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CONTEXTUALIZANDO CONTEXTO1
Josemar da Silva Martins
Professor do DCH III/UNEB – Juazeiro, BA Doutor em Educação pela FACED/UFBA
E-mail: [email protected]
RESUMO
Este texto retoma pontos conceituais a respeito do termo “contexto” e avança na discussão
sobre “educação contextualizada”. As motivações para sua escrita são reações de alguns
estudiosos que contrapõem os termos contexto e contextualidade aos termos diversidade e
contemporaneidade, como sendo termos que apresentam perspectivas distintas e distintas
possibilidades de movimentação em sua abordagem, já que os termos se antagonizam. Neste
sentido, o texto retoma alguns fundamentos e os problematiza.
PALAVRAS-CHAVE
Contexto; Educação contextualizada; Educação pós-colonial; Educação no Semi-Árido
ABSTRACT
This text incorporates conceptual aspects of the concept of context and advance the
discussion about contextualized education. The motivations for writing them are the
reactions of some scholars who contrast the terms context and contextuality as being
different the terms diversity and contemporary, as terms who have different perspectives and
different options for handling in their approach because they are antagonistic terms. In this
sense, the text incorporates some questions and foundations.
KEY-WORS
Context; Contextualized education; Post-colonial education; Education in the Semi-Arid.
1 Publicado em RESAB, Caderno Multidisciplinar – Educação e contexto do semiárido brasileiro: múltiplos espaços para o exercício da contextualização. Juazeiro/BA; Selo Editorial RESAB, ano 04, n. 05, v. 01, jun. 2009, p. 17-35.
No “livro vermelho da RESAB” (RESAB, 2004) apresentei um texto no qual tento uma
primeira aproximação à noção de contexto (MARTINS, 2004), para dar conta de uma
dificuldade pontual, naquele momento, diante do que fez surgir entre nós a Rede de
Educação do Semi-Árido Brasileiro (RESAB), que era a noção de “educação
contextualizada”. Naquele momento uma apresentação precária da noção de contexto visava
a estabelecer um parâmetro para tematizar o espectro descontextualizado da educação que
se pratica nas escolas do semi-árido brasileiro (e em muitos outros espaços do país), sempre
amparada em princípios de universalidade que já não nos interessam, e tentava abrir caminho
para a proposição da “educação para a convivência com o semi-árido”, como algo mais
específico.
No texto referido utilizei exemplos de como se estabeleceu uma racionalidade universalista
na experiência moderna, que se apresentava com pretensões de neutralidade e para isso se
amparava nos argumentos de racionalidade e de cientificidade. Os processos colonialistas
levados a cabo pela ortodoxia religiosa medieval, predominantemente Católica, na
experiência Moderna tais processos foram substituídos pela ortodoxia da Ciência, da
Racionalidade e da Ordem. O Brasil é fruto dos dois processos que o constituíram de modo
bastante ambivalente. Com efeito, nunca fomos tão bem nem numa coisa nem noutra. No
entanto, há sim setores mais modernos. Algumas regiões do país, aquelas que se tornaram
mais “civilizadas”, ou seja, mas escolarizada, mais industrializada, mais tecnificada, tidas
como as “mais avançadas” e “mais modernas”, assumiu para si a imagem da normalidade.
É destes centros que até hoje emanam os “discursos verdadeiros”. Portanto estas regiões e
as grandes metrópoles que nelas há, se tornaram os centros “centros de emanação dos
discursos legítimos” – sendo hoje o Sudeste o mais importantes deles.
Não há aqui nenhuma intenção de alimentar bairrismos ou qualquer tipo de fobia. Mas a
idéia de “educação contextualizada” surgiu como expressão de cansaço e como reação à
passividade com que sempre encaramos isso; surgiu dentro de um movimento crescente de
reação ao esnobismo das justificativas de legitimidade dos conteúdos escolares, advindos
dos mesmos centros de emanação, onde se concentra, inclusive, a “indústria editorial” do
Livro Didático e dos materiais teóricos que orientam boa parte da prática pedagógica.
Naquele momento, portanto, não estávamos em busca de nenhuma nova categoria universal,
mas organizando um posicionamento político em busca de uma “autorização”
autonomamente produzida entre nós e em favor de uma educação que se dispusesse a “pisar
o nosso chão”. O movimento visava, por exemplo, a enfrentar a linguagem que nomeia de
fora, sempre dizendo, por exemplo, “lá no sertão”, “lá no Nordeste”. Esta voz, reincidente,
de algum modo é ainda colonial. Neste sentido e se contrapondo a isso, aqueles
posicionamentos foram partilhados por outros sujeitos de outras regiões do país e hoje já há
uma ampla articulação em benefício de uma educação contextualizada, não apenas no Semi-
Árido Brasileiro.
No entanto, o que me fez voltar ao termo contexto agora foram algumas reações que
presenciei por ocasião da proposição de um programa integrado de pesquisa entre os
Departamentos da UNEB em Jacobina, Juazeiro e Senhor do Bonfim (BA), cujo curso de
especialização integrado ao programa de pesquisa fora nomeado como sendo de “Educação,
Cultura e Contextualidade”.
As reações que presenciei estão ligadas, evidentemente, a políticas de sentido que sempre
dependem de palavras que já estão mais ou menos legitimadas em certos meios intelectuais.
Esta é, de algum modo, uma das expressões das posturas colonizadas. Algumas pessoas
acham mesmo que só tem validade aquelas nomeações que forem propostas nos grandes
centros. É como se, para pronunciarmos o mundo, devêssemos sempre recorrer a uma
gramática oriunda de São Paulo ou de Paris. Por isso é mais tranqüilo hoje preferir palavras
como contemporaneidade ou diversidade, que além do chame sonoro por todos repetido,
nosso espírito de bando as toma como coisas dadas, como se, de fato, houvesse uma única
contemporaneidade, ou houvesse uma unanimidade sobre do que se trata palavras como
diversidade.
Qualquer pessoa com o mínimo de prudência reconhece que qualquer termo trás em si sua
própria negatricidade, seus efeitos de desgoverno. Qualquer termo é um termo-armadilha, e
seu destino é sempre aberto. Mas também, é sempre possível que um determinado termos
vire moda, mas sua pronúncia não esclareça bem do que se trata. Contemporaneidade é um
desses termos que acaba pululando na boca de um e de outro, mas sequer a maior parte dos
usuários a distingue de coetaneidade, que diz respeito à partilha dos mesmos fenômenos de
um dado momento histórico.
É sempre bom lembrar que há infinitas formas de vida que particularizam modos singulares
de relacionamento com a contemporaneidade. Isso nos leva a pensar que não há uma
contemporaneidade em si e em termos gerais, mas apenas há modos particulares (e
contextuais) de experimentá-la. Há muitas contemporaneidades na contemporaneidade – e
isso não é um mero jogo de palavras. Mesmo que creiamos na idéia de integração do mundo
pelas tecnologias – a idéia de “aldeia global” – dentro desta aldeia há muitas aldeias: ritmos,
linguagens, comunidades e territorialidades que expressam temporalidades diferenciadas e
até divergentes. Aliás, boa parte da força atual de noções como a de diversidade deve-se
exatamente à exposição desta variedade de lugares, povos, pessoas, culturas e tudo o que
isso pode, a cada vez, expressar. Diversos modos de produção da vida na
contemporaneidade. Não seria um absurdo inserir o termo contexto no interior desta
discussão da contemporaneidade. E menos absurdo ainda é tomar os dois termos como
termos antagônicos. Só uma mente colonizada poderia sugerir tal equação.
O fato que queremos destacar é que hoje não é raro haver, especialmente no interior das
universidades, algumas guerrilhas conceituais. Estou certo de que os “oposicionistas” do
termo “contextualidade” estão presos a ortodoxias muito curiosas, pois são sempre pessoas
que, em nome de algum autor francês que está em moda, falam sempre em abertura. Quando
a palavra diversidade, por exemplo, é colocada em contraposição a contexto, não há como
nos divertirmos um pouco, pois quem assim o faz muitas vezes se apresenta como alguém
que já abandonou as dicotomias modernas.
A palavra diversidade tornou-se de uso freqüente no contexto do multiculturalismo, mas, o
termo ganhou novo status a partir da sua apropriação pelos chamados “filósofos da
diferença” (ou das “multiplicidades”), quando o conceito de Diverso aparece revestido de
uma radicalidade própria para denotar Diferença – não como a diferença que há entre x e y,
mas como aquilo que, por ser pura singularidade em movimento, simplesmente difere.
Diferença enquanto algo que não pode ser nunca simplesmente atado ao predicado ou à
estabilidade do ser, pois, como ser-sendo, nunca é: sempre devem (SILVA, 2002).
A Filosofia da Diferença aqui referida mantém estreitas relações como o pós-estruturalismo
francês e está associada a nomes como Deleuze, Guattari, Lacan, Derrida, Lyotard, etc. Em
boa medida ela permanece fiel ao problema da situação ontológica do ser e do ente que,
desde Heidegger, a ela só se pode aceder se for preservada a condição de absoluto
acontecimento do ser (ser-sendo). Sendo ser-sendo, o ser será sempre produtor (para si e
para o mundo) de diferença, e por isso jamais pode ser contido ou detido em seu destino de
acontecimento. Para os que pensam nestes termos, portanto, a noção de contexto parece soar
como um embuste semântico, pois ele supostamente estaria comprometido com a noção de
Identidade, geralmente tomada pelos adeptos e seguidores dos “filósofos da diferença” como
sendo o Outro da Diferença. Identidade, portanto, sempre acusada de estar interessada em
algum tipo de estabilidade do ser.
Eis a confusão! – que, aliás, parece comprometer a perspectiva sempre conectiva da
abordagem da “filosofia das multiplicidades”, uma vez que, pelo menos aí, a operação não
está se dando pelo conetivo “e” mas pelo alternativo/opositivo “ou”. Quem coloca as coisas
nestes termos está operando um reducionismo primário. E, além disso, vemos aí um claro
esforço de descaracterização daquilo que vem sendo autonomamente gestados por uma
multiplicidade de atores sociais, entre os quais se incluem muitos pesquisadores.
É certo que, em se tratando da apropriação do termo contexto na experiência da RESAB e
no discurso da “educação para a convivência com o semi-árido”, a sua idéia tem ficado muito
limitada ao “contexto do semi-árido”, como uma espécie de essencialidade monolítica, sem
que a própria diversidade do Semi-Árido tenha o devido vigor e o devido lugar de
problematização. Reconhecemos que também existem tais problemas. Sabemos que até
existem abordagens que pretendem “naturalizar” o Semi-Árido e que estão interessadas em
vê-lo árido apenas como “natureza”, não conseguindo percebê-lo também como texto, como
construção histórica, como produção discursiva. Mas, ainda assim, o termo contexto nem
por isso é utilizado entre nós como sendo adversário da noção de diversidade. A questão é
que, talvez a própria diversidade também se expresse de modo contextual, já que também o
devir pode muito bem ser circunstanciado nas configurações mesmas de um dado contexto
histórico-social.
Na verdade a palavra contexto aparece em muitos textos de todas as áreas das ciências
humanas e exatas. Sempre como uma palavra “fria”, coringa, dessas que utilizamos a granel,
mas nunca nos dispomos a pensar a seu respeito. O que é um contexto? Quais os seus termos?
Esta é a minha tentativa aqui: traçar algumas “feições” conceituais.
Sou levado a pensar, por exemplo, que obras como “A Interpretação das Culturas”, de
Clifford Geertz (GEERTZ, 1989), nos ajudam imensamente a pensar no contexto, nem que
seja a partir daquilo que o autor nomeia de “circunstancialidade”. Mas ele apresenta um
conjunto consistente de problematizações aos “universais falsificados” e expõe os muitos
argumentos que tornam sem valor qualquer idéia de um “João Universal” e que, ao fazê-lo,
reforça a idéia de contexto. Não que esta seja a palavra que ele privilegia – pois a sua palavra
é cultura – mas nos ajuda a pensá-la.
Outro exemplo é o livro “Que pau é esse?”, de Nivaldo Manzano (MANZANO, 2002), cujo
subtítulo é “Uma Introdução à Contextualidade para a Resolução de Problemas”. Conta a
história do mateiro que deu uma lição a três engenheiros florestais, e tenta mostrar que fazer
escolha é saber divisar entre um plano e outro, ou seja, é ser capaz de se reconhecer no
contexto, no aqui e agora. O livro é, portanto, uma introdução aos princípios da
contextualidade e está dirigido a quem está interessado em reconhecer o caráter contextual
da existência e dos própiros acontecimentos.
Certamente haveria outros exemplos. Mas vou fazer aqui o caminho que me é possível para
tematizar o termo. No texto a que já me referi, publicado no “livro vermelho da RESAB”,
me vali das contribuições de SANTOS (2003) para esboçar uma parca configuração de seu
sentido. Evidentemente as contribuições deste autor situam-se no campo da linguagem – e
mais propriamente da lingüística aplicada – e ele afirma que contexto não se resume à
situação imediata de produção dos textos ou, para ser mais específico, de produção de leitura
ou de escrita. Neste campo, o contexto se estenderia até outros domínios de convenções nos
quais os usuários da língua procuram se adequar quando falam ou quando escrevem; se
estende até outros regimes de signos, nos quais também cada pessoa, com as suas histórias
e projetos de vida particulares, não somente se submete a tais convenções, mas também as
viola, as burla, criando novas regras, novos entendimentos, novos sentidos, novos contextos.
Tais contribuições vão ao encontro de outras, cuja preocupação é situar o ato de fala (ou o
“ato de texto”). Os estudos em “hermenêutica bíblica” também estão interessados nisso, ou
seja, também se preocupam com este “tecer junto”, em que as diversas partes do texto
sagrado precisam de uma “situação” de justificação que ampare um sentido (HUCKABEE,
2008). No horizonte da linguagem, porém, diversos outros atos de fala, de aspectos menos
canônicos, carecem de um contexto, como uma espécie de panorama de partilha. A piada e,
particularmente, a ironia são exemplos disso.
A ironia é essencialmente “contextual”, uma vez que supõe um “espaço de partilha” de
sentido do dito – e do não dito que se esconde no dito (ou de qualquer forma da distorção do
dito, quando se diz não dizendo ou quando não se diz dizendo). O contexto específico ampara
e serve de orientação para a determinação do sentido e do entendimento (SAFATLE, 2008).
É mais do que isto: não apenas o enunciado e seu entendimento são ambos possibilitados
por uma conjuntura circunstancial, mas a própria alternância entre conteúdo e forma estaria
também aí amparada na constituição de um ato de enunciação. “Fora de contexto” – fora de
uma determinada configuração de circunstâncias, até uma piada boba pode virar outra coisa.
Aqui temos uma situação, mais própria do campo da lingüística, em que o sentido de um
enunciado, fora das circunstâncias possíveis de suas ocorrências – o contexto – encontra
dificuldades de partilha e realização, enquanto ato comunicativo. Este aspecto, aliás, é
essencialmente semiótico. O enunciado “que belo dia”, por exemplo, pode muito bem
equivaler a “que dia horrível”, a depender do contexto de sua elocução, a depender da
conjuntura sígnica que configura a circunstância contextual.
Ocorre que haveria outras situações a serem observadas, não necessariamente restritas aos
atos de fala ou às práticas linguageiras. Lembro aqui, por exemplo, daquilo que MAYOL
(1996) chama de conveniência, ao estudar a prática de morar em um bairro, por exemplo.
Ele aponta como, incessantemente, os moradores aprendem a jogar um “perde-ganha”, se
mantendo “convenientes” aos sinais adequados (e também os produzindo) que podem
delimitar, estabilizar e desestabilizar os sinais do reconhecimento (p. 54). Não se pode sequer
falar aqui de diversidade em termos gerais, nem em contexto em particular, mas em níveis
inferiores, níveis microssociais de contexto, nos quais é preciso se “posicionar” e produzir
as condições da “boa” interação e do entendimento. Neste sentido é possível antever como
a micropolítica da produção da vida dá-se no nível microssocialógico dos contextos: não
enquanto entidades estáveis, mas no interior dos jogos que os sujeitos põem em prática
diariamente na produção da vida. Saber como entrar e como sair, saber o tom adequado da
voz ou o tipo de renúncia a oferecer visando uma vantagem posterior, exige algum tipo de
experiência “contextual”. Talvez seja este um nível mais molecular do se imagina na
definição dos contextos.
Mas também poderíamos falar de configurações mais gerais – sem pretender nenhuma
essencialidade ou transcendência universalizante. Pensemos por exemplo, em termos
semiológicos, que os espaços sociais são atravessados por discursos silenciosos (mas não
mudos) que ancoram clivagens bem específicas. Sistemas de signos portadores de
mensagens que não podem ser localizadas em nenhum lugar específico, a não ser numa
paisagem geral e difusa, mas que demarca posicionamentos. Por que será que em certos
ambientes nos sentimos muito mais à vontade do que em outros, sem que, no entanto,
nenhuma placa seja afixada em nossa frente – e, no entanto, algo comunica isso!
Do ponto de vista da educação há pessoas que estudam esta esfera dos processos formativos
que estão para além de sua visibilidade formal (ou não-formal). Há estudos que nos permitem
pensar as cidades, por exemplo, como sendo compostas por variadas esferas educacionais
que se processam na heterogeneidade de espaços sociais praticados, quando “vivemos
quotidianamente situações que não foram intencionadas para serem educativas, mas que,
efetivamente, geram efeitos educativos” (CARRANO, 2003, p. 16). Este é o nível da
educação informal que pode ser definida como “uma zona de atuação social onde a
pedagogia é cega, constituindo-se no lado escuro da educação” (Idem, p. 17). Quero sugerir
aqui que esta instância “cega” é constitutiva das “paisagens de subjetivação” que, embora
mantenha sua indeterminação e complexidade, não deixa de estar atravessada e afetada por
descontinuidades e heterogeneidades contextuais – no sentido de que, a configuração
resultante das forças que a constituem se singulariza no exato cruzamento que aquele
“espaço social” possibilita, e é isso que nos permite falar em meio social e em contexto, ou
em contexto social.
Talvez eu não devesse levar tão longe este rascunho, mas sempre me incomodou o
aparecimento da palavra contexto sem sua devida explicitação. E não estou tentando
reinventar o estruturalismo, mas certamente o modo como o termo contexto vive nos
aparecendo num texto ou noutro, nos leva a crer que em relação a ele se possa falar tanto em
“espírito do tempo” quanto em “espírito de lugar”, ou “espírito de espaço”, que podem
explicar modos de estar no mundo e até de territorializar a existência. Um mesmo espaço,
neste sentido pode amparar diversos contextos, a depender do modo como este espaço é
territorializado, a cada vez ou a cada turno. Poder-se-ia falar, por exemplo, em um contexto
em que uma gramática é gestada, e a partir dela surgem novos modos de encarar o mundo,
cumprindo até um ritual de convocação e de filiação. Mas será que também o esquema
geométrico de Marc Augé (1994), para falar da constituição dos espaços – itinerários,
cruzamentos e centros, e seus pontos de intersecção – não nos serviriam para uma
configuração apropriada dos contextos enquanto pontos de cruzamento?
Há outra questão que vou trazer de modo ilustrativo. Trata-se do conceito de noosfera, que
encontrei em MORIN (1991), mas que sei que tem origem em CHARDIN (2001) e, antes
deste, nas idéias do mineralogista e geoquímico russo-ucraniano Vladimir Ivanovich
Vernadsky, ao sugerir que, além da geosfera e da biosfera, uma outra etapa do
desenvolvimento da Terra seria a noosfera, a camada das idéias, da linguagem, dos símbolos,
do conhecimento humano. Mas do mesmo modo que podemos aceitar a idéia de noosfera
em termos do volume geral das idéias humanas em todos os sentidos, podemos também
pensar que esta noosfera se dá também em termos contextuais, ou seja, os tipos de idéias
que circulam em um determinado espaço social (as idéias que se cruzam nele) compõem
também as paisagens subjetivação, os referenciais que amparam a produção diária da
existência. Os artefatos ideais não residiriam apenas nas cabeças individuais de cada
partícipe de um dado espaço social, mas, definem uma “atmosfera” de pensamento,
distribuída no espaço e além dele, jamais determinada, mas de algum modo compondo um
“cenário de pensamento”. Por isso aqui também poderíamos nos referir a uma
“contextualidade” amparando modos de pensamento e ação.
Estou certo de que um tipo de problemática específica é contornar conceitualmente o termo
contexto, com o cuidado para não cairmos no ridículo de propor alguma essencialidade
estrutural na definição das subjetividades, ou na definição dos perfis humanos em relação
aos espaços que habitam. Marc Augé nos alerta para o fato de que o problema dos etnólogos,
de Mauss a Lévy-Strauss, foi definir o Outro a partir de uma totalidade circunscrita na sua
localização no tempo e no espaço: o que valia para um indivíduo, valia para todos
(AUGÉ,1994), como se houvesse uma transparência entre cultura, sociedade e indivíduo.
Não é neste lugar que desejamos chegar. Neste sentido deveríamos evitar falar o nordestino,
o homem do semi-árido ou o sertanejo – como o fez Euclides da Cunha em Os Sertões
(CUNHA, 1998), sempre pelo uso de um artigo definido totalizador. Por outro lado, no
terreno da educação, quando se trata de formação do pensamento e da linguagem (e isto não
é pouco) onde colocar aquilo que Vygotsky chama de “zona de desenvolvimento proximal”,
senão num horizonte contextual? Então deveríamos tomar o contexto não como uma
essencialidade, mas como um horizonte de possibilidades e de potencialidades.
Poderíamos viajar muito mais nestas elucubrações, mas minha perspectiva é apenas a de
propor a validade do termo contexto para operar reconstruções possíveis na experiência
educativa, para não deixá-la a mercê dos “centros de emanação dos discursos legítimos”.
Neste sentido, uma “educação contextualizada” – ou qualquer outra perspectiva de
contextualidade – não deveria ser tomada como uma forma de submissão dos sujeitos ao
contexto, nem como uma espécie de “cesta básica de educação” para os desvalidos do
mundo. Se o contexto deve ser o ponto de ancoragem dos processos educativos, será
especialmente para construir nas relações locais as condições de empoderamento, a partir do
desvelamento das próprias relações de força aí presentes.
Tenho compreendido que muitas experiências têm praticado a educação contextualizada de
modo exemplar, sem cair no bairrismo ou no basismo, que pretenda algum tipo de
“preservação do contexto”. Muitas experiências que conheço têm sim o contexto como ponto
de ancoragem dos processos pedagógicos, mas para fincar aí e a partir daí as condições da
mudança com os outros das “narrativas hegemônicas”, cujas colorações são de caráter étnico,
etário, de gênero, territorial, ambiental, ético, estético, etc. É neste sentido que afirmo que o
Contexto não é o Outro da Diversidade. É o horizonte de possibilidades e de potencialidades
que deve ser explorado e problematizado se não quisermos sustentar algum tipo de
esnobismo colonizador, sempre dependente da autorização advinda de algum “centro de
emanação dos discursos legítimos”.
O esforço das muitas pessoas que conheço e que atuam na “educação contextualizada” é no
sentido de tentar compreender como a própria contemporaneidade é constituída de matizes
contextuais. Os lugares, por exemplo, agora mesmo estão sendo surrupiados por forças que
Milton Santos (2000) nomeia como sendo forças centrípetas e centrífugas, ou
horizontalidades e verticalidades, em cujo drama os saberes e tradições locais são
permanentemente desterritorializados. As formas de vida são permanentemente re-
construídas, re-negociadas em face destas forças, portadoras da velocidade implacável e do
desenraizamento; portadoras de um relógio único, de uma racionalidade mais característica
dos modos capitalísticos de produção. Mas em cada contexto de estabelece configurações
singulares. É neste cruzamento de fluxos que muitos sujeitos vêm tentado encontrar novos
lugares para a produção da vida e para produzir aí as suas “linhas de fuga”, com arranjos
contextuais, mas a partir de soluções sempre abertas.
A própria escola, que sempre cumpriu uma função de “dessocialização” dos sujeitos e de
sua ressocialização posterior; de desterritorialização e reterritorialização; de apagamento das
marcas comunitárias para inscrever no corpo dos sujeitos as novas marcas de um universal
supostamente sem cor, sem sexo, se idade, sem nação, sem desejo, sem política... esta mesma
escola, sempre foi também, de algum modo, contextualizada. Mas foi contextualizada por
uma espécie de inevitabilidade. Pois é por esta razão também que a questão da
contextualização do ensino faz sentido. Mesmo sabendo que qualquer experiência escolar
dessocializa para ressocializar em seguida, (e não haveria um modo de fazer com que a
escola mantivesse os seus sujeitos no mesmo lugar), entendemos que há a possibilidade de
esta ressocialização não ser simplesmente de apagamento das marcas de pertencimento. A
educação contextualizada opta por partir dos contextos, como universos de sentido, para
tematizá-los e reconstruí-los, mas apenas na medida em que a direção desta ressocialização
seja a direção dos projetos individuais e coletivos que visem a algum tipo de emancipação.
Temos afirmado que a escola vem sendo transformada e que os melhores exemplos de sua
transformação são as experiências cujos Itinerários Pedagógicos encaram a realidade local
como foco das tematizações e que transitam entre a escola e seu entorno (seu contexto) para
permitir que outros novos conhecimentos sejam viabilizados a partir da escola, num
movimento que tem, em alguns lugares, este itinerário definido pelos esquemas “ver-julgar-
agir” ou “ação-reflexão-ação”, etc. Boa parte deste movimento se ampara naquilo que Paulo
Freire propôs, particularmente no capítulo 3 de Pedagogia do Oprimido, como pesquisas
dialógicas de “universos temáticos”, visando à detecção das “situações-limites” e a
constituição dos “temas geradores” (FREIRE, 1987).
A educação contextualizada anda nesta direção para fazer com que os processos escolares
pisem o chão. Toquem-no e se disponham a transformá-lo. Pode ser isto! E pode ser muito
mais do que isto! As opções são tantas e elas permanecem sempre em aberto! De qualquer
modo, no nosso caso, um dos modos de contextualizar a educação é submetê-la à
problemática do Semi-Árido Brasileiro (SAB) para construir formas de “convivência com o
Semi-Árido”, ou seja, formas de produção da existência que sejam economicamente viáveis,
socialmente equitativas e ecologicamente equilibradas, já que nosso esforço em ampliar as
oportunidades de educação das pessoas nutre-se da esperança de que esta educação
transforme para melhor suas vidas e o meio em que vivem.
A questão aqui é ter a capacidade de antecipar a mudança e de definir pelo menos parte de
seus rumos – já que há sempre uma zona de incerteza, um corpo sem órgão a produzir outras
direções. A questão aqui é não ficar à mercê das formas de nomeação que nos forçam a nos
tratarmos a nós mesmos como Outros. Neste sentido a educação contextualizada deveria
saber tirar proveito da diversidade e da contemporaneidade para pensar saídas muito mais
criativas para a produção da vida, cujos materiais se encontram no próprio cotidiano onde
estão os sujeitos dos processos que animamos. Deveríamos nos qualificar mais e melhor para
gestar novos contextos de vida, com mais diversidade, com mais alegria e arte! Inventar
saídas criativas com os materiais que o mundo oferece, em cada lugar. A educação
contextualizada deveria, portanto, ser este espaço de preparação para “cavucar” o chão e
“tirar leite de pedra” no melhor dos estilos. Para andar na frente!
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