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RETRATOS LITERÁRIOS: O DISCURSO CIENTÍFICO NA OBRA DE JULES VERNE Edmar Guirra dos Santos Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina RIO DE JANEIRO OUTUBRO DE 2010

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RETRATOS LITERÁRIOS: O DISCURSO CIENTÍFICO NA

OBRA DE JULES VERNE

Edmar Guirra dos Santos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

RIO DE JANEIRO OUTUBRO DE 2010

RETRATOS LITERÁRIOS: O DISCURSO CIENTÍFICO NA OBRA DE JULES VERNE

Edmar Guirra dos Santos Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa) Banca examinadora: ________________________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ ________________________________________________________________ Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ ________________________________________________________________ Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ ________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold, Suplente - UFRJ _______________________________________________________________ Professora Doutora Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira, Suplente – UFF

Rio de Janeiro Outubro de 2010

À Lúcia, Gil, Taís e Milca

AGRADECIMENTOS

Ao final de mais de quatro anos de trabalho, mesmo que seja difícil fazer uma lista

exaustiva de todas as pessoas que me ajudaram diretamente ou indiretamente nesta pesquisa,

gostaria de expressar os meus mais sinceros e cordiais agradecimentos ao Professor Pedro

Paulo Garcia Ferreira Catharina, não só pela orientação dessa dissertação, mas pelo incentivo,

preocupação, paciência e pela confiança em querer me acompanhar nessa etapa dos estudos

acadêmicos que, espero, seja seguido de novos estudos sob sua orientação.

Que seja igualmente agradecido à Professora Celina Maria Moreira de Mello por

despertar em mim o gosto pela literatura francesa, pelos ensinamentos e pelas indicações mais

do que precisas e enriquecedoras. Agradeço também as professoras Rosa Maria de Carvalho

Gens, Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold e Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira por

aceitarem muito gentilmente fazer parte da banca examinadora desta dissertação.

Esse trabalho universitário pôde ser realizado graças a diversas ajudas, pontuais ou

regulares, que gostaria de destacar. Primeiramente, a ajuda financeira do CNPq que me

permitiu dedicação à pesquisa desde a época da iniciação científica.

A ajuda de Irineu Corrêa pelo tempo despendido nas pesquisas a materiais das

bibliotecas nacional da França e do Rio de Janeiro. Obrigado pela preciosa ajuda! Agradeço

ao Professor Dominique Maingueneau que aceitou me receber na Universidade Paris XII e

discutir meu trabalho. Os resultados desses encontros, que ultrapassaram o restrito quadro da

leitura da sua obra, me servirão, inclusive, em trabalhos futuros. Meus agradecimentos

também à Adriana e Alban, à Hélène e Didier que muito me ajudaram em terras francesas.

Jules Verne não teria desprezado, na minha opinião, a nova tecnologia que é a

Internet. Graças a esse novo meio de comunicação pude conhecer Carlos Patrício e Frederico

Jácome, caros amigos vernianos a quem endereço meus agradecimentos pela ajuda e

incentivo. Obrigado também ao verniano Alexandre Tarrieu por me abrir as portas de sua

biblioteca. Destaco a importância da Internet, pois dois sites me permitiram avançar nas

pesquisas e me corresponder com o mundo verniano: o Forum Jules Verne de Zvi Har’El

(jv.gilead.org.il/forum) e o Portal Jules Verne de Frédéric Viron (www.fredericviron.com).

Agradeço também a todos os amigos brasileiros, franceses ou americanos e aos meus

familiares, pela presença, pela palavra amiga e estímulo, e por entenderem minha ausência em

alguns momentos.

Peço desculpas de antemão às pessoas que não citei, mas que contribuíram igualmente

para a elaboração desse trabalho.

SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.

RESUMO Estudo contrastivo dos retratos literários de brancos e “selvagens” nos romances Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants du capitaine Grant (1867) e Le Chancellor (1875), de Jules Verne. Apresentação das afinidades entre os romances de Jules Verne e as teorias de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin e textos e iconografia veiculados no magazine Le Tour du monde, destacando as relações intertextuais e interdiscursivas entre o discurso literário e o científico. Reconstrução da cenografia enunciativa dos romances, visando estabelecer seu ethos enunciativo através da análise dos retratos dos personagens, vistos como construções determinadas por um habitus que se desejava perpetuar.

SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.

RÉSUMÉ Étude contrastive des portraits littéraires des blancs et des « sauvages » des romans Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants du capitaine Grant (1867) et Le Chancellor (1875), de Jules Verne. Présentation des affinités entre les romans de Jules Verne et les théories de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin et les textes et l’iconographie véhiculés dans le magazine Le Tour du monde, mettant en relief les rapports intertextuels et interdiscursifs entre le discours littéraire et le discours scientifique. Reconstruction de la scénographie énonciative des romans, afin d’en établir l’éthos énonciatif à travers l’analyse des portraits des personnages, vus comme des constructions déterminées par un habitus que l’on souhaitait perpétuer.

SUMÁRIO

1. AS VIAGENS EXTRAORDINÁRIAS DE JULES VERNE .............................. 12. RETRATOS ................................................................................................................... 15

2.1 Retrato: interface literária ........................................................................................ 15

2.2 Retrato: interface pictural ........................................................................................ 29

2.3 Interseção entre as interfaces literária e pictural do retrato ..................................... 39

3. A PESQUISA VERNIANA PARA A COMPOSIÇÃO DOS RETRATOS... 42

3.1 Intertexto e interdiscurso: o trabalho da citação e a questão documental ................ 43

3.2 Das relações intertextuais com o magazine Le Tour du monde ............................... 57

3.3 Das relações interdiscursivas com as teorias de Lavater e Gall .............................. 78

3.4 Dos diálogos com Gobineau e Darwin .................................................................... 97

4. BRANCOS VERSUS SELVAGENS: AS ANÁLISES DOS RETRATOS ...113

4.1 O sistema descritivo e o retrato ..............................................................................114

4.2 Cinq semaines en ballon: colonialismo justificado ................................................122

4.3 Les enfants du capitaine Grant: do bom selvagem ao racismo avant la lettre........131

4.4 Le Chancellor: regressão do homem ao estado bestial ...........................................152

5. A CENOGRAFIA ENUNCIATIVA DOS ROMANCES ..............................173

5.1 O ethos do enunciador: a legitimação da cenografia enunciativa em Verne .........174

5.2 Magasin d’éducation et de récréation: a vitrine da editora Hetzel ........................180

5.3 Do habitus e da perpetuação de ideias ....................................................................198

5.4 Os personagens e a legitimação discursiva .............................................................201

6. CONCLUSÃO ...................................................................................................207

7. REFERÊNCIAS ................................................................................................213

8. ANEXOS ............................................................................................................220

1

1 - AS VIAGENS EXTRAORDINÁRIAS DE JULES VERNE

Jules Verne (1828-1905) é o autor mais traduzido no mundo, talvez o mais lido. Joëlle

Dusseau afirma na biografia do escritor que “pelo número de exemplares vendidos, Jules

Verne é o quarto autor no mundo, o primeiro francês e o campeão dos autores traduzidos

todos os anos”.1 No entanto, em 1893, Verne declara numa entrevista: “Le plus grand regret

de ma vie est que je n’ai jamais compté dans la littérature française”.2 De onde vem esse

paradoxo que parece confirmar a máxima francesa nul n’est prophète en son pays? Os

motivos para tais constatações são múltiplos.

A infância de Jules Verne em Nantes marca profundamente o autor das “Viagens

extraordinárias”. O próprio escritor o reconhece, no final de sua vida, nos seus “Souvenirs

d’enfance et de jeunesse”:

Et d’abord, ai-je toujours eu du goût pour les récits dans lesquels l’imagination se donne libre carrière? Oui, sans doute, et ma famille a tenu en grand honneur les lettres et les arts – d’où je conclus que l’atavisme entre pour une forte part dans mes instincts. Puis, il y a cette circonstance que je suis né à Nantes, où mon enfance s’est tout entière écoulée. Fils d’un père à demi-parisien et d’une mère tout à fait bretonne, j’ai vécu dans le mouvement maritime d’une grande ville de commerce, point de départ et d’arrivée de nombreux voyages au long cours.3

Para compreendermos as “Viagens extraordinárias” é fundamental saber como Jules

Verne se tornou escritor. Por mais decisivo que seja, o encontro entre Verne e Hetzel é

igualmente o resultado de um longo caminho pessoal e intelectual em que Verne sempre

manifestou seu desejo de tornar-se escritor. O itinerário verniano, de seu nascimento em

1 “[...] au nombre d’exemplaires vendus, Jules Verne est le quatrième auteur mondial, le premier français et le champion des auteurs traduits chaque année”. In: DUSSEAU, Joëlle. Jules Verne. Paris: Perrin, 2005, p. 9. 2 Citado por Lucien Boia em: BOIA, Lucien. Jules Verne - les paradoxes d’un mythe. Paris: Les belles lettres, 2005, p. 11. A entrevista original e integral apareceu com o título “Jules Verne at home: his own account of his life and work”, in McClures Magazine, vol. 11, N° 2, jan. 1894. Traduzido do inglês por Sylvie Malbraneq, foi publicada no Magazine Littéraire, Nº 281, em outubro de 1990, e se encontra disponível em: http://jv.gilead.org.il/butcher/sherard.html Última consulta: 20/09/2008. 3 VERNE, Jules. “Souvenirs d’enfance et de jeunesse”. In: Jules Verne. Paris: L’Herne, 1974, p. 58.

2

Nantes até sua instalação em Paris, mostra algumas incertezas e hesitações que marcaram seu

percurso antes de obter sucesso em 1860.4

Filho de Pierre Verne (1799-1881), procurador judicial em Nantes, e de Sophie Allotte

de la Fuÿe (1801-1887), de origem de nobre família de armadores e navegadores escoceses,

Jules Verne se juntava a mais um irmão e três irmãs para compor uma família católica

praticante. De 1833 a 1846, Verne e seu irmão Paul estiveram em período escolar, tendo

aprendido a ler com uma professora particular; em seguida Verne entra para a escola Saint-

Stanislas, parte para o seminário Saint-Donatien e, enfim, para o Lycée Royal, onde obteve

seu baccalauréat em filosofia e retórica.5 Depois desse exame, Verne aceita estudar Direito

para atender ao desejo de seu pai, que se oferece para pagar seus estudos.

Já em Paris, em 1847, cursando Direito, Jules Verne se mostra inclinado para o teatro

e escreve dois dramas românticos: Alexandre VI e Un drame sous Louis XV. Nesta mesma

época, participa de jantares semanais organizados pelos Onze-sans-femme, grupo de homens

solteiros composto por escritores e músicos.6

Em 1848, durante o período atribulado da Revolução, Verne, ainda inclinado para a

literatura e para o teatro, continua seus estudos de Direito, mesmo sem muita convicção. Em

1850, anuncia a seus pais que não deseja tornar-se advogado e se dedica à escrita de peças e

operetas com a colaboração de Aristide Hignard, seu vizinho. De 1851 a 1855, o escritor

ocupa o posto de secretário particular do diretor do Théâtre Lyrique, Jules Seveste. Neste

teatro, tem pela primeira vez encenada uma de suas peças: Les pailles rompues, escrita em

colaboração com Alexandre Dumas Filho, amigo de Verne na época, peça que não obteve

sucesso. Paralelamente ao emprego de secretário, Verne publica algumas novelas no periódico

Musée des Familles, dentre as quais Amérique du Sud, étude historique. Les Premiers Navires

de la marine mexicaine (1851); La Science en famille. Un voyage en ballon (1851); Martin 4 As informações biográficas de que trataremos foram extraídas da biografia de Joëlle Dusseau, que citamos acima, do livro Jules Verne - Une vie, une époque, une oeuvre, da mesma autora, ou ainda da biografia que Willian Butcher escreveu em 2006. 5 VIERNE, Simone. Jules Verne. Une vie, une époque, une oeuvre. Paris: Balland, 1986, p. 13. 6 A autora não cita os nomes dos componentes do grupo. Cf. DUSSEAU, 2005, p. 102.

3

Paz, L’Amérique du Sud, moeurs péruviennes (1852); Maître Zacharius ou l’horloger qui

avait perdu son âme (1854); Un Hivernage dans les glaces (1855).

Em 1856 conhece Honorine Devianne, com quem se casaria um ano depois. Dessa

relação nasce seu único filho, Michel Verne. Em 1857, adentra no mundo da crítica de arte

participando do Salão para o qual redige oito artigos, publicados na Revue des beaux-arts.

Esses artigos são considerados por Butcher como o primeiro livro verniano, dada sua

extensão: 32.000 palavras.7 A divulgação recente desse episódio da carreira de Jules Verne é

particularmente fecunda para futuros estudos.

Em 1858, Jules Verne, voltado para a literatura, o teatro, as artes e a cultura, termina

uma opereta que Jacques Offenbach, diretor de Bouffes-Parisiens, aceita montar em fevereiro

de 1858. Monsieur de Chimpanzé coloca em cena um personagem na pele de um macaco. O

assunto da origem símia do homem estava em voga. Os trabalhos dos naturalistas seriam em

breve renovados pelas teorias de Darwin.8

De 1858 a 1861 Jules Verne faz algumas viagens com seu amigo Aristide Hignard:

Inglaterra, Escócia, Noruega. Em agosto de 1861, tenta voltar da Escandinávia para participar

do nascimento de seu primeiro e único filho, mas Honorine dá a luz a Michel sem a presença

de seu marido.

Nessa época, Baudelaire traduz para o francês textos do escritor Edgar Allan Poe.

Jules Verne, que não lê nenhuma língua estrangeira, fascina-se pelo universo estranho do

7 “Sem nenhum esforço aparente, ele publicou oito longos artigos relativos ao “Salon de 1857” resultando num total de surpreendentes 32.000 palavras. Levando em conta a extensão e, sobretudo, a unidade do tema, podemos legitimamente considerar esses estudos coletivamente como um livro. O Salon de 1857 representa, assim, o primeiro grande trabalho verniano em prosa terminado sem grandes esforços [...] O livro foi publicado sob a forma de artigos na Revue des beaux-arts: La tribune des artistes.” In: BUTCHER, William. Jules Verne. The Definitive Biography. New York: Thunder’s Mouth Press, 2006, p. 129-130. A tradução é relativa à passagem seguinte: “With no apparent effort he published eight long review articles of the 1857 Salon, an amazing total of 32,000 words. Given their scope and unity of theme, we should undoubtedly consider the articles collectively to be a book. The Salon 1857 thus constitutes Verne’s first completed prose endeavor of any length. […] Verne’s book appeared as individual articles in the Revue beaux-arts: Tribune des artistes […]” 8 Charles Darwin (1809-1882) só publicará A origem das espécies, com base nas teorias da seleção natural, um ano depois, em 1859. Retomaremos esse assunto mais longamente no capítulo sobre o interdiscurso em Jules Verne. A opereta, com música de Aristide Hignard, não obteve sucesso e saiu de cartaz quinze dias depois da estreia. Cf. DUSSEAU, 2005, p. 121.

4

escritor americano, a quem dedica um estudo, em 1862: Edgard Poe et ses oeuvres. Ele

começa seu texto da seguinte maneira:

Voici, mes chers lecteurs, un romancier américain de haute réputation; vous connaissez son nom, beaucoup sans doute, mais peu ses ouvrages. Permettez-moi donc de vous raconter l’homme et son oeuvre; ils occupent tous les deux une place importante dans l’histoire de l’imagination, car Poë a créé un genre à part, ne procédant que de lui-même, et dont il me paraît avoir emporté le secret; on peut le dire chef de l’École de l’étrange ; il a reculé les limites de l’impossible; il aura des imitateurs. Ceux-ci tenteront d’aller au-delà, d’exagérer sa manière; mais plus d’un croira le surpasser, qui ne l’égalera même pas.9

Tendo analisado o escritor e sua obra ao longo de quatro longos capítulos, Verne

desejou, alguns anos depois, escrever a continuação e o fim de um chef d’oeuvre da literatura

de Poe, As aventuras d’Arthur Gordon Pym (1838), objetivando rematar a obra do mestre da

literatura fantástica. Se existe um romance atípico entre as “Viagens extraordinárias” de Jules

Verne, este é Le sphynx des glaces (1897). Trata-se de um romance fantástico que nasceu da

proposta de continuação do romance de Poe. Em outra ocasião, pudemos analisar esta obra

com base no princípio da intertextualidade e constatamos que esta aventura verniana se

inscreve numa longa linha de romances bem sucedidos que permitiu que Verne dispusesse de

um suporte (escrito) a partir do qual pôde se legitimar e se lançar numa veia literária que não

constitui o essencial de sua obra.10 Na verdade, desde então, a escrita de Edgar Poe sempre

servirá de molde para a escrita verniana: as Histórias extraordinárias de Poe precedem as

Viagens extraordinárias de Jules Verne. Impregnado das narrativas fantásticas de Poe, Verne

pode construir as suas com o aval do seu futuro editor, Jules Hetzel. O encontro entre eles

acontece em 1862, graças a Alexandre Dumas ou Alexandre Dumas Filho.11 Graças a esse

encontro surgem as “Viagens extraordinárias” que levarão Verne a obter sucesso junto ao

público-leitor.

9 Esse artigo foi publicado no periódico Musée des Familles e se encontra disponível em: http://jv.gilead.org.il/almasty/aepoe/ Última consuta : 12/03/2009. 10 GUIRRA, Edmar. “Da intertextualidade entre Jules Verne e Edgar Allan Poe” In. Anais do I Colóquio Vertentes do fantástico na literatura. São Paulo: Faculdade de Letras UNESP-Araraquara, 2009. Versão em cd-rom ISSN: 2175-7933. 11 William Butcher menciona que não se sabe se o encontro foi feito por intermédio de Dumas pai ou filho. Há ainda a hipótese que Jules Verne tenha conhecido Hetzel através de Félix Nadar. Cf. BUTCHER, 2006, p. 146.

5

Depois de muitas decepções – literárias, artísticas, profissionais –, Jules Verne parece

alcançar seu objetivo: legitimar-se como escritor. Em 1862, ele apresenta a Hetzel o

manuscrito de um romance intitulado Voyage en l’air - une découverte de l’Afrique inconnue,

survolée par un ballon manoeuvrable. Escrito como um autêntico relato de viagem, o texto

leva Hetzel a pensar ter encontrado o escritor para seu futuro projeto pedagógico-editorial. O

editor aceita publicá-lo e a obra aparece em 1863 com o título Cinq semaines en ballon -

Voyage de découvertes en Afrique par trois anglais. Devido ao sucesso de vendas do

romance, um contrato é assinado e Jules Verne pode, finalmente, começar a viver da sua

literatura. Depois desse episódio, Verne é encorajado pelo editor a continuar escrevendo na

via da viagem imaginária, trazendo uma dimensão épica em que o extraordinário se apoie

sobre as descobertas da época. Isso resumirá a ambição que construirá as “Viagens

extraordinárias”.

No entanto, os objetivos de Hetzel não se restringiam somente em publicar este

romance de Jules Verne. Hetzel tinha o desejo de criar “uma biblioteca associando educação e

recreação”.12 Assim, cria, em março de 1864, com Jean Macé, o Magasin d’Éducation et de

Récréation, cujo objetivo era “constituir um ensino de família no verdadeiro sentido da

palavra, um ensino sério e atraente ao mesmo tempo, que agrade aos pais e seja proveitoso

para as crianças.”13 Verne é então convidado a se associar a este projeto lúdico-instrutivo

destinado, em geral, à leitura infanto-juvenil. Desta maneira, renova seu contrato com Hetzel

pelo qual fica incumbido de entregar ao editor três volumes por ano. Depois desse contrato,

Jules Verne publicará, em formato de folhetim e só depois em volume, diversos de seus

romances no Magasin d’Éducation et de Récréation, dentre os quais destacamos nesta

dissertação Les enfants du capitaine Grant (1867-1868), primeira viagem a um “mundo

primitivo” publicada na revista. Pode-se dizer que a vasta obra literária de Jules Verne foi 12 Cf. COMPÈRE, Daniel. Jules Verne. Parcours d’une oeuvre. Amiens: Encrage, 1996, p. 15. 13 “Constituer un enseignement de famille dans le vrai sens du mot, un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profite aux enfants.” MACÉ, Jean & STHAL, P.-J. Magasin d’Éducation et de Récréation, Paris: Hetzel, Mar/1864, p. 1. Citaremos mais longamente informações editoriais sobre a revista e outras vias de publicação dos romances de Jules Verne, no quinto capítulo desta dissertação.

6

quase inteiramente um trabalho de encomenda e que o Magasin servia de vitrine para que a

editora de Hetzel expusesse os romances de Jules Verne, antes de publicá-los em volume.

Efetivamente, com a revista, Hetzel deu a Verne a oportunidade do sucesso. Mas não

devemos, entretanto, reduzir a obra de Jules Verne a esse registro. As amizades e relações de

Hetzel no mercado editorial, público e político atestam isso. Através desses conhecimentos,

Jules Verne também publicará alguns romances na área destinada aos folhetins de diários

político-literários, notadamente em Le temps. É neste diário que encontramos o folhetim de Le

Chancellor (1875), primeiro de Verne a ser publicado no jornal, cuja história e análise

trazemos para integrar o corpus da pesquisa.

Em suma, se Jules Verne não obteve sucesso na sua carreira de juventude, Cinq

semaines en ballon será um divisor de águas. As viagens literárias do romancista, sobretudo

as seis primeiras, permitem-nos ver como o seu desejo de se tornar escritor se coaduna com o

projeto do seu editor, permitindo-lhe amadurecer o gênero a partir do qual escreverá. É

interessante verificar que até mesmo os títulos desses seis primeiros romances definem

claramente a futura “cosmogonia” das “Viagens extraordinárias”, para retomar a expressão de

Roland Barthes.14 Nós os apresentamos aqui em ordem de publicação pela editora Hetzel:

Cinq semaines en ballon - Voyage de découvertes en Afrique par trois anglais (1863); Voyage

au centre de la Terre (1864); De la Terre à la Lune - Trajet direct en 97 heures et 20 minutes

(1865) ; Voyages et aventures du capitaine Hatteras. Les Anglais au pôle nord - Le Désert de

glace (1866); Les Enfants du capitaine Grant - Voyage autour du monde (1867-1868) ; e

Vingt mille lieues sous les mers - Tour du monde sous-marin (1869-1870).

Esses primeiros romances nos permitem definir os dois primeiros eixos fundamentais

das “Viagens extraordinárias”: o espaço e o tempo, a geografia e a história, ambos marcados

pela ciência. Do âmago da Terra ao fundo submarino e aos continentes, por ar, mar ou terra,

passando pelos pólos e pela Lua, a ambição das “Viagens extraordinárias” se define: trata-se

14 BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 2001 (1957), p. 75.

7

de percorrer o espaço geográfico, descrever o planeta e interrogar o homem diante de um

mundo em evolução.

Assim, Jules Verne é editado e seus esforços são, finalmente, recompensados. Ele

deve esse novo status a Hetzel. Em 1867, Verne reconhece o papel que seu editor representou

na sua vida, despedindo-se e assinando uma das cartas que trocam entre si, dessa maneira:

“votre Verne, celui que vous avez inventé.”15

Nos primeiros romances de Jules Verne, a geografia constitui a pedra fundamental das

“Viagens extraordinárias.” Ela é o cimento do edifício que o autor construirá ao longo de mais

de quarenta anos. Muitos estudiosos de Verne afirmam que a geografia é para ele o que a

História foi para Alexandre Dumas. Certamente, este é um dos pontos originais da ficção

verniana. Claude Roy afirma que “O mundo tem seis continentes: a Europa, a África, a Ásia,

a América, a Austrália e Jules Verne.”16 A geografia se faz tão presente nos romances do

escritor que estudiosos aplicam, com frequência, o rótulo de “romances geográficos”,

defendendo, assim, não só uma originalidade para Verne, mas definindo uma espécie de

gênero para o qual o autor escrevia.

Investigando a fortuna crítica do autor, podemos dizer, em resumo, que a obra

verniana nasce do cruzamento de três gêneros, todos três pertencentes – para utilizar uma

terminologia ulterior – à paraliteratura. Trata-se de uma mistura que reúne vulgarização

científica, romance popular e literatura para crianças. Estes gêneros são frequentemente

caracterizados como gêneros bastardos e destinados a veicular mensagens não literárias. Os

escritores que os praticavam tinham pouca possibilidade de reivindicar sua excelência

literária, uma vez que teriam abandonado ideais estéticos na intenção de obter a

consideração de um vasto público.

15 DELLA RIVA, Piero Gondolo; DEHS, Volker & DUMAS, Olivier; Correspondance inédite de Jules Verne et de Pierre-Jules Hetzel (1863-1886). Genebra: Slatkine, 1999, p. 73. 16 ROY, Claude. Le commerce des Classiques. Paris: Gallimard, 1953, p. 258.

8

Desde 1971, com a publicação de Jules Verne – une lecture politique, de Jean

Chesneaux (1922-2007), os esforços têm sido constantes para a “reabilitação” da obra do

escritor. Chesneaux propôs uma leitura evidenciando o caráter engajado da obra de Verne.

Desde então, o prestígio literário de Verne continuou aumentando, culminando, em 2005,

com as comemorações pelos cem anos da sua morte. Muitos estudos sobre a obra verniana

têm sido publicados e, com o relançamento de diversas de suas obras, corroboram a

tendência de considerar Jules Verne como um autor sério, multifacetado, possuidor de uma

obra original e instigante, criador de mistérios e enigmas.

No entanto, mesmo na segunda metade do século XIX, encontramos diversos artigos

ou notas, suficientemente elogiosos e publicados em vias reconhecidas. Depois do lançamento

e do sucesso imediato de Cinq semaines en ballon, em 1863, no mês de fevereiro do mesmo

ano, o jornal Le Temps congratula “um nome até agora desconhecido de que não temos que

predizer o sucesso porque esse sucesso já está feito”; o livro “é um resumo rápido e

interessante das descobertas feitas pelos mais célebres viajantes.”17 No ano seguinte, afirma:

“Verne é o criador de um gênero na nossa literatura.”18 Seria esse novo gênero o do romance

geográfico ou do romance científico? Diríamos, ao menos, que a geografia e a ciência foram

as fontes das quais Jules Verne usou e abusou para a criação de sua obra. Mais tarde, Thomas

Grimm – pseudônimo d’Amedée Escoffier – qualifica Verne no Le Petit Journal, em agosto

de 1875, como “o criador de um gênero novo em literatura, o ensino geográfico pela

ficção”.19

17 “Un nom jusqu’ici inconnu, dont nous n’avons pas à prédire le succès, car ce succès est déjà fait”; “ [...] est un résumé rapide et intéressant des découvertes faites par les plus célèbres voyageurs”. Le Temps, le 17 février 1863. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2214461 Última consulta: 23/10/2008. 18 “Verne est le créateur d’un genre de notre littérature.” Le Temps, le 19 décembre 1864. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k222240d Última consulta: 23/10/2008. 19 “[...] créateur d’un nouveau genre en littérature, l’enseignement géographique par la fiction” Le petit Journal, le 3 août 1875. In: Bulletin de la société Jules Verne (BSJV), nº 141, 1er trimestre, 2002.

9

Como o romance histórico, o romance geográfico, na segunda metade do século XIX,

desfruta de um grande prestígio.20 O desenvolvimento da escolaridade, na França, e retomada

das viagens extracontinentais que marcaram a segunda onda da colonização permitiram

aguçar uma maior curiosidade sobre partes do planeta ainda pouco conhecidas, ou mesmo

desconhecidas. Além disso, desde o início, a dimensão científica das “Viagens

extraordinárias” é colocada em evidência. Hetzel escreve em 1867 que seu “objetivo é, de

fato, resumir todos os conhecimentos [...] e refazer, na forma atraente e pitoresca que lhe é

própria, a história do universo.”21

Sublinhando o caráter didático da obra de Verne, Émile Zola, num curto texto

publicado em 12 de maio de 1866 em l’Événement, deixa transparecer a satisfação de ver as

crianças da França “em boas mãos”:

O senhor Jules Verne é o artista da ciência. Ele coloca toda sua imaginação a serviço de deduções matemáticas, pega as teorias e extrai delas fatos verossímeis, senão práticos. Não é o pesadelo de Edgar Poe, é uma imaginação amável e instrutiva, são relatos escritos para crianças e pessoas do mundo, cheios de interesse dramático e de ensinamentos úteis. [...] É uma excelente ideia dramatizar a ciência para torná-la acessível aos neófitos.22

Em razão do caráter fantástico e visionário dos seus romances, Jules Verne tem sua

obra recomendada e renomeada “viagens imaginárias” pelo escritor e crítico Théophile

Gautier. Em 1849, o poeta de Albertus e romancista do Capitaine Fracasse e Mademoiselle

de Maupin conheceu Jules Verne e, assim como Zola, foi um dos importantes críticos

20 Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean. Histoire de l’édition française; le temps des éditeurs. Paris : Fayard, 1985, p. 190. 21 “Son but est, en effet, de résumer toutes les connaissances [...] et de refaire, sous la forme attrayante et pittoresque qui lui est propre, l’histoire de l’univers.” MACÉ, Jean & STHAL, P.-J “Avertissement de l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1867, p. 1-2. Retomaremos integralmente essa citação no quinto capítulo desta dissertação. 22 « M. Jules Verne est le fantaisiste de la science. Il met toute son imagination au service de déductions mathématiques, il prend les théories et en tire des faits vraisemblables, sinon pratiques. Ce n’est pas le cauchemar d’Edgar Poe, c’est une fantaisie aimable et instructive, ce sont des récits écrits pour les enfants et les gens du monde, pleins d’intérêt dramatique et d’enseignements utiles. […] C’est une excellente idée que de dramatiser la science pour la rendre accessible aux profanes. » Cf. ZOLA, Émile apud MARGOT, Jean-Michel (dir.). Cahier Jules Verne. Jules Verne en son temps vu par ses contemporains (1863-1905). Vol 2. Paris: Les Belles Lettres, 2004, p. 21-22.

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literários que dedicou uma crítica às “Viagens extraordinárias”. Num artigo publicado no

Moniteur Universel, em Julho de 1886, Gautier afirma:

O melhor a se fazer em tal situação é fechar tudo, persianas, venezianas e cortinas, estender-se numa poltrona de moleskine, enrolado num albornoz argelino, e ler à meia-luz, à qual o olho se adapta rapidamente, algum livro agradável e refrescante, as viagens imaginárias do senhor Jules Verne, por exemplo, cujos títulos, apenas, já fazem correr um leve frisson sobre a pele: Les anglais au Pôle Nord; Le désert de glace; Cinq semaines en ballon; Voyage au centre de la Terre; De la Terre à la lune. Eles oferecem a mais rigorosa possibilidade científica de ocorrer. A quimera é, aqui, montada e guiada por um espírito matemático. 23

Na época da morte de Jules Verne, em 1905, o jornal Le Temps publica que Verne

foi um dos apóstolos mais fervorosos da ciência. Seus romances guardarão o valor mais alto, aquele de ter adivinhado todos os últimos e mais impressionantes progressos da ciência moderna. Previstas, estabelecidas em equações e em fórmulas, as invenções que serão a glória do século que acabou de findar e desse que começa.24

Como podemos constatar, para vários críticos, Jules Verne uniu, no gênero romanesco,

o extraordinário da ciência e a geografia. O pesquisador verniano Olivier Renaud integra-se a

esse coro: “É um mago, e sua magia é a ciência. Tínhamos antes dele o romance histórico, o

romance analítico, o romance íntimo, o romance de capa e espada – ele cria o romance eletro-

geográfico. Chamavam-no, outro dia, de Joanne-Hoffmann”25, associação do nome do criador

dos guias de viagem na França (Les Guides Joanne), Adolphe Joanne, com aquele do escritor,

compositor e pintor alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann, mestre da narrativa

fantástica.

23 “Ce qu’il y a de mieux à faire en pareil cas, c’est de fermer tout, persiennes, stores, rideaux, de s’allonger sur un fauteuil de moleskine, enveloppé d’un burnous algérien, et de lire dans la demi-obscurité à laquelle l’oeil se fait bien vite, quelque livre agréable et rafraîchissant, les voyages imaginaires de M. Jules Verne par exemple, dont les titres seuls vous font courir sur la peau un léger frisson: Les anglais au Pôle Nord ; Le désert de glace ; Cinq semaines en ballon ; Voyage au centre de la Terre ; De la Terre à la lune. [...] ils offrent la plus rigoureuse possibilité scientifique d’arriver. La chimère est ici chevauchée et dirigée par un esprit mathématique.” Texto de Théophile Gautier publicado no Moniteur Universel, nº 197, Julho/1886, apud TOUTTAIN, Pierre-André (dir.). Jules Verne. Paris : nº 25, L’Herne, 1974, p. 85. 24 “[...] un des apôtres de la science les plus fervents. Ces ouvrages garderont une valeur plus haute, celle d’avoir déviné tous les derniers et le plus saisissants progrès de la science moderne. On trouve prévues, fixées en équations et en formules, les inventions qui seront la gloire du siècle qui vient de finir et de celui qui commence.” Le Temps, le 26 mars 1905. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/ bpt6k238197c Última consulta: 24/10/2008. 25 “C’est un magicien, et sa magie à lui, c’est la science. Nous avions avant lui le roman historique, le roman analytique, le roman intime, le roman de cape et épée – il crée le roman électro-géographique. On l’appelait, l’autre jour, un Joanne-Hofmann.” BSJV, N° 139, 3e trimestre, 2001.

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Para a presente dissertação, acreditamos que as informações acima, biográficas ou

contextuais, mostram a complexidade em que se inscrevem as “Viagens” de Jules Verne. Ao

mesmo tempo, são informações que elucidam e nos ajudam a reconstruir o universo verniano,

que pretendemos estudar.

Em aspectos gerais, nos três romances que citamos e que compõem o foco da presente

pesquisa – Cinq semaines en ballon, Les enfants du capitaine Grant e Le Chancellor –, Jules

Verne se vale do tema de viagem para estruturar as diversas tramas. Este aspecto, que agrupa

os romances num conjunto, evidencia o caráter geográfico das obras, visto termos o norte da

África como cenário para Cinq semaines en ballon; o Chile, a Austrália e a Nova Zelândia

como cenário para Les enfants du capitaine Grant e o Oceano Atlântico para Le Chancellor.

Estas “Viagens extraordinárias” servem como pretexto para que Jules Verne apresente aos

jovens leitores europeus partes do globo terrestre ainda pouco conhecidas, salientando não só

sua geografia, mas também seu relevo, sua fauna e flora, seus habitantes, bem como seus

costumes.

As viagens interrogam também os mistérios que dizem respeito ao homem e sua

evolução, numa época em que diversas teorias surgiam para uma possível explicação de suas

origens, das quais se destacam aquela do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882),

exposta no célebre estudo A origem das espécies, de 1859, e aquela de Joseph Arthur

Gobineau (1816-1882), diplomata e escritor francês que escreveu o Essai sur l’inégalité des

races humaines, em 1853-1855. Verne, com seu conhecimento enciclopédico, vale-se de uma

prática corrente no século XIX que consistia em descrever os homens a partir de sua aparência

física e, mais particularmente, analisando-lhes os traços faciais. Estes parâmetros eram

provenientes da Fisiognomonia – ciência elaborada pelo filósofo e teólogo protestante suíço

Johann Kaspar Lavater (1741-1801), que propunha conhecer os homens pelo estudo da sua

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fisionomia – e pela Frenologia – estudo das características e das funções intelectuais do

homem através da conformação externa do crânio, elaborado pelo médico alemão Franz Josef

Gall (1758-1828). Assim, Jules Verne apresenta aos leitores os povos que habitam nestes

“mundos primitivos”, ou os que de lá vieram, através de descrições baseadas em

conhecimentos “científicos”, que realizará ao longo dos romances.

Definimos como foco da pesquisa empreendida o cotejo das descrições

prosopográficas dos romances mencionados, visando estabelecer uma linha de coerência com

o ethos do enunciador e a cenografia enunciativa na qual se inscreve, tendo como base as

teorias de análise do discurso propostas por Dominique Maingueneau, a conceituação do

Descritivo de Philippe Hamon e o conceito de habitus, tal como é elaborado pelo sociólogo

Pierre Bourdieu.

Para problematizar, tendo como ponto de partida a recorrência de descrições

prosopográficas dos “selvagens”, nos romances abordados, procuramos identificar a função

de tais imagens dentro destas narrativas, e saber em que medida, para criar seus personagens,

Jules Verne dialoga com os discursos científicos ou pseudocientíficos de sua época e relatos

de viajantes, onde se incluem imagens pictóricas. Buscamos entender como o autor se vale

desses discursos para corroborar o fortalecimento de um habitus dominante e, por

conseguinte, legitimar sua cenografia enunciativa. Tendo como ponto de partida o romance

Cinq semaines en ballon, primeiro romance verniano que não conheceu nenhuma via de

publicação folhetinesca, um outro problema que investigamos nesta dissertação, e o que

justifica a escolha dos romances do corpus, consiste em verificar se o ethos do enunciador dos

romances se reconfiguraria ao associar-se ao projeto editorial do Magasin d’éducation et de

récréation ou do diário Le Temps.

Com base no projeto da editora de Hetzel – divertir e instruir –, pode-se inferir que os

retratos literários nestas obras de Jules Verne exerceriam a função de apresentar os habitantes

dos “mundos primitivos” aos leitores, em contraste com a representação do homem branco

13

europeu. A maneira pela qual esses personagens são descritos indicar-nos-ia que o autor

efetuou e incorporou leituras de Lavater, Gall e Darwin, por exemplo, e teve igualmente como

fonte bibliográfica e iconográfica certos relatos de viajantes do século XVIII e XIX,

elaborando, portanto, um ethos enunciativo responsável pela perpetuação de um habitus

dominante e legitimando seu discurso na cena enunciativa em que se insere. No que tange

também a esse tipo de ethos enunciativo, aventa-se que ele estaria presente no primeiro

romance de Jules Verne (Cinq semaines en ballon) e se modificaria significativamente

quando associado ao projeto editorial da revista ou do jornal sendo, portanto, um instrumento

de reiteração de pressupostos e crenças coletivas.

No segundo capítulo dessa dissertação, intitulado “Retratos”, definimos as interfaces

literária e pictórica do retrato, bem como estabelecemos uma breve interseção entre os

elementos que podem aproximar uma da outra. Nesse capítulo, apresentamos a pesquisa de

base que nos ajudou a compreender, sobretudo, a construção e a função do nosso objeto de

pesquisa.

O terceiro capítulo, intitulado “A pesquisa verniana para a composição dos retratos”, é

dividido em sub-itens em que discutimos a presença do discurso científico e histórico na obra

de Jules Verne, em especial nos retratos dos romances do corpus que analisamos. Nesse

capítulo, mostramos que Jules Verne se serviu da revista Le Tour du monde como fonte

primária para a construção dos retratos e, ainda, que mantém diálogo interdiscursivo com a

ciência de Lavater e Gall. Visto que alguns dados das correntes naturalistas, da crescente

noção de “racismo” e da literatura de Jules Verne mantêm pontos em comum, aproximamos

os textos de Verne daqueles de Darwin e Gobineau. Abordamos teoricamente este capítulo

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usando as noções de relações transtextuais de Gérard Genette e de intertexto e interdiscurso,

renovadas pela Análise do Discurso por Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau.

No quarto capítulo, intitulado “Brancos versus selvagens: a análise dos retratos”,

analisamos contrastivamente os retratos dos personagens brancos e selvagens dos romances

do corpus prevendo que o contraste entre os retratos, para cada romance, converge para uma

noção geral. Aqui, abordamos os retratos à luz da teoria do descritivo de Philippe Hamon e,

eventualmente, das noções propostas por Adam & Petitjean.

No quinto e último capítulo, abordamos sócio-discursivamente o corpus trabalhado.

Usando a noção de ethos, do ponto de vista da Análise do Discurso de Maingueneau, e sua

função na cenografia enunciativa em que os romances se inscrevem, perfilamos os

enunciadores dos romances, acreditando que estes estão ligados a visões de mundo bem

definidas, em outras palavras, a um habitus que se desejava perpetuar através da leitura.

Nesta dissertação, trabalharemos com as edições princeps dos romances. Publicadas

em 1975 pela editora Michel de l’Ormeraie, as edições compostas pelos textos integrais de

Jules Verne reconstituem a forma material das edições originais publicadas no século XIX por

Jules Hetzel. Quando se fizer necessário ao longo da dissertação, lançaremos mão das

ilustrações e das legendas originais que as acompanham. Estas podem ser consultadas no site

de referência jv.gilead.org.il/forum, bem como as versões originais dos romances.

Em se tratando das citações que se encontram no presente trabalho, preservamos, para

o caso dos textos de Jules Verne e os pequenos contos do Magasin d’éducation et récréation,

o original, em francês. Qualquer outro tipo de citação, não existindo uma versão para o

português, foi traduzida por nós, mantendo-se em nota de pé de página a versão original.

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2 - RETRATOS

“Seres de papel”26. Tal é a designação que Roland Barthes dá aos personagens. Para

este autor, eles se constituem como uma categoria narrativa, elementos textuais que imitam e

representam as pessoas.

O escritor, para identificar seus personagens, dá-lhes traços de humanidade, fator

indispensável à verossimilhança. Com frequência, essa identidade e esse traço de humanidade

são conferidos aos personagens através da descrição de um “corpo” que é dotado de

movimento, de um rosto, de qualidades físicas e também morais. Esses traços, que constituem

o retrato de um personagem, visam dar vida, no universo da escrita, a um ser fictício que terá

um papel de maior ou menor relevância em um texto.

Como toda noção ligada à criação literária, o retrato suscita algumas questões teóricas

relativas à composição e à elaboração do personagem, à função que ele ocupa na economia

geral do texto e às concepções de mundo que o autor apresenta e que deseja transmitir através

dele. Porém, para inscrevê-lo em condições específicas, abordaremos suas concepções tal

como foram descritas desde o período clássico, quando funcionava como gênero - usando

uma terminologia ulterior-, até o século XIX, em que aparecerá como figura de pensamento

no interior de uma trama.

2.1 - Interface literária

A Antiguidade já conhecia o retrato literário cujos exemplos mais célebres estão em

Os caracteres de Teofrasto (372 a.C. - 287 a.C.), traduzidos do grego para a língua francesa

em 1688 pelo ensaísta e moralista francês Jean de La Bruyère. Nesta obra, Teofrasto tinha o

projeto de tratar de todas as virtudes e de todos os defeitos humanos. Afirmava: “[...] detenho-

me somente na ciência que descreve os costumes, que examina os homens e que revela sua

26 BARTHES, Roland. Introduction à l’analyse structurale des récits. In: Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1994, p. 95.

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personalidade”27. Em sua obra, Teofrasto visava caracterizar um tipo – como por exemplo,

um dissimulado, um insolente, um covarde, um estúpido - através de seus comportamentos

em diferentes situações. Para esboçar o retrato de um homem dissimulado, por exemplo,

afirma:

A dissimulação não se deixa bem definir; se nos contentarmos em fazer dela uma simples descrição, podemos dizer que é certa arte de compor as palavras e as ações com uma má finalidade. Um homem dissimulado se comporta dessa maneira; ele aborda seus inimigos, fala com eles e os faz crer desse modo que ele não os odeia; diante deles, elogia abertamente aqueles para os quais prepara secretos embustes.28

Apesar de sua importância para a tradição do retrato em literatura, os retratos contidos

em Os Caracteres não constituem um sentido moral como em uma fábula – são somente

evocações de cenas contínuas que salientam os traços mais característicos de um tipo humano.

Estes retratos mostram um tipo, através de suas palavras, suas reações, seus atos mais

significativos em apresentação dinâmica, ressaltando o que é particular num fenômeno mais

ou menos geral. Por outro lado, em As vidas dos homens ilustres, escrito alguns séculos

depois dos Caracteres, Plutarco (46-120 dC.) emprega o mesmo procedimento, porém

aplicado à caracterização de um indivíduo, de uma personalidade em particular.

Conscientemente, Plutarco renunciou à apresentação exaustiva do retratado para evocar

gestos, palavras e detalhes mais significativos que lhe permitiriam definir aquilo que constitui

a verdadeira natureza da pessoa representada. Seguindo o método de traçar o retrato de um

grego e em seguida o de um romano, a fim de compará-los, declara:

Não escrevo histórias, mas vidas; aliás, não é sempre nas ações mais magníficas que se mostram mais as virtudes ou os vícios dos homens. Um problema cotidiano, uma palavra, uma brincadeira dão melhor a conhecer o caráter do homem do que batalhas sangrentas e ações memoráveis. Os pintores extraem a semelhança de seus retratos nos olhos e nos traços do rosto, onde o natural e os modos aparecem mais sensivelmente:

27 «[...] je me renferme seulement dans cette science qui décrit les moeurs, qui examine les hommes et qui développe leurs caractères.» THÉOPHRASTE. Les Caractères de Théophraste. Traduits du grec. Paris : Estienne Michallet, 1688, p. 3. Disponível em : http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k105077m.r=Th%C3%A9ophraste.langEN Última consulta: 20/03/2009. 28 «La dissimulation n’est pas laissée à bien définir; si l’on se contente d’en faire une simple description, l’on peut dire que c’est un certain art de composer ses paroles et ses actions pour une mauvaise fin. Un homme dissimulé se comporte de cette manière; il aborde ses ennemis, leur parle et leur fait croire par cette démarche qu’il ne les hait point; il loue ouvertement et en leur présence ceux à qui il dresse de secrètes embûches.» THÉOPHRASTE, 1688, p. 58.

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eles tratam bem menos outras partes do corpo. Que me seja assim também permitido penetrar nos recônditos mais secretos da alma, a fim de extrair os traços mais marcantes da personalidade e de pintar, de acordo com esses indícios, a vida desses dois grandes homens, deixando para outros o detalhe dos combates e das ações mais brilhantes29.

Os filósofos e historiadores da Antiguidade, portanto, reconheciam a representação

como a função primeira do retrato. Contudo, a arte do retrato literário evoluiu através dos

séculos e é a esse título que a utilização do verbo pintar, na explicação de Plutarco, não é

gratuita. “Pintar um personagem”, que nos remete à pintura, revela-se, assim, através da

qualificação do gênero da pintura. Daniel Bergez em seu livro Littérature et peinture30

destaca que o surgimento da noção de indivíduo, favorecido pelo espírito renascentista, época

em que o retrato pictural conhece um sucesso sem precedentes, poderia ter ajudado o

desenvolvimento da arte literária do retrato.31 No entanto, para que o retrato literário ganhasse

impulso, foi necessário aguardar os meados do século XVII, quando começou a se definir

como uma “arte mundana feita de inteligência e sofisticação estilística.”32 Graças à ação

social inovadora da Préciosité, movimento cultural e literário do século XVII, marcada pelas

obras de Madeleine de Scudéry (1607-1701) que reunia em seus Salões os hommes des

Lettres, o retrato foi transformado em “divertimento da sociedade” e seu escritor em um

historiador de seu tempo33. Na época desses Salões, o retrato literário retomava o estatuto

genérico difundido por Plutarco e coadunava-se às regras estéticas do retrato pictural, isto é,

descrevia fielmente o indivíduo (modelo) a fim de distingui-lo como um tipo à parte. No caso

de Madeleine de Scudéry, que transpunha o que assistia nos Salões para suas obras, essa

29« Je n’écris pas des histoires, mais des vies; d’ailleurs ce n’est pas toujours dans les actions les plus éclatantes que se montrent davantage les vertus et les vices des hommes. Une question ordinaire, une parole, un badinage, font souvent mieux connaître le caractère d’un homme que des batailles sanglantes et des actions mémorables. Les peintres prennent la ressemblance de leurs portraits dans les yeux et les traits du visage, où le naturel et les moeurs éclatent plus sensiblement : ils soignent beaucoup moins les autres parties du corps. Qu’il me soit de même permis de pénétrer dans les plus secrets réplis de l’âme, afin d’y saisir les traits les plus marqués du caractère, et de peindre d’après ces signes la vie de ces deux grands hommes en laissant à d’autres le détail des combats et des actions les plus éclatantes. » PLUTARQUE. Les vies des hommes illustres. T.II. Trad. Jacques Amyot ; sous la resp. de Gérard Walter. Paris: Gallimard, 1951, p. 299. 30 Cf. BERGEZ, Daniel. Littérature et peinture. Paris: Armand Colin, 2004, p. 87. 31 Mais adiante trataremos de alguns critérios que permitem a inserção de uma obra no gênero pictural retrato e dos dados relevantes para essa discussão, que podem aproximar o retrato literário da sua interface pictórica. 32 BERGEZ, 2004, p. 87. 33 Cf. NIDERST, Alain. Madeleine de Scudéry; construction et dépassement du portrait romanesque. In: DEBREUILLE, Jean-Yves et alii. Le Portrait littéraire. Lyon: PUL, 1988, p. 107-112.

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fidelidade descritiva era garantida por uma descrição de nuanças anatômicas, como vemos no

retrato de Cléomire em Le Grand Cyrus:

Cléomire é grande e bem feita: todos os traços do seu rosto são admiráveis; não se pode exprimir a delicadeza da sua tez; a majestade de toda sua pessoa é digna de admiração, sai dos seus olhos um brilho indescritível que imprime respeito na alma de todos aqueles que a olham; para mim, confesso que nunca pude me aproximar de Cléomire sem sentir no coração um certo temor respeitoso que me obrigou a pensar mais em mim, estando perto dela, do que em nenhum outro lugar do mundo onde eu já tenha estado. Os olhos de Cléomire são tão admiravelmente belos que nunca se pôde representá-los bem. [...] Sua fisionomia é a mais bela e a mais nobre que jamais vi; e deixa transparecer uma tranquilidade no seu rosto que permite ver claramente qual é a de sua alma. Enfim, se se quisesse dar um corpo à Castidade para ser adorada por toda a terra, eu gostaria de representar Cléomire; se se quisesse dar um outro à Glória para ser amada por todo mundo, gostaria ainda de fazer sua pintura; e se se desse um à Virtude, eu gostaria também de representá-la.34

Esse retrato tinha a função de evidenciar os traços físicos e morais da personagem,

diferentemente do que vemos nos Caractères de La Bruyère (1645-1696), cujos retratos

literários operavam-se por camadas de descrições sucessivas que são somente frases distintas

que descrevem atemporalmente os traços de um arquétipo.

No prefácio dos Caractères, La Bruyère descreve suas intenções para com o público:

Restituo ao público o que ele me cedeu: tomei dele emprestado a matéria desta obra; é justo que, tendo concluído com toda atenção pela verdade de que sou capaz e que ele merece de mim, eu lhe retribua. Ele pode olhar à vontade esse retrato que faço dele segundo sua natureza e, se ele reconhecer em si alguns dos defeitos em que toco, corrigir-se.35

34« Cléomire est grande et bien faite : tous les traits de son visage sont admirables ; la délicatesse de son teint ne se peut exprimer ; la majesté de toute sa personne est digne d’admiration, et il sort je ne sais quel éclat de ses yeux qui imprime le respect dans l’âme de tous ceux qui la regardent ; pour moi, je vous avoue que je n’ai jamais pu approcher Cléomire, sans sentir dans mon coeur je ne sais quelle crainte respectueuse qui m’a obligé de songer plus à moi, étant auprès d’elle, qu’en nul autre lieu du monde où j’aie jamais été. Les yeux de Cléomire sont si admirablement beaux, qu’on ne les ai jamais pu bien représenter. [...] Sa physionomie est la plus belle et la plus noble que je vis jamais, et il paraît une tranquilité sur son visage qui fait voir clairement quelle est celle de son âme. Enfin, si on voulait donner un corps à la Chasteté pour la faire adorer par toute la terre, je voudrais représenter Cléomire ; si on en voulait donner un à la Gloire pour la faire aimer par tout le monde, je voudrais encore faire sa peinture ; et si l’on en donnait un à la Vertu, je voudrais aussi la représenter. » SCUDÉRY, Madeleine apud COUSIN, Victor. La société française au XVIIe siècle d’après Le Grand Cyrus de Mlle de Scudéry. Paris : Didier, 1858, p. 277-278. Disponível em : httpgallica.bnf.frark12148bpt6k2014489.r=%22le+grand+cyrus%22.langPT Última consulta: 02/10/2009. 35 « Je rends au public ce qu’il m’a prêté: j’ai emprunté de lui la matière de cet ouvrage ; il est juste que l’ayant achevé avec toute l’attention pour la vérité dont je suis capable, et qu’il en mérite de moi, je lui en fasse la restitution. Il peut regarder avec loisir ce portrait que j’ai fait de lui d’après nature, et s’il se connaît quelques-uns des défauts que je touche, s’en corriger. » LA BRUYÈRE, Jean de. Les Caractères. Paris : Imprimerie Nationale, 1998, p. 129.

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Notamos que os Caractères de La Bruyère, publicados no final do século XVII,

seguem nitidamente objetivos moralistas e pedagógicos, oferecendo uma visão panorâmica da

sociedade de sua época. La Bruyère, como um emulador de Teofrasto, mostra-se impregnado

do seu método e princípio minuciosos em realizar recortes na coletividade dos homens.

Assim, para um “homem de mérito” ele esboça:

Um homem de mérito, que ocupa esse lugar, nunca é importunado por sua vaidade, ele se incomoda mais pelo lugar de destaque que não ocupa, e do qual acredita ser digno, do que pelo lugar que ele ocupa: mais capaz de apreensão do que de orgulho ou de desprezo pelos outros, ele só se importa consigo mesmo.36

Embora sejam contemporâneos, La Bruyère não é, na composição dos seus retratos,

um anatomista como Madeleine de Scudéry; apresenta-se, sobretudo, guiado pelos princípios

da moralidade pública.

A noção de retrato literário continuou a adquirir outras nuanças a partir da intervenção

de críticos, como por exemplo, Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) com seus

Portraits Littéraires, Portraits contemporains e Portraits de femmes. Com estes estudos

críticos, publicados a partir de 1844, Sainte-Beuve inaugura o retrato enquanto crítica

literária. Ele se auto-definia desse modo: “Comparo-me algumas vezes a um gravador (a mais

triste das especialidades dos artistas) que passa seus dias diante da prancha de cobre, que se

esforça para deixar mais exata e mais fiel: assim faço eu com essas imagens literárias que se

sucedem”.37 Seu método era o de biografar personalidades da literatura, visando “compor uma

galeria um pouco irregular, porém completa, própria a dar uma ideia dinâmica da poesia e da

literatura contemporânea”.38 Ao longo dos oitocentos artigos que constituem a obra, ele nos

36 « Un homme de mérite, et qui est en place, n’est jamais incommodé par sa vanité, il s’étourdit moins du poste qu’il occupe, qu’il n’est humilié par un plus grand qu’il ne remplit pas, et dont il se croit digne : plus capable d’inquiétude que de fierté ou de mépris pour les autres, il ne pèse qu’à soi-même. » LA BRUYÈRE, 1998, p. 160. 37 « Je me compare quelquefois à un graveur (le plus triste des métiers de l’artiste) qui passe ses journées devant la planche de cuivre qu’il s’applique à rendre plus exacte et plus fidèle : ainsi fais-je pour ces images littéraires qui se succèdent ». SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Oeuvres Complètes. T.1. Paris : Galllimard, 1956, p. 647. 38« [...] former une galerie un peu irrégulière, assez complète toutefois, et propre à donner une idée animée de la poésie et de la littérature contemporaine. » SAINTE-BEUVE, 1956, p. 649.

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apresenta, em textos curtos, cerca de trezentos retratos de autores diversos. Assim fazendo,

efetua ao mesmo tempo uma pintura histórica e social da época.

Segundo o modelo da biografia, assim como o praticava Sainte-Beuve, Jules Verne

também se aplicou em escrever um retrato. Seu modelo foi o compositor e dramaturgo francês

Victor Massé (1822-1884). O artigo, que apareceu com o título de Portraits d’artistes –

XVIII, foi publicado na Revue des Beaux-Arts, vol. 8, 6a tiragem, nas páginas 115 e 116, em

15 de março de 1857. O texto, encontrado somente em 2006 por William Butcher, especialista

na obra de Jules Verne, permaneceu inédito até o ano de 2008 quando foi publicado em Jules

Verne - Salon de 1857.39 Neste livro, figuram também os sete artigos de crítica de arte escritos

por Verne, na idade de vinte e nove anos.

No artigo destinado ao compositor bretão, Jules Verne afirma: “Estas poucas linhas

não têm a pretensão de apreciar a fundo seu talento de compositor; escrevo mais uma

biografia do que uma crítica; dedico-me mais ao homem do que ao artista”.40 No entanto,

Jules Verne apresenta a carreira de Victor Massé, ressaltando o sucesso de suas operetas

cômicas e exaltando suas qualidades de compositor.

No século XIX, o retrato encontrará seu verdadeiro “espaço” no romance, gênero no

qual representará não somente personalidades da vida social, mas também seres fictícios.

Daniel Bergez observa que é com Honoré de Balzac que a estética, a técnica e mesmo a

ideologia do retrato vão se fixar de modo durável. A partir da posição de onisciência que o

narrador ocupa em relação ao personagem, este é situado num conjunto de tipos, o que

permite inscrever sua singularidade numa generalidade inteligível. Bergez salienta que, no

caso dos retratos balzaquianos, o efeito de coerência é assegurado por duas grandes

determinações: a fisiognomonia, que estabelece um sistema de correspondência entre o

caráter do personagem e seu aspecto físico; e a relação de implicação recíproca entre o

39 BUTCHER, William. Jules Verne – Salon de 1857. Paris : Acadien, 2008, p. 30-35 40« Ces quelques lignes n’ont pas la prétention d’apprécier à fond son talent de compositeur; je fais plutôt de la biographie que de la critique ; je m’adresse peut-être plus à l’homme qu’à l’artiste.» VERNE, Jules. Portraits d’artistes XVIII. In: Revue des Beaux-Arts, vol. 8, 6e livraison, 1857, p. 115-116.

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personagem e o meio em que ele vive; um bom exemplo dessa técnica está na descrição da

Maison Vauquer e de seus pensionistas, no início de Le père Goriot41. Ambas as

determinações, somadas ainda à frenologia, ciência que tenta explicar o caráter do indivíduo

através das conformações do crânio, estarão igualmente presentes nos retratos descritos na

obra de Jules Verne.

No percurso feito acima, nota-se que, desde meados do século XVII, o retrato já

apresentava um enfraquecimento no que diz respeito ao seu caráter “genérico”, como o que se

apresenta em Plutarco, por exemplo. Paulatinamente, constitui-se sobretudo como uma figura

de pensamento situada no interior de uma descrição.

Édouard Pommier, em seu livro Théories du Portrait42, elucida-nos a respeito da

figura retrato, buscando definições nos dicionários que, segundo o autor, começam a

multiplicar-se no século XVII. Pommier, retomando Edmond Hugnet, chama a atenção para o

uso do verbo portraire, que tem o sentido de traçar e desenhar:

É o traço que se desenha para formar o contorno de alguma coisa; desse sentido geral deriva aquele de “representar”, “pintar”; o substantivo retrato possui os sentidos, que se sobrepõem de alguma forma, de traçado e figura de geometria, de forma, de figura, plano e disposição, de plano e projeto, de imagem e representação, de imagem como semelhança43.

Detendo-se ainda ao século XVII, Pommier menciona que houve uma especialização

definitiva do termo, que se fixou pelo substantivo sobre a representação da figura humana.

Este fenômeno foi também observado na Espanha onde a palavra retrato era definida como “a

imagem imitada de uma personagem”44, e na Itália, onde rittrato era “a figura extraída do

natural”45.

41 Cf. BERGEZ, 2006, p. 88. 42 POMMIER, Édouard. Théories du portrait. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard-NRF, 1998, p. 15. 43 «C’est le trait qu’on tire pour former le contour de quelque chose ; de ce sens général dérive celui de représenter, peindre ; le substantif portrait a les sens, qui se superposent en quelque sorte, de tracé et figure de géométrie, de forme, figure, plan et disposition, de plan et projet, d’image et représentation, d’image comme ressemblance.» HUGNET, Edmond. Dictionnaire de la langue française du XVIe siècle, Paris, 1965, p. 88-89 apud POMMIER, 1998, p. 15. 44 POMMIER, 1998, p. 16. 45 POMMIER, 1998, p. 16.

22

Na França, constata-se o mesmo tratamento. O dicionário de André Félibien, cuja

primeira edição data de 1676, parte também do verbo portraire:

O verbo portraire é uma palavra geral que se estende a tudo o que se faz quando se deseja obter a semelhança de alguma coisa. Entretanto, não se emprega indiferentemente a qualquer tipo de assunto. Diz-se o retrato de um homem, ou de uma mulher, mas não se diz o retrato de um cavalo, de uma casa ou de uma árvore.46

Pommier observa que o retrato é, desde então, e definitivamente, reservado à imagem

do homem representado tal como é, pois os dicionários que aparecerão vão sancionar a opção

de Félibien, a começar, em 1680, por aquele de Richelet, que privilegia somente o gênero

pictural: “Retrato. Esta palavra se diz dos homens somente e falando-se de pintura. É tudo o

que representa uma pessoa segundo sua natureza com cores”.47 No Dictionnaire Universel, de

Antoine Furétière, de 1690, temos aproximadamente a mesma definição para o retrato:

“representação feita de uma pessoa tal como ela é ao natural”.48 Enfim, a Academia Francesa,

no seu primeiro dicionário, em 1694, ratifica o uso estabelecido e diferencia o retrato pictural

do retrato literário, dando ênfase à interface pictórica, visto ser a primeira entrada: “Imagem,

semelhança de uma pessoa que tenha existido, através do pincel, do buril, do lápis etc.”49

Numa segunda entrada, define o retrato literário como se derivasse do pictórico: “Retrato

significa também a descrição que se faz de uma pessoa, tanto do corpo como do espírito. Diz-

se também da descrição de todo gênero de coisas.”50 Não se deve perder de vista que o retrato

46«Le mot portraire est un mot général qui s’étend à tout ce qu’on fait lorsqu’on veut tirer la ressemblance de quelque chose; néanmoins on ne l’emploie pas indifférement à toutes sortes de sujets. On dit le portrait d’un homme, ou d’une femme, mais on ne dit pas le portrait d’un cheval, d’une maison ou d’un arbre». FÉLIBIEN, André. Des principes de l’Architecture, de la Sculpture, de la peinture et des autres arts qui en dépendent. Avec un dictionnaire des termes propres à chacun de ses arts. Paris: [s.éd.], 1676, p. 721-722. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k856621 (Última consulta 10/07/2008). 47 «Portrait. Ce mot se dit des hommes seulement et en parlant de peinture. C’est tout ce qui représente une personne d’après nature avec des couleurs.» RICHELET, Pierre. Dictionnaire Français. Genève : [s.éd.], 1680, p.194. Disponível em: Http://gallica.bnf.fr/ ark:/12148/bpt6k509323 Última consulta 10/07/2008. 48 «Représentation faite d’une personne tel qu’elle est au naturel.» FURETIÈRE, Antoine. Dictionnaire Universel. T. I, Paris : [s.éd.], 1690. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/CadresFenetre?O=NUMM-50614&M=chemindefer Última consulta 10/07/2008. 49 «Image, ressemblance d’une personne ayant existé, par le moyen du pinceau, du burin, du crayon etc.» ACADÉMIE FRANÇAISE. Le Dictionnaire de l'Académie françoise, dédié au Roy. T. 2. L-Z. Paris : Vve J. B. Coignard et J. B. Coignard, 1694. p. 282. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50398c.image.f283.langFR# Última consulta: 02/04/2009. 50 ACADÉMIE FRANÇAISE, 1694, p. 282.

23

é feito à imagem e semelhança do modelo, como pretendem Furetière e Richelet, mas também

se constitui enquanto figura de pensamento no interior de um texto.

Para o estudo acerca da figura de pensamento retrato e dos termos correlatos, como a

charge e a caricatura, também cotejamos outros quatro diferentes dicionários: Dupriez,

Morier, Fontanier e Littré. De antemão, podemos afirmar que o retrato é composto por duas

outras figuras de pensamento: a prosopografia – parte da descrição ligada às características

físicas e exteriores do personagem; e a etopeia – parte da descrição que se atém aos traços

morais do personagem. De acordo com a tradição retórica, estas figuras recebiam o nome de

effictio e notatio, respectivamente, como menciona Kazimierzs Kupisz em seu artigo “Ce don

troublant de la beauté; autour du portrait féminin dans les comptes amoureux”. Kupisz

salienta ainda que entre as duas figuras existe não somente uma oposição, mas possibilidades

de influência, de troca e de fusão.51

Em Les figures du discours, de Pierre Fontanier, retrato é a “descrição tanto moral

quanto física de um ser animado, real ou fictício”52. Fontanier menciona que, frequentemente,

toma-se como retrato seja a etopeia, seja a prosopografia isolada, mas que a figura será tratada

em seu dicionário como sendo a reunião dessas duas figuras. Em Gradus – les procédés

littéraires, de Bernard Dupriez, não há diferença no que diz respeito às definições de

Fontanier, embora sejam feitas observações importantes que devem ser lembradas. Segundo

Gradus, como toda descrição, o retrato pode ser construído pelo ponto de vista de um

personagem, com ou sem identificação da parte do autor ou do leitor ou, ainda, constituir-se

através das narrações ou dos diálogos.53

Ainda analisando as informações adicionais sobre retrato, em Gradus, temos como

figura análoga a charge ou caricatura, formada quando um retrato é apresentado sob uma luz

51 Cf. KUPISZ, Kazimierzs. Ce don troublant de la beauté; autour du portrait féminin dans les Comptes amoureux. In. DEBREUILLE, 1988, p. 67. 52 «On appelle souvent du nom de portrait, soit l’Ethopée, soit la Prosopographie, toute seule; mais le portrait tel que l’on entend ici, doit les réunir l’une à l’autre. C’est la description tant au moral qu’au physique d’un être animé, réel ou fictif.» FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Paris: Flammarion, 1977, p. 428. 53 Cf. DUPRIEZ, Bernard. Gradus; les procédés littéraires. Paris : Union générale d’éditions, 1984, p. 358.

24

desfavorável, com traços carregados ou exagerados, a fim de parodiar o objeto, a ideia ou a

pessoa que está sendo descrita. Enquanto em Gradus o termo charge é usado como sinônimo

de caricatura54, no dicionário Littré vemos entradas diferentes para os termos caricatura e

charge, porém com o mesmo significado, isto é, ambas sendo um termo específico da pintura,

constituindo uma representação grotesca, forçada e exagerada de pessoas ou acontecimentos

que se quer ridicularizar.55

No que tange à definição de retrato do Dictionnaire de poétique et rhétorique, de

Henri Morier, pode-se dizer que ele somente é citado quando são feitas as entradas dos termos

prosopografia e etopeia: “Prosopografia – num retrato, a parte da descrição referente às

aparências físicas (rosto, forma, proporção do corpo) assim como à atitude e ao

comportamento de um personagem56 e etopeia como sendo a “figura que consiste em pintar o

retrato moral de um personagem histórico ou imaginário.”57

No que concerne às definições de prosopografia e etopeia nos demais dicionários

(Dupriez, Fontanier e Littré), não há divergências e, por conta disso, podemos generalizar e

afirmar que prosopografia é a parte da descrição que se atém aos traços físicos e exteriores de

um personagem real ou fictício. Já a etopeia é a figura que consiste em definir as

características morais do personagem. O conjunto dessas duas figuras (ou as duas figuras

isoladas) pode ser chamado de retrato. Se os traços (físicos ou morais) descritos forem

exagerados, grotescos e fugirem do que é comum à natureza daquilo ou daquele que está

sendo descrito, então diremos tratar-se de uma caricatura ou charge.

Num texto literário, a figura de pensamento retrato pode apresentar-se de várias

formas: a forma argumentativa, pode ser puramente narrativa e simplesmente informar sobre a

existência da personagem. Porém, numa descrição, trata-se de estender, a partir de um ponto

54 Cf. DUPRIEZ, 1984, p. 103. 55 Cf. LITTRÉ, Émile. Littré – Dictionnaire de la langue française. Paris: Hachette, 2000, p. 218. 56 «Prosopographie – dans un portrait, partie de la description consacrée aux apparences physiques (visage, forme, proportion du corps) ainsi qu’au maintien et au comportement.» MORIER, Henri. Dictionnaire de poétique et de réthorique. Paris: PUF, 1988, p. 968. 57 «Ethopée – Figure qui consiste à brosser le portrait moral d’un personnage historique ou imaginaire.» MORIER, 1988, p. 469.

25

de partida, um bloco descritivo que permite lançar e/ou atualizar a presença de um

personagem, de um indivíduo imaginário que ocupará o espaço literário e agirá no universo

romanesco durante um tempo mais ou menos longo.58 Como escreve Barthes: “No retrato, os

sentidos pululam, lançados desordenadamente através de uma forma que, no entanto, os

disciplinam: essa forma é ao mesmo tempo uma ordem retórica (o indício e o detalhe) e uma

distribuição anatômica (o corpo e o rosto)”.59 Permitir este efeito de presença implica o

emprego de alguns procedimentos de que trataremos no capítulo das análises dos retratos

vernianos mas, é preciso dizer que, se a descrição de um retrato compõe um texto, ela não é

em si o texto, e que a pausa descritiva destinada à tal personagem se inscreve na arquitetura

complexa de uma narrativa. Como observa Gérard Genette, na tentativa de distinguir as

fronteiras existentes entre a descrição e a narração, “se a descrição marca uma fronteira da

narrativa, esta é uma fronteira interior e, em suma, bastante indecisa”.60

Todavia, na construção dos retratos, alguns processos podem ser pontualmente

marcados no nível de uma leitura atenta que, como qualquer descrição, induz uma expectativa

no leitor. Para Philippe Hamon, a descrição é o lugar e o operador da classificação intertextual

do personagem nos gêneros, classes, espécies, família, etc., definidos em outros espaços

epistemológicos, por outros saberes e outros textos; é igualmente operador da classificação do

personagem num espaço intratextual construído no texto; a amplitude quantitativa e

qualitativa de uma descrição serve também para definir o lugar do personagem numa

hierarquia, aquela da obra inteira; personagens principais e secundários, de primeiro ou de

segundo planos, personagens-heróis ou personagens-utilidade, etc61. Hamon observa que, com

frequência, é este coeficiente de esquematização variável na técnica do retrato, ou da

descrição do meio que, no texto clássico, serve para indicar o lugar funcional do personagem,

58 Cf. MIRAUX, Jean Philippe. Le portrait littéraire. Paris: Hachette, 2003, p. 47. 59 «Dans le portrait, les sens fourmillent, jetés à la volée à travers une forme qui cependant les discipline: cette forme est à la fois un ordre réthorique (l’annonce et le détail) et une distribution anatomique (le corps et le visage).» BARTHES, Roland. S-Z. Paris: Seuil, 1970, p. 67. 60 «Si la description marque une frontière du récit, c’est bien une frontière intérieure et somme toute assez indécise» GENETTE, Gérard. Figures II. Paris: Seuil, 1969, p. 61. 61 Cf. HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette, 1993, p. 111.

26

seu estatuto de principal ou secundário; quanto mais o personagem é o motor de descrições

extensas, mais ele é importante na trama.

Philippe Hamon menciona em L’Analyse du descriptif que, no momento em que o

leitor se depara com uma descrição, “ele aguarda a declinação de um estoque lexical, de um

paradigma de palavras latente. Ele espera por termos”. Hamon explica que “o sistema

descritivo é, então, explicação, desdobramento de uma lista na memória do leitor”.62 Sendo o

retrato um desdobramento de itens lexicais que dão a informar sobre o personagem, devemos

nos ater à construção dessa figura e revelar as bases precisas e o molde suficientemente rígido

aos quais ele obedece.

Há, verdadeiramente, um consenso no que diz respeito à carpintaria de um retrato. A

Idade Média herdou da tradição retórica antiga a tendência de classificar os seres humanos em

categorias. O elemento descritivo era conhecido como o principal da arte da palavra; a estética

da construção descritiva de um herói estava submissa às correntes filosóficas da época. Se a

arte era imitação da natureza, o poeta deveria seguir a ordem natural. E já que Deus, como se

acreditava, criou o homem começando pela cabeça, a descrição deveria seguir a mesma

ordem: começar pela cabeça, passar pelo tronco e terminar pela descrição das pernas. Hamon

menciona que esse molde estereotipado é característico da arquitetura do retrato literário e que

o “efeito-personagem” num texto é uma construção de vários sistemas descritivos

justapostos.63

Primeiramente, há a apreciação da altura e da visão geral do corpo do indivíduo; os

elementos do rosto são em seguida detalhados: os olhos (com muita frequência), a cor, a tez,

os cabelos, o nariz, a boca, descendo metodicamente até os membros inferiores. Esta técnica

de enumeração sistemática das partes do corpo humano, desde a cabeça até os pés, responde

62 «Il attend la déclinaison d’un stock lexical, d’un paradigme des mots latent. Il attend des termes. Le système descriptif est alors explication, dépli d’une liste dans la mémoire du lecteur.» HAMON, Philippe. L’analyse du descriptif. Paris: Hachette, 1981, p. 44. 63 «Autres types d’ordonnancements stéréotypés: du près au lointain (pour les paysages), du dehors au dedans (pour les bâtiments), du physique au moral, du haut en bas (pour les personnages et pour les portraits).» Cf. HAMON, 1993, p. 139.

27

aos princípios da retórica epidídica e, mais precisamente, à arte do retrato laudativo. Krystyna

Antkowiak observa, num artigo em que compara dois retratos de François I, escritos por Anne

de Graville (1490-1521) e Marguerite de Navarre (1492-1549) que, para ser mais completo, o

retrato deve ainda ser seguido da descrição das roupas e assim, carregada de detalhes, a

descriptio personae se tornaria estática, convencional e impessoal.64 As análises de

Antkowiak demonstram que no retrato feito por Anne de Graville, há um interesse maior pelo

aspecto exterior; é pelo retrato físico que ela inicia a apresentação do rei François I. Porém, tal

descrição não teria nada de particular se ela não tivesse evocado um pequeno detalhe que

constituiria o traço individual do rei: o longo nariz. Ao mesmo tempo, este traço de

individualidade no retrato o distancia de uma tradição medieval e o aproxima da tradição

antiga, retomada no Renascimento, que tendia a delimitar a individualidade pela evocação de

detalhes sutis. Contrariamente à Anne de Graville, Marguerite de Navarre preocupa-se

sobretudo com as qualidades morais e espirituais do modelo, exaltando suas virtudes.

Ora, essa diferença de interpretação se deve à seleção e à escolha dos elementos

julgados mais significativos por cada uma das escritoras. As observações trazidas por

Antkowiak sobre o retrato de François I nos fazem refletir sobre o enriquecimento que o

Renascimento trouxe à tradição do retrato literário. A Antiguidade, selecionando elementos

gerais, visava delimitar o que era essencial no modelo. A Idade Média, insistindo sobre a

completude do retrato, acaba por caracterizá-lo como convencional e impessoal. O

Renascimento, retornando à tradição antiga do retrato composto por traços selecionados e

mais característicos, enriqueceu-o, fazendo dele um pretexto para apresentar não somente a

personalidade do modelo, mas deixando transparecer também aquela do seu autor, através das

escolhas feitas e trazidas para a descrição.

Portanto, de um modo geral, poderíamos definir o retrato literário como um conjunto

de informações sobre um personagem, real ou fictício. Ele pode moldar-se sob a forma da

64 Cf. ANTKOWIAK, Krystyna. Portrait de François Ier d’après Marguerite de Navarre et Anne de Graville. In: DEBREUILLE, 1988, p. 78.

28

prosopografia, da etopeia, aparecer num diálogo, num monólogo, numa narração de ações ou

no momento de uma descrição de habitat. O retrato pode aparecer tanto no discurso de um

historiador como naquele de um dramaturgo ou de um romancista, em textos argumentativos

ou literários. Concluímos que o retrato literário é um texto, ou um lugar do texto caracterizado

por uma densidade de informações que habilitam o leitor a construir mentalmente a imagem

de um personagem. Numa obra romanesca, o retrato pertence, fundamentalmente, à economia

geral da obra, ao espaço em que é inscrito e ligado à intriga, tanto no nível da sua estrutura

quanto no nível das intenções do autor e das concepções de mundo que este deseja transmitir:

a elaboração do retrato implica, sobretudo, dimensões estéticas, mas também filosóficas,

morais e ideológicas.

Será sob esse prisma que o retrato constituirá uma temática preponderante e recorrente

na obra de Jules Verne, que pretende ser uma verdadeira enciclopédia. O título “Viagens

extraordinárias” dado ao conjunto da obra verniana, leva-nos a pensar no retrato literário

inscrito num relato de viagem. Esse dado delimita nossas análises já que, nesse âmbito, o

retrato será o resultado da visão de um explorador ou cientista que constata por si mesmo

aquilo que vê. Assim, o retrato fará parte de uma espécie de catálogo ordenado, de uma forma

de taxonomia de descobertas efetuadas. Portanto, o retrato deverá ser preciso, claro, bem

traçado e, seguindo objetivos nitidamente pedagógicos, mostrar aquele que está distante do

continente europeu – indivíduos frequentemente caracterizados como selvagens, de culturas e

costumes exóticos – às pessoas que devem aderir à exatidão, à autenticidade, à realidade

quase tangível da descrição feita. Assim, podemos falar de função etnográfico-pedagógica dos

retratos literários presentes em relatos de viagens e nos romances de Jules Verne.

Além disso, convém considerar que o estudo do retrato só se faz eficaz quando inscrito

no seio de uma obra, considerada como uma totalidade em funcionamento. Propomo-nos,

assim, fundar nossa análise no estudo das funções dos retratos de brancos e selvagens nos

romances de Jules Verne mencionados na Introdução desse trabalho. Antes, parece-nos

29

significativo refletir sobre o gênero retrato em pintura, a fim de estabelecer relações com sua

vertente literária. Seguindo este caminho, reservamos duas problemáticas que envolvem o

retrato pictural: sua relação com a invenção das artes visuais e a metonímia rosto/corpo.

2.2 - Interface pictural

Ainda que num sentido moderno a palavra retrato evoque a representação de uma

figura individual ou de um grupo, elaborada a partir de um modelo vivo, documentos,

fotografias, ou com o auxílio da memória, o retrato tem seu sentido primeiro ligado à ideia de

mimese, como atestam todos os dicionaristas anteriormente citados.

Na pintura, o retrato se afirma como gênero autônomo no século XIV, após ter sido

utilizado no Egito, no mundo grego e na sociedade romana, com finalidades diversas:

comemorativa, religiosa, funerária, etc. Desde então, o retrato passou a ocupar um lugar de

destaque na arte europeia, atravessando diferentes escolas e estilos artísticos, constituindo-se

como um filão fartamente explorado por artistas de todas as épocas.

Porém, se a vertente literária do retrato não apresenta muitas divergências e incertezas

em sua definição e função, o mesmo não acontece com sua interface em pintura. Mesmo a

criação do retrato pictural é confundida com as origens da pintura. Plínio, o velho conta que,

na origem da pintura, houve circunscrição do corpo. O homem teria observado sua sombra e

teria definido o contorno: a pintura começou com a observação de um fenômeno natural que o

levou a captar sua forma por um traço:

A questão das origens da pintura é obscura e não entra no plano desta obra. Os egípcios declaram que ela foi inventada por eles seis mil anos antes de existir na Grécia: vã pretensão, é óbvio. Quanto aos gregos, uns dizem que o princípio foi descoberto em Sicião, outros, em Corinto, e todos que ele consistiu em traçar com linhas o contorno de uma sombra humana: esta foi, portanto, a primeira etapa.65

65 «La question des origines de la peinture est obscure et n’entre pas dans le plan de cet ouvrage. Les Égyptiens déclarent qu’elle a été inventée chez eux six mille ans avant de passer en Grèce : vaine prétention, c’est bien évident. Quant aux Grecs, les uns disent que le principe a été découvert à Sycione, les autres à Corinthe, et tous qu’il a consisté à tracer grâce à des lignes, le contour d’une ombre humaine : ce fut donc là la première étape. » PLINE L’ANCIEN. Histoire Naturelle. Livre XXXV; Ch. XV. trad. M.É. Littré. Paris: Firmin-Didot, 1877, [s.p.]. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2820810 Última consulta 20/07/2008.

30

No capítulo CLI de sua História Natural, Plínio reporta que, na origem da modelagem

com argila e da escultura, houve retrato:

O oleiro Butades de Sicião foi o primeiro a descobrir a arte de modelar retratos em argila [...] Isso aconteceu em Corinto e ele deve sua invenção a sua filha que estava apaixonada por um rapaz; este, partindo para o estrangeiro, teve a sombra do seu rosto projetada na parede pela luz de uma lamparina e contornada com uma linha por ela; seu pai aplicou argila sobre o esboço, fez um relevo que pôs a endurecer no fogo com outros vasos de barro.66

Ora, a partir da lenda contada por Plínio, notamos que o retrato do “noivo” da filha de

Butades parece dar uma identidade à origem anônima da pintura. A dupla função conferida a

esta representação inaugural afeta o objetivo da pintura: na ausência do ser amado, a filha,

graças a seu pai, contemplará o retrato do jovem, sem que nenhuma fraqueza de memória

venha furtá-lo de sua lembrança. No entanto, é preciso notar que a lenda fala de um retrato

fixado a partir da sombra e isso leva a pensar na precariedade de todo retrato, na sua

qualidade imaterial e fugidia, na ilusão da imagem que o constitui. No artigo “Sou, então,

pintura: em torno de auto-retratos de Iberê Camargo”, Lúcia Teixeira trata dessa precariedade

do retrato:

A sombra é já a ausência da forma original, seu reflexo pelo avesso, sua contraface escura, e é também sua submissão ao tempo e à memória. Se foi da sombra que se fez o retrato, quem é esse retratado? Que homem pode ter saído dessa mancha escura na parede, e esse homem que daí sai, como traço e como modelagem, que poder há de guardar? Acalma o coração solitário da jovem, perpetua-se como presença, amortece e reacende a um só tempo o desejo de um corpo, de uma presença? Mas se é só de ilusões que falamos aqui, como partir da lenda para pensar na concreta existência da pintura, em seus concretos efeitos de cor e luz, em seus concretos arranjos materiais?67

O retrato se insurge contra a ausência e se afirma como a contraparte do esquecimento,

ganhando poder de evocação. A esse título, diversos pesquisadores68 mencionam os estudos

de Leon Battista Alberti que, desde 1435, abordando a questão da utilidade da pintura, toma

como exemplo o retrato: 66 «Le potier Butadès de Sycione découvrit le premier l’art de modeler des portraits en argile [...] cela se passait à Corinthe et il dut son invention à sa fille qui était amoureuse d’un jeune homme; celui-ci partant pour l’étranger, elle entoura d’une ligne l’ombre de son visage projetée sur le mur par la lumière d’une lanterne ; son père appliqua de l’argile sur l’esquisse, en fit un relief qu’il mit à durcir au feu avec le reste de ses poteries. » PLINE L’ANCIEN, 1877, ch. CLI, [s.p.]. 67 TEIXEIRA, Lucia. Sou, então, pintura: em torno de auto-retratos de Iberê Camargo. Alea [online]. 2005, vol.7, n.1, p. 123-138. Disponível em: http://www.scielo.br Última consulta: 18/10/2009. 68 Cf. POMMIER, 1998, p. 19.

31

Estas maneiras de estudar poderão, provavelmente, ser muito difíceis para os jovens; assim, quero demonstrar-lhes que a pintura não é indigna a que nos dediquemos com todo o nosso zelo e toda nossa paixão. Na verdade, não possui ela em si mesma um poder divino, esta pintura que, entre amigos, por assim dizer, torna presente o ausente e, além disso, pode, depois de muitos séculos, mostrar os mortos aos vivos, de tal forma que eles sejam reconhecidos, para a grande admiração do homem de arte e deleite dos espectadores?69

O retrato vem, portanto, legitimar a pintura: retrato do ausente, vivo mostrado a outros

vivos, retrato de um desaparecido, mortos mostrados aos vivos. O retrato compensa, ao

mesmo tempo, a ausência e o esquecimento.

Demonstrada a utilidade da pintura, alguns parágrafos adiante, Alberti institui (contra

a lenda de Butades) Narciso como o inventor da pintura: “Tenho o hábito de dizer, entre meus

familiares, que o inventor da pintura deve ser esse Narciso que foi metamorfoseado em flor. O

que é pintar, realmente, se não apreender, com a ajuda da arte, toda a superfície da água.”70

Refletindo sobre a ideia de Alberti - o reflexo de Narciso se sobrepõe à sombra do

corpo anônimo da lenda de Butades -, diríamos que o retrato é a origem e a finalidade da

prática pictural tendo como objetivo transmitir a imagem de um corpo. Porém, aceitar o

retrato como origem das artes deixa margem para diversas vias de investigação. Destaca-se o

vínculo que une rosto e corpo nessa prática artística: é através da delineação do corpo que a

pintura chega à materialidade do objeto. Essa reflexão torna-se capital se considerarmos as

questões do estatuto da representação da silhueta, ou seja, do corpo delineado; daquele da

representação do perfil do modelo, ou seja, do rosto delineado. Quais são os fatores que

precipitam a representação do corpo em retrato?

Considerando o retrato em pintura como sendo a representação de uma pessoa que

tenha verdadeiramente existido, para retomar a definição que os dicionários oferecem, o 69 «Ces moyens d’étudier pourront, sans doute, paraître trop laborieux aux jeunes gens; aussi veux-je leur démontrer que la peinture n’est pas indigne que nous nous y appliquions avec tout notre zèle et toute notre ardeur. En effet ne possède-t-elle pas en elle-même comme une force divine, cette peinture qui, entre amis, rend pour ainsi dire présent l’absent lui-même, et, qui plus est, peut, après bien des siècles, montrer les morts aux vivants, de telle façon qu’ils sont reconnus, à la grande admiration de l’homme d’art et au grand plaisir des spectateurs ? » ALBERTI, Leon Battista. De la peinture. Trad. Claudius Popelin. Paris: A. Lévy, 1869, p. 131. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark/12148/bptk65009h/f137 Última consulta: 21/07/2008 70 «J’ai coutume de dire, parmi mes familiers, que l’inventeur de la peinture doit être ce Narcisse qui fut métamorphosé en fleur. Qu’est-ce qu’est peindre, en effet, si ce n’est saisir, à l’aide de l’art, toute la surface d’une onde?» ALBERTI, 1869, p. 133.

32

problema da identificação do retratado e os critérios que autorizam essa operação é

fundamental. Para tal fim, alguns pintores inscrevem o nome e a idade do modelo

representado no interior do espaço pintado, como vemos no retrato de grupo Thomas More e

sua família (1527), de Hans Holbein (1497-1543) onde, sobre cada indivíduo retratado,

vemos escrito o nome do membro da família, seguido de sua idade:

Hans Holbein. Thomas More e sua família.

Óleo sobre tela, 1527. Museu de arte da Basiléia.

(Detalhe)

Esta prática, comum no Renascimento, é um indício que serve para identificar uma

pintura como pertencente ao gênero retrato71. Retomaremos esse dado quando tratarmos das

semelhanças entre as interfaces literária e pictural do retrato. No entanto, diversos são os

quadros identificados como retratos, ainda que pesquisas históricas não permitam dar certeza

71Cf. DUBUS, Pascale. L’art en perspective - Qu’est-ce qu’un portrait ? Paris : L’Insolite, 2006, p. 37.

33

acerca da identidade dos retratados. É o caso de Retrato de um cavaleiro (1531), de

Bartholomaüs Bruyn (1493-1555):

Bartholomaüs Bruyn. Retrato de um cavaleiro. Óleo sobre madeira, 1531.

Museu de Viena.

Contrariamente, algumas obras não são classificadas na categoria “retrato” mesmo que

especialistas tenham identificado os modelos pintados. A criança com pião (1736), de

Chardin (1699-1779) é exemplar a esse respeito. O modelo, que seria filho do Senhor

Godefroy, joalheiro e amador em pintura, figuraria numa tela classificada como uma cena de

gênero72:

Jean-Baptiste S. Chardin. A criança com pião. Óleo sobre tela, 1736.

Museu do Louvre, Paris.

72 Cf. ROSEMBERG, Pierre (dir.). Chardin. Paris: Éditions de la Réunion de Musées Nationaux, 1999, [s.p.].

34

Situado no limite entre o retrato e o rosto, O retrato de Denis Diderot (1769)

confeccionado por Fragonard (1732-1806) é peça recorrente no que diz respeito às reflexões

que se fazem sobre retrato em pintura. Ora qualificado como figure de fantaisie ora como

retrato, a obra pertenceria a uma terceira categoria: o retrato fantasia, uma vez que os olhos

castanhos do modelo tornaram-se azuis, segundo as pinceladas do pintor73. Esta categoria de

retrato é definida pelo próprio Diderot na Encyclopédie: “um pintor faz um retrato de fantasia

quando ele não é segundo o modelo”74:

Jean Honoré Fragonard. Retrato de Denis Diderot.

Óleo sobre tela, 1769. Museu do Louvre, Paris.

Na esteira dessas observações, duas constatações se impõem. Por um lado, não

podemos nos satisfazer com as definições que dão o retrato como a representação de alguém

que tenha realmente existido. Faz-se necessário, então, determinar quais são os critérios que

nos permitem afirmar, diante de uma produção artística, que se trata de um retrato. Por outro

lado, observa-se a que ponto as categorias evocadas deixam turva a realidade dos objetos

representados: como um corpo perfeitamente identificado pode transmutar-se em personagem

se não pelo abandono de sua identidade? A perda ou a suspensão da identidade do indivíduo

desembocam, inevitavelmente, numa pesquisa sobre o estatuto do modelo. Não é de modo

inocente que os catálogos consultados apresentam, no caso em que o modelo foi identificado,

73 Cf. ROSEMBERG, Pierre (dir.). Fragonard. Paris : Éditions de la Réunion de Musées Nationaux, 1987, [s.p.]. 74 «Un peintre fait un portrait de fantaisie quand il n’est pas d’après le modèle » Cf. DIDEROT, Denis. Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tome treizième. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50545b. Última consulta: 27/07/2008.

35

duas entradas: o título da obra e o patrônimo do modelo que posou para o quadro. O exemplo

dos retratos do filho de Édouard Manet é probatório. De A criança com espada (1861) ao

Almoço no atelier (1868), passando por A criança com bolhas de sabão (1867) os catálogos

registram que se trata de Léon Manet, filho do pintor.75

Édouard Manet. A criança com espada. Óleo sobre tela, 1861.

Museu Metropolitan – Nova Iorque.

Édouard Manet. Almoço no atelier. Óleo sobre tela, 1868.

Nova Pinacoteca, Munique.

75 Cf. CACHIN, Françoise (dir.). Manet. Paris: Éditions de la Réunion de Musées Nationaux, 1983, [s.p.].

36

Édouard Manet. A criança e bolhas de sabão. Óleo sobre tela, 1867.

Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.

A operação pela qual o singular (a pessoa) passa ao geral (a figura) nos autoriza a

efetuar uma redefinição do retrato, deduzindo que um retrato é a representação de uma pessoa

cuja identidade é objeto da obra.

Na ausência da inscrição mencionando a identidade do retratado, Pascal Dubus tenta

desenvolver três critérios que nos autorizariam a ver numa obra um retrato76. O primeiro deles

diz respeito ao modelo. Este deve constituir o único objeto da representação: não se deve

perceber nenhum atributo que permita identificar um personagem mitológico ou bíblico,

nenhum elemento que faria do quadro uma alegoria; o segundo critério trata da postura

gestual do modelo: o corpo representado, seja por um enquadramento específico ou por uma

postura que sugere a pose, mostra que a intenção do artista e do modelo era aquela do retrato;

e o terceiro e último critério fala do rosto: seus traços devem ser bem individualizados,

característicos de uma pessoa singular, opostos a um tipo humano ideal.

Elaborando esses três critérios, Dubus mostra-se consciente da precariedade em

delimitá-los, invalidando-os quando lança as perguntas: o que pensar do retrato alegórico,

76 Cf. DUBUS, 2006, p. 20.

37

como avaliar a pose gestual e o que fazer dos retratos que desprezam assemelharem-se ao

modelo?77

Constata-se, através dessa tentativa de definição, o quanto os critérios são complexos.

Às vezes, as produções artísticas tendem a escapar das categorias, sendo-lhes pré-existentes

ou não. Retrato de rapaz como São Sebastião (1533), de Agnolo Bronzino (1503-1572), é um

exemplo :

Agnolo Bronzino. Retrato de rapaz como São Sebastião. Óleo sobre madeira, 1533.

Coleção Thyssen-Bornemisza, Madri.

A tela mostra que o enquadramento do corpo e os atributos deixam supor que se trata

de um São Sebastião. Contudo, o tratamento dos traços do rosto realça a intenção de retratar

um modelo. Talvez, no caso desta tela, o modelo tenha escolhido ser pintado como São

Sebastião e, mesmo assim, o quadro não se deixa reduzir a um retrato alegórico. A partir

desse exemplo, poderíamos afirmar que a obra não teria mais por missão imitar fielmente o

modelo, mas propor uma efígie exemplar: o retrato em pintura contribuiria para forjar a

identidade de um modelo.

Na tentativa de estabelecer uma tipologia do retrato segundo o enquadramento, como

propôs Dubus em um de seus critérios, vemos a dificuldade do pesquisador diante das

77 Cf. DUBUS, 2006, p. 33.

38

ferramentas colocadas à disposição pelos especialistas do retrato: em geral, somente o busto e

o retrato de corpo inteiro (portrait en pied) são isolados no conjunto de possibilidades que o

retrato oferece. Porém, a gama de retratos existentes mostra-nos que a grande maioria deles

apresenta enquadramentos que vão desde o retrato cortado na altura dos ombros até aquele

cortado na cintura. O corpo do retratado, apesar de deixar pistas, é escamoteado aos olhos do

espectador. O rosto pintado pertence a um corpo do qual notamos, com frequência, a presença

dos ombros, dos braços. O rosto é, portanto, a parte do corpo que veicula a identidade do

retratado, desde que ele seja quase uma metonímia corporal.

Diante da importância conferida ao rosto, refletimos sobre seu estatuto e sobre sua

fabricação cultural. Falamos do rosto, até agora, como se essa parte do corpo comportasse um

senso comum, fosse algo universal. Este pressuposto pode produzir efeitos perversos na

recepção das obras, conduzindo a uma leitura anacrônica dos rostos pintados. O rosto

representado numa tela é reduzido a uma imagem tal como vê um espectador, segundo os

hábitos visuais ancorados no seu tempo. O espectador acostumado a interpretar as expressões

de seus contemporâneos, projeta suas experiências sobre as obras do passado. Queremos dizer

que, para uma reflexão sobre retrato, deve-se levar em conta que rosto e corpo são

construções culturais, invenções que se renovam sem cessar.

Se os retratos em busto oferecem poucos indícios da postura gestual do corpo, em

compensação, temos os enquadramentos até a cintura, o quadril, os joelhos, as coxas, as

panturrilhas e o corpo inteiro que se mostram ricos em informação. Observa-se que, num

retrato de corpo inteiro, esteja o modelo sentado ou de pé, mostram-se as roupas que,

portanto, transformam o corpo dos retratados em corpos sociais. As vestimentas e os objetos

representados podem indicar desde a posição que o modelo ocupa nas diversas hierarquias até

sua profissão e nacionalidade. Quanto mais o corpo é mostrado, graças aos enquadramentos

mais amplos, mais ele é trabalhado pelo social; a representação dos traços singulares do rosto

39

permitiriam que o corpo não caísse na indistinção: se, em alguns casos, as vestimentas

conduzem à uniformidade dos corpos, o rosto afirma a singularidade do corpo representado.

2.3 – Interseção entre as interfaces literária e pictural do retrato

Anteriormente, expusemos um percurso da conceituação das interfaces literária e

pictural do retrato. Percebemos que a tentativa de forjar critérios de definição nem sempre é

satisfatória e gera, muitas vezes, mais problemas que soluções.

Nesta dissertação, trata-se de questionarmos a respeito da possível interseção dos

elementos que pertencem simultaneamente aos dois conjuntos, isto é, das interseções

existentes entre as interfaces literária e pictural do retrato. Para isso, quatro aspectos foram

selecionados: dois concernentes à função e outros dois à construção do retrato.

O primeiro aspecto, que surge da interseção entre esses conjuntos, é a noção de

mimese. Esse conceito que designa a ação ou faculdade de imitar, cópia, reprodução ou

representação da natureza, que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte,

como afirma Louis Marin no capítulo intitulado “Mimésis et description” do livro De la

représentation, está no centro da definição de retrato.78 Como o autor observa, “o misterioso

prazer da mimese pictural se realizaria na representação”.79 Essencialmente, a questão do

retrato, pictural ou literário, está ligada àquela filosófica, da representação.

O segundo aspecto relacionado à função do retrato é derivado da noção da mimese,

mas se atém ao objetivo dessa representação: mostrar aos espectadores ou leitores o modelo

ou personagem reproduzido aproximadamente conforme a realidade, visando dar presença ao

que está ausente. Este segundo ponto da interseção entre as artes literária e pictórica informa,

sobretudo, a função dos retratos num relato de viagem, como por exemplo nas “Viagens

extraordinárias” de Jules Verne. A escrita do retrato, nesse âmbito, suscita o interesse e faz

surgir diante dos olhos do leitor-espectador indivíduos desconhecidos. Será através dos

78 Cf. MARIN, Louis. De la représentation. Paris: Seuil-Gallimard, 1994, p. 254. 79 “Le mystérieux plaisir de la mimésis picturale s’accomplirait dans la représentation.” MARIN, 1994, p. 254.

40

retratos dos personagens que Jules Verne, seguindo critérios pedagógicos, diminuirá a

distância entre o leitor europeu e os mundos distantes nos quais os seus personagens vivem ou

transitam; assim como o retrato em pintura, o retrato literário apresenta-se como a ferramenta

capaz de tornar presente o que está ausente.

Numa visada mais prática, o terceiro ponto em comum entre as duas interfaces diz

respeito a elementos que fazem parte da arquitetura do retrato; trata-se da frequência com que

aparecem o nome e a idade do personagem no interior do bloco descritivo que, num paralelo

estabelecido com a pintura, poderia ser identificado com a tela, o espaço pintado, como

mostramos anteriormente. O que na pintura funcionaria como um dos critérios de

reconhecimento de uma obra como pertencente ao gênero retrato, nos retratos literários dos

romances de Jules Verne será menção recorrente.

O quarto e último aspecto da interseção entre as artes diz respeito à atenção que se dá

ao rosto do modelo ou do personagem. Se um romancista faz de uma passagem textual o

retrato de um de seus personagens ou se o pintor, num quadro no qual figuram vários modelos

em que a representação de cada um é um retrato, é o indivíduo como tal que aparece, ou, ao

menos, indica-se uma tentativa de individuação de personagens-tipos, como veremos em Jules

Verne.

Mesmo que se trate de um personagem-tipo, o foco na descrição do rosto é temática

preponderante. Nos romances de Verne, é no rosto dos personagens que se cumula um dado

importante: a sua essência humana. O retrato deverá refletir o personagem em si e, por

extensão, indicar previamente suas ações, enquanto os traços do rosto devem permitir

observar os reflexos do pensamento e seus sentimentos. Veremos que Jules Verne,

frequentemente fazendo uso da fisiognomonia, dá-nos respaldo para falar deste quarto

elemento da interseção entre o retrato literário e o pictural.

Os quatro elementos acima descritos aparecerão como dados que exploraremos ao

longo da dissertação, porém, com mais ênfase no capítulo das análises dos retratos dos

41

personagens brancos e selvagens das obras citadas, sabendo que rosto e corpo são “objetos”

construídos culturalmente e que, forçosamente, Verne manifesta uma imagem da alteridade

nos retratos. No capítulo seguinte trataremos das ferramentas que o escritor usa para a

construção dos retratos nos seus romances. Para essa discussão, utilizaremos basicamente os

conceitos de interdiscurso e intertexto sintetizados por Dominique Maingueneau e Patrick

Charaudeau. Apresentaremos as fontes textuais e icônicas às quais Verne teria recorrido para

construir os retratos de seus personagens. Estabeleceremos relações do discurso literário com

o discurso científico através de textos que circulavam à época, endossando a hipótese de que

retratos são construções determinadas por uma certa visão de mundo ou, na terminologia de

Pierre Bourdieu, por um habitus.

42

3 - A PESQUISA VERNIANA PARA A COMPOSIÇÃO DOS RETRATOS

Mesmo que se intente clarificar as relações e definições em pintura ou em literatura, os

“objetos” rosto e corpo, cuja importância foi sublinhada no capítulo anterior, ainda suscitam

dúvidas, sobretudo quando se inserem nas tradições ocidentais.

O rosto tem o interior de sua história atravessado por mitos, alegorias e narrativas que

impregnaram a consciência e o imaginário ocidentais. Para citar apenas alguns: na tradição

pagã, os mitos de Narciso e da Medusa evocam o rosto; na tradição cristã, acredita-se que o

santo sudário guarda as impressões do rosto do Cristo. A passagem bíblica que trata do véu de

Verônica também faz alusão a esta parte do corpo; na tradição literária, tem-se o célebre

romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Numa visão mais contemporânea, a

importância do rosto, sobretudo em relação a questões identitárias, é vista em programas de

televisão de raiz americana que tratam, aparentemente com objetivos humanistas, da

reformatação de rostos de pessoas desconhecidas segundo os cânones da beleza californiana.

Queremos mostrar nessas breves reflexões que, desde os mitos fundadores que giram

em torno da questão à sua remodelagem ideológica, longe de ser um fator inato, o rosto e, por

extensão, o corpo, são pensados como sendo construções simbólicas e, sobretudo, culturais.

No presente capítulo, temos o objetivo de mostrar como Jules Verne dialoga com discursos,

científicos ou não, que circulavam na sua época, a fim de construir os retratos literários que

povoam seus romances. Utilizaremos os conceitos de relações transtextuais, de Gérard

Genette, e de interdiscurso e intertexto, sintetizados recentemente por Dominique

Maingueneau e Patrick Charaudeau no Dicionário de análise do discurso, para falar do

diálogo que podemos estabelecer entre os textos de Lavater, Gall, Gobineau e Darwin e os

textos veiculados no magazine Le Tour du monde com aqueles de Jules Verne, ou seja, as

relações interdiscursivas entre o discurso literário e o científico.

43

3.1- Intertexto e interdiscurso: o trabalho da citação e a questão documental

Independentemente da questão dos retratos, um aspecto interessante nos romances de

Jules Verne, relativo à utilização e naturalização de documentos e discursos na mimese, é o

que diz respeito à citação de viajantes e dos discursos científicos que circulavam na sua

época. No entanto, antes de entrarmos efetivamente na questão dos diálogos que podemos

estabelecer na leitura dos retratos literários em Jules Verne, abordaremos o intertexto num

sentido mais amplo, relacionando-o com os romances de Verne, no geral.

Sem pretendermos realizar um resumo do que hoje é a teoria da intertextualidade,

antes de tratarmos dos conceitos de intertexto e interdiscurso, parece-nos importante

apresentar alguns traços gerais do que entendemos pelo conceito da citação e avaliar até que

ponto podemos falar dele na obra verniana. Para uma breve panorâmica da citação,

convocamos algumas elucidações que Gérard Genette nos sugere, tendo no horizonte o corpus

romanesco que nos interessa.

Segundo Genette80, os textos podem ser lidos, do ponto de vista dos vários contatos

que eles estabelecem com outros textos, segundo cinco grandes tipos de relações transtextuais

– designação que ele dá ao fenômeno no seu conjunto: 1) a intertextualidade que é, em última

análise, a presença efetiva de um texto em outro, se subdivide em três ramificações; a sua

forma mais explícita e mais literal é a prática tradicional da citação, com ou sem aspas e

tendo ou não referência precisa; a forma menos precisa e menos canônica dessa modalidade

que, de um ponto de vista valorativo, quase sempre depreciativo, é o plágio, ou seja, um uso

literal, mas não declarado; e a forma menos literal e a mais difusa é a alusão – enunciado cuja

plena compreensão só pode ser atingida quando se entende a sua relação com outro

enunciado; 2) o segundo tipo é constituído pela relação normalmente menos explícita e mais

distante que o texto mantém com seu paratexto, ou seja, os sinais acessórios que o relacionam

com os co-textos e contextos – desde o pacto de leitura à referência a gêneros: títulos,

80 Cf. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982, p. 7-19.

44

subtítulos, prefácios, notas marginais, epígrafes, ilustrações, títulos de capítulos, comentários

de estudiosos ou ainda textos preparatórios do próprio autor; 3) o terceiro tipo é o da

metatextualidade, designação que usa para o caso do “comentário”, processo de

relacionamento textual que une um texto a outro, do qual fala, sem ter necessariamente que

citá-lo ou nomeá-lo; 4) o quarto tipo de transtextualidade considerada é a de

hipertextualidade, que une um texto B, designado pelo crítico francês hipertexto, a um texto

A que ele chama de hipotexto. Hipertexto, em outras palavras, é todo texto derivado de um

texto anterior seja através de uma transformação simples ou de uma transformação indireta, a

imitação. Não sendo essa relação claramente de comentário, o hipertexto distingue-se do

metatexto pelo fato de o texto B ser uma transformação do texto A81; 5) o último tipo a

considerar nesta perspectiva é a arquitextualidade, ou seja, a relação do texto com as

categorias gerais ou transcendentes que formam modelos dentro dos quais os textos singulares

se inserem.

Genette menciona ainda que, para a abordagem dos cinco tipos de transtextualidade,

duas precisões devem ser feitas. A primeira é que não se deve considerá-los como classes

estanques, sem diálogo entre si. Por exemplo, a arquitextualidade genérica se constitui

historicamente pela imitação e, portanto hipertextualidade; o pertencimento arquitextual de

uma obra é declarado por indícios paratextuais ou ainda, quando o hipertexto tem valor de

comentário (metatexto). A segunda observação feita por Genette é que a transtextualidade

deve ser considerada, não como classe de textos, mas como aspectos da textualidade. Essas

observações serão produtivas na abordagem do corpus proposto já que, por vezes, estaremos

diante de exemplos que se coadunam com mais de uma categoria transtextual ou, ao contrário,

uma categoria transtextual que não dá conta da integralidade do exemplo.

81 Genette parece reservar os conceitos de hipotexto e hipertexto apenas às relações entre obras. Assim considera Ulisses, de Joyce e a Eneida, de Virgílio hipertextos da Odisséia de Homero (GENETTE, 1982, p.13). As Confissões, de Rousseau, como hipertexto das Confissões de Santo Agostinho (GENETTE, 1982, p. 18). Para a produtividade desta pesquisa, usamos os dois conceitos não se referindo a obras como um todo, mas em relação a passagens, excertos, em que reconhecemos uma transtextualidade que une um texto A a um texto B. Assim, mostraremos que Jules Verne se apropria de textos de partida efetuando transformações em vários níveis.

45

Numa perspectiva discursiva, Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau

exploram, a partir de outros autores como Kristeva e Genette, a distinção existente entre

intertexto e interdiscurso82. Primando pelo interdiscurso sobre o discurso, Maingueneau

afirma que todo discurso é atravessado pela interdiscursividade e que tem a propriedade de

estar em relação multiforme com outros discursos; este está para o discurso como o intertexto

está para o texto. Restritivamente, Maingueneau trata do interdiscurso como um espaço

discursivo, um conjunto de discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos

distintos) que mantêm relações de delimitação recíproca uns em relação aos outros. Num

sentido mais amplo, chama de interdiscurso o conjunto das unidades discursivas (que

pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros

gêneros) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita. Citando

Jean-Michel Adam, Dominique Maingueneau fala de intertexto para os ecos livres de um (ou

de vários) texto(s), independentemente de gênero, e de interdiscurso para o conjunto dos

gêneros que interagem em uma dada conjuntura. Por sua vez, Charaudeau vê no interdiscurso

um jogo de reenvios entre discursos que tiveram um suporte textual, mas de cuja configuração

não se tem memória. Para ele a noção de intertexto seria um jogo de retomada de textos

configurados e ligeiramente transformados. Maingueneau adiciona a essas ideias a diferença

entre intertexto e intertextualidade: o primeiro sendo um conjunto de fragmentos evocados

(citações, alusões e paráfrases), como já vimos; já a intertextualidade deve ser compreendida

como o sistema de regras implícitas que subtendem esse intertexto; o modo de citação que é

julgado legítimo na formação discursiva; o tipo ou o gênero de discurso. Assim, Maingueneau

exemplifica que a intertextualidade do discurso científico não é a mesma que aquela do

discurso teológico. O linguista ainda distingue dois tipos de intertextualidade: a interna, entre

82 Cf. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’analyse du discours. Paris: Seuil, 2002, p. 324-329.

46

um discurso e aqueles do mesmo campo discursivo e a intertextualidade externa, com os

discursos de campos discursivos diferentes.83

Às definições de Genette no que tange às relações transtextuais e suas nuanças e

aquela de intertextualidade apresentada por Maingueneau e Charaudeau, acrescentamos a

noção de interdiscurso, que também é produtiva nesta dissertação, para mostrar que na

construção dos retratos dos seus personagens, Jules Verne dialoga com discursos da sua

época. Para arquitetar seus romances e, como veremos, os retratos de seus personagens,

notamos que a preocupação de Verne, diante da realidade de que tinha que dar conta e dos

objetivos pedagógicos impostos pelo contrato editorial, aproxima-se muito da do historiador

que tem de recorrer, muitas vezes, à fontes documentais escritas. Quando trazemos a noção

genetiana de citação, temos a intenção de mostrar que, no caso de Verne, não é apenas uma

atitude de honestidade intelectual: é uma necessidade de obter um mínimo de efeito de

credibilidade perante os leitores. A esse respeito, referimo-nos a Ginzburg que, num texto

publicado em 1989 e intitulado “Ekphrasis e citação”, constata que não é novidade a

aproximação entre as narrativas fictícia e histórica, porque o importante é indagar de que

modo se encaram como reais fatos contidos num texto histórico. Este efeito é, normalmente,

produzido por elementos que podem ser tanto extratextuais quanto textuais, podendo estes

últimos apresentar alguns dispositivos, sugeridos por convenções literárias, com os quais os

historiadores clássicos e os historiadores modernos procuraram produzir o effet de vérité,

encarado como elemento inerente ao seu trabalho.84

No romance Cinq semaines en ballon temos nitidamente um desses casos de

intertextualidade. Logo no primeiro capítulo, quando o personagem Samuel Fergusson aceita

viajar a bordo do balão Victoria com o objetivo de explorar o norte africano em busca das

fontes do Rio Nilo, brindes são feitos ao futuro viajante que terá seu nome inscrito ao lado dos

outros célebres viajantes africanos:

83 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002, p. 324-329. 84 Cf. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 217-218.

47

Des toasts nombreux furent portés avec les vins de France aux célèbres voyageurs qui s’étaient illustrés sur la terre d’Afrique. On but à leur santé et à leur mémoire, et par ordre alphabétique, ce qui est très anglais: à Abbadie, Adams, Adamson, Anderson, Arnaud, Baikie, Baldwin, Barth, Batouda, Beke, Beltrame, du Berba, Bimbachi, Bolognesi, Bolwic, Bolzoni, Bonnemain, Brisson, Burton, Caillaud, Caillié, Campbell, Chapman, Clapperton, Clot-Bey, Colomieu, Couval, Cumming, Cuny [...] Saugnier, Speke, Stneider, Thibaud, Thompson, Thornton, Toole, Vaudey, Veyssière, Vincent, Vinco, Vogel, Wahlberg, Warington, Washington, Werne, Wild et enfin au Docteur Fergusson qui, par son incroyable tentative, devait relier les travaux de ces voyageurs et compléter la série des découvertes africaines.85

Paralelamente à necessidade de hiperbolizar os feitos dos viajantes como modelos

heróicos que tematizam a viagem cartográfica, geográfica e testemunhal, enquanto feito

épico, narrativo por excelência, a alusão a esses viajantes e seus trabalhos, na modalidade em

que é feita, assegura uma referencialidade, validando seu discurso ao referir-se às regiões

exóticas, à topografia, à cartografia e, o que nos interessa mais particularmente, à etnografia.

Nesta passagem, a alusão ocorre como menção a nomes próprios. A rigor, o que quase

sempre aparece como alusão é o nome do viajante, autor de relatos de sua própria viagem.

Estes nomes aparecem como elementos textuais, fazendo-se acompanhar por designações de

regiões, de topônimos. Por trás dos nomes dos viajantes inferem-se seus relatos de viagem.

Em Les enfants du capitaine Grant, a justificativa para a alusão aos nomes de

viajantes e a seus feitos ocorre quando os personagens estão adentrando o Estreito de

Magalhães e o geógrafo Paganel resume as descobertas de Cristóvão Colombo:

- Je veux vous croire, mon cher Paganel, répondit Glenarvan; cependant vous me permettrez d’être surpris, et de vous demander quels sont les navigateurs qui ont reconnu la vérité sur les découvertes de Colomb? - Ses successeurs, Ojeda, qui l’avait déjà accompagné dans ses voyages, ainsi que Vincent Pinzon, Vespuce, Mendoza, Bastidas, Cabral, Solis, Balboa. Ces navigateurs longèrent les côtes orientales de l’Amérique; ils les délimitèrent en descendant vers le sud, emportés, eux aussi, trois cent soixante ans avant nous, par ce courant qui nous entraîne! Voyez, mes amis, nous avons coupé l’équateur à l’endroit même où Pinzon le passa dans la dernière année du quinzième siècle, et nous approchons de ce huitième degré de latitude australe sous lequel il accosta les terres du Brésil. Un an après, le Portugais Cabral descendit jusqu’au Port Seguro. Puis Vespuce, en 1502, alla plus loin encore dans le sud. En 1508, Vincent Pinzon et Solis s’associèrent pour la connaissance des rivages américains, et en 1514, Solis découvrit l’embouchure du Rio de la Plata, où il fut devoré par les

85 VERNE, Jules. Cinq semaines en ballon. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975a, p. 5-6.

48

indigènes, laissant à Magellan la gloire de contourner le continent. Ce grand navigateur, en 1519, partit avec cinq bâtiments, suivit les côtes de la Patagonie, découvrit le port désiré, le port San-Julian, où il fit de longues relâches, trouva cinquante-deux degrés de latitude ce détroit de Onze-Milles-Vierges qui devait porter son nom, et, le 28 novembre 1520, il déboucha dans l’Océan Pacifique. Ah! Quelle joie il dut éprouver, et quelle émotion fit battre son coeur, lorsqu’il vit une mer nouvelle étinceller à l’horizont sous les rayons du soleil! - J’aurais voulu être là, s’écria Robert Grant. - Moi aussi, mon garçon, et je n’aurai pas manqué une occasion pareille, si le ciel m’eût fait naître trois cents ans plus tôt! - Ce qui eût été fâcheux pour nous, monsieur Paganel, répondit lady Helena, car vous ne seriez plus sur la dunette du Duncan à nous raconter cette histoire. - Un autre vous l’eût dite à ma place, madame, et il aurait ajouté que la reconnaissance de la côte occidentale est due aux frères Pizarres. Ces hardis aventuriers furent de grands fondateurs de villes. Cusco, Quito, Lima, Santiago, Villarica, Valparaiso et Conception, où le Duncan nous mène, sont leur ouvrage.86

De fato, os narradores ou heróis-observadores vernianos são descritores que,

documentalmente, se guiam pelas indicações dos viajantes. Ora, os autores citados

transformam-se assim nas autoridades mais importantes no nível do efeito de real da narrativa

– são autores da travessia, do percurso, atores de feitos que servem de guia, de orientação,

como precursores do percurso que os heróis vernianos farão; através de seus nomes, surgem

as evocações das próprias coisas que viram, tomaram nota, descreveram e tiveram publicadas

em boletins de sociedades de geografia ou em revistas especializadas em relatos de viajantes,

como por exemplo as revistas L’Univers pittoresque e Le Tour du monde que, segundo o

inventário feito por Magda Kiszely e publicado no boletim da Sociedade Jules Verne no

segundo trimestre de 1996, figuravam na biblioteca pessoal do autor.87 Isto constitui um forte

argumento para estabelecermos relações intertextuais e interdiscursivas entre a literatura de

Verne e o discurso cientifico e o histórico, o que será abordado adiante.

Ainda que no escopo do nosso trabalho não possamos confirmar todos como

autênticos viajantes registrados pela história da “expansão científica”, cremos nas palavras de

Carlos J. F. Jorge que afirma que, na primeira lista apresentada em Cinq semaines en ballon,

86 VERNE, Jules. Les enfants du capitaine Grant. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975b, p. 53. 87 Cf. KISZELY, Magda. “La bibliothèque de Jules Verne”. Bulletin Société Jules Verne, nº 118, 2e trimestre, 1996, p. 45.

49

contando com um número excessivo de nomes, uma dezena, pelo menos, são célebres

viajantes que muito contribuíram para a penetração colonial no continente africano, desde

finais do século XVIII até meados do século XIX.88 A menção aos nomes dos viajantes e a

exaltação dos seus feitos não devem ser lidas somente como fazendo parte do objetivo, por

parte do escritor, de traçar o trajeto que será percorrido pelos seus personagens, mas também

como um dado da adesão de Jules Verne às expansões colonialistas. A colonização é

considerada como um fenômeno positivo para o escritor e o argumento do desenvolvimento

científico deixa ainda mais convincente essa ideia: cultivar, fazer um território render frutos e

civilizar são palavras-chave na obra verniana. A importância referencial desses nomes, em

Jules Verne, é enfatizada pelo fato de serem aludidos no primeiro romance que escreve – e

logo no primeiro capítulo. No segundo capítulo, a viabilidade do projeto de Samuel Fergusson

é discutida pelos jornais, fazendo-se uma resenha das explorações africanas, das quais se

destacam as de Livingstone, de Burton e de Speke. A propósito, uma lista de jornais e revistas

geográficas, cuja autenticidade histórica pode se verificar facilmente, é apresentada no mesmo

capítulo. No capítulo IV, antes da viagem, o narrador afirma que Fergusson, para dar peso e

valor ao seu projeto, traça a rota viável da travessia que fará, numa sinopse, evocando a rota

de viajantes conhecidos:

La ligne aérienne que le docteur Fergusson comptait suivre n’avait pas été choisie au hasard; son point de départ fut sérieusement étudié, et ce ne fut pas sans raison qu’il résolut s’élever de l’île de Zanzibar. Cette île, située près de la côte orientale d’Afrique, se trouve par 6º de latitude australe, c’est-à-dire à quatre cent trente milles géographiques au-dessous de l’équateur. De cette île venait de partir la dernière expédition envoyée par les Grands Lacs à la découverte des sources du Nil. Mais il est bon d’indiquer quelles explorations le docteur Fergusson espérait rattacher entre elles. Il y en a deux principales: celles du docteur Barth en 1849, celle des lieutenants Burton et Speke en 1858.89

Somando-se à discussão das relações intertextuais, cabe-nos mencionar um extenso

trabalho de pesquisa que Verne fez em colaboração com Gabriel Marcel, geógrafo e

88 Cf. JORGE, Carlos J.F. Jules Verne: o espaço africano nas aventuras de travessia. Lisboa: Cosmos, 2000, p. 82. 89 VERNE, 1975a, p. 17.

50

representante da Biblioteca Nacional da França. Esse trabalho fora encomendado pela editora

de Hetzel e intitulou-se Histoire des grands voyages et des grands voyageurs, publicado em

dois volumes em 1878 e 1880, respectivamente. O primeiro trata das viagens de navegadores

feitas no século XVIII e o segundo, de navegadores do século XIX. O mapa abaixo, publicado

no primeiro volume, mostra, em intenção didática, as regiões do planeta pouco conhecidas ou

desconhecidas à época, como indica a legenda. É curioso notar que serão estes espaços mais

percorridos e explorados nos romances vernianos que, em conjunto, receberam do editor o

nome de Voyages extraordinaires aux mondes connus et inconnus – informação paratextual

que figura na capa das edições originais e nas edições usadas nesta dissertação.

“Mondes connus et inconnus à la fin do XVIIIe siècle”

VERNE, Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs, 1997a, p. 628-629.

Com as Histoire des grands voyages et des grands voyageurs, Verne, dizendo ter o

objetivo “de resumir a história da descoberta da Terra”90 apresenta os percursos de viajantes

de modo muito semelhante ao que utiliza em seus romances: sem fazer referências

bibliográficas, com intromissões paratextuais através de mapas, de explicações em notas, de

referências a artigos de jornais relativos a outras viagens, com comentário metatextual

avaliando os percursos, os erros e atos de heroísmo dos viajantes. Essa forma de construção

90 “L’Histoire des grands voyages et des grands voyageurs devait avoir pour but de résumer l’histoire de la découverte de la Terre.” VERNE, Jules. Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs. Paris: Diderot Éditeur, Arts et Sciences, 1997a, p. 3.

51

faz desses relatos de viagem modelos do gênero em que as viagens extraordinárias se

inscrevem. Em suma, a citação evoca a viagem precursora como ato modelo. A título de

exemplo em Cinq semaines en ballon, veja-se como o relato de Speke é reduzido apenas à

fonte de informação, sem referência textual: “Ce lac a été nommé Nyanza Victoria par le

capitaine Speke. En cet endroit, il pouvait mesurer quatre-vingt dix milles de largeur; à son

extrémité méridionale le capitaine trouva un groupe d’îles qu’il nomma archipel de

Bengale.”91 Neste exemplo, o lugar visitado pelo viajante precursor emerge através das

nomeações (do pantônimo - “Le lac Nyanza Victoria” - como designa Philippe Hamon e

veremos mais adiante) e o potencial hipotexto é notado pelos nomes citados, pela referência

aos fenômenos ou elementos geográficos observados. Nesse processo, Verne se apropria do

hipotexto, condensando as ideias principais do texto de origem, sem citá-lo.

Caso semelhante acontece no romance Les enfants du capitaine Grant quando os

personagens aportam nas Ilhas Madeira e avistam ao longe o pico de Tenerife. Desejando

escalá-lo, Paganel exclama e evoca os nomes de Humboldt e Bonplan:

Oh! Le gravir! le gravir, mon cher capitaine, à quoi bon, je vous prie, après MM. de Humboldt et Bonplan? Un grand génie, ce Humboldt! Il a fait l’ascension de cette montagne; il en a donné une description qui ne laisse rien à désirer; il en a reconnu les cinq zones: la zone des vins, la zone des lauriers, la zone des pins, la zone des bruyères alpines, et enfin la zone de la stérilité. C’est au sommet du piton même qu’il a posé le pied, et là, il n’avait même pas la place de s’asseoir. Du haut de la montagne, sa vue embrassait un espace égal au quart de l’Espagne. Puis il a visité le volcan jusque dans ses entrailles, et il a atteint le fond de son cratère éteint. Que voulez-vous que je fasse après ce grand homme, je vous le demande?92

No caso acima, percebemos que a relação de Verne com os relatos de viagens pode ser

considerada, ao mesmo tempo, como uma atividade de citação sem o uso de aspas (vejam-se

os nomes e os fatos citados) e hipertextual (relação de transformação textual; tentativa de

tornar literário as descobertas dos viajantes), ou, para usar a nomenclatura de Maingueneau e

Charaudeau, como uma relação intertextual tout court.

91 VERNE, 1975a, p. 101-102. 92 VERNE, 1975b, p. 46.

52

Em relação a textos literários, o respeito pela fonte documental de onde extrai ideias

(mesmo os textos literários que venera, como é o caso que citaremos abaixo), é, muitas vezes,

de quase denegação ou de total reescrita. Como observa Marie-Hélène Huet sobre o romance

verniano Le Sphynx des glaces (1897), num artigo intitulado “Itinéraires du texte”:

Estranha viagem, surpreendente leitura que segue escrupulosamente o percurso estabelecido pelo texto de Poe (Gordon Pym), mas que cada etapa apaga ou desmente o guia, o texto inicial. Nada que os viajantes descobrem, corresponde às paisagens descritas por Pym, e o percurso só confirma a veracidade do texto pelos novos textos que ele descobre.93

A observação destes procedimentos, que constituem uma rede de revelações de fontes

de fatos para uma semi-ocultação das fontes textuais não nos deve fazer minimizar o trabalho

de Jules Verne, atribuindo-lhe uma atividade de plágio. Devemos reconhecer que, antes de

tudo, o interesse do autor dos romances é de caucionar os seus efeitos de real pela alusão ou

citação de autoridades que dêem aos personagens uma autenticidade e, assim, não deixar

transparecer para os leitores as características da sua diferença e do seu exotismo, em outras

palavras, que seja “natural” o encontro entre o leitor e os povos que o escritor deseja

apresentar-lhe. O que Verne pretende na elaboração intertextual ou hipertextual de romances

que tem como hipotextos os relatos autênticos de viajantes é fundamentar os seres, os objetos

representados, dando-lhes o peso da prova, ou da evidência que foram para os olhos dos que

ali passaram.

Outro modelo de fonte intertextual em Jules Verne é proveniente da literatura. Florent

Montaclair, Sylvie Petit e Yves Gilli atribuem o recorrente tema do naufrágio na obra de Jules

Verne à ótica de um outro escritor: Daniel Defoe com seu Robinson Crusoé.94 Os autores

afirmam que são diversos os romances que apresentam referências explícitas a Defoe e,

portanto, os colocam sob os auspícios do autor inglês. Em Les enfants du capitaine Grant

93 “Étrange voyage, étonnante lecture qui suit scrupuleusement le parcours établi par le texte de Poe (Gordon Pym), mais dont chaque étape efface ou dément le guide, le texte initial. Rien de ce que découvrent les voyageurs ne correspond aux paysages décrits par Pym, et le parcours ne confirme la véracité du texte que par les nouveaux textes qu’il découvre”. HUET, Marie-Hélène. “Itinéraires du texte”. In: Jules Verne – Colloque de Cerisy. Paris: UGE, 1979, p. 16. 94GILLI, Yves; MONTACLAIR, Florent & PETIT, Sylvie. Le naufrage dans l’oeuvre de Jules Verne. Paris: L’Harmattan, 1998, p. 64.

53

temos, por exemplo, a declaração do herói: “Nous commençâmes, comme le Robinson de

Daniel Defoë, notre modèle, par recueillir dans les épaves du navire, des outils, un peu de

poudre, des armes, un sac de graines précieuses”.95

Já em Le Chancellor, o diálogo intertextual se dá com o romance As aventuras de

Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. Gilli et alii afirmam que nos dois romances

podemos assistir a uma cena de canibalismo semelhante, sobretudo porque as duas se iniciam

com um sorteio a bordo para saber qual dos tripulantes será morto, a fim de ser comido em

seguida.96 No texto de Edgar Allan Poe, Pym e seus companheiros devoram o marinheiro

Parker que “não criou nenhuma resistência depois do sorteio. Golpeado nas costas por Peters,

caiu morto com o golpe.”97 No romance de Verne, o bosseman, esfomeado, pergunta ao

capitão: “Quel jour tirerons-nous au sort pour dévorer le perdant?”98.

Para o mesmo romance verniano, as ressonâncias intertextuais também se dão num

nível diferente, com fatos históricos. Gilli et alii defendem que Le Chancellor é uma

adaptação verniana de um acontecimento que quase desestabilizou o regime monárquico

durante a Restauração: o naufrágio da fragata Medusa, em 1816, representado pelo pintor

Théodore Géricault (1791-1824).99

95 VERNE, 1975b, p. 538. 96 Cf. GILLI et alii, 1998, p. 62. 97 “Il ne fit aucune résistance après le tirage au sort. Frappé dans le dos par Peters, il tomba mort sur le coup.” POE, Edgar Allan. Oeuvres en prose (Trad. Charles Baudelaire). Paris: Gallimard, 1951, p. 788. 98 VERNE, 1975c, p. 163. 99 Cf. GILLI et alii, 1998, p. 115.

54

Théodore Géricault. A balsa da Medusa. Óleo sobre tela, 1819.

Museu do Louvre, Paris.

Os autores resumem a catástrofe dizendo que se trata de uma tragédia que aconteceu

com um navio e seus passageiros ao partirem para reconquistar a região de Saint-Louis do

Senegal, colônia devolvida à França pela Inglaterra graças ao tratado de Viena. Uma divisão

naval composta por quatro navios, entre os quais a fragata Medusa, estava encarregada de ir

cumprir a tarefa de recuperação desta colônia, porém usando mapas ultrapassados do século

XVIII. Somando-se a isso, os erros do comandante Hugues Duroy de Chaumareys e a falta de

controle junto ao mau tempo, provocam o naufrágio da fragata em 2 de julho de 1816. Uma

balsa com os destroços do navio é construída para abrigar cento e quarenta e sete pessoas. Em

pouco tempo, a coabitação entre soldados, oficiais e alguns civis transforma a epopéia em

tragédia: violência, motins, fome, sede e cenas de canibalismo. Após treze dias, quinze

sobreviventes são recuperados no oceano pela embarcação Argus, na manhã do 17 de julho de

1816.100

100 Cf. GILLI et alli, 1998, p. 120.

55

A leitura do romance Le Chancellor, publicado em 1875, nos faz enxergar

semelhanças com esse fato catastrófico da história, mas sob uma ótica romanesca que é

própria de Jules Verne. Paradoxalmente, podemos discernir nesse romance uma grande

prudência no tratamento do assunto. Essa reserva junta-se ao problema de fidelidade ao

projeto da obra “Viagens extraordinárias.” Ora, este é um romance que não traz nenhuma

visão sobre o devir científico. Não há nenhum traço da mecânica “maravilhosa” cara a Jules

Verne. Podemos dizer que Le Chancellor mais se assemelha a uma sócio-ficção, pois a

condição humana é o foco. O naufrágio da Medusa foi o pretexto para Verne tratar do tema da

barbárie e da regressão coletiva. Mas, para a pesquisa, cabe-nos perguntar como o modelo se

transforma em obra e como podemos falar em diálogo intertextual ou interdiscursivo entre o

caso real do naufrágio e o caso do Chancellor?

Quase meio século divide o naufrágio da Medusa e o lançamento do romance. Nascido

em 1828, Verne faz parte da geração seguinte e não sofreu os impactos emocionais do drama

que sensibilizou Théodore Géricault para representar picturalmente essa catástrofe. Mesmo

assim, algumas circunstâncias unem as duas histórias e podem ser salientadas.

Curiosamente, em correspondência a Jules Hetzel datada do 15 de fevereiro de 1871,

Jules Verne apresenta seu romance como um texto concorrente à catástrofe da Medusa: “Eu te

trarei um volume de um realismo assustador. É intitulado Os náufragos do Chancellor. Acho

que a Balsa da Medusa não produziu nada de tão terrível. Acho, sobretudo, que isso terá ares

verdadeiros a menos que eu esteja enganado.”101

Com o termo “náufragos” o foco é direcionado para o futuro dos personagens ao longo

de uma catástrofe marítima. Além disso, a importância dada à balsa, mais do que ao

naufrágio, sugere a referência ao mediador Théodore Géricault, pintor do quadro acima

referido. Para Michel Serres, este é um elemento de informação ao qual não podemos escapar:

101 “Je vous apporterai donc un volume d’un réalisme effrayant. C’est intitulé: Les Naufragés du Chancellor. Je crois que le Radeau de la Méduse n’a rien produit de si terrible. Je crois surtout que cela aura l’air vrai à moins que je ne me trompe.” DELLA RIVA; DEHS & DUMAS. 1999, p. 155.

56

“Radeau de la Méduse, 1816. Todo mundo conhece isso, ao menos através de Géricault.”102

Enfim, podemos falar também da presença de uma estrutura quiasmática nessa carta:

“realismo – assustador – terrível – ar verdadeiro” - que revela duas orientações estéticas do

escritor para esse romance: por um lado o realismo, por outro, o horror.

Ainda que não se revele nenhuma alusão a Géricault ou ao naufrágio da Medusa neste

romance, a não ser a alusão intertextual através do paratexto da correspondência mencionada

que indica que Verne conhecia o quadro e que mantinha essa imagem na cabeça ao escrever o

romance, a transposição da tragédia poderia ser considerada mais como um pressuposto. Os

dois exemplos que seguem, mostram que o narrador de Le Chancellor se inscreve numa

tradição, numa espécie de herança transmitida graças a relatórios ou diários de bordo.

Quando se trata dos efeitos da fome sobre os náufragos, o narrador, preparando-se para uma

eventual catástrofe, confirma a validade das observações nesse campo: “Les récits de

naufragés ont souvent constaté des faits qui concordent avec ceux que j’observe ici. En les

lisant, je les trouvais exagérés.”103 Sofrendo mais de sede do que de fome, o narrador é

convencido pelos testemunhos consultados: “Cela a toujours été dit des naufragés qui se sont

trouvés dans les circonstances où nous sommes et cela est vrai.”104

Também construído a partir do modelo de diário de bordo, o romance Le Chancellor

começa por uma série de catástrofes e termina por uma tragédia, como já salientamos. A

embarcação, que é incumbida de transportar uma carga de algodão de Charleston, nos Estados

Unidos, a Liverpool, na Grã Bretanha, leva o passageiro J.R. Kazallon, redator do diário

contando todos os problemas da viagem. Até o momento do naufrágio, Kazallon trata da

irresponsabilidade do capitão Silas Huntly, avatar de Chaumareys em Jules Verne, e sua

aparente loucura, que aumentam o perigo a bordo. A razão dessa inclinação à

irresponsabilidade é inscrita na fisionomia do personagem capitão, cujo retrato completo

102 “Radeau de la Méduse, 1816. Tout le monde connaît cela, au moins par Géricault.” SERRES, Michel. Jouvences sur Jules Verne. Paris: Minuit, 1974, p. 104. 103 VERNE, Jules. Le Chancellor. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975c, p. 130. 104 VERNE, 1975c, p. 179.

57

retomaremos mais adiante, como se o personagem fosse predestinado a uma maldição: “sa

tête est petite et par habitude un peu inclinée à gauche [...] son attitude est lourde et son corps

présente un certain affaisement. Il est nonchallant, et cela se voit à l’indécision de son

regard.”105 Já para o cozinheiro da embarcação, Jynxtrop, o único personagem negro do

romance, embora não tenha a descrição facial detalhada, o retrato é mais animalesco,

avançando, em certa medida, suas ações que tomarão forma ao longo do romance: “nègre de

mauvaise figure, à l’air brutal et impudent comme d’une bête féroce, qui se mêle aux autres

matelots plus qu’il ne convient.”106 O discurso velado nestas duas amostras de retratos

literários não seria suficiente para explorarmos a questão da construção cultural do rosto e do

corpo assinalada no início deste capítulo. No entanto, introduzem o diálogo intertextual e

interdiscursivo que podemos estabelecer com relatos de viagem veiculados pela revista Le

Tour du monde, onde se incluem gravuras, com os discursos de Lavater e Gall, e ainda com

aqueles de Gobineau e Darwin.

3.2- Das relações intertextuais com o magazine Le Tour du monde

Diversos são os estudos ou análises que mencionam (sem mostrar) a extensa pesquisa

que Jules Verne fez em obras científicas, ou para-científicas, a fim de escrever seus romances.

Através de estudos a respeito das ciências naturais, da geologia, da geografia, da geografia

descritiva e dos relatos de viagens, passando por atlas e revistas de vulgarização científica,

Jules Verne se documentou para cumprir com o contrato editorial com Hetzel, que lhe exigia

resumir o que a ciência da sua época fizera, transformando esse conhecimento em literatura

para jovens.

Trata-se, para nós, nesse item, de explorar uma parte desta lacuna deixada por diversos

estudiosos, tendo como objeto os retratos dos personagens dos romances do corpus que nos

propomos analisar e suas relações com a revista Le Tour du monde.

105 VERNE, 1975c, p. 3. 106 VERNE, 1975c, p. 58.

58

Publicada semestralmente sob a direção de Édouard Charton entre os anos de 1860 e

1914, esta revista, cujos números encontramos na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro, tinha por objetivo “dar a conhecer as viagens feitas naquele tempo, seja francesa ou

estrangeira, as mais dignas de confiança, e que oferecem maior interesse à imaginação, à

curiosidade ou ao estudo.”107

Sem ser destinada a uma classe especial de leitores, a revista se proclama variada,

assim como seu objeto que é “o espetáculo verdadeiro e animado da natureza e da vida

humana sobre toda a superfície da terra.”108 No que tange aos viajantes que terão publicados

seus feitos no magazine, “uns representam a ciência, outros a arte, outros ainda o comércio ou

a indústria, estes se expõem a mil perigos para propagar sua fé; aqueles são simplesmente

107 “Le Tour du monde a pour but de faire connaître les voyages de notre temps, soit français, soit étrangers, les plus dignes de confiance, et qui offrent le plus d’intérêt à l’imagination, à la curiosité ou à l’étude.” CHARTON, Édouard (dir.). Préface. Le Tour du monde. Paris: Hachette, Jan/Juin, 1860. 108 “[son objet] est le spectacle vrai et animé de la nature et de la vie humaine sur toute la surface de la Terre.” CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860. Cf. Anexo 1 o prefácio completo da revista.

59

observadores, moralistas, ou procuram somente emoções de uma vida errante e

aventureira”.109

Coadunando-se com o programa de difusão e de aproveitamento das técnicas de

ilustração desenvolvidas no século XIX, a revista declara a importância que dará às gravuras

que ilustrarão os relatos de viagens:

Parecerá natural que nossos esforços tendam a dar às gravuras do Tour du monde importância igual àquela do próprio texto. Se nas obras poéticas ou romanescas as gravuras são somente um ornamento, nos relatos de viagem elas são uma necessidade. Muitas coisas, sejam inanimadas ou animadas, escapam a qualquer descrição. As mais raras habilidades do estilo só conseguem comunicar à inteligência dos leitores um sentimento vago e fugidio. Mas quando o viajante deixa a pena, toma o lápis, tão logo, em alguns traços, faz surgir diante dos olhos a realidade que não se apagará mais da lembrança.110

Seguindo esses objetivos, a revista publicou o relato da viagem que o inglês Barth fez

ao centro do continente africano e o relato de descoberta da região lacustre da África Oriental

dos também ingleses Burton e Speke. Seguindo as alusões e citações nos textos de Jules

Verne, poderemos falar de relação intertextual, hipo e hipertexto (Genette), ou de

intertextualidade interna e externa (Maingueneau) com os relatos de viajantes publicados

nesta revista.

No romance Cinq semaines en ballon é nítido que o escritor se documentou a partir

das descobertas geográficas que lhe foram contemporâneas para escrever a história. Depois

de ser escolhido pela Sociedade Real Geográfica de Londres para empreender a viagem que

uniria o trajeto feito por Barth ao de Burton e Speke, o personagem do Doutor Samuel

Fergusson é comparado a um Édipo moderno, capaz de descobrir o enigma há muitos séculos

109 “Parmi les voyageurs, les uns représentent la science, les autres l’art, d’autres le commerce ou l’industrie; ceux-ci s’exposent à mille périls pour propager leur foi, ceux-là sont simplement des observateurs, des moralistes, ou ne cherchent que les émotions d’une existence errante et aventureuse”. CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860. 110 “Il paraîtra naturel que nos efforts tendent à donner aux gravures du Tour du monde une importance égale à celle du texte même. Si dans les oeuvres poétiques ou romanesques les gravures ne sont qu’un ornement, dans les relations de voyage elles sont une nécessité. Beaucoup de choses, soit inanimées, soit animées, échappent à toute description: les plus rares habiletés du style ne parviennent à communiquer à l’esprit des lecteurs qu’un sentiment vague et fugitif. Mais que le voyageur laisse la plume, saisisse le crayon, et aussitôt, en quelques traits, il fait apparaître aux yeux la réalité elle-même qui ne s’effacera plus du souvenir.” CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860.

60

indecifrável: as fontes do rio Nilo. Igualando essa viagem a uma quase irrealizável quimera, o

narrador resume as últimas notícias que se têm dos últimos viajantes que se aventuraram no

norte africano, publicadas no fictício jornal Daily Telegraph, onde se declarou o plano da

viagem de Samuel Fergusson:

Le docteur Barth, en suivant jusqu’au Soudan la route tracée par Denham et Clapperton; Le docteur Livingstone, en multipliant ses intrépides investigations depuis le Cap de Bonne-Espérance jusqu’au bassin du Zambèze; les capitaines Burton et Speke, par la découverte des Grands Lacs intérieurs, ont ouvert trois chemins à la civilisation moderne; leur point d’intersection, où nul voyageur n’a encore pu parvenir, est le coeur même de l’Afrique. C’est là que doivent tendre tous les efforts. Or, les travaux de ces hardis pionniers de la science vont être renoués par l’audacieuse tentative du docteur Fergusson, dont nos lecteurs ont souvent apprécié les belles explorations. Notre intrépide découvreur (discoverer) se propose de traverser en ballon toute l’Afrique de l’est à l’ouest. Si nous sommes bien informés, le point de départ de ce surprenant voyage serait l’île de Zanzibar sur la côte orientale. Quant au point d’arrivée, à la Providence seule il est réservé de le connaître.111

O capitulo IV do mesmo romance é reservado a um resumo mais detalhado das

viagens destes exploradores: datas, ponto de partida, direção seguida, número de viajantes,

dados geográficos das regiões exploradas, paradas e retomadas da viagem etc. Temos, no caso

de Burton e Speke, o início deste resumo:

Enfin, en 1857, les lieutenants Burton et Speke, tous deux officiers à l’armée du Bengale, furent envoyés par la Société Royale Géographique de Londres pour explorer la région des Grands Lacs africains; le 17 juin, ils quittèrent Zanzibar et s’enfoncèrent directement dans l’ouest.112

Além da alusão aos nomes dos viajantes indicarem o que Maingueneau nomeia por

intertextualidade externa, já que se dá entre discursos de campos distintos, podemos falar de

interdiscursividade, isto é, do diálogo do discurso literário com o discurso científico

(geográfico descritivo). Porém, tentaremos mostrar que as relações entre os textos da revista e

do romance ultrapassam o quadro de uma simples coincidência e que, devido ao grande

sucesso da revista, o escritor Jules Verne efetuou leituras nesse magazine a fim de se

documentar sobre o que era corrente na sua época para criar seus romances.

111 VERNE, 1975a, p. 7. 112 VERNE, 1975a, p. 19.

61

Na página 305 da revista Le Tour du monde do segundo semestre de 1860, temos o

início da publicação do relato da viagem de Burton. No avant-propos, vemos definidos os

objetivos da expedição:

Mesmo que a existência de grandes lagos equatoriais na África tivesse sido conjecturada há dois mil anos, o reverendo Erhardt e o doutor Rebmann direcionaram a atenção dos geógrafos para a parte leste da África [...] aliás, o problema sempre corrente das fontes do Nilo e das neves do Kilimandjaro se ligavam à verificação do relatório dos reverendos. Uma expedição foi então decidida. Em 1856, a Sociedade Real Geográfica de Londres confiou ao capitão Burton a missão de chegar aos Grandes Lagos interiores, de determinar sua posição, de descrever a região situada entre a costa e os vastos lençóis d’água, de estudar a etnografia e os recursos comerciais. O capitão, não escondendo as dificuldades da empreitada, pediu que a ele se juntasse o capitão Speke, oficial do exército de Bengala. [...] No 17 de junho de 1857, eles deixaram o porto de Zanzibar. Eis aqui o relato do capitão.113

Vemos neste exemplo, que podemos falar de um possível diálogo intertextual, na

concepção genetiana de hipertextualidade, do texto de Verne com a viagem dos capitães

Burton e Speke pelo norte da África, relatada no magazine Le Tour du monde. O hipotexto

seria o texto da revista e, aquele do romance, o hipertexto. A modalidade em que os elementos

são retomados/aludidos no texto de Verne, como o nome da sociedade geográfica, a

preocupação em descobrir as fontes do rio Nilo, as datas e o ponto de partida dos viajantes,

entre outros, nos asseguram esta relação.

Entre os diversos exemplos que poderíamos evocar para ilustrar a intertextualidade no

mesmo romance, vemos outro semelhante ao descrito acima. Nos preparativos para a partida

do balão, em Zanzibar, o narrador menciona que os povos habitantes desse local têm o sol e a

lua como objetos astrais de veneração. Achando que os personagens europeus que preparavam

sua viagem para os céus intentavam hostilmente contra suas crenças religiosas, os africanos

113 Bien que l’existence de grands lacs équatoriaux en Afrique eût été soupçonnée depuis deux mille ans, le révérend Erhardt et le docteur Rebmann reportèrent l’attention des géographes sur la partie est de l’Afrique. [...] D’ailleurs le problème toujours pendant des sources du Nil et des neiges du Kilimandjaro se rattachaient à la vérification du rapport des révérends. Une expédition fut donc résolue. En 1856, la Société Royale Géographique de Londres confia au capitaine Burton la mission d’atteindre les Grands Lacs intérieurs, d’en relever la position, de décrire le pays situé entre la côte et les vastes nappes d’eau, d’en étudier l’ethnographie et les ressources commerciales. Le capitaine, ne se dissimulant pas les difficultés de l’entreprise, demanda qu’on lui adjoignit le capitaine Speke, officier de l’armée du Bengale. [...] Le 17 juin 1857, ils quittèrent le port de Zanzibar. Voici le récit du capitaine. CHARTON, Édouard. Le Tour du monde. Paris: Hachette, Jui/Déc 1860, p. 305-306.

62

habitantes da região, a fim de manifestar sua cólera, gritavam, faziam caretas e contorções e

entoavam encantamentos para impedir a partida dos exploradores: “Alors les sortilèges et les

incantations commencèrent; les faiseurs de pluie, qui prétendent commander aux nuages,

appelèrent les ouragans et les ‘averses de pierres’, (nom que les nègres donnent à la grêle) à

leur secours.”114 Nas páginas da revista Le Tour du monde, lemos no relato de Speke que,

depois de um desentendimento com os escravos na região de Kazeh, uma chuva, a que os

habitantes chamavam de “averse de pierres”, impediu que eles seguissem viagem:

Os escravos, por sua vez, estabeleceram suas pretensões; Ben Sélin et Kigodo interferiram; competiam para ver quem se mostraria o mais ávido e o menos submisso. Reuni os árabes para discutir com eles; com a questão resolvida, aconselharam-me aguardar um tempo. Naquele instante, a chuva começou com torrentes de água e uma ‘chuva de pedras’, é assim que o granizo é chamado nessa região. Todos os nossos homens ficaram doentes; eu mesmo estava mais morto do que vivo e não sabia mais quando poderíamos ir embora.115

Ainda seguindo os rastros dos viajantes no âmbito das explorações das terras

africanas, os personagens ingleses, guiados pelo doutor Samuel Fergusson, visitam cidades,

povos, dando margem para que o narrador faça descrições etnográficas.

Na região de Kazeh, descrita no capítulo XV de Cinq semaines en ballon, os

personagens fazem uma parada na cidade de Unyamwezy, também chamada de Terra da Lua,

para estabelecer relações comerciais com os Uanyamwezy. Cabe-nos destacar uma

curiosidade hipertextual a respeito dos nomes usados e das diferenças entre Unyamwesy e

Uanyamwesy. Quando os personagens passam pela região de Uzaramo, o narrador explica

brevemente, em nota em pé de página, que U ou OU são prefixos e significam ‘região’ na

língua do país: “U, OU, ces préfixes signifient contrée dans la langue du pays.”116

114 VERNE, 1975a, p. 51. 115 “Les esclaves, à leur tour établirent leurs prétensions; Ben Sélin et Kidogo s’en mêlèrent; c’était à qui se montrerait le plus avide et le moins soumis. Je réunis les arabes pour en conférer avec eux; l’affaire entendue, on me conseilla de temporiser. Sur ces entrefaites, la pluie débuta par des torrents d’eau et une averse de pierres, c’est ainsi que la grêle est nommée dans cette région. Tous nos hommes tombèrent malade; j’étais moi-même plus mort que vif, et ne savais plus quand nous pourrions nous en aller.” CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 327. 116 VERNE, 1975a, p. 58.

63

Burton, no relato publicado em Le Tour du monde faz exatamente a mesma

observação, usando o mesmo exemplo e a mesma modalidade de explicação: a nota em pé de

página.117

Sob a sombra de uma vegetação luxuriante, atravessando em ritmo de procissão, os

personagens chegam ao palácio do sultão, na referida região de Kazeh, e são recebidos na

porta pelos guardas, homens da cidade que chamaram a atenção do doutor Fergusson. Isso é

pretexto para o narrador fazer o retrato de um tipo Uanyamwezy, cuja descrição está arrolada

no item 4.2 desta dissertação, p.127.

No relato do viajante Burton publicado na revista Le Tour du monde, vemos o seguinte

texto:

Entre as tribos que ocupam a Terra da Lua, somente duas merecem receber atenção: os Ouakimbou e os Ouanyamwezy. [...] Os Ouanyamwezy, proprietários do solo, laboriosos e ativos, têm sobre seus vizinhos uma superioridade real e formam o tipo de habitantes dessa região. Sua pele, de um castanho sépia escuro, tem eflúvios que estabelecem parentalidade com o negro; eles têm os cabelos crespos e os dividem em numerosos cachos que fazem cair ao redor da cabeça; sua barba é curta e rala, e a maioria deles tira os cílios. De altura elevada, são bem constituídos e seus membros anunciam o vigor. Sua marca nacional consiste numa dupla lista de cicatrizes lineares, indo da borda extrema das sobrancelhas até o meio das bochechas que, às vezes, descem até o maxilar inferior. Esta tatuagem é feita em preto nos homens e em azul nas mulheres; Homens e mulheres distendem as orelhas pelo peso de objetos redondos que eles colocam aí. Quanto às roupas, os ricos têm vestimentas de tecido, outros são cobertos de peles. As mulheres às quais o dinheiro permite, usam a longa túnica da costa, mais frequentemente amarrada à cintura; aquelas de classes pobres têm sobre o seio um peitilho de couro amaciado, e suas saias, igualmente de couro, vão à altura do joelho; para as mais jovens, o seio é sempre descoberto.118

117 “Dans la langue des tribus de la côte de Zanguebar, et dans les idiomes qui s’y rattachent, le nom éveillant une idée première ne s’emploie qu’avec un préfixe qui en modifie l’acception: U signifie région, contrée: Uzaramo, région de Zaramo; M indique l’individu: Mzaramo, un habitant de Ouzaramo. Pour former le pluriel, l’ M est remplacé par OUA qui signifie peuple: Ouazaramo, tribu du Zaramo.” CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 307. 118“Parmi les tribus qui occupent la Terre de la Lune deux seulement méritent de fixer l’attention: les Ouakimbou et les Ouanyamwezy. [...] Les Ouanyamwezy, propriétaires du sol, industrieux et actifs, ont sur leurs voisins une supériorité réelle et forment les types des habitants de cette région. Leur peau, d’un brun sépia foncé, a des effluves qui établissent leur parenté avec le nègre; ils ont des cheveaux crêpus, les divisent en nombreaux tire-bouchons, et les font retomber autour de la tête. Leur barbe est courte et rare, et la plupart d’entre eux s’arrachent les cils. D’une taille élevée, ils sont bien faits et leur membre annoncent la vigueur. Leur marque nationnale consiste en une double rangée de cicatrices linéaires, allant du bord externe des sourcils jusqu’au milieu des joues, et qui parfois descendent jusqu’à la mâchoire inférieure. Ce tatouage est fait en noir chez les hommes, en bleue chez les femmes; Hommes et femmes se distendent les oreilles par les poids des objets ronds qu’ils y insèrent. Quant au costume, les riches ont des vêtements d’étoffe, les autres sont couverts de pelleteries. Les femmes à qui leur fortune le permet, portent la longue tunique de la côte, le plus souvent attachée à la taille; celles des classes pauvres ont sur la poitrine un plastron de cuir assoupli, et leur jupe, également en cuir, s’arrête

64

Apresentamos os dados do relato de viagem do capitão Burton como sendo

hipotextuais para o retrato literário do africano Uanyamwezy. Aqui, mais uma vez, tratamos

do conceito de transtextualidade trazido por Genette já que, na sua concepção, esta noção

alcança tudo o que coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos. São

diversos os pontos que podem ter servido de fonte ao escritor. Este se apropriou de alguns

detalhes do texto da revista, como da altura dos indígenas, das especificidades concernentes às

tatuagens faciais e dos acessórios que usam nas orelhas, reconfigurando-os ao gosto do gênero

romanesco e contextualizando-o ao seu romance.

Visto a importância que a revista dava às gravuras, como descrito no seu prefácio e

salientado acima, poderíamos deslocar, sem maiores perdas de sentido, as gravuras que

ilustram o retrato dos Ouanyamwezy para as páginas do romance Cinq semaines en ballon,

reforçando a ideia de intertextualidade:

au-dessus du genou; chez les jeunes filles la poitrine est toujours découverte.” CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 331.

65

Indígena de Ounyamuézi – Desenho de Émile Bayard.

Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 332.

Batedores de sorgo, no Ounyamouézi – Desenho de Émile Bayard.

Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 332.

66

Mulheres do Ounyamouézi pilando o sorgo – Desenho de Émile Bayard.

Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 333.

Além da relação intertextual ou hipertextual na concepção de Genette, e da possível

transposição das gravuras dos relatos para o romance, também poderíamos falar da

importância das imagens dos relatos para a descrição que Jules Verne faz dos Ouanyamwezi.

Ora, no relato de Burton, não temos a descrição das armas que os africanos usam. No entanto,

arco e flecha aparecem em uma gravura da revista e na descrição de Jules Verne. Aqui as

relações de transformação transtextual se dão em outro nível: da gravura para o texto.

67

Habitantes do Ounyamouézi – Desenho de Émile Bayard.

Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, [s.p.]

Entrando no palácio do sultão local, o doutor Fergusson é recebido por um grupo de

mulheres Ouanyamwezy “aux accords harmonieux de ‘l’upatu’, sorte de cymbale faite avec le

fond d’un pot de cuivre, et aux fracas du “kilindo”, tambour de cinq pieds de haut creusé dans

un tronc d’arbre, et contre lequel deux virtuoses s’escrimaient à coups de poing”. Um retrato

de grupo é apresentado em seguida: “La plupart de ces femmes paraissaient fort jolies, et

fumaient en riant le tabac et le thang dans de grandes pipes noires; elles semblaient bien faites

et portaient un ‘kilt’ en fibres de calebasse, fixe autour de leur ceinture.”119

Este retrato também poderia ser ilustrado no romance com a mesma gravura usada no

relato de Burton, de onde Verne também teria resgatado o hipotexto abaixo:

Todas as mulheres do lugarejo, da mais velha à jovem de doze anos, sentam-se em roda e pegam seus grandes cachimbos de fornilho negro; elas parecem extrair dele profundos prazeres; a fumaça que elas aspiram lentamente, se exala de suas narinas; de vez em quando elas refrescam a

119 VERNE, 1975a, p. 80

68

boca com fatias de mandioca ou uma espiga de milho verde cozida na brasa.”120

Jovens senhoras em Kazeh – Desenho de Gustave Boulanger d’après Burton.

Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, [s.p.]

Continuando a aventura na região de Kazeh, em Ounyamwezy, Joe, ajudante do

doutor Fergusson, o aguardava do lado de fora do palácio onde era tido como uma divindade

pelos habitantes do lugar. Todos acreditavam que ele era um Filho da Lua e, portanto,

precisavam adorá-lo. Assim, Joe foi o responsável por uma grande algazarra comparada a

uma festa:

Joe, pendant son absence, attendait tranquillement au bas de l’échelle; la foule lui rendait les plus grands devoirs. En véritable Fils de la Lune, il se laissait faire. Pour une divinité, il avait l’air d’un assez brave homme, pas fier, familier même avec les jeunes africaines, qui ne se lassaient pas de le contempler. Il leur tenait d’ailleurs d’aimables discours. “Adorez, Mesdemoiselles, adorez, leur disait-il; je suis un bon diable, quoique fils de déesse!” [...] Et puis, les jeunes filles, confondant leurs voix dans une mélopée traînante, exécutèrent une danse grave autour de lui. “Ah, vous dansez, dit-il, eh bien! Je ne serai pas en reste avec vous, et je

120 “Toutes les femmes du village, depuis l’aïeule jusqu’à la jeune fille de douze ans, s’asseyent en rond et prennent leurs grandes pipes à foyer noir; elles paraissent y puiser de profondes juissances; la fumée qu’elles aspirent lentement s’exhale de leurs narines; de temps à autre elles se refraichissent la bouche avec des tranches de manioc, ou un épi de maïs vert, cuit sous la cendre.” CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 327.

69

vais vous montrer une danse de mon pays.” Et il entama une gigue étourdissante, se contournant, se détirant, se déjetant, dansant des pieds, dansant des genoux, dansant des mains, se développant en contorsions extravagantes, en poses incroyables, en grimaces impossibles, donnant ainsi à ces populations une étrange idée de la manière dont les dieux dansent dans la Lune. Or, tous ces Africains, imitateurs comme des singes, eurent bientôt fait de réproduire ses manières, ses gambades, ses trémoussements, ils ne perdaient pas un geste, ils n’oubliaient pas une attitude; ce fut alors un tohu-bohu, un remuement, une agitation, dont il est difficile de donner une idée même faible. Au plus beau de la fête, Joe aperçu le docteur.121

A cena descrita acima poderia ser ilustrada por uma gravura do relato dos capitães

Speke e Grant em expedição ao norte africano, em busca das nascentes do Nilo. Esta gravura,

que foi publicada em Le Tour du monde no primeiro semestre de 1862, representa a recepção

do Capitão Grant pela rainha Ukulina e, embora não tenha uma descrição a ela conjugada,

mostra semelhanças com o texto verniano evocados pela algazarra dos habitantes comparada

a uma festa e da relação de contato entre o branco inglês e o negro africano, representado, no

canto esquerdo inferior da imagem, pelo capitão Grant e a rainha local.

Um baile em Ukulina. O capitão Grant dançando com a rainha. Desenho de Fucns.

Le Tour du monde, Jan/Juin 1862, [s.p.]

121 VERNE, 1975a, p. 82.

70

Além da relação de semelhança da cena descrita por Verne no romance Cinq semaines

en ballon com a gravura da revista, podemos também falar da apropriação que o escritor faz,

mais uma vez, do que lhe era contemporâneo para criar seus romances. O Grant que aparece

na gravura, capitão inglês que fizera uma expedição ao norte da África, entre os anos de 1860

e 1863 na companhia de Speke, tem seu nome e sua nacionalidade transpostos para o romance

Les enfants du capitaine Grant, de 1867. O nome real do viajante, contemporâneo a Jules

Verne, trazido inclusive pela informação paratextual do título do romance, não só auxilia na

construção da verossimilhança, mas também ajuda na criação de um pacto de credibilidade do

texto junto aos leitores.

A trama de Les enfants du capitaine Grant é baseada num criptograma cuja

interpretação, na aventura, é achar um pai, o Capitão Grant. Para que isso seja realizado, os

diferentes personagens viajarão em torno do globo terrestre a bordo do navio Duncan.

Partindo da costa oeste da Inglaterra, cruzando o Oceano Atlântico em direção à América do

Sul, em seguida, passando pelo extremo sul africano com o objetivo de chegarem à Oceania,

e, por fim, navegando sobre os mares do Oceano Pacífico para desembocarem na Nova

Zelândia, os personagens de Jules Verne incitam os leitores a conceber, geograficamente, esta

“viagem extraordinária”. Num contexto em que as descrições topográficas são

importantíssimas, as descrições prosopográficas buscam caracterizar os povos que habitam os

lugares explorados pelos personagens vernianos, como por exemplo, os índios habitantes da

Patagônia e os aborígines australianos. Para a construção dos retratos literários destes

personagens também podemos falar em diálogo intertextual com a revista Le Tour du monde.

Certos de que encontrariam o Capitão Grant nos arredores da Patagônia, depois de

uma suposta compreensão do criptograma, os personagens para lá navegaram e se depararam

com uma terra rica em água doce, de rios abundantes em peixes, de florestas ricas em animais

de caça, mas sem patagão: “-Une Patagonie sans Patagons, dit le géographe, ce n’est plus une

71

Patagonie.”122 Essa afirmação serviu como justificativa para que os personagens fizessem

elucubrações de como seriam esses indígenas, e através de um diálogo, deixar transparecer a

ideia que faziam desses povos ainda pouco conhecidos. Ideias que se baseiam naquelas

existentes desde os séculos anteriores, discursos de autoridade que fazem do índio patagão, de

modo geral, um homem grande, forte, robusto, bom e servil:

Enfin, ce nom de Patagons, qui signifie “grands pieds” en espagnol, n’a pas été donné à des êtres imaginaires.[...] Si Magellan a nommé Patagons les indigènes de ces contrées, les Fuégiens les appellent Tiremenen, les Chilliens Caucalhues, les colons du Carmen Tehuelches, les Araucans Huiliches; Bougainville leur donne le nom de Chaoua, Falkner celui de Tehuelhets! Eux-mêmes se désignent sous la dénomination de Inaken. - Mais notre ami Paganel avouera, je pense, que s’il y a doute sur le nom des patagons, il y a au moins certitude sur leur taille! - Jamais je n’avouerai une pareille énormité, répondit Paganel. - Ils sont grands, dit Glenarvan. - Je l’ignore. - Petits? demanda lady Helena. - Personne ne peut l’affirmer. - Moyens, alors? dit Mac-Nabbs pour tout concilier. - Je ne le sais pas davantage. - Cela est un peu fort, s’écria Glenarvan; les voyageurs qui les ont vus... - Les voyageurs qui les ont vus, répondit le géographe, ne s’entendent en aucune façon. Magellan dit que sa taille touchait à peine à leur ceinture! - Eh bien! - Oui, mais Drake prétend que les Anglais sont plus grands que le plus grand Patagon! - Oh des Anglais; c’est possible répliqua dédaigneusement le major; mais s’il s’agissait des Écossais. - Cavendish assure qu’ils sont grands et robustes, reprit Paganel. Hawkins en fait des géants. Lemaire et Shouten leur donne onze pieds de haut. - Bon, voilà des gens dignes de foi, dit Glenarvan. - Oui, tout autant que Wood, Narborough et Falkner, qui leur ont trouvé une taille moyenne. Il est vrai que Byron, la Giraudais, Bougainville, Wallys et Cateret affirment que les Patagons ont six pieds six pouces, tandis que M. d’Orbigny, le savant qui connaît mieux ces contrées, leur attribue une taille moyenne de cinq pieds quatre pouces. - Mais alors, dit lady Helena, quelle est la vérité au milieu de tant de contradictions? - La vérité, madame, répondit Paganel, la voici: c’est que les Patagons ont les jambes courtes et le tronc développé. On peut donc formuler son opinion d’une manière plaisante, en disant que ces gens-là ont six pieds quand ils sont assis, et cinq seulement quand ils sont debout. - Bravo! mon cher savant, répondit Paganel. Voilà qui est bien dit!123

Para uma melhor visualização das informações sobre a altura dos patagões acima

descritas, resumimos e organizamos no quadro abaixo, o nome do viajante seguido da data de

122 VERNE, 1975b, p. 55. 123 VERNE, 1975b, p. 55-56.

72

sua expedição, segundo informações do próprio romance (salvo para Wood, Narborough e

Falkner que não têm a menção da data de suas viagens no romance), e a altura que estes

viajantes atribuíram aos patagões (transformadas para a métrica que nos é conhecida):

Magalhães (1520)

“Sua cabeça mal tocava a cintura do patagão”

Cavendish (1592)

“Grandes e robustos”

Hawkins (1593)

“Gigantes”

Lemaire e Shouten (1615)

“Onze pés” (3,30 m)

Wood, Naborough e Falkner (?)

“Altura média”

Byron, La Giraudais, Wallis, Bougainville e Cateret

(1764-1766)

“Seis pés e seis polegadas” (1,95m)

Alcide d’Orbigny (1833)

“Cinco pés e quatro polegadas” (1,60m)

O relato de M. V. de Rochas, cirurgião da marinha imperial francesa e explorador, que

conta sua viagem ao Estreito de Magalhães, será considerado como hipotexto para o texto de

Verne. Publicado na revista Le Tour du monde a partir do primeiro semestre de 1861, o relato

apresenta, em nota de pé de página, dados sobre a dúvida que se tinha em relação à altura dos

patagões e resume, em certa medida, o que alguns outros viajantes haviam dito sobre o mítico

assunto:

Os companheiros de Magalhães fizeram, na sua volta, relatos fabulosos sobre o estreito que eles tinham descoberto e percorrido através de inúmeros perigos. Navegadores muito mais modernos, como o comodoro Byron e o capitão Cateret, ainda exageram muito a altura dos patagões. Os oficiais franceses da embarcação real Giraudais que visitou o Estreito de Magalhães aproximadamente na mesma época, ou seja, no início do século XVIII, admiraram gigantes de mais de sete pés!124

124 “Les compagnons de Magellan firent, à leur retour, des récits fabuleux sur le détroit qu’ils avaient découvert et parcouru à travers des périls sans nombre. Des navigateurs beaucoup plus modernes, comme le commodore Byron et le Capitaine Cateret, exagèrent singulièrement encore la taille de Patagons. Les officiers français de la flûte royale Giraudais, qui visita le Détroit de Magellan à peu près la même époque, c’est-à-dire au commencement du dix-huitième siècle, ont admiré des géants de plus de sept pieds!” CHARTON, Édouard. Le Tour du monde. Jan/Jui 1861, p. 210.

73

No capítulo do relato de Rochas intitulado “Climatologie du Détroit de Magellan – La

véritable taille des Patagons” temos incorporadas as impressões do célebre explorador francês

Alcide d’Orbigny (1802-1857) sobre esse povo:

Essa palavra “Patagões” que aparece aqui e que, como já o disse, significa pés grandes, lembra-me as duas novas amostras dessa raça que vi na minha segunda passagem por Punta-Arena. [...] Sua altura não tinha nada de extraordinário. Tal é também a opinião de M. d’Orbigny ao resumir em algumas linhas as seguintes observações que reduzem, ao seu justo valor, os exageros tão desastradamente difundidos e benevolamente aceitos até estes últimos tempos: “Para mim, diz ele, depois de ter visto por sete meses seguidos muitos patagões de diferentes tribos e de ter medido um grande número deles, eu posso afirmar que o maior de todos só tinha cinco pés e onze polegadas na métrica francesa, enquanto sua altura média não estava abaixo de cinco pés e quatro polegadas, o que é, sem contradizer, uma bela altura, porém não mais elevada do que aquela de alguns habitantes de alguns de nossos departamentos. O que distingue, sobretudo, os patagões dos outros americanos e dos europeus, são os ombros largos, um corpo robusto, membros bem definidos, formas massivas e completamente hercúleas. Sua cabeça é grande, sua face larga e quadrada, as maçãs do rosto um pouco salientes, os olhos horizontais e pequenos.”125

O relato de V. de Rochas que retoma a opinião de outros viajantes sobre a altura dos

patagões nos permite falar de relações intertextuais ou na concepção de Genette, de relações

hipertextuais. O relato da revista (hipotexto) assim como o hipertexto em Les enfants du

capitaine Grant aludem, nestas elucubrações que ajudam a compor o retrato de um índio

patagão, a impressões que outros viajantes tiveram desse povo. Na esteira dessas

elucubrações, encontramos uma gravura que ilustrou a viagem de Bougainville, realizada

entre os anos de 1766 e 1769, à Patagônia. Podemos perceber na imagem a ideia que se fazia

da altura desses índios visto a diferença de proporção no tamanho entre o viajante e o patagão:

125 “Ce mot Patagons qui revient ici et qui, comme je l’ai dit, signifie grands pieds, me rapelle les deux nouveaux échantillons de cette race que j’ai vus à mon second passage à Punta-Arena. [...] Leur taille n’avait rien d’extraordinaire. Telle est aussi l’opinion de M. d’Orbigny, lequel a résumé dans les lignes suivantes des observations qui réduisent à leur juste valeur les exagérations si malencontreusement répandues et si bénévolement acceptées jusqu’à ces derniers temps: “Pour moi, dit-il, après avoir vu sept mois de suite beaucoup de Patagons de différentes tribus et en avoir mesuré un grand nombre, je puis affirmer que le plus grand de tous n’avait que cinq pieds onze pouces métriques français, tandis que leur taille moyenne n’était pas au-dessous de cinq pieds quatre pouces, ce qui est sans contredit, une belle taille, mais pas plus élevée que celle des habitants de quelques-uns de nos départements. Ce qui distingue surtout les Patagons des autres Américains et des Européens, ce sont des épaules larges, un corps robuste, des membres bien nourris, des formes massives et tout à fait herculéennes. Leur tête est grosse, leur face large et carrée, leurs pommettes un peu saillantes, leurs yeux horizontaux et petits.” CHARTON, Jan/Jui 1861, p. 234.

74

Patagões – Gravura anônima – Viagem de Bougainville (1766-1769)126

No entanto, para o romance, as elucubrações feitas pelos personagens sobre o

gigantismo dos patagões são apagadas quando, de fato, eles vêem um desses indígenas.

Adentrando as terras ainda pouco conhecidas do 37° paralelo, o jovem personagem Robert

Grant, que terá seu heroísmo reconhecido no fim da história, é raptado por um condor gigante

que o carregaria em direção aos Andes, deixando os outros personagens transtornados. Mas

“um tiro de fusil da providência” o salva para a felicidade de todos. É nesta passagem que os

personagens se deparam com a figura do Patagão (Ver bloco descritivo no item 4.3 desta

dissertação, p.143).

A partir desta descrição, podemos afirmar que o retrato é constituído para o leitor em

dois tempos, pois há uma primeira ideia dos personagens sobre como é o patagão, vista

anteriormente no diálogo, que se contrapõe a uma segunda impressão dada nesta descrição. O

mesmo acontece no relato de viagem de V. Rochas. Depois de ter aludido aos nomes, às

descobertas e às impressões de outros viajantes, traz seu ponto de vista e contribui com seu

126 DUVIOLS, Jean Paul. L’Amérique espagnole vue et rêvée. Les livres de voyages de Christophe Colombe à Bougainville. Paris: Promodis, 1985, p. 65.

75

relato para a construção do retrato dos patagões vistos na região de Punta-Arena:

Mal desembarquei, vi de fato uma cavalgada indiana composta por dois homens e três mulheres. Homens e mulheres estavam cobertos de pele de guanaco, com a cabeça nua, os cabelos flutuando, e trazendo no braço direito um lazzo. Traziam na garupa partes de guanaco e de vicunha. [...] Como homem bem educado, ele desceu e me ofereceu sua montagem para percorrer a pequena distância que nos separava do mar. Examinando ao meu lado o cavaleiro que se tornou pedestre, um fenômeno singular me impressionou; não parecia mais que eu tinha relação com o mesmo homem; há um tempo atrás eu me relacionava a um quase gigante e agora eu tinha ao meu lado um homem de boa altura, sem dúvida, mas que não me era possível julgá-lo com mais de um metro e oitenta centímetros. A explicação não foi muito difícil de encontrar e ela se aplica aos seis ou sete pagagões machos e fêmeas que eu pude ver sentado ou de pé. O tronco dessas pessoas é bem desenvolvido relativamente às pernas, de forma que sua altura pareça bem diferente se os considerarmos de pé ou sentados. Não falarei mais sobre os patagões, reservando para mais tarde o cuidado de esboçar seu retrato físico e moral. 127

Acompanhando as páginas do diário de viagem de V. de Rochas temos uma

complementação do retrato do patagão. Porém, é interessante ressaltar que, além de

encontrarmos outros dados intertextuais em relação ao texto literário de Verne, o episódio que

precede a descrição que V. de Rochas faz do patagão evoca a viagem de John Byron às

mesmas regiões cujo relato teve como frontispício a seguinte imagem:

127 À peine débarqué, je vis en effet apparaître une cavalcade indienne composée de deux hommes et trois femmes. Hommes et femmes étaient couverts d’une peau de guanaco, la tête nue, les cheveaux flottants et portant dans le bras droit un lazzo. Ils portaient en croupe des quartiers de guanaco et de vigogne. [...] En homme bien élevé il mit pied à terre et m’offrit sa monture pour parcourir la petite distance qui nous séparait de la mer. En examinant à côté de moi le cavalier devenu piéton, un phénomène singulier me frappa; il ne me semblait plus avoir affaire au même homme; tout à l’heure j’avais affaire à un quasi géant et maintenant j’avais à côté de moi un homme de belle taille sans doute, mais qu’il ne m’était pas possible d’évaluer à plus d’un mètre quatre-vingts centimètres. L’explication ne fut pas très difficile à trouver et elle s’applique aux six ou sept Patagons mâles et femelles que j’ai pu voir debout ou assis. Je ne parlerai pas davantage des Patagons pour le moment, réservant à plus tard le soin d’esquisser leur portrait physique et moral. CHARTON, Jan/Jui 1861, p. 213-214.

76

Um marinheiro apresentando a uma mulher patagã um pedaço de biscoito para seu filho.

Gravura anônima – Viagem de Byron 1767.128

A gravura é o frontispício da tradução francesa da viagem de John Byron ao redor do

mundo publicada, em 1767. Nela observamos, não só as diferenças de altura entre o europeu e

o índio patagão (como na imagem que ilustra a viagem de Bougainville), mas também o gesto

de um marinheiro oferecendo um biscoito à mulher que carrega uma criança no colo. A alusão

ao biscoito na gravura, responsável por criar a imagem de um patagão cordato e servil, assim

como é o patagão Thalcave no romance, é retomada textualmente no relato de V. de Rochas:

128 DUVIOLS, 1985, p. 384.

77

A piroga aproximou-se da beira, um gaiato, que parecia ser o chefe, levantou-se e, ostentando toda a extensão da sua gama, nos dirigiu uma tirada de palavras. Convidamo-os a subir com um sinal, reforçando o convite com a apresentação de um biscoito segurado à distância. Agarrando, então, como um pacote inerte, o garoto que a mãe segurava no colo, apresentava-nos os braços apoiando seu gesto num discurso caloroso como se ele tivesse perfeitamente certo de estar sendo compreendido por nós. Como ninguém estendia os braços para pegá-lo no colo, ele os redirecionou a sua mãe. [...] Nossos hóspedes eram pessoas de boa saúde, pelo menos em aparência, mais gordos que musculosos, de rosto largo, cabeça grande e quadrada de formas espessas, de altura simples, ou seja, de um metro e sessenta e cinco a um metro e setenta e cinco. Tinham a pele morena, cabelos negros e lisos, pouca ou nenhuma barba, sobrancelhas raras, olhos pequenos e negros, nariz achatado e profundamente enfiado entre as órbitas, as maçãs do rosto salientes, de boca mediana, testa pequena e fisionomia inteligente.129

Os traços do que pode ter servido de hipotexto a Jules Verne para a criação do retrato

do personagem patagão são diversos, desde a discussão sobre sua altura, à retomada dos

discursos de outros viajantes, passando pelos detalhes do tecido de suas roupas e da textura

dos cabelos desses indígenas.

Essas aproximações que podemos fazer entre os textos são reforçadas ainda por um

último dado em comum entre o texto do relato de viagem e o literário: em ambos os textos a

fisionomia do patagão indica inteligência. A característica de conjugar um traço físico facial a

um moral ou comportamental é matéria corrente no século XIX e, como já indicamos no

capítulo anterior, trata-se de ideias provindas da fisiognomonia e da frenologia, desenvolvidas

cientificamente no final do século XVIII e no início do século XIX, quando ganharam estatuto

de ciência.

Nesse item, utilizando os conceitos genetianos de relações transtextuais e os conceitos

de intertexto e interdiscurso sintetizados por Maingueneau e Charaudeau, mostramos como

129 “La pirogue accosta le bord; un gaillard qui paraissait être le chef se leva, et déployant toute l’étendue de sa gamme, nous lança un flux de paroles. On l’invita par signes à monter, en renforçant l’invitation de la présentation d’une galette de biscuit tenue à distance. Saisissant alors comme un paquet inerte, le môme que la mère tenait sur son sein, il nous le présenta à bout de bras en appuyant son geste d’un discours chaleureux comme s’il avait été parfaitement sûr d’être compris de nous. Comme nul ne tendait le bras pour recevoir l’enfant, il le remit à sa mère. [...] Nos hôtes étaient des gens fort bien portants, en apparence du moins, plutôt gras que fortement musclés, à large carrure, à grosse tête carrée, à formes épaisses, de taille ordinaire, c’est-à-dire d’un mètre soixante-cinq à un mètre soixante-quinze centimètres. Ils avaient la peau brune, les cheveux noirs et raides, peu ou point de barbe, des sourcils rares, des yeux petits et noirs, le nez épaté et profondément enfoncé entre les orbites, les pomettes saillantes, la bouche moyenne, le front petit, la physionomie intelligente.” CHARTON, Jan/Jui 1861, p. 223.

78

Jules Verne utiliza os discursos científico e histórico veiculados na revista Le Tour du monde

como uma das fontes primárias para compor seus romances e, mais particularmente, os

retratos dos personagens. No próximo item, discutiremos a existência de uma relação

interdiscursiva entre o científico e o literário, isto é, entre os discursos de Lavater e Gall e

aquele de Jules Verne, tomando para exemplo os retratos dos personagens dos romances a que

nos propomos estudar.

3.3- Das relações interdiscurdivas com as teorias de Lavater e Gall

No ensaio antropológico Des visages, David Le Breton observa que, no homem, o

rosto é o traço que lhe dá singularidade e, seu corpo, como lugar separado, é sinal material de

sua individuação.130 Nas discussões sobre a arte do retrato, vimos que nenhuma parte do

corpo é mais apropriada do que o rosto para marcar a singularidade de um indivíduo e

enquadrá-lo no espaço social. Por extensão, podemos afirmar que, numa determinada

sociedade, quanto maior a importância dada à individualidade, maior será o valor que o rosto

terá. Porém, o rosto, sendo uma anamorfose do indivíduo, esconde tanto quanto revela. A

maleabilidade dos seus traços e a gama de diferenças existentes o coloca diante de um

paradoxo: o rosto identifica e distingue o indivíduo, provando sua singularidade, mas

assemelhando-o a outros ao mesmo tempo. Desta forma, o rosto suscitou, ao longo da

História, uma tentativa de classificação dos seus traços. Tentou-se estabelecer uma analogia

entre a maneira de ser dos homens e a estrutura do seu rosto, levando a conclusões do gênero:

tal forma do nariz implica tal característica moral; tal inclinação da cabeça, outra

característica etc. Provenientes da fisiognomonia, essas conclusões se baseavam na crença de

que se o homem guarda uma alma dentro de si, o rosto seria o espaço de sua revelação. Essa

antiga doutrina tem sua história desenvolvida ao longo de séculos e é retomada no final do

130 Cf. LE BRETON, David. Des visages. Essai d’anthropologie. Paris: Anne-Marie Métailié, 2003, p. 51.

79

século XVIII por Lavater e reinterpretada por Gall no século XIX. Jules Verne,

frequentemente julgado por ter criado personagens cuja psicologia foi negligenciada, utilizou

essa ciência para criar os heróis de seus romances, encarregados de viver uma existência

individual. A seguir, antes de tratarmos da relação interdiscursiva que podemos estabelecer

entre a ciência de Lavater e Gall e os retratos dos personagens de Jules Verne, faremos um

histórico da doutrina fisiognomônica a fim de compreender sua passagem ao estatuto de

ciência.

A doutrina da fisiognomonia é antiga. Encontram-se vestígios na Bíblia de fórmulas

que sugerem o seu programa, mas que ao mesmo tempo apontam para o seu perigo: “No

rosto, reconhecemos o homem e, ao seu encontro, sua alma; as vestes de um homem, o riso de

seus dentes e o modo como caminha anunciam o que ele é” (Eclesiastes, 19, 29/30). Ou ainda:

“O coração do homem modela seu rosto seja para o bem ou para o mal. Para um coração em

festa, rosto alegre” (Eclesiastes, 13, 25/26). Porém, no mesmo livro, encontramos: “Não louve

um homem por sua beleza e não tome aversão por ninguém pelo seu rosto” (Eclesiastes, 11,

2).

No seu ensaio antropológico, Le Breton pluraliza a questão e afirma que as

fisiognomonias (physis: natureza e gnomon: interpretação, conhecimento) mais sistemáticas

nasceram na Grécia com reflexões de Pitágoras e encontraram em Aristóteles uma via que se

abriu e foi explorada até Lavater, antes de ganhar espaço nas caricaturas.131 Jurgis Baltrusaitis

afirma que Aristóteles, no segundo século depois de Cristo, em seu livro Physiognomonica,

observava que

Os bois são lentos e preguiçosos. Eles têm a ponta do nariz grossa e os olhos grandes: são lentos e preguiçosos aqueles que têm a ponta do nariz grossa e olhos grandes. Os leões são magnânimos e têm a ponta do nariz redonda e achatada, os olhos relativamente profundos: são magnânimos aqueles que têm as mesmas particularidades no rosto.132

131 Cf. LE BRETON, 2003, p. 55. 132 “Les boeufs sont lents et paresseux. Ils ont le bout du nez épais et les yeux grands: sont lents et paresseux ceux qui ont le bout du nez épais et les yeux grands. Les lions sont magnanimes et ils ont le bout du nez rond et aplati, les yeux relativement creux: sont magnanimes ceux qui ont les mêmes particularités dans le visage.” BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrations. Essai sur la légende des formes. Paris: Flammarion, 1983, p. 10.

80

Baltrusaitis explica que, nesta passagem do livro, Aristóteles trata da possibilidade de

julgar a personalidade das pessoas através da observação do seu rosto, a fim de se precaver de

possíveis decepções.

Na Idade Média e no Renascimento a fisiognomonia é alimentada por uma visão do

mundo como unidade. A doutrina fisiognomônica focava-se na tentativa de uniformizar o que

era complexo: o rosto humano e suas diferenças. Daí as relações de causa e efeito: para tal

traço facial, tal comportamento era previsto. Dominique Baqué, em seu livro Visages, observa

que no Renascimento a fisiognomonia tem estatuto de arte divinatória. Segundo Baqué, nessa

época, a fisiognomonia não tratava somente de relacionar os traços do rosto e a identificação

do caráter de um indivíduo, mas também de estabelecer correspondências entre o corpo e o

rosto com os dados dos meios visíveis e invisíveis, igualando-se assim, à arte da quiromancia,

que acreditava que a superfície das coisas seria uma simples tradução material do seu

interior.133

Diversos tratados surgem ao longo dos séculos, acompanhando o desenvolvimento do

individualismo, coincidindo com o progresso do retrato em pintura, como mencionado por

Daniel Bergez, que citamos no capítulo sobre os retratos. Porém, é no período renascentista

que os fisiognomonistas têm uma atitude inversa àquela dos pintores. Le Breton, tratando da

diferença de objetivos de um e outro, afirma:

Confrontados com o mistério que a singularidade do indivíduo traz, os pintores se prestam a reconstituir a diferença infinitesimal que distingue um homem de um outro. Eles aceitam o inapreensível de uma experiência da qual eles têm consciência de só fixar um frêmito. Ao contrário, os fisiognomonistas fogem diante da complexidade infinita do mundo e da diversidade dos rostos que existe. Eles classificam as singularidades sob regras gerais.134

133 Cf. BAQUÉ, Dominique. Visages. Paris: Éditions du Regard, 2007, p. 28. 134 “Confrontés au mystère que porte la singularité de l’individu, les peintres s’attachent à reconstituer la différence infinitésimale qui distingue un homme d’un autre. Ils acceptent l’insaisissable d’une expérience dont ils ont concience de ne fixer qu’un frémissement. Au contraire, les physiognomonistes fuient devant la complexité infinie du monde et la diversité des visages qui s’y donnent à voir, ils classent les singularités sous des rubriques générales.” LE BRETON, 2003, p. 58-59.

81

Em 1586 é publicado De humana Physiognomonia de Giambattista Della Porta (1535-

1615).

Giambattista Della Porta. De humana physiognomica, 1586 (Frontispício).

Nesta obra, como anunciado pelo paratexto “frontispício”, Della Porta trata do

paralelismo que pode existir entre o homem e o animal com base na comparação rosto/figura

do animal e faz do caráter humano uma natureza presente nos traços do rosto e do corpo,

assim como no comportamento. O autor recusa as influências das artes divinatórias e funda

seu estudo na analogia entre os traços do animal e aqueles do homem para inferir a existência

de singularidades nas características humanas. Assim, o rosto de Platão, por exemplo, é

comparado ao focinho de um cachorro e aquele de Sócrates, ao de um cervo.

82

Giambattista Della Porta. De humana physiognomonia, 1586, p. 30 e 41.

Segundo Della Porta, as aproximações feitas conferem ao homem os traços

psicológicos que se supõem ao animal. Assim, o homem com cabeça de raposa terá astúcia

etc.135 Com Della Porta, a fisiognomonia torna-se uma semiótica das aparências e abandona a

idéia de que, através do rosto do homem, pode ser feita uma projeção divinatória do seu

caráter, como defendido no Renascimento. Porta mostra um valor semiológico das

características corporais cuja distribuição se relaciona com os traços da personalidade.

Giambattista Della Porta. De humana physiognomonia, 1586, p. 29; 34; 37; 51; 53 e 55.

No século XVII há um redescobrimento das tradições fisiognomônicas. L’Art de

connaître les hommes, de Marin Cureau de la Chambre (1594-1669), publicado em 1653,

marca uma primeira tentativa de distanciar a fisiognomonia das tradições anteriores. No

135 DELLA PORTA, Giambattista. De humana physiognomonia. [s.l.] : [s.éd.], 1586, p. 30. (Arquivos BNF)

83

prefácio da sua obra, vemos que além de descrever seus objetivos, Cureau de la Chambre

reformula a fisiognomonia adequando-a ao gosto da moderação, da temperança, do meio

termo e da prudência. Nota-se que para Cureau o corpo tem uma linguagem natural a ser

decifrada:

Ela [a Natureza] não deu ao homem somente a voz e a língua para serem os intérpretes dos seus pensamentos; mas por desconfiança de que ele podia abusar, ela fez falar sua testa e seus olhos para desmenti-lo quando aquelas não fossem fiéis. Ela espalhou toda sua alma na parte exterior, e não é necessário (?) para ver seus movimentos, suas inclinações e seus hábitos, já que elas aparecem escritas no rosto em traços visíveis e manifestos. É com esses traços que temos o objetivo de compor a maior e mais útil obra que talvez nunca tenha sido empreendida; em que estão contidos os mais belos e mais necessários conhecimentos que o homem possa adquirir; na qual, enfim, podem-se encontrar o segredo e a perfeição da Sabedoria e da Prudência humana.136

Somente entre os anos de 1775 e 1778, a fisiognomonia ascenderá ao patamar de

ciência, como veremos nos prefácios das obras pesquisadas. Nesta época, Lavater publica

Physiognomische fragmente, traduzido para o francês em La Haye, em 1803, depois em Paris,

entre 1806 e 1809. Diversas obras de vulgarização dos seus estudos foram publicadas e

contribuíram para sua difusão: Le Lavater portatif ou précis de l’art de connaître les hommes

par les traits de leur visage (1808); Le Lavater des dames ou l’art de connaître les femmes

sur leur physionomie (1815); ou ainda De la physionomie et des mouvements de l’expression

(1865), Traité de physiognomonie ou l’art de connaître et de juger les moeurs et les

caractères d’après la physionomie (1878); Physiognomonie et Phrénologie rendues

intelligibles pour tout le monde (1909).

Lavater objetivava nos seus estudos cartografar precisamente os vínculos que unem a

conformação do rosto à personalidade do homem:

136 “Elle [la Nature] n’a pas seulement donné à l’homme la voix et la langue pour être les interprètes de ses pensées; mais dans la défiance qu’elle a eue qu’il en pouvait abuser, elle a fait encore parler son front et ses yeux pour les démentir quand elles ne seraient pas fidèles. Elle a répandu toute son âme au dehors, et il n’est point besoin de (?) pour voir les mouvements, ses inclinaisons et ses habitudes, puisqu’elles paraissent sur les visages et qu’elles y sont écrites en caractères visibles et manifestes. Ce sont ces caractères-là dont nous avons dessein de former le plus grand et le plus utile ouvrage qui ait peut-être jamais été entrepris; où les plus belles et les plus nécessaires connaissances que l’homme puisse acquérir sont contenues; où enfin on peut trouver le secret et la perfection de la Sagesse et de la Prudence humaine.” CUREAU DE LA CHAMBRE, Marin. L’Art de connoistre les hommes. Amsterdam: Jacques le Jeune, 1653, p. 1-2.

84

A fisiognomonia é a ciência, o conhecimento da relação que liga o exterior ao interior, a superfície visível ao que ela encobre de invisível. Numa concepção restrita, compreende-se por fisionomia, a aparência, os traços do rosto, e por fisiognomonia o conhecimento dos traços do rosto e sua significação. Aquele que julga o caráter do homem numa primeira impressão que se faz do seu exterior é naturalmente fisiognomonista; ele o faz cientificamente quando sabe expor de maneira precisa e organizar numa ordem os traços e sinais observados; enfim, o fisiognomonista filósofo é aquele que, na inspeção de tal ou tal traço, de tal ou tal expressão, é capaz de deduzir as causas e de dar as razões internas dessas manifestações exteriores.137

Por trás desta nova roupagem conceitual – a gradação que leva o fisionomista natural

ao científico –, vemos somente uma atualização das tradições antigas tomando o nome de

“ciência” e a renovação da crença na analogia exterioridade/interioridade.

Nas obras de vulgarização dos estudos de Lavater que fizeram sua obra cruzar o século

XIX, a fisiognomonia também é vista como ciência. Pierre Gratiolet menciona, no prefácio de

sua obra, este movimento de passagem e evolução da “arte” fisiognomônica à “ciência”:

O estudo da fisionomia, ou seja, das modificações que os sentimentos, as sensações e as ideias imprimem na forma de um ser vivo, chamou, desde tempos antigos, a atenção dos artistas e poetas. [...] Mas, para a ciência fisiognomônica como para a medicina, o desejo, ou melhor, a imperiosa necessidade de aplicação imediata desviou durante muito tempo o estudo dos movimentos de expressão. Assim, a Antiguidade e a Idade Média nos legaram uma quantidade quase inumerável de escritos sobre a fisiognomonia; mas o que eles são na sua maior parte? Ou série de descrições isoladas sobre os movimentos que exprimem tal ou tal paixão; ou, mais frequentemente, falaciosos procedimentos de adivinhação, a arte enganadora de distinguir o verdadeiro do falso no rosto humano.138

137 “La physiognomonie est la science, la connaissance du rapport qui lie l’extérieur à l’intérieur, la surface visible à ce qu’elle recouvre d’invisible. Dans une conception étroite, on entend par physionomie, l’air, les traits du visage, et par physiognomonie la connaissance des traits du visage et de leur signification. Celui, qui à la première impression que l’extérieur d’un homme fait sur lui, juge bien de son caractère, celui-là est naturellement physiognomoniste; on l’est scientifiquement lorsque l’on sait exposer d’une manière précise et ranger dans un ordre les traits et les signes observés; enfin, le physiognomoniste philosophe est celui qui, à l’inspection de tel ou tel trait, de telle ou telle expression, est en état d’en déduire les causes, et de donner des raisons internes de ces manifestations extérieures.” LAVATER, J.G. La physiognomonie ou l’art de connaître les hommes d’après les traits de leur physionomie, leurs rapports avec les divers animaux, leur penchants etc. Lausanne: L’Âge d’homme, 1979, p. 6. 138 “L’étude de la physionomie, c’est-à-dire des modifications que les sentiments, les sensations et les idées impriment à la forme d’un être vivant, a fixé dès les temps anciens l’attention des artistes et des poètes. [...] Mais pour la science physiognomonique comme pour la médecine, le désir, ou mieux, l’impérieuse nécessité d’une application immédiate a pendant longtemps donné une fausse direction à l’étude des mouvements d’expression. Ainsi, l’Antiquité et le Moyen Âge ont légué une quantité presque innombrable d’écrits sur la physionomie. Mais que sont-ils pour la plupart? Ou des séries de descriptions isolées sur les mouvements qui expriment telle ou telle passion; ou, le plus souvent, de fallacieux procédés de divination, l’art trompeur de reconnaître le vrai du faux sur la physionomie humaine.” GRATIOLET, Pierre. Préface. In :___ De la physionomie et des mouvements d’expression. Paris: Hetzel, 1865.

85

Definindo-a, o doutor F. Rouget também dá contornos científicos à fisiognomonia e

explica o conceito de Lavater no prefácio de seu resumo-vulgarização:

A fisiognomonia é a arte de julgar os homens pelos traços do rosto e de conhecer o interior do homem pelo seu exterior. Essa ciência só parece ridícula quando se deseja levá-la longe demais. Todos os rostos, todas as formas, todos os seres são diferentes, não somente na sua classe, no seu gênero e na sua espécie, mas também na sua individualidade. Por que essa diversidade de formas não seria uma consequência da diversidade dos caracteres? ou por que a diversidade dos caracteres não estaria ligada a essa diversidade de formas?139

Também resumindo os estudos de Lavater e Gall, Alexandre Ysabeau, no avant

propos da sua obra, esboça e justifica a intenção de organizar as ideias exploradas pelos

cientistas, defendendo o lado “científico” das “fisiologias psicológicas” que eles

desenvolveram:

Poucos entre aqueles que ouvem pronunciar a cada instante os nomes de Lavatter e Gall e que se preocupam vagamente com os seus sistemas deram-se o trabalho de ler suas obras. É necessário, para lê-las por inteiro, uma dose mais do que simples de perseverança. Lavater, sobretudo, que apesar de sua modéstia um pouco exagerada, sabia muitas coisas, não sabia fazer um livro, ou seja, ele ignorava completamente a arte de classificar suas ideias e apresentá-las numa ordem clara, metódica, precisa, dando a sedução da forma.[...] Pareceu oportuno, numa época em que as ideias expostas com audácia por Lavater e Gall, resumir o que contém de positivo e compreensivo duas divisões importantes da fisiologia psicológica: a fisiognomonia e a frenologia. Este livro compreende, por essa razão, duas partes distintas: a primeira destinada à fisiognomonia, cujos princípios científicos foram extraídos das obras de Lavater; a segunda preenchida pela frenologia, cujas noções são retiradas, sobretudo, das obras do doutor Gall e dos fisiologistas da sua escola.140

139 “La physiognomonie est l'art de juger les hommes par les traits du visage et de connaître l'intérieur de l'homme, par son extérieur. Cette science ne parait ridicule que quand on veut la pousser trop loin. Tous les visages, toutes les formes, tous les êtres sont différents, non-seulement dans leur classe, dans leur genre, dans leur espèce, mais aussi dans leur individualité. Pourquoi cette diversité de formes ne serait-elle pas la conséquence de la diversité des caractères? ou pourquoi la diversité des caractères ne serait-elle pas liée à cette diversité de formes?” ROUGET, F. Traité de physiognomonie ou l’art de connaître et de juger les moeurs et les caractères d’après la physionomie. Nice: (s.éd.), 1878, p. 7-8. 140 “Bien peu d'entre ceux qui entendent prononcer à chaque instant les noms de Lavater et de Gall, et qui se préoccupent vaguement de leurs systèmes, ont pris la peine de lire leurs ouvrages. C'est qu'il faut, pour les lire en entier, une dose plus qu'ordinaire de persévérance. Lavater surtout, qui, malgré sa modestie un peu exagérée, savait beaucoup de choses, ne savait pas faire un livre, c'est-à-dire qu'il ignorait complètement l'art de classer ses idées, et de les présenter dans un ordre clair, méthodique, précis, en leur donnant l'attrait de la forme.[...] Il a paru opportun, à une époque où les idées exposées avec hardiesse par Lavater et Gall, résumer ce que renferment de positif et de compréhensible deux divisions importantes de la physiologie psychologique: la physiognomonie et la phrénologie. Ce livre comprend, pour cette raison, deux parties distinctes: la première, consacrée à la Physiognomonie; dont les principes scientifiques ont été puisés dans les oeuvres de Lavater; la seconde est remplie par la phrénologie, dont les notions sont prises surtout dans les ouvrages du docteur Gall et des

86

Nesta dissertação, quando necessário, recorremos aos exemplos das obras de Rouget e

Ysabeau acima citadas, compreendendo que suas datas de publicação sendo posteriores aos

romances estudados não interferem nas análises, visto serem obras construídas, em grande

parte, com o discurso indireto (“Lavater explica que”), referindo-se a obras anteriores.

Portanto, os conceitos não são modificados e os exemplos, que são extraídos de Lavater ou

Gall, guardam, por assim dizer, o seu sentido original.

De um modo geral, podemos dizer que a noção de fisiognomonia tratava do estudo da

personalidade do homem através da observação dos traços do seu rosto. Nota-se que, embora

a fisiognomonia tenha evoluído epistemologicamente, ascendendo ao status de ciência com os

estudos de Lavater e servindo assim, como veremos mais adiante, de substrato para as teorias

evolucionistas e “racistas”, ela manteve seu conceito primeiro: o rosto como espaço de

expressão das faculdades do homem ou de suas inclinações anímicas.

Para a fisiognomonia, cada traço do rosto é dotado de um valor fisiognomônico.

Segundo Lavater, há partes específicas do rosto que denotam ou indicam tal ou tal

característica no homem. Lavater tentou dar conta de cada uma destas partes separadamente,

examinando e atribuindo-lhes valores. Entre as partes examinadas por Lavater, compreende-

se a testa, os olhos, as sobrancelhas, o nariz, a boca, os dentes, o queixo, as bochechas, as

orelhas, o pescoço e os cabelos. A título de exemplo, visando a compreensão do

funcionamento do sistema fisiognomônico de Lavater, resumimos nos quadros abaixo, com

base em Ysabeau141, essas “relações de causa e efeito” para a testa, os olhos e os lábios:

physiologistes de son école.” YSABEAU, Alexandre. Physiognomonie et Phrénologie rendues intelligibles pour tout le monde. Paris: Garnier, 1909, p. 1-3. 141 Cf. YSABEAU, 1909, p. 32-46.

87

horizontal – polivalência e, ao mesmo tempo, falta de energia;

curta, compacta – grande firmeza no caráter;

de traços arredondados – personalidade doce;

reta e arredondada no corpo – superioridade intelectual;

proeminente e arredondada – imbecilidade, fraqueza intelectual;

inclinada para trás – imaginação, delicadeza;

perpendicular e proeminente no topo – suscetibilidade, frieza, violência;

TESTA

arqueada (mais frequentes nas mulheres) – clarividência.

bem abertos, terminados em ponta para o lado do nariz – rara inteligência, delicadeza; com a pálpebra superior arqueada – timidez, fraqueza;

bem desenhados com pálpebras pouco carnudas – coragem;

grandes e salientes – estupidez;

OLHOS

- Olhar constante, fixo – solidez de personalidade, constância de ideias; - Olhar variável, móvel – frivolidade, inconstância.

moles e móveis – indecisão, instabilidade de humor;

consistentes – firmeza de caráter;

grandes e desenhados – ausência de baixeza, sinceridade;

finos em linha horizontal – sangue frio, espírito de ordem, avareza;

LÁBIOS

com proeminência do lábio superior – bondade, simplicidade.

Tendo visto a noção da “ciência” fisiognomônica que chegou ao século XIX,

poderemos falar de diálogo entre os discursos literário e científico; no caso, entre a construção

dos retratos dos personagens em Jules Verne e a teoria redesenhada por Lavater. Cabe dizer

que, com o uso da fisiognomonia, uma ciência relativamente moderna para Verne, o escritor

tem o respaldo científico para cumprir com seus objetivos contratuais, aqueles de reunir o que

a ciência da sua época realizava e transformar em literatura.

88

Normalmente descritos no início dos romances, às vezes em poucas frases, os

personagens vernianos personificam um número limitado de características físicas e de

disposições morais.142 Nas “Viagens extraordinárias”, cada personagem evoca uma realidade

geral, cuidadosamente determinada, tendo um valor essencialmente representativo e

compondo, portanto, uma galeria de tipos. Como não há mudança na moral dos personagens

ao longo das tramas, o honnête homme e seu oposto têm suas características físicas e morais

preservadas pelo narrador dos romances vernianos.143 O escritor fixa imutavelmente as

qualidades dos personagens no rosto; a configuração e a expressão facial se tornam mais

eloquentes do que suas palavras. Assim, os heróis sendo de simples ou poucas palavras têm

toda sua energia transmitida pelos olhos, por um detalhe da boca ou pela conformação da

testa, conferindo ao rosto não só um grau de importância em relação ao corpo, como também

de importância para a trama. A constituição do todo também é simbólica em Verne; vigor ou

debilidade refletem características como generosidade ou falta de envergadura,

respectivamente. Notamos que a preocupação de Verne era a de criar personagens

“evidentes”, não de surpreender o leitor com mudanças imprevisíveis de caráter; suas

características físicas deveriam anunciar suas ações. Assim, com base na imutabilidade e na

relação de causa e efeito da fisiognomonia, Verne cria diversos dos retratos de seus heróis.

Em mais de um romance, o narrador faz alusão direta à fisiognomonia, ao nome de

Lavater ou a um dos vulgarizadores de sua obra, contemporâneo de Jules Verne. Em De la

142 Marie-Hélène Huet sinaliza: “Frequentemente, reprovou-se Jules Verne de ter negligenciado a psicologia de seus personagens, de ter criado tipos simplistas, personalidades sem profundidade que se assemelham abusivamente de um romance a outro. É verdade que essas personalidades são descritas no início do romance por duas ou três frases que resumem o indivíduo em torno de uma ideia condutora.” (On a fréquemment reproché à Jules Verne d’avoir négligé la psychologie de ses personnages, d’avoir créé des types simplistes, des caractères sans épaisseur qui se ressemblent abusivement d’un roman à l’autre. Il est vrai que ces caractères sont décrits au début du roman par deux ou trois phrases qui résument l’individu autour d’une idée directrice.) HUET, Marie-Hélène. L’Histoire des Voyages extraordinaires. Paris: Les Lettres modernes, 1973, p. 33. 143 Na leitura dos romances que nos propusemos estudar, uma exceção deve ser salientada. Ayrton, personagem de Les enfants du capitaine Grant e de L’Île mystérieuse, muda radicalmente de vida e de opinião. Há, entre a época do seu banditismo no primeiro romance e do seu arrependimento, no segundo, um espaço de sete anos que separam a publicação de Les enfants du capitaine Grant e de L’Île mystérieuse, e doze anos no tempo da diegése. Entre as duas épocas, supõe-se um retorno completo à animalidade. Fisicamente, Ayrton perde toda sua aparência humana; este detalhe tem sua importância, pois, retomando o personagem Ayrton física e moralmente, Jules Verne se vale, mais uma vez, das correspondências entre as características morais do homem e sua aparência física para recriar seu retrato.

89

Terre à la Lune, romance de 1865, para dar mais rigor e peso ao retrato de Michel Ardan, um

dos três astronautas que viajará até à Lua, o narrador menciona os nomes de Lavater e

Gratiolet e evoca analogias caras à fisiognomonia:

Les disciples de Lavater ou de Gratiolet eussent déchiffré sans peine sur le crâne et la physionomie de ce personnage les signes indiscutables de la combativité, ceux de la bienveillance et ceux de la merveillosité. Mais en revanche, les bosses de l’acquisivité, ce besoin de posséder et d’acquérir, manquaient absolument.144

Em Le Chancellor há dois retratos que atestam a interdiscursividade com a ciência

fisiognomônica. Para o retrato do americano Mr. Kear, um dos tripulantes da embarcação que

atravessaria o Oceano Atlântico, não há somente uma relação interdiscursiva com ciência,

mas também uma citação intertextual das palavras de Gratiolet, destacada entre aspas, que

tratam da semelhança de comportamento do personagem com o de um pavão:

Orgueilleux, vaniteux, contemplateur de lui-même et contempteur des autres, il affecte une suprême indifférence pour tout ce qui n’est pas lui. Il se rengorge comme un paon, “il se flaire, il se savoure, il se goûte”, pour employer les termes du savant physionomiste Gratiolet.145

Este é o típico exemplo em que o retrato do personagem anuncia suas ações: no

naufrágio do Chancellor, Mr. Kear abandonará sua esposa enferma aos cuidados dos outros

tripulantes. Durante os períodos em que estão à deriva, com poucas provisões, numa atitude

egoísta, como anunciado no seu retrato, Mr. Kear só pensa no seu bem-estar e na sua

alimentação.

Já no retrato de outro tripulante, senhor Letourneur, o discurso da fisiognomonia

aparece implicitamente, sem alusões ou citações: “Cet homme porte en lui une source

intarissable de tristesse, et cela se voit à son corps un peu affaissé [...]; Sa figure offre un

mélange caractérisé d’amertume et d’amour [...]; L’expression générale de sa physionomie est

celle d’une bonté carressante.”146

144VERNE, Jules. De la Terre à la Lune. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975d, p. 103. 145 VERNE, 1975c, p. 11. 146 VERNE, 1975c, p. 7.

90

Ainda que sem alusão direta à ciência fisiognomônica ou aos nomes de quem a

desenvolveu, podemos explorar retratos de outros romances vernianos.

Para os heróis viajantes de Cinq semaines en ballon, a fisionomia aponta para suas

futuras ações a bordo do balão Victoria. Do doutor Fergusson, temos “son tempérament

sanguin se trahissait par une coloration forcée du visage. Il avait une figure froide, aux traits

réguliers, avec un nez fort, le nez en proue de vaisseau de l’homme prédestiné aux

découvertes; ses yeux forts doux, plus intelligents que hardis, donnait un grand charme à sa

physionomie.”147 Para o retrato de Dick Kennedy, o alter ego do doutor Fergusson, o narrador

se vale de uma alusão à “pintura” do retrato de Halbert Glendinning, personagem de Walter

Scott de Le monastère e afirma que Dick Kennedy tinha “une figure fortement hâlée par le

soleil, des yeux vifs et noirs, alors d’une hardiesse naturelle très décidée.148

Em Les enfants du capitaine Grant, com frequência, o pequeno espaço descritivo que

é destinado ao retrato de alguns personagens é aproveitado para se fazer a analogia

exterior/interior cara à fisiognomonia. Por exemplo, lendo o retrato de Mary Grant, irmã do

jovem Robert Grant, vemos que ela é apresentada com sua “physionomie résignée”,

característica que lhe será necessária ao longo da trama. Para o retrato do major Mac Nabbs,

também é no seu rosto que percebemos sua calma e passividade: “Le major était un homme

âgé de cinquante ans, d'une figure calme et régulière.”149

Na pesquisa que fizemos, mostraram-se indispensáveis, ao longo da história da

fisiognomonia, as analogias entre homens e animais. Em todos os tratados que pesquisamos,

ao menos um capítulo é reservado a este paralelismo, compreendendo que há sempre alguma

semelhança física entre o homem e animal, um traço exterior, que indica um comportamento,

como no retrato de Mr. Kear, tripulante do Chancellor, que é comparado ao pavão.

147 VERNE, 1975a, p. 3. 148 VERNE, 1975a, p. 11. 149 VERNE, 1975b, p. 28.

91

O retrato de Michel Ardan, do qual já exploramos uma parte, também é exemplar a

esse título:

C’était un homme de quarante-deux ans, grand mais un peu voûté déjà, comme ces cariatides qui portent des balcons sur leurs épaules. Sa tête forte, véritable hure de lion, secouait par instants une chevelure ardente qui lui faisait une véritable crinière. Une face courte, large aux tempes, agrémentée d’une moustache hérissée comme les barbes d’un chat et de petits bouquets de poils jaunâtres poussés en pleines joues, des yeux ronds un peu égarés, un regard de myope, complétaient cette physionomie éminemment féline.150

A fisionomia felina traduzida pelas palavras “hure de lion”, “barbe d’un chat” e

“crinière”, que anuncia o sangue frio e a energia que é conferida ao personagem ao longo do

romance, harmoniza-se com os conceitos fisiognomônicos descritos em F. Rouget,

vulgarizador dos estudos de Lavater:

O leão é, como todos sabem, um animal feroz, tão forte e tão corajoso, que o chamamos de o rei dos animais. A face do homem-leão traz a impressão da energia, da calma e da força; porém é raro que essa característica possa se encontrar por completo num rosto humano. É por alusão que se deu esse nome a todo homem que causa sensação no mundo por um ato célebre ou originalidade qualquer. Não é pelas qualidades morais que se adquire esse título, que dá o título do rei dos animais.151

Quanto ao grau de celebridade e o título de originalidade do personagem Michel

Ardan, ou homem-leão segundo Rouget, estes lhe são garantidos ao final do retrato com as

palavras do narrador: “C’était un de ces originaux que le créateur invente dans un moment de

fantaisie et dont il brise aussitôt le moule.”152

Em Cinq semaines en ballon, na ocasião do salvamento de um missionário francês

aprisionado por “selvagens” africanos, os personagens que viajam a bordo do balão Victoria

deflagram uma cena em que acreditam ver répteis e não os negros habitantes do local. Embora

150 VERNE, 1975d, p. 103. 151 “Le lion est, comme tout le monde le sait, un animal féroce si fort et si courageux, qu'on l'appelle le roi des animaux. La face de l’homme-lion porte l'empreinte de l'énergie, du calme et de la force; mais il est bien rare que ce caractère puisse se trouver en plein sur une face humaine. C'est par allusion qu'on a donné ce nom à tout homme faisant sensation dans le monde par une célébrité ou une originalité quelconque. Ce n'est point par les qualités morales qu'on acquiert ce titre, qui donne le grade de roi des bêtes.” ROUGET, 1878, p. 192. 152 VERNE, 1975d, p. 104.

92

a descrição desses africanos não constitua um retrato literário propriamente dito, ela permite a

criação de uma imagem em que os africanos são comparados a répteis:

Depuis quelques minutes ils écoutaient muets et immobiles dans le feuillage. A un certain froissement d’écorce qui se produisit, Joe saisit la main de l’Écossais. - “N’entendez-vous pas? - Oui, cela s’approche. - Si c’était un serpent? Ce sifflement que vous avez surpris... - Non! Il avait quelque chose d’humain. -J’aime encore mieux des sauvages, se dit Joe. Ces reptiles me répugnent. - Le bruit augmente, reprit Kennedy, quelques instants après. - Oui! on monte, on grimpe! -Veille de ce côté, je me charge de l’autre. - Bien.” Ils se trouvaient tous les deux isolés au sommet d’une maîtresse branche, poussée droit au milieu de cette forêt qu’on appelle un baobab; l’obscurité accrue par l’épaisseur du feuillage était profonde; cependant Joe, se penchant à l’oreille de Kennedy et lui indiquant la partie inférieure de l’arbre, dit: - “Des nègres.” Quelques mots échangés à voix basse parvinrent même jusqu’au deux voyageurs. Joe épaula son fusil. “Attends,” dit Kennedy. Des sauvages avaient en effet escaladé le baobab; il surgissaient de toutes parts, se coulant sur les branches comme des reptiles, gravissant lentement, mais sûrement; ils se trahissaient alors par les émanations de leurs corps frottés d’une graisse infecte.153

No capítulo intitulado “Analogie des figures humaines avec divers animaux” no

resumo que faz dos estudos de Lavater, Ysabeau menciona que “a pior das analogias que se

pode fazer entre um homem e um animal são aquelas que evocam os répteis, particularmente

as serpentes.” Ele explica que os homens portadores dessa característica ingrata representam

“a astúcia desprovida de um sentido honesto e da força que determina a ação.”154

Na economia geral do romance, a descrição destes personagens africanos estão em

harmonia com as considerações de Ysabeau. Estes selvagens aprisionaram o missionário

francês para comê-lo. Portanto, salvando-o, os heróis do romance evitam uma cena de

canibalismo. Na passagem em que se lê o final do salvamento, sem que o leitor saiba quem

153 VERNE, 1975a, p. 120-121. 154 “Les pires des analogies que l’on peut faire sont celles qui rappellent les reptiles, particulièrement les serpents. Les hommes porteurs d’une caractéristique aussi ingrate représentent la ruse dépourvue d’un sens droit et de la force qui determine l’action.” YSABEAU, 1909, p. 116.

93

estava sendo salvo, os personagens ingleses avistam o missionário que é comparado a Jesus

Cristo: “Au pied de ce poteau gisait une créature humaine, un jeune homme de trente ans ou

plus, avec des longs cheveux noirs, à demi nu, maigre, ensanglanté, couvert de blessures, la

tête inclinée sur la poitrine, comme le Christ en croix.”155 Ora, a descrição da cena, que

aparece como um coup de théâtre, garante uma mudança completa de sentidos pois carrega o

episódio de valores cristãos, agudizando negativamente a imagem dos africanos que, no caso,

devorariam “Jesus Cristo”, e exaltando a atitude heróica dos personagens ingleses.

O paralelismo estabelecido com a figura de animais é recorrente em Jules Verne

quando se trata de negros. Em Le Chancellor, o cozinheiro Jyxntrop, único negro da

embarcação, recebe a qualificação de “bête féroce”. No romance Cinq semaines en ballon, os

“indígenas” africanos são comparados a macacos:

En voilà un assaut! dit Joe. - Nous t’avions cru assiégé par des indigènes. - Ce n’étaient que des singes, heureusement! répondit le docteur. - De loin, la différence n’est pas grande, mon cher Samuel. - Ni même de près, réplica Joe.156

Em Les enfants du capitaine Grant, os tripulantes do Duncan, à procura do capitão

desaparecido, encontram-se então na Austrália. Viajando numa espécie de carroça junto com

os outros personagens, Robert para diante de uns eucaliptos e afirma ver um “macaco”. Há a

perseguição do tal “macaco” que se move por entre árvores e é acompanhado a partir do olhar

dos personagens que estão dentro da carroça em movimento. (Ver a cena completa no item

4.3, p.145).

Nesta passagem, onde temos a construção do retrato dos aborígenes autralianos, os

personagens acreditam estar vendo macacos. Essa ideia é corroborada no final da cena com a

intervenção das palavras do narrador.

A conclusão do narrador extrai seu substrato da frenologia, ciência derivada da

fisiognomonia e desenvolvida por Gall no início do século XIX que, segundo Ysabeau,

155 VERNE, 1975a, p. 125. 156 VERNE, 1975a, p. 52.

94

baseava seus estudos na observação e na apalpação das protuberâncias do crânio, a fim de

estabelecer uma possível relação com as faculdades morais e intelectuais do

homem.ANEHUMAIN

A ciência desenvolvida por Gall difundia a ideia que “entre as faculdades que se

traduzem pelo desenvolvimento de certas circunvoluções do cérebro e a formação de certas

protuberâncias na superfície exterior do crânio, há umas que são particulares aos homens e só

existem nele, e outras que eles dividem com diversos animais.”157

O anatomista holandês Petrus Camper (1722-1789) já havia tecido observações sobre

o ângulo facial do homem a fim de medir seu grau de inteligência e beleza. Angèle Marietti

cita o anatomista no artigo intitulado “L’anthropologie physique et morale en France et ses

implications idéologiques”:

Parece que a própria natureza utilizou esse ângulo para marcar os diversos graus no reino animal e estabelecer uma espécie de escala ascendente, desde as espécies inferiores até as mais belas formas que se encontram na nossa espécie. Há, por exemplo, entre os macacos, uma espécie que tem o ângulo facial de 42º; já em outro animal da mesma família, que é um dos macacos mais parecidos com o homem, esse ângulo é de 50º. Logo depois vem a cabeça do negro africano que apresenta um ângulo de 70º. Finalmente, na cabeça dos homens da Europa, o ângulo é de 80º. É desta diferença de 10º que depende a maior beleza do europeu, o que podemos chamar de beleza comparativa. Quanto a essa beleza absoluta de algumas obras do estatuário antigo que nos surpreende em tão alto grau (como a cabeça de Apolo), ela resulta de uma abertura maior desse ângulo que, nesse caso, atinge mais de 100º.158

Para a fisiognomonia, beleza e feiúra também recebem explicações valorativas. Em

geral, Lavater afirma que a virtude embeleza e os vícios enfeiam o homem. Todo indivíduo

157 “Parmi les facultés qui se traduisent par le développement de certaines circonvolutions du cerveau et la formation de certaines protubérances à la surface extérieure du crâne, il en est qui sont particulières à l'homme et n'existent jamais que chez lui; d'autres lui sont communes avec divers animaux.” YSABEAU, 1909, p. 175. 158 “Il semble que la nature elle-même se soit servie de cet angle pour marquer les divers degrés dans le règne animal et établir une sorte d’échelle ascendante, depuis les espèces inférieures jusqu’aux plus belles formes qui se rencontrent dans notre espèce. Il y a, par exemple, chez les singes une espèce chez laquelle l’angle facial a 42º. Chez un autre animal de la même famille, qui est un des singes les plus semblables à l’homme, cet angle est exactement de 50º. Immédiatement après vient la tête du nègre africain qui présente un angle de 70º. Enfin, dans la tête des hommes de l’Europe, l’angle est de 80º. C’est de cette différence de 10º que depend la beauté plus grande de l’Europe, ce qu’on peut appeler la beauté comparative. Quant à cette beauté absolue qui nous frappe à un si haut degré de quelques oeuvres de la statuaire antique (comme dans la tête d’Apollon), elle resulte d’une ouverture encore plus grande de l’angle qui, dans ce cas, atteint plus de 100º.” MARIETTI, Angèle. “L’anthropologie physique et morale en France et ses implications idéologiques”, in: RUPP-Eisenreich, Britta. Histoire de l’anthropologie XVIe-XIXe siècle. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1984, p. 328-329.

95

que nasce com belos traços faciais e uma boa conformação craniana é favorecido e só tem de

seguir suas inclinações, sem maiores esforços, para ser virtuoso. Enquanto que o individuo

que nasce feio tem maiores dificuldades de perseverar no bem. Lavater acredita que, pelo fato

de a feiúra ser hereditária, herda-se o temperamento como se herdam traços do rosto.159

Seguindo essa sistemática, Lavater esboça o que seria o ideal do rosto humano, aquele que

reúne as linhas mais bem desenhadas e as proporções mais harmoniosas que podem ser

cumuladas no rosto humano:

Se no rosto, diz Lavater, você encontra os seguintes traços, cada um separadamente e bem definidos, esteja certo de ter encontrado uma face quase sobrehumana: 1- Igualdade manifesta entre as três partes simples do rosto – a testa, o nariz e o queixo; 2- A testa terminada horizontalmente, em consequência as sobrancelhas quase horizontalmente dispostas, espessas; 3- Olhos azuis ou castanhos claros que, a alguns passos de distância, parecem negros, cujas pálpebras superiores cobrem a pupila em um quinto ou um quarto; 4- Um nariz cuja espinha é larga, quase paralela, porém um pouco levantada; 5- Uma boca horizontal no seu conjunto, cujo lábio superior e a linha central abaixam-se ligeiramente no meio, porém em alguma profundidade e cujo lábio inferior não é maior que o lábio superior; 6- Um queixo redondo e saliente; 7- Cabelos curtos, castanhos escuros encrespados em grandes porções.160

Na ótica pela qual procuramos analisar os retratos dos personagens, o Outro é sempre

de uma incontestável falta de beleza e falta de inteligência. Os relatos de viajantes, a esse

título, também são abundantes em retratos pouco elogiosos dos “selvagens”. Tanto nos

romances, quanto nos relatos de viajantes, quanto menos a espécie tem sua inteligência ou

beleza valorizada, menos a figura humana se desenha na descrição dos rostos desses homens e

mais aparecem características animalescas.

159 Cf. YSABEAU, 1909, p. 18. 160 “Si dans une figure, dit Lavater, tu trouves les traits suivants, chacun séparément et bien prononcés, sois assuré d'avoir trouvé une figure presque surhumaine: 1- Égalité frappante entre les trois sections ordinaires du visage le front, le nez et le menton; 2- Le front terminé horizontalement, en conséquence les sourcils presque horizontalement disposés, serrés; 3-Des yeux bleus ou brun clair, qui, à quelques pas de distance, semblent noirs, et dont les paupières supérieures couvrent la pupille d'environ un cinquième ou un quart; 4- Un nez dont le dos est large, presque parallèle, et cependant un peu exhaussé; 5- Une bouche horizontale dans l'ensemble, dont la lèvre supérieure et la ligne centrale s'abaissent au milieu doucement, et cependant à quelque profondeur, et dont la lèvre inférieure n'est pas plus grande que la lèvre supérieure; 6- Un menton rond et saillant; 7- Des cheveux courts, brun foncé, et crépus par grandes portions.” YSABEAU, 1909, p. 20-21.

96

Nas tipologias que apresentamos e que constituem o diálogo interdiscursivo que

pudemos estabelecer com os retratos vernianos, a cabeça e o rosto são objetos cujos traços

servem para fundar comparações, paralelismos e classificações que às vezes nos parecem

insólitas. As ideias trazidas pela fisiognomonia e pela frenologia, que desejavam fazer do

rosto e do corpo a determinação de uma psicologia ou de uma inteligência, estavam distantes

de se extinguir na segunda metade do século XIX. Por exemplo, as teorias evolucionistas

basearam na observação do rosto e do corpo a certeza da superioridade moral e intelectual do

homem branco que colonizava, assim, em nome do “progresso” das sociedades julgadas

pouco evoluídas ou inferiores. Mais adiante na História, os “Arianos”, justificaram seu direito

de supremacia sobre os “Semitas” pela mesma mística da raça corporal. Ora, queremos inferir

que, assim como o “racismo”, a fisiognomonia e a frenologia fazem do homem um produto

dedutível pela conformação de seus traços faciais e do seu corpo, através do comportamento.

Elas naturalizam as diferenças sociais e individuais, as desigualdades entre as classes ou entre

os povos. Ora, o racista também é um fisiognomonista. No entanto, ele difere do

fisiognomonista porque procura as “raças” no rosto, enquanto a fisiognomonia se foca na

“personalidade”. Porém, um e outro têm a mesma lógica de inferência do físico no moral.

Em suma, a relação interdiscursiva com a ciência em Verne trata de dar um

fundamento científico ao “racismo” e de justificar o colonialismo crescente da segunda

metade do século XIX pela demonstração da falta de beleza e de inteligência das populações

submissas.

Com base nas discussões apresentadas acima, trataremos no próximo item do diálogo

entre o discurso literário com a ideia de “racismo científico”. Para isso, nos basearemos na

teoria desenvolvida por Gobineau sobre a desigualdade das raças humanas. Visto o espírito de

classificação e hierarquização ser a base dessas ideias e o elemento em comum com a teoria

desenvolvida por Darwin, lançaremos mão dos estudos que tratam da evolução das espécies

desenvolvidos pelo naturalista.

97

3.4- Dos diálogos com Gobineau e Darwin

Nos romances de Jules Verne, há uma relação determinante entre as disposições

morais de um personagem e sua representação física que nos permite fazer uma distinção

entre brancos e habitantes dos “mundos primitivos”. Somos levados a acompanhar a tentativa

dos narradores dos romances do corpus desse trabalho de estabelecer essa distinção usando

uma referência racial.

Numa sociedade que se desejava avançada, com conhecimentos científicos e gosto

pela classificação, Verne mostra-se tentado a experimentar este critério determinante cuja

importância se impunha de maneira evidente após estudos como o Essai sur l’inégalité des

races humaines, do diplomata, escritor, etologista e filósofo francês Joseph-Arthur de

Gobineau (1816-1882), publicado em 1853. Gobineau foi também autor literário. Entre seus

primeiros contos, encontram-se Scaramouche (1843) e Mademoiselle d’Irnois (1847). Seus

livros de ficção incluem o Souvenirs de voyage, de 1872; Pléiades, de 1874 e Les Nouvelles

Asiatiques, de 1876. Arthur de Gobineau foi igualmente autor de livros sobre a História como

Histoire des Perses, de 1869; Religions et philosophie dans l'Asie Centrale, de 1865; e La

Renaissance, de 1877. Além disso, entre suas missões diplomáticas, podemos destacar sua

estada no Rio de Janeiro, no ano de 1869. Também manteve correspondência com o

imperador do Brasil, Dom Pedro II.

Apesar de diversos trabalhos publicados, Gobineau ficou conhecido, sobretudo, pelo

ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, considerado como a obra inicial da filosofia

racista. O ensaio, a partir do qual podemos mostrar uma relação interdiscursiva nos textos de

Verne, não é somente um estudo simplista concluindo a superioridade do homem branco

sobre o homem negro, mas, em geral, aponta para um “racismo” que distingue personalidades

com qualidades mais ou menos próprias a dominar o mundo e a estabelecer grandes

civilizações.

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Na introdução do ensaio, na dedicatória feita a Georges V, rei de Hanovre, Gobineau

deixa transparecer sua ideia principal pela síntese sobre as diferenças raciais:

Depois de ter reconhecido que existem raças fortes e raças fracas, ative-me a observar de preferência as primeiras, a distinguir suas aptidões e, sobretudo, construir a cadeia de suas genealogias. Seguindo esse método, convenci-me de que tudo o que há de grande, nobre, de fecundo sobre a terra, em termos de criações humanas, a ciência, a arte, a civilização, leva o observador em direção a um único ponto, é proveniente apenas de um mesmo germe, resultou apenas de um só pensamento, pertence a uma só família cujas diferentes ramificações reinaram em todas as regiões civilizadas do universo. A exposição dessa síntese encontra-se nesse livro.161

Em geral, o ensaio é dividido em seis livros e, cada um dos livros, em diversos

capítulos, concluindo-se com uma história das civilizações do ponto de vista étnico. Gobineau

parte de uma constatação inicial: o fato de que as civilizações morrem, assim como os

organismos vivos; e de uma pergunta: qual é a razão que leva à decadência e à morte das

civilizações? O primeiro livro “A condição mortal das civilizações e das sociedades resulta de

uma causa geral comum”, formado por dezesseis capítulos, é dedicado a analisar questões

gerais, como a causa da morte das civilizações, o fator racial nas lutas sociais, as diferenças

étnicas da espécie humana, as raças humanas, as características e a desigualdade das raças, a

superioridade da raça branca e o efeito “degenerador” das misturas (mélanges) entre as raças.

No capítulo VIII apresenta sua definição para a palavra civilização, que guiará toda sua obra:

Utilizo a cada instante uma palavra que comporta na sua significação um conjunto de ideias importantes a definir. Falo com frequência da civilização, porque é somente pela existência relativa ou ausência absoluta dessa grande particularidade que posso graduar o respectivo mérito das raças. Falo da civilização europeia e a distinguo das civilizações que digo ser diferentes. [...] A civilização não é um fato, é uma série, um encadeamento de fatos mais ou menos logicamente unidos uns aos outros e engendrados por um concurso de ideias múltiplas.162

161 “Après avoir reconnu qu’il est des races fortes et qu’il en est de faibles, je me suis attaché à observer de préférence les premières, à démêler leurs aptitudes, et surtout à remonter la chaîne de leurs généalogies. En suivant cette méthode, j’ai fini par me convaincre que tout ce qu’il y a de grand, de noble, de fécond sur la terre, en fait des créations humaines, la science, l’art, la civilisation, ramène l’observateur vers un point unique, n’est issu que d’un même germe, n’a resulté que d’une seule pensée, n’appartient qu’à une seule famille dont les différentes branches ont regné dans toutes les contrées policées de l’univers. L’exposition de cette synthèse se trouve dans ce livre.” GOBINEAU, Joseph-Arthur de. “Essai sur l’inégalité des races humaines” In: ___. Oeuvres I. Paris: Gallimard, 1983, p. 139. (Bibliothèque de la Pléiade) 162 “Je me sers à chaque instant d’un mot qui enferme dans sa signification un ensemble d’idées important à définir. Je parle souvent de la civilisation européenne, car c’est par l’existence relative ou l’absence absolue de cette grande particularité que je puis seulement graduer le mérite respectif des races. Je parle de civilisation

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Seguindo o conceito de Gobineau sobre o que é civilização, o que é “ser civilizado” e,

por extensão, o que é ser “não-civilizado”, podemos encontrar em Jules Verne inúmeras

passagens que se coadunariam com esse conceito. Por exemplo, em Cinq semaines en ballon

os personagens sabem que partirão em uma missão de descoberta científica num local onde os

habitantes não são civilizados como os europeus:

Cette découverte des sources du Nil était-elle vraiment nécessaire? Aurait-on travaillé pour le bonheur de l’humanité? Quand, au bout du compte, les peuplades de l’Afrique seraient civilisées, en seraient-elles plus heureuses? On était certain, d’ailleurs, que la civilisation ne fût pas plutôt là qu’en Europe?163

No mesmo romance, destacamos a expressão “un peu plus”, a nuança que gradua as

raças em mais ou menos civilizadas, no excerto: “les peuplades rapprochées de l’équateur

semblent être un peu plus civilisées”164; ou, numa perspectiva cristã e colonialista: “Ce sont

des âmes à racheter, dit le jeune prêtre, des frères ignorants et barbares que la religion seule

peut instruire et civiliser.”165

No capítulo XII do ensaio de Gobineau, intitulado “Como as raças se separaram

fisiologicamente e quais variedades elas formaram por suas misturas. Elas são desiguais em

força e em beleza” temos os três grandes grupos nos quais o etologista aloca as raças

humanas: a branca, a amarela e a negra.166 Mais adiante, devido a características físicas e à

história do surgimento de cada raça, Gobineau menciona a superioridade da raça branca em

relação às outras duas:

As inclinações essencialmente civilizadoras da raça branca, raça de elite, a compeliam constantemente a se misturar com os outros povos. Quanto aos dois tipos, amarelo e negro, lá onde os encontramos nesse estado terciário, eles não t

européenne et je la distingue des civilisations que je dis être différentes [...] La civilisation n’est pas un fait, c’est une série, un enchaînement de faits plus ou moins logiquement unis les uns aux autres, et engendrés par un concours d’idées multiples. GOBINEAU, 1983, p. 211. 163 VERNE, 1975a, p. 22. 164 VERNE, 1975a, p. 94. 165 VERNE, 1975a, p. 129. 166 Cf. GOBINEAU, 1983, p. 280.

100

m história porque são selvagens.167

Para evitar uma profusão de citações concernentes à superioridade do homem branco

explicitada nos romances do corpus, reservamos a passagem a seguir do romance Les enfants

du capitaine Grant que trata cabalmente da questão. Na trama, com diversas repetições,

percebemos um espírito de classificação e hierarquização por parte do narrador em relação

aos personagens. Nesse aspecto, Paganel, possuidor de conhecimento científico e, portanto,

argumento de autoridade na embarcação, menciona o gosto dos felinos que estão no topo da

cadeia alimentar, os jaguares, deixando nítida a ideia do narrador sobre a superioridade

caucasiana:

Quand il a goûté de la chair humaine, il y revient avec sensualité, ce qu’il aime le mieux c’est l’indien, puis le nègre, puis le mulâtre, puis le blanc. - Eh bien, c’est humiliant! répondit l’intraitable Paganel. Le blanc se proclame le premier des hommes! Il paraît que ce n’est pas l’avis des messieurs les jaguars.168

Num panorama geral do ensaio de Arthur de Gobineau, o segundo e o terceiro livros

apresentam treze capítulos, se somados. Tratam da civilização antiga da Ásia, da Índia do

século XIX, da raça amarela, dos chineses, e das origens da raça branca. O quarto livro tem

quatro capítulos que versam sobre a civilização dos semitas do sudeste e sobre a importância

das nações brancas para o desenvolvimento das civilizações. O quinto livro intitulado

“Civilização europeia semitizada” tem sete capítulos sobre as populações primitivas da

Europa. O sexto e último livro – “A civilização ocidental” - tem oito capítulos dedicados em

sua maior parte a analisar o povo germânico.

Na perspectiva da frenologia e, portanto, científica – traço que aproxima a construção

dos retratos vernianos do discurso de Gobineau – o etologista e diplomata chega às

conclusões para a confecção dos capítulos acima listados, pois comparou a conformação do

crânio do homem das diferentes etnias e concluiu que havia uma relação entre seu volume e o

167 “Les penchants essentiellement civilisateurs de la race blanche, race d’élite, la poussaient constamment à se mélanger avec les autres peuples. Quant aux deux types jaune et noir, là où on le trouve à cet état tertiaire, ils n’ont pas d’histoire, car ce sont des sauvages.” GOBINEAU, 1983, p. 283. 168 VERNE, 1975b, p. 173.

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grau de civilização. Segundo ele, a mistura de raças era inevitável, e levaria a raça humana a

graus sempre maiores de degenerescência, tanto física quanto intelectual. Em Les enfants du

capitaine Grant notamos a ideia negativa da “mistura” quando os personagens estão em

Tristão d’Acunha e o narrador descreve sua população:

La population de Tristan d’Acunha ne s’élève pas à cent cinquante habitants. Ce sont des Anglais et des Américains mariés à des négresses et à des Hottentotes du Cap, qui ne laissent rien à désirer sous le rapport de la laideur. Les enfants de ces ménages hétérogènes présentaient un mélange très désagréable de la roideur saxonne et de la noirceur africaine.169

Ao longo do seu ensaio, Arthur de Gobineau postula a superioridade da raça branca

sobre as demais, e nesta, distinguia os povos arianos, os alemães, representando o povo mais

civilizado. Sustenta a teoria de que o destino das civilizações é determinado pela composição

racial; que os brancos, e em particular as sociedades arianas, floresceriam desde que ficassem

livres dos negros e amarelos, e que quanto mais o caráter racial de uma civilização se dilui

através da miscigenação, mais provável se torna que ela perca a vitalidade e a criatividade,

mergulhando na corrupção e na imoralidade. Podemos afirmar que, numa visão global, os

romances do nosso corpus apresentam relação interdiscursiva com essas ideias. A hierarquia

que se estabelece entre brancos e negros, como veremos no capítulo das análises dos retratos,

torna-se ainda mais nítida quando a comparamos com o que Gobineau esboça no retrato das

três grandes raças. No capítulo dezesseis, intitulado “Recapitulação; personalidades das três

grandes raças; efeitos sociais das misturas, superioridade do tipo branco e, nesse tipo, da

família ariana”, temos a apresentação dessas raças:

Mostrei o lugar reservado que a nossa espécie ocupa no mundo orgânico. Pôde-se ver que profundas diferenças físicas e morais a separavam de todas as outras classes de seres vivos. [...] A variedade com melanina é a mais humilde e jaz no grau baixo da escala. O caráter de animalidade impresso na forma da sua bacia lhe impõe seu destino desde o momento da sua concepção. Ela nunca sairá do círculo intelectual mais restrito. Não é, porém, uma besta pura e simples, este negro de testa estreita e alongada que traz, na parte mediana do seu crânio, os indícios de certas energias grosseiramente poderosas. Se estas faculdades pensantes são medíocres ou até mesmo nulas, ele possui no desejo e, por conseguinte, na sua vontade, uma intensidade terrível. Diversos de seus sentidos são desenvolvidos com

169 VERNE, 1975b, p. 203.

102

um vigor desconhecido das duas outras raças: o paladar e o olfato principalmente. A esses principais traços de personalidade, ele soma uma instabilidade de humor, uma variabilidade de sentimentos que nada é capaz de fixar e que anula, para ele, tanto a virtude quanto o vício. A raça amarela apresenta-se como a antítese desse tipo. O crânio, ao invés de ser projetado para trás, porta-se precisamente para frente. A testa larga, ossuda, frequentemente saliente, desenvolvida para o alto, pesa sobre o aspecto triangular do rosto em que o nariz e o queixo não apresentam nenhuma das saliências grosseiras e rudes que distinguem o negro. Uma tendência geral à obesidade não é nessa raça um traço completamente especial, mesmo assim, ela se apresenta mais frequentemente nas tribos amarelas do que nas outras variedades. Pouco vigor físico, disposições à apatia. No moral, nenhum desses estranhos excessos, tão comuns nos de melanina. Desejos fracos, uma vontade mais obstinada do que extrema, um gosto perpétuo, mas tranquilo, pelos prazeres materiais, com uma rara gula, mais escolhas que os negros nas iguarias destinadas a satisfazê-la. Em todas as coisas, tendência à mediocridade; compreensão bem fácil do que não é nem tão elevado nem tão profundo; amor pela utilidade, respeito das regras, consciência das vantagens de uma certa dose de liberdade. Os amarelos são pessoas práticas no sentido restrito da palavra. Eles não sonham, não provam as teorias, inventam mais, mas são capazes de apreciar e o que serve. Seus desejos se limitam em viver o mais calma e mais comodamente possível. Nota-se que eles são superiores aos negros. É uma plebe e uma pequena burguesia que todo civilizador desejaria escolher por base da sua sociedade. Vêm agora os povos brancos. De energia no raciocínio, melhor dizendo, uma inteligência enérgica; o senso da utilidade, mas numa significação muito mais ampla dessa palavra, mais elevada, mais corajosa, mais ideal do que nas nações amarelas; uma perseverança que se dá conta dos obstáculos e encontra, à distância, os meios de afastá-los; com um maior poder físico, um instinto extraordinário da ordem como meio indispensável de conservação e, ao mesmo tempo, um pronunciado gosto pela liberdade, mesmo extrema; uma hostilidade declarada contra essa organização formalista em que se distraem os chineses, assim como o despotismo orgulhoso, único freio suficiente aos povos negros. Os brancos distinguem-se ainda por um amor singular à vida. Parece que, sabendo melhor utilizá-la, eles lhe atribuem mais valor. Sua crueldade, quando ela se exerce, tem a consciência dos seus exageros, sentimento muito problemático nos negros. Ao mesmo tempo, essa vida ocupada, que lhes é tão preciosa, eles descobriram razões de exercê-la sem murmúrio. A primeira dessas motivações é a honra que, com nomes aproximadamente parecidos, ocupou um enorme lugar nas ideias desde o início da espécie. Não tenho necessidade de reiterar que a palavra honra e a noção civilizadora que ela comporta são, igualmente, desconhecidas pelos amarelos e negros. Para terminar o quadro, acrescento que a imensa superioridade dos brancos, no âmbito da inteligência, associa-se a uma inferioridade não menos marcada na intensidade das sensações. O branco é muito menos dotado que o negro e que o amarelo no que diz respeito à relação sensual. Ele é, assim, menos solicitado e menos absorvido pela ação corporal, mesmo que sua estrutura seja nitidamente mais vigorosa.170

170 “J’ai montré la place réservée qu’occupe notre espèce dans le monde organique. On a pu voir que de profondes différences physiques et morales la séparaient de toutes les autres classes d’êtres vivants. [...] La variété mélanienne est la plus humble et gît au plus bas de l’échelle. Le caractère d’animalité empreint dans la forme de son bassin lui impose sa destinée, dès l’instant de la conception. Elle ne sortira jamais du cercle intellectuel le plus restreint. Ce n’est pas cependant une brute pure et simple, que ce nègre à front étroit et fuyant, qui porte, dans la partie moyenne de son crâne, les indices de certaines énergies grossièrement puissantes. Si ces facultés pensantes sont médíocres ou même nulles, il possède dans le désir, et par suíte dans sa volonté une

103

Contrastando os três retratos, percebemos que somente a raça branca ou ariana,

criadora da civilização, possui as virtudes mais elevadas do homem: honra, amor à liberdade,

vigor físico, etc – qualidades que poderiam ser perpetuadas apenas se a raça permanecesse

pura. Em Jules Verne, o leitor pode se deparar com frases que permitem descobrir vestígios

do discurso de Arthur de Gobineau. Em Les enfants du capitaine Grant temos as passagens

que antecedem e precedem, respectivamente, o retrato do aborígene australiano (cf. item 4.3):

“Il y a cinquante ans, ajouta Paganel, nous aurions déjà rencontré sur notre route mainte tribus

de naturels, et jusqu'ici pas un indigène n'est encore apparu. Dans un siècle, ce continent sera

entièrement dépeuplé de cette race noire”171; e “Mais lady Helena avait encore plus raison que

Mac Nabbs, en tenant pour des êtres doués d'une âme ces indigènes placés au dernier degré de

l'échelle humaine.”172 Nessas passagens não se lêem somente a ideia da existência de “raças”,

intensité terrible. Plusieurs de ses sens sont développés avec une vigueur inconnue aux deux autres races: le goût et l’odorat principalement. À ces principaux traits de caractère il joint une instabilité d’humeur, une variabilité de sentiments que rien ne peut fixer, et qui annule, pour lui, la vertu comme le vice. La race jaune se présente comme l’antithèse de ce type. Le crâne, au lieu d’être rejeté en arrière, se porte précisement en avant. Le front large, osseux, souvent saillant, développé en hauteur, plombe sur un faciès triangulaire, où le nez et le menton ne montrent aucune des saillies grossières et rudes qui font remarquer le nègre. Une tendance générale à l’obésité n’est pas là un trait tout à fait spécial, pourtant il se rencontre plus fréquemment chez les tribus jaunes que dans les autres variétés. Peu de vigueur physique, des dispositions à l’apathie. Au moral aucun de ces excès étranges, si communs chez les mélaniens. Des désirs faibles, une volonté plutôt obstinée qu’extrême, un goût perpetuel mais tranquille pour les jouissances matérielles, avec une rare gloutonnerie, plus de choix que les nègres dans les mets destinés à la satisfaire. En toutes choses tendance à la médiocrité; compréhension assez facile de ce qui n’est ni trop élevé ni trop profond; amour de l’utile, respect de la règle, conscience des avantages d’une certaine dose de liberté. Les jaunes sont des gens pratiques dans le sens étroit du mot. Ils ne rêvent pas, ne goûtent pas les théories, inventent plus, mais sont capables d’apprécier et d’adopter ce qui sert. Leurs désirs se bornent à vivre le plus commodément possible. On voit qu’ils sont supérieurs aux nègres. C’est une populace et une petite bourgeoisie que tout civilisateur désirerait choisir pour base de sa société. Viennent maintenant les peuples blancs. De l’énergie réfléchie, ou pour mieux dire, une intelligence énergique; le sens de l’utile, mais dans une signification de ce mot beaucoup plus large, plus élevée, plus courageuse, plus idéale que chez les nations jaunes; une persévérance qui se rend compte des obstacles et trouve, à la longue, les moyens de les écarter; avec une plus grande puissance physique, un instinct extraordinaire de l’ordre comme moyen indispensable de conservation, et en même temps, un goût prononcé de la liberté, même extrême; une hostilitée déclarée contre cette organisation formaliste où s’endorment les Chinois, aussi bien que le despotisme hautain, seul frein suffisant aux peuples noirs. Les blancs se distinguent encore par un amour singulier de la vie. Il paraît que, sachant mieux en user, ils lui attribuent plus de prix. Leur cruauté, quand elle s’exerce, a la conscience de ses excès, sentiment très problématique chez les noirs. En même temps, cette vie occupée, qui leur est si précieuse, ils ont découvert des raisons de la livrer sans murmure. Le premier de ces mobiles, c’est l’honneur, qui, sous de noms à peu près pareils, a occupé une énorme place dans les idées, depuis le commencement de l’espèce. Je n’ai pas besoin d’ajouter que ce mot d’honneur et la notion civilisatrice qu’il renferme sont, également, inconnue aux jaunes et aux noirs. Pour terminer le tableau, j’ajoute que l’immense supériorité des blancs, dans le domaine de l’intelligence, s’associe à une infériorité nons moins marquée dans l’intensité des sensations. Le blanc est beaucoup moins doué que le noir et que le jaune sous le rapport sensuel. Il est ainsi moins sollicité et moins absorbé par l’action corporelle, bien que sa structure soit remarquablement plus vigoureuse.” Cf. GOBINEAU, 1983, p. 339-342. 171 VERNE, 1975b, p. 320. 172 VERNE, 1975b, p. 321.

104

mas as diferenças entre elas, sua “natural” dizimação e, ainda, o lugar que o aborígine

australiano negro (que será comparado a um macaco) ocupa na escala humana em diametral

oposição ao homem branco.

Como síntese geral de seu ensaio, podemos concluir que Gobineau considera o fator

étnico decisivo para estabelecer a causa do fim das civilizações. Para ele, a espécie humana

está dividida em três grandes raças: a branca, a amarela e a negra, sendo a primeira superior às

demais, assim como veremos no confronto entre os retratos de brancos e “primitivos”,

adiante. Para Gobineau, as raças negra e amarela seriam variedades inferiores da espécie

caucasiana, enquanto a raça branca possui o monopólio da beleza, da inteligência e da força.

Segundo ele, todas as grandes civilizações que têm existido devem sua grandeza ao fato de

terem sido dirigidas por povos de raça branca que se originavam em uma suposta raça ariana;

a causa da degeneração e queda das grandes civilizações fundadas pela raça branca deveu-se

às misturas raciais (“mélanges”), dos brancos com os estrangeiros.

Se é legítimo insistir que o século XIX foi uma étapa decisiva para a difusão do que

reconhecemos hoje como “racismo”, deve-se levar em conta que a literatura incorpora, numa

linguagem mais ou menos elegante, as ideias científicas de seu tempo. Os romances que

pertencem ao nosso corpus de análise, nomeados no conjunto “Viagens extraordinárias aos

mundos conhecidos e desconhecidos”, encenam exatamente esse pensamento: é com a

“descoberta” de mundos desconhecidos (através de viagens) povoados por indivíduos de

costumes e aparências insólitas que as primeiras teorias da desigualdade das raças vão surgir.

As teorias de Gobineau não eram totalmente novas, mas inserem-se em uma discussão

que tem origem em observações científicas do século XIX, como por exemplo, o uso da

ciência frenológica, que dá substrato científico às suas conclusões. Inscritas e escritas num

espaço e tempo específicos, as “Viagens extraordinárias” não ignoram as controvérsias que

105

ocupavam os naturalistas e filósofos do momento, no que diz respeito à temática da origem

humana e sua evolução biológica. Se o papel da ciência e das técnicas em Verne é objeto

prolífero para se efetuarem estudos, vale também saber como o escritor apropriou-se do

darwinismo, célebre teoria científica desenvolvida na segunda metade do século em que

viveu.

Charles Robert Darwin (1809-1882) foi o naturalista britânico cujo gênio levou à

fundação das bases e princípios da teoria da seleção natural e da teoria da evolução. Sua

conhecida jornada a bordo Beagle deve ser vista como fase preparatória e prelúdio

indispensável para sua principal obra, A Origem das Espécies (1859). O grande trabalho de

Charles Darwin, veementemente criticado por não dar suporte à versão da criação encontrada

no Gênesis bíblico, marcou o início de uma revolução nas ciências e foi o gatilho para uma

profunda revisão das concepções filosóficas e religiosas vigentes, gerando controvérsias na

Europa vitoriana e ainda na atualidade, mesmo que em menor proporção.

A teoria de Darwin sugere que a seleção natural, o mecanismo pelo qual procede a

evolução, ocorre de forma alheia às vontades divinas. Com base nas suas observações,

Darwin afirmava que as espécies têm crias em número elevado demais para que todas possam

sobreviver e os descendentes com variações mais favoráveis à sobrevivência no ambiente em

que se encontram são selecionados.173

Resumidamente, a teoria da evolução de Darwin, propõe que as mutações, as

recombinações gênicas, a seleção natural, as diferenças de ambiente, os movimentos

migratórios e o isolamento, tanto geográfico quanto reprodutivo, concorrem para alterar a

frequência dos genes nas populações de seres vivos e são, assim, os principais fatores da

evolução. Darwin explica, no quarto capítulo de A origem das espécies intitulado “Seleção

natural, ou a sobrevivência dos mais adequados”, que duas raças geograficamente isoladas

evoluem independentemente e se diversificam cada vez mais, até que as diferenças nos órgãos

173 Cf. DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo: Escala, 1998, capítulo IV, p. 97-151.

106

reprodutores, ou nos instintos sexuais, ou no número de cromossomos sejam significativas o

suficiente a ponto de tornar o cruzamento entre elas impossível ou, quando possível, geram

raças produtoras de prole estéril. Com isso, as duas raças transformam-se em espécies

distintas, isto é, populações incapazes de trocar genes. Daí por diante, mesmo que as barreiras

venham a desaparecer e as espécies passem a compartilhar o mesmo território, não haverá

entre elas cruzamentos viáveis. As duas espécies formarão, para sempre, unidades biológicas

estanques, de destinos evolutivos diferentes.

Darwin chega às conclusões acima através de suas observações acerca das relações

entre animais isolados em ilhas, nas proximidades de terras continentais e entre animais vivos

e outros recentemente extintos do mesmo ambiente. Essas conclusões o levaram a uma

reflexão sobre a interconexão desses fatos e a modificação das espécies e, posteriormente, à

aplicação dessas teorias aos seres humanos, culminando na obra A origem do homem e a

seleção sexual (1871). Foi nesta obra que se desenvolveu a teoria da “origem comum

universal”, isto é, quando um grupo de organismos partilha um mesmo ancestral. Desta teoria

decorre a ideia vulgarizada da origem símia do homem, material caro ao escritor Jules Verne

e menção recorrente na construção dos retratos de alguns personagens dos romances que

estudamos.

De acordo com Darwin, a origem comum foi inicialmente deduzida a partir de quatro

simples fatores exercidos sobre seres vivos: em primeiro lugar, eles têm distribuições

geográficas que não podem ser explicadas por adaptações locais; segundo, a diversidade da

vida não se constitui como uma série de organismos completamente únicos, pois os seres

vivos têm semelhanças morfológicas; terceiro, características vestigiais com nenhuma

utilidade evidente são parecidas com características ancestrais funcionais; finalmente, que

organismos podem ser classificados usando estas semelhanças numa hierarquia de grupos.

Ora, notamos o mesmo princípio de classificação e hierarquização pregado por Gobineau que

gera, em suma, a teoria racista por ele proposta e com a qual a literatura verniana estabelece

107

uma relação interdiscursiva. Não pretendemos entrar, aqui, na longa e controversa discussão

que trata de um racismo latente em Darwin. Queremos mostrar que o pensamento do

naturalista apresenta sua indissolúvel ligação com os valores e ideias dominantes, o que está

presente em suas teses biológicas. Porém, dizer que a obra de Darwin carrega o “espírito da

época” não seria também afirmar que estas teses científicas reforçariam tais preconceitos?

Primeiramente, evocaremos o exemplo de Verne enquanto autor teatral, face não

muito conhecida do escritor, por fazer parte da sua produção da juventude e, portanto, anterior

ao sucesso das “Viagens extraordinárias.” No entanto, sua obra neste gênero é algo extensa:

cinco dramas históricos, dezoito comédias e vaudevilles, oito livretos para óperas-cômicas e

operetas e sete peças adaptadas de romances do conjunto “Viagens extraordinárias”, ou seja,

um total de trinta e oito peças.174

Monsieur de Chimpanzé, escrita em 1857, é uma opereta em um ato com livreto de

Jules Verne e música de Aristide Hignard. Foi apresentada pela primeira vez no Théâtre des

Bouffes Parisiens, no dia 17 de Fevereiro de 1858. Foi encenada treze vezes em 1858 e três

vezes em 1859.175

Os personagens desta opereta são o Dr. Van Carcass, conservador do museu de

Roterdam, sua jovem filha Étamine, o jovem pretendente da filha, Isidore, e o criado,

Baptiste. O enredo é simples e divertido: Van Carcass não autoriza o namoro da filha com

Isidore. Este, para se encontrar com ela, coloca-se na pele de um chimpanzé que Van Carcass

conservava no museu. Uma vez dentro do museu e sob a pele do chimpanzé, as situações

cômicas provocadas pelo estratagema de Isidore se sucedem.

A distância a que hoje estamos do momento em que a peça foi criada abre uma série

de possíveis novas interpretações para determinadas situações que ali ocorrem, como por

exemplo, no que se refere ao parentesco entre o homem e o chimpanzé ou os macacos.

174 Cf. TOUTTAIN, 1974, p. 349-356. 175 Publicada no Bulletin de la Société Jules Verne, número 57, 1981, páginas 13-32 com prólogo e notas de Robert Pourvoyeur.

108

Esta obra foi escrita cerca de dois anos antes da publicação de A origem das espécies

de Charles Darwin; logo, é pouco provável que Jules Verne tivesse tido conhecimento da

teoria da evolução das espécies do naturalista inglês. Isto não nos impede, no entanto, de

apreciar esta peça a partir das ideias sobre a origem comum (origem símia) do homem, já que

estas eram informações que já circulavam à época. Os estudos de Lamarck (1744-1829),

criador do termo “Biologia” e da teoria dos caracteres adquiridos, ideias que precedem as

teorias darwinistas sobre a evolução, por exemplo, atestam o contexto em que se elabora o

texto dramático de Verne.

Nas “Viagens extraordinárias”, Charles Darwin é explicitamente citado duas vezes em

Vingt mille lieues sous les mers, porém, mais por seus talentos de naturalista, como veremos,

do que pela novidade apresentada por sua teoria. Com efeito, um dos substratos científicos

essenciais do relato de Verne é a biologia marinha. As coleções de animais marinhos

apresentados nos salões do Nautilus, mostradas pelas pranchas zoológicas nas ilustrações

originais, atestam esse aspecto e une o romance e o darwinismo na medida em que a redação

de A origem das espécies se funda com a viagem de exploração do naturalista a bordo do

Beagle. Na ficção, um raciocínio científico permite que o capitão Nemo descubra uma

passagem submarina ligando o Mar Vermelho e o Mediterrâneo, “l’Arabian Tunnel”. O

Nautilus serve, portanto, como ferramenta de experimentação nas mãos de Nemo que pode

verificar suas teorias cientificamente. As observações de Darwin constituem, por outro lado,

uma referência direta que alimenta o texto de Verne, como aparece na citação explícita:

Un animal non moins hideux que je rencontrai plusieurs fois ce fur ce crab énorme observé par M. Darwin, auquel la nature a donné l’instinct et la force nécessaires pour se nourrir de noix de coco; il grimpe aux arbres du rivage, Il fait tomber la noix qui se fend dans sa chute et l’ouvre avec ses puissantes pinces.176

A descrição da fauna submarina do lugar e da exatidão das informações dadas leva-

nos a pensar na função do “desconhecido” revelado pela ciência em Jules Verne e dos

176 VERNE, Jules. Vingt mille lieues sous les mers. [s.l.]: Editions No papers, 2000a, p. 119. Disponível em: jv.gilead.org.il/forum. Última consulta: 15/06/2010.

109

conhecimentos científicos do momento: animais extraordinários e naturais surgem para

surpreender o leitor.

Porém, não é somente o Darwin naturalista que é evocado em Vingt mille lieues sous

les mers. A segunda referência explícita, que diz respeito a formações calcárias de que se

originaram certas ilhas do Pacífico, discute uma das hipóteses necessárias ao darwinismo:

aquela do tempo para que as espécies se transformem, pondo em dúvida, assim, a idade da

Terra dada pela Bíblia e até então admitida:

Les madrépores, qu’il faut se garder de confondre avec les coraux, ont un tissu revêtu d’un encroûtement calcaire [...] Les petits animacules qui sécrètent ce polypier vivent par milliards au fond de leur cellule. Ce sont leurs dépôts calcaires qui deviennent rochers, récifs, îlots, îles… Ces polypes se développent particulièrement dans les couches agitées de la surface de la mer, et par conséquent, c’est par leur partie supérieure qu’ils commencent ces substructions, lesquelles s’enfoncent peu à peu avec les débris de sécrétions qui les supportent. Telle est, du moins, la théorie de M. Darwin, qui explique ainsi la formations des atolls – théorie supérieure selon moi […]. “Donc, pour éléver ces murailles, me dit-il, il a fallu? -Cent quatre-vingt-douze mille ans, mon brave Conseil, ce qui allonge considérablement les jours bibliques.177

Esta passagem ultrapassa a simples dimensão de classificação e de descrição

naturalista para dar conta de hipóteses explicativas ainda audaciosas nesta metade do século

XIX.

Em análise de outros exemplos das “Viagens extraordinárias”, Philippe Clermont

publicou um artigo intitulado “Jules Verne, ou un darwinisme en suspens” no livro Jules

Verne 100 ans après, organizado pelos especialistas vernianos Jean-Pierre Picot e Christian

Robin.178 Neste artigo, Clermont usa duas das viagens do conjunto para exemplificar as

relações interdiscursivas com a ciência, notadamente com as teorias de Darwin: trata-se de

Village aérien (1901) e do póstumo L’Éternel Adam (1910).

Para o primeiro romance, Clermont afirma que se trata de uma viagem baseada no

tema da ascendência comum e que os personagens negros fariam parte do elo perdido; seriam 177 VERNE, 2000a, p. 75. 178 CLERMONT, Philippe. “Jules Verne, ou un darwinisme en suspens”. In PICOT, Jean-Pierre & ROBIN, Christian (dir.). Jules Verne 100 ans après – Actes du Colloque de Cerisy: Rennes : Terre de Brume, 2005, p. 347-367.

110

seres “intermediários” entre o homem e o macaco na escala evolutiva, dando margem, assim,

para diversas citações do nome de Darwin.179 A menção à palavra “intermédiaire”, neste

romance, evocando claramente a crença do narrador nas teorias evolucionistas de Darwin, no

sentido em que Clermont a utiliza, também pode ser encontrada em Les enfants du capitaine

Grant quando os personagens se deparam com o aborígene australiano. O narrador,

materializado nas palavras de Mac Nabbs, major do navio, afirma: “Des hommes! s'écria Mac

Nabbs. Tout au plus des êtres intermédiaires entre l'homme et l'orangoutang.”180 (cf. item 4.3,

p.148 )

Ainda para caracterizar o tipo aborígine australiano, temos implícitas outras

informações que corroboram a relação interdiscursiva que podemos estabelecer com as

conclusões do naturalista que constituem, tanto para o narrador onisciente como para os

personagens, indícios de humanidade (ou sua ausência): a falta da predominância da

inteligência sobre o instinto animal: “Ils revinrent alors, moitié confiants, moitié craintifs,

comme des animaux auxquels on tend quelque morceau friand”181; ou ainda a falta de

linguagem articulada do povo australiano: “Les compagnons du géographe n'avaient pas

encore eu le temps de hausser les épaules, que des cris qu'on pourrait orthographier ainsi:

“coo-eeh! coo-eeh!” retentirent à peu de distance.”182

Somaríamos às evidências encontradas em Les enfants du capitaine Grant, as diversas

comparações dos tipos africanos com o macaco ao longo do romance Cinq semaines en ballon

(cf. item 4.2). Estas comparações materializam a crença do narrador na hipótese da origem

símia do homem, na hierarquia biológica que pode ser notada entre os homens e, ainda, num

âmbito mais amplo, atestam a incorporação do discurso científico no literário.

No romance Le Chancellor, a interdiscursividade com a teoria darwinista se dá

implicitamente. O cozinheiro negro Jynxtrop regride ao estado bestial, como trataremos ao

179 Cf. CLERMONT in PICOT & ROBIN, 2005, p. 352. 180 VERNE, 1975b, p. 321. 181 VERNE, 1975b, p. 321. 182 VERNE, 1975b, p. 321.

111

analisarmos seu retrato (cf. item 4.4, p.162), não só por protagonizar uma cena de

canibalismo, mas também por encarnar uma regressão no plano intelectual e mental. Em Le

Chancellor, portanto, podemos levantar a hipótese de uma evolução-regressiva de uma

espécie. Não se nota uma regressão fisiológica para Jynxtrop, mas sim moral, de modo

paradoxal, poderíamos dizer que o personagem do cozinheiro, regredindo ao estado animal,

representa o “elo pedido” entre o macaco e o homem. Essa ideia se fortalece com a

comparação deste personagem a uma “bête féroce”, fato que o aloca num nível inferior na

hierarquia humana e social, entre os passageiros da embarcação.

Devido ao desejo de os narradores dos três romances que compõem o corpus de nossa

pesquisa de criar uma hierarquia entre os personagens com base científico-biológica, vemos

reforçada a ideia que consiste em utilizar uma parte da teoria de Darwin (a seleção natural e a

evolução das espécies) para uma transposição social.

O título de profeta que é atribuído com frequência ao escritor Jules Verne cabe ser

mencionado aqui. Embora use as teorias darwinistas no seu respaldo biológico, Verne adianta

a sua aplicação social que recebeu o nome de “darwinismo social”, no século XX. O termo,

popularizado em 1944 pelo historiador americano Richard Hofstadter, em seu livro Social

Darwinism in American Thougth, foi empregado para tentar explicar a pobreza pós-revolução

industrial, sugerindo que aqueles que se encontravam em situação de pobreza eram os menos

aptos a sobreviver (segundo a teoria de Darwin); os mais ricos, que evoluíram

economicamente, seriam os mais aptos e, por isso, os mais evoluídos. Essa interpretação diz

respeito também à tentativa de se aplicar o darwinismo nas sociedades humanas para explicar,

por exemplo, a diferença e a hierarquia raciais entre os seres humanos, a possível

inferioridade dos povos negros, principalmente no que se refere à inteligência, o combate

contra a miscigenação e, ainda no século XIX, a justificativa para o imperialismo europeu. De

acordo com esse pensamento, existiriam características biológicas e sociais que

112

determinariam que uma pessoa é superior à outra e que as pessoas que se enquadrassem em

tais ou tais critérios seriam mais aptas e capazes à vida em sociedade.

A tentativa de querer estabelecer uma relação evolutiva entre o macaco e o homem

poderia ser uma das conclusões da dimensão científica de base darwinista na ficção verniana.

Fica-nos claro que o que chamamos de diálogo interdiscursivo com as teorias científicas de

Darwin não está ligado somente a um conjunto de conceitos fechados, mas sim a uma

interpretação da teoria que começava a se vulgarizar, de acordo com Philippe Clermont.183 O

darwinismo não precisava da prova do “elo perdido” para ter coerência e a “ascendência

símia” se distancia da ideia de “ascendência comum”, estabelecida por Darwin.184 O debate

gerado nos romances de Verne que, por um lado, trata da distinção entre humanidade e

animalidade e, por outro lado, da ascendência do homem é produto e, ao mesmo tempo,

produtor das polêmicas suscitadas pelos trabalhos de Darwin. Tomando os estudos do biólogo

e naturalista como inaceitáveis ainda para o horizonte de ideias da segunda metade do século

XIX, visto as polêmicas geradas por sua teoria, Jules Verne se vale parcialmente de alguns

aspectos dos estudos darwinistas, aliando discusões científicas à literatura, se atendo a

explorar sua parte mais visível, ricas em imagens fortes e controversas.

183 Cf. CLERMONT in PICOT & ROBIN, 2005, p. 357. 184 Contrariamente ao que vulgarmente se forjou, “o homem não vem do macaco”. Homens e macacos pertencem a linhas evolutivas paralelas que remontam a uma origem em comum. A imagem e ideia da origem símia do homem que se perpetuou é tão somente produto de uma vulgarização.

113

4. BRANCOS VERSUS SELVAGENS: AS ANÁLISES DOS RETRATOS

Como vimos, os retratos dos personagens de Jules Verne apresentam

interdiscursividade com a ciência e a história e são carregados de sentidos, sobretudo

ideológicos.

Efetivamente, Verne, embora use um esquematismo estereotipado dos seus

personagens, não faz deles focos de lances dramáticos ou ações melodramáticas.

Evidentemente, Verne recorre à intriga, à expectativa típica do narrativo, em algumas de suas

obras. Contudo, na maior parte delas, o fio do enredo é secundário e extremamente

simplificado, como no caso de La Jangada, em que um jovem enamorado tem que encontrar

um objeto precioso para obter a mão da amada; ou é dependente da descrição, como em Cinq

semaines en ballon.

Assim, crendo que é evidente a importância que o descritivo assume no conjunto da

obra verniana e a partir do que expusemos até agora, pretendemos no seguinte item, aplicar a

análise do descritivo aos retratos dos personagens nos romances do corpus. Nosso ponto de

partida será a apresentação do aparato conceitual da teoria do descritivo com base nos estudos

de Philippe Hamon e Adam & Petitjean. Em seguida, estabeleceremos um modelo do

funcionamento da descrição dos retratos nos romances de Jules Verne. Ao longo das análises,

retomaremos os elementos da interseção entre as artes literária e pictural do retrato. Então,

apresentaremos algumas linhas de coerência de visão de mundo, no confronto do “nós” com

os “outros”, que remetem para o campo das mentalidades e, em última análise, para o campo

do ideológico.

114

4.1. O sistema descritivo e o retrato

Para que se compreenda a questão da relação entre as estruturas lógico-semânticas e as

lexicais no tocante aos retratos que é, em linhas gerais, uma pausa descritiva num texto

narrativo ou argumentativo, tomaremos como ponto de partida estudos e propostas teóricas

que já abordaram essa questão, levando em conta, especificamente, o problema do descritivo.

Referindo-se às competências que, quer na produção, quer na recepção, parecem

naturalizar uma oposição tradicionalmente evidente, Hamon apresenta as seguintes distinções

entre o sistema descritivo e o sistema narrativo: em primeiro lugar, a memória intradescritiva,

solicitada numa descrição, é de curto alcance, relacionando um termo com o paradigma que

declina as suas propriedades ou que, por associação (sinédoque, por exemplo), enumera as

partes que a ele se ligam, apenas a curtas distâncias textuais. A memória intradescritiva opõe-

se à memória narrativa, capaz de recordar um personagem em peripécias textualmente

afastadas. Em resumo, uma estrutura narrativa constrói, através de seu enunciado, um

horizonte de expectativas de tipo binário (partida/regresso; falta/reparação da falta), ao passo

que a descrição modifica, sobretudo, o nível em que o horizonte de expectativas do leitor se

desenvolve, passando este a focalizar as estruturas lexicais e morfológicas.185

Essa diferença fundamental de competências postas em jogo na leitura, que resulta do

fato de a descrição ser o que o autor designa por consciência lexicográfica do enunciado186,

possibilita-nos uma melhor compreensão do descritivo em Jules Verne.

As narrativas analisadas, pela ação que desenvolvem, respondem às expectativas

expressas pelo programa em que se apresentam: o das “Viagens extraordinárias”.

Basicamente, cada partida, seja a do balão Victoria em Cinq semaines en Ballon, seja do

navio Duncan em Les enfants du capitaine Grant, cria uma implicação de chegada, deixando

prever transformações intermediárias, obstáculos a vencer, revelações a fazer, pretextos para

que o narrador realize também todo tipo de descrições. Em Le Chancellor não há “chegada”

185 Cf. HAMON, 1981, p. 42-44. 186 Cf. HAMON, 1981, p. 45.

115

ou “final” da viagem, já que ocorre o naufrágio. No entanto, a história avança por peripécias

em que o descritivo também se faz presente.

Mais do que uma operação de ancoragem para referências críveis, como expusemos no

capítulo em que tratamos da intertextualidade e da interdiscursividade com a ciência e a

história, o descritivo verniano constitui-se como um elemento importante no seio da narrativa

que se desenvolve. A descrição em Verne, seja de uma cena, de uma paisagem ou de um

retrato, não é somente um efeito que surge na intriga. Desde o início de cada um dos

romances analisados, o pacto de leitura pressupõe a descrição como atividade principal; por

exemplo, Fergusson não precisa de motivações para descrever: toda viagem do balão é uma

motivação, os gritos de espanto do criado ou as perplexidades do seu amigo caçador

constituem pausas no longo discurso proferido pelo sábio enquanto voa.

O texto descritivo em Jules Verne aparece, em diversos casos, como descrição

claramente demarcada. Falamos aqui da descrição tal como Hamon a define: “unidade

estilística dotada de certa autonomia e munida de certas marcas.”187 Assegurando essa

autonomia que a torna destacável de um todo, a descrição tem suas demarcações de início e

fim. Entre as várias marcas de início e fim, segundo Hamon, podem-se destacar as seguintes:

sinais tipográficos (branco, alínea), morfológicos, (mudanças de tempos e modos em relação

ao texto em que a descrição se insere), intrusões do narrador anunciando a descrição,

utilização de expressões metalinguísticas sugerindo a descrição (retrato, descrição, paisagem),

utilização de preterições diversas (“que espetáculo indescritível...” “que pincel poderia dar as

cores...”) em torno do nome do objeto ou do tema tratado. São estes os processos mais

frequentes que podem aparecer isolados ou conjugados, para referir ou para sublinhar que o

enunciado vai situar-se sob uma dominante descritiva, que um novo pacto de leitura é

proposto e que vão surgir outros horizontes de expectativa.

187 “Unité stylistique dotée d’une certaine autonomie et pourvue de certaines marques”. HAMON, 1981, p. 180.

116

Para os retratos literários, caso de descrição que nos interessa mais particularmente,

Hamon afirma, em Du descriptif, que as relações existentes entre descrição e personagens,

caracterização e personalidade, assunto (motivo da descrição) e Sujeito, são relações

privilegiadas pelo sistema descritivo na retórica clássica.188 Pensando essas relações não mais

em termos hierárquicos, como na retórica clássica em que a descrição está a serviço dos

personagens, mas em termos de colaboração semiológica, Hamon define o personagem, ou

como ele nomeia, o “efeito-personagem”, como sendo “a soma, o produto de um certo

número de efeitos descritivos disseminados no enunciado.”189

A noção de efeito-personagem, segundo o autor, diz respeito a uma unidade

semiológica, menos localizável e mais difusa na trama.190 Daí o estatuto literário privilegiado

do retrato, já que este é uma descrição que focaliza e ao mesmo tempo é foco do

reagrupamento e da constituição de sentidos do personagem; trata-se do lugar do texto em que

se fixa e se modula a unidade do personagem na memória do leitor.191

Essa visão semiológica de efeito-personagem será produtiva em diversos casos:

quando tratarmos de personagens cujo retrato é velado no incipit do romance e construído ao

longo da narrativa e não num bloco descritivo; quando o retrato for construído dentro do

diálogo de personagens que falam do que estão vendo, dando detalhes do que vêem e,

portanto, contribuindo para a construção da imagem de um outro personagem na memória do

leitor, antes que o narrador intervenha com um bloco descritivo; ou quando o retrato não for

apresentado na forma da homogeneidade descritiva, comum ao bloco descritivo, mas sim

como um compósito, como menciona Hamon, quando há oposição ou neutralização entre

partes da descrição, como por exemplo, uma primeira impressão que se tenha de um

personagem oposta a uma segunda impressão192. Os casos acima descritos fazem parte dessa

188 Cf. HAMON, 1993, p. 104. 189 “L’effet-personnage dans un récit n’est que la somme, la résultante d’un certain nombre ‘d’effets descriptifs’ disséminés dans l’énoncé.” HAMON, 1993, p. 105. 190 Cf. HAMON, 1993, p. 105. 191 Cf. HAMON, 1993, p. 105. 192 Cf. HAMON, 1993, p. 109.

117

noção de efeito-personagem e, para o corpus que selecionamos, estas características estariam

a serviço do suspense.

Embora se assemelhem por tratar de características físicas e morais de um

personagem, o efeito-personagem está em oposição ao retrato enquanto bloco descritivo

definido, que existe isolado numa parte do texto. Para compreendermos o retrato na tipologia

do descritivo enquanto unidade textual identificável e para podermos ver como se constroi

essa unidade em Verne, é primordial a abordagem das estruturas discursivas que são o lugar

por excelência da manifestação do que nos trabalhos de Hamon e de Adam & Petitjean é

designado por “sistema descritivo.”

Resumindo as características fundamentais de base do sistema descritivo, Adam &

Petitjean definem a descrição como uma coleção de elementos agrupados em torno de um

elemento temático193, a que chamam tema-título, procurando desse modo caracterizar a

função mais comum do processo de nomeação de um texto, que é a da produção de uma

expectativa e o desencadear de um processo de compreensão e de memorização que favoreça

a leitura. O temas-títulos, na configuração da linguística textual de Adam & Petitjean,

normalmente, são nomes comuns ou próprios que fixam os enquadramentos determinando um

horizonte de expectativas concernentes à presença e à função de elementos previsíveis.

Ainda segundo os dois autores, a descrição é um texto coeso, constituído por

predicados sucessivos, enunciados a partir de um número de significados constantes. Desse

modo, assegura-se sua progressão e coesão. O tema-título explícito no início de uma

descrição, podendo também aparecer no fim ou ficar implícito, não só orienta a interpretação

e fixa a legibilidade do enunciado, como comporta um conjunto de elementos esperados e

ordenados segundo esquemas. A ordem de aparição das duas séries de elementos (a da

nomenclatura e a dos predicados) obedece, como veremos, a uma progressão que é

normalmente explicitada e especificada.

193 Cf. ADAM, J.-M. & PETITJEAN, A. Le texte descriptif; poétique historique et linguistique textuelle. Paris: Nathan, 1989, p. 111.

118

A proposta de Adam & Petitjean é devedora da que anteriormente já efetuara Hamon

ao longo do capítulo que dedica à tipologia descritiva em Introduction à l’analyse du

descriptif, de 1981. Como já explicitamos no capítulo dos retratos, para Hamon, o sistema

descritivo é um jogo de equivalências hierárquicas entre uma denominação e uma expansão,

ou seja, entre uma palavra e um estoque de palavras justapostas em lista, coordenadas ou

subordinadas num texto. À denominação, que é explicita ou implícita, cabe o papel de

assegurar a permanência e a continuidade do conjunto. Esse termo com qualidades de

regência Hamon chama de pantônimo.194 Equivalente a “objeto descrito” passível de ser

denominação ou identificação de um enunciado metalinguístico, o pantônimo recobre, na

acepção de Hamon, o mesmo sentido que tema-título na de Adam & Petitjean.

Do mesmo modo, pode ser encarada a expansão que, segundo Hamon, aparece de duas

maneiras. Como nomenclatura das partes enumeráveis pertencentes ao objeto nomeado pelo

pantônimo ou como designação das qualidades daquele, ou ainda como predicados. A

expansão é designada e analisada do mesmo modo pelos outros dois autores referidos.

Cabe-nos dizer que, no tocante à construção do bloco descritivo, será útil usarmos a

noção de função demarcativa da descrição, responsável pela criação da coesão global e da

coesão interna do bloco descritivo e, logo, o que dá verossimilhança ao conjunto. Para isso,

detemo-nos nos importantes traços característicos da descrição: as grades cardeais que podem

ser sustentadas pelo olhar de um personagem e, estas, por sua vez, sustentam, regem, e

organizam a descrição, permitindo a distribuição homogênea dos itens lexicais; as ordens de

coesão do conjunto descritivo definidas por Hamon que, para o caso dos personagens, seguem

o padrão da descrição física até a descrição moral, isto é da prosopografia à etopeia e de cima

para baixo para as descrições concernentes a retratos.195 Utilizaremos também a noção de

hierarquização dos personagens que serve para indicar o seu nível funcional em relação à

obra, seu estatuto principal ou secundário, tendo compreendido que, quanto mais estendida for

194 Cf. HAMON, 1981, p. 140. 195 Cf. HAMON, 1993, p.140.

119

a descrição, mais o personagem é importante na história.

O sistema descritivo para os retratos em Verne funciona com base no uso do modelo

canônico. Aquilo que Hamon e Adam & Petitjean chamam de o regime do texto legível,

concebe e desenvolve sistematicamente o procedimento da descrição. Podemos tomar como

exemplo que patenteia claramente a existência de frases descritivas, o início dos capítulos de

Cinq semaines en ballon. Aliás, esses “inícios de capítulos” se calcam na formatação textual

dos relatos de viagem publicados na já referida revista Le Tour du monde: há primeiro títulos,

frases nominais curtas, explicitados no início do relato, que resumem o que vai se passar

naquele capítulo.

CHARTON, Le Tour du monde, 1860, p. 306.

120

Assim temos, no primeiro capítulo de Cinq semaines en ballon, os seguintes títulos:

“La fin d’un discours très applaudi – Présentation du docteur Samuel Fergusson – Excelsior –

Portrait en pied du docteur – Un fataliste convaincu – Dîner au Traveller’s club – Nombreux

toasts de circonstance.”196 No terceiro capítulo temos: “L’ami du docteur – D’où datait leur

amitié – Dick Kennedy à Londres – Proposition innatendue, mais point rassurante – Proverbe

peu consolant – Quelques mots du martyrologe africain – Avantages d’un aérostat – Le secret

du docteur Fergusson.”197 E no sexto capitulo: “Un domestique impossible – Il aperçoit les

satellites de Júpiter – Dick et Joe aux prises – Le doute et la croyance – Le pesage – Joe

Wellington - Il reçoit une demi-couronne.”198

A sequência de temas-títulos ou pantônimos anuncia-se claramente pela profusão

onomástica (topônimos, antropônimos, epítetos) e pela designação breve através de

substantivos. Selecionamos os títulos destes capítulos específicos por serem aqueles em que

leremos os retratos dos três personagens que viajarão no balão. A expectativa criada por esses

títulos que aparecem sob a numeração romana do capítulo é cumprida no curso da leitura. Se

observarmos, a título de exemplo, o desenrolar do primeiro retrato apresentado no romance

Cinq semaines en Ballon, constataremos a constituição canônica da frase descritiva. Depois

de uma nomeação do personagem (Présentation du docteur Samuel Fergusson) e de uma

demarcação – “Et le docteur entra au milieu d’un tonnerre d’applaudissements”199 –

anunciando o “quadro” descritivo, ideia reforçada pelos termos caros à pintura (Portrait en

pied), a descrição desenrola-se assim:

C’était un homme d’une quarantaine d’années, de taille et de constitution ordinaires; son tempérament sanguin se trahissait par une coloration forcée du visage. Il avait une figure froide, aux traits réguliers, avec un nez fort, le nez en proue de vaisseau de l’homme prédestiné aux découvertes; ses yeux forts doux, plus intelligents que hardis, donnaient un grand charme à sa physionomie; ses bras étaient longs, et ses pieds se posaient à terre avec l’aplomb du grand marcheur. La gravité calme respirait dans toute la personne du docteur, et l’idée ne venait pas à l’esprit qu’il pût être

196 VERNE, 1975a, p. 1. 197 VERNE, 1975a, p. 11. 198 VERNE, 1975a, p. 25. 199 VERNE, 1975a, p. 3.

121

l’instrument de la plus innocente mystification. Aussi les hourras et les applaudissements ne cessèrent qu’au moment où le docteur Fergusson réclama le silence par un geste aimable. Il se dirigea vers le fauteuil préparé pour sa présentation; puis, debout, fixe, le regard énergique, il leva vers le ciel l’index de la main droite, ouvrit la bouche et prononça ce seul mot : “Excelsior !” 200

Como unidade descritiva mínima, o retrato apresentado acima revela os processos

regulares de formação segundo o sistema elaborado pelos teóricos que apresentamos, tal como

vemos a seguir:

Expansão – definição

Lista ou nomenclatura

Predicados

un homme d’une quarantaine d’années, de taille et de constitution ordinaires

tempérament sanguin se trahissait par une coloration forcée du visage

figure froide, aux traits réguliers nez fort, en proue de vaisseau de l’homme prédestiné

aux découvertes yeux forts doux, plus intelligents que hardis, donnaient

un grand charme à sa physionomie bras longs

Pantônimo ou Tema-título

Le docteur Fergusson

pieds se posaient à terre avec l’aplomb du grand marcheur.

A fórmula comum do bloco descritivo para os retratos vernianos é desenvolvida

segundo o processo canônico que, partindo do pantônimo ou tema-título, se desenrola, em

seguida, numa série mais ou menos longa de nomes associados a predicados e/ou enumeração

de partes. Esse esquema descritivo faz uma espécie de trabalho de ordenação, de agrupamento

de informações, o que Hamon chama de grades descritivas. Para o retrato do doutor

Fergusson apresentado acima, temos no bloco descritivo a menção ao seu nome seguido da

sua idade aproximada. Como mencionamos no item da interseção entre as artes literária e

pictórica do retrato, esse artifício, que era usado por pintores renascentistas, auxiliando a

classificar uma obra no gênero retrato, serve igualmente na formação do retrato literário. A

200 VERNE, 1975a, p. 3.

122

continuação da descrição com uma vista do todo antes de passar aos detalhes, além da

enumeração ou da sequencialidade, respeitam uma ordem de âmbito mais geral: para os

retratos, a distribuição se dá de cima para baixo, como no retrato de Fergusson (rosto – nariz e

olhos; braços e pés).

Com pouca margem de imprecisão, poderíamos estender esse exemplo de construção

descritiva verniana para os romances complementares do nosso corpus, isto é, apresentar esta

construção como modelo geral do processo descritivo de um retrato. Porém, essa

generalização excluiria as nuanças que os retratos apresentam. Assim, abordaremos todas as

descrições a fim de verificar o funcionamento da passagem descritiva nos retratos vernianos,

comparando, ao final, os retratos de brancos e “selvagens”.

4.2. Cinq semaines en ballon: colonialismo justificado

No romance Cinq semaines en ballon – primeiro romance verniano e, portanto, não

integrante do projeto do Magasin d’éducation et de récréation de Hetzel & Macé, e

tampouco publicado em folhetim no jornal Le Temps –, há, no terceiro capítulo, o segundo

retrato do romance, o de Dick Kennedy. Anunciado por um dos títulos do capítulo (L’ami du

docteur), o leitor espera que este outro personagem lhe seja apresentado. Essa expectativa se

cumpre. O retrato de Dick Kennedy tem como linha demarcatória de início o próprio incipit

do capítulo, reforçado pela frase de abertura “Le docteur Fergusson avait un ami. Non pas un

autre lui-même, un alter ego”.201 Esta frase introduz o pantônimo “Dick Kennedy” e dá

abertura a uma apresentação biográfica e moral (etopeia) do novo personagem:

Ce Dick Kennedy était un Écossais dans toute l’acception du mot, ouvert, résolu, entêté. Il habitait la petite ville de Leith, près d’Édimbourg, une véritable banlieue de la “Vieille Enfumée”. C’était quelquefois un pêcheur, mais partout et toujours un chasseur déterminé: rien de moins étonnant de la part d’un enfant de la Calédonie, quelque peu coureur des montagnes des Highlands. On le citait comme un merveilleux tireur à la carabine; non seulement il tranchait des balles sur une lame de couteau, mais les coupait

201 VERNE, 1975a, p. 11.

123

en deux moitiés si égales, qu’en les pesant ensuite on ne pouvait y trouver de différence appréciable.202

O retrato de Dick Kennedy, em que a etopeia predomina, conta com valores morais

bem definidos: “ouvert”, “résolu”, “entêté” e “déterminé” caracterizam este personagem que

alia ação e contato com a natureza: “pêcheur”, “chasseur”, “coureur” des montagnes des

Highlands”, “tireur”. Estes traços são ligados, por assim dizer, a sua nacionalidade e à

localidade onde mora. Cabe-nos aqui mencionar um dado biográfico de Verne. Os topônimos

citados neste retrato e os epítetos que os caracterizam não seriam uma escolha aleatória do

escritor: eles atestam a sua pesquisa e revelam dados da sua origem familiar materna, segundo

alguns pesquisadores da obra verniana entre o quais destacamos Joëlle Dusseau.203 A Escócia,

Caledônia ou região das Highlands e Edimburgo, cidade de fisionomia medieval cujo porto é

Leith e é apelidada de “vieille enfumée”, por conta das fumaças negras que escapam das

chaminés e formam uma nuvem em torno da cidade, aparecerão repetidamente em outros

romances do autor. Por exemplo, em Les enfants du capitaine Grant, Lord Glenarvan e Lady

Helena são também escoceses e moram nas Highlands num castelo cujo nome, Malcolm-

Castle, alude ao do rei Malcolm II, que reinou na Escócia a partir de 1018. Há ainda o capitão

Silas Huntly do Chancellor, que também é escocês.

Com o espaçamento de um parágrafo, marcando a distinção entre retrato moral e

físico, ou seja, entre a etopeia e a prosopografia, o narrador segue com a descrição física

completando e enriquecendo os dados sobre o personagem:

La physionomie de Kennedy rappelait beaucoup celle de Halbert Glendinning, telle que la peinte Walter Scott dans « le Monastère »; sa taille dépassait six pieds anglais; plein de grâce et d’aisance, il paraissait doué d’une force herculéenne; une figure fortement hâlée par le soleil, des yeux vifs et noirs, alors d’une hardiesse naturelle très décidée, enfin quelque chose de bon et solide dans toute sa personne prévenait en faveur de l’Écossais.204

202 VERNE, 1975a, p. 11. 203 Joëlle Dusseau, em sua biografia sobre Jules Verne, publicada em 2005, afirma que Verne tinha realmente uma fixação pela Escócia em razão da sua origem familiar materna. A história e o imaginário escoceses sempre estiveram presentes em Verne. Segundo a autora, Sophie-Henriette Allotte, mãe de Jules Verne, pertencia à nobreza. Sua família descenderia de um arqueiro, escocês, Allot, tendo imigrado para a França no reinado de Louis XI. Cf. DUSSEAU, 2005, p. 28. 204 VERNE, 1975a, p. 11.

124

Para este retrato, calcado na alusão ao personagem Halbert Glendinning, de Walter

Scott205, cujo retrato apresenta características que ecoam no retrato de Kennedy, como por

exemplo, os olhos negros, a pele morena, a audácia e a ousadia, o narrador não economiza nos

traços positivos para pintar o amigo do doutor Fergusson. Entre eles podemos destacar a visão

geral do seu corpo através da altura “sa taille dépassait six pieds anglais” e os “yeux vifs et

noirs” que, numa perspectiva fisiognomônica, indicam audácia, a determinação de um

caçador e a força hercúlea, necessárias para o personagem, ao longo da viagem de balão que

vai empreender. Essas características somadas à graça e a destreza desembocam na figura

geral do personagem que tem seu retrato arrematado positivamente pela frase “quelque chose

de bon et solide dans toute sa personne prévenait en faveur de l’Écossais.”

Mas, se para o retrato de Kennedy o título anunciado no início do capítulo serve de

introdução ao seu retrato completo (etopeia + prosopografia), o mesmo não acontece para o

retrato do personagem Joe, criado do doutor Fergusson (este último retratado no item 4.1,

p.120-121) último passageiro do balão a ser apresentado.

O título “Joe Wellington”, nome próprio e, portanto, pantônimo por excelência de

acordo com a teoria descritiva de Hamon, introduz uma curta apresentação das características

morais deste personagem que tem o início de seu retrato emoldurado pelo incipit do capítulo

e, como efeito de início e naturalização da descrição, a frase “Le docteur avait un domestique;

il répondait avec empressement au nom de Joe.”206 Seguindo essa frase, temos:

Une excellente nature; ayant voué à son maître une confiance absolue et un dévoument sans bornes; devançant même ses ordres, toujours interprétés d’une façon intelligente; un Caleb pas grognon et d’une éternelle bonne humeur. Rare et honnête Joe! un domestique qui commande votre dîner, et

205 “-Encore fort bien ! Je vous assure, mistress, que je vous envie ces deux garçons. Sont-ils à vous tous deux? Ce n'était pas sans quelque raison que Stawarth Bolton faisait cette question; car Halbert Glendinning, l'aîné, avait les cheveux noirs comme l'aile d'un corbeau, les yeux noirs, hardis et perçants, d'épais sourcils, la peau brune et un air de résolution au-dessus de son âge; son frère Edouard, au contraire, avait les cheveux blonds, les yeux bleus, le teint blanc, l'air timide et doux. La mère jeta un regard de satisfaction maternelle sur ses enfants et répondit: -Bien certainement, ils sont à moi tous deux.” SCOTT, Walter. Le monastère. Limoges: Eugène Ardant, [s.d.], p. 12. Disponível em: http:gallica.bnf.frark 12148bpt6k5853810c.r=le+monast%C3%A8re+Scott.langPT Última consulta: 28/06/2010. 206 VERNE, 1975a, p. 25.

125

dont le goût est le votre, qui fait votre malle et n’oublie ni les bas ni les chemises, qui possède vos clefs et vos secrets et n’en abuse pas!207

Confiança e devoção são as principais características que extraímos do retrato de Joe.

Numa referência bíblica, Joe é comparado ao personagem hebreu “Caleb”208 seguido da

qualificação “pas grognon” que exalta a devoção de Joe que não esperará nada em troca por

seus serviços. Esse traço ajuda a compor a identidade de Joe e a reforçar sua posição de

subalterno do doutor Fergusson. As outras características que ajudam a criar a etopeia desse

personagem - “excellente nature”, “rare”, “honnête” e “bonne humeur” -, auxiliam a

compreensão e a justificativa da sua presença na iminente viagem de balão assim como dão a

entender, aliado à falta de prosopografia, um enaltecimento das características servis de Joe.

Como numa tentativa de repor a falta da descrição prosopográfica, instruir de maneira

mais imediata que a palavra e, portanto, completar o retrato do personagem subalterno, a curta

etopeia relativa a Joe é acompanhada pela ilustração abaixo, seguida da legenda de referência

metalinguística “Portrait de Joe”.

207 VERNE, 1975a, p. 25. 208 Caleb, personagem do povo quenezeu, filho de Jefoné (Gênesis 15.19, Números 32.12) tem sua história contada no livro do Êxodo e retomada no primeiro capítulo de Juízes. Contam estes livros que Caleb foi um dos doze espiões enviados à terra de Canaã. Dos doze, apenas ele e Josué voltaram com boas notícias acerca do país que iam habitar; esse seu otimismo desagradou tanto ao povo que por pouco Caleb não foi apedrejado. Deus, punindo a rebeldia do povo, determinou que, dentre aqueles de vinte anos para cima, somente Josué e seu companheiro e servidor Caleb teriam permissão de entrar na terra prometida. Além disso, segundo a Bíblia, Caleb recebeu de Moisés um pedaço de terra no novo território do povo de Israel, por ter acreditado na promessa de Deus a seu povo. Caleb reclamou esta promessa a Josué após as guerras nas quais combateram juntos e recebeu o Monte Hebrom como herança para suas filhas.

126

Retrato de Joe

VERNE, Cinq semaines en ballon, p. 27

Essa é a única dentre as descrições dos brancos deste romance que recebe uma

ilustração. Nesse caso, poderíamos afirmar que a imagem mostra-se um paratexto útil para a

composição completa do retrato de Joe, compreendendo a ilustração como substituta de uma

prosopografia ausente. Assim, teríamos para o retrato de Joe uma “etopeia + ilustração-

prosopografia” e, portanto, em termos de completude, igualando este retrato ao dos outros

dois personagens.

Tendo apresentado os personagens que viajarão no balão, o narrador os introduz na

viagem que os levará até a região de Kazeh, a Terra da Lua. Decorridos dias de viagem, os

personagens desembarcam em Kazeh para estabelecer relações comerciais e se reabastecerem

de provisões. Para tanto, precisaram falar com o sultão enfermo que reinava no local e que

acreditava que Joe era um legítimo « Filho da Lua », vindo dos céus e que, portanto, poderia

curá-lo da sua enfermidade. Todos seguiram, então, para o palácio do sultão africano, pretexto

para o narrador do romance apresentar os habitantes do local, os Uanyamwezi. Vale dizer que

este será o único retrato completo apresentado pelo narrador no que diz respeito ao nativo

127

africano. Ao longo do romance, há embriões de retrato de africanos disseminados no texto ou

efeito-personagem, como trataremos a seguir.

Para o tipo africano Uanyamwezy, temos o mesmo sistema de construção canônica da

passagem descritiva: uma frase de introdução que traz o pantônimo “Uanyamwezy” e

emoldura e naturaliza a descrição : “Le docteur Fergusson fut reçu avec de grands honneurs

par les gardes et les favoris, des hommes de belle race, des Uanyamwezy”209, seguida de um

epíteto explicativo que carrega a palavra “pur” e aponta para as ideias desenvolvidas por

Gobineau “type pur des populations de l’Afrique centrale, forts et robustes”210 e de uma visão

geral do africano “D’une taille élévée, ils sont bien faits et bien portants.”211 Estas frases

gerais introduzem a descrição prosopográfica que será desenvolvida, tendo como foco os

cabelos trançados, as incisões nas bochechas, as orelhas distendidas, as roupas e as armas que

esses africanos carregam consigo:

Le docteur Fergusson fut reçu avec de grands honneurs par les gardes et les favoris, des hommes de belle race, des Uanyamwezy, type pur des populations de l’Afrique centrale, forts et robustes. D’une taille élevée, ils sont bien faits et bien portants. Leurs cheveux divisés en un grand nombre de petites tresses retombaient sur leurs épaules; au moyen de doubles incisions noires ou bleues, ils zébraient leurs joues depuis les tempes jusqu’à la bouche. Leurs oreilles, affreusement distendues, supportaient des disques en bois et des plaques de gomme copal; ils étaient vêtus de toiles brillament peintes; les soldats, armés de la sagaie, de l’arc, de la flèche barbelée et empoisonnée du suc de l’euphorbe, du coutelas, du “sime”, long sabre à dents de scie, et de petites haches d’armes.212

O fato de focar-se nas características físicas dos Uanyamwezy, embora não sejam

matizados negativamente pelo narrador, aponta para o exotismo do povo que os personagens

europeus estão descobrindo. O caráter guerreiro da população pode ser notado através do

sintagma “les soldats” e da descrição das armas primitivas – lanças, arco, flexa com ponta

envenenada, diversos tipos de faca, machadinhas – que carregam consigo. Além disso, as

209 VERNE, 1975a, p. 80. 210 VERNE, 1975a, p. 80. 211 VERNE, 1975a, p. 80. 212 VERNE, 1975a, p. 80.

128

tatuagens desenhadas em seus rostos poderiam ser lidas como marcas distintivas desse povo,

do seu caráter guerreiro. Assim como veremos no retrato dos neozelandeses que são marcados

positivamente pelo narrador de Les enfants du capitaine Grant, as incisões coloridas no rosto

indicam que são indígenas ilustres. A descrição quase puramente prosopográfica aqui, não

fossem as incisões que enaltecem moralmente o tipo Uanyamwezy, de caráter também

etopaico, tem o intuito de apresentar ao leitor o que lhe é diferente aos olhos. O retrato

literário do africano se apresenta como a ferramenta capaz de tornar presente o que está

distante, coadunando-se com a proposta do romance verniano.

No romance Cinq semaines en ballon, no que tange ao ponto de onde parte a

focalização (justificativa para o “efeito do descritivo”) para todos os retratos, podemos

afirmar que ela se faz a partir de um narrador extradiegético e onisciente. No que concerne

aos “selvagens”, há, por parte do narrador, diversas “impressões” e informações que vêm

disseminadas no texto, que não constituem um retrato, mas fariam parte do que Hamon

nomeia de efeito-personagem. No caso do povo africano, não há a tentativa por parte do

narrador de compor um personagem bem definido, visto a heterogeneidade e diversidade de

povos africanos que se apresentam no romance. Esta diversidade é motivo para que o narrador

faça generalizações sobre o tipo africano e, por se tratar do “outro”, estas generalizações são

pouco elogiosas, até mesmo pejorativas.

Dominique Maingueneau comenta, em Éléments de linguistique pour le texte

littéraire, a importância da categoria adjetival para uma análise estilística, visto a carga

subjetiva que os adjetivos comportam. Ele distingue os adjetivos objetivos dos subjetivos

dizendo que os primeiros servem para descrever uma categoria no mundo, caso do adjetivo

“solteiro”, por exemplo, e os outros remetem a um julgamento de valor por parte do sujeito

enunciador, caso de “engraçado” ou “bom”.213 Os adjetivos subjetivos ainda podem transmitir

uma carga avaliativa e seriam subdivididos em avaliativos não-axiológicos – aqueles que

213 MAINGUENEAU, Dominique. Éléments de linguistique pour le texte littéraire. Paris: Bordas, 1990, p. 111.

129

supõem uma avaliação qualitativa ou quantitativa fundada numa norma interna ao objeto,

como é o caso da palavra “longo” – e os adjetivos avaliativos axiológicos – aqueles que

variam em função do objeto e do sistema de avaliação do enunciador, caso do adjetivo

“belo”.214 Poderíamos enumerar diversas frases ou excertos do romance em que o narrador

utiliza adjetivos avaliativos axiológicos para caracterizar o africano, algumas vezes

pejorativamente, compondo o efeito-personagem (para nós, um efeito-tipo), mencionado

acima.

Começando pelas palavras “nègres”, proferida pelos personagens brancos ou, para

intercalar com esta, “indigènes”, “noirs” e “sauvages” que atravessam todo o romance,

passando por, “peuplades féroces” (“Parce que lutter contre les éléments, contre la faim, la

soif, la fièvre, les animaux féroces, et contre les peuplades plus féroces encore, est

impossible!”215), “nègres féroces” (“et ce nègre féroce lui coupa lentement les

articulations.”216), “tribus féroces” (“car les rives du lac sont habitées par des tribus

féroces.”217), ou pela designação “maudits noirs” (“Un de ces maudits noirs s’est accroché au-

dessous de la nacelle!”218), sem contarmos com as comparações com os animais, como

serpentes (como vimos no item 3.3 dessa dissertação, p.92), insetos (“Les habitants de l’île

apparaissaient comme des insectes”219) e a prolífera comparação com macacos, estas seriam

designações que trariam, portanto, não uma informação simplesmente classificatória para o

nome que acompanha, mas sim uma depreciação em detrimento do sujeito. Poderíamos

acrescentar a tudo isso as elucubrações sobre africanos antropófagos. Na região de Usoga,

Fergusson menciona a existência de indígenas comedores de humanos:

-Est-ce que toute cette région est habitée? Demanda Joe. -Sans doute, et mal habitée. -Je m’en doutais.

214 Cf. MAINGUENEAU, 1990, p. 112-113. 215 VERNE, 1975a, p. 15. 216 VERNE, 1975a, p. 60. 217 VERNE, 1975a, p. 102. 218 VERNE, 1975a, p. 127. 219 VERNE, 1975a, p. 55.

130

-Ces tribus éparses sont comprises sous la dénomination générale de Nyam-Nyam, et ce nom n’est autre chose qu’une onomatopée; il reproduit le bruit de la mastication. -Parfait, dit Joe; nyam! nyam! -Mon brave Joe, si tu étais la cause immédiate de cette onomatopée, tu ne trouverais pas cela parfait. -Que voulez-vous dire? -Que ces peuplades sont considérées comme anthropophages. -Cela est-il certain? -Très certain!220

Após esse diálogo, embora não haja uma descrição que caracterize esse povo, há uma

cena de combate entre essa população e outra rival. Os personagens brancos, seguros e sob

uma posição que lhes confere o olhar de cima, assistem ao “spectacle fait pour les

émouvoir.”221 O narrador, por mais de uma vez, compara o massacre a uma cena teatral:

[...] Fuyons au plus tôt ce spectacle repoussant! Si les grands capitaines pouvaient ainsi dominer le théâtre de leurs exploits, ils finiraient peut-être par perdre le goût du sang et des conquêtes. Le chef de l’un de ces partis sauvages se distinguait par une taille athlétique, jointe à une force d’hercule. D’une main il plongeait sa lance dans les rangées compactes de ses ennemis, et de l’autre y faisait de grandes trouées à coups de hache. À un moment, il rejeta loin de lui sa sagaie rouge de sang, se precipita sur un blessé dont il trancha le bras d’un seul coup, prit ce bras d’une main et, le portant à sa bouche, il y mordit à pleines dents.222

Ora, a semi-animalidade dos africanos somada à falta de inteligência e à falta de

beleza, tratada no item relativo à fisiognomonia, seriam maneiras de naturalizar a visão

imperialista e colonialista da época e transmiti-la através da literatura. Sendo semi-animais

ferozes, domá-los através da religião e domesticá-los para a uma possível socialização seria a

saída para o progresso de tais sociedades, de acordo com o pensamento colonialista. Neste

romance, o contraste entre brancos e selvagens converge, sobretudo, para a questão do

colonialismo. Se de um lado há o povo negro, africano, selvagem, colonizado, do outro está o

branco, inglês, civilizado, colonizador. A garantia dessa diferença, a supremacia do branco e o

direito de colonização estariam anunciados mesmo nos retratos literários. Os intrépidos

personagens brancos, além de serem avatares de reais viajantes cujas explorações são

220 VERNE, 1975a, p. 111. 221 VERNE, 1975a, p. 116. 222 VERNE, 1975a, p. 117.

131

destacadas como gloriosas desde o início do romance, têm retratos que cumulam

características positivas e são tidos como verdadeiros modelos de moralidade, bons modos,

honestidade, civilidade e inteligência. Já as imagens dos africanos, através do retrato e do

efeito-personagem, se mostram no romance de duas maneiras: ora são os guerreiros,

apresentados em tribo e caracterizados com marcas distintitivas, como as tatuagens e as armas

primitivas, logo, vistos de algum modo, positivamente, ora associados às bestas ferozes, seres

antropófagos e não civilizados.

4.3. Les enfants du capitaine Grant: do bom selvagem ao “racismo” avant la

lettre

O romance Les enfants du capitaine Grant, que inaugura a série de viagens marítimas,

se pretende uma trama iniciática. Notamos este intuito mesmo antes de sua publicação, em

seis de outubro de 1865, assim como previa Jules Verne em carta a Pierre-Jules Hetzel, seu

editor:

Je travaille toujours avec beaucoup d’ardeur, et j’ajouterai, avec non moins de plaisir, ce qui est un bon signe. Le jeune Robert Grant devient un garçon bien audacieux et pas mal héroïque. Il faut espérer que les générations d’enfants à venir voudront l’imiter, et le lire surtout. N’est-ce pas votre avis?223

De fato, o jovem personagem Robert Grant, filho do capitão desaparecido, viverá a

bordo do navio as etapas típicas da iniciação da vida adolescente. O que comprova o caráter

iniciático do romance. Como menciona Vierne (1973):

Toda viagem é uma errância, mesmo nos mais modernos dos romances [...] mas essa errância tem um sentido com as duas acepções da palavra: vai-se em direção a um lugar simbólico e as provações e as errâncias ao longo do caminho querem dizer algo – a transformação do personagem em herói, sua transmutação. É nesta perspectiva que podemos falar de romance iniciático.224

223 DELLA RIVA, DEHS & DUMAS, 1999, p. 34. 224 “Tout voyage est une errance, même dans les romans les plus modernes […]. Mais cette errance a un sens, avec les deux significations du mot: on va vers un lieu symbolique et les épreuves et les errances le long du chemin veulent dire quelque chose – la transformation du personage en héros, sa transmutation. C’est dans cette

132

Compõem o romance, junto com o jovem herói, outros seis personagens “brancos

europeus”, todos companheiros de viagem do jovem Robert. Fazem parte da tripulação do

Duncan Lord Glenarvan e sua esposa Lady Helena, donos do navio; Miss Mary Grant, a filha

do capitão Grant e irmã de Robert; John Mangles, capitão do navio; Mac-Nabs, o major e,

Jacques Paganel, o geógrafo.

Todos os retratos aparecem no terceiro e quarto capítulos do romance, fazendo deles

uma verdadeira galeria de retratos. Essa “galeria” tem por objetivo apresentar aos leitores os

tripulantes da embarcação que vai em busca do capitão desaparecido. No que diz respeito ao

ponto de onde parte a focalização da descrição, todos os retratos, salvo aquele do geógrafo

Paganel, que é visto pelo Major do navio, são elaborados a partir de um narrador

extradiegético e onisciente, assim como ocorre para os personagens de Cinq semaines en

ballon.

Os dois primeiros pantônimos concernentes ao europeu têm por objetivo apresentar os

proprietários do navio, Lord Edward Glenarvan e sua esposa Lady Helena. O efeito do início

da descrição nos é transmitido através de ideias esparsas sobre Malcolm-Castle, castelo onde

moram: “Le château de Malcolm, l’un des plus poétiques des Highlands, est situe auprès du

village de Luss.”225 Falar da beleza do castelo e da sua localização é um pretexto que auxilia o

narrador a introduzir o retrato de Lord Glenarvan pela frase “Lord Glenarvan possédait une

fortune immense”226, que dará seguimento a uma descrição moral e biográfica do

personagem:

Il l’employait à faire beaucoup de bien; sa bonté l’emportait encore sur sa générosité, car l’une était infinie, si l’autre avait forcément des bornes. Le seigneur de Luss, “ le laird” de Malcolm, représentait son comté à la chambre des lords. Mais, avec ses idées jacobites, peu soucieux de plaire à la maison de Hanovre, il était assez mal vu des hommes d’état d’Angleterre, et surtout par ce motif qu’il s’en tenait aux traditions de ses aïeux et résistait énergiquement aux empiétements politiques de “ceux du sud” . Ce n’était

perspective que l’on peut parler de “roman initiatique.” VIERNE, Simone. Jules Verne - mythe et modernité. Paris: PUF, 1989, p. 10-11. 225 VERNE, 1975b, p. 15. 226 VERNE, 1975b, p. 15.

133

pourtant pas un homme arriéré que lord Edward Glenarvan, ni de petit esprit, ni de mince intelligence; mais, tout en tenant les portes de son comté largement ouvertes au progrès, il restait Écossais dans l’âme, et c’était pour la gloire de l’Écosse qu’il allait lutter avec ses yachts de course dans les “matches” du royal-thames-yacht-club.227

Com o espaço de um parágrafo, ainda que se apresentem dados morais, dá-se início a

uma descrição mais prosopográfica que, grosso modo, segue o seguinte esquema: idade,

estatura, rosto, aspecto do olhar e uma impressão geral seguida de uma etopeia:

Edward Glenarvan avait trente-deux ans; sa taille était grande, ses traits un peu sévères, son regard d’une douceur infinie, sa personne toute empreinte de la poésie highlandaise. On le savait brave à l’excès, entreprenant, chevaleresque, un Fergus du XIXe siècle, mais bon par-dessus toute chose, meilleur que saint Martin lui-même, car il eût donné son manteau tout entier aux pauvres gens des hautes terres.228

Para esta descrição, não muito rica em detalhes físicos, poderíamos visualizar um

efeito zoom como o de câmeras fotográficas: primeiro uma visão geral, em seguida uma

aproximação com o foco no rosto do Lord e, com o recuo, novamente uma visão do todo. Se

por um lado esta parte da descrição não é rica em detalhes prosopográficos, não diríamos o

mesmo quanto aos detalhes morais. Nesta perspectiva, destacam-se o substantivo “douceur” e

os adjetivos “brave”, “entreprenant”, “chevaleresque” e “bon” que servem para caracterizá-

lo. No fim da descrição, Lord Glenarvan é comparado a um Fergus do século dezenove (do

gaulês viro), que significa Homem, e tem sua bondade valorizada quando o narrador o

compara a Saint Martin229 capaz de dar seu casaco aos pobres moradores das montanhas.

Como num gancho para a apresentação do próximo retrato, introduzindo, justificando

e naturalizando a passagem descritiva que se desdobrará, temos: “Lord Glenarvan était marié

depuis trois mois à peine; il avait épousé miss Helena Tuffnel, la fille du grand voyageur

William Tuffnel, l’une des nombreuses victimes de la science géographique et de la passion

227 VERNE, 1975b, p. 15. 228 VERNE, 1975b, p. 16. 229 Santo padroeiro da França. Diz a lenda que, na ocasião de uma noite de guerra muito fria, em Amiens, Saint Martin ofereceu metade de seu casaco a um pobre passante morto de frio. Acredita-se ser Jesus Cristo, o transeunte.

134

des découvertes.”230 Seguindo a mesma ordem de construção do retrato de Lord Glenarvan,

esta frase dá início à apresentação moral e biográfica do personagem :

Miss Helena n’appartenait pas à une famille noble, mais elle était Écossaise, ce qui valait toutes les noblesses aux yeux de lord Glenarvan; de cette jeune personne charmante, courageuse, dévouée, le seigneur de Luss avait fait la compagne de sa vie. Un jour, il la rencontra vivant seule, orpheline, à peu près sans fortune, dans la maison de son père, à Kilpatrick. Il comprit que la pauvre fille ferait une vaillante femme ; il l' épousa.231

Em seguida, o narrador lança um bloco descritivo que reúne algumas caracteristicas

físicas da personagem:

Miss Helena avait vingt-deux ans; c’était une jeune personne blonde, aux yeux bleus comme l’eau des lacs écossais par un beau matin du printemps. Son amour pour son mari l’emportait encore sur sa reconnaissance. Elle l’aimait comme si elle eût été la riche héritière, et lui l’orphelin abandonné. Quant à ses fermiers et à ses serviteurs, ils étaient prêts à donner leur vie pour celle qu’ils nommaient: Notre Dame de Luss.232

Esta descrição, de forma a complementar a primeira no contexto da obra, guarda o

foco no rosto, sobretudo nos olhos azuis da personagem comparados à água dos lagos

escoceses em manhã de primavera. Para a qualificação dos seus aspectos morais temos os

adjetivos “jeune”, “charmante”, “courageuse” e “dévouée”. Somando-se a isso, o narrador

compara a personagem à figura de Nossa Senhora, tamanha era sua consideração em Luss, o

condado onde vivera.

Arrematando a tela do retrato do casal, temos o retorno à descrição da paisagem em

torno do castelo, imagem mental que os leitores podem reforçar pela ilustração que segue a

frase de fechamento:

Lord Glenarvan et lady Helena vivaient heureux à Malcolm-Castle, au milieu de cette nature superbe et sauvage des highlands, se promenant sous les sombres allées de marronniers et de sycomores, aux bords du lac où retentissaient encore les pibrochs du vieux temps, au fond de ces gorges incultes dans lesquelles l’histoire de l’Écosse est écrite en ruines séculaires.233

230 VERNE, 1975b, p. 16-17. 231 VERNE, 1975b, p. 17. 232 VERNE, 1975b, p. 17. 233 VERNE, 1975b, p. 17.

135

Malcolm-Castle

VERNE, Les enfants du capitaine Grant, p. 27

Os retratos destes personagens poderiam ser comparados a uma tela de uma pintura

alegórica – ele, representado sob os traços de Saint-Martin, e ela, sob os traços de Nossa

Senhora –, sendo textualmente emoldurada pela descrição do castelo onde moram. A

paisagem descrita também serviria de plano de fundo para a pintura, como numa tela onde

figuram marido e mulher rodeados pela paisagem de sua casa. No bloco em que a

prosopografia é figura mais dominante, a retomada dos nomes, seguidos da idade de cada um

dos personagens-modelo seria um outro elemento em comum com a pintura. Como vimos no

item em que tratamos da interseção entre as artes pictórica e literária do retrato, não era

incomum que um pintor, para classificar uma obra no gênero pictural retrato, inserisse o nome

e a idade do modelo no interior do espaço pintado. Os retratos alegóricos destes personagens

seguem uma ordem de construção que tentamos organizar no esquema abaixo:

136

Descrição do castelo → Moldura Le château de Malcolm, l’un des plus poétiques des Highlands (...)

Retrato Lord Glenarvan

Etopeia (moral + biografia) ---Parágrafo---

Prosopografia + etopeia =

Saint Martin

Retrato

Lady Helena Etopeia (moral + biografia)

---Parágrafo--- Prosopografia + etopeia

= Nossa senhora de Luss

Descrição do castelo → Moldura Lord Glenarvan et lady Helena vivaient heureux à Malcolm-Castle,

au milieu de cette nature superbe et sauvage des Highlands (...)

A segunda tela apresentada no romance evidencia os retratos de Mary e Robert Grant,

os filhos do capitão Grant. Após a frase que demarca o início do retrato dos irmãos -

“Quelques instants après, la jeune fille et le jeune garçon furent introduits dans la chambre de

Lady Helena”234 - temos os pantônimos “une soeur et un frère” anunciados pela frase

“C’étaient une soeur et un frère à leur ressemblance on ne pouvait en douter”235, que dão

início a descrição:

La soeur avait seize ans. Sa jolie figure un peu fatiguée, ses yeux qui avaient dû pleurer souvent, sa physionomie résignée, mais courageuse, sa mise pauvre, mais propre, prévenaient en sa faveur. Elle tenait par la main un garçon de douze ans à l' air décidé, et qui semblait prendre sa soeur sous sa protection. Vraiment! Quiconque eût manqué à la jeune fille aurait eu affaire à ce petit bonhomme!

Para a terceira personagem apresentada, depois de mencionar sua idade, o narrador

foca sua atenção no rosto de Mary que, por seus traços, denotam resignação e coragem.

Embora estivesse vestida em trajes pobres, o narrador ressalta que estão limpos, o que

culmina numa figura simpática. A curta descrição que o narrador concede à jovem é

aproveitada para mostrar o rosto de Mary, evidenciando assim a importância que o rosto tem

para a constituição de um retrato literário.

234 VERNE, 1975b, p. 19. 235 VERNE, 1975b, p. 19.

137

Já para Robert Grant, nota-se um intento, por parte do narrador, mesmo que

embrionário, de mostrar o caráter heróico e decidido do jovem. Destaca-se o adjetivo “décidé”

e, ainda, a oração adjetiva “qui semblait prendre sa soeur sous sa protection”, que fortalecem

a ideia dessa intenção. Para estes curtos retratos temos uma ilustração que representa o

momento em que os filhos de Grant são recebidos no quarto de Lady Helena e ajuda a

construção mental dos retratos destes personagens:

Eu sou miss Grant, senhora, e este é meu irmão. VERNE, Les enfants du capitaine Grant, p. 16.

Devemos ressaltar que o personagem Robert Grant é um dos casos de efeito-

personagem de que fala Philippe Hamon. O jovem terá seu “retrato” construído ao longo do

romance, isto é, terá suas características morais disseminadas ao longo da trama, aparecendo

com mais frequência quando cumprir uma prova ou uma etapa; assim, o efeito-personagem

estaria em harmonia com o caráter iniciático do romance. Robert Grant aparece inicialmente

como um “petit bonhomme” de doze anos, expressão que o narrador abandona rapidamente.

Para designar Robert, ao longo da trama, o narrador hesita, ora empregando o termo “enfant”,

ora “jeune homme”. Ele é, enfim, “le jeune Robert”, ou “le jeune Grant” no final da história.

Essa hesitação traduz a ambivalência da situação: com doze anos alguém é uma criança, um

138

rapazinho ou um jovem? De um modo ou de outro, alguém nesta idade não é mais um “petit

bonhomme”, sobretudo porque Verne matiza este personagem com tintas que vão desde a

dedicação e heroísmo até a bravura e a determinação.

De fato, o jovem Robert Grant viverá a bordo do Duncan as etapas típicas da

iniciação da vida adolescente. O efeito-personagem para Robert se harmoniza com a ideia de

que este personagem é o protótipo da transformação do jovem em homem. Ele será a

encarnação dessa transmutação feita a partir da aprendizagem empreendida ao longo da

viagem. “Adotado” pelos outros tripulantes, já que perdeu sua mãe e seu pai está

desaparecido, o jovem Robert terá Paganel, o geógrafo, para ensinar-lhe geografia; John

Mangles, o capitão do navio, tem a tarefa de fazê-lo marinheiro; Glenarvan, proprietário da

embarcação, de transformá-lo em um Lord; o major Mac-Nabbs quer fazer dele um menino de

sangue-frio; e Lady Helena, esposa de Glenarvan, um menino bom e generoso. Assim, Robert

transforma-se ao longo da viagem-aventura que empreende e, na medida em que ocorrem

estas transformações, suas (novas) características vão sendo anunciadas.

Para o quinto personagem, John Mangles, o capitão do Duncan, temos a introdução do

seu retrato quando o narrador menciona seu conhecimento em canhões – “John Mangles, il

faut le dire, s’y entendait; bien qu’il ne commandât qu’un yacht de plaisance, il comptait

parmi les meilleurs skippers de Glasgow.”236 O retrato segue depois de mencionado o

pantônimo “John Mangles”: “Il avait trente ans, les traits un peu rudes, mais indiquant le

courage et la bonté. C’était un enfant du château, que la famille Glenarvan éleva et dont elle

fit un excellent marin.”237 Esta frase descritiva engendra seu curto, mas eficiente retrato, no

sentido de mostrar através de apenas dois substantivos (coragem e bondade), as características

morais necessárias ao personagem ao longo da aventura de busca. No âmbito de um romance

iniciático, John Mangles encarna o papel de um marinheiro formado e educado pela família

Glenarvan, um personagem que servirá de exemplo para Robert durante a viagem que vão

236 VERNE, 1975b, p.27. 237 VERNE, 1975b, p.27.

139

empreender. Assim como nos outros retratos desse romance, o nome do personagem é

acompanhado da sua idade o que reforça a ideia de constituição de um retrato.

Já para o major Mac-Nabbs, primo de Lord Glenarvan, temos introduzida sua

descrição pela seguinte frase: “Pour compléter le rôle des passagers, il suffira de nommer le

major Mac Nabbs.”238 A frase serve para iniciar o “efeito do descritivo”, o que naturaliza a

descrição que se desenrola:

Le major était un homme âgé de cinquante ans, d’une figure calme et régulière, qui allait où on lui disait d’aller, une excellente et parfaite nature, modeste, silencieux, paisible et doux; toujours d’accord sur n’importe quoi, avec n’importe qui, il ne discutait rien, il ne se disputait pas, il ne s’emportait point; il montait du même pas l’escalier de sa chambre à coucher ou le talus d’une courtine battue en brèche, ne s’émouvant de rien au monde, ne se dérangeant jamais, pas même pour un boulet de canon, et sans doute il mourra sans avoir trouvé l’occasion de se mettre en colère. Cet homme possédait au suprême degré non seulement le vulgaire courage des champs de bataille, cette bravoure physique uniquement due à l’énergie musculaire, mais mieux encore, le courage moral, c’est-à-dire la fermeté de l’âme. S’il avait un défaut, c’était d’être absolument écossais de la tête aux pieds, un calédonien pur sang, un observateur entêté des vieilles coutumes de son pays. Aussi ne voulut-il jamais servir l’Angleterre, et ce grade de major, il le gagna au 42e régiment des Highland-Black-Watch, garde noire, dont les compagnies étaient formées uniquement de gentilshommes Écossais. Mac Nabbs, en sa qualité de cousin des Glenarvan, demeurait au château de Malcolm, et en sa qualité de major il trouva tout naturel de prendre passage sur le Duncan. 239

Assim como os outros personagens, o major tem sua característica moral destacada e,

no que tange à figura de pensamento prosopografia, somente duas características marcam sua

presença: a idade e o semblante calmo e regular. No desenrolar da descrição, percebemos que

o narrador o caracteriza como uma excelente e perfeita criatura, modesta, silenciosa, pacífica

e meiga, o que eleva seus traços positivos. Mostrando-se sempre de acordo com o que quer

que fosse, sem discutir, sem brigar sobre coisa nenhuma, o narrador o caracteriza como aquele

que realmente é cordato; nem mesmo um tiro de canhão o incomodaria, o que nos leva a

pensar que Mac Nabbs seria a personificação da calma e da paciência já que ele “mourra sans

avoir trouvé l’occasion de se mettre en colère”.

238 VERNE, 1975b, p. 28-29. 239 VERNE, 1975b, p. 28-29.

140

Completando a tripulação do navio, o último retrato da galeria dos “brancos europeus”

é apresentado de maneira rocambolesca. O “passageiro da cabine número seis”, Jacques

Paganel, o geógrafo, o último e desconhecido passageiro, enganou-se ao entrar no Duncan. O

personagem pensara estar no Scotia, sob a direção do capitão-viajante Burton, que faria uma

viagem em direção às Índias. Assim, quando se deram conta da sua presença no navio, teve de

se apresentar aos outros tripulantes depois do quiproquó causado. Pretexto para o narrador

lançar um retrato do tipo biográfico:

- Monsieur, dit alors Glenarvan, à qui ai-je l’honneur de parler ? - À Jacques-Éliacin-François-Marie Paganel, secrétaire de la société de géographie de Paris, membre correspondant des sociétés de Berlin, de Bombay, de Darmstadt, de Leipzig, de Londres, de Pétersbourg, de Vienne, de New-York, membre honoraire de l’institut royal géographique et ethnographique des Indes orientales, qui, après avoir passé vingt ans de sa vie à faire de la géographie de cabinet, a voulu entrer dans la science militante, et se dirige vers l’Inde pour y relier entre eux les travaux des grands voyageurs.240

Apenas na manhã seguinte da partida do Duncan Mac Nabbs percebeu o estranho a

bordo. Usando esse gancho, o narrador inicia a última descrição prosopográfica de um

homem branco do romance, que tem como pantônimo o geógrafo Paganel. O narrador delega

a descrição ao capitão Mac Nabbs (personagem focalizador) e o novo tripulante do Duncan é

apresentado aos leitores. A frase de introdução - “Après quelques minutes, d’une muette

contemplation, il [Mac Nabbs] se retourna et se vit en face d’un nouveau personnage”241-

anuncia e garante a naturalidade do desenvolvimento da descrição, dando seguimento ao

retrato do geógrafo:

Cet homme grand, sec et maigre, pouvait avoir quarante ans; il ressemblait à un long clou à grosse tête; sa tête, en effet, était large et forte, son front haut, son nez allongé, sa bouche grande, son menton fortement busqué. Quant à ses yeux, ils se dissimulaient derrière d’énormes lunettes rondes et son regard semblait avoir cette indécision particulière aux nyctalopes. Sa physionomie annonçait un homme intelligent et gai ; il n’avait pas l’air rébarbatif de ces graves personnages qui ne rient jamais, par principe, et dont la nullité se couvre d’un masque sérieux. Loin de là. Le laisser-aller, le sans-façon aimable de cet inconnu démontraient clairement qu’il savait prendre les hommes et les choses par leur bon côté. Mais sans qu’il eût

240 VERNE, 1975b, p. 39. 241 VERNE, 1975b, p. 35-36.

141

encore parlé, on le sentait parleur, et distrait surtout, à la façon des gens qui ne voient pas ce qu’ils regardent, et qui n’entendent pas ce qu’ils écoutent. Il était coiffé d’une casquette de voyage, chaussé de fortes bottines jaunes et de guêtres de cuir, vêtu d’un pantalon de velours marron et d’une jaquette de même étoffe, dont les poches innombrables semblaient bourrées de calepins, d’agendas, de carnets, de portefeuilles, et de mille objets aussi embarrassants qu’inutiles, sans parler d’une longue-vue qu’il portait en bandoulière.242

Para legitimar a ordem de coesão do conjunto descritivo temos, a partir da visão do

major, um panorama geral do que é visto; o geógrafo é pintado em traços largos: altura, tipo

físico e idade aproximada. Logo em seguida, a descrição se desenrola centrifugamente, isto é,

vai do geral ao mais detalhado, do físico ao moral, de cima para baixo.

Os dados prosopográficos relacionados à altura, ao tipo físico, ao formato da cabeça,

da testa, do nariz, da boca, do queixo, dos olhos e os detalhes das vestimentas podem ser

agregados aos detalhes morais do personagem (etopeia) apresentados ao longo da descrição

marcados pelos adjetivos “intelligent et gai” que caracterizam positivamente o geógrafo.

Este homem grande, seco e magro, podia ter quarenta anos.

VERNE, Les enfants du capitaine Grant, p. 31.

242 VERNE, 1975b, p. 35-36.

142

A grande quantidade de elementos prosopográficos poderia ser julgada como uma

corroboração da tese de Hamon que estabelece que há uma proporção entre a importância do

personagem principal e a do personagem secundário; quanto maior e mais detalhada for a

descrição de determinado personagem, mais próximo do estatuto de personagem principal ele

se encontra. De fato, na funcionalidade da obra, embora não seja o herói do romance, o

geógrafo Paganel marca sua presença imprescindível na viagem, na medida em que será

responsável pelas leituras (incorretas, vale dizer) dos mapas criptografados que levarão os

personagens a dar a volta ao mundo para encontrar o capitão Grant. É a dúvida e a inexatidão

das suas leituras que funcionam como o motor desta viagem e, como já previsto no seu retrato

no início do romance, numa visada fisiognomônica em comparação com animais nictalopos,

aqueles que têm a faculdade de enxergar à noite, a indecisão era a característica expressa pelo

seu olhar.

Para os habitantes dos “mundos primitivos” em Les enfants du capitaine Grant,

identificamos três passagens que retratam esses personagens-tipos.

Falamos em personagens-tipos, exceto o indígena patagão que apresentaremos a

seguir, para designar personagens que não encenam ações relevantes para o desenvolvimento

da trama; aparecem na narrativa para cumprir com a função pedagógica de ter seu exotismo

apresentado aos leitores. No conjunto que formam estes personagens, destacamos o patagão

Thalcave, pois será o único a apresentar uma “utilidade” na trama. A descrição do patagão

destaca-se por ser a mais extensa das três selecionadas. Isso corrobora, mais uma vez, a tese

de Hamon mencionada acima. O índio patagão, além de ser nomeado (Thalcave),

diferentemente dos outros personagens, passa a ser o guia dos brancos europeus nos arredores

da Patagônia, depois de ter salvado o filho do desaparecido capitão Grant, o jovem Robert

Grant, que se encontrava dominado por uma imensa ave.

A descrição relativa ao indígena tem como pantônimo o patagão Thalcave. Visto a

partir de Lord Glenarvan, personagem focalizador - “Mais après le sauvé, on pensa au

143

sauveur, et ce fut naturellement le major qui eut l'idée de regarder autour de lui”243 -, o índio

nos é apresentado. Este olhar introduzido por um personagem tende a ser, portanto, um sinal

do “efeito do descritivo”, servindo de justificativa para a descrição que será feita,

naturalizando-a. A frase precedente “À cinquante pas du rio”244 é a coordenada espacial que

organizará a descrição e que permitirá a distribuição homogênea dos itens lexicais, definindo

o início do que será o bloco descritivo, emoldurando o retrato:

À cinquante pas du rio, un homme d'une stature très élevée se tenait immobile sur un des premiers échelons de la montagne. Un long fusil reposait à ses pieds. Cet homme, subitement apparu, avait les épaules larges, les cheveux longs, raides et rattachés avec des cordons de cuir. Sa taille dépassait six pieds. Sa figure bronzée était rouge entre les yeux et la bouche, noire à la paupière inférieure, et blanche au front. Vêtu à la façon des patagons des frontières, l'indigène portait un splendide manteau décoré d'arabesques rouges, fait avec le dessous du cou et des jambes d'un guanaque, cousu de tendons d'autruche, et dont la laine soyeuse était retournée à l'extérieur. Sous son manteau s'appliquait un vêtement de peau de renard serré à la taille, et qui par devant se terminait en pointe. À sa ceinture pendait un petit sac renfermant les couleurs qui lui servaient à peindre son visage. Ses bottes étaient formées d'un morceau de cuir de boeuf, et fixées à la cheville par des courroies croisées régulièrement. La figure de ce patagon était superbe et dénotait une réelle intelligence, malgré le bariolage qui la décorait. Il attendait dans une pose pleine de dignité. À le voir immobile et grave sur son piédestal de rochers, on l'eût pris pour la statue du sang-froid.245

Para legitimar a ordem de coesão do conjunto descritivo temos, a partir da visão do

major, um panorama geral do que é visto e, logo em seguida, a descrição se desenrola

centrifugamente, isto é, vai do geral ao mais detalhado, do físico ao moral, de cima para

baixo. Os dados prosopográficos relacionando altura, rosto, cabelos, largura dos ombros,

vestimentas podem ser somados às características morais do personagem – inteligência e

dignidade – apresentados no fim da descrição, que contribuem para a formação do retrato do

índio patagão. Embora haja dados suficientes para afirmarmos tratar-se de um retrato, o

narrador se vale, ao final da descrição, de uma metareferência à arte escultórica comparando o

personagem a uma “estátua do sangue frio.” A pose em que o patagão se encontra, o

243 VERNE, 1975b, p. 94. 244 VERNE, 1975b, p. 94. 245 VERNE, 1975b, p. 94.

144

promontório que lhe serve de pedestal e a imponência do personagem sugerem essa

comparação.

O patagão Thalcave.

VERNE, Les enfants du capitaine Grant, p. 98.

Ainda que se caracterize bastante positivamente o retrato do patagão, percebemos que,

na funcionalidade da obra, ele se mostra como o “bom selvagem”, servil e cordato,

diferentemente do retrato dos aborígenes australianos que são caracterizados como semi-

animais, assim como os negros africanos de Cinq semaines en ballon.

Para o retrato do segundo selvagem, o aborígene australiano, apresentado no romance

quando os personagens desembarcam na Austrália a procura do capitão Grant, podemos dizer,

de antemão, que, embora haja um bloco descritivo concernente às características físicas e

morais desse tipo, pode-se recuperar algumas de suas características físicas e

comportamentais no diálogo dos personagens principais, antes que haja a apresentação da

descrição propriamente dita. Aqui, o efeito-personagem (ou efeito-tipo) não está disseminado

no romance, como é o caso da tentativa de criar o tipo africano em Cinq semaines en ballon,

145

ou ainda, o caso do retrato do jovem Robert Grant. Para os aborígenes australianos, os dados

que ajudam a compor o efeito-tipo são construídos no espaço textual do diálogo entre

personagens que estão dentro de uma carroça em movimento. O diálogo será entabulado

quando o jovem Robert avista um australiano. Essas informações podem ser lidas na

passagem:

En effet, la réserve paraissait être absolument abandonnée. Nulle trace de campements ni de huttes. Les plaines et les grands taillis se succédaient, et peu à peu la contrée prit un aspect sauvage. Il semblait même qu’aucun être vivant, homme ou bête, ne fréquentait ces régions éloignées, quand Robert, s’arrêtant devant un bouquet d’eucalyptus, s’écria: “un singe! voilà un singe!” Et il montrait un grand corps noir qui, se glissant de branche en branche avec une surprenante agilité, passait d’une cime à l’autre, comme si quelque appareil membraneux l’eût soutenu dans l’air. En cet étrange pays, les singes volaient-ils donc comme certains renards auxquels la nature a donné des ailes de chauve-souris? Cependant, le chariot s’était arrêté, et chacun suivait des yeux l’animal qui se perdit peu à peu dans les hauteurs de l’eucalyptus. Bientôt, on le vit redescendre avec la rapidité de l’éclair, courir sur le sol avec mille contorsions et gambades, puis saisir de ses longs bras le tronc lisse d’un énorme gommier. On se demandait comment il s’élèverait sur cet arbre droit et glissant qu’il ne pouvait embrasser. Mais le singe, frappant alternativement le tronc d’une sorte de hache, creusa de petites entailles, et par ces points d’appui régulièrement espacés, il atteignit la fourche du gommier. En quelques secondes il disparut dans l’épaisseur du feuillage. -Ah çà, qu’est-ce que c’est que ce singe-là? Demanda le major. -Ce singe-là, répondit Paganel, c’est un australien pur sang! Les compagnons du géographe n'avaient pas encore eu le temps de hausser les épaules, que des cris qu'on pourrait orthographier ainsi: “coo-eeh! Coo-eeh! retentirent à peu de distance. Ayrton piqua ses boeufs, et, cent pas plus loin, les voyageurs arrivaient inopinément à un campement d' indigènes.246

Selecionamos esta passagem, pois já se encontram nela detalhes do corpo (“un grand

corps noir”; “longs bras”) e do comportamento do australiano. Ressaltamos que o início do

efeito-tipo do australiano é construído em travelling: os personagens estão em movimento

dentro de uma espécie de carroça e acompanham com os olhos o corpo que se move (“chacun

suivait des yeux l’animal”) dando margem para o narrador descrever o que eles vêem. Parece-

nos útil, neste ponto da análise, aproximarmos o conceito de travelling do topos janela – que

Hamon desenvolve247 com base em La bête humaine, de Zola –, ou o postigo de Vingt mille

246 VERNE, 1975b, p. 318. 247 Cf. HAMON, 1993, p. 218-239.

146

lieues sous les mers (1870), de Jules Verne. A janela/postigo é o topos por excelência,

segundo Hamon, que permite declinar descrições-tipo como a etopeia, topografia,

prosopografia e cronografia de um personagem ou o efeito-personagem.248 Antes de

avançarmos na tentativa de aproximação dos dois topoï, é importante observar que o

travelling, diferentemente do topos janela/postigo, trata da questão do deslocamento no

espaço.

O travelling designa o movimento dos personagens num sentido mais imediato.

Contudo, pelo uso que a técnica cinematográfica lhe dá, travelling é a própria imagem

metonímica do olho humano, substituto maquínico deste. O vidro, a lente para a captação de

imagens, poderiam ser amplificações da janela, sugerida como elemento tópico por Hamon,

mas incluindo, a nosso entender, a componente movimento. Deslocando o “olho” que registra,

o que na técnica fílmica significa o deslocamento do objeto-câmera ao longo de uma linha

reta, o efeito travelling da passagem acima assegura o topos de Hamon por quatro processos

fundamentais: o lugar-dentro (carroça), o espaço-fronteira (espaço por onde os personagens

olham ou a retina do olho do homem maquínico que acompanha o aborígine favorecido pela

transparência do meio), o espaço aberto (a floresta, o elemento natural) e a fronteira criada

pelo próprio movimento. Assim como o topos janela destacado por Hamon serve para

distribuir uma série de descrições em Vingt mille lieues sous les mers, o topos travelling aqui,

servirá para a distribuição da descrição do retrato físico do aborígine australiano.

O travelling seria útil para a análise de outros romances vernianos, não se restringindo

somente à descrição do australiano de Les enfants du capitaine Grant. No romance Cinq

semaines en ballon, o travelling é assegurado pelo deslocamento do balão proporcionando

uma visão do espaço africano e dos povos vistos pelos personagens que sobrevoam

determinados territórios; referindo-nos ao romance La jangada, a própria plataforma em

movimento, palco onde se concentram os personagens que vão descer o Rio Amazonas,

248 Cf. HAMON, 1993, p. 227.

147

permite a descrição dos espaços visitados e dos habitantes nativos que são vistos pelos

aventureiros através do topos travelling. A metáfora do procedimento cinematográfico do

travelling poderia conjugar-se ao próprio objetivo do editor de Jules Verne: é pertinente que o

magazine enciclopédico e o armazenamento de informações vá se desenrolando à medida em

que a explicação do que se vê vai se processando. Para o caso que analisamos, as informações

que o narrador deseja acumular e transmitir pouco a pouco ao leitor formam o retrato do

aborígine australiano, confundido com o macaco.

Acompanhando o “macaco”, ao final, os personagens já sabem que na verdade o

animal é “un australien pur sang”; os viajantes encontraram-se diante de um acampamento

indígena, e a exclamação “Quel triste spectacle!”249 é a justificativa para o início da descrição.

Em princípio, uma visão geral do que era este acampamento é apresentada na medida em que

a carroça ia se aproximando (“à l' approche du chariot”250):

Quel triste spectacle! Une dizaine de tentes se dressaient sur le sol nu. Ces "gunyos”, faits avec des bandes d'écorce étagées comme des tuiles, ne protégeaient que d'un côté leurs misérables habitants. Ces êtres, dégradés par la misère, étaient repoussants. Il y en avait là une trentaine, hommes, femmes et enfants, vêtus de peaux de kanguroos échiquetées comme des haillons. Leur premier mouvement, à l'approche du chariot, fut de s'enfuir. Mais quelques mots d'Ayrton prononcés dans un inintelligible patois parurent les rassurer. Ils revinrent alors, moitié confiants, moitié craintifs, comme des animaux auxquels on tend quelque morceau friand.251

O travelling, aqui, prepara a inserção do retrato. A descrição passa do geral ao

detalhado, apresentando aos leitores, assim, um grupo de figuras de indígenas:

Ces indigènes, hauts de cinq pieds quatre pouces à cinq pieds sept pouces, avaient un teint fuligineux, non pas noir, mais couleur de vieille suie, les cheveux floconneux, les bras longs, l'abdomen proéminent, le corps velu et couturé par les cicatrices du tatouage ou par les incisions pratiquées dans les cérémonies funèbres. Rien d’horrible comme leur figure monstrueuse, leur bouche énorme, leur nez épaté et écrasé sur les joues, leur mâchoire inférieure proéminente, armée de dents blanches, mais proclives. Jamais créatures humaines n' avaient présenté à ce point le type d’animalité.252

249 VERNE, 1975b, p. 320. 250 VERNE, 1975b, p. 320. 251 VERNE, 1975b, p. 320. 252 VERNE, 1975b, p. 320.

148

Dando sequência ao retrato dos aborígenes, o narrador tece o comentário abaixo:

Robert ne se trompait pas, dit le major, ce sont des singes pur sang, si l'on veut, mais ce sont des singes! -Mac Nabbs, répondit lady Helena, donneriez-vous donc raison à ceux qui les chassent comme des bêtes sauvages? Ces pauvres êtres sont des hommes. Des hommes! S’écria Mac Nabbs! Tout au plus des êtres intermédiaires entre l’homme et l' orang-outang! Et encore, si je mesurais leur angle facial, je le trouverais aussi fermé que celui du singe! Mac Nabbs avait raison sous ce rapport; l’angle facial de l'indigène australien est très aigu et sensiblement égal à celui de l'orang-outang, soit soixante à soixante-deux degrés. Aussi n'est-ce pas sans raison que M. de Rienzi proposa de classer ces malheureux dans une race à part qu'il nommait les “pithécomorphes”, c’est-à-dire hommes à formes de singes.253

Retomada pela anáfora “Ces indigènes” que garante a legibilidade do conjunto

descritivo, a descrição feita pelo narrador se detém nos traços físicos do tronco e, sobretudo,

do rosto desses personagens, caracterizando-se como uma descrição puramente

prosopográfica. O retrato do australiano é constituído homogeneamente. Há uma primeira

ideia dos personagens sobre como é o aborígine - em que se destaca sua semi-animalidade e

sua semelhança com o macaco - que se opõe a uma segunda impressão, formada a partir da

opinião do geógrafo Paganel que afirma que o que estão vendo é um “australiano de raça

pura”.

Na falta de uma ilustração para este retrato254, o leitor apóia-se na picturalidade da

descrição que auxilia na construção mental da imagem. Com a ajuda do léxico especializado,

temos caracterizadas cores (“fuligineux”, “non pas noir”, “couleur de vieille suie”) e texturas

que caraterizam as roupas, os cabelos e o corpo (“peaux de kanguroos échiquetées comme des

haillons”, “floconneux”, “cicatrices”). Essas marcas poderiam ser somadas a características

prosopográficas específicas e precisas como as definições da altura, da proeminência do

abdômen e do queixo, o ângulo facial agudo como o de um orangotango e detalhes sobre o

253 VERNE, 1975b, p. 320. 254 Esta descrição pode ser comparada com a imagem de um tipo aborígine que figura no relato de viagem de Nicolas Baudin escrito em torno dos anos de 1800 e 1802 publicado em FERLONI, Júlia. De Lapérouse à Dumont d’Urville. Les explorateurs du Pacifique. Paris : Conti, 2006, p. 69 (cf. Anexo 2). No artigo “Povos primitivos em Les enfants du capitaine Grant, de Jules Verne”, de nossa autoria, pudemos tratar desta imagem. Este artigo foi publicado no livro Cenas da literatura moderna organizado por Celina Maria Moreira de Mello e Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, publicado no Rio de Janeiro, em 2010, pela editora 7Letras.

149

corpo, os cabelos, a boca, o nariz e os dentes, que culminam na imagem do macaco,

apresentada inicialmente, que é reiterada pelo narrador em seu comentário generalizante ao

final da descrição.

O último retrato apresentado em Les enfants du capitaine Grant representa um índio

Maori, visto quando os personagens partem para a Nova Zelândia. A descrição prosopográfica

que se abre com a frase “Une embarcation remontait le courant du Waikato. Huit avirons à

l’avant la faisaient voler à la surface des eaux, pendant qu’un homme, assis à l’arrière, le

dirigeait au moyen d’une pagaie mobile”255, tem como pantônimo “un chef Maori”:

Cet homme était un indigène de grande taille, âgé de quarante-cinq ans environ, à la poitrine large, aux membres musculeux, armé de pieds et de mains vigoureux. Son front bombé et sillonné de plis épais, son regard violent, sa physionomie sinistre, en faisaient un personnage redoutable. C’était un chef Maori, et de haut rang. On le voyait au tatouage fin et serré qui zébrait son corps et son visage. Des ailes de son nez aquilin partaient deux spirales noires qui, cerclant ses yeux jaunes, se rejoignaient sur son front et se perdaient dans sa magnifique chevelure. Sa bouche aux dents éclatantes et son menton disparaissaient sous de régulières bigarrures, dont les élégantes volutes se contournaient jusqu’à sa robuste poitrine.256

Retomado pelas anáforas “Cet homme”, “un chef Maori”, “Indigène”, o Maori é

apresentado aos leitores sob aspectos físicos bem definidos. Traços gerais como altura e

idade, detalhes do tórax, dos membros, pés e mãos e do rosto, do nariz, dos olhos, da sua

fronte, e as pinturas no seu corpo, constroem a figura deste neozelandês. Podemos agregar a

estes caracteres físicos, que são quase somente descritos do tórax para a parte superior do

corpo (como se fosse um busto) – evidenciando a importância do rosto na descrição de um

retrato –, traços morais deste personagem (etopeia): o olhar violento, a fisionomia sinistra

denotavam achar-se ali um personagem temível. Embora não seja rica no léxico das cores

(noires, jaune, blanc – dents éclatantes), esta descrição apresenta o moko como pinturas

regulares que ilustram os corpos dos neozelandeses, frequentemente, imagens de animais.

Estas ilustrações corporais, além de figurarem como imagens convidativas à formação do

255 VERNE, 1975b, p. 448. 256 VERNE, 1975b, p. 448.

150

retrato, auxiliam a construção da característica moral do personagem, visto que essas pinturas

só aparecem no corpo de indígenas ilustres como sinal distintivo, o que é referido no

comentário do narrador, logo em seguida ao retrato:

Le tatouage, le “moko” des Néo-Zélandais, est une haute marque de distinction. Celui-là seul est digne de ces paraphes honorifiques qui a figuré vaillamment dans quelques combats. Les esclaves, les gens du bas peuple, ne peuvent y prétendre. Les chefs célèbres se reconnaissent au fini, à la précision et à la nature du dessin qui reproduit souvent sur leurs corps des images d’animaux. Quelques-uns subissent jusqu’à cinq fois l’opération fort douloureuse du moko. Plus on est illustre, plus on est “illustré” dans ce pays de la Nouvelle-Zélande.257

A imagem abaixo ilustra o que seria a tatuagem do moko e foi extraída do livro de

Jacques Brosse258 que conta o relato da primeira viagem de James Cook à Nova-Zelândia,

realizada em 1770. Esta imagem, publicada com a legenda “Tête de Néo-zélandais tatouée”,

será a mesma que ilustrará o resumo que Jules Verne fará do relato do capitão Cook,

publicado no volume Histoire des grands voyages et des grands voyageurs – Les navigateurs

du XVIIIe siècle, lançado pela editora Hetzel dez anos depois da publicação do romance Les

enfants du capitaine Grant.

257 VERNE, 1975b, p. 448. 258 BROSSE, Jacques. Les tours du monde des explorateurs – Les grands voyages maritimes,1764-1843. Paris: Bordas,1983, p. 34.

151

Retrato de indígena da Nova-Zelândia.

Aquarela de Sidney Parkinson. Biblioteca britânica, Londres.

Essa evidência pode provar que as longas pesquisas que o autor fez para compor as

Histoire des grands voyages, auxiliaram também na construção dos seus romances. Notamos,

assim, o interesse diversificado de Hetzel em sua editora ao publicar romancistas como

Honoré de Balzac e Théophile Gautier, resumos de relatos de viagens, como os mencionados

acima, trabalhos de fisiognomonistas, como o de Gratiolet e, ainda, o trabalho de geografia

descritiva, Géographie illustrée de la France et de ses colonies, esboçado por Théophile

Lavalée e concluído por Jules Verne em 1867-1868. Este transita, no projeto editorial de

Hetzel entre literatura e ciência e, no caso dos romances, associando ambas.

152

4.4- Le Chancellor: regressão do homem ao estado bestial

Le Chancellor, de 1875, é um romance atípico no conjunto das “Viagens

extraordinárias”. Sem tratar de descobertas científicas nem de máquinas maravilhosas, Le

Chancellor coloca em cena temas insólitos como o naufrágio, a loucura, o canibalismo e o

estado de imbecilidade humana.

A trama é narrada em tom de diário pelo personagem J.-R. Kazallon, passageiro inglês

do navio Chancellor. A embarcação, que o leva de volta para a Europa, tem por missão

comercial transportar uma carga de algodão de Charleston, nos Estados unidos, a Liverpool,

na Inglaterra. Com base no relato de Kazallon e, portanto, do personagem focalizador para a

descrição dos retratos, teremos apresentada toda a tripulação do navio. Assim como em Les

enfants du capitaine Grant, os quatro primeiros capítulos de Le Chancellor abrigam a “galeria

de retratos” do romance. Mais especificamente, o segundo capítulo é reservado a apresentar o

retrato completo do capitão da embarcação e a menção aos nomes dos outros tripulantes, entre

os quais, marinherios e civis, encontra-se o cozinheiro negro Jynxtrop.

O próprio incipit do segundo capítulo serve para emoldurar o retrato do capitão, cujo

pantônimo é anunciado pela frase de abertura “J’ai dit que le capitaine du Chancellor se

nomme Huntly, - de ses prenoms John-Silas.”259 A frase introduz o retrato:

C’est un Écossais de Dundee, âgé de cinquante ans, qui a la réputation d’un habile routier de l’Atlantique. Sa taille est moyenne, ses épaules sont étroites, sa tête est petite et par habitude un peu inclinée à gauche. Sans être un physionomiste de premier ordre, il me semble que je puis déjà juger le capitaine Huntly, bien que je ne le connaisse que depuis quelques heures. Que Silas Huntly ait la réputation d’être un bon marin, qu’il sache parfaitement son métier, je n’y contredis pas; mais qu’il y ait en cet homme un caractère ferme, une énergie physique et morale à toute épreuve, non! Cela n’est pas admissible. En effet l’attitude du capitaine Huntly est lourde, et son corps présente un certain affaissement. Il est nonchalant, et cela se voit à l’indécision de son regard, au mouvement passif de ses mains, à l’oscillation qui le porte lentement d’une jambe sur l’autre. Ce n’est pas, ce n’est peut-être pas un homme énergique, pas même un homme entêté, car ses yeux ne se contractent pas, sa mâchoire est molle, ses poings n’ont pas une tendance habituelle à se fermer. En outre, je lui trouve un air singulier, sur lequel je ne saurais m’expliquer encore, mais je l’observerai avec attention que

259 VERNE, 1975c, p. 3.

153

mérite le commandant d’un navire, celui qui s’appelle “le maître après Dieu!”260

Para o retrato do capitão Huntly, após seu nome, temos sua idade mencionada. Assim

como em alguns outros retratos dos romances do corpus, essa informação permite-nos

estabelecer um paralelo com o retrato em pintura. Após essa menção, uma visão

prosopográfica geral é apresentada aos leitores: dados sobre a altura, a largura dos ombros e o

tamanho da cabeça. Estas informações físicas levam o narrador a introduzir, numa visada

fiosiognomônica, algumas considerações morais (etopeia) sobre o personagem (“Sans être un

physionomiste de premier ordre, il me semble que je puis déjà juger le capitaine Huntly”). Em

seguida, numa relação de causa e efeito, cara à ciência fisiognomônica, temos a apresentação

de uma característica física associada a uma característica moral, como por exemplo,

indécision du regard = nonchalance, e um movimento animalesco do seu corpo (“son corps

présente un certain affaissement. Il est nonchalant, et cela se voit à l’indécision de son regard,

au mouvement passif de ses mains, à l’oscillation qui le porte lentement d’une jambe sur

l’autre”), culminando na conclusão do retrato que, por parte de Kazallon, confia na

experiência de bom marinheiro do capitão, que deve ser o “maître après dieu”.

Em termos de função deste retrato na narrativa, características como a preguiça e a

falta de energia apontam para a atitude de Huntly face ao naufrágio do Chancellor: ele

abandona o comando da embarcação, deixando-o ao seu substituto, Robert Kurtis. A atitude

de Huntly não é somente indicada nos traços do seu retrato, mas também na frase que segue a

sua descrição: “Or, si je ne me trompe, entre Dieu et Silas Huntly, il y a à bord un autre

homme qui me paraît destiné, le cas échéant, à prendre une place importante. C’est le second

du Chancellor que je n’ai pas encore suffisamment étudié, et dont je me réserve de parler plus

260 VERNE, 1975c, p. 3.

154

tard.”261 As palavras do narrador do romance criam uma expectativa; há um efeito de

descrição iminente, que se desfaz.

Como dissemos, o segundo capítulo é destinado à apresentação completa do capitão, o

que dá abertura para a menção dos nomes dos outros tripulantes que vão ter seus retratos

descritos ao longo do capítulo seguinte:

L’équipage du Chancellor se compose du capitaine Huntly, du second Robert Kurtis, du lieutenant Walter, d’un bosseman, et de quatorze matelots, Anglais ou Écossais, soit dix-huit marins, - ce qui suffit à la manoeuvre d’un trois-mâts de neuf cents tonneaux. Ces hommes ont l’air de bien connaître leur métier. Tout ce que je puis affirmer jusqu’ici, c’est que, sous les ordres du second, ils ont habilement manoeuvré dans les passes de Charleston. Je complète l’énumération des personnes embarquées à bord du Chancellor, en citant le maître d’hôtel Hobbart, le cuisinier nègre Jynxtrop, et en donnant la liste des passagers. [...] Au surplus, voici la liste des passagers, telle que je l’ai relevée sur les rôles du navire: Mr. et Mrs. Kear, Américains, de Buffalo; Miss Herbey, Anglaise, demoiselle de compagnie de Mrs. Kear; M. Letourneur et son fils, André Letourneur, Français, du Havre; William Falsten, un ingénieur de Manchester, et John Ruby, négociant de Cardiff, Anglais tous deux; J.-R. Kazallon, de Londres – l’auteur de ces notes.262

A partir da primeira descrição e do excerto acima, poderíamos considerar a presença

de uma sequência de retratos em que o do capitão do Chancellor ocuparia um lugar

privilegiado para o leitor que o vê encabeçar o segundo capítulo, dominando os outros retratos

da galeria que se segue. Note-se também que, mesmo antes de apresentar o retrato dos

personagens, o narrador enfatiza que o cozinheiro da embarcação é negro.

No capítulo quatro, seguido à partida do Chancellor, temos apresentados

detalhadamente todos os tripulantes do navio. Compreende-se que a frase de Kazallon “Aussi,

pas de place inoccupée autour de la table, à l’heure du repas”, além de evidenciar sua posição

privilegiada de personagem focalizador, dará início aos retratos que se seguirão.

A terminologia “retrato de grupo” parece-nos apropriada para designar o grande bloco

descritivo que se seguirá. A própria construção e a ordem dos retratos apresentados leva-nos a

261 VERNE, 1975c, p. 3. 262 VERNE, 1975c, p. 4.

155

essa conclusão. Ora, falamos em retrato de grupo não só porque todos os retratos estarão

reunidos neste capítulo, numa mesma tela, fazendo um paralelismo com a pintura, mas

também porque o final de uma descrição será imediatamente o início da próxima, num

encadeamento de frases introdutórias e pantônimos. Esse encadeamento leva o leitor a criar

mentalmente a imagem de um retrato de grupo.

O primeiro personagem a ser retratado é o francês Sr. Letourneur. Depois do anúncio

do narrador de que todos estavam em torno da mesa no momento da refeição, a frase “Les

relations entre les passagers commencent à s’établir, et la vie du bord devient moins

monotone. Le Français, M. Letourneur, et moi, nous causons ensemble”263, naturaliza e

apresenta o pantônimo do retrato do passageiro francês:

M. Letourneur est un homme de cinquante-cinq ans, de haute taille, les cheveux blancs, la barbe grisonnante. Il paraît certainement plus vieux que son âge, - ce qui tient à ce qu’il a beaucoup souffert. De profonds chagrins l’ont éprouvé, et j’ajoute, l’éprouvent encore. Cet homme porte évidemment en lui une source intarissable de tristesse, et cela se voit à son corps un peu affaissé, à sa tête le plus souvent inclinée sur sa poitrine. Jamais il ne rit, il sourit à peine, et seulement à son fils. Ses yeux sont doux, mais il me semble que leur regard n’apparaît qu’à travers un voile humide. Sa figure offre un mélange caractérisé d’amertume et d’amour, et l’expression générale de sa physionomie est celle d’une bonté caressante.264

Para o retrato do francês temos a típica construção verniana (nome + idade + visão

geral), seguida da descrição das características morais do personagem associadas à alguma

característica física. Este retrato, embora seja marcado pela presença da etopeia e da visão do

todo (“haute taille”; “corps un peu affaissé”), tem como foco o rosto do personagem. Detalhes

como os “cheveux blancs”; “barbe grisonnante”; “tête inclinée sur la poitrine”; “yeux doux”,

desembocam na expressão geral da fisionomia do personagem: “d’une bonté caressante”. Para

este personagem, apesar de a amargura e de o amor comporem sua identidade, temos a

bondade descrita, característica que perfaz o retrato e, portanto, atributo de peso para

construção personagem.

263 VERNE, 1975c, p. 7. 264 VERNE, 1975c, p. 7.

156

A frase “On dirait que M. Letourneur a quelque malheur involontaire à se reprocher.

En effet! mais qui sera profondément touché en apprenant quels sont les reproches exagérés, à

coup sûr, que ce “père” se fait à lui-même!”265, serve de fechamento ao bloco descritivo

concernente ao retrato do Sr. Letourneur e auxilia na compreensão do retrato que se aproxima

textualmente. A palavra “père”, entre aspas, indica-nos que o Sr. Letourneur tem um filho,

informação imediatamente acionada pela compreensão do leitor e confirmada pela frase

seguinte: “M. Letourneur est à bord avec son fils André.”266 Esta frase serve de gancho para o

retrato que tem como pantônimo André Letourneur:

Âgé de vingt ans environ, de figure douce et intéressante. Ce jeune homme est le portrait un peu effacé de M. Letourneur, mais – et c’est là l’incurable douleur de son père, André est infirme. Sa jambe gauche, misérablement déjetée en dehors, l’oblige à boiter, et il ne peut marcher sans s’appuyer sur une canne. Le père adore cet enfant, et on sent que toute sa vie est à ce pauvre être.267

O curto retrato de André Letourneur, “construído à imagem do pai” já descrito, é feito

com base na alusão metalinguística (“portrait”) que o narrador faz. O nome antecede a idade,

seguido da visão geral da figura que denota doçura, característica recorrente nos retratos que

temos analisado ao longo da dissertação. O desenvolvimento da descrição se atém a um traço

físico, mais especificamente, à enfermidade que o personagem apresenta na perna esquerda.

Essa informação, que justifica a introdução de uma bengala no seu retrato, auxilia a

compreensão da tristeza do pai, cujo retrato foi explorado acima. Embora tenha sua

enfermidade mencionada, André Letourneur é visto positivamente pelo narrador, informação

reiterada pela frase que finaliza seu retrato: “Je viens de quitter M. André. C’est un jeune

homme intelligent et instruit.”268

Ainda em torno da mesa, o Sr. Letourneur e Kazallon discutem sobre a perceptível

indecisão e a visível sonolência do capitão Silas Huntly. Essa discussão é levada ao ponto em

265 VERNE, 1975c, p. 7. 266 VERNE, 1975c, p. 7. 267 VERNE, 1975c, p. 7. 268 VERNE, 1975c, p. 8.

157

que o Sr. Letourneur dê sua opinião sobre o ajudante do capitão, Robert Kurtis, pretexto para

que, finalmente, o narrador esboce o retrato desse personagem. A frase “L’opinion de M.

Letourneur est, au contraire, très favorable au second, Robert Kurtis”269, introduz o pantônimo

e naturaliza o retrato literário que seguirá:

Homme de trente ans, bien constitué, d’une grande force musculaire, toujours dans l’attitude de l’action, et dont la volonté vivace semble sans cesse prête à se manifester par des actes. Robert Kurtis vient de monter en ce moment sur le pont. Je l’observe attentivement, et je suis frappé des symptômes que présentent sa puissance et son expansion vitale. Il est là, le corps droit, l’allure aisée, le regard superbe, les muscles sourciliers à peine contractés. C’est un homme énergique, et il doit posséder ce droit courage qui est indispensable au vrai marin. C’est en même temps un être bon, car il s’intéresse au jeune Letourneur et s’empresse de lui être utile en toute occasion. Après avoir examiné l’état du ciel et la voilure du bâtiment, le second s’approche de nous et prend part à notre entretien.270

O retrato de Kurtis também segue a formação canônica da descrição de retratos

verniana. Podemos dividi-lo em dois momentos (do geral ao detalhado): o primeiro, em que o

narrador apresenta o nome, seguido da idade, da visão prosopográfica geral (“bien constitué”,

“grande force musculaire”) e de uma breve etopeia (“l’attitude de l’action”; “volonté

vivace”); e um segundo momento, claramente distanciado de um parágrafo, em que o

narrador-personagem se coloca na posição de voyeur e “observe attentivement” os traços

físicos (corps � allure � regard � muscles sourciliers) e morais do personagem (puissance

� expansion vitale � énergique � courage �bon). Nesta segunda parte, o narrador

menciona os traços positivos que delimitam o retrato de Robert Kurtis dos quais podemos

salientar a coragem, a bondade e a energia. Tais traços vão não só distingui-lo de Silas Huntly

como justificar sua futura posição de capitão do Chancellor quando a embarcação naufragar.

Robert Kurtis, tomando a palavra na conversa de Letourneur e Kazallon, vem “nous

donner quelques détails sur ces passagers avec lesquels nous n’avons encore établi que de

relations forts imparfaites.”271 Esta frase introduz, de modo generalizador, os próximos cinco

269 VERNE, 1975c, p. 10. 270 VERNE, 1975c, p. 10. 271 VERNE, 1975c, p. 10.

158

retratos literários do romance construídos em cadeia. O primeiro deles apresenta o casal de

americanos do Chancellor. O duplo pantônimo anunciado na frase seguinte evidencia que se

tratará do retrato do casal: “Mr. e Mrs. Kear sont deux Américains du North-Amérique, qui

ont fait de gros bénéfices dans l’exploitation de sources de pétrole. On sait, en effet, que là est

l’origine des grandes fortunes modernes des États-Unis.”272 Esta breve apresentação, introduz

o retrato do Sr. Kear:

Mr. Kear, homme de cinquante ans, qui paraît plutôt enrichi que riche, est un triste commensal, ne cherchant et ne voulant que ses aises. Un bruit métallique sort à chaque instant de ses poches, dans lesquelles ses deux mains sont incessament plongées. Orgueilleux, vaniteux, contemplateur de lui-même et contempteur des autres, il affecte une suprême indifférence pour tout ce qui n’est pas lui. Il se rengorge comme un paon, “il se flaire, il se savoure, il se goûte”, pour employer les termes du savant physionomiste Gratiolet. Enfin, c’est un sot doublé d’un égoïste. Je ne m’explique pas pourquoi il a pris passage à bord du Chancellor, simple navire de commerce qui ne peut lui offrir le confortable des transatlantiques.273

A descrição do Sr. Kear é o típico retrato que funciona como um índice das ações do

personagem. Tal como Hamon menciona, o retrato é, na hierarquia das descrições, um espaço

privilegiado na narrativa, já que é capaz de reunir as características físicas e/ou morais do

personagem num bloco descritivo mais ou menos longo. Nitidamente um caso de etopeia, o

retrato de Kear está em harmonia com essa explicação: numa abordagem fisiognomônica,

usando as palavras de Gratiolet, fisionomista contemporâneo de Jules Verne cujas obras

também eram publicadas pela editora de Hetzel, o narrador compara o personagem a um

pavão. O orgulho, o egoísmo e a vaidade surgem como valores destacados no bloco descritivo

que vão guiar as atitudes deste personagem ao longo da viagem-catástrofe. Há também nesse

retrato, por parte do narrador-personagem que é inglês, uma desvalorização da maneira como

o Sr. Kear consegue o dinheiro, proveniente do comércio do petróleo, o que poderia se ler

como uma crítica aos americanos. A designação “un triste commensal” e a ironia das frases

“qui paraît plutôt enrichi que riche” e “Un bruit métallique sort à chaque instant de ses

272 VERNE, 1975c, p. 11. 273 VERNE, 1975c, p. 11.

159

poches, dans lesquelles ses deux mains sont incessaments plongées” atestam ironicamente

essa desvalorização.

Seguindo o retrato do Sr. Kear, está o de sua esposa e de sua serviçal:

Mrs. Kear est une femme insignifiante, nonchallante, indifférente, que la quarantaine a déjà touché aux tempes, sans esprit, sans lecture, sans conversation. Elle regarde, mais elle ne voit pas; elle écoute, mais elle n’entend pas. Pense-t-elle? Je ne saurais l’affirmer. L’unique occupation de cette femme est de se faire servir à tout propos par sa demoiselle de compagnie, Miss Herbey, jeune anglaise de vingt ans, douce et calme, qui ne gagne pas sans humiliation les quelques livres que lui jette le marchand de pétrole.274

Copiando o modelo do retrato de seu marido, o narrador apresenta Sra. Kear sob os

traços de uma etopeia. Os adjetivos “insignifiante”, “nonchallante” e “indifférente”

evidenciam estes dados que, acompanhados dos traços “sans esprit, sans lecture, sans

conversation”, ajudam a caracterizar a mulher. Ao retrato da Sra. Kear vemos associar-se

aquele de sua dama de companhia, “Miss Herbey”, pantônimo anunciado pela frase

introdutória “L’unique occupation de cette femme est de se faire servir à tout propos par sa

demoiselle de compagnie, Miss Herbey.” Depois de citada sua nacionalidade, sua idade e

duas de suas características morais (“douce”; “calme”), seu retrato prosopográfico

desenvolve-se da seguinte maneira:

Cette jeune personne est fort jolie. C’est une blonde avec des yeux bleus très foncés, et sa physionomie gracieuse n’a pas cette insignifiance qui se rencontre chez certaines anglaises. Sa bouche serait charmante, si elle n’avait jamais temps ou l’occasion de sourire. Mais à qui, à propos de quoi sourirait la pauvre fille, en butte aux incessantes taquineries, aux caprices ridicules de sa maîtresse. Toutefois, si Miss Herbey souffre au-dedans, elle se soumet, du moins, et paraît résignée à son sort.

Vemos identificados neste retrato os traços do rosto de Miss Herbey. Como em outros

retratos vernianos, o narrador tenta detalhá-los visando deixar mais clara a identidade do

personagem. O foco no rosto de Miss Herbey desenvolve a descrição pela cor dos cabelos,

dos olhos, o aspecto da fisionomia e da boca. Deste retrato, o leitor pode extrair e guardar na

274 VERNE, 1975c, p. 11.

160

memória os adjetivos “gracieuse” e “résignée”, usados para caracterizar a Srta. Herbey,

refletindo a personagem em si e, por extensão, indicando previamente suas ações. Essa

inglesa resignada deve se submeter à repressão, à humilhação e à implicância de seus patrões

americanos.

Compondo a galeria, há também o retrato de “William Falsten”, nome próprio,

pantônimo anunciado em início de frase que, pela distância de um parágrafo do retrato da Srta

Herbey, tem o efeito de abertura de seu retrato:

Lui, est un ingénieur de Manchester, qui a l’air très anglais. Il dirige une vaste usine hydraulique dans la Caroline du Sud et va chercher en Europe de nouveaux appareils perfectionnés, entre autres les moulins à force centrifuge de la maison Cail. C’est un homme de quarante-cinq ans, une sorte de savant qui ne pense qu’aux machines, que la mécanique ou le calcul absorbent tout entier et qui ne voit rien au-delà. Lorsqu’il vous tient dans sa conversation, il n’est plus possible de se dégager et, on y passe tout entier comme dans un engrenage.275

Numa espécie de apresentação biográfica, o retrato de Falsten evidencia três traços que

comporiam um retrato, segundo as definições que estudamos. “L’air très anglais”, “homme de

quarante-cinq ans” e “une sorte de savant” são as informações que o leitor pode guardar deste

personagem caracterizado como um homem tagarela. O retrato caracteriza este personagem

como o “sábio da indústria” e não o “sábio da ciência”. Os conhecimentos científicos de

engenharia que o personagem possui são ligados tão somente a conhecimentos mecânico-

industriais. As palavras “force centrifuge”, “machine”, “mécanique”, “calcul” e “engrenage”

que encontramos no seu retrato provam essa ligação que vincula sutilmente, em tom irônico, a

imagem do personagem à indústria.

No último retrato da galeria, vemos representado o senhor Ruby. O personagem a ser

descrito é apresentado seguindo os moldes do retrato de William Falsten. Com a diferença de

um parágrafo do retrato que o precede, temos o pantônimo anunciado que dará início a uma

apresentação biográfica de onde se extrai um substantivo seguido de um epíteto – “négociant

vulgaire” – e dois dados de etopeia “sans grandeur” e “sans originalité”: 275 VERNE, 1975c, p. 11.

161

Quant au sieur Ruby, il représente le négociant vulgaire, sans grandeur, sans originalité. Depuis vingt ans, cet homme n’a rien fait qu’acheter et vendre, et, comme il a généralement vendu plus cher qu’il n’a acheté, sa fortune est faite. Ce qu’il en fera, il ne saurait le dire. Ce Ruby, dont toute l’existence s’est abruti dans le commerce de détail, ne pense pas, ne réfléchi plus; son cerveau est désormais fermé à toute impression, et il ne justifie en aucune façon ces mots de Pascal: “L’homme est visiblement fait pour penser. C’est tout sa dignité et tout son mérite.”276

Se no retrato anterior o personagem tem sua imagem ligada à indústria, este apresenta

claramente um vínculo com o comércio. As palavras “négociant vulgaire”, “acheter et

vendre”, “fortune” e “commerce” caracterizam Ruby como um homem de negócios.

Igualmente irônico na construção, porém de maneira menos sutil do que no retrato anterior, o

narrador se vale de uma citação intertextual das palavras de Pascal para dizer que o

personagem Ruby não pensa, não é digno e não tem mérito. Aqui as palavras citadas auxiliam

também a caracterizar negativamente o comércio e a situar este personagem, o casal

americano Kear e Falsten num lugar mais abaixo do que aquele ocupado pelos outros brancos

na embarcação, com veremos mais adiante.

Os personagens descritos que representam um retrato de grupo - que lembra aquele de

Hans Holbein mostrado em 2.2 -, tem como elemento principal o retrato do capitão Silas

Huntly. De origem francesa, inglesa ou norte americana, os personagens acima representados

são brancos e, embora não sejam descritos sob aspectos exageradamente positivos, como os

personagens de Cinq semaines en ballon ou Les enfants du capitaine Grant, possuem

características que vão da energia à boa constituição física, passando pelo egoísmo, pelo

orgulho, pela coragem, pela calma, desembocando na resignação e na bondade que matizam

os personagens de Le Chancellor numa coloração mais realista.

Ainda neste romance, temos o que Hamon designa por efeito-personagem para o

retrato de Jynxtrop, o cozinheiro negro do Chancellor, cuja nacionalidade não é mencionada.

Não tendo um bloco descritivo definido e destinado à sua apresentação, o cozinheiro terá seu

276 VERNE, 1975c, p. 11.

162

retrato representado de maneira difusa no texto. A primeira das poucas características que o

identifica e, podemos afirmar, possui maior valor segundo o narrador, é o fato de o

personagem ser negro – informação anunciada no início do romance quando o narrador-

personagem cita os nomes dos tripulantes do Chancellor. Por ocupar a posição de cozinheiro

da embarcação, Jynxtrop poderia ser visto como o negro-tipo dos romances mais “maduros”

de Jules Verne.277 Já civilizado, suscetível de ser guiado por um branco, Jynxtrop, pode ser

comparado a Endicott, outro cozinheiro, também negro, do romance Le Sphinx des glaces

(1897): “[...] je ne vis que le cuisinier Endicott à se résigner sans récrimination. En nègre peu

soucieux de l’avenir, très léger de caractère, frivole comme tous ceux de sa race, il se résignait

facilement à son sort, et, cette résignation, c’est peut être la vraie philosophie.”278

Porém, diversos traços distinguem os dois cozinheiros, sobretudo aquele que

caracteriza Jynxtrop, ainda, como semi-animal, quando o narrador o compara a uma “bête

féroce”. Essa menção vem somar-se a outras características que constituem o efeito-

personagem para Jynxtrop e podem ser lidas nas passagens: “Nègre, de mauvaise figure, à

l’air brutal et impudent”279; “Un mauvais homme”280; “Le nègre Jynxtrop, ce coquin, dont il

faut se défier”281. Tais características são previstas e entram em harmonia com as ações do

personagem ao longo da trama. Jynxtrop será protagonista da cena de canibalismo que

acontece na embarcação já prenunciada na passagem:

Donc, ayant prononcé quelques prières, nous lançons le cadavre dans les flots, et il s’enfonce immédiatement. “Tonnerre du ciel! On les nourrit bien, les requins!” Qui a parlé ainsi? Je me retourne. C’est le nègre Jyxntrop.282

277 Designamos o Chancellor como um dos romances mais “maduros” de Verne, pois sabemos que ele foi publicado inicialmente em formato de folhetim no jornal Le Temps, jornal político-literário, originalmente destinado aos adultos, o que o difere daqueles que se endereçavam ao público infanto-juvenil. 278 VERNE, Jules. Le Sphynx des glaces. [s.l.]: Editions No papers, 2000b. 279 VERNE, 1975c, p. 58. 280 VERNE, 1975c, p. 84. 281 VERNE, 1975c, p. 118. 282 VERNE, 1975, p. 145.

163

Depois que um dos marinheiros se enforca em razão da situação de fome e sede em

que se encontram os personagens na balsa do Chancellor, temos a cena:

En un instant, la corde est coupée. Jynxtrop s’est penché sur le cadavre... Non, je n’ai pas vu! Je n’ai pas voulu voir! Je n’ai pas pris part à cet horrible repas!283

As características que compõem o efeito-personagem para Jynxtrop se perfazem

quando é descrita a cena que retrata o estado de loucura do cozinheiro, comparado mais uma

vez a uma “bête féroce” e a um canibal, antes de se matar:

Aujourd’hui, 22, scène affreuse. Le nègre Jynxtrop, subitement pris d’un accès de folie furieuse, parcourt le radeau en poussant des hurlements. Robert Kurtis veut le contenir, mais en vain. Il se jette sur nous pour nous dévorer! Il faut se défendre contre les attaques de cette bête féroce. Jynxtrop a saisi un anspect, et il est difficile de parer ses coups. Mais soudain, par un revirement qu’une attaque de folie seule explique, sa rage se tourne contre lui-même. Il se déchire de ses dents, de ses ongles, nous jettant son sang à la figure et criant: “buvez! buvez!” Pendant quelques minutes, il se démène ainsi, et se dirige vers l’avant du radeau, criant toujours: “buvez! buvez!” Puis, il s’élance, et j’entends son corps tomber à la mer. Le bosseman, Falsten et Daoulas se précipitent à l’avant du radeau pour reprendre ce corps, mais ils ne voient plus qu’un large cercle rouge, au milieu duquel se débattent des requins monstrueux!284

Como informação paratextual, a ilustração abaixo colabora para a caracterização

negativa do personagem, visto que a imagem que ilustra a cena descrita é a única em que

aparece o cozinheiro Jynxtrop.

283 VERNE, 1975c, p. 175. 284 VERNE, 1975c, p. 179-180.

164

Então, ele se joga e seu corpo toca o mar.

VERNE, Le Chancellor, p. 177.

Para o romance Le Chancellor o contraste se dá entre brancos e “o” selvagem

Jynxtrop. A análise contrastiva dos retratos deste romance não converge para a justificativa do

colonialismo, como é o caso de Cinq semaines en ballon, nem para a distinção hierárquica

entre o mítico “bom selvagem” e os negros, caso de Les enfants du capitaine Grant. Mesmo

não sendo um romance de viagem de exploração, o contraste que há entre os personagens

brancos e o selvagem Jynxtrop reside no fato de vermos associada a imagem do negro, mais

uma vez, com aquela do homem inculto, selvagem e canibal. Embora em Le Chancellor

Jynxtrop apresente indícios de que já seja “domado” e “civilizado” – veja-se sua posição do

cozinheiro no navio –, o personagem é o primeiro a deixar transparecer seus traços

animalescos na situação de extremismo do naufrágio da embarcação e de isolamento na balsa;

Jynxtrop será o personagem que representará a encarnação da regressão do homem ao estado

bestial.

165

Do microcosmo social criado na balsa do Chancellor, só sobreviverão os mais fortes e

os de “bom coração”. Como numa fábula, em que o leitor tem uma lição moral ao final, o

romance Le Chancellor trata de dar à simbologia social do naufrágio o poder de recriação do

mundo dos homens, do qual estarão excluídos os de pouca força física, os de coração

corrompido pelas paixões humanas, e o homem negro, bem entedido.

A ideia de microcosmo social não se restringe somente ao romance Le Chancellor.

Nas outras narrativas que analisamos é nítida a tentativa de construção de uma micro-

sociedade que se forma com base nas posições que cada personagem ocupa. Assim, teríamos

um microcosmo social dentro do balão Victoria e outro dentro do navio Duncan. Extraímos

das análises dos retratos o fato de que a sociedade é passível de ser representada

hierarquicamente, compreendendo que, para cada personagem, é atribuído um grau de acordo

com seu “mérito”, ou, para usar a terminologia de Pierre Bourdieu, de acordo com a posse de

capitais.285 Nos romances, esses capitais seriam medidos pelos padrões quantitativos e

qualitativos do conhecimento científico: quanto maior o capital cultural do personagem, mais

alta será a posição simbólica que este ocupará numa estrutura piramidal em que a ponta indica

o grau mais alto e a base, o mais baixo. Assim, os romances do corpus que analisamos

poderiam resultar num modelo social em que cientistas, geógrafos e viajantes ocupam o topo

da pirâmide.

Essa escala social é bem retratada em Cinq semaines en ballon. Mesmo a ordem de

aparecimento dos personagens no romance evidencia essa hierarquização, assim como a

posição privilegiada dos brancos que sobrevoam e, portanto, estão fisica e simbolicamente

285 Capital, na obra de Pierre Bourdieu é um conceito que discute a quantidade de acúmulo de forças dos agentes em suas posições no campo. O sociólogo distingue quatro principais tipos de capital: o social, o cultural, o econômico e o simbólico (no qual se inclui o científico). Em Coisas ditas, Bourdieu compara os diversos capitais que um agente pode possuir a trunfos de um jogo, bens raros que têm lugar no universo social. “Esses poderes sociais fundamentais são, de acordo com minhas pesquisas empíricas, o capital econômico, o capital cultural além do capital simbólico, formas de que se revestem as diferentes espécies de capital quando percebidas e reconhecidas como legítimas. Assim, os agentes estão distribuidos no espaço social global, na primeira dimensão de acordo com o volume global de capital que eles possuem sob diferentes espécies, e, na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e cultural, no volume total de seu capital.” BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 154.

166

acima dos habitantes africanos. No romance, temos o célebre viajante Samuel Fergusson,

especialista em geografia, autoridade científica tendo completado a volta ao mundo aos vinte

e dois anos de idade, em suma um “docteur” e, portanto, possuidor de um maior capital

simbólico, ocupando o topo da pirâmide; Dick Kennedy, seu amigo, nomeado como alter ego

de Fergusson, ocupante do segundo grau e Joe, o criado de Fergusson, ocupante do terceiro

escalão da pirâmide. Evidentemente, com base nas análises que fizemos neste capítulo, os

negros africanos ocupariam a última área da estrutura. A metáfora orgânica “Fergusson était

la tête et Kennedy les bras, Joe devait être la main”286 simboliza essa estruturação social

tripartida que permite, inclusive, localizar Joe na pirâmide numa posição em que pode escalá-

la na sua integralidade. Essa mobilidade social de Joe também é vista como “iniciática”, para

mencionar o trabalho de Lionel Dupuy, especialista em assuntos vernianos, que defende o

caráter iniciático do romance, sendo Joe o personagem neófito.287

No romance Les enfants du capitaine Grant temos os retratos de toda uma casta de

personagens brancos, escoceses, especialistas em assuntos marítimos ou geográficos. Estes

personagens ocupariam o topo da pirâmide e seriam encabeçados por Lord Glenarvan, rico

filho de viajantes e por Jacques Paganel, o geógrafo-cientista da embarcação, possuidores dos

capitais necessários que lhes conferem a posição privilegiada que ocupam. A segunda parte da

pirâmide que estrutura a micro sociedade criada em Les enfants du capitaine Grant é

destinada aos personagens “semi-selvagens”, como o patagão Thalcave ou os índios

neozelandeses. Para completar esse microcosmo social, os aborígenes australianos vêm

ocupar o último escalão. Uma outra característica dessa mini-civilização que nos cabe

salientar é que há uma única mulher entre sete personagens homens e nenhum personagem da

classe proletária.

286 VERNE, 1975a, p. 25. 287 Cf. DUPUY, Lionel. Jules Verne – L’homme et la terre; la mystérieuse géographie des voyages extraordinaires. Dole: La Clef d’argent, 2006, p. 25-55.

167

Para o Chancellor, teríamos o topo da pirâmide encabeçado por brancos, porém com

uma clara divisão feita através da nacionalidade e da ligação ao dinheiro que, segundo o

narrador, corrompe. A estrutura piramidal, no caso deste romance, seria dominada pelo

capitão escocês Huntly (primeiro retrato apresentado, o que evidencia sua posição

privilegiada), pelo inglês Robert Kurtis, pelos personagens franceses Sr. Letourneur e seu

filho André e pela inglesa Herbey, criada da senhora Kear. O lugar privilegiado na pirâmide

lhes seria conferido, ou porque são viajantes experientes, por conhecerem geografia ou por

suas qualidades morais, em suma, porque todos são detentores de conhecimentos, capitais

simbólicos valorizados pelo narrador. No caso de senhorita Herbey, embora esteja

socialmente abaixo dos seus patrões, sua posição privilegiada em relação a eles lhe é

garantida graças aos seus atributos morais e físicos, como vimos no seu retrato, e também por

sua nacionalidade. Há uma certa nobreza nesta criada “inglesa” humilhada por patrões

“americanos”.

Possuidores tão somente de capital econômico, conhecimentos industriais e

comerciais, os americanos Sr. e Sra. Kear, o inglês William Falsten e o senhor Ruby

figurariam numa segunda área da pirâmide; veja-se o tom de ironia usado pelo narrador na

construção de seus retratos. Obviamente, ainda que haja uma crítica ou desvalorização do

dinheiro destes personagens, eles são brancos e possuidores do capital necessário que lhes

asseguram a posição alta na pirâmide em relação aos personagens que ocuparão as camadas

inferiores, porém essa posição é diferenciada em razão da sua nacionalidade, no caso dos

americanos, e do valor excessivo que dão à indústria ou ao lucro, caso de Falsten e Ruby.

Devemos ressaltar ainda que o personagem ligado ao comércio é ainda mais desvalorizado

pelo narrador do que o industrial, “une sorte de savant qui ne pense qu’aux machines”.

A distinção fundada na nacionalidade poderia ser interpretada como uma adesão do

narrador à tentativa de exaltação do imperialismo do eixo Inglaterra-França - o que fica

subentendido no caso da criada inglesa dos americanos, que tem sua simpatia. Num patamar

168

intermediário estariam os marinheiros e os subalternos do capitão Huntly e, na base da

pirâmide do Chancellor figuraria Jynxtrop, o cozinheiro negro, reduzido a animal,

protagonizando a cena de canibalismo na embarcação e sendo devorado por tubarões, ao final.

Esses estereótipos sociais ainda são repetidos em outros romances de Jules Verne, mas

devemos nos ater ao fato de que, dentro dessas sociedades estratificadas, dois lugares são bem

definidos e imutáveis: o cume da pirâmide social é ocupado pelos personagens brancos e

cientistas e a base pelos negros e selvagens.

Não nos seria possível encerrar a análise dos retratos literários destes romances sem

abordar a questão ideológica. Escapar de tal abordagem seria, a nosso entender, deixar de

interrogar alguns aspectos do sentido pleno que é, nesses romances de Verne, a relação do nós

com os outros, do eu com o mundo.

O mundo revelado pelas descrições vernianas é essencialmente da alteridade, o da

relação de um sujeito nós, totalmente caucionado pelos valores da comunidade (a ética, a

ciência), com objetos do conhecimento – não só lugares, faunas e floras exóticas, como outros

homens sob cuja aparência humana se escondem, em princípio, a desumanidade, a selvageria,

a anarquia adversa aos valores indiscutíveis do nós.

Todas as vezes que o personagem-viajante é confrontado pelos seus sentidos com

novos espaços, culturas, novos objetos ou novos personagens, a sua percepção do mundo

passa a funcionar nas grades estéticas de apreciação (certo animal é repugnante, tal indígena é

feio e ignorante, a carne de uma ave é agradável) ou, muito especialmente, no nível ético em

que o Outro também surge para ser avaliado – por norma negativamente. No que diz respeito

a obras que não fazem parte do corpus, embora pudéssemos considerar algumas exceções,

como o capitão Nemo, personagem central da obra de Jules Verne sempre visto positivamente

nos romances em que aparece, julgamos não nos enganar dizendo que o que observamos no

nosso corpus pode ser estendido a toda a ficção do autor – a avaliação positiva, relativa a um

saber-fazer e a um saber-dizer, além da apresentação dos heróis como modelos de virtudes e

169

de agradável semblante, é colocada logo no início dos romances sendo todos os outros fazeres

e dizeres bárbaros ou feios, acompanhando, quase sempre, um juízo ético-estético de

desqualificação do Outro.

Na sua tipologia das relações com o Outro, Todorov considera que existem pelo

menos três eixos sobre os quais se podem colocar os problemas da alteridade: o do juízo de

valor no qual funcionam os pontos modalizantes a que nos referimos, relativos ao dizer, ao

fazer, à ética e à estética – é, enfim, o eixo da axiologa; o eixo praxiológico, segundo o qual o

sujeito se aproxima ou se afasta do Outro, se identifica ou não com ele, ou submete-se ou é

submetido; e um terceiro eixo que se pode designar por epistêmico, segundo o qual se

conhece ou se ignora a identidade do Outro.288

Em nosso entender, a primeira grande configuração ideológica presente em Verne, na

imagem que nele surge do Outro, assenta-se no eixo da práxis. Para o herói verniano, o Outro

é sempre aquele em relação ao qual ele tem que demarcar, que é preciso manter sob o olhar,

sejam os “selvagens” do romance do balão e da trama dos filhos do capitão Grant ou o negro

do Chancellor. Mantendo-o à distância, defrontando-o, dá-se-lhe apenas a alternativa de se

submeter ou de servir aos brancos. É a partir da práxis elementar da distância que os outros

eixos funcionam: o do discurso, do olhar avaliativo e o da incorporação da alteridade

assimilada como saber (ingerida), na enciclopédia.

Em suma, parece eficaz, na ordenação do saber, que o herói verniano que percorre

terras estranhas não pode ser um ocasional avaliador, não pode introduzir uma avaliação

apenas em certos momentos do seu discurso. Tem que avaliar rapidamente o Outro, conhecer-

lhe o comportamento, as normas que o regem, tem que desqualificá-lo esteticamente enquanto

sujeito. Não é por acaso que os indivíduos “selvagens” notáveis pela figura e pelo porte,

homens ou mulheres, sejam sempre, ou submissos ou neutros – ou ainda, aliados serviçais.

Assim, a ética, a ciência, a razão, valores de que os personagens brancos vernianos são

288 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. Lisboa: Litoral, 1990, p. 227.

170

portadores, são aqui evocados tendo em conta que, para o sistema ideológico em que se

inscrevem, tais valores eram “eternos e imutáveis”; para um observador excluido desse

sistema, tais valores são relativos a uma visão de mundo “ocidental, judaico-cristã,

imperialista, expansionista”, para retomar as palavras de Tzvetan Todorov.289

Sabemos que a discussão sobre alteridade está intimamente ligada à questão da

identidade. A consciência de si mesmo existe na proporção da consciência que se tem da

existência do outro. Parece-nos pertinente evocar aqui um artigo de Patrick Charaudeau que,

numa perspectiva comunicativa da Análise do Discurso, versa sobre a questão da identidade

nos mecanismos linguageiros, distinguindo identidade social de identidade discursiva.290

Neste artigo, Chareaudeau afirma que na situação de comunicação, uma vez que os sujeitos

envolvidos no ato comunicacional291 percebem a diferença existente entre eles, desencadeia-

se um duplo processo de atração e de rejeição em relação ao outro:

Processo de atração, inicialmente, porque há um enigma a resolver, o enigma do Persa a que se referia Montesquieu, que equivale a perguntar-se: “como é possível alguém ser diferente de mim?” Descobrir que existe alguém diferente de si mesmo é descobrir-se incompleto, imperfeito, inacabado. Daí a força subterrânea que os move para a compreensão do outro; não no sentido moral, da aceitação do outro, mas no sentido etimológico de tomada do outro, de domínio do outro, que pode ir até sua absorção, sua “predação” como dizem os etólogos. Paralelamente ao processo de atração, o de rejeição se dá porque a diferença percebida, mesmo sendo necessária, não deixa de ser, para o sujeito, uma ameaça. A diferença que percebo tornaria o outro superior a mim? Seria ele mais perfeito? Teria mais razão do que eu? Eis porque a percepção da diferença vem acompanhada de um julgamento negativo. E implica a própria sobrevivência do sujeito: é como se fosse insuportável aceitar que outros valores, outras normas, outros hábitos diferentes dos meus sejam melhores ou, simplesmente, existam.292

Charaudeau postula que a identidade do sujeito comunicante é compósita, pois inclui

dados biológicos (somos o que nosso corpo é), dados psicossociais atribuídos ao sujeito

289 Essa formulação, que hoje faz parte de evidências esclarecidas tem, evidentemente, sua história no interior da história das mentalidades. Para um panorama esclarecedor desse ponto de vista remetemos a TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres. Paris: Seuil, 1989, p. 41-49. 290 Cf. CHARAUDEAU, Patrick. “Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional.” Trad. Angela Maria da Silva Corrêa. Gragoatá. Niterói: EDUFF, 2ºsem de 2006. 291 Charaudeau propõe um modelo de comunicação com dois espaços e quatro sujeitos no discurso: um espaço externo (nível situacional) onde se encontram os parceiros sujeito comunicante/sujeito interpretante; e o espaço interno (nível discursivo) onde se encontram os protagonistas da cena enunciativa: sujeito enunciante/sujeito destinatário. Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 200. 292 CHARAUDEAU, 2006, p. 339.

171

(somos o que dizem que somos) e dados construídos por nosso próprio comportamento

(somos o que pretendemos ser). O linguista afirma que, entretanto, como, do ponto de vista da

significação, os dados biológicos adquirem as significações que os grupos sociais lhe

atribuem, pode-se reduzir estes componentes a dois, o que ele designa por identidade social e

de identidade discursiva.293

A identidade social tem como particularidade a necessidade de ser reconhecida pelos

outros. Segundo Charaudeau ela é o que confere o “direito à palavra”, em outras palavras, o

que funda a legitimidade. Já a identidade discursiva tem a particularidade de ser construída

pelo sujeito falante para responder à questão: “Estou aqui para falar como?” Assim,

compreendemos que a identidade discursiva se constroi com base nos modos de tomada da

palavra, na organização discursiva do discurso e na manipulação dos imaginários sócio-

discursivos. Ao contrário da identidade social, a identidade discursiva é sempre algo em

construção, no entanto, ambas estão em interação e é nesse jogo de vai-e-vem que, segundo as

intenções do sujeito enunciante e do sujeito destinatário, se realiza a influência discursiva.

Ora, para a produtividade da pesquisa, cabe-nos reinterpretar essas noções e

indagar como o sujeito enunciante, aquele que se encontra no espaço interno inscrito na

encenação do dizer294, no caso o narrador, constroi sua identidade discursiva, sua imagem no

discurso, na tentativa de manipular, persuadir, influenciar ou convencer o sujeito destinatário,

o leitor. Encarando a produção literária como uma produção social, procuraremos, no último

capítulo dessa dissertação, estabelecer uma linha de coerência com o ethos do enunciador e a

cenografia enunciativa na qual se inscrevem os romances analisados, não perdendo de vista os

dados considerados externos à “situação de comunicação”, como as vias de publicação nas

quais os romances foram primeiramente veiculados. Seguiremos, portanto, a visão de

Maingueneau, que, diferentemente de Charaudeau, considera que o texto e o seu contexto não

são duas distâncias distintas, uma interna e outra externa, pois acredita que o texto é na

293 Cf. CHARAUDEAU, 2006, p. 340-341. 294 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 200.

172

verdade a própria gestão de seu contexto.295 Numa perspectiva sociológica, buscaremos

entender como o autor se vale dos discursos científicos presentes nos retratos analisados para

corroborar o fortalecimento de um habitus dominante e, por conseguinte, legitimar sua

cenografia enunciativa.

295 Maingueneau afirma que, “naturalmente, a pretensão constitutiva da literatura consiste em propor obras capazes de transcender o contexto no qual foram produzidas; mas quando se estuda a obra remetendo-a a seu dispositivo enunciativo, em vez de entendê-la como um monumento transmitido pela tradição, a exterioridade do contexto mostra ser uma prova enganosa. Não se pode conceber a obra como uma organização de “conteúdos” que permitiria “exprimir” de maneira mais ou menos enviesada ideologias ou mentalidades. O conteúdo da obra é na verdade atravessado pela remissão a suas condições de enunciação.” MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. (Trad. Adail Sobral) São Paulo: Contexto, 2006, p. 44.

173

5- A CENOGRAFIA ENUNCIATIVA DOS ROMANCES

Na introdução do livro Imagens de si no discurso – a construção do ethos, Ruth

Amossy afirma que “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si,

não sendo necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas qualidades nem mesmo

fale explicitamente de si”.296 Assim, compreende-se que, deliberadamente ou não, o locutor

efetua sua apresentação no discurso. O termo ethos, introduzido por Oswald Ducrot297,

designa que o próprio enunciado é fornecedor de pistas sobre o responsável pela enunciação.

Na Análise do Discurso, valendo-se da metáfora teatral, Dominique Maingueneau desenvolve

o conceito de ethos de forma articulada ao da “cena de enunciação”. Esta última prevê que, se

cada tipo de discurso comporta uma distribuição preestabelecida de papeis, o escritor pode

escolher sua cenografia. Entendemos, portanto, que, no leque de opções que o enunciador

tem, as escolhas feitas dos elementos de que se quer formar o discurso, a maneira de realizar

esse dizer e o tom usado, nos autorizam a delinear o perfil discursivo do enunciador, seu

ethos. Compreendendo o caráter moral, o poder de persuasão e o desejo de adesão que se

pretende em todo discurso, procuraremos neste capítulo esboçar o perfil dos enunciadores dos

romances do corpus, visando investigar sua posição institucional, relacionando-a com a

cenografia em que se inscreve. Sabendo que a noção de ethos estabelecida pela análise do

discurso possui um ponto de interseção com a sociologia dos campos de Pierre Bourdieu,

estabeleceremos relações com os conceitos de campo e habitus, propostos pelo sociólogo,

inferindo que os ethe dos enunciadors dos romances constituem uma maneira de perceber,

julgar e valorizar o mundo que conforma uma forma de agir, corporal e materialmente ligada

a visões de mundo bem definidas que se desejam perpetuar ou modificar.

296 AMOSSY, Ruth. “Da noção retórica de ethos à análise do discurso”. In:___(org.) Imagens de si no discurso; a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 9. 297 Cf. AMOSSY, 2008, p. 14.

174

5.1- O ethos do enunciador: a legitimação da cenografia enunciativa em Verne

Maingueneau dá uma nova roupagem à noção de ethos, proveniente da tradição

retórica, abordando-o do ponto de vista discursivo. Trata-se para ele de mostrar a interação

entre a cenografia enunciativa e a relação entre corpo e discurso que ela implica. Para

Maingueneau “a instância subjetiva se manifesta também como ‘voz’ e, além disso, como

corpo enunciante historicamente especificado e inscrito em uma situação que sua enunciação

ao mesmo tempo pressupõe e valida progressivamente.”298

Lembrando que a noção de ethos está ligada à enunciação e não a um saber

extradiscursivo sobre o enunciador, Maingueneau afirma, em termos pragmáticos, que a

noção de ethos pode não estar explicitada no enunciado, que “o ethos se mostra, não é

dito.”299 Na perspectiva do linguista, deve-se distinguir o ethos discursivo, a representação

que se constroi no ato da enunciação, do ethos pré-discursivo, representações que se fazem do

enunciador antes mesmo que ele enuncie/fale. Maingueneau deixa claro que há tipos de

discursos para os quais não se presume que o leitor disponha de representações prévias do

ethos do enunciador, no entanto, ressalta que mesmo que não se saiba nada previamente sobre

o caráter do enunciador, o simples fato de que um texto pertença a um gênero de discurso ou a

um certo posicionamento ideológico induz expectativas no que diz respeito ao ethos. Notamos

isso claramente em Jules Verne.

O ethos discursivo dos romances de Verne pode ser pré-construído com base nas

informações paratextuais da capa original dos romances, por exemplo. Notadamente, essas

informações dão muito a entender sobre o gênero literário para o qual Verne escreve. Porém,

tais imagens – objetos náuticos, animais exóticos, mapas, recentes invenções científicas ou da

tecnologia –, poderiam ser tomadas como informações prévias do ethos de um narrador

informado sobre as novas descobertas, a ciência e as novas tecnologias, conhecedor de uma

sociedade em transformação. Devemos lembrar também o caráter pedagógico que pode ser

298 MAINGUENEAU, Dominique. “Ethos, cenografia, incorporação.” In: AMOSSY (org.), 2008, p. 70. 299 MAINGUENEAU in AMOSSY (org.), 2008, p. 71.

175

inferido pelas vinhetas e cartazes de divulgação do Magasin d’éducation et de récréation (de

que falaremos a seguir), aos quais alguns romances vernianos são associados. Para nós, esses

dados auxiliam a compor pré-discursivamente o ethos do enunciador verniano, que se mostra

como detentor de ideias e conhecimentos a serem transmitidos.

Relacionando a noção de ethos ao discurso escrito propriamente dito, Maingueneau

afirma que este tem uma fonte enunciativa de vocalidade específica e, quando lido, faz

emergir o que ele nomeia de “fiador”, cujo corpo deve ser construído pelo leitor com base em

indícios textuais.300 É o poder garantido ao fiador que nos interessa mais particularmente

nesta pesquisa. O caráter e a corporalidade do fiador apóiam-se num conjunto de

representações sociais de estereótipos sobre os quais a enunciação se baseia e, por sua vez,

contribui para reforçar ou transformar. Nessa perspectiva corpórea que é conferida ao ethos,

podemos falar em incorporação e/ou apropriação do mesmo por parte do leitor em posição de

intérprete. Assim, as escolhas feitas pelo fiador, esse corpo investido de valores

historicamente especificados, trazidas para o discurso, representando posições objetivas e

subjetivas daquele que enuncia, podem ser aceitas por um leitor que a elas aderirá. O tom que

caracteriza a vocalidade do fiador no interior de um texto escrito faz parte não só da

construção da sua identidade que é compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir

em seu enunciado, mas também de um posicionamento discursivo.301 Num campo discursivo,

a noção de posicionamento define uma identidade enunciativa e um lugar de produção

discursiva específico. Segundo Maingueneau,

o posicionamento designa ao mesmo tempo as operações pelas quais essa identidade enunciativa se instaura e se conserva num campo discursivo, e essa própria identidade. Ele não diz respeito apenas aos conteúdos, mas às diversas dimensões do discurso, manifestando-se na escolha destes ou daqueles gêneros de discurso, no modo de citar etc.302

Em suma, para além da dimensão retórica, que vincula o ethos essencialmente à

oralidade, Maingueneau relê o ethos como uma noção híbrida (sócio-discursiva) que não pode

300 Cf. MAINGUENEAU in AMOSSY (org.), 2008, p. 72. 301 Cf. MAINGUENEAU in AMOSSY (org.), 2008, p. 73. 302 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 392-393.

176

ser apreendida fora de uma situação de comunicação precisa, integrada a uma dada conjuntura

sócio-histórica. Assim, a instância subjetiva que se mostra no ato da enunciação ligada à

representação de “um corpo enunciador” é inscrita num contexto histórico, o que implica

papeis, lugares, momentos de enunciação legítimos e um modo de circulação para o

enunciado. Essa interatividade com a configuração cultural deve ser compreendida, na

perspectiva da Análise do Discurso, como parte constitutiva da cena de enunciação: “o

discurso pressupõe essa cena de enunciação para poder ser enunciado, e por seu turno, ele

deve validá-la por sua própria enunciação; qualquer discurso por seu próprio desdobramento

pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente.”303

Para a Análise do Discurso, a noção de cena de enunciação é comumente associada à

noção de situação de comunicação. Contudo, ao se falar de cena de enunciação, parece ser

inevitável que se toque na questão dos gêneros do discurso, uma vez que cada gênero do

discurso determina um espaço socialmente instituído e, em sua dimensão constitutiva,

instaura seu espaço de enunciação de acordo com o discurso que será colocado em cena.304

Valendo-se da metáfora teatral, Maingueneau diz que o gênero discursivo caracteriza-

se por uma cena, e cada cena requer uma dramaturgia específica. Assim, a cena não pode ser

concebida como um quadro simples previamente construído do qual emerge o discurso. Deve

ser entendida como constitutiva do discurso.305

Em sua obra Discurso Literário, Dominique Maingueneau propõe uma análise da cena

de enunciação em três cenas distintas: cena englobante, cena genérica e cenografia.306

A cena englobante, comumente entendida como um tipo de discurso (político,

científico, religioso etc.), é a cena que sinaliza um estatuto pragmático ao gênero de discurso

de onde provém o texto, para nós, o texto literário; a cena genérica define-se pelos gêneros do

discurso, é a instituição discursiva; a cenografia, implicando a figura de um enunciador e uma 303 Cf. MAINGUENEAU in AMOSSY (org.), 2008, p. 75. 304 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 95. 305 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 95-96. 306 Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 251-253.

177

correlativa de co-enunciador, é a cena com que o co-enunciador se depara em primeiro plano,

já que as cenas englobante e genérica são deslocadas para o segundo plano.

Ainda no que diz respeito à cenografia, esta não é imposta pelo gênero do discurso,

mas instituída pelo discurso. O discurso determina sua cenografia logo no início e, no seu

desenrolar, busca justificar-se enquanto a constitui, como num processo em espiral. Assim, a

cenografia é considerada a gênese e a finalidade do discurso; legitima e é legitimada no e pelo

discurso que, por sua vez, estabelece sua cenografia específica. Como evidencia

Maingueneau, a cenografia não é tão somente um cenário onde o discurso aparece no interior

de um espaço já construído e independente dele; ela é a enunciação que, ao se desenvolver,

constitui progressivamente, e paradoxalmente, o seu próprio dispositivo de fala; a cenografia

é “[...] ao mesmo tempo fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um

enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la estabelecendo que essa cenografia onde nasce a

fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém.”307

Maingueneau explicita ainda que a cenografia implica um momento específico

(cronografia) e em um lugar específico (topografia) de onde o discurso emerge. A

determinação da identidade dos parceiros da enunciação está em estreita relação com a

definição de um conjunto de lugares (saberes partilhados e mundos possíveis) e de momentos

de enunciação (instante da interação). Esses dados, se somados aos conteúdos, aos níveis de

língua, ao ritmo, ao gênero e ao ethos do enunciador, auxiliam na (re)construção da

cenografia em que se inscreve uma obra literária.

Dentre as três cenas, a cenografia aparece como a cena de enunciação mais propícia

aos investimentos de criação do discurso. Nela se formam o simulacro de um momento, de

um espaço e dos papeis sociais conhecidos e compartilhados culturalmente.

Rastreando os implícitos e observando a subjetividade da linguagem nos retratos dos

romances de Verne analisados, visamos compreender a cenografia na qual os romances do

307 MAINGUENEAU, 2006, p. 253.

178

corpus se inserem/criam. Com base nos aspectos enunciativos, nas marcas da materialidade

discursiva presentes nas descrições destacadas e analisadas no capítulo anterior e na

interatividade dessas duas noções, podemos reconstruir uniformemente a imagem do corpo

que enuncia nas tramas.

Desde o incipit dos romances, a imagem do enunciador está atrelada à cenografia do

relato de viagem, na qual a topografia é elemento essencial. Seja em Cinq semaines en ballon,

em Les enfants du capitaine Grant ou em Le Chancellor, o tema da viagem é dado como

central e engendra, inclusive, a idéia de estocagem de informações na medida em que a

viagem se desenrola. Sejam narradores oniscientes, como nos dois primeiros romances

citados, ou narrador-personagem como no último, as cenografias desses romances conservam

numerosos traços que dão a dizer do caráter professoral, lúdico-instrutivo (em menor escala

para Le Chancellor), do enunciador que se exprime em tom de “alguém” superior em

conhecimentos, ou seja, dotado de informações sobre as descobertas históricas, tecnológicas e

científicas de seu tempo que estão, como mostramos, ancoradas numa visão de mundo

ocidental, judaico-cristã, imperialista e expansionista. Inferimos, portanto, que o ethos do

enunciador dos romances está em sintonia com seu tempo. De acordo com o “processo em

espiral” já evocado, o ethos que o leitor incorpora de imediato à cenografia adere

progressivamente ao mundo que exige essa cenografia e não outra. Para legitimar-se, o

discurso desenvolve esse universo de sentido que, precisamente, torna necessário que se

ensine “isso” e “dessa forma.” O discurso em Jules Verne mostra sua cenografia e seu ethos,

mas diz ao mesmo tempo que tal cenografia e o ethos que ela supõe são legítimos.

Para cada um dos romances que abordamos no escopo dessa dissertação existem

particularidades que perfazem o perfil dos enunciadores e não podemos deixar de explicitar.

Em especial, no romance Cinq semaines en ballon, além da onisciência e do caráter

professoral ditos acima, o vínculo da imagem do enunciador com os reais relatos de viagens

mostrados através dos diversos tipos de intertextualidade e do “resumo” de seus feitos, que

179

surgem aqui e ali no texto em forma de exaltação do que realizaram para a história da

expansão colonialista, é mais forte neste romance do que nos outros que abordamos. Para este

romance, o enunciador não delega a palavra a nenhum dos personagens em especial nas

passagens descritivas do texto. Assim, acreditamos que essa ligação com os relatos de viagens

marcaria a tentativa de inscrever a imagem do enunciador do romance numa linha de

naturalização do discurso colonialista. A imagem que construímos do enunciador desse

romance estaria compromissada em dar uma roupagem literária ao discurso colonialista, em

voga à época, dado que, portanto, auxiliaria na legitimação e no reconhecimento de sua

“palavra”.

Em Les enfants du capitaine Grant, o enunciador é “predominantemente” onisciente.

Dizemos predominantemente, pois, para o caso dos retratos, que nos interessa em particular,

temos duas ocasiões em que ele delega a palavra e o poder de descrever a um de seus

personagens. Cabe a Mac-Nabs, personagem “escocês da cabeça aos pés”, o sábio, calmo e

doce gentleman major do Duncan, descrever o geógrafo Paganel, responsável pelas leituras

equivocadas do criptograma que leva ao capitão Grant e, ainda, descrever o patagão Thalcave,

tratado nessa dissertação como protótipo do bom selvagem em relação aos outros “selvagens”

que aparecem no romance. Para a trama dos filhos de Grant, o enunciador estaria ligado à

imagem de um corpo fiador superior em conhecimento, associado às ideias imperialistas.

O romance Le Chancellor, em forma de diário de bordo, tem, portanto, uma diferença

em relação aos outros dois romances: o narrador também participa da trama. Trata-se do

passageiro J.-R. Kazallon que conta toda a história do naufrágio da embarcação. Desse

personagem só é transmitida aos leitores uma única informação: sua nacionalidade. O inglês

Kazallon será responsável pelas descrições de todos os retratos que aparecem no romance.

Não nos surpreende, portanto, que a visão imperialista localizada no eixo Inglaterra-França

prepondere nestas passagens. Assim, compreendemos a exaltação dos tripulantes ingleses e

franceses e a desmoralização dos personagens americanos e do negro Jynxtrop.

180

Ligado à questão da legitimidade do discurso, Maingueneau explicita que o ethos,

além da figura do fiador, pode também “incidir sobre o conjunto de uma cena de fala,

apresentada como modelo ou um antimodelo da cena de discurso.”308 Tal cena é nomeada por

ele como cena validada, em que o adjetivo quer dizer “instalada na memória coletiva” como

antimodelo ou modelo valorizado. Como o linguista observa, a cena validada é facilmente

fixada em representações estereotipadas, popularizadas pela iconografia, como por exemplo, a

Bíblia, de onde Verne extrai cenas validadas, como veremos adiante.309

Numa visão do todo do corpus proposto, notamos que os relatos de viagens citados ou

aludidos intertextualmente nas “Viagens extraordinárias” de Verne, constituem uma

apropriação de cenas validadas. Ora, a viagem é tema reconhecido e popularizado não só pela

iconografia, mas também pela literatura -, literatura de viagem em voga à época, pelos relatos

escritos desde a época das Grandes Descobertas e, ainda, pela literatura clássica. O relato de

viagem pode ser mais antigo do que o próprio ato de viajar. Aqui, as viagens reais seriam

cenas validadas que colaborariam para a originalidade e, portanto, para a legitimação do

discurso verniano. Em Jules Verne, a cenografia da viagem e descobertas transmutada em

romance de aventuras filtra ou naturaliza o dado histórico, científico e etnográfico.

5.2 Magasin d’éducation et de récréation: a vitrine da editora Hetzel

No trabalho arqueológico de reconstrução da cenografia em que se inscrevem as

tramas do corpus, devemos levar em conta as vias pelas quais os romances foram

primeiramente veiculados. Assim, a formulação do ethos do enunciador pode ser construída

com base nas informações paratextuais editoriais do Magasin d’éducation et de récréation e

de informações sobre o jornal Le Temps.

À exceção do romance Cinq semaines en ballon, que não conheceu o formato

folhetim, tendo sido publicado diretamente em volume pela editora de Hetzel, os romances de

308 MAINGUENEAU in AMOSSY (org.), 2008 p. 80. 309 Cf. MAINGUENEAU, in AMOSSY (org.), 2008, p. 80.

181

Verne apareceram previamente em folhetim em diversos periódicos, notadamente no Magasin

d’éducation et de récréation e no diário Le Temps.310

Para esta pesquisa, visando uma análise contrastiva dos retratos e comparativa em

relação às vias de publicação, revelou-se necessário abordar informações sobre o Magasin

onde foi publicado Les enfants du capitaine Grant, primeira viagem a um “mundo primitivo”

em que se encontram personagens “selvagens”, e sobre o jornal Le Temps, no qual foi

lançado Le Chancellor, primeiro romance verniano a ser publicado nesse diário, e no qual

também aparece um personagem “primitivo”.311

Frontispício do Magasin d’éducation et de récréation. Prospectus In : Magasin d’éducation et de

Paris: Hetzel, Mar/1864. récréation. Paris: Hetzel, Mar/1864, p. 1.

310 Somam-se sessenta e três romances vernianos se contados os nove póstumos. Antes de aparecerem em volume, nas famosas edições de luxo, ricamente ilustradas, desse total, quarenta e quatro foram publicados no Magasin d’éducation et de récréation, oito no jornal Le Temps, cinco no Le Journal, quatro no Journal des débats, um no Le Soleil e outro no Le Matin. 311 O romance Les enfants du capitaine Grant foi publicado em folhetim no Magasin entre o período de 06 de maio e 15 de julho de 1867. Depois, separadamente em número de três volumes, foi publicado em maio de 1867, julho de 1867 e janeiro de 1868. O romance Le Chancellor foi inicialmente publicado no Le Temps na área do jornal comumente destinada a folhetins, no período que compreende as datas de 17 de dezembro de 1874 e 24 de janeiro de 1875. Seu respectivo volume apareceu em 29 de janeiro de 1875. Todos os volumes mencionados foram publicados pela editora Hetzel.

182

Início da publicação de Les enfants du capitaine Grant Início da publicação de Le Chancellor In: Magasin d’éducation et de récréation. In: Le Temps, 17 Dez/1874.

Paris: Hetzel, Maio/1867, p. 23.

Para ambos os periódicos, como mostraremos, as intenções do enunciador em sintonia

com a dos editores são determinadas pela ideia de educação ligada à distração e pela

utilização e transmissão de saberes sob a forma literária. Os paratextos que abordaremos nos

mostram que podemos recuperar traços do contrato que Jules Verne faz com seu editor e com

seus leitores auxiliando, assim, a reconstrução da cenografia enunciativa de Les enfants du

capitaine Grant e Le Chancellor.

Existiu para Jules Verne um contrato no sentido jurídico do termo: aquele que ele

assina com o seu editor em 1863, cuja renovação em 1865 o obriga “a fornecer três volumes a

cada ano compostos no gênero daqueles primitivamente editados.”312 Esse contrato é

fundamental para a compreensão da cenografia porque ele delimita o quadro da obra verniana,

impondo não somente um ritmo de escrita, mas também um gênero a ser respeitado.

312 “Monsieur Jules Verne est engagé à fournir chaque année trois volumes composés dans le genre de ceux primitivement édités”. COMPÈRE, Daniel. Jules Verne écrivain. Paris: Droz, 1991, p. 17. O contrato é conservado na Biblioteca Nacional da França - Fundos Hetzel sob a cota 76. Cabe-nos ressaltar que, a partir de 1871, um novo contrato diminui a quantidade de três volumes por ano para dois.

183

Desde de 1860, Hetzel, com intuitos políticos republicanos313, considerava a ideia de

criar uma biblioteca para a juventude de seu tempo, mais precisamente uma “enciclopédia da

infância e da juventude”, sub-título do Magasin d’éducation et de récréation que ele cria em

1864:

Nossos leitores sentem desde já que se trata de uma verdadeira biblioteca da infância e da juventude que responde a esse duplo objetivo: Educação e Recreação que nós acumulamos para as novas gerações. Não há dúvida que, com a ajuda do tempo, nós conseguiremos fundar enfim essa enciclopédia da família, que nos faltou na nossa infância e na nossa juventude. 314

Daniel Compère, professor de literatura francesa na universidade de Paris IV e

especialista na obra de Jules Verne, explica que, seguindo esses objetivos, o editor reata com

a tradição didática do século XVIII à qual se refere explicitamente pelo uso da palavra

magasin, obra periódica composta por partes literárias ou científicas.315 Compère exemplifica

que, em 1757, Madame de Beaumont publica o Magasin des enfants, obra cujo sub-título era

“um resumo da história sagrada, da fábula e da geografia. O todo cheio de reflexões úteis com

contos morais para diverti-los agradavelmente.”316 O sub-título indica que encontraremos um

conjunto de assuntos literários, morais e científicos. Compère destaca que, no início do século

XIX, outras revistas de caráter enciclopédico retomam essa palavra, caso do Magasin

pittoresque ou do Magasin universel.317

Hetzel desejava educar, usando o sentido amplo da palavra e, sobretudo, transmitir

ensinamentos morais. Seu Magasin é repleto de pequenos textos, contos, relatos, lições,

sermões etc. “La maisonnette et l’escalier”, conto assinado por Stahl, é exemplar a esse 313 Cf. DUSSEAU, Joëlle. “Les idées politiques de Hetzel et leur influence sur Jules Verne.” In: ROBIN, Christian (org.). P.-J. Hetzel; un éditeur et son siècle. Saint-Sébastien: ACL, 1988, p. 33-43. 314 “Nos lecteurs sentent dès à présent que c’est bien une véritable bibliothèque de l’enfance et de la jeunesse répondant à ce double but: Éducation et Récréation que nous amassons pour les générations nouvelles. Il est hors de doute que, le temps aidant, nous parviendrons à fonder enfin cette encyclopédie de la famille, qui nous a manqué à notre enfance et notre jeunesse.” HETZEL, Jules. “Présentation” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome IV, 1865-1866, p. 371. 315 Cf. COMPÈRE, 1991, p. 18. 316“Un abrégé de l’histoire sacrée, de la fable et de la géographie. Le tout rempli de réflexions utiles et de contes moraux pour les amuser agréablement.” COMPÈRE, 1991, p. 18. 317 Philippe Hamon usa esses mesmos exemplos para explicar o uso da palavra magasin. Em Du descriptif, o autor explica que a palavra (e sua correlativa inglesa magazine) serve para designar o lugar onde se reúnem e se vendem produtos naturais ou manufaturados e é igualmente um tipo de publicação descritiva e enciclopédica com intenções claramente pedagógicas. Cf. HAMON, 1993, p. 207.

184

respeito:

Menininhos construíram uma casinha, nem de papel nem de papelão, mas de verdade; queriam trabalhar para a posteridade, e empregaram pedra e madeira. As paredes eram sólidas; havia portas e janelas, enfim a casinha era muito graciosa e não faltava nada nela, aparentemente. Os pequenos arquitetos, que não quiseram pedir conselhos a ninguém, acreditavam ter feito eles mesmos um monumento digno dos Romanos. Quando se tratou de arrumar a casinha das bonecas de sua irmã, eles foram em grande pompa procurar as hóspedes dessa bela residência. As recém-chegadas vieram pimponas, elegantes, enfeitadas e prontas para se mudar. O primeiro e o segundo andar foram distribuídos, e quiseram apressar-se para se apoderar deles. -Onde está a escada? disse a irmãzinha que quis levar em cerimônia sua ninhada de bonecas. A escada! Retomou enrubescendo e desapontado um dos pequenos pedreiros, a escada! ah meu Deus! nós a esquecemos! Não façam nada, meus caros pequeninos, sem os conselhos dos mais sábios que vocês, senão, no que vocês empreenderem vai faltar sempre a escada para chegar onde vocês querem subir.318

A rubrica “Petites soeurs et petites mamans”, que entremeia as páginas do Magasin,

também comporia a ideia de “revista feita para instruir.” Nesta rubrica, Marie é apresentada

aos leitores como uma irmãzinha capaz de aprender a cozinhar, costurar, cuidar de seu irmão,

enfim, ajudar sua mãe e, ao final, tornar-se uma “petite maman” exemplar. As ilustrações

convidativas, são seguidas de pequenos textos, como vemos:

318 “Des petits garçons avaient construit une maisonnette, non en papier ni en carton, vraiment; ils voulaient travailler pour la postérité, et ils avaient employé la pierre et le bois. Les murs étaient solides; il y avait des portes et des fenêtres, enfin la maisonnette était très-gentille, et il n’y manquait rien – en apparence. Aussi les petits architectes, qui n’avaient voulu prendre conseil de personne, croyaient-ils avoir fait à eux seuls un monument digne des Romains. Lorsqu’il s’agit d’y loger le ménage des poupées de leur soeur, ils allèrent en grande pompe chercher les hôtes de cette jolie demeure. Les nouvelles venues arrivèrent pompantes, coquettes, parées et toutes prêtes à s’emménager. Le premier et le second étage furent distribués, et on voulut se hâter d’en prendre possession. - Où donc est l’escalier? dit la petite soeur, qui voulut y faire monter en cérémonie sa nichée de poupées. – L’escalier! reprit en rougissant un des petits ouvriers tout penaud, l’escalier! ah mon Dieu! nous l’avons oublié. Ne faites rien, mes chers petits sans les conseils de plus sages que vous, sinon, dans ce que vous entreprendrez, il manquera toujours l’escalier pour arriver où vous voudrez monter.” HETZEL, Jules. “La maisonnette et l’escalier” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1864, p. 186.

185

“Malheureusement la pauvre maman est tombée malade juste à l’arrivée du petit frère. La petite soeur est chargée de bercer le petit frère; mais elle n’oublie personne, et en même temps elle fait dormir aussi sa poupée.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 181.

“Le temps passe: la maman de Marie se porte bien et le petit frère a de grosses joues; il prend sa soupe au sein de sa mère. La petite Marie est déjà une bonne petite maman.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 265.

A rubrica “Petites tragédies enfantines” assinada pelo sugestivo nome “Un papa”, por

trás do qual se esconde o nome de Jean Macé, co-diretor do Magasin, guarda ensinamentos

que devem formar as jovens cabeças. No exemplo a seguir, a história “Le marteau” desta

rubrica, é transcrita integralmente:

186

I

“Le serrurier est allé déjeuner. Il a laissé là sa trousse à outils. Ça ne doit pas être difficile d’être serrurier et ça doit être bien amusant de faire entrer des clous dans le mur. Voilà justement un grand clou. Vous allez voir comme M. Maurice va très bien l’enfoncer d’un seul coup, dans la boiserie, avec le gros marteau. Ce sera pour accrocher M. Polichinelle, ce clou-là. Il ne s’attend pas à cela, M. Polichinelle; il a voulu rester au jardin; il s’est caché; on le retrouvera.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 340.

II

“Maurice est très fort, mais il ne peut pas, comme le serrurier, lever le marteau d’une seule main. Cela étonne beaucoup Mlle Mimi. Il faut que cela soit très-lourd les marteaux, et que les serruriers soient encore plus forts que Maurice.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 341.

187

III

“Une bonne idée. Mimi va tenir le clou bien droit. Maurice prendra le marteau avec ses deux mains. Il donnera très-adroitement un grand coup sur la tête du clou, cela l’enfoncera solidement. Mais va-t-il être attrapé M. Polichinelle!...” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 342.

IV

“Le clou a tourné, Mlle Mimi a reçu le coup de marteau sur les doigts. Cela ne lui a pas fait de bien du tout. Mimi a bien mal, Maurice a bien peur.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 343.

188

V

“Ce n’est pas tout. Le marteau est tombé sur le pied de Maurice. Mimi crie pour sa main, Maurice crie pour son pied. Ça n’est pas si facile d’être serrurier. Il paraît qu’il faut tout apprendre. – Morale – M. Polichinelle est sauvé; s’il savait ce qui s’est passé, je suis sûr qu’il ne se gênerait pas pour dire à M. Maurice et à Mlle Mimi qu’il ne faut toucher à rien sans permission.” HETZEL, Magasin, Tome II, 1864, p. 344.

Na origem dessa ambição enciclopédica, nota-se que o conhecimento é a fonte para o

leitor progredir moral e socialmente. Não nos surpreende o destaque dado à leitura dos textos

publicados por Hetzel. Com o Magasin, o editor mostra o dever de propor livros, de

aconselhar seus leitores e preveni-los contra uma má leitura. Por exemplo, por terem lido

excessivamente romances de aventura, a senhorita Lili e seu primo Lucien saem para explorar

o jardim, arriscando estragar suas belas roupas e chatear seus pais: “La lecture engendre les

grandes pensées et les grandes actions quand elle est bien comprise.”319

As publicações de Hetzel eram destinadas a um público duplo e tinha objetivos

específicos. No editorial (Prospectus) do primeiro número, lemos outras informações

fundamentais para a construção da imagem do enunciador na trama dos filhos de Grant:

Ao iniciar a publicação desta Revista de Educação e de Recreação, temos a consciência de empreender uma obra difícil, e se não recuamos diante da dificuldade da empresa é porque temos consciência da sua grande utilidade. Trata-se, para nós, de constituir um ensino de família no verdadeiro sentido da palavra, um ensino sério e atraente ao mesmo tempo, que agrade aos pais e seja proveitoso para as crianças. Educação, recreação

319 UN PAPA. “Voyage de découverte de Mlle Lili et de son cousin Lucien”. Magasin d’éducation et de récréation. Tome V, 1866-1867, p. 240.

189

são, em nossa opinião, dois termos convergentes. O instrutivo deve se apresentar de um jeito que provoque o interesse: sem isso ele repele e cansa; a diversão deve conter uma realidade moral, ou seja, útil: sem isso ela se torna fútil e esvazia as cabeças ao invés de enchê-las. Nisso deverá residir a unidade da nossa obra, que poderá, se obtiver sucesso, contribuir para o aumento da massa de conhecimentos e de idéias sadias, de bons sentimentos, de inteligência, de razão e de gosto que forma o que poderíamos chamar de capital moral da juventude intelectual da França. Acrescentar à lição forçosamente um pouco austera do colégio e do pensionato uma lição mais íntima e mais penetrante, completar a educação pública pela leitura no seio familiar, tornar-nos os amigos da casa em todos os lugares que pudermos entrar, agir ao mesmo tempo em todos os elementos de que ela se compõe, responder a todas as necessidades de aprender que se desenvolvem no lar, desde o berço até a maturidade, tal é nossa ambição.320

Para a pesquisa, a intenção “completar a educação pública através da leitura” se

mostra reveladora para a construção do ethos e da cenografia enunciativa dos romances. Aqui,

mais do que evidenciar o caráter didático e pedagógico do romance, a intenção se coaduna

com o discurso escolar republicano da época que se preparava para a laicidade da escola

francesa, só efetivamente concretizada com as leis de Jules Ferry, no final do século XIX.

Cabe dizer que Dominique Maingueneau consagrou um artigo sobre o assunto intitulado “Les

Voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”321. Esse artigo, ainda inédito,

trata, numa abordagem discursiva, das fronteiras entre os discursos dos manuais escolares da

escola laica e das “Viagens extraordinárias”. Maingueneau conclui que os dois discursos, o

escolar e o verniano, embora não possam ser colocados no mesmo plano – já que um constitui

um corpus extenso, uma enorme massa documental desenvolvida por um aparelho do estado

320 “En commençant la publication de ce Magasin d’Éducation et de Récréation, nous avons la conscience d’entreprendre une oeuvre difficile, et si nous ne reculons pas devant la difficulté de l’entreprise, c’est que nous avons en même temps la conscience de son extrême utilité. Il s’agit pour nous de constituer un enseignement de famille dans le vrai sens du mot, un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profite aux enfants. – Éducation, récréation - sont à nos yeux deux termes qui se rejoignent. L’instructif doit se présenter sous une forme qui provoque l’interêt: sans cela il rebute et dégoûte de l’instruction; l’amusant doit cacher une réalité morale, c’est-à-dire utile: sans cela il passe au futile, et vide les têtes au lieu de les remplir. Là devra être l’unité de notre oeuvre, qui pourra, si elle réussit, contribuer à augmenter la masse de connaissances et d’idées saines, la masse de bons sentiments, d’esprit, de raison, et de goût qui forme ce qu’on pourrait appeler le capital moral de la jeunesse intellectuelle de la France. Ajouter à la leçon forcément un peu austère du collège et du pensionnat une leçon plus intime et plus pénétrante, compléter l’éducation publique par la lecture au sein de la famille, devenir les amis de la maison partout où nous pourrons pénétrer, agir à la fois sur tous les éléments dont elle se compose, répondre à tous les besoins d’apprendre qui se développent autour du foyer, depuis le berceau jusqu’à la maturité, telle est notre ambition.” HETZEL, Jules. “A nos lecteurs” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome I, 1864, p. 1. 321 MAINGUENEAU, Dominique. “Les voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”. Artigo gentilmente cedido pelo autor e ainda inédito.

190

que deseja inscrever duravelmente seus princípios na sociedade e o outro um empreendimento

literário singular –, se assemelham em objetivos; e que o discurso escolar contra o qual se

estabelece uma relação é o discurso de um aparelho engajado contra a escola confessional

num combate incessante e multiforme. Ora, embora não pretendamos tratar da questão que,

cremos, merece análises mais profundas, cabe-nos interrogar se o discurso verniano é

realmente laico, posicionando-se contra a escola confessional como pretende Maingueneau

nesse artigo. Certamente, esse era o desejo de Pierre Hetzel e sua editora, mas se tomarmos

como exemplo os romances que analisamos nessa dissertação, certas imagens, alusões,

valores judaico-cristãos que aparecem valorizados pelos narradores ao longo dos romances,

flagrantes, inclusive, nos retratos dos personagens, não iriam contra a hipótese de

Maingueneau? Além disso, com base nos nítidos objetivos acima descritos do Magasin, não

poderíamos tomar a vasta obra de Verne como uma “instituição” igualmente dotada do poder

de incutir noções diversas nos leitores? A imagem de Jules Verne como um “jovem sábio”

escritor que veremos descrita abaixo lhe conferiria esse poder.

Para cumprir com a tarefa descrita no editorial do primeiro número do Magasin, os

colaboradores da revista respondem a certas exigências: não somente eles têm altos

conhecimentos científicos, mas apresentam, sobretudo qualidades literárias:

Nós também não teríamos cumprido essa tarefa verdadeiramente inquietante de publicar uma coletânea para o uso da infância e da juventude, se não tivéssemos tido certeza da cooperação exclusiva e devotada do autor de L’Histoire d’une bouchée de pain, se o jovem e amável sábio que escreveu Cinq semaines en ballon, senhor Jules Verne, não nos tivesse, como o senhor Macé, assegurado a colaboração por longos anos; se o editor, senhor Hetzel, não estivesse sido tão estimulado em fazê-lo, que nos seja permitido dizê-lo, pelo autor, o senhor Stahl.322

Marie-Thérère Latzarus, em seus estudos de referência sobre a literatura infantil

322 “Nous n’aurions pas, non plus, entrepris cette tâche véritablement inquiétante de publier un recueil à l’usage de l’enfance et de la jeunesse, si nous n’avions été assuré du concours exclusif et dévoué de l’auteur de l’Histoire d’une bouchée de pain, si le jeune et aimable savant qui a écrit Cinq semaines en ballon, M. Jules Verne, ne nous avait, comme M. Macé, assuré la collaboration pour de longues années; si l’éditeur, M. Hetzel, n’y était très-vivement poussé, qu’il nous soit permis de le dire, par l’auteur, M. Stahl.” HETZEL, Jules. “Avis de l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome I, 1864, p. 3. Lembramos que Stahl é o pseudônimo de Hetzel.

191

francesa da segunda metade do século XIX, cita alguns dos nomes da plêiade de artistas que

compunha o Magasin e lista suas « funções » no quadro lúdico-instrutivo do periódico:

Jules Verne excitará a curisodade pelas suas narrativas de aventuras, Jean Macé iniciará as crianças nos mistérios da ciência, o próprio Hetzel, com o pseudônimo de Stahl, será ora um romancista, ora moralista. A equipe do jornal vai aumentando a cada dia e são chamados outros colaboladores. A poesia vai entrar no Magasin com Victor de Laprade e Rastibonne, o romance com Jules Sandeau e Hector Malot, a arquitetura com Violet-le-Duc, a leitura em ação com Legouvé, a gramática com Brachet.323

No detalhe abaixo, destacam-se as três grandes divisões do Magasin e o nomes dos

artistas que se ocupariam de cada objetivo: Éducation, na qual figura o nome de Jules Verne,

Récréation e a Illustration324:

HETZEL, Magasin d’éducation et récréation, 1864, Tome II, p. 4.

Em 1862, quando Jules Verne propõe a Hetzel seu primeiro romance, dois projetos se

encontram. Ambos, editor e autor se unem na ambição educativa. A correspondência trocada

entre eles atesta esse objetivo: « J’espère bien peindre tout cela et apprendre au public des

choses qu’il faut savoir »325, escreve Verne a Hetzel em 1867. Nesse mesmo ano, a publicação

em volume de Les aventures du capitaine Hatteras, romance de Verne, na « Bibliothèque

323 “Jules Verne tiendra la curiosité en haleine par ses récits d’aventures, Jean Macé initiera les enfants aux mystères de la science, Hetzel lui-même, sous le nom de Stahl, sera tour à tour, un romancier et un moraliste. Le cadre du journal va, s’agrandissant chaque jour, et l’on appelle d’autres collaborateurs. La poésie va entrer dans le Magasin avec Victor de Laprade et Rastibonne, le roman avec Jules Sandeau et Hector Malot, l’architecture avec Violet-le-Duc, la lecture en action avec Legouvé, la grammaire avec Brachet.” LATZARUS, Marie-Thérèse. La littérature enfantine en France dans la seconde moitié du XIXe siècle. Paris: PUF, 1924, p. 155. 324 O Magasin d’éducation et de récréation era dirigido conjuntamente por Jean Macé para a parte “Éducation”, onde figura Jules Verne, e por Hetzel com o pseudônimo P.-J. Stahl para a parte “Récréation”. A partir de março de 1867, Verne se associou à direção da revista e se uniu como colaborador da parte “Récréation”. Cf. DELLA RIVA ; DEHS & DUMAS, 1999, p. 30. 325 DELLA RIVA; DEHS & DUMAS, 1999, p. 57.

192

d’éducation et de récréation », parte do Magasin destinada aos romances integrais, é

precedida de um « Avertissement de l’éditeur », uma apresentação-programa que define o que

deve ser a obra verniana editada numa coleção intitulada « Voyages extraordinaires. Les

mondes connus et inconnus ». Na ausência de informações que prefaciem a obra de Verne,

podemos tomar como legítimo prefácio o paratexto abaixo. Ele guiará todos os romances de

Verne publicados no Magasin e, mesmo aqueles que foram publicados em outras vias,

seguirão, de alguma forma, os mesmos objetivos instrutivos:

Os críticos mais autorizados saudaram no senhor Jules Verne um escritor de um temperamento excepcional, ao qual, desde seu início, era justo designar um lugar de destaque nas letras francesas. Ele criou um novo gênero. O que se promete com frequência, o que se dá raramente, a instrução que diverte, o divertimento que instrui, o senhor Jules Verne o prodigaliza sem economizar em cada uma das páginas de suas narrativas emocionantes. Os romances do senhor Jules Verne chegaram, aliás, ao ápice. Quando se vê o público se apressar em correr para as conferências que se abriram em mil pontos da França, quando se vê que ao lado dos críticos de arte e de teatro foi necessário dar lugar nos jornais aos boletins da Academia de Ciências, é necessário dizer que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora chegou em que a ciência tem seu espaço feito na literatura. O mérito do senhor Jules Verne é de ter sido o primeiro a colocar os pés nessa nova terra. As novas obras do senhor Jules Verne virão somar-se sucessivamente a essa edição que nós teremos o cuidado de manter informada. As obras publicadas e aquelas a serem publicadas englobarão assim, no seu conjunto, o plano a que se propôs o autor quando ele deu como sub-título a sua obra aquele de Viagens aos mundos conhecidos e desconhecidos. Seu objetivo é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos, astronômicos reunidos pela ciência moderna e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que a caracteriza, a história do universo.326

326“Les critiques les plus autorisés ont salué dans M. Jules Verne un écrivain d’un tempérament exceptionnel, auquel, dès ses débuts, il n’était que juste d’assigner la place à part dans les lettres françaises. Il a créé un genre nouveau. Ce qu’on promet si souvent, ce qu’on donne si rarement, l’instruction qui amuse, l’amusement qui instruit, M. Verne le prodigue sans compter dans chacune des pages de ses émouvants récits. Les romans de M. Verne sont d’ailleurs arrivés à leur point. Quand on voit le public empressé courir aux conférences qui se sont ouvertes mille points de la France, quand on voit qu’à côté des critiques d’art et de théâtre, il a fallu faire place dans nos journaux aux comptes rendus de l’Académie des Sciences, il faut bien se dire que l’art pour l’art ne suffit plus à notre époque et que l’heure est venue où la science a sa place faite dans la littérature. Le mérite de M. Jules Verne, c’est d’avoir le premier et en maître, mis le pied sur cette terre nouvelle. Les oeuvres nouvelles de M. Verne viendront s’ajouter successivement à cette édition, que nous aurons soin de tenir toujours au courant. Les ouvrages parus et ceux à paraître embrasseront ainsi dans leur ensemble le plan que s’est proposé l’auteur, quand il a donné pour sous-titre à son oeuvre celui de Voyages dans les mondes connus et inconnus. Son but est, en effet, de résumer toutes les connaissances géographiques, géologiques, physiques, astronomiques, amassées par la science moderne, et de refaire, sous la forme attrayante et pittoresque qui lui est propre, l’histoire de l’univers.” HETZEL, Jules. “Avertissement de l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1867, p. 1-2.

193

Citamos longamente esse Aviso por que ele constitui um verdadeiro contrato que o

editor faz com o leitor. A entrada da ciência na literatura engendra « um novo gênero ». A

aliança da instrução e do divertimento está na base desse ambicioso projeto no qual se inseriu

o romance Les enfants du capitaine Grant: reunir os conhecimentos mantendo-se no campo

da literatura, ou seja, associar o imaginário e o real para « refazer a história do universo ».

Cabe ressaltar que, como mencionado na citação acima, há uma exaltação do lugar que

a ciência deve ocupar na literatura, no intuito de torná-la útil. Assim, compreendemos que

nesse “Aviso ao leitor”, o editor se posiciona claramente contra a falta de utilidade de uma

literatura voltada tão somente para os valores artísticos. Queremos dizer que, para Hetzel, a

literatura deveria ter uma função social e política. Esse fato vincula a produção de sua editora

à defesa da “arte social” contra a qual se situa a “arte comercial” e, contra as duas, em dupla

recusa, se define uma terceira posição, aquela da “arte pela arte”, como trata Pierre Bourdieu

em Les règles de l’art.327

Ainda sobre o « Aviso do editor », percebemos que a obra verniana deveria visar um

objetivo didático, o que corrobora a ideia de um ethos enunciativo constante dos romances das

“Voyages extraordinaires”, como afirmamos anteriormente. Generalizamos e dizemos que o

caráter didático serve para todos os romances do corpus, indicado pelo ethos enunciador, pois

o didatismo percorre todos os romances de Jules Verne, não sendo restrito somente àqueles

publicados no Magasin. O rótulo que os agrupa num mesmo conjunto atestaria essa

afirmação. O romance Cinq semaines en ballon, alocado fora do projeto da revista, entrará no

programa quando suas novas edições forem publicadas com o título «Voyages

extraordinaires». O mesmo acontece em se tratando de Le Chancellor. Para o caso deste

último romance, a situação é ainda mais flagrante. Descobrimos, ao longo da pesquisa, que o

Le Temps, cujo subtítulo é «journal politique et littéraire», esteve associado com o Magasin

desde a época de sua fundação, em 1864 :

327 Cf. BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art. Paris: Seuil, 1992, p. 107-109.

194

A direção do jornal Le Temps pode se permitir a justiça de dizer que a preocupação da missão moral da imprensa e do papel que o jornal pode encenar na família sempre estiveram presentes no seu espírito. Mas ela sentia também que havia melhor a fazer do que o que lhe permitiram realizar, até o momento, as condições gerais e os hábitos da imprensa, ao lado de discussões políticas e econômicas, que se endereçam mais particularmente ao cidadão, nós sentíamos que havia outra coisa a oferecer à mãe de família além da distração do romance-folhetim. Pensávamos também nas jovens gerações; pensávamos na infância e na adolescência. Um jornal cumpre ainda mais seu papel e seu dever quando colabora de maneira mais eficaz e mais geral para a educação pública. Nós nos dizíamos que seria bom poder ser o jornal de todo mundo, de poder fazer tudo para todos e de fornecer, a cada idade, a cada situação, a luz e a solicitação que convém. Esses votos, pensados há algum tempo, podem ser realizados por nós graças à associação de uma coleção especialmente consagrada às mães e às crianças, tal como nunca foi publicada na França nem no estrangeiro. Essa coleção é a REVISTA DE EDUCAÇÃO E DE RECREAÇÃO, publicada pelo editor Hetzel cujo primeiro número será entregue em 20 de março. Ela será endereçada, quinzenalmente, a título de anexo gratuito, a todos os assinantes do Temps. [...] É inútil acrescentar que os nomes dos diretores e do editor garantem a moralidade e o espírito que animam a Revista de educação e de recreação. Em acordo conosco há algum tempo, não haverá entre sua obra e a nossa nenhuma dissonância. Nós a associamos ao Temps, como um complemento legítimo há algum tempo desejado.328

328 « La direction du journal Le Temps peut se rendre la justice que la préoccupation de la mission morale de la presse, et du rôle que le journal peut remplir dans la famille, a toujours été présente à son esprit. Mais elle sentait aussi qu’il y avait mieux à faire que ce qu’ont permis de réaliser, jusqu’à présent, les conditions générales et les habitudes de la presse, à côtés de discussions politiques et économiques, qui s’adressent plus particulièrement au citoyen, nous sentions qu’il y avait à offrir à la mère de famille autre chose que la distraction du roman-feuilleton. Nous pensions aussi aux jeunes générations; nous pensions à l’enfance et à l’adolescence. Un journal est d’autant plus dans son rôle et dans son devoir, qu’il concourt d’une manière plus éfficace et plus générale à l’éducation publique. Nous nous disions qu’il serait bon de pouvoir être le journal de tout le monde, de pouvoir se faire tout à tous, et de fournir à chaque âge, à chaque situation, la lumière et la sollicitation qui conviennent. Ces voeux depuis longtemps formés, nous pouvons aujourd’hui les réaliser, grâce à l’adjonction d’un recueil spécialement consacré aux mères et aux enfants, et tel qu’il n’en a jamais eté publié en France ni à l’étranger. Ce recueil est le MAGASIN D’ÉDUCATION ET DE RÉCRÉATION, publié par l’editeur Hetzel et dont la première livraison paraît le 20 mars. Il sera adressé, tous les quinze jours, à titre d’annexe gratuite, à tous les souscripteurs du Temps. [...] Il est inutile d’ajouter que les noms des directeurs et de l’éditeur garantissent la moralité et l’esprit qui animent le Magasin d’éducation et de récréation. En communauté de vues avec nous dès longtemps, il n’y aura entre leur oeuvre et la nôtre aucune dissonance. Nous l’adjoignons au Temps, comme un complément légitime, et depuis longtemps souhaité. » HETZEL, Magasin d’éducation et de récréation. Tome I, 1864, [s.p.].

195

Essa associação, assinada por A. Nefftzer, diretor do Temps, mostra claramente a

adesão às ideias lúdico-pedagógicas da revista, proclamando-se como uma «legítima

complementação do jornal.» Por um lado, essa associação visava, « politicamente », a

complementação dos ensinamentos da escola pública de que falamos anteriormente e, por

outro lado, «economicamente», a expansão do seu público leitor. O texto citado acima era

seguido de um formulário para a assinatura dos dois periódicos.

196

Portanto a associação do Magasin ao Le Temps, onde foi publicado o folhetim Le

Chancellor, integraria, mutuamente, dois interesses: um projeto de mais ampla difusão da

obra de Jules Verne a uma possível expansão do público leitor do diário.

Havíamos previsto como hipótese para a pesquisa que o ethos enunciativo dos

romances se modificaria a depender do projeto editorial do qual fizesse parte: Cinq semaines

en ballon, primeiro romance de Jules Verne, mostraria um enunciador « puro », « primário »,

livre de coerções editoriais; Les enfants du capitaine Grant, seguiria os claros objetivos

«didático-pedagógicos» do Magasin; enquanto que o ethos enunciativo do romance Le

Chancellor estaria vinculado às ideias «político-literárias» do jornal Le Temps. No entanto,

com base na análise contrastiva dos retratos de brancos e «selvagens» e na documentação

pesquisada sobre os periódicos, percebemos que a imagem do enunciador dos romances que

analisamos não muda face aos diferentes projetos editoriais. Inferimos que o ethos de um

enunciador superior em conhecimento, informado sobre a história e a ciência já pré-existia em

Jules Verne e está, de alguma maneira, ligado ao nítido objetivo lúdico-instrutivo imposto

pelo seu editor: a ideia de uma literatura útil perpassa todas as obras do corpus, compõe e os

une ao mesmo tempo à sua cenografia enunciativa que a legitima por sua vez.

Situada numa perspectiva enciclopédica oriunda do século XVIII, a obra de Verne

participa de um projeto mais amplo, de correntes de vulgarização de conhecimento que se

deseja não somente transmitir, mas perpetuar. O texto de Verne se diferenciaria de outros

trabalhos essencialmente didáticos por ser, respeitando objetivos educativos, uma obra

literária como podemos notar em carta que troca com seu editor:

Ce que je voudrais devenir avant tout c’est un écrivain, louable ambition que vous approuverez pleinement. [...] Tout ceci, c’est pour vous dire combien je cherche à devenir un styliste sérieux; c’est l’idée de toute ma vie; et vous qui vous y connaissez très bien, quand vous me parlez comme vous l’avez fait au commencement de votre lettre, je me sens bondir le coeur.329

Cabe-nos interrogar como alguns aspectos enunciativos e marcas da materialidade

329 DELLA RIVA; DEHS & DUMAS, 1999, p. 28.

197

discursiva presentes nas descrições destacadas se tornam sutis instrumentos de reiteração de

pressupostos e crenças coletivas. Para tanto, pretendemos uma análise desses aspectos sob a

luz dos conceitos de habitus e campo do sociólogo Pierre Bourdieu.

Cartaz que anunciava os lançamentos da Revista de educação e de recreação, de Hetzel.

198

5.3- Do habitus e da perpetuação de ideias

A teoria sociológica de Pierre Bourdieu centralizou-se, ao longo de sua obra, na tarefa

de desvendar os mecanismos da reprodução social que legitimam as diversas formas de

dominação. Para empreender esta tarefa, Bourdieu desenvolve conceitos específicos,

deslocando os fatores econômicos do centro das análises da sociedade.

O espaço social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de dois conceitos

fundamentais: campo e habitus. A estes conceitos se agregam outros, o de capital e violência

simbólica, secundários, mas nem por isso menos importantes, e que formam a explicação, a

partir de uma análise, em geral fundada em estatísticas, das relações internas do objeto social.

A teoria do campo e o conceito de habitus são entrelaçados. Para seguir os passos do processo

investigatório de Bourdieu é essencial compreender estes conceitos tanto separadamente

quanto na forma como se articulam.

Campo, na teoria proposta pelo sociólogo, representa um espaço simbólico, no qual as

lutas dos agentes determinam, validam e legitimam representações. Nele se estabelece uma

classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de

valores.330 No campo da arte, por exemplo, as lutas simbólicas determinam o que é erudito ou

o que pertence à indústria cultural. Determinam também quais valores e quais rituais de

consagração serão legítimos dentro do campo, e como elas são delineadas dentro de cada

estrutura. Todo agente, indivíduo ou grupo, para subsistir socialmente dentro de um campo,

deve participar de um jogo que lhe impõe sacrifícios e escolhas. Neste jogo, alguns dos

jogadores se crêem livres, outros determinados. Para Bourdieu, contrariamente a essa ideia, os

indivíduos são sujeitos a estruturas profundas. Têm, inscritos neles, os princípios geradores e

organizadores das suas práticas e representações, das suas ações e pensamentos. Por este

motivo, Bourdieu não trabalha com o conceito de sujeito. Prefere o de agente. Os indivíduos

são agentes na medida que atuam socialmente e que são dotados de um senso prático, um

330 Cf. BOURDIEU, 1990, p. 149-168.

199

sistema adquirido de preferências, de classificações, de percepção331, o que o sociólogo chama

de habitus.

O habitus é um conceito com uma longa história: de Aristóteles, a Merleau-Ponty

passando por Mauss, Hegel e Heidegger.332 Grosso modo, para Bourdieu, as disposições que

orientam as práticas dos agentes constituem o habitus. Este é construído durante os processos

de socialização nos diferentes espaços sociais nos quais o agente esteve inserido: familiar,

escolar, profissional etc. Assim, “o habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz

as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto

é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.”333

Retomado por inúmeras vezes em diversas de suas obras, o conceito de habitus, em

geral, é o que norteia a percepção da situação, a ação, as preferências e a visão de mundo dos

agentes sociais. Ele fundamenta a resposta dos indivíduos a uma determinada situação; é

passível de mudanças, modificando e sendo modificado pelas estruturas sociais. Em suma, o

habitus constitui uma maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a maneira

de agir, corporal e materialmente.

O conceito de habitus proposto por Bourdieu mostra que ele engendra e é engendrado

pela lógica do campo social e que as escolhas e as ações dos agentes em um determinado

campo são produtos da experiência biográfica individual, da experiência coletiva e da

interação entre essas experiências que, portanto, podem ser aprendidos, atualizados e até

mesmo modificados. Em Meditações Pascalianas, Bourdieu mostra que essa flexibilidade do

habitus caracteriza-o como sendo disposições plásticas que refletem o exercício da faculdade

de ser condicionável, como capacidade natural de adquirir capacidades não-naturais,

arbitrárias.334

331 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas; sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 2003, p. 44. 332 Cf. BOURDIEU, 1990, p. 24. 333 BOURDIEU, 2003, p. 21-22. 334 Cf. BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 189.

200

Nessa perspectiva, o habitus é adquirido pelo agente social ao longo da vida, do

processo de socialização: absorve-se o habitus, reestruturando-o; condicionam-se as

aquisições mais novas pelas mais antigas. Patrice Bonnewitz sublinha que, das aquisições

absorvidas no curso do processo de socialização, as mais decisivas são as mais precoces, pois

são as responsáveis pela construção do habitus primário. Bonnewitz, numa leitura da obra de

Bourdieu, explica que o habitus primário é constituído das disposições inicialmente

adquiridas pelos agentes, em relação ao processo de socialização e, portanto, mais

definitivamente duráveis; o habitus primário é construído no curso da infância no seio da

família e com a intervenção da escola. É sobre ele que se erige o habitus secundário.335

Esse é um dos conceitos que orientam nosso trabalho e a análise dos dados que

obtivemos até agora. Partimos do pressuposto de que, ao nascer, todo indivíduo está inserido

num determinado grupo social, no qual desenvolverá sua primeira socialização, ali

aprendendo valores, conhecimentos, hábitos e habilidades. Por um lado, a família é a

instituição responsável por inserir o indivíduo no grupo e classe social dos quais ele faz parte

e a escola por moldar esse indivíduo nas formas da sociedade dominante. Assim, receber uma

educação é, em regra geral, receber uma educação ligada a uma posição de classe.336

Compreendemos aqui que, transmutada em habitus, a história se insere no corpo e na

mente dos leitores, tanto no estado objetivado (visitas culturais, livros, teorias), quanto no

estado incorporado, sob a forma de disposições. É mediante este processo que o habitus funda

condutas regulares, que permitem prever práticas — as coisas que se fazem e se dizem e as

coisas que não se fazem e não se dizem em determinado campo.

Portanto, se faz mister conjugarmos as nossas análises aos conceitos aqui

desenvolvidos. Os objetivos lúdicos e pedagógicos previstos no editorial do Magasin

d’éducation et de récréation que, como vimos, podem ser estendidos ao nosso corpus de

análise, nos asseguram a importância da leitura na idade infanto-juvenil como constitutiva dos

335 Cf. BONNEWITZ, Patrice. Pierre Bourdieu; vie, oeuvres, concepts. Paris: Ellipses, 2002, p. 61. 336 Cf. BONNEWITZ, 2002, p. 79.

201

pilares da vida adulta. Não só por revelar-se como uma das vias no processo de construção do

conhecimento, mas também como fonte de informação e formação cultural, a leitura seria de

importância basilar para a formação do habitus primário já que o objetivo maior, ao proceder

à leitura de uma determinada obra, consiste em aprender e apreender o que se está lendo. Sub-

repticiamente, o leitor introjeta os valores veiculados pela obra, sobretudo na juventude.

O habitus adquirido/incorporado pelo indivíduo nas diferentes leituras que fez

constituirá, assim, uma matriz de percepção, apreciação e ação pela qual ele se guiará.

Levando em conta que o habitus corresponde à incorporação de valores sob a forma de

esquemas de pensamento e ação, consideramos que esse seja um conceito potente para pensar

o processo de constituição das identidades sociais a partir das trajetórias de vida.

Assim, a nítida intenção de transmissão de valores morais e sociais conjugada ao ethos

enunciativo dos romances, fiador de mensagens centradas numa visão de mundo ocidental,

judaico-cristã, imperialista e expansionista concorrem para o fortalecimento e a perpetuação

de um habitus dominante, visando incutir, de maneira inconsciente, os valores vigentes e

comuns a certas camadas da sociedade francesa do século XIX.

5.4 - Os personagens e a legitimação discursiva

Em se tratando da construção dos personagens, aproximando-nos dos romances, com

base nas nossas análises, concluímos que a Bíblia também é fonte de onde Verne extrai cenas

validadas. Em Cinq semaines en ballon, quando abordamos a construção do efeito-

personagem do tipo africano, temos a cena em que um missionário jesuíta seria devorado por

indígenas que, ao final, quando salvo pelos heróis do balão, é comparada à descida de Jesus

Cristo da cruz (cena transcrita no item 3.3, p.93 ).

Os traços físicos do personagem jesuíta, o corpo lânguido e ferido e a menção direta

do narrador ao episódio bíblico constituem uma apropriação de cena validada. No mesmo

romance, temos na composição do retrato de Joe uma comparação do personagem com Caleb,

202

companheiro de Josué nas aventuras bíblicas. Aqui, há evocação direta de uma cena validada

que o enunciador toma emprestada do Antigo Testamento. Em Les enfants du capitaine

Grant, as cenas validadas ficam a cargo das comparações dos personagens de Lord Glenarvan

e de sua esposa Lady Helena a Saint Martin e Nossa Senhora, respectivamente, vistos como

modelos de bondade e doçura. Em Le Chancellor, a apropriação da cena validada se dá no

nível histórico e iconográfico com o episódio do naufrágio da Medusa e com o quadro de

Géricault, como já mostramos. Em suma, as cenas validadas em Jules Verne fariam parte de

um projeto de legitimação discursiva, da tentativa de mostrar originalidade e de tornar

reconhecido seu discurso, coadunando-se à ideia de um enunciador cuja imagem está

intimamente ligada ao discurso ocidental e cristão.

Em se tratando da noção de legitimação do discurso e da harmonia com as ideias

raciais e evolutivas desenvolvidas por Gobineau e Darwin, respectivamente, e coincidentes

com a literatura verniana, extraímos uma forte noção de hierarquização entre os retratos

literários que pretendemos explicitar. Listamos abaixo os retratos dos personagens que

analisamos. Decidimos organizá-los seguindo a ordem hierárquica racial e social apresentadas

nos romances. Cremos, assim, ter uma visão do todo que analisamos anteriormente:

Cinq semaines en ballon Brancos Intermediário Selv. guerreiro Selvagens

Samuel Fergusson Dick Kennedy ____ Joe

Viajante; “doutor” Amigo; alter-ego de Fergusson ____ Doméstico de Fergusson

Uanyamwézy Guerreiro africano

Tipo africano Antropófagos; seres não civilizados

203

Les enfants du capitaine Grant Brancos

Intermediário Selvagens Selv.guerreiro

Le Chancellor

Brancos

Intermediário

Selvagem

A hierarquia entre os personagens dos romances pôde ser inferida na medida em que

os narradores das tramas se baseiam em noções sociais e raciais para distingui-los. Em geral,

para os três romances, essa noção hierárquica é tripartida: o leitor se depara com personagens

brancos, selvagens e, com frequência, como numa linha evolutiva ou num contínuo, um

personagem intermediário que faz a ligação entre essas duas extremidades. Teríamos ainda,

para o caso do romance do balão e da trama dos filhos de Grant a presença de personagens

selvagens guerreiros. Estes, embora sejam personagens dos “mundos primitivos”, não são

vistos negativamente pelos enunciadores dos romances. A presença deles nas respectivas

tramas naturalizaria ainda mais a ideia de evolução: brancos → intermediários → selvagens

guerreiros → selvagens.

A noção de hierarquia que é apresentada ao leitor é notada, até mesmo, pela ordem de

aparecimento dos retratos nos romances. Contrariamente à ideia de usar uma ordem

Lord Glenarvan e Lady Helena Mary e Robert Grant John Mangles Mac-Nabs Jacques Paganel

Proprietários da embarcação Filhos do capitão Grant Capitão da embarcação Major Geógrafo

Thalcave Índio patagão; bom selvagem

Indígena Maori Guerreiro neozelandês

Aborígine australiano “Macaco”

Silas Huntly Robert Kurtis André e Sr. Letourneur Senhorita Herbey (J.-R Kazallon) _____ Sr. e Sra. Kear William Falsten John Ruby

Capitão do Chancellor; Substituto do capitão Passageiros franceses Inglesa; companhia de Sra. Kear (Inglês; autor do diário) _____ Passageiros americanos Passageiro inglês (Indústria) Passageiro inglês (Comércio)

Jynxtrop Cozinheiro negro

204

hierárquica baseada na funcionalidade do personagem na trama, por exemplo, revelou-se de

maior importância para os enunciadores o uso de uma referência racial e/ou social para se

fazer essa distinção.

Os retratos do romance Cinq semaines en ballon atestam que Fergusson, Kennedy e

Joe fazem parte da casta branca que tripula o balão, no entanto, uma nuança muito nítida os

separa sócio-hierarquicamente e destaca Joe, o servil doméstico, como um personagem

intermediário. Este estaria mais próximo dos selvagens (inclusive textualmente em razão da

ordem de aparecimento do seu retrato) respeitando a ideia de evolução de que falamos. Entre

os selvagens do romance, nota-se também uma noção de hierarquia. Primeiramente, os

indígenas Uanyamwézy, cujo retrato os perfila como guerreiros do norte africano em razão do

uso de armas e tatuagens corporais. Este dado os diferenciaria do tipo africano que aparece no

romance. Uma idéia mais geral e generalizante sobre o africano é construída em efeito-

personagem. Aqui os africanos são matizados negativamente pelo enunciador. O tipo africano

é, com frequência, um antropófago, ser não-civilizado de traços animalescos, alocado,

portanto, na posição mais baixade uma escala hierárquica.

Para o romance Les enfants du capitaine Grant a casta branca (tão somente escocesa, à

exceção do geógrafo francês Paganel) é composta por Lord Glenarvan, lady Helena, Mary e

Robert Grant, John Mangles, Mac-Nabs e Jacques Paganel. O lugar do personagem

intermediário é ocupado pelo patagão Thalcave, ou o representante do bom selvagem, como

afirmamos. Assim como em Cinq semaines en ballon, temos um personagem que naturaliza o

contínuo de base racial do romance. O selvagem guerreiro Maori que, como o africano

Uanyamwézy, é ilustre por suas tatuagens, antecede o selvagem australiano comparado a um

macaco, neste romance.

Em Le Chancellor, os personagens brancos são Silas Huntly, Robert Kurtis, Sr.

Letourneur e André Letourneur, William Falsten, John Ruby, senhorita Herbey, J.-R.

Kazallon e Sr. e Sra. Kear. Neste romance, o lugar dos personagens intermediários é ocupado

205

pelos americanos Sr. e Sra Kear e pelos ingleses William Falsten e John Ruby. Se para os

outros romances que analisamos as distinções entre os personagens se deu numa inferência de

ordem social e/ou racial, em Le Chancellor, revelou-se que as diferenças na escala evolutiva

no que concerne ao lugar dos personagens intermediários são estabelecidas com base na sua

nacionalidade, na sua posição social e no valor atribuído ao dinheiro ou à indústria. Com

frequência, o narrador-personagem do romance, que é inglês, trata de maneira irônica e

negativa os tripulantes americanos e o valor que seus compatriotas concedem à indústria e ao

lucro. Notamos ainda que, para o caso dos personagens William Falsten e John Ruby,

representantes da indústria e do comércio respectivamente, existe uma distinção. Com base na

ironia percebida nos seus retratos, infere-se que o narrador valoriza mais o conhecimento em

engenharia de Falsten como um tipo de conhecimento científico em detrimento das

habilidades comerciais de Ruby. Essa nuança nos permite enquadrar Falsten num nível acima

de Ruby. No entanto, para este romance, não se abandona o desejo da distinção racial entre os

personagens. Jynxtrop, o cozinheiro da embarcação e único personagem negro do romance,

encarnará uma regressão moral e terá suas atitudes comparadas às de um animal feroz, fato

que o aloca na base de uma escala hierárquica.

Longe de querermos igualar os personagens dos três romances, o que seria redutor e

incoerente já que são tramas e personagens distintos, podemos apresentar, em forma de

conclusão, três conjuntos das possíveis interseções entre as tramas: um conjunto

representativo dos personagens intermediários, um segundo para personagens selvagens-

guerreiros e, finalmente, um último para personagens selvagens.

206

Personagens intermediários: Personagens selvagens-guerreiros:

Personagens selvagens:

5 semaines en ballon

Les enfants du cap.

Grant

Uanyamwézi Indígena Maori

Le Chancellor

5 semaines en ballon

Joe Thalcave

Sr. e Sra. Kear Falsten Ruby

Le Chancellor

Les enfants du cap.

Grant

5 semaines en ballon

Tipo africano Aborígine

australiano Jynxtrop

Le Chancellor

Les enfants du cap.

Grant

207

6- CONCLUSÃO

O nome Jules Verne, na literatura, surgiu do seu encontro com o célebre editor Pierre-

Jules Hetzel. Da colaboração mútua entre eles, as “Viagens extraordinárias” tomaram forma e,

como vimos, os contratos sucessivos entre os dois encerraram a maioria dos romances de

Jules Verne no registro de uma literatura destinada às crianças e aos adolescentes. Mesmo

aqueles que foram publicados em diários de projeto político-literário seguiram objetivos

claramente pedagógicos. Essa categorização redutora, hoje, sob a luz da riqueza da obra e da

ambição do autor, leva-nos a compreender sua originalidade e notar o que lhe permitiu existir

e permanecer, queremos dizer, o que facultou a legitimação de seu discurso, numa época de

grandes nomes em literatura.

Objetivando recolher dados científicos e transformá-los em literatura, o escritor

cientista, geógrafo, etnógrafo se lança na publicação dos romances que compõem o corpus da

dissertação: Cinq semaines en ballon, primeiro romance verniano publicado diretamente em

volume no ano de 1863; Les enfants du capitaine Grant, publicado inicialmente em formato

de folhetim no Magasin d’éducation et de récréation e em volume no ano de 1867-1868, e Le

Chancellor, publicado igualmente em folhetim no jornal Le Temps, e em volume, em 1875.

Diferentemente de Montesquieu, que coloca na cena francesa do século XVIII dois

persas surpresos lhe permitindo expressar com uma certa “inocência” apreciações sobre a

França, Jules Verne envia, na maior parte das vezes, como vimos, seus franceses, ingleses e

escoceses para os quatro cantos do mundo, onde sua curiosidade e coragem os levam a

aventuras inverossímeis. Fergusson, o capitão predestinado às descobertas, com a ajuda de seu

intrépido companheiro Dick Kennedy e seu ajudante Joe, todos a bordo de um balão, trabalha

para reunir numa só viagem ao norte africano os caminhos traçados por reais viajantes.

Paganel, por conta de suas inconcebíveis distrações, faz seus amigos completarem uma volta

ao mundo que não se tinha previsto, tudo em busca do capitão Grant. Já Kazallon é redator de

208

um diário que conta a aventura dos personagens a bordo de um navio em naufrágio, reduzido

a uma balsa à deriva no meio do Oceano Atlântico.

Essas viagens servem como pretexto a Jules Verne para apresentar aos leitores partes

do globo terrestre ainda pouco conhecidas, salientando não só sua geografia, mas também seu

relevo, sua fauna e flora, seus habitantes, bem como seus costumes e, para o caso de Le

Chancellor, misturar o extraordinário da viagem ao extremismo realista do naufrágio de um

navio. Nesses contextos, as descrições etnográficas se mostraram particularmente

importantes. Transmutadas em retratos literários, as descrições dos personagens, sejam

brancos, sejam habitantes dos “mundos primitivos”, constituíram nosso foco de interesse.

Do segundo capítulo, concluímos que, no interior de um romance, o retrato é uma

figura de pensamento que pode ser construída tão somente por dados físicos do personagem

(prosopografia) e/ou ainda por dados morais (etopeia). Apresentando um panorama histórico-

conceitual do retrato, inferimos que os retratos dos romances que estudamos não apresentam

teor caricatural ou tom de paródia. Na interseção entre o retrato literário e sua interface em

pintura conclui-se que, no âmbito do relato de viagens, padrão para os romances vernianos, os

retratos dos personagens ditos “selvagens” teriam a função etnográfica de apresentar aos

leitores o que lhes está distante, tornando presente o que é ausente, levando os leitores a

conhecerem tais povos sem que estes saíssem do seio familiar, transformando mais

amplamente as “Viagens extraordinárias” em voyages dans un fauteuil, para parafrasear o

projeto do escritor Alfred de Musset.

No terceiro capítulo, apresentamos as fontes às quais Jules Verne recorreu para criar

seus romances e, mais particularmente, os retratos. Intimamente ligado à História, o que

apresentamos como intertexto em Jules Verne pôde ser extraído dos textos e da iconografia da

revista Le Tour du monde. Ao apelar para os grandes viajantes, heróis e autores de relatos de

viagem, Verne procura a legitimação do seu discurso através de cenas já validadas em seu

registro primordialmente descritivo e na importância que a representação do espaço e das

209

coisas tem nele. Mostramos ainda que o diálogo interdiscursivo com a ciência vulgarizada é

recorrente em Verne. Apresentamos e concluímos que as relações de causa e efeito caras à

fisiognomonia e à frenologia desenvolvidas por Lavater e Gall serviram de base para Verne

criar os retratos de seus personagens. Aliados aos discursos de Darwin, que desenvolveu a

teoria da evolução das espécies, de Gobineau, criador da teoria da diferença entre as raças

humanas, os discursos de Lavater e Gall se apresentam como fontes científicas que se

coadunavam com o interesse pegagógico-literário. Para a editora de Hetzel, Jules Verne seria

a interseção entre esses dois grandes campos, com a particularidade de ser literatura destinada

aos jovens. As relações interdiscursivas entre o cientifico e o literário, no caso de Verne,

estariam ligadas à utilização e à naturalização de documentos e discursos que visariam

inscrever cultural e historicamente as imagens dos seus personagens, maneira pela qual o

autor das “Viagens extraordinárias” legitimaria seu discurso.

No quarto capítulo dessa dissertação, o uso das teorias descritivas de Philippe Hamon

e de Adam & Petitjean nos auxiliaram a compreender o funcionamento e a construção dos

retratos literários. É preciso dizer que nem todos os personagens apresentaram retratos, ou

seja, blocos descritivos definidos. Para a tentativa da construção da imagem de um tipo

africano em Cinq semaines en ballon ou para o negro Jynxtrop de Le Chancellor, as

informações sobre o corpo e suas atitudes morais vêm disseminadas no texto, constituindo

assim o que Hamon nomeia de efeito-personagem.

Seguindo as análises, percebemos que é clara a visão do narrador no tocante aos

“selvagens”. Os traços grosseiros que os pintam se tornam mais evidentes se comparados com

aqueles que pintam os “brancos europeus”. Podemos afirmar que, numa análise contrastiva, os

retratos dos brancos em Cinq semaines en ballon, Les enfants du capitaine Grant e Le

Chancellor apresentam uma predominância significativa da figura etopeia e uma redução de

traços prosopográficos. Exatamente o inverso acontece nas descrições dos selvagens desses

romances, ou seja, há um maior enfoque nos detalhes físicos e exteriores e menor nos detalhes

210

morais. Ora, isso nos permite afirmar que o narrador dá mais atenção ao que se é exótico, ao

que é diferente aos olhos do leitor. Por essa razão, não há riqueza prosopográfica nas

descrições dos brancos. Estes já são suficientemente conhecidos e relacionados ao perfil

civilizado que vimos nos retratos dos brancos. O narrador se atém mais fortemente aos traços

morais dos europeus, usando e abusando de adjetivos positivos que auxiliam a melhor

distanciarem homens brancos europeus de selvagens. Pinceladas de inteligência, doçura,

valentia, força, coragem, resignação, simpatia, modéstia e alegria ajudam a formar os retratos

dos brancos. A bondade é um atributo quase generalizado entre todos eles. O que esperar, por

exemplo, da união entre Saint-Martin e Nossa Senhora, encarnados pelos personagens Lord

Edward Glenarvan e Lady Helena na trama dos filhos de Grant, senão o cúmulo da bondade e

da generosidade? Ora, enquanto alguns selvagens são vistos como macacos, antropófagos ou

seres ainda não-civilizados, os brancos europeus são comparados a mártires e santos.

Se direcionarmos o foco somente nos retratos dos habitantes dos “mundos primitivos”,

notamos uma importante nuança de hierarquização. Em Cinq semaines en ballon e para o

Chancellor, os africanos e o negro cozinheiro estariam localizados na base de uma pirâmide,

distanciados dos brancos, sobretudo moralmente. Em Les enfants du capitaine Grant, a noção

de hierarquização também se evidencia entre os personagens selvagens. Ainda que se

caracterize bastante positivamente o retrato do patagão, percebemos que, na funcionalidade da

obra, ele se mostra como o “bom selvagem”, servil e cordato. O índio Maori presente no

romance, embora caracterizado como temível e sinistro, possui qualidades positivas como a

coragem e seus méritos heróicos, vistos através das suas tatuagens. No entanto, o retrato do

aborígine australiano se destaca por apresentar uma visão marcadamente “racista”, para usar

uma terminologia ulterior. Ele é comparado ao macaco devido a algumas de suas

características físicas. Seu habitat também é descrito negativamente. As linhas que delimitam

estas representações convergem para a afirmação de que os narradores desses romances

apoiam-se em códigos culturais que matizam negativamente o negro. Para os “selvagens” do

211

romance, há nitidamente uma linha hierárquica que vai do “bom selvagem” ao (negro)

indígena aborígine, apontando, de forma embrionária, por assim dizer, para o racismo.

Inversamente ao que prevíamos, concluímos, finalmente, que o ethos enunciativo dos

narradores dos romances não se modifica diante do projeto editorial ao qual pertencem. Seja

em Cinq semaines en ballon, que não passou por nenhuma via de publicação antes de ser

publicado em volume, em Les enfants du capitaine Grant publicado em folhetim no Magasin

d’éducation et récréation ou em Le Chancellor, lançado igualmente em folhetim no Le

Temps, a imagem que o narrador apresenta de si no discurso é de alguém informado e atrelado

à ideias judaico-cristãs, imperialistas e expansionistas, não se diferenciando muito de um

romance para outro.

É mister dizer que a emergência do imperialismo, do expansionismo, do racismo, da

ciência evolucionista e alguns dados da literatura de Verne são inegavelmente coincidentes.

As viagens, sobretudo de descoberta e expansão, estavam em voga. A cristalização do

conceito de raça estava se concretizando na época. As imagens fortes que envolvem a noção

da evolução humana, produto da vulgarização das teorias de Darwin, se difundiam e se

fixavam na sociedade. Na perspectiva de Dominique Maingueneau, inferimos, portanto, que a

relação intertextual e o diálogo interdiscursivo que descobrimos analisando contrastivamente

os retratos desses romances não servem somente para ilustrar a diferença entre brancos e

selvagens, eles constroem essa diferença. Os retratos literários dos romances analisados são

produtos e produtores, estruturam e são estruturados no e pelos discursos que lhes servem de

base. Esse processo espiralado atesta da manutenção que se faz desses discursos através da

literatura de Jules Verne, auxiliando-o na legitimação da sua cenografia enunciativa.

Assim, a análise contrastiva dos retratos desses romances de Jules Verne leva-nos à

conclusão de que essas tramas vernianas funcionariam como incubadoras de ideias

iminentemente racistas. O leitor do século XIX seria capaz de assimilá-las e torná-las

212

socialmente aceitáveis. O ethos informado cientificamente, respeitado e, portanto, digno de

ser fiador de tais ideias se incumbiria de induzi-las implícita e mesmo explicitamente.

Dos resultados finais dessa dissertação, com base nos conceitos de Pierre Bourdieu,

depreende-se que os agentes e instituições dominantes tendem a introjetar a cultura

dominante, de modo a reproduzir o habitus. São essas rotinas corporais e mentais

inconscientes que nos permitem agir sem pensar. Elas são produtos e produtoras de uma

aprendizagem, de um processo do qual não se tem consciência e que se expressa por uma

atitude “natural” de nos conduzirmos em um determinado meio. Para Bourdieu, a família, a

escola e o meio não só reproduzem as desigualdades sociais, como legitimam

inconscientemente esta reprodução. Essas noções só reiteram o provérbio francês que,

cremos, estava no espírito do editor Hetzel, do escritor Jules Verne, do público que o

comprava e o lia avidamente: les voyages forment la jeunesse.

213

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220

8. ANEXOS

Anexo 1

221

222

223

224

Anexo 2

Aborigène portant ses armes, por Nicolas Martin Petit

Pastel, carvão , lápis e tinta sobre papel Relato de viagem de Nicolas Baudin na Austrália (1800-1802)