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i IVANIA VALIN SUSIN RETRATOS DE ARQUITETURA MODERNA ACERVO EDMUNDO GARDOLINSKI (1936-1952) Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Profa Drª Silvana Rubino CAMPINAS 2010

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  • i

    IVANIA VALIN SUSIN

    RETRATOS DE ARQUITETURA MODERNA

    ACERVO EDMUNDO GARDOLINSKI (1936-1952)

    Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências

    Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do

    título de Mestre em História.

    Orientador: Profa Drª Silvana Rubino

    CAMPINAS

    2010

  • ii

    FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Bibliotecária: Cecília Maria Jorge Nicolau CRB nº 3387

    Título em inglês: Portraits of modern architecture: collection Edmundo

    Gardolinski (1936-1952)

    Palavras chaves em inglês (keywords) :

    Área de Concentração: Política, Memória e Cidades

    Titulação: Mestre em História

    Banca examinadora:

    Data da defesa: 20-12-2010

    Programa de Pós-Graduação: História

    Photography

    Photography – Portraits – Private

    collections

    Memory

    Architecture , Modern

    Silvana Barbosa Rubino, Vania Carneiro de Carvalho,

    Iara Lis Schiavinatto

    Susin, Ivania Valin

    Su81r Retratos de arquitetura moderna: Acervo Edmundo

    Gardolinski (1936-1952) / Ivania Valin Susin. - - Campinas, SP : [s. n.],

    2010.

    Orientador: Silvana Barbosa Rubino.

    Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

    1. Gardolinski, Edmundo, 1914-1974. 2. Fotografia.

    3. Fotografia – Retratos – Coleções particulares. 4. Memória.

    5. Arquitetura moderna. I. Rubino, Silvana Barbosa.

    II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e

    Ciências Humanas. III.Título.

  • v

    Para minha mãe, meu primeiro exemplo de amor.

    E para Pita, amor pra vida inteira.

  • vii

    AGRADECIMENTOS

    À Profa. Dra. Silvana Rubino pela orientação sempre presente e que foi além, tornando-se

    admiração e exemplo. Por muito tempo, vou lembrar-me das conversas despretensiosas que

    iluminavam vários dos meus confusos argumentos, transformando-os em parágrafos

    precisos. Pela tranqüilidade e segurança que me passou durante todo esse processo, serei

    eternamente grata.

    Ao Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt por ter me apresentado o Acervo Edmundo Gardolinski

    em 2005. E por ter permitido que eu me envolvesse com a pesquisa, mesmo sem dispor do

    tempo suficiente para tornar-me bolsista do projeto. Sou grata por nossa relação ter se

    transformado em amizade. Meu eterno respeito, admiração e agradecimento.

    Às Profas. Dras. Cristina Meneguello e Vânia Carneiro de Carvalho pelos comentários

    essenciais durante meu Exame de Qualificação, responsáveis por uma importante mudança

    metodológica que tornou possível conciliar as fontes e os conceitos nesta pesquisa. Meus

    agradecimentos pelas críticas, pela leitura atenciosa e pelos encaminhamentos sugeridos.

    Ao meu grande amigo e historiador Evandro dos Santos, por ler meu texto com olhar

    atento, sempre disposto a conversar e discutir sobre os problemas e as soluções. Quero

    poder contar com sua avaliação em todos os meus trabalhos, e com nossas conversas,

    durante toda a minha vida. Ademais, nossa amizade vai muito além de um trabalho

    acadêmico. Muito obrigada por isso!

    Aos meus grandes amigos Tiago Dias e Rafael Felice Dias pela revisão cuidadosa do texto

    da dissertação. Sou grata pela parceria durante esta conquista e em todos os momentos

    menos formais. A amizade de vocês me deixa forte e confiante. Obrigada!

    À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa concedida ao longo

    de dois anos de pesquisa, sem a qual não teria conseguido dedicar-me integralmente a este

    trabalho.

  • ix

    RESUMO

    O Acervo Edmundo Gardolinski constitui-se no principal conjunto documental

    desta pesquisa. Gardolinski (1914-1974) era descendente de poloneses, engenheiro civil e

    fotógrafo amador. Seu acervo consiste em uma coleção de vestígios particulares de

    inúmeros temas da vida pessoal e profissional, arquivados em diferentes suportes. São

    livros, jornais e revistas, cartas, anotações pessoais e fotografias. Do conjunto documental,

    selecionei apenas a porção fotográfica e, a partir dele, as fotografias da construção da Vila

    do IAPI, em Porto Alegre – o mais importante projeto profissional da vida de Gardolinski.

    O objetivo da pesquisa é inserir-se nos debates sobre o uso da fotografia em trabalhos

    históricos, considerando a imagem técnica como um artefato material, autônomo e

    independente de seu autor ou referente. A análise inclui a circulação e a influência dos

    objetos na relação entre eles e os sujeitos, e entre os sujeitos. Além disso, as fotografias são

    entendidas enquanto suportes de uma memória arquivada, ao conformar uma imagem de si

    do sujeito, ao mesmo tempo em que criam uma nova visualidade para a Vila do IAPI.

    Palavras-Chave: Fotografia, Fotografia - coleções particulares, Memória, Arquitetura

    Moderna.

  • xi

    ABSTRACT

    The Collection Edmundo Gardolinski constitutes the main set of documents of this

    research. Gardolinski (1914-1974) was a descendant of Polish immigrants, civil engineer

    and amateur photographer. His collection consists of a compilation of particular traces of

    numerous issues of his personal and professional life, archived on various media. It is

    composed of books, newspapers and magazines, letters, personal notes and photographs.

    Within this collection, I have only selected the photography portion and, among them, the

    photographs of the construction of Vila do IAPI in Porto Alegre - the most important

    project of Gardolinski's professional life. The purpose of the research is to promote an

    insertion in debates about the use of photography in historical works, considering the

    technical image as a physical artifact, autonomous and independent of its author or referent.

    The analysis includes the circulation and the influence of the objects in the relationship

    between such objects and the subjects, as well as between subjects. Moreover, the

    photographs are seen as carriers of a filed memory, since it conforms an image the subject

    itself, while creating a new visuality for the Vila do IAPI.

    Keywords: Photography, Photography – Portraits – Private collections, Memory,

    Architecture, Modern.

  • xiii

    SUMÁRIO

    1. Introdução................................................................................1

    2. O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos

    pessoais em um espaço público..................................................13

    3. A visualidade instaurada pelo Acervo de Edmundo

    Gardolinski.................................................................................39

    4. A fotografia como suporte da memória...............................139

    5. Conclusão.............................................................................163

    6. Bibliografia..........................................................................171

  • xv

    “O movimento, ocupação de diferentes lugares em

    diferentes momentos, é inconcebível sem tempo;

    também o é a imobilidade, ocupação de um mesmo

    lugar em diferentes momentos do tempo. Como pude

    não sentir que a eternidade, almejada com amor por

    tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra,

    mesmo que de maneira fugaz, da intolerável opressão

    da sucessividade?”

    Jorge Luis Borges

  • 1

    1. Introdução

    Esta pesquisa tem por fonte o Acervo Edmundo Gardolinski, em sua porção

    fotográfica referente à Vila do IAPI – bairro popular construído em meados do século XX,

    na cidade de Porto Alegre. Tal conjunto de fotografias relaciona-se com episódios diversos

    dentro do processo de construção e estabilização do bairro, bem como solenidades,

    inaugurações e outros eventos.

    Edmundo Gardolinski nasceu em 22 de Abril de 1914, na cidade de São Mateus do

    Sul, no Paraná. Era Engenheiro-Civil e mudou-se para Porto Alegre nos anos 40, já

    integrando a equipe que coordenaria a construção da Vila do IAPI na cidade. Gardolinski

    era descendente de poloneses (e defendia fortemente valores morais e conservadores, o

    apego à família, o apreço pela educação e pela religião – segundo ele, características dos

    imigrantes poloneses), católico praticante e ativista de direita - inclusive tentou ingressar na

    vida política candidatando-se a deputado estadual em 1954, sem sucesso.

    Por outro lado, interessava-se por assuntos e ofícios modernos, como a fotografia, o

    cinema, as artes e a literatura. Aparentando certa tensão entre o moderno e o conservador,

    acabou por projetar um bairro com objetivos sociais modernistas – quais sejam: a habitação

    operária de baixo custo que define, juntamente com outras mudanças nos planos urbanos,

    novos usos e sentidos para as cidades industriais – porém, com características físicas de

    modelos considerados conservadores, tal qual era a ideologia do Estado Novo por detrás

    dessas construções. O modelo cidade-jardim, escolhido no projeto da Vila, é o mesmo que

    serviu de inspiração à construção dos bairros-jardins, presentes em grande parte das cidades

    brasileiras, com alto valor no mercado imobiliário e só acessível às classes mais abastadas.

    Sabe-se que no Brasil, a industrialização ocorre tardiamente se comparada a países

    como a Inglaterra, por exemplo, onde as primeiras indústrias datam de meados do século

    XIX. Da mesma forma, é somente na década de 1910 que se verificam as primeiras

    reivindicações de “reformadores” quanto às grandes cidades, influenciados por ingleses e

    franceses, sobretudo. Além disso, outra especificidade do caso brasileiro era a própria

    situação política do país e da classe trabalhadora que, segundo um ideal de Nação, deveria

  • 2

    ser incluída nas políticas estatais, por meio do assistencialismo e da construção de

    residências apropriadas. Neste momento, os engenheiros-arquitetos assumem o papel de

    técnicos da política modernista do período, posto ocupado anteriormente pelos médicos e

    higienistas nos primeiros esforços de urbanização e aplicação de medidas sanitaristas ao

    longo do século XIX.

    Alcir Lenharo1 analisa o momento em que o discurso da Engenharia Civil cruzou-se

    com o projeto do Estado Novo, pelo interesse comum e a emergência de um discurso para a

    habitação proletária enquanto responsabilidade social e a aplicação de novas formas de

    controle. Também no tocante a esta política, o trabalho de Robert M. Levine2, contextualiza

    as ações paternalistas de Getúlio Vargas depois de 1938, especificamente, quando:

    “A maneira de falar de Vargas evoluiu. Antes de 1938, ele dizia “meu governo”,

    “nossa organização”, “vossa vontade”; mas, no decorrer de 1938, sob a

    orientação atenta do Departamento de Propaganda, passou a usar a palavra

    “eu”. Tinha feito a transição para uma identificação de si próprio com as

    massas, a que se dirigia como “trabalhadores do Brasil”, e as expressões que

    usava eliminavam quaisquer intermediários entre o povo e o governo. Deixava

    naquele momento muito claro que estava ao lado das massas; que ele e o povo

    eram um só. Vargas rogou aos brasileiros que celebrassem a dignidade do

    trabalho e os valores tradicionais. (...) Para Vargas, incutir um senso de

    identidade nacional afirmativo e comum a todos constituía-se no esforço

    prioritário de seu governo.”

    No Rio Grande do Sul, como em boa parte dos estados brasileiros no período,

    ocorre um grande surto migratório do campo para a cidade, aliado a um crescimento

    demográfico expressivo. A iniciativa do governo para as moradias populares materializa-se

    em Porto Alegre na construção do Conjunto Residencial Passo d‟Areia, ou Instituto de

    Aposentadoria e Pensões dos Industriários, em 31 de dezembro de 1936, por meio do

    Decreto Lei 367. O IAPI, como ficou conhecido, é inaugurado em 1952.

    Edmundo Gardolinski participa como Engenheiro-Chefe do DIO (Distrito de

    Obras), órgão responsável por coordenar todo o processo da construção dos edifícios. Por

    interessar-se por fotografia e possuir equipamento próprio, registrou todas as etapas de

    construção e ocupação do bairro e transformou essas imagens em narrativas dentro do

    acervo, compondo extensos álbuns. Muitas imagens, porém, foram produzidas por outro

    1 LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986.

    2 LEVINE, Robert M. Pai Dos Pobres? Brasil Na Era Vargas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

  • 3

    fotógrafo: o russo Nikolaj Lenskij, do foto estúdio Nick, que ocasionalmente acompanhava

    Gardolinski em suas visitas às obras.

    No projeto da Vila do IAPI, Gardolinski - enquanto Engenheiro - utilizou as

    referências do modelo de cidade-jardim, considerado, apesar de revolucionário, pouco

    moderno quando comparado às Unités d‟Habitation, de Le Corbusier3 – modelo preferido,

    inclusive, pelos arquitetos modernistas no Brasil. Porém, o objetivo do projeto era

    modernizar a cidade de Porto Alegre, conforme escreveu Gardolinski no Jornal dos

    Iapiários4, em 1953: “É uma verdadeira cidade moderna que surge na antiga „Fazenda da

    Vva. Pires‟ e que, sem favor algum, será maior do que a maioria das nossas cidades, sob

    diversos aspectos.”

    André Lapolli5 trata a Vila do IAPI como contrária aos padrões modernistas

    vigentes na arquitetura brasileira, no período. O projeto assemelhava-se mais a tendências

    neocoloniais, com características de uma busca pelo passado rural, longe das grandes

    metrópoles emergentes. Para Lapolli é clara a influência da arquitetura moderna inglesa

    praticada no modelo das cidades - jardins de Ebenezer Howard6 no final do século XIX.

    Com isso, a Vila do IAPI diferencia-se de outras obras realizadas pelo Instituto,

    visto que seu projeto aproxima-se mais da linha culturalista, “que procura resgatar uma

    característica de ocupação do solo que combinava a aldeia e a cidade (...) onde as

    facilidades da cidade se mesclavam com a qualidade de vida no campo.” 7 José Lourenço

    3 Conjuntos habitacionais verticalizados, com baixo custo de material e construção. Foi projetado por Le

    Corbusier após a Segunda Guerra Mundial, como uma das medidas do plano de reconstrução do governo

    francês. Nas décadas seguintes, o modelo foi adotado por arquitetos modernistas em larga escala na habitação

    popular voltada às classes trabalhadoras. O primeiro edifício deste modelo foi construído na cidade de

    Marselha entre 1947 e 1953. 4 Publicação mensal interna do Instituto de Aposentadoria e Pensões.

    5 LAPOLLI, André. Como destruir um patrimônio cultural urbano. A Vila IAPI, “crônica de uma morte

    anunciada”. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PROPUR-UFRGS, 2006. p. 43 6 Ebenezer Howard foi o responsável pelo projeto das Cidades-Jardins, em 1848. Segundo Dacio Ottoni, ele

    sintetiza muitas das idéias inglesas do século XIX para o problema da habitação e do crescimento acelerado

    das grandes cidades. Como Howard não era arquiteto nem urbanista, apresentou o plano em diagramas. Este

    modelo, originalmente pensado para as classes populares, anos mais tarde foi adaptado em bairros nobres das

    grandes cidades. Os chamados bairros-jardins nem sempre apresentam semelhança na forma com o modelo

    original, porém mantêm a ênfase na arborização e nos amplos espaços viários. (prefácio à segunda edição

    brasileira do livro: HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de amanhã. São Paulo: Hucitec, 2002) 7 LAPOLLI, André. op. cit. p. 43.

  • 4

    Degani8, porém, admite que tal padrão, quando transposto e adotado na Vila do IAPI,

    acabou por ser o mais adequado, já que permitiu a manutenção das características naturais

    do terreno e tornou o ambiente mais próximo do cotidiano dos futuros moradores. Não se

    observou, portanto, dificuldades de adaptação, e a conservação de muitos espaços

    existentes no projeto original até hoje, dá a prova disto.

    Dito isso, cabe lembrar que o interesse desta pesquisa recai menos sobre a

    arquitetura moderna em si, ou as diferentes vertentes e escolhas deste movimento, do que

    sobre o registro fotográfico de uma de suas experiências. Neste sentido, o objetivo principal

    da pesquisa é participar da discussão sobre o uso da fotografia em trabalhos históricos,

    ressaltando a necessidade de uma leitura visual crítica para este tipo de fonte. Não menos

    importante, esta pesquisa propõe entender as representações imagéticas da política estado-

    novista nas fotografias do acervo Edmundo Gardolinski, bem como as discussões que se

    faziam no âmbito da Arquitetura e do Urbanismo a partir do encontro com a fotografia.

    Além disso, temos no acervo o recorte individual da memória de Gardolinski sobre os

    eventos coletivos. A fotografia, neste caso, é o suporte material desta memória.

    As fotografias serão analisadas, então, de acordo com questões pertinentes ao

    campo historiográfico para o uso deste tipo de suporte. A partir dessa perspectiva,

    considero a fotografia enquanto objeto material e, assim, procuro compreendê-la a partir de

    seus próprios elementos, como uma invenção moderna, um artefato que emerge no tempo e

    no espaço, e permite alcançar a sociedade à época de sua criação.

    Como se trata de um artefato fotográfico, ao mesmo tempo em que é documento

    histórico, e historicamente contextualizado, é importante considerar todas as dimensões que

    perpassam a imagem fotográfica, desde sua produção até a circulação em meios

    acadêmicos de pesquisa, como é o caso do presente trabalho. Isso inclui os elementos

    internos que a transformam, finalmente, em artefato: o aparelho, a produção, a recepção, a

    circulação e a reprodução, bem como a escolha pela guarda em um acervo particular, o

    gênero da imagem (escolhas profissionais e estéticas, como enquadramento ou temas

    privilegiados), o lugar do fotografado e do fotógrafo (os conceitos que articulou e

    8 DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos Iaps. O conjunto residencial do Passo

    d‟Areia e os projetos modernistas no contexto da habitação popular dos anos 40 no Brasil. Dissertação de

    Mestrado. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS / UNIRITER 2003

  • 5

    transcreveu em imagem), o uso dessas fontes e a necessidade de relacioná-las com outras

    categorias de documentos.

    A documentação teve uma trajetória bastante longa e cheia de perdas e rearranjos. O

    primeiro capítulo desta dissertação dá conta da biografia destes documentos arquivados.

    Por hora, é suficiente dizer que o acervo divide-se entre fotografias avulsas (que

    ultrapassam o número de 1000) e um extenso álbum criado por Gardolinski, que

    compreende mais de 12 anos da história da Vila do IAPI, em uma narrativa visual cheia de

    indicações de datas, nomes e lugares, escritos à mão por Gardolinski. Pela abrangência

    desta pesquisa e pelo tempo que lhe foi concedido, não foi possível trabalhar com a

    totalidade do acervo, de onde é necessário dizer que se podem construir inúmeras temáticas

    diferentes dentro da História, ou mesmo da Arquitetura, das Ciências Sociais, ou de

    qualquer outro campo disciplinar que se dedique a fazer questionamentos de toda ordem

    sobre elas. A escolha metodológica e teórica justifica-se ao longo do trabalho, ainda que

    composta pela análise de uma parte muito pequena, porém significativa para os temas aqui

    levantados.

    Além das fotografias, outros documentos existentes no próprio acervo de

    Gardolinski, foram incluídos, como alguns artigos publicados de autoria de Gardolinski

    sobre imigração polonesa no Periódico Polônia de Hoje, e os livros “Escolas da colonização

    polonesa no Rio Grande do Sul” e “Imigração e Colonização Polonesa”, também de autoria

    de Gardolinski, originados de suas incursões a algumas cidades de colonização polonesa no

    Rio Grande do Sul. Também a Revista Inapiários, publicação interna do IAPI, na qual

    Gardolinski publicou alguns artigos sobre a obra que acontecia em Porto Alegre.

    Outros periódicos de grande circulação à época, como O Globo, Correio do Povo,

    Diário de Notícias e Jornal do Dia, incluídos a partir do ano de 1952 (ano de inauguração

    do IAPI) foram importantes para entender um tipo de circulação bastante específico das

    fotografias de Gardolinski. Periódicos especializados de arquitetura contemporâneos às

    fotografias, como Architecture d‟aujourd‟hui (França), Architectural Review (Inglaterra) e

    Domus (Itália), apenas veicularam imagens de outros conjuntos residenciais importantes, de

    iniciativa do IAP, como o prestigiado Conjunto Habitacional de Pedregulho, no Rio de

    Janeiro.

  • 6

    A bibliografia referente ao tema é vasta. A complexidade da análise fotográfica,

    bem como do substrato documental da fotografia, não permite prescindir de um arcabouço

    teórico substancialmente consistente e aplicável ao tipo de documentação que se apresenta.

    Não obstante, as fotografias de Gardolinski ainda inserem-se em outro nível de análise,

    quando compreendidas em sua especificidade de documento arquivado em um lugar

    privado de memória, o que supõe questionamentos referentes a escolhas, recortes,

    esquecimentos, preferências, intenções de eternizar estas e não outras narrativas imagéticas

    sobre determinado momento da vida desse sujeito.

    Ao tirar as fotografias da Vila do IAPI, Gardolinski arquivava a representação de

    um projeto bem sucedido e que havia, melhor do que nenhum outro IAP, atendido às

    necessidades mais imediatas da moradia operária. Ao mesmo tempo, reproduzia padrões

    estéticos da fotografia e, mais particularmente, para a fotografia de Arquitetura. Um

    exemplo disto são as imagens aéreas tomadas do terreno da Vila do IAPI em diferentes

    estágios do processo de construção dos edifícios. Segundo Eduardo Costa9, a cidade

    industrial que começa a se desenhar no final do século XIX, traz novos elementos para sua

    leitura, influenciando as formas de representação do urbano, e prossegue:

    “(...) compreende-se a transformação da compreensão das cidades em paralelo

    ao desenvolvimento do avião, que fez com que tomadas aéreas passassem a ser

    instrumento de fundamental importância na análise urbana. (...) Não se trata

    aqui de uma leitura contemplativa da cidade a partir de uma tomada aérea,

    como Nadar já havia realizado no século XIX. Trata-se de uma abstração da

    leitura da cidade, uma funcionalização do ambiente urbano, transposto para

    visualidade a partir da máquina fotográfica. Ou seja, o que se expõem diante da

    lente da câmera fotográfica – ou, precisamente, diante do fotógrafo – é uma

    cidade regrada por uma outra dinâmica, a industrial e não mais a cidade

    naturalizada. A própria velocidade da máquina impõem uma outra leitura da

    cidade, agora mais rápida, veloz, tornando a apreensão pela contemplação uma

    leitura incongruente com a nova dinâmica da cidade. O „real‟ – o espírito

    moderno da cidade – é industrial.”

    Então, quando consideramos a questão da tecnologia, o incremento de recursos, a

    progressiva sofisticação dos equipamentos, e a conseqüente ampliação significativa das

    possibilidades, e a própria materialidade do suporte, entendemos que a fotografia é um

    9 COSTA, Eduardo Augusto. "Brazil Builds e a construção de um moderno, na arquitetura brasileira".

    Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

    2009

  • 7

    documento não escrito, exige leitura particular, mas, sobretudo, é produzido historicamente

    – como um artefato, tanto quanto um acontecimento oficial, uma ata, um inventário post-

    mortem. Além disso, o desenvolvimento da tecnologia criou outras possibilidades com

    relação ao tempo de exposição necessário para se obter as imagens no papel sensível. Tal

    condição alterou os motivos, as feições dos personagens e a interação do profissional de

    fotografia com seu equipamento. Todas essas mutações constam de um processo histórico

    onde a técnica fotográfica inseriu-se no campo das mudanças tecnológicas, e a sua relação

    com o tempo foi substancialmente modificada.

    Dito isso, apresento a estrutura da dissertação, dividida em três capítulos. O

    primeiro deles, intitulado O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos

    pessoais em um espaço público, tem por objetivo descrever o lugar dos artefatos

    fotográficos, no momento em que foram incluídos nessa pesquisa. Tal reconhecimento

    esclarece que a análise, desde o início do trabalho, é perpassada pela memória de

    Gardolinski, como um fio condutor. Aqui, procurei problematizar a categoria “acervo” e

    entendê-la enquanto uma descontinuidade de substratos de tempo subjetivos por fazerem

    parte de uma escolha arbitrária e pessoal de Gardolinski. E, nesse sentido, tracei a biografia

    do acervo, também entendido como um conjunto de artefatos materiais, desde a

    acumulação original do autor, passando pelos inúmeros re-arranjos de familiares e pessoas

    ligadas à instituição de guarda, até o momento de minha própria intervenção, enquanto

    pesquisadora.

    Também neste capítulo, incluí referências às características modernas das

    fotografias do acervo, não só pela época da tomada, mas também pela eleição dos motivos

    urbanos e industriais. Reforça esse aspecto, a participação de Gardolinski em concursos

    realizados por Foto Clubes, com fotografias de orquídeas e outros temas artísticos, com

    uma orientação bem diferente daquela encontrada nas fotografias da Vila do IAPI. Para

    Helouise Costa10

    , a fotografia moderna no Brasil tem início com o Foto Cine Clube

    Bandeirantes, em São Paulo.

    10

    COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da

    UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995.

  • 8

    Há ainda a atuação dos fotógrafos imigrantes na capital gaúcha, sua importância na

    construção da visualidade da cidade, bem como a relação destes fotógrafos com as

    narrativas fotográficas que se construíram a partir de suas tomadas, moldadas por olhares

    europeus e padrões de fotografia internacionais. O acervo de Gardolinski situa-se nessa

    perspectiva não só pelo próprio Gardolinski, descendente de poloneses, como também pela

    autoria de Nick, o fotógrafo russo que o acompanhava.

    No segundo capítulo: A visualidade instaurada pelo Acervo de Edmundo

    Gardolinski - analiso as fotografias, agrupadas em temas curtos, porém de grande

    relevância. Em um primeiro momento, porém, tratei do documento histórico para, em

    seguida, compreender como a fotografia torna-se um documento, em determinado contexto,

    e qual a conseqüente e necessária crítica para esta fonte. Retomei os textos de historiadores

    importantes, como Paul Ricoeur e Michel de Certeau, na tentativa de explicitar as bases

    sobre as quais me apóio para chegar naquilo que André Rouillé chamou de fotografia-

    documento. Em verdade, este autor foi responsável por uma virada teórica neste trabalho,

    ao lado de Ulpiano T. B. de Meneses, Alfred Gell, entre outros11

    .

    Tal mudança refere-se à adoção da idéia de fotografia-artefato, em substituição a

    alguns posicionamentos da semiótica12

    , mais especificamente os que tem a ver com a

    ligação da fotografia a seu referente. Como um artefato material, de existência própria e

    autônoma, a fotografia circula entre meios sociais diversos e os influencia, de acordo com

    11

    Estes trabalhos encontram-se referenciados na bibliografia desta dissertação, bem como ao longo do texto,

    quando citados. 12

    A leitura de uma análise semiótica da fotografia centrou-se basicamente em três autores: Ana Maria Mauad,

    Boris Kossoy e Philippe Dubois. A primeira, em diversos artigos, conceitua o método de análise partir de uma

    abordagem histórico - semiótica da fotografia. Para Mauad, a imagem é um dos produtos do trabalho cultural

    humano e este baseia-se em códigos convencionalizados socialmente que, quando analisados, direcionam os

    seus elementos ao contexto e às práticas da época de sua construção. Contudo, para Mauad, tal relação não é

    automática, pois, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora, existe muito mais que do que os olhos

    podem ver. Já Boris Kossoy, apresenta um estudo técnico-iconográfico, onde detalha não somente as

    atribuições físicas do quadro da fotografia, mas também suas dimensões icônicas de sentido. Para ambos,

    entretanto, a fotografia é entendida como “rastro” de uma realidade passada, de onde podemos visualizar não

    somente as relações explícitas na imagem, como também indícios de um real não revelado imediatamente.

    Dubois, por sua vez, afirma que a fotografia é índice ao carregar consigo um traço da realidade que a fez

    surgir. Segundo este autor, o referente sempre retorna, “irresistivelmente”. Ver: CARDOSO, Ciro F. e

    MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro F. e

    VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Editora

    Campus, 1997. KOSSOY, Boris. Fotografia &História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. DUBOIS, Philippe.

    O Ato Fotográfico. Campinas, SP: Editora Papirus, 2004.

  • 9

    as relações que com eles estabelece. Assim, é possível ir além da análise do referente, de

    onde a fotografia é apenas uma semelhança, sem ligação definida nem pelo suporte, nem

    pelos sentidos dos signos comuns a determinada comunidade.

    Ao analisar as fotografias, então, parto de uma rápida descrição da visualidade da

    capital gaúcha, entre os anos de 1930 e 1950, com base no trabalho de Zita Possamai13

    , que

    analisou o círculo da fotografia no mesmo local, à mesma época. Incluo aqui dados que

    mostram uma quantidade significativa de estúdios e fotógrafos profissionais em Porto

    Alegre, e que indicam certo gosto pela fotografia, enquanto distintivo de modernidade. Já

    dentro do acervo, pontuo algumas poses e ambientes preferidos de Gardolinski que, mesmo

    quando não operava a câmera, guiava a tomada de quadros pelo espaço da Vila, tornando-

    se assim, usando o termo nas acepções de Alfred Gell, o agente das fotografias – tema

    discutido com maior atenção no terceiro capítulo.

    Também no capítulo 2, tratei das fotografias onde a identidade inapiária – termo

    derivado da sigla IAP (Instituto de Aposentadoria e Pensões) fica mais evidente. Foi de

    grande importância a leitura do texto de Gilberto Hochman14

    , cuja tese de doutorado trata

    entre outros temas, deste órgão público, elencando as razões que construíram a forte

    identidade entre os funcionários. Analiso, também, o equipamento de Gardolinski e as

    conseqüências da popularização dos modelos portáteis a partir de 1920, no Rio Grande do

    Sul.

    Em seguida, discuto especificamente a forma como Gardolinski fotografou o IAPI.

    A partir dos padrões visuais que ele criou, tem-se no acervo um tipo de fotografia bem

    diferente daquela fotografia de arquitetura que se praticava no período, inclusive com os

    outros prédios do IAP, como Pedregulho e Japurá. A intenção é justificar, em certa medida,

    porque as fotografias de Gardolinski não circularam tanto quanto as de Marcel Gautherot

    para Pedregulho, por exemplo, e, com este propósito, incluí reportagens de revistas

    13

    POSSAMAI, Zita Rosane. Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos-Porto

    Alegre, décadas de 1920 e 1930. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de

    Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, 2005. 14

    HOCHMAN, Gilberto. De inapiários a cardeais da previdência social.. A lógica da ação de uma elite

    burocrática. Mestrado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia). Instituto Universitário de Pesquisas

    do Rio de Janeiro, IUPERJ-Tec, Brasil, 1990.

  • 10

    especializadas internacionais no início da década de 50, quando este e outros prédios, foram

    inaugurados.

    A circulação das fotografias de Gardolinski, por sua vez, foi medida pela análise de

    alguns periódicos diários e mensais do Rio Grande do Sul e do Brasil, conforme citado

    acima. Entretanto, foi necessário considerar o visível distanciamento entre as formas de sua

    publicação, bem como o público a que se destinavam e em quais meios profissionais

    tiveram aceitação. Ao longo da análise, fica claro que não são fotografias de mesmo

    estatuto e, por isso, têm trajetórias diversas.

    O último capítulo desta dissertação, A fotografia como suporte da memória, é

    dedicado a outro substrato do acervo: o lugar de acervo privado, com vestígios particulares

    de uma vida, acumulados pelo próprio autor destes vestígios. Tal substrato é, antes de tudo,

    temporal, porque se refere ao tempo de vida de Gardolinski, e torna a análise ainda mais

    complexa, porque não é possível negar que as inferências da memória pessoal como recorte

    sobre a memória coletiva, estão presentes.

    O recorte da memória de Gardolinski incide sobre a narrativa fotográfica que ele

    construiu no interior do acervo. O álbum de fotografias e as fotografias avulsas compõem

    inúmeros quadros que, além de agenciados por Gardolinski, são atravessados por discursos

    particulares sobre a forma de ver, de circular e de viver na Vila do IAPI. Além disso, não é

    somente a sua versão dos fatos que Gardolinski imprime no acervo, é também outra

    visualidade para o bairro, a partir de seus clichês. A escolha por uma narrativa fotográfica

    deixa claro que o sujeito não quer apenas contar uma história; ele quer que as pessoas

    vejam a história da forma como ele viu, e nisso se inclui a imagem que faz de si mesmo,

    aquilo que é dele e que deve ser eternizado entre os vestígios.

    Neste momento, a análise de Alfred Gell, foi fundamental, ainda que o autor refira-

    se a objetos de artes plásticas, basicamente, como pinturas. Gell concentra-se na questão da

    agência da ação social, ou seja, os objetos materiais têm origem na ação de um sujeito, nem

    sempre consciente de suas capacidades, da influência de sua ação e da influência da ação

    dos seus objetos. Neste sentido, os objetos podem seguir uma trajetória completamente

    autônoma e fora do raio de expectativa de seu agente. No caso de fotografias, o conceito de

    agência, melhor desenvolvido por Gell, permite pensar o artefato como autônomo e

  • 11

    circulante, mesmo após o tempo de vida de seu sujeito, ainda que carregue consigo traços

    de sua agência, como qualquer outro produto manufaturado artesanalmente.

    E, nesse sentido, não significa simplesmente abrir mão da semiótica ou

    desconsiderá-la em uma pesquisa histórica. Ao invés disso, trata-se de concentrar a análise

    no caráter material da imagem e nas características que a definem enquanto objeto, e não

    mais enfatizar a descoberta de possíveis significados ocultos, ou signos comuns, ou ainda, a

    conexão entre referente e a sua representação mecânica: a fotografia.

    O objeto da História não são as fotografias, mas sim a sociedade, ou a história dos

    homens no tempo, e isso inclui tudo o que se refere ao homem. Assim, as fotografias, como

    qualquer outro vestígio ou objeto material, são fontes para o conhecimento histórico da

    sociedade. Como já é sabido que nenhum documento é objetivo e precisa ser questionado

    com as perguntas certas para que deles se extraia as respostas úteis, o mesmo ocorre com as

    fotografias. Sobretudo, a inclusão desta categoria documental provoca o surgimento de uma

    crítica específica que considere a tangência deste artefato no interior de um método

    histórico.

  • 13

    2. O Acervo Fotográfico Edmundo Gardolinski: documentos pessoais em um espaço

    público

    “[...] a banalidade do passado é feita de pequenas

    particularidades insignificantes que, ao se multiplicarem, acabam

    por compor um quadro bem inesperado.”

    Paul Veyne

    2.1 - Acervo Edmundo Gardolinski: instituições de guarda e novos arranjos.

    As fotografias de Edmundo Gardolinski, fontes desta pesquisa, são parte de um

    conjunto maior de indícios que compõem o Acervo Edmundo Gardolinski. Trata-se de uma

    coleção com inúmeras categorias de documentos que, posteriormente à morte do titular, foi

    doada ao Núcleo de Pesquisa em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Não havia uma organização prévia que concordasse com os parâmetros da arquivística15

    até

    o momento da sua chegada ao Núcleo – apenas a disposição dos documentos escritos e

    outras categorias, de acordo com o interesse pessoal de Gardolinski. As fotografias,

    principalmente, receberam maior atenção do titular (e autor da maior parte das imagens

    fotográficas), com vistas à documentação de sua atividade profissional, e pelo seu interesse,

    ainda que amadoristicamente, pela prática da fotografia.

    O acervo Edmundo Gardolinski é composto por livros que constituem uma pequena

    biblioteca sobre os temas da história polonesa e a história do estado do Paraná, além de

    inúmeros outros livros em polonês, periódicos (brasileiros e poloneses), cartas (que trocou

    com o irmão Tadeusz Gardolinski durante o ano de 1944 quando este se encontrava na

    Itália, lutando pelas Forças Armadas Brasileiras), anotações pessoais, agendas, cartões

    15

    Refiro-me aos parâmetros propostos pela leitura de alguns autores da área da arquivística que cito ao longo

    deste primeiro capítulo.

  • 14

    postais e centenas de fotografias em diferentes suportes, além de negativos fotográficos16

    ,

    incluindo alguns negativos em vidro.

    Figura 1 - 6: Formatos de fotografias.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    16

    Sobre a coleção de Marcel Gautherot, Lygia Segala afirma: “A acumulação de negativos, imobilizando-os

    no mercado fotográfico, sustenta seu interesse de preservar uma totalidade, pressuposto à monumentalização

    de sua obra”. SEGALA, Lygya. A coleção fotográfica de Marcel Gautherot. Anais do Museu Paulista, São

    Paulo. n. ser, v. 13, n 2, p. 73-143, jul/dez – 2005. (citação p. 110).

  • 15

    Figura 7 - 9: Formatos de fotografias.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    Os temas possíveis presentes no acervo definem-se pelas escolhas profissionais de

    Gardolinski (Engenharia Civil e sua participação no projeto do Conjunto Habitacional

    Passo d‟Areia, conhecido como Vila do IAPI17

    ), a descendência polonesa, sobre a qual

    realizou breve exercício de história oral com imigrantes no interior do Estado, além de

    coletar dezenas de imagens de suas respectivas famílias18

    (imagens que ele mesmo

    produziu e outras imagens já pertencentes a estes indivíduos). Na pesquisa, Edmunda

    Gardolinskiego (Edmundo Gardolinski escrito em polonês), procurou destacar entre o

    17

    A Vila IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários) é parte do programa nacional de

    habitação popular empreendido pelo Estado Novo, a partir dos anos 30. 18

    Segundo consta no material arquivado, Gardolinski pretendia escrever a história da cidade de Ijuí-RS, onde

    existe uma das maiores colônias polonesas do RS. Tal vontade não chegou a realizar-se, porém muita

    documentação sobre o tema, coletada por Gardolinski, encontra-se disponível no acervo.

  • 16

    contingente de imigrantes, as escolas19

    e as personalidades, como Copérnico e Chopin, cuja

    obra lhe inspirou grande interesse ao longo da vida. Também fotografou pilotos e outros

    temas relacionados à aviação e à poloneidade, além de manter uma pequena coleção de

    recortes noticiando a vinda de artistas e políticos poloneses para o Brasil (um dos mais

    citados é o Grupo de Dança Mazowske que veio a Porto Alegre em 29 de Abril de 1975).

    Sobretudo o gosto pela fotografia, principalmente de orquídeas – outra de suas

    paixões - gerou imagens de forte apelo artístico, com as quais Gardolinski participou de

    eventos e concursos realizados por cineclubes de fotografias em todo o Brasil. Está contida

    na porção fotográfica, por sua vez, inúmeras fotografias de visitas e solenidades

    envolvendo a presença de políticos importantes, como Getúlio Vargas e Eurico Dutra.

    Outras fotografias do IAPI, contudo, só existem em negativo fotográfico. As viagens com a

    família também foram cuidadosamente registradas e arquivadas de acordo com o destino:

    Curitiba-PR, Garibaldi-RS, Caxias do Sul-RS (que Gardolinski refere como Campo dos

    Bugres) e o Rio de Janeiro, de onde temos belíssimas imagens das praias cariocas na

    década de 40. Outros eventos, como a candidatura de Gardolinski a deputado estadual e a

    campanha política de 1954, estão relacionados entre as fotografias.

    As fotografias referentes à Vila do IAPI registram o início da construção dos

    edifícios, incluindo algumas imagens dos terrenos antes de qualquer fundamento, até a

    ocupação das residências pelos moradores - que eram todos, inicialmente, industriários.

    Assim, temos imagens do processo de construção em suas fases sucessivas, em locais

    variados do bairro.

    Figuram políticos importantes, como Getúlio Vargas, presente na solenidade de

    inauguração da Vila, e outros senadores e deputados, envolvidos ou não com os IAP‟s. Da

    mesma forma, foram fotografados eventos onde participou a comunidade polonesa não só

    do Rio Grande do Sul, mas de outros estados, como Paraná, por exemplo. Também

    19

    Sobre as escolas de imigrantes poloneses no interior do estado, Edmundo Gardolinski escreveu o livro:

    “Escolas da colonização polonesa no Rio Grande do Sul” (Porto Alegre: UCS/EST, 1976). Ainda sobre o

    tema da imigração, é autor de “Imigração e Colonização Polonesa” (Separata da Enciclopédia Rio-Grandense,

    V.5. 1980).

  • 17

    visitaram o IAPI, poloneses famosos como o Capitão Stanislaw Skarzynski20

    e alguns

    pianistas (não identificados, mas para os quais se organizou grande recepção.

    Gardolinski registrou a inauguração de alguns monumentos, praças e locais de

    sociabilidade na Vila: a Paróquia Nossa Senhora de Fátima (1966), a cancha de bolão

    (1966), a sede provisória da Associação dos Moradores da Vila dos Industriários (1952), a

    praça Frederico Chopin, o estádio Alim Pedro, e algumas placas comemorativas, como a

    que foi feita em homenagem a Semana Oficial do Engenheiro e do Arquiteto. Fotografou

    também o time de futebol da Vila e a Escola Doutor Edmundo Gardolinski21

    , em inúmeras

    celebrações relacionadas à poloneidade.

    O acervo inclui também algumas fotografias de tomadas aéreas do bairro, que

    compreendem o espaço, de forma que o objeto referido não se perca demasiado no contexto

    da malha urbana. Mas, mesmo assim, o bairro parece adequar-se perfeitamente às

    condições pré-existentes do entorno, como denotam as fotografias.

    Os funcionários do IAPI são outro motivo encontrado entre as imagens da Vila.

    Enquanto visitavam obras ou os edifícios prontos, ou ainda, quando se reuniam para

    discutir assuntos pertinentes ao Instituto, foram retratados em seu ambiente de trabalho,

    sempre sorridentes e aparentemente satisfeitos.

    Outras afeições de Gardolinski confundem-se com os temas das fotografias, dentro

    do conjunto das imagens da Vila do IAPI. Conforme dito acima, a questão da imigração

    polonesa por vezes aparece ligada à relação profissional de Gardolinski com o bairro, ao

    nomear a Praça Chopin, ou ao incluir no calendário da escola da Vila, algumas datas

    importantes para os poloneses. Da mesma forma, o gosto pelas orquídeas e o cultivo de

    orquidários estende-se para o paisagismo aplicado no bairro, não somente pela existência

    dessas flores, mas por uma grande preocupação com a qualidade natural da Vila, investindo

    na criação de parques e na plantação de muitas árvores. Desses temas, também existem

    algumas imagens.

    20

    Segundo o Livro dos Recordes de 2006 (Guinness World Records 2006 – USA: GUINNESS

    PUBLISHING, 2005), o capitão Skarzynski é recordista mundial por ter cruzado o Atlântico com a aeronave

    mais leve, na época, em 07 de maio de 1933. Diz o texto: “... este foi o recorde de distância de vôo em linha

    reta em aeronave de um assento.” (p.194) 21

    Em 1997, a escola teve o seu nome alterado para Escola Nossa Senhora do Cenáculo, e Gardolinski seguiu

    como patrono do prédio (Zero Hora, 27 de março de 2008 | N° 15553).

  • 18

    Por fim, Gardolinski deixou-se retratar inúmeras vezes, cercado pelas obras,

    edifícios ou solenidades, dentro da Vila do IAPI. São fotos onde Gardolinski aparece em

    primeiro plano, como se estivesse à frente de sua própria obra, controlando e

    supervisionando de perto, todos os processos decorrentes da construção – afinal, este era

    seu papel na equipe designada pelo Instituto. As fotografias, porém, são bastante

    esclarecedoras de como Gardolinski via-se em relação àquele projeto – talvez o mais

    importante de sua vida profissional.

    Figura 10 - 13: Fotografias com diferentes temas.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    Após permanecer muitos anos inacessível à consulta pública, o acervo foi doado

    pela família ao Núcleo de Pesquisa em História - NPH, sediado no Instituto de Filosofia e

    Ciências Humanas da UFRGS, depois da morte de Gardolinski. Quando a equipe do

    núcleo recebeu os materiais, estes se encontravam frouxamente arranjados; primeiramente

  • 19

    por Gardolinski, por meio de notas e envelopes identificados, e mais tarde, por familiares –

    responsáveis pela identificação de sujeitos e lugares, no caso das fotografias.

    Logo em seguida, procedeu-se à organização22

    dos documentos escritos. De acordo

    com os funcionários do núcleo, o planejamento e a organização dos documentos seguiu os

    seguintes critérios:

    “A documentação foi organizada em séries, de acordo com as atividades do

    titular, o tipo de documento e o assunto. Desta maneira, a produção intelectual

    de Edmundo Gardolinski e os documentos por ele coletados foram classificados

    nas séries: IMIGRAÇÃO, POLÔNIA, DOCUMENTAÇÃO PESSOAL,

    FREDERIC CHOPIN, NICOLAU COPÉRNICO e ORQUÍDEAS. As séries

    reúnem documentos de diversos tipos, agrupados por assuntos e ordem

    cronológica, quando foi possível identificar a data. A correspondência é parte

    integrante das séries, com exceção da que se relaciona à imigração. Neste caso,

    devido ao volume da documentação, a correspondência foi dividida em ativa,

    passiva e de terceiros, com ordenação cronológica, constituindo a sub-série

    Correspondência da série Imigração.” 23

    Neste caso, o acervo foi dividido em duas partes, a fim de proceder a sua

    conservação e identificação: documentos escritos e fotografias. Por se tratar de um tipo

    documental específico e que demanda procedimentos mais complexos, as fotografias foram

    mantidas fora deste primeiro esquema e, somente a partir do final de 2009, é que uma

    equipe do Núcleo formada por pesquisadores e bolsistas24

    , reiniciou o processo de

    organização, ainda não finalizado. Para Aline Lacerda25

    , a análise e o sentido dos

    documentos fotográficos, no caso de um acervo particular, envolvem necessariamente sua

    relação com o restante do arquivo e seu contexto documental. E prossegue:

    22

    Segundo o site do NPH (www.ufrgs.br/nph), participaram da organização os bolsistas: Anna Katarzyna

    Kopaczewska, Érico Pinheiro Fernandez, Márcia Janete Espig e Viviane Carrion Castanho, com o auxílio

    financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), “através da

    concessão de bolsas de iniciação científica e recursos para aquisição do material necessário ao

    acondicionamento da documentação”. (acessado em 26/10/2009). 23

    Retirado do site do núcleo: www.nph.ufrgs.br (acessado em 26/10/2009). 24

    Em contato com o NPH, recebi o relatório de estágio de uma das bolsistas envolvidas no projeto de

    organização das fotografias de Gardolinski. Dúnia dos Santos Nunes conta que a intenção inicial era de

    organizar a porção fotográfica imediatamente. Porém, o trabalho de pesquisa contextual e de reconhecimento

    dos personagens e lugares figurados nas fotografias acabou por tomar praticamente todo o tempo disponível

    da pesquisa e não foi possível concluir a catalogação. A equipe contou ainda com o auxílio do filho de

    Gardolinski, Edmundo Gardolinski Jr. que identificou algumas imagens. No último boletim do NPH, de

    Junho de 2010, verifiquei que o processo de organização continua em curso, porém ainda não foi finalizado. 25

    LACERDA, Aline Lopes de. Fotografia e valor documentário: o arquivo de Carlos Chagas. História,

    Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, supl. 1, jul. 2009, p. 115-138. Citação p. 118.

    http://www.ufrgs.br/nphhttp://www.nph.ufrgs.br/

  • 20

    “Tradicionalmente vistas como registros autorreferentes, imagens de “alguma

    coisa”, sem conexão clara com a entidade produtora e responsável pela

    existência do conjunto, as imagens acabam sendo tratadas por seu conteúdo

    intrínseco, não sendo percebidas como portadoras de um vínculo arquivístico,

    que as remetem a outros documentos e, em última instância, as ligam ao próprio

    titular do arquivo, pessoa física ou jurídica responsável pela produção e

    acumulação dos documentos.”

    Outra importante parte do acervo encontra-se na Faculdade de Arquitetura da

    UFRGS. Pelo seu valor urbanístico, o acervo fotográfico referente à Vila do IAPI chamou a

    atenção de professores e estudantes de Arquitetura e, a partir dele, bons trabalhos26

    já foram

    produzidos.

    Nessa porção do acervo, localizei um álbum que Gardolinski criou sobre/para o

    projeto do IAPI, que foi gentilmente digitalizado e cedido pelo GEDURB27

    . Nessa imensa

    documentação, é possível localizar: imagens coletadas de diferentes bairros de Porto Alegre

    e de outras cidades brasileiras, onde figuram vistas de lugares onde (provavelmente) seriam

    construídos conjuntos residenciais e mais especificamente, vistas do Passo d‟Areia antes do

    início das obras (com a indicação do que se pretendia construir nestes locais); algumas

    tipologias diferentes de edifícios ou conjuntos residenciais prontos e habitados; detalhes de

    portas, janelas, esquadrias – ou, como titulou Gardolinski: “Elementos para estudo”; cenas

    de trabalho (tipógrafos e trabalhadores da construção civil); visitas de políticos ou

    funcionários públicos ligados ao IAPI; terrenos para abertura de vias de acesso; detalhes da

    infra-estrutura básica, como os postes destinados a conduzir energia elétrica; vistas gerais

    do início das obras, com ênfase nos procedimentos de terraplanagem e drenagem do solo;

    algumas fotografias das casas provisórias que serviam aos funcionários durante o dia de

    trabalho (ou o “acampamento dos operários”); árvores que permaneceriam compondo a

    paisagem ao lado das edificações; eventos de inauguração realizados no terreno antes de ser

    tomado pelas construções, como a plantação de árvores (ou “início da arborização”) e a

    26

    Ver: DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos Iaps. O conjunto residencial do Passo

    d‟Areia e os projetos modernistas no contexto da habitação popular dos anos 40 no Brasil. Dissertação de

    Mestrado. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS / UNIRITER 2003; e: LAPOLLI, André. Como destruir um

    patrimônio cultural urbano. A Vila IAPI, “crônica de uma morte anunciada”. Dissertação de Mestrado. Porto

    Alegre: PROPUR-UFRGS, 2006. 27

    Gabinete de Estudos e Documentação Urbana. Faculdade de Arquitetura. Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul.

  • 21

    construção do horto, além da cerimônia de lançamento da pedra fundamental; visitas de

    Gardolinski para inspeção do andamento das obras; processo de construção dos espaços

    sociais do bairro, como o estádio de futebol e a igreja; melhoramentos que iam sendo feitos

    durante a construção dos edifícios, como “retirada de bolsões de lama” ou “corte

    transversal de um dos muitos cupins a serem eliminados nos terrenos da vila”, inúmeras

    fotografias das primeiras casas (em obras, desde os alicerces em pedra) e após a ocupação

    pelos moradores, incluindo belíssimas fotografias onde há claramente uma preocupação

    estética relevante. O álbum compreende 12 anos28

    (1940-1952) e mais de 2000 fotografias.

    Figura 14 - 16: Páginas do álbum de Edmundo Gardolinski.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    28

    O Instituto de Aposentadoria e Pensões foi criado em 1936 e o projeto do IAPI foi finalizado em 1947,

    mesmo ano de início das obras. A inauguração aconteceu em 1952.

  • 22

    Pelo hábito de registrar e organizar as fotografias da Vila do IAPI em álbuns,

    Gardolinski parece ter mantido, durante alguns anos, a intenção de documentar

    fotograficamente o processo de construção do bairro. Porém, não há indícios de que estas

    fotografias tenham sido publicadas ou mesmo veiculadas em periódicos especializados da

    época. Nos jornais circulantes em Porto Alegre, na década de 50, bem como em algumas

    revistas ilustradas29

    , há reproduções de fotografias do acervo de Gardolinski, porém, não há

    nenhuma indicação de autoria.

    À época das tomadas, o registro sistemático que deu origem a este montante de

    fotografias, realizou-se na coadunação de duas atividades realizadas com interesses

    distintos: a Engenharia, profissionalmente e a fotografia, enquanto hobby. Neste momento

    específico da vida de Gardolinski, porém, a realização de imagens fotográficas sobre a Vila

    do IAPI, une as duas práticas em um mesmo interesse. Ao tomar a porção fotográfica em

    conjunto, é fácil identificar a maioria de fotografias cujo referente é o andamento das obras.

    Tal elemento dentro do acervo é indicativo da necessidade de documentar todas as fases

    desse processo, além de contemplar os materiais utilizados, como tijolos, cimento ou

    maquinário, e os trabalhadores da construção civil, com trajes apropriados para o ofício,

    fotografados em seu local de trabalho.

    O procedimento de arquivar em forma de álbum30

    não é alheio ao restante das

    fotografias, de onde também podemos extrair essa intenção, em algumas dezenas de folhas

    onde Gardolinski colava as imagens e datilografava sua descrição. Creio que o primeiro

    montante de imagens a qual tive acesso (o conjunto documental do NPH) faz parte do

    mesmo processo de registro e documentação visual que Gardolinski estava montando para

    o projeto da Vila. No entanto, ao produzir o álbum, algumas fotografias não foram

    incluídas, e são essas as imagens que encontrei no núcleo, em péssimo estado de

    conservação e organização.

    29

    Os periódicos consultados foram Correio do Povo, Diário de Notícias e Jornal do Dia e as Revistas O Globo

    e Cruzeiro. A pesquisa foi feita por amostragem, sempre tomando o ano de 1952 (inauguração do IAPI) como

    referência. 30

    “A união fotografia-álbum constitui (...) a primeira grande máquina moderna a documentar o mundo e a

    amealhar suas imagens.” ROUILLÉ, André. A fotografia. Entre documento e arte contemporânea. São Paulo:

    Editora SENAC, 2009. p. 98.

  • 23

    Tal hipótese surgiu do fato de que inúmeros clichês se repetem dentro do álbum e

    nas fotografias “soltas”. Ademais, a narrativa que se estabelece dentro do álbum

    corresponde àquela possível de construir-se a partir das fotografias “avulsas”. Infelizmente,

    não é possível contrapor esse argumento com outras fontes, como possíveis entrevistas, ou

    relatos escritos por Gardolinski, cujos procedimentos não eram compartilhados com todos

    os seus familiares, de onde muitos deles não têm conhecimento dos detalhes do

    arquivamento. Também por isso, é possível que aquelas fotografias que não foram

    incluídas, sejam também as “melhores”, de um ponto de vista estético e pessoal de

    Gardolinski e, por isso, tenham sido separadas para sua guarda pessoal.

    Para Lacerda31

    , a ação que separa determinadas fotografias em álbuns e mantém

    avulsas outras, acaba por determinar uma “lógica particular de exibição dessas imagens”,

    onde o sujeito, ainda que não intencionalmente, constrói uma narrativa visual a partir de seu

    ponto de vista pessoal sobre os eventos. Porém, além de uma narrativa visual detalhada

    sobre o processo de construção da IAPI, Gardolinski compõe um álbum de referências para

    o seu próprio projeto.

    Em relação ao álbum, é evidente que não será possível trabalhar com o álbum

    inteiro nesta pesquisa. Além do volume surpreendente de fotografias, o que primeiro

    motivou este trabalho foram os documentos constantes no NPH. O álbum do Gedurb foi

    localizado e acessado há poucos meses atrás e, obviamente, não pude ignorá-lo, até porque

    a partir dele, foi possível tecer hipóteses mais claras sobre as intenções práticas de

    Gardolinski na tomada e acumulação dos objetos fotográficos. Até então, era de meu

    conhecimento apenas os documentos avulsos e desorganizados dentro do acervo no NPH.

    Porém, nesta dissertação, proponho analisar algumas páginas destes álbuns32

    como

    amostragem, juntamente com outras fotografias “avulsas”, mas parte do mesmo acervo.

    31

    LACERDA, Aline Lopes de. Os sentidos da imagem. Fotografias em arquivos pessoais. Acervo, Rio de

    Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 41-54, Jan/Dez 1993. citação p. 51. 32

    Com esta escolha, admito que não será possível dar conta de todas as interfaces do álbum. Também não

    discutirei (pelo menos, não detalhadamente) a metodologia de trabalho com álbuns fotográficos, exceto pelo

    viés de duas autoras que considero importantes para o objetivo da pesquisa neste momento: Zita Rosane

    Possamai e Aline Lopes de Lacerda, cujos trabalhos cito ao longo do texto. Ainda assim, creio que é possível

    alcançar o sentido das fotografias de Gardolinski dentro do acervo, bem como a acumulação destes artefatos,

    sem que seja necessária a descrição detalhada do álbum. É claro que este material permite uma intervenção

  • 24

    Sobretudo, a construção desse álbum advoga em favor do comprometimento e da

    sistematicidade de Gardolinski, e com a importância profissional deste projeto, entre outros

    nos quais estava envolvido. Segundo Heymann33

    , a “recorrência de um tema (...) num

    número expresso de documentos”, chamada de “revelação através do volume”, é

    denotativa dos principais interesses do indivíduo que acumula demasiadamente um tipo de

    material com determinado(s) tema(s).

    Ao mesmo tempo, há a intenção de forjar certa continuidade entre as fotografias,

    entendidas como fragmentos do espaço urbano. Ou seja: ao fotografar apenas uma casa ou

    uma via de acesso, não é possível dar a dimensão dos arredores, do contexto, do conjunto.

    Por outro lado, alinhando as fotografias ao longo de uma página do álbum, é possível

    identificar um número maior de elementos.

    Constrói-se aqui a mesma idéia que, mais tarde, analisarei em algumas fotografias

    que, mesmo isoladas, não dão conta de detalhes, e sim, dos moradores em primeiro plano à

    frente de suas habitações. Além disso, as fotografias do acervo são construídas a partir de

    um saber: a Engenharia e, por isso, afastam-se tanto dos clichês de fotografias de

    arquitetura realizadas a partir de edifícios e conjuntos habitacionais do mesmo período34

    ,

    ainda que guardem semelhanças com alguns parâmetros conformados na nascente

    fotografia moderna brasileira35

    . Ao mesmo tempo, a memória que se desenha na análise

    destas fotografias é a memória do engenheiro-fotógrafo: o sujeito que fotografa, olha para o

    seu projeto com o olhar informado do profissional mas, sobretudo, dialoga com a

    composição e com a luz, elementos da fotografia, além de não abrir mão de preocupações

    estéticas.

    muito mais aprofundada que foge aos limites desta pesquisa. Não obstante, seria de grande honra se esta

    dissertação instigasse trabalhos dessa natureza, ainda inéditas para este conjunto. 33

    HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos

    pessoais e o caso Filinto Muller. Estudos Históricos, 1997, nr. 19. p. 53. 34

    Japurá (SP), Realengo (BA) e Pedregulho (RJ) são iniciativas habitacionais do mesmo período. Os registros

    fotográficos destes edifícios, porém, diferem muito das fotografias de Gardolinski. Analisarei este

    distanciamento no próximo capítulo. 35

    Sobre isso ver: COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A fotografia moderna no Brasil. Rio de Janeiro:

    Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995. (Recentemente uma nova edição revisada foi lançada pela

    Editora Cosac Naify. Ambas constam na bibliografia desta dissertação.)

  • 25

    Assim, as fotografias tanto quanto o álbum, sugerem muito mais a idéia de

    fotografias de urbanismo do que fotografias de arquitetura, onde há o esforço por narrar o

    cotidiano do bairro e não apenas as edificações ou prédios sociais. Para Possamai36

    :

    “...as imagens fotográficas ao elaborarem uma representação reduzida do

    gigantismo urbano, e ao estarem dispostas em um álbum, realçam essa idéia de

    continuidade, jogando com a ilusão de dar a ver a cidade em sua totalidade e em

    sua unidade espacial, inexoravelmente rompida pelo ato fotográfico.”

    Por fim, algumas fotografias estão em posse de associações polonesas situadas em

    Lageado37

    – RS, para onde foram enviadas com intuito de que imigrantes de poloneses

    pudessem identificar lugares e personagens. Ao identificarem as fotografias, tais

    comunidades, decidiram não devolver os conjuntos, alegando que as fotografias de um

    importante representante da poloneidade, como Gardolinski, deveriam ficar próximas a

    outros imigrantes, e não em uma instituição de ensino sem nenhum vínculo dessa natureza

    com o autor.

    Não tive acesso a essas imagens antes de serem enviadas a Lageado. Acredito,

    porém, que muitas dessas fotografias encontram-se reproduzidas no acervo do Núcleo, já

    que Gardolinski tinha o hábito de ter mais de uma cópia das fotografias.

    A divisão do acervo de Edmundo Gardolinski em diferentes departamentos da

    mesma instituição, assim como o “extravio” de algumas imagens (como no caso de

    Lageado), esclarece um dos pontos frágeis desta documentação de um ponto de vista

    arquivístico: a perda da unidade do conjunto documental. Também sugere outro problema.

    Ao longo de todos esses percursos e destinos, desde a acumulação ordenada inicialmente

    pelo titular até a chegada às respectivas instituições, inúmeros arranjos foram refeitos,

    adicionando novas perspectivas de sentido para o conjunto de documentos. Para

    Heymann38

    , tal questão explicitada no “princípio da proveniência sob o ponto de vista

    interno”, é fundamental já que “desaperceber-se do modo de acumulação pode implicar no

    remanejamento das órbitas, por conseguinte em construir relações outras, com a implosão

    36

    POSSAMAI, Zita. Narrativas fotográficas sobre a cidade. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27,

    n. 53, p. 55-90, 2007. citação p. 57. 37

    O contato entre estas comunidades e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul é dificultado pela falta

    de interesse destas em restituir o empréstimo. 38

    HEYMANN, Luciana. op. cit., p. 43.

  • 26

    do sentido original”. No entanto, de um ponto de vista histórico, tais remanejamentos não

    só alteram o sentido original, como fornecem novos, de igual interesse para o campo da

    História. De acordo com Lacerda39

    :

    “Essas imagens e a exposição das tramas nas quais seus sentidos vão sendo

    tecidos no tempo nos ajudam a pensar sobre um aspecto interessante (e

    exemplar) de um fenômeno recorrente nas organizações dos arquivos. Diz

    respeito às ressignificações dos documentos em geral – e das imagens de forma

    privilegiada – a partir do olhar de quem organiza, considerando os sentidos

    conferidos à atuação do titular ao longo de sua vida e consolidados numa visão a

    posteriori.”

    Os re-arranjos são responsáveis pela adição de olhares e temporalidades aos

    documentos. Assim, ao inserir esta perspectiva na análise, torna-se possível historicizar o

    acervo.

    2.2 - O lugar do Acervo Edmundo Gardolinski: uma coleção particular.

    Por serem provenientes de um lugar da ordem do privado, não é possível passar à

    análise das fotografias, sem considerar este importante substrato que acabou inscrito na

    biografia das imagens. Primeiramente, um acervo pessoal de inúmeros materiais, arranjados

    de acordo com as categorias de Gardolinski. Mais tarde, ao ser doado pela família a uma

    instituição de ensino e pesquisa, o conjunto documental ganhou novo status: foi alçado, ao

    lado dos outros documentos constantes no Núcleo, ao lugar de documento histórico. Para

    Luciana Q. Heymann40

    :

    “...os centros de documentação funcionam como locus privilegiado de avaliação

    desse capital simbólico, já que são instituições voltadas para a preservação

    daquelas memórias reconhecidas como históricas, ao mesmo tempo em que são

    capazes de conferir valor histórico aos papéis que se encontram sob sua

    guarda.”

    39

    LACERDA, Aline. op. cit., 2009, p. 123. 40

    HEYMANN, Luciana. op. cit., p. 49.

  • 27

    Mesmo sem o interesse declarado de publicizar os vestígios acumulados no acervo,

    Gardolinski não deixou de prosseguir na guarda. A porção fotográfica não circulou,

    conforme pesquisa documental41

    , em periódicos especializados ou boletins das instituições

    públicas envolvidas, ao longo dos quase 12 anos em que manteve o hábito de captar

    fotograficamente a Vila do IAPI. Qual fosse a intenção contemporânea à acumulação, o

    fato é que, ao final de sua vida, seus familiares consideraram o montante demasiado

    informativo e desejaram doá-lo. É sempre preferível que acervos (privados ou públicos)

    estejam completamente acessíveis à sociedade. Porém, neste momento, interessa mais saber

    de que forma o estatuto atual da documentação atua sobre o sentido do acervo.

    Quanto às fotografias “avulsas”, Gardolinski mantinha sistemas diversos de

    organização. Para um dos montantes, separou as fotografias em pastas de papel, com o

    título daquele conjunto, coladas em folhas de ofício tamanho A4. Abaixo de cada foto,

    escrevia uma pequena nota, identificando o evento representado. Infelizmente, nem todas as

    fotografias foram incluídas neste sistema, o que fez com que muitas delas não fossem

    identificadas42

    .

    41

    Ver Capítulo 2. 42

    Algumas outras imagens foram identificadas posteriormente por familiares ou representantes de

    comunidades polonesas no Rio Grande do Sul.

  • 28

    Figura 17 - 20: Fotografias coladas em folhas A4 e identificadas por Edmundo Gardolinski.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    Gardolinski ainda mantinha outros conjuntos de fotografias dentro de envelopes

    pequenos, onde os temas eram escritos à mão, como forma de identificação. Porém, entre a

    organização de Gardolinski, a guarda da família e a transferência para o Núcleo, as

    fotografias foram manipuladas diversas vezes e grande parte delas, perdeu-se de seu

    conjunto original, misturando-se a outros conjuntos e até a outras fontes43

    . Em um primeiro

    momento, foi necessário separar o conjunto fotográfico do restante do acervo, para dar

    conta dos temas e da quantidade de imagens.

    43

    Algumas fotografias foram encontradas entre as cartas e os livros, sem nenhuma conexão temática ou de

    sentido.

  • 29

    Figura 21 - 26: versos de algumas fotografias do Acervo Edmundo Gardolinski.

    Fonte: Acervo Edmundo Gardolinski.

    Neste sentido, tive o cuidado de não modificar a prévia organização que Gardolinski

    havia dado ao material, mas nos casos de fotografias soltas entre as caixas não foi possível

    identificar o envelope de origem. Para estas fotografias, especificamente, tive o cuidado de

    mantê-las junto com outras de situação temática próxima, verificando se os personagens se

    repetiam ou se os lugares eram os mesmos de outras fotos separadas em envelopes. Após a

    análise do álbum, porém, inúmeras fotos foram facilmente identificadas, já que se repetiam.

    Em seu álbum, Gardolinski identificou a data, os lugares/situações e os

    personagens. Ao final deste processo, o acervo encontrava-se mais acessível, mesmo que ao

    custo de uma nova organização que levou em conta pressupostos dessa pesquisa, com

    interesses definidos por mim, enquanto historiadora, e temporalidades situadas em outro

  • 30

    nível daquela organização de Gardolinski, mais próxima do ofício de engenheiro – saber

    que guiou a tomada de clichês pela Vila. Para Heymann44

    :

    “Se o conjunto documental acumulado já é produto de um processo de

    monumentalização da memória do indivíduo, sua transformação em arquivo

    doado abre espaço para um novo processo de seleção/subtração (...) coloca em

    destaque a questão da compatibilidade entre memória individual e memória

    coletiva ou histórica.”

    Em muitas das fotografias do acervo Gardolinski não aparece, o que é indicativo de

    que ele seria o fotógrafo nestes momentos. Em outras imagens, porém, Gardolinski indica

    que foram “apanhadas pela objetiva do „Correio do Povo‟45

    ” ou, ainda, no verso de quase

    todas as fotografias, aparece o carimbo do Estúdio Nick - responsável pela revelação das

    fotografias, e o dono do estúdio, o fotógrafo russo Nikolaj Lenskij, pela tomada de algumas

    imagens. O Jornal Zero Hora de Porto Alegre, publicou matéria em sua edição do dia 19 de

    Janeiro de 2008, na qual citava a atuação e importância do Estúdio Nick:

    “O tradicional estúdio Foto Nick, uma tradição do bairro Iapi, em Porto Alegre,

    tem uma história mais que cinqüentenária ligada à geografia dessa parte da

    cidade e especialmente à sua população. Nomes importantes e pessoas simples,

    uma imensa galeria de porto-alegrenses posou para o imigrante russo Nikolaj

    Lenskij desde que ele instalou seu ateliê, em 1952, num dos edifícios gêmeos do

    Instituto dos Industriários. Entre as personalidades do bairro que foram por ele

    fotografadas estão a mais conhecida delas, a cantora Elis Regina, e o

    engenheiro-chefe que construiu o bairro, Edmundo Gardolinski. Entre seus

    orgulhos de fotógrafo, Nikolaj (nome do qual se originou a denominação do

    estúdio) fixou para a história da cidade a inauguração, pelo presidente Eurico

    Dutra, do Estádio Alim Pedro e do discóbulo e registrou o desfile de Getúlio

    Vargas em carro aberto pelas ruas do bairro. Numa trajetória que se iniciou com

    os negativos de vidro e que hoje se mantém na era digital, a Foto Nick

    sobreviveu à morte de seu fundador, em 1981, aos 58 anos, e é hoje administrada

    por seu filho Eduardo Lenskij”

    Porém, mesmo quando não é Gardolinski quem aciona o dispositivo, é ainda ele o

    responsável pelo agenciamento da imagem referida, já que orienta os percursos e os

    motivos que Lenskji deve fotografar. É ainda responsável pela organização dos eventos

    retratados, bem como dos espaços por onde a lente de Lenskji passou, como o próprio

    Departamento de Obras e a Sede dos Inapiários dentro da Vila do IAPI, onde ocorreu a

    44

    HEYMANN, Luciana. op. cit. p. 50. 45

    O Correio do Povo é um jornal impresso brasileiro em formato tablóide com circulação no estado do Rio

    Grande do Sul fundado em 1º de outubro de 1895 por Caldas Júnior. Foi o jornal de mais longa publicação em

    Porto Alegre, circulando por 89 anos ininterruptamente, até 1984, reiniciando sua publicação em 1986.

  • 31

    maior parte das reuniões dos funcionários do Instituto. Assim, Gardolinski, mesmo quando

    aparece nas fotografias (e não operando a câmera), é o responsável pela lógica de

    rememoração instaurada dentro da porção fotográfica relativa à Vila do IAPI.

    Da mesma forma, os objetos fotográficos tornam-se agentes no espaço por onde

    circulam: enquanto agentes, provocam mudanças no meio social onde estão inseridos.

    Conforme Meneses46

    , “a imagem, além de signo, também executa o papel de ator social,

    produz efeitos.” Pela pesquisa em periódicos da época, conclui que esses objetos se

    mantiveram, quase que em sua totalidade, dentro do âmbito privado, enquanto acumulação

    pessoal de Gardolinski. As poucas fotografias que ilustraram matérias em jornais ou

    revistas sobre a Vila do IAPI não traziam nem mesmo a autoria do fotógrafo.

    Sendo assim, mais do que tomar as fotografias individualmente, é importante

    analisar outros elementos agenciadores: Gardolinski, sujeito que acumula vestígios

    enquanto uma seleção de sua própria memória, e o próprio acervo, já que é possível

    verificar por onde este conjunto circulou, quais as modificações que sofreu e como

    relacionou-se com outros objetos e com as pessoas dentro do espaço onde foi inserido.

    Da mesma forma, a partir deste conjunto de fotografias, é possível entender de que

    forma a idéia acerca da Vila do IAPI foi construída ao longo do tempo e como os clichês de

    Gardolinski contribuíram para esta construção – nem sempre alcançando as expectativas do

    titular para esta memória arquivada, mas freqüentemente envolvido no processo de

    formação da sua imagem. Para Meneses47

    , “mais que representações de trajetórias

    pessoais, os objetos funcionam como vetores de construção da subjetividade e, para seu

    entendimento, impõem, já se viu a necessidade de se levar em conta seu conteúdo

    performático. [...] caráter de interlocução.” No capítulo seguinte, esta questão será mais

    bem discutida.

    46

    MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma “História Visual” in: ECKERT, Cornelia et all (org.). O

    imaginário e o poético nas ciências sociais. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 49. 47

    MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público.

    Estudos históricos, 1998, n.21, p. 89-103. citação p. 96.

  • 32

    a) Fotógrafos imigrantes

    Outro dado importante sobre a tomada/autoria das imagens é a relação que a prática

    da fotografia mantém com estrangeiros imigrantes, no Brasil. Gardolinski era descendente

    de poloneses e seu parceiro, Nick Lenskij, descendente de alemães. Pode-se dizer que

    vários dos primeiros fotógrafos brasileiros importantes eram imigrantes. Em um dos artigos

    publicados a partir da tese de Zita Possamai48

    , há a indicação dos principais estúdios

    fotográficos localizados na Porto Alegre do início do século XX, todos eles comandados

    por imigrantes: “... destacavam-se cinco estúdios fotográficos; cujos proprietários eram o

    espanhol João Antonio Iglesias, os italianos Irmãos Ferrari, o italiano Virgílio Calegari, o

    alemão Otto Schönwald e Innocencio Barbeitos.”

    Ainda segundo Possamai49

    , “imigrantes recém-chegados aprendiam o ofício com

    outros imigrantes já radicados” fazendo com que esta atividade continuasse por muitos

    anos majoritariamente entre estes grupos. A experiência européia50

    anterior pode ser uma

    justificativa para o número de imigrantes fotógrafos no Brasil. Apesar dos primeiros

    experimentos que resultariam no dispositivo fotográfico terem tido início em meados do

    século XIX, a fotografia começa a popularizar-se por aqui apenas nas primeiras décadas do

    século XX: a câmera portátil Kodak51

    , começa a ser vendida em 1910 e, em Porto Alegre,

    especificamente, o uso da explosão de magnésio para fotografias com flash, data de 192052

    .

    Além disso, a fotografia apresentava-se como oportunidade de negócios duplamente

    favorável: retorno imediato dos investimentos e uma posição social de prestígio entre as

    48

    POSSAMAI, Zita R. O circuito social da fotografia em Porto Alegre (1922-1935). Anais do Museu Paulista

    14(1): 263-289, TAB. 2006, Junho. citação p. 264. 49

    Ibidem, p. 264. 50

    Mais importante do que isso, é admitir que a experiência européia instaurou uma forma de ver específica,

    uma visibilidade influenciada por padrões estrangeiros, pelo menos nos primeiros anos da fotografia no

    Brasil. A própria difusão de formatos, como o carte de visite, que trazidos da Europa, difundiam-se

    rapidamente pelos estúdios brasileiros, demonstra tal influência, bem como uma estética européia de

    enquadramentos e composições. Entretanto, os mesmos fotógrafos estrangeiros envolviam-se com motivos

    brasileiros, modificando, ao longo dos anos, seus olhares e sua prática fotográfica, conformando,

    conseqüentemente, uma outra visibilidade mais local. 51

    Inventada em 1888. 52

    Ibidem, p. 275.

  • 33

    classes urbanas. Conforme disse Fabris53

    , “a fotografia é a invenção mais burguesa em sua

    tentativa de construir o mundo à própria imagem e semelhança.”

    b) Fotografia como distintivo de modernidade

    Gardolinski interessava-se por temas relacionados ao cinema e à fotografia, também

    na forma de artigos e revistas especializadas. Em seu acervo, encontram-se artigos sobre

    fotógrafos, como Cecil Beaton, de quem se diz que “a superposição de fotografias umas

    sobre as outras, [é] uma proeza dificílima.” 54

    . Além da Aconteceu, Gardolinski colecionou

    alguns números das revistas O Globo, Panorama e Periódico de Ilustração Brasileira. Os

    números arquivados tratam de fotografia ou cinema e ainda, artes plásticas e dança

    folclórica.

    Seguindo as indicações de Zita Possamai e de outros autores que tratam do tema da

    modernidade no início do século XX, verifica-se nas fotografias de Gardolinski, bem como

    em alguns elementos de sua biografia, a intenção de constituir-se enquanto sujeito

    moderno, com práticas modernas, através da interação com as novas tecnologias, como a

    câmera fotográfica e o cinema. Ao interessar-se pela fotografia, Gardolinski tornava sua

    profissão mais sofisticada. Construía a documentação de seu trabalho valendo-se do suporte

    mais moderno na época e que, no Brasil, especificamente, era reconhecido, quase

    consensualmente, como uma forma de expressão artística, ao mesmo tempo que

    documental55

    .

    53

    FABRIS, Annateresa. A invenção da fotografia: repercussões sociais. In: ________. Fotografia – Usos e

    Funções no Século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. p. 56. 54

    Revista Aconteceu – número 141. 55

    Ao pesquisar os anúncios publicitários de produtos fotográficos no início do século XX, Fabris concluiu que

    havia a “ausência das discussões polarizando fotógrafos e pintores que por tantos anos alimentaram a

    intelectualidade européia”, referindo-se à polêmica levantada por artistas da pintura sobre a suposta

    objetividade do registro produzido por uma máquina, onde o saber artístico do homem não teria nenhuma

    influência sobre o produto final. Segundo ela, “aqui não parece ter havido uma resistência do mesmo porte

    em aceitar a fotografia enquanto arte.” Ibidem, p. 73.

  • 34

    Gardolinski também participou de inúmeros concursos e exposições fotoclubistas, o

    que é indicativo de que mesmo amadoristicamente, mantinha um forte envolvimento com a

    fotografia. Da mesma forma, o hábito de fotografar motivos diversos e enviar as fotografias

    para eventos desta natureza não está dissociada da intenção de documentar a construção da

    Vila do IAPI, exceto pelo propósito diferenciado de cada momento. Ou seja: a experiência

    com a fotografia moderna dentro dos fotoclubes pode ter influenciado – e reciprocamente,

    ter sido influenciada pela tomada de fotografias no exercício profissional da Engenharia.

    Segundo Helouise Costa56

    , os primeiros fotógrafos considerados modernos no Brasil57

    ,

    participaram do Foto Cine Clube Bandeirantes e foram responsáveis por “renegarem o

    caráter documental da fotografia”. O acervo de Gardolinski insere-se em partes nesta

    perspectiva. De acordo com Costa58

    :

    “A fotografia moderna começa entre nós com a crítica do pictorialismo

    (tendência de caráter acadêmico que visava reproduzir na fotografia modelos da

    pintura clássica) e busca em seguida uma atualização da fotografia com relação

    ao estágio já alcançado pelas outras artes. Trata-se de uma fotografia de feições

    radicalmente contemporâneas, urbana e cosmopolita, direta ou indiretamente

    vinculada ao construtivismo e ao concretismo no