antes da cultura: o primeiro, é uma

atividade compartilhada com animais, diferente do segundo, exclusivo da espécie humana.

Revisando as mais diversas teorias sobre o papel do jogo na vida humana – sobretudo as de

orientação psicologizante – Huizinga se pergunta “ A todas as explicações [...] referidas poder-se-ia

perfeitamente objetar: ‘Está tudo muito bem, mas o que há de realmente divertido no jogo?’” (p.5,

grifo no original). O autor contrapõe as explicações que tomam o jogo como possuindo um

determinado fim biológico/psicológico, sua concepção que considera o jogo não possui nenhum fim

determinado em si.

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Sem ser determinado, Huizinga considera o jogo como uma condição “supralógica”, que “A

própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação

humana” (p.6). Ademais, animais também jogam, o que confirma que o jogo está mais próximo do

irracional do que do racional. Também não possui nem um valor moral, estando mais próximo das

coisas espirituais do que materiais. Ou seja, deslocado das regiões de interesses mais imediatos ou

relacionados a reprodução da vida humana.

Huizinga coloca, assim, que o conceito jogo é de difícil apreensão em termos simples,

constituindo uma “função da vida” (p.10) permanecendo “distinto de todas as outras formas de

pensamento através das quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social” (ibidem).

Denominando de função da vida, Huizinga busca mostrar a amplitude desse conceito, ou seja, que

ele não é determinado pela cultura e sim que toda cultura possuí, em graus variados, em todos os

seus aspectos, uma função lúdica.

As características elencadas por Huizinga são ao todo, cinco; é importante notar que, apesar

de identificar uma função social para atividades lúdicas, Huizinga procura analisar as características

do jogo a partir dos participantes e não de sua influência para a sociedade.

A primeira característica é a liberdade de adesão ao jogo. Ninguém é obrigado a

participar do jogo; está ali por escolha própria. O autor apenas faz uma ressalva: “Liga-se a noções

de obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no

ritual” (p.11). Anuncia-se aqui, uma discussão que está presente no final do capítulo e, de certa

forma, por todo o livro: pode o jogo ser comparado aos conceitos de festa e ritual? Apesar de

discorrer sobre isso, e até apontar para uma diferença crucial entre o jogo e celebrações religiosas –

a saber, que o participante da atividade lúdica reconhece o “faz de conta”, enquanto esse status entre

credulidade/incredulidade é de difícil apreensão nos cultos (p.26) – Huizinga, ao longo do livro, faz

o uso muito próximo dos conceitos, reforçando mais suas semelhanças do que diferenças.

Essa liberdade de adesão a atividade lúdica, leva ao segundo atributo do jogo: ele não possuí

função no cotidiano; é uma atividade “extra-ordinária” (p.16), desinteressada, que não

envolve atividades da vida diária. Aqui, cabe colocar que o jogo-ritual-festa, como função social,

influência na vida corrente; mas a atividade em si, não. Com isso, também, advém uma importante

relação: o contrário do jogo não são as atividades “sérias”. Pelo contrário, a atividade lúdica pode

ser considerada como da maior seriedade – veja-se o arrebatamento de adultos e crianças com jogos

olímpicos por exemplo. Sua prática desinteressada exige um local destacado da vida normal

e é sustentada por um determinado período de tempo, sendo essa sua terceira

característica.

Destacado e temporário, sua prática também exige um conjunto de regras, que

garantem a ordem e sustentam a ilusão da representação do jogo . Huizinga

Page 3: Resenha Homo Ludens

aponta que essa característica é a que permite a percepção dos elementos estéticos presentes no

jogo, pois “são as mesmas palavras com as quais procuramos descrever os efeitos da beleza: tensão,

equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião” (p.13). Discorrendo sobre

aqueles que infringem ou fingem seguir as regras, o autor aponta uma importante decorrência da

atividade lúdica: aqueles que praticam tendem a formas comunidades de jogadores, todos

interessados/ identificados com a atividade.

A quinta e última característica do jogo é o mistério que o envolve: seus participantes

ficam arrebatados, totalmente absorvidos no mundo do jogo. Largam seus modos de

vida diários; tornam-se outras pessoas.

Após a exposição formal das características gerais das atividade lúdicas, Huizinga começa a

discorrer sobre a função do jogo. Em sua opinião é “uma luta por alguma coisa ou a representação

de alguma coisa” que “ podem também por vezes confundir-se” (p.16). Huizinga usa o conceito de

representação como “a realização de uma aparência: é ‘imaginação’, no sentindo original do

termo”. Fugindo das dicotomias que conceituam o termo entre reapresentação de uma aparência que

não pode se fazer presente, marcando a distância e a presentificação de uma imagem, creio que

Huizinga coloca a representação em outros termos: a representação/ reapresentação, sobretudo a

religiosa/mística, cria uma identidade entre a representação e o participante da ação lúdica. Como

diz no final do capítulo, “ A identidade e unidade essencial de ambos é muito mais profunda do que

a relação entre uma substância e sua imagem simbólica. É uma identidade mística. Um se tornou o

outro” (p.29, grifo no original).

Nos próximos capítulo, Huizinga aplica de forma mais detalhada essas características nos

diversos âmbitos da vida, procurando suas peculiaridades e semelhanças. É de notar a incrível

erudição do autor, que utiliza da antropologia francesa e americana e de um repertório filológico

que vai das línguas indo-européias e germânicas até as orientais. Essa demostração do elemento

lúdico em diferentes culturas reforçar a validade do conceito “jogo” para análises comparadas.

Destaca-se desse conjunto, os dois últimos capítulo. O penúltimo, Culturas e Períodos

sub specie ludi é uma aplicação dos princípios do jogo-rito-festa-competição nos diversos

fenômenos da vida cotidiana da História do Ocidente, indo do Império romano aos século XVIII. O

último, O Elemento Lúdico de Cultura Contemporânea é um capítulo com um tom que

destoa dos demais; nele, um preocupado Huizinga escreve uma das passagens mais expressivas da

cultura do período. Diz ele:

A vida social moderna está sendo cada vez mais fortemente dominada por uma característica que tem alguma coisa em comum com o jogo e dá a ilusão de um fator lúdico fortemente desenvolvido. Julguei poder dar a esta característica o nome de puerilismo, que me pareceu ser mais adequado para designar essa

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mistura de adolescência e barbárie que se tem vindo a estender pelo mundo no decorrer das últimas duas ou três décadas.

Tudo se passa como se a mentalidade e o comportamento do adolescente tivessem passado a dominar certas áreas da vida civilizada que outrora pertenciam aos adultos responsáveis. [...] O gregarismo é talvez o mais forte e o mais alarmante desses costumes. Seu resultado é a mais baixa forma de puerilismo: gritos ou outros sinais de saudação, o uso de emblemas e distintivos, a marcha em ordem unida ou num passo especial [...] O clube é uma instituição das mais antigas, mas é desastroso que nações inteiras se transformem em clubes, pois estes não são apenas propícios ao cultivo de qualidades inestimáveis como a amizade e a lealdade, são também fonte de sectarismo, intolerância, desconfiança, e da tendência para aceitar toda e qualquer ilusão que seja lisonjeira para o orgulho do grupo. Temos visto nações perderem toda noção da honra, todo sentido do humor, a própria idéia da decência e do jogo limpo (p.228)

O que Huizinga aponta, nessas “nações-clubes”, não é a perda do senso lúdico. É a completa perda do que o distingue das outras funções da vida: o “faz de conta”, a noção de que a ilusão é apenas imagem e passageira. Talvez possa-se afirmar, tomando as considerações do capítulo inicial, que é possível perder esse elemento de “faz de conta”, tornando-se o jogo em um culto. Anos depois, o mesmos que jogam contra as regras, seriam aqueles que poriam um fim a sua vida.

Mesmo não sendo uma atividade exclusiva dos seres humanos, é aquele segundo Huizinga, que melhor nos defini. Mesmo não possuindo nenhuma relação com a vida material, é indispensável para vida, uma função da vida. Mesmo possuindo liberdade de adesão, somos arrebatados pela sua ilusão. E, mesmo sendo temporário e definido no espaço, o jogo talvez seja um dos elementos que permitem uma abordagem comparadas entre culturas mais complexa. O que nos aproxima, talvez e contra a lógica iluminista, é o supra-lógico.