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ReVEL, v. 9, n. 16, 2011 ISSN 1678-8931 371 BEZ, Alessandra da Silveira. Tradução: palavras (des) construídas e (in) acabadas. ReVEL, v. 9, n. 16, 2011. [www.revel.inf.br]. TRADUÇÃO: PALAVRAS (DES) CONSTRUÍDAS E (IN) ACABADAS Alessandra da Silveira Bez 1 [email protected] RESUMO: O presente artigo propõe um estudo sobre o processo tradutório e seu funcionamento dentro da perspectiva de Mikhail Bakhtin sobre concepção de palavra, reflexão e refração do signo e a Teoria da Tradução, de Rosemary Arrojo. Para ilustrar esta pesquisa, buscou-se o texto original de Oswald Ducrot e colaboradores, estudiosos da linguagem que desenvolveram a Teoria da Argumentação na Língua e suas respectivas traduções. Através de uma breve análise de palavras do texto alvo e palavras do texto fonte, procura-se mostrar que nenhuma tradução pode ser totalmente construída e acabada, pois além do fato de uma língua não recobrir a outra, percebe-se que a expressividade do locutor, inevitavelmente, transparece no texto traduzido. PALAVRAS-CHAVE: processo tradutório; palavra; refração; expressividade. INTRODUÇÃO O tradutor é, muitas vezes, chamado de “traidor”, uma espécie de profissional que, não raro, modifica o texto do autor sem sua “permissão”. O senso comum acredita que esse “transformador da linguagem” apenas precisa transpor palavras de um idioma a outro e isso deve ser feito dentro dos preceitos da “fidelidade”. Por trás dessa ideia de que a tradução precisa ser fiel ao texto original, está uma concepção de que a linguagem é transparente, sendo capaz de refletir a realidade. Frota (2000:110) chama a atenção para a “Sempre difícil tentativa de atravessar barreiras linguísticas e culturais” que caracterizam o trabalho de tradução. Isso porque as línguas, quando são postas em ato, implicam, de modo incontornável, aquele que diz. Sendo assim, a reprodução plena do original no texto traduzido coloca-se como um ideal que não pode ser alcançado, pois os atos de linguagem, isto é, atos de fala entre indivíduos, longe de serem unívocos, constituem-se como um “processo ininterrupto, que se realiza através da interação social dos locutores” (Bakhtin, 1995:127). De fato, a linguagem não apenas reflete o uso da língua, mas também o refrata. O tradutor é, então, um aprendiz e um pesquisador 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

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  • ReVEL, v. 9, n. 16, 2011 ISSN 1678-8931 371

    BEZ, Alessandra da Silveira. Traduo: palavras (des) construdas e (in) acabadas. ReVEL, v. 9, n. 16, 2011. [www.revel.inf.br].

    TRADUO: PALAVRAS (DES) CONSTRUDAS E (IN) ACABADAS

    Alessandra da Silveira Bez1

    [email protected]

    RESUMO: O presente artigo prope um estudo sobre o processo tradutrio e seu funcionamento dentro da perspectiva de Mikhail Bakhtin sobre concepo de palavra, reflexo e refrao do signo e a Teoria da Traduo, de Rosemary Arrojo. Para ilustrar esta pesquisa, buscou-se o texto original de Oswald Ducrot e colaboradores, estudiosos da linguagem que desenvolveram a Teoria da Argumentao na Lngua e suas respectivas tradues. Atravs de uma breve anlise de palavras do texto alvo e palavras do texto fonte, procura-se mostrar que nenhuma traduo pode ser totalmente construda e acabada, pois alm do fato de uma lngua no recobrir a outra, percebe-se que a expressividade do locutor, inevitavelmente, transparece no texto traduzido. PALAVRAS-CHAVE: processo tradutrio; palavra; refrao; expressividade.

    INTRODUO

    O tradutor , muitas vezes, chamado de traidor, uma espcie de profissional que, no raro, modifica o texto do autor sem sua permisso. O senso comum acredita que esse transformador da linguagem apenas precisa transpor palavras de um idioma a outro e isso deve ser feito dentro dos preceitos da fidelidade. Por trs dessa ideia de que a traduo precisa ser fiel ao texto original, est uma concepo de que a linguagem transparente, sendo capaz de refletir a realidade.

    Frota (2000:110) chama a ateno para a Sempre difcil tentativa de atravessar barreiras lingusticas e culturais que caracterizam o trabalho de traduo. Isso porque as

    lnguas, quando so postas em ato, implicam, de modo incontornvel, aquele que diz. Sendo assim, a reproduo plena do original no texto traduzido coloca-se como um ideal que no pode ser alcanado, pois os atos de linguagem, isto , atos de fala entre indivduos, longe de serem unvocos, constituem-se como um processo ininterrupto, que se realiza atravs da

    interao social dos locutores (Bakhtin, 1995:127). De fato, a linguagem no apenas reflete o uso da lngua, mas tambm o refrata. O tradutor , ento, um aprendiz e um pesquisador

    1 Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS.

  • ReVEL, v. 9, n. 16, 2011 ISSN 1678-8931 372

    constantes que, para transmitir ideias de uma cultura para outra, molda os signos delicadamente, como um escultor, cuidadoso e consciente do complexo ofcio que est em suas mos.

    Este trabalho recorre teoria da linguagem presente em Marxismo e Filosofia da Linguagem de Mikhail Bakhtin (Volochinov) e Teoria da Traduo de Rosemary Arrojo e tem como objetivo fazer uma breve discusso sobre a traduo em uma perspectiva enunciativo-cultural. Bakhtin problematiza a concepo de que a linguagem reflete o mundo, afirmando que caracterstica do signo a reflexo e a refrao, ou seja, um signo tem a possibilidade de ressignificao e valorao, a cada vez que enunciado. Dessa forma, os signos so caracterizados pelas suas ressonncias, no sendo possvel o fechamento de

    sentido. Por sua vez, Rosemary Arrojo afirma que para uma traduo ser considerada boa, ela precisa estar desprovida de erros, explicando melhor, uma traduo boa aquela que

    apresenta conhecimentos estruturais e lingusticos da lngua fonte e da lngua alvo (no nosso caso, o francs e o portugus); apropriao dos aspectos culturais de ambas as lnguas. Outra forma de se ter uma traduo eficaz saber quais so os pressupostos e quais so as concepes cientficas da comunidade que a produziu para no ocorrer desvios de ordem

    terminolgica. Para a autora, quando o tradutor toma conhecimento desses fatores, ele capaz de ler melhor o texto assim como escrev-lo. Recorrendo ao estudo desses dois escultores da

    linguagem, pergunta-se: o sentido de uma traduo pode ser construdo e acabado? Primeiramente, o estudo traz algumas consideraes do filsofo Russel sobre a viso representacionista da linguagem que sustenta o consenso de que o sentido da traduo fechado. Pode-se afirmar que esse sentido fechado o sentido literal, que desconsidera o uso da lngua. A seguir, apresenta-se a viso sobre traduo que busca legitimar e pensar as consequncias da interveno do tradutor. Na sequncia, so apresentados os princpios e noes que orientam este trabalho, buscadas na teoria dialgica de Mikhail Bakhtin e na teoria lingustico-cultural de Rosemary Arrojo. Para ilustrar, apresenta-se uma breve anlise a partir de diferentes obras de Oswald

    Ducrot e a sua respectiva traduo, o que ser detalhadamente exposto na seo dedicada apresentao da Metodologia.

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    1 FUNDAMENTAO TERICA

    1.1 VISO REPRESENTACIONISTA DA LINGUAGEM

    Conforme Arajo (2004:58), Estudos clssicos do sentido acreditam que os enunciados so transparentes em relao ao contedo que eles exprimem, ou seja, o que se diz exprime um pensamento que poderia ser traduzido em qualquer outra lngua. Essa viso representacionista da linguagem coloca entre parnteses a dimenso discursiva da linguagem, ou seja, o que os enunciados como acontecimentos discursivos exprimem no levado em considerao na determinao do sentido.

    O filsofo Russel (apud Arajo, 2004:74) acredita que o nome, como tal, inseparvel do objeto que o designa. Esse filsofo v uma distino entre nomes prprios e nomes como substantivos e adjetivos. Os nomes prprios representam particulares, enquanto os substantivos e adjetivos representam universais, pois tm por significao propriedades e relaes. Nota-se, portanto, a desvinculao entre a lngua e a pragmtica. Com o surgimento da pragmtica, a linguagem deixa de ser considerada como

    instrumento para o pensamento representar as coisas e passa a ser vista como uma estrutura

    articulada que depende do uso para significar. As palavras no so mais submetidas funo

    exclusiva de nomeao ou designao, no se limitando a estabelecer uma relao direta com a coisa nomeada.

    Tais estudos produzem uma mudana no modo de encarar a linguagem, dando destaque ao papel do contexto e dos participantes do ato de linguagem no processo de construo de sentido, o que acaba se refletindo na compreenso do processo tradutrio. No se trata mais de esterilizar a prtica de traduo em um prescritivismo pretensioso e incuo pela tentativa de limitar a interferncia do tradutor em seu trabalho, mas de dirigir a reflexo para o papel seminal da presena do locutor no texto traduzido (Frota, 2000:15). O reconhecimento da traduo como escritura do tradutor, visto como produtor de

    significados necessariamente singulares, abre uma frtil perspectiva de produo de conhecimento sobre esse complexo tema.

    Antes de propriamente apresentar os elementos da teoria bakhtiniana que fundamentam este trabalho, trazido o posicionamento sobre traduo de Rosemary Arrojo que j reconhece a interferncia do tradutor no processo.

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    1.2 TRADUO: UMA TEORIA LINGUSTICO-CULTURAL

    Para compreender o que traduo, Arrojo, em seu livro Oficinas de Traduo2 (1986), posiciona-se contra os tericos que defendem o processo de traduo como transferncia ou substituio. J.C.Catford (apud Arrojo, 1986:20) o conceitua como a substituio do material textual de uma lngua pelo material equivalente em outra. Eugene

    Nida (apud Arrojo, 1986) desenvolve essa ideia afirmando que algumas palavras carregam vrios conceitos e outras tm que se juntar para conter apenas um, comparando as palavras de uma sentena a uma fileira de vages de carga. Nida sugere o controle de contedo das palavras at que a transposio na ntegra para

    um outro conjunto de vages seja garantida. Notamos que essa viso tradicional mostra o ato de traduzir como um transporte de significados entre lngua A e lngua B, em que o texto

    original apresentaria sentidos fixos e completos. Dessa forma, o tradutor assume uma funo mecanicista, isto , transporta a carga de significados de forma intacta, no interferindo nela ou interpretando-a. Assim, de acordo com Arrojo (1986), temos os trs princpios bsicos para uma boa traduo, sugeridos por um de seus tericos pioneiros, Alexandre Fraser Tytler:

    1 a traduo deve produzir em sua totalidade a ideia do original 2 o estilo da traduo deve ser o mesmo do original e

    3- a traduo deve ter toda a fluncia e a naturalidade do original Arrojo contesta esses princpios e os desmistifica na obra de Jorge Luis Borges, intitulado Pierre Menard, autor del Quijote.3 Conforme o narrador explica ao longo do livro, Menard tinha o objetivo de repetir na ntegra o texto escrito por Cervantes a fim de buscar a interpretao e o controle total sobre o texto. Menard tem uma ideia de traduo e de leitura semelhante de Catford e Nida: o significado de uma palavra independente do contexto lingustico em que est inserida. Arrojo sugere, a partir da, que traduzir no transferir significados estveis de uma lngua para outra porque o prprio sentido de uma palavra, ou de um texto na lngua fonte s

    pode ser determinado, de forma provisria, atravs de uma leitura. Por isso, a transferncia total de significado no possvel porque o significado do texto fonte depende do contexto

    lingustico e extralingustico em que ocorre e da leitura realizada pelo tradutor. Arrojo

    2 A teoria da traduo desse livro partiu de teorias textuais geralmente rotuladas de ps-estruturalistas. Entre os

    autores mais influentes, incluem-se Roland Barthes, Jacques Derrida e Stanley Fish. 3 O conto apresentado como uma resenha pstuma das obras de Pierre Menard (personagem fictcio criado por

    Borges), um homem de letras francs que viveu na primeira metade do sculo XX. O narrador um crtico literrio que enumera a obra visvel de Menard; o narrador nos apresenta 19 obras, entre elas monografias, tradues, anlises e alguns poemas.

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    desconstri a ideia de que o texto um contedo depositado e mantido sob controle e constri a imagem do texto-palimpsesto, em que o texto se apaga em cada comunidade cultural e em cada poca, para dar lugar a outra escritura (ou interpretao, ou leitura, ou traduo) do mesmo texto. Assim, o texto de Dom Quixote, ilustrado pelo conto de Borges, no pode ser definido como um conjunto de significados estveis e imveis, eternizados nas palavras de Miguel de Cervantes, mas sim mltiplas leituras, interpretaes, palimpsestos. Dessa forma, a traduo jamais protege os sentidos originais de um autor, mas assume a condio de produtora de significados. Ao afirmar que a traduo uma atividade essencialmente produtora de significados e que o ofcio do tradutor e o do escritor de textos originais possui o mesmo grau de

    complexidade, evidencia-se que traduzir uma tarefa rdua. Segundo Arrojo (1986:76), esse escultor da linguagem deve ter o domnio das lnguas envolvidas no processo e deve aprender

    a traduzir, pois traduzir tambm uma forma de aprender a ler, uma vez que aprender a ler significa, portanto, aprender a produzir significados a partir de um determinado texto, que sejam aceitveis para a comunidade cultural da qual participa o leitor. Arrojo afirma ainda que o tradutor aprendiz, alm de aprender a ler cuidadosamente, deve aprender a escrever. Escrever e traduzir so, dessa forma, operaes conjuntas: ao traduzir o tradutor reflete a leitura feita a partir do original; consequentemente o texto

    traduzido ser texto de partida para a construo de outras leituras para um pblico que no tem acesso ao original, ou mesmo tendo acesso, no domina a lngua fonte.

    Percebemos, at agora, como a leitura e a escrita adequadas so ferramentas fundamentais para que o tradutor faa um bom trabalho. Arrojo reitera que ele deve ter conhecimento a respeito das teorias e dos estudos sobre traduo para que compreenda e reflita criticamente sobre a natureza de seu trabalho de forma a obter recursos que o ajudem nessa rdua tarefa. Para a autora, cada traduo exige do tradutor a capacidade de confrontar reas especficas de duas lnguas e de duas culturas diferentes e esse confronto nico, irrepetvel, pois suas variveis so imprevisveis.

    Considerando o texto cientfico, Arrojo aplica a mesma ideia explicitada anteriormente: para que o tradutor consiga l-lo de forma apropriada, necessrio que ele

    saiba dos pressupostos e das concepes cientficas da comunidade que o produziu, assim como as convenes que devem guiar sua leitura. Se o tradutor no tiver o domnio dos conceitos e das terminologias de uma determinada cincia, ocorrer certamente problema de traduo, podendo ocasionar desvios de sentido. Dessa forma, podem surgir diversas

    interpretaes, caracterizando m compreenso da ideia proposta pelo texto original.

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    Percebe-se, a partir da, que, alm do conhecimento das duas lnguas e da prtica de leitura, a informao (tanto a comum como a cientfica) tambm uma forte aliada do tradutor: quanto mais bem informado ele for, quanto mais conhecedor ele for da obra do escritor que ele pretende traduzir, mais bem-sucedidas sero sua leitura e sua traduo. A

    viso dialgica da linguagem, proposta por Bakhtin (1995), outra ferramenta que tambm ajuda o tradutor no seu ofcio, como ser visto na prxima seo.

    1.3 VISO DIALGICA DA LINGUAGEM

    Representar a linguagem sob uma perspectiva enunciativa uma viso praticamente

    nova na Lingustica. A enunciao concebe a lngua a partir de seu uso, considerando os sujeitos falantes. No entanto, alguns linguistas como Benveniste e Ducrot apresentam a enunciao sob um vis diferente de Mikhail Bakhtin. Para Benveniste (1989), a enunciao a colocao da lngua em funcionamento por um ato individual de realizao, ou seja, a enunciao se caracteriza como um ato individual de produzir enunciados. Por sua vez, para Ducrot (1987) a enunciao um acontecimento constitudo pelo aparecimento de um enunciado. O linguista francs estuda como o processo se marca no produto, ou seja, como a enunciao se marca no enunciado. De acordo com Ducrot, o enunciado uma realidade emprica observvel (1990:65), uma ocorrncia particular da frase (2008:7).

    Primeiramente, esclarece-se que Bakhtin no um linguista, mas um filsofo da linguagem, cujas ideias antecipam o que se pode chamar de viso enunciativa da linguagem, caracterizada, fundamentalmente, por levar em conta a interveno da subjetividade nos processos de construo do sentido. Para Bakhtin, a subjetividade essencial, uma vez que o sujeito expressa seu ponto de vista ao usar a lngua.

    Essa viso de linguagem perpassa a obra de Bakhtin, tendo sido particularmente desenvolvida em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), obra que tem sua autoria questionada. Sabe-se que Bakhtin se reunia com um grupo multidisciplinar, conhecido como Crculo de Bakhtin, de que fazia parte Volochinov, um estudioso da linguagem. Algumas

    obras do Crculo, como Marxismo e Filosofia da Linguagem, so atribudas ou somente a Volochinov ou a ele e Bakhtin, em co-autoria. Neste artigo, no se toma posio sobre essa questo, por no ser ela relevante para seus propsitos. Faz-se referncia apenas a Bakhtin,

    por ser ele notoriamente o pensador mais destacado do grupo, no se desconhecendo que suas

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    ideias foram desenvolvidas em dilogo com os tericos que frequentavam as reunies do Crculo. Para Bakhtin, todo discurso no est voltado para a realidade em si, mas para os discursos que a circundam. Ele trabalha a lngua em uso, concreta e viva, no acontecimento da

    enunciao.

    O pensador desenvolve sua teoria da linguagem sob o princpio de que o dialogismo

    constitutivo dos processos de tomada da palavra. Trata das relaes do enunciado com enunciados j constitudos, e para a incorporao pelo enunciador da voz ou das vozes do outro no enunciado. A lngua, ento, se molda atravs das experincias e vises de mundo do locutor e do outro, que sempre se encontram presentes na fala desse locutor, promovendo

    sentidos impregnados por valores ideolgicos. A recepo/compreenso ativa proposta por Bakhtin retrata o movimento dialgico da

    enunciao, a qual constitui o territrio comum do locutor e do interlocutor. O locutor enuncia em funo do interlocutor (real ou virtual), esperando deste ltimo uma atitude responsiva, em um ato de ratificao, reiterao, reformulao ou oposio. A compreenso da enunciao ocorre porque a colocamos no movimento dialgico dos enunciados, em

    confronto tanto com os nossos dizeres quanto com os dizeres alheios. O que importa a interao dos significados das palavras e seu contedo ideolgico do ponto de vista

    enunciativo, das condies da produo e da interao receptor/locutor. Portanto, nota-se que vrios fatores so determinantes na constituio do dialogismo: o dilogo com o outro, a produo da significao, o momento histrico em que produzido, o lugar de onde produzido e as relaes com outros enunciados. Um discurso, quando produzido, dialoga com o momento histrico, o espao social e outros enunciados e esse mesmo discurso considera que essa produo um ato responsivo que pede a interferncia do outro. Enfim, as relaes dialgicas lidam com os sentidos, com os discursos permeados por outros e com a interao entre o locutor e o interlocutor num jogo intenso de compreenso e troca de papis. Percebe-se, dessa forma, que a traduo encaixa-se diretamente na

    perspectiva bakhtiniana, uma vez que o tradutor est inserido em um determinado momento histrico e em determinado espao social. Toda traduo , ento, o resultado de ecos de

    outros enunciados. Cabe ao tradutor reescrev-los adequadamente, utilizando no s seus conhecimentos tericos, mas tambm suas experincias como escultor da linguagem.

    A expresso, para Bakhtin, uma forma de o sujeito interagir com o outro, conforme veremos a seguir.

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    1.3.1 CRTICA TEORIA DA EXPRESSO E NOO DE PALAVRA: MARCAS DE DIALOGISMO E DE SUBJETIVIDADE

    Em parte da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (MFL), Bakhtin busca a verdadeira substncia da linguagem. A partir do captulo 4, submete crtica duas orientaes do pensamento filosfico-lingustico: o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista. Essas crticas so feitas no intuito de buscar resposta para questes colocadas no final do cap. 4: Qual o verdadeiro ncleo da realidade lingustica? O ato individual da fala? (cf. subjetivismo idealista) ou o sistema da lngua? (cf. o objetivismo abstrato)

    O objetivismo abstrato critica o conceito de lngua enquanto sistema sincrnico de relaes. Para Bakhtin, o sistema sincrnico no corresponde a nenhum momento efetivo do processo de evoluo da lngua (1995). Contesta tambm a ideia de lngua como sistema de regras imutveis e incontestveis (ibid, p. 90-92), considerando que O centro de gravidade da lngua no reside na conformidade norma da forma utilizada, mas na nova significao que essa forma adquire no contexto. Problematiza ainda a concepo de compreenso como ato passivo (ibid, p. 98), a partir da qual coloca a lngua fora do fluxo da comunicao verbal (ibid, p. 107).

    No captulo 6, Bakhtin prossegue na busca da verdadeira substncia da linguagem. A crtica dirigida, nesse momento, ao subjetivismo individualista, que se apoia tambm sobre a ideia de que a enunciao ato puramente individual, expresso da conscincia individual, ou seja, monolgica. A enunciao monolgica do ponto de vista do subjetivismo individualista se apresenta como expresso da conscincia individual, de seus desejos, suas intenes, seus impulsos criadores, entre outros. Bakhtin contesta a noo de expresso, tal como presente no subjetivismo idealista, como tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum cdigo de signos exteriores (ibid, 111). Em sua viso, esse conceito de expresso pressupe dualismo entre exterior e interior, quando, de fato, todo ato de objetivao (expresso) procede do interior para o exterior. Exteriorizando-se, o contedo interior muda de aspecto, pois obrigado a apoderar-se do material exterior, que dispe de suas prprias regras. Ao dominar o material, transform-lo em meio obediente, de expresso, o contedo da atividade verbal a exprimir muda de natureza e obriga-se a assumir um compromisso.

    A crtica de Bakhtin (1992:12) teoria da expresso que sustenta o subjetivismo idealista ntida no trecho a seguir:

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    Basicamente, a expresso se constri no interior; sua exteriorizao no seno uma traduo. Disso resulta a compreenso, o comentrio e a explicao do fato ideolgico devem dirigir-se para o interior, isto , fazer o caminho do inverso, da expresso: procedendo da objetivao exterior, a explicao deve infiltrar-se at as suas razes formadoras internas. Esta a concepo da expresso no subjetivismo individualista.

    Segundo Bakhtin, a teoria da expresso da primeira orientao do pensamento

    filosfico-lingustico falsa. O contedo a exprimir e sua objetivao externa so criados a partir de um nico e mesmo material, pois no h atividade mental sem expresso semitica.

    a expresso que organiza a atividade mental, que a modela e determina a sua orientao. O aspecto da expresso-enunciao determinado pelas condies reais da enunciao em questo, a situao social mais imediata, no entendimento do autor. Assim, a enunciao o produto da interao de dois indivduos socialmente organizados. A palavra dirige-se a um

    interlocutor: ela funo da pessoa desse interlocutor. Dessa forma, Bakhtin faz uma crtica afirmando que no pode haver interlocutor abstrato, no obteramos linguagem comum com

    tal interlocutor, nem na conotao nem na denotao. Para o dilogo, necessrio perceber o meio social concreto e a ideologia do grupo social e da poca que pertencemos. No processo tradutrio se torna fundamental considerar em qual meio social e em que ideologia o texto fonte se insere. Se o tradutor no levar em conta esses aspectos, acabar produzindo um

    sentido conotativo ou denotativo, sentidos que causam repulsa a Bakhtin. A reflexo e o mundo interior de cada indivduo tm um auditrio social prprio

    estabelecido, em cuja atmosfera se constri suas dedues interiores, e suas motivaes, apreciaes. A cultura do indivduo influenciar o auditrio, criando uma cadeia ideolgica atravs da classe e da poca. A orientao da palavra em funo do interlocutor comporta duas faces: ela procede de algum e se dirige a algum. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin define palavra como produto da interao do locutor e do ouvinte. atravs da palavra que um indivduo se define em relao ao outro, coletividade; o

    territrio comum entre o locutor e o interlocutor; e atravs do signo que o indivduo expe a sua ideologia, essencial para a sua funcionalidade.

    Complementando esse conceito, no texto Gneros do Discurso, o filsofo russo afirma que as palavras so escolhidas de acordo com as especificidades dos gneros do discurso, visto que elas evidenciam a expresso tpica e ecos do gnero em que circulam. A partir disso as palavras so infiltradas no discurso, permeadas por ecos e tons de enunciao alheias. Atravs de um excerto de Bakhtin (2003:294), podemos compreender os trs aspectos essenciais da palavra para o falante: ... como a palavra da lngua neutra e no pertencente a ningum, como palavra alheia dos outros, cheia de eco dos outros enunciados; e por ltimo, como a minha palavra,

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    porque, uma vez que eu opero com ela em uma situao determinada, com uma inteno discursiva determinada, ela j est compenetrada da minha expresso. Nos dois aspectos finais, a palavra expressiva, mas essa expresso, reiteramos, no pertence prpria palavra: ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condies de uma situao real, contato esse que realizado pelo enunciado individual. Neste caso, a palavra atua como expresso de certa posio valorativa do homem individual (...) como abreviatura do enunciado.

    Esses trs aspectos so essenciais no processo tradutrio, podendo criar aspectos

    semnticos distintos entre o texto fonte e o texto alvo, como ser visto nas anlises. Na seo a seguir, dar-se- incio viso enunciativa propriamente bakhtiniana.

    1.3.2 SIGNO IDEOLGICO

    Para Bakhtin, todo produto ideolgico representa uma realidade (natural ou social), mas difere do corpo fsico, instrumento de produo ou produto de consumo porque reflete e refrata uma outra realidade. A ideologia revestida de significado e remete a algo exterior. Dizendo de outra forma, toda a ideologia um signo. Sem signos no h ideologia. O corpo fsico converte-se em signo quando simbolizado pelo princpio da inrcia e do determinismo

    por um objeto nico. A imagem artstico-simblica ocasionada por um objeto fsico tambm um produto ideolgico. Os produtos de consumo (po e vinho comunho crist) e os instrumentos de produo (foice e martelo da Unio Sovitica) podem ser signos ideolgicos, mas no apagam a sua funo. Eles existem paralelamente ao universo dos signos, que um universo particular.

    Os signos so tambm objetos naturais, especficos e podem adquirir um sentido que ultrapasse suas prprias particularidades. O signo existe a partir de uma realidade, mas tambm faz a reflexo e refrao de outra. Desta forma, o signo e a ideologia possuem uma relao mtua.

    O signo ideolgico , ento, caracterizado pela materialidade, pela reflexo/refrao e pelo sentido. A materialidade do signo (som, massa fsica, cor, movimento do corpo) se caracteriza pela objetividade da realidade e por sua exterioridade. A conscincia se constitui em realidade a partir desta encarnao material dos signos. E, atravs da criatividade e da

    compreenso ideolgica, busca-se o deslocamento de signo em signo para um novo signo, passando de um elo semitico para outro elo de natureza idntica, sem quebrar a existncia interior, de natureza no material e no corporificada em signos. Para Bakhtin, essa cadeia ideolgica estende-se de conscincia individual em

    conscincia individual, ligando umas s outras. Os signos s emergem, decididamente, do

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    processo de interao entre uma conscincia individual e uma outra. E a prpria conscincia individual est repleta de signos. A conscincia s se torna conscincia quando se impregna de contedo ideolgico (semitico) e, consequentemente, somente no processo de interao social. Os signos, ento, so fundamentais para a conscincia individual, para a matria de seu

    desenvolvimento, refletindo sua lgica comunicao ideolgica e interao semitica de um grupo social - e suas leis.

    O aspecto semitico e a comunicao social decorrem dessa interao feita atravs da linguagem, especificamente da palavra, que um fenmeno ideolgico e que estabelece a relao social. Citando Bakhtin, precisamente na palavra que melhor se revelam as formas bsicas, as formas ideolgicas gerais da comunicao semitica.

    Outro fator importante para entender a palavra como material semitico da vida interior, da conscincia, desprov-la de qualquer material extra corporal, pois produzida

    pelos meios do organismo individual. A palavra pode funcionar como signo interior, sem expresso externa, sendo provida de valor ideolgico, apresentando ressonncias de sentido e podendo se ressignificar. Dessa forma, as palavras so signos ideolgicos por excelncia, refletindo e refratando a realidade. A traduo uma forma clssica de refrao, pois uma

    palavra na lngua fonte pode refratar diversos sentidos na lngua alvo. Utilizando-se brevemente do trecho 5 da seo 3, temos: Pierre a achet un magntophone Paris, e a traduo correspondente Pedro comprou livros em Campinas. Poderamos ter outras tradues, como: Pedro comprou computadores em So Paulo, ou at mesmo Pedro comprou souvenirs no Rio de Janeiro. Essas diferentes formas de traduzir mostram que nenhum texto tem um sentido fixo, o tradutor que lhe define. E a refrao est sempre presente. Na seo a seguir, veremos como Bakhtin conceitua esse fenmeno to importante.

    1.3.3 TEORIA DA REFRAO

    A condio de existncia do signo bakhtiniano a reflexo e a refrao de uma outra

    realidade, diferente daquela j vista. O signo capaz de distorcer a realidade, segui-la ou apreend-la de um ponto de vista especfico, sofrendo uma avaliao ideolgica. Cada rea da

    ideologia representao, smbolo religioso, frmula cientfica, dentre outras - tem uma forma de refletir a realidade e a refrata de modo particular. a semitica que une os fenmenos ideolgicos, generalizando-os.

    O signo bakhtiniano ao estabelecer-se em um conjunto valorado mostra como ocorrem as ressonncias de sentido: a reflexo o signo como pura abstrao, a realidade. A refrao

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    uma condio necessria do signo e ocorre a partir da interferncia do sujeito na realidade. Vrias refraes podem surgir a partir de uma reflexo j que os indivduos esto cercados por ambientes ideolgicos diversos. Essa situao recorrente na traduo: a transformao de um signo de uma lngua para outra sem perder o sentido impossvel. No entanto, preciso

    que o tradutor conhea a cultura de outro grupo e reconhea e respeite as suas ideologias para escolher o signo adequado. medida que o signo posto, ele refrata vrios sentidos porque ganha o suporte do outro, num jogo constante de trocas e criao de novos elos. Na seo 3, trecho 1, temos um exemplo em que reprables traduzido como orientveis. Essa palavra adequada para o enunciado. No entanto, se o tradutor levasse em considerao o que o dicionrio francs define como reprables, ele no conseguiria recuperar o sentido proposto pelo tradutor. Verifica-se, assim, que o tradutor tem vrias opes lexicais, cabe a ele refrat-la da forma que designa apropriada.

    1.3.4 TEMA E SIGNIFICAO

    O tema e a significao, na viso de Bakhtin, constituem a enunciao. Cada um deles

    apresenta caractersticas especficas, fundamentais para a compreenso da traduo. O tema da enunciao se caracteriza por seu carter individual e no reitervel. Ele determinado

    pelas formas lingusticas da composio, ou seja, a significao, e por elementos no verbais da situao. O tema da enunciao concreto assim como o instante histrico ao qual ela pertence. Segundo Bakhtin (1995:128) Somente a enunciao tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenmeno histrico, possui um tema. Isto o que se entende por tema da enunciao. A enunciao tambm composta pela significao que, contrariamente ao tema, apresenta os elementos da enunciao como reiterveis e idnticos cada vez que so repetidos. A significao da enunciao realizada a partir do conjunto de significaes e dos elementos lingusticos que a compem. O tema e a significao precisam estabelecer laos para que um

    e outro possam conservar suas caractersticas: o tema apresenta o sistema de signos pela sua complexidade e dinamicidade e procura adaptar-se a um momento especfico, j a significao um aparato tcnico para a realizao do tema. A significao, por outro lado, pertence a um conjunto de elementos na sua relao com o todo.

    Conforme Bakhtin, o tema constitui o estgio superior real da capacidade lingustica de significar. A significao o estgio inferior da capacidade de significar. A significao

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    no quer dizer nada em si mesma, ela apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto.

    O sentido (constitudo de tema, significao e valorao), por sua multiplicidade, realiza a unio entre os interlocutores, isto , ela se mantm no processo de compreenso ativa

    e responsiva. Pode-se dizer que ela o efeito da interao do locutor e do receptor produzido atravs do material de um determinado complexo sonoro.

    O significado tambm se corporifica pelo acento de valor ou apreciativo, ou seja, o contedo objetivo pela fala sempre tem um acento apreciativo especfico. Este acento transmitido pela entoao expressiva determinada pela situao social e pelos sentidos abertos e distintos estabelecidos por enunciadores diversos. Assim, em cada enunciao h

    um sentido e uma orientao apreciativa. Alm disso, a criatividade nas mudanas de significao ocorre por causa da apreciao. Estas mudanas so um deslocamento de certa

    palavra de um contexto apreciativo para outro. Percebe-se, portanto, que o sentido apresenta algumas caractersticas bsicas: o tema

    (que irrepetvel e possui um grau de valorao); a significao (que coletiva e tem elementos reiterveis e idnticos), o acento apreciativo (que determina a entoao expressiva) e a entoao expressiva (determinada pela situao social, pela orientao apreciativa e pelos julgamentos de valor). No processo tradutrio, cabe ao tradutor captar a entoao dos signos para que consiga ressignific-los e preench-los com novos sentidos, sempre incompletos e reveladores da subjetividade. O trecho 3, da seo 3, um exemplo tpico dessa revelao da subjetividade: ao traduzir Jai vu des cousins doit recouvrir au moins deux noncs diffrents, selon que les cousins sont des insectes ou des parents por Refiz as contas com ele, deve corresponder a pelo menos dois enunciados diferentes, conforme as contas sejam operaes aritmticas ou de esfera de vidro ou metal, a ser enfiada num rosrio, nota-se que o tradutor faz uma adaptao para transmitir o sentido proposto pelo trecho original, mostrando como o signo se apresenta sempre inacabado e pronto para ser ressignificado.

    Na seo a seguir, ser apresentada a metodologia, em que est caracterizado o corpus

    de anlise, assim como a teoria a ser utilizada.

    2. METODOLOGIA

    Nesta pesquisa, de carter qualitativo, so analisados textos cientficos em francs referentes Semntica Argumentativa de Oswald Ducrot e colaboradores e sua respectiva

    traduo. O corpus constitudo por dez enunciados, sendo cinco deles em francs e cinco em

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    portugus. Seguindo a concepo bakhtiniana, o enunciado uma unidade viva da comunicao real que envolve trs caractersticas: 1) a relao do locutor e os outros interlocutores da comunicao verbal; 2) a alternncia entre o locutor e os interlocutores; 3) o acabamento especfico. O enunciado , portanto, a unidade da comunicao verbal que

    permite tratar a linguagem como movimento de interlocuo real. Os captulos dos livros so os seguintes: Les mots du discours captulo 1: Lanalyse

    de textes et linguistique de lnonciation (Ducrot, 1980) e a traduo Anlise de textos e lingustica da enunciao, e Dire et ne pas dire. Principes de smantique linguistique (Ducrot, 1972), captulos 2 e 4 - La notion de prsupposition: prsentation historique e La prsupposition dans la description smantique e as respectivas tradues A noo de pressuposio Apresentao histrica e A pressuposio na descrio semntica. Para a anlise recorre-se aos conceitos bakhtinianos como o signo ideolgico, que v o

    signo atravs do fenmeno da reflexo/refrao e tambm noo de palavra e seus trs aspectos, apresentados na seo 1.3.1. A partir desses trs aspectos, podem-se definir os trs discursos no processo tradutrio que sero analisados adiante: a palavra da lngua o dicionrio, a palavra alheia o texto fonte, ou seja, o texto de Ducrot e os ecos de outros discursos e a minha palavra o texto alvo, fruto da apropriao do texto fonte pelo tradutor.

    Outra teoria que servir de base a teoria da traduo, de Rosemary Arrojo, que define a traduo como uma leitura do texto fonte a fim de buscar o sentido na lngua alvo, uma transformao de uma lngua em outra, um texto em outro, produzindo sentidos, considerando as diferenas lingustico-culturais. Acreditamos que essas duas teorias apresentam recursos suficientes para que possamos realizar as seguintes etapas de anlise: - identificao das diferenas lingustico-culturais (em itlico); - explicao do sentido pelas teorias escolhidas (podemos utilizar as duas teorias ou somente uma, dependendo do contexto discursivo que nos apresentado); Um tradutor, assim como seus textos, deixa marcas enunciativas em seu discurso e cabe a ele buscar os recursos necessrios para a realizao de um bom trabalho. O tradutor

    no busca um texto final, pois est imerso em um processo de leitura e, a partir dele, capaz de construir sentidos para tornar-se, enfim, tradutor. A traduo envolve o domnio da lngua

    alvo e da lngua fonte assim como a aprendizagem de como se l um texto. Temos a a grande responsabilidade do tradutor perante o texto que traduz e perante o pblico para quem traduz, pois cada traduo exige do tradutor a capacidade de confrontar dois sistemas lingusticos, e esse confronto sempre nico, irrepetvel, j que as variveis so imprevisveis e os sentidos diversos.

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    3. ANLISES

    3.1 TRADUO

    As anlises de textos traduzidos so apresentadas de acordo com as diferentes obras. Comea-se a anlise com um enunciado do livro Les mots du discours captulo 1: Lanalyse de textes et linguistique de lnonciation (Ducrot, 1980) e a traduo Anlise de textos e lingustica da enunciao. Aps apresenta-se trs enunciados do captulo 4 do livro Dire et ne pas dire. Principes de smantique linguistique (Ducrot, 1972) La prsupposition dans la description smantique e a traduo A pressuposio na descrio semntica. O ltimo enunciado a ser analisado tambm do livro Dire et ne pas dire: La notion de prsupposition: prsentation historique e a traduo A noo de pressuposio Apresentao histrica.

    3.1.1 ANLISE DE TEXTOS E LINGUSTICA DA ENUNCIAO

    Trecho 1: ...Ainsi, dans la notation la plus habituelle du Calcul propositionnel, on trouve toujours, immdiatement droite dun connecteur comme et, une et une seule suite de symboles qui constitue une proposition, et de mme gauche: ce sont ces deux suites, mcaniquement reprables, qui sont conjointes par le et. (p.15) Assim, na notao mais habitual do Clculo proposicional, sempre se encontra, imediatamente direita de um conector como e, uma e uma nica continuao de smbolos que constitui a proposio e o mesmo esquerda: so estas duas continuaes, mecanicamente orientveis, que so colocadas juntas pelo e. (p.9)

    Nesse enunciado temos duas marcas de diferenas lingustico-culturais: suite traduzido

    por continuao e reprables traduzido por orientveis. Utilizando a teoria de Bakhtin percebe-se que os signos so caracterizados pela ideologia. E toda ideologia revestida de

    sentido, pois cria novos elos a partir da contribuio do outro. Dessa forma, o tradutor tambm autor do texto. Os pares de signos suite - continuao e reprables-orientveis revela que o tradutor capta as ressonncias enunciadas atravs da entoao, ou seja, estabelece uma valorao a partir da realidade a que pertence. Essa realidade sofre um processo de

    reflexo, e consequentemente, uma refrao caracterizada pelas ressignificaes possveis,

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    marca da subjetividade e da singularidade. Recorrendo noo de palavras e seus trs aspectos palavra da lngua, palavra alheia e minha palavra pode-se fazer a seguinte anlise: a palavra da lngua o significado descontextualizado que as palavras suite e reprables tm, por exemplo, no dicionrio Le Robert Micro Dictionnaire dapprentissage de la langue franaise (2006): Suite. n.f I. (Dans des loc.) 1. Situation de ce qui suit. Prendre la suite de qqn, lui succder (...) 2. Ordre de ce qui se suit en formant un sens. La suite de phrases dun texte. (...) Reprables. n.m. repaire.1. Marque, signe... utilis pour retrouver un endroit dans un travail avec prcision. Tracer des repres sur des pices de bois. Choisir un repre. (...)

    A palavra alheia o sentido proposto por Ducrot, assim como outros discursos que ecoam suas vozes. Tem-se a minha palavra, a palavra do tradutor que se apropria do texto fonte e estabelece ressignificaes no texto alvo: suite traduzido por continuao e reprables traduzido por orientveis. Acredita-se que a proposta do tradutor no caracteriza de forma alguma um erro, pois ele considera o contexto da obra de Ducrot. Assim, o tradutor enfatiza sua singularidade e o seu modo de ler e reinventar o discurso.

    3.1.2 A PRESSUPOSIO NA DESCRIO SEMNTICA

    Trecho 2:

    Il reste voir maintenant lorganisation interne donner cet ensemble de connaissances qui constitue la description smantique . Elles risquent en effet dtre trs

    htrognes, voire htroclites. Car on devra y loger, outre des connaissances habituellement appeles linguistiques, un certain nombre de lois dordre psychologique, logique ou sociologique, un inventaire des figures de style employes par la collectivit qui parle la langue dcrite, avec leurs conditions dapplication, des renseignments aussi, sur les diffrentes utilisations du langage dans cette mme collectivit. Comment rendre compte autrement du fait que lnonc Quel beau temps ! puisse, dans certaines circonstances, avoir peu la mme valeur que Le mauvais temps !, dans dautres, tre compris comme Nous navons rien nous dire...etc Ou encore, comment expliquer que ltiquette Ouvert le mardi, la devanture dun magasin, se comprend tantt comme ouvert mme le mardi , tantt comme ouvert seulement le mardi . Si lon veut, pour chaque nonc, prvoir linfinit des significations que lui donne linfinit de contextes possibles, il faut introduire dans le rectangle par lequel nous avons figur la description smantique, des renseignements traitant,

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    peu de chose prs, de omni re scibili. Quest-ce que la linguistique va gagner cette confusion ? (p.110)

    Resta ver, agora, a organizao interna a ser dada a esse conjunto de conhecimentos que constitui a descrio semntica. Eles correm, com efeito, o risco de ser muito heterogneos, para no dizer heterclitos. Pois nessa organizao ser preciso abrigar, alm

    dos conhecimentos habitualmente chamados lingusticos certo nmero de leis de ordem psicolgica, lgica ou sociolgica; um inventrio das figuras de estilo empregadas pela coletividade que fala a lngua descrita, com suas condies de aplicao, e com informaes tambm sobre as diferentes utilizaes da lngua nessa mesma coletividade. Como dar conta, sem isso, do fato, de que o enunciado Que dia bonito! pode, em certas circunstncias, ter quase o mesmo valor de Que dia horrvel!; e em outras circunstncias ser compreendido como No temos nada a nos dizer... etc? Ou ainda, como explicar o fato de que o cartaz Aberto noite na porta de um restaurante, se compreenda ora como aberto somente de noite ora como aberto tambm de noite? Se quisermos, para cada enunciado, prever a infinidade de significaes que lhe d a infinidade dos contextos possveis, cumprir

    introduzir, no retngulo por meio do qual representamos a descrio semntica, informaes que tratam praticamente de omni re scibili. O que que a lingustica pode ganhar com essa confuso? (p.121)

    Nesses enunciados percebem-se dois signos com valorao diferentes: langage traduzido por lngua e o enunciado Ouvert le mardi, la devanture dun magasin, se comprend tantt comme ouvert mme le mardi , tantt comme ouvert seulement le mardi traduzido por Aberto noite na porta de um restaurante, se compreenda ora como aberto somente de noite ora como aberto tambm de noite? Para a anlise da primeira distino lingustica (langage-lngua) pode-se afirmar que ela confirma a ideia de Bakhtin: cada discurso apresenta uma pluralidade de sentidos visto

    que o outro interfere o tempo todo no discurso do tradutor, dada a incompletude de signos ideolgicos. Nenhum sentido mais proeminente que o outro, todos tm seu valor. Outra

    anlise possvel atravs da noo de palavra: na palavra da lngua, ou seja, no dicionrio v-se o seguinte sentido:

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    Langage n.m. I. 1. Fonction dexpression de la pense et de communication entre les hommes, mise en oeuvre par la parole ou par lcriture. Etude du langage. linguistique. Le langage et les langues.

    Considerando esse sentido fora do contexto discursivo, tem-se uma potencialidade de sentido. No entanto, a palavra alheia o texto em francs de Ducrot e os ecos de outros discursos possui outro valor semntico, pois est em um contexto de uso da lngua: a linguagem, para o linguista francs, engloba a lngua (sistema) e a fala (uso desse sistema). A minha palavra, a palavra do tradutor, apresenta um conceito distinto daquele do texto base, visto que a lngua traduzida como linguagem. Salienta-se que esse trabalho no procura julgar as escolhas do tradutor, apenas mostra a forma como ele interfere no texto, deixando seus rastros dialgicos. No segundo enunciado, Ouvert le mardi, la devanture dun magasin, se comprend tantt comme ouvert mme le mardi , tantt comme ouvert seulement le mardi traduzido por Aberto noite na porta de um restaurante, se compreenda ora como aberto somente de noite ora como aberto tambm de noite?,podemos usar o conceito de dialogia aliado teoria de traduo de Rosemary Arrojo. Verificamos que o segundo enunciado no apresenta somente caractersticas lingusticas, mas diz respeito tambm s diferenas culturais entre Brasil e Frana recuperadas pelo tradutor. Conforme Arrojo (1986), um bom tradutor no necessita somente conhecer as duas lnguas em questo, mas tambm as culturas para que no cometa desvios de sentido. Pensamos que a adaptao do tradutor para a realidade

    brasileira possibilita uma compreenso para o pblico leitor. Utilizando a teoria bakhtiniana, pode-se afirmar que o tradutor utiliza suas experincias e vises de mundo e tambm das relaes do enunciado com outros j constitudos para moldar o sentido. Nesse caso, nota-se que o tradutor, ao adaptar os signos do texto fonte para signos compreensveis para o leitor do

    texto alvo, teve a capacidade de reconhecer que no so todos que sabem que no comum os restaurantes abrirem s teras-feiras na capital francesa. Quando h a troca de mardi por noite se preserva o sentido e tambm se marca a subjetividade do tradutor, um ressignificador do sentido.

    Trecho 3

    Tel quil apparat dans le schma de la pIII, le composant linguistique prend pour point de dpart les noncs considrs hors de tout contexte, et leur assigne des significations. En quoi

    consistent donc ces noncs ? Il ne saurait sagir des suites de sons ou des lettres

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    perceptibles. Pour deux raisons au moins. La premire est que nous serons souvent obligs dadmettre quune mme forme matrielle manifeste plusieurs noncs distincts: nous dirons en ce cas quelle est ambigu. Pour prendre un exemple grossier, la suite, phonique ou crite, correspondant Jai vu des cousins doit recouvrir au moins deux noncs diffrents, selon que les cousins sont des insectes ou des parents. (p.113) Conforme aparece no esquema da p.122, o componente lingustico toma como ponto de

    partida os enunciados considerados fora de qualquer contexto e atribui-lhes [sic] significaes. Em que consistem, pois, esses enunciados? No pode tratar-se de sequncia de sons ou letras perceptveis, pelo menos por duas razes. A primeira a de que seremos frequentemente obrigados a admitir que uma mesma forma material manifesta vrios

    enunciados distintos: diremos, nesse caso, ela ambgua. Para tomar um exemplo grosseiro, a sequncia, fnica ou escrita correspondente a Refiz as contas com ele, deve corresponder a pelo menos dois enunciados diferentes, conforme as contas sejam operaes aritmticas ou de esfera de vidro ou metal, a ser enfiada num rosrio. (p.124)

    Nesse trecho tem-se: Jai vu des cousins doit recouvrir au moins deux noncs diffrents, selon que les cousins sont des insectes ou des parents traduzido por Refiz as contas com ele, deve corresponder a pelo menos dois enunciados diferentes, conforme as contas sejam operaes aritmticas ou de esfera de vidro ou metal, a ser enfiada num rosrio. Acredita-se que se pode usar a teoria enunciativa e a teoria da traduo. Pela teoria de Arrojo (1986) nota-se que o tradutor fez a adaptao para que o pblico brasileiro compreendesse. Acredita-se, conforme Arrojo (1986), que algumas barreiras culturais devem ser quebradas pelo tradutor, a fim de construir o sentido proposto pelo autor. Sabemos que a adaptao necessria e uma possibilidade de traduo, restabelecendo o sentido entre o texto fonte e o texto alvo assim como fazendo um elo entre tradutor e leitor. Para uma explicao via Bakhtin, pode-se afirmar que a diversidade tradutria marcada pela refrao do signo, em que vrios sentidos so articulados. Este fato ocorre porque o tradutor usa a sua

    expressividade, a sua valorao, as suas experincias, as suas ideologias para que possa construir um sentido, que ressignificado cada vez que enunciado. Com a noo de palavra,

    tem-se a palavra da lngua

    cousin: n. 1. Se dit des enfants et des descendants de personnes qui sont frres et soeurs. 2.moustique.

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    A palavra alheia, o texto base, nesse caso, idealiza o sentido do dicionrio. A caracterstica do dicionrio mostrar os sentidos das palavras mais usadas pelos falantes em determinados contextos. Dessa forma, palavras dicionarizadas so cristalizadas e definidas. A minha palavra, a apropriao do tradutor, define cousin como contas. A adaptao do tradutor revela que o signo em francs, quando traduzido para o portugus, uma potencializadora de sentido. A ambiguidade e o sentido transparecem no momento em que cousin substitudo

    por contas (contas aritmticas e contas de um rosrio)

    Trecho 4 Les rgles dont il va tre question en commun de produire un effet de sens que nous avons

    propos ailleurs dappeler sous-entendu. Une premire caractristique du sous-entendu est sa dpendance par rapport au contexte, son instabilit. En disant au patron dun hotel Ces

    matins, les croissants taient frais, on laisse entendre quils taient secs les jours prcdents. Mais il est impossible de formuler une rgle: En employant un nonc de la forme Au moment t, lobjet A a la proprit P,on donne toujours penser que A a la proprit P ce seul moment. Car lnonc prcdent peut trs bien tre utilis par le patron, sur le point dannoncer que le lendemain, par suite de la grve des boulangers, il ne pourra pas, exceptionnellement, servir des croissants frais. On peut dautre part facilement imaginer un client qui, aprs une journe passe lhtel, numre ses griefs: Ce matin, les croissants taient secs; au djeuner, la viande tait dure Cest une des raisons pour lesquelles nous rservons au composant rhtorique, qui connat les contextes, le calcul des sous - entendus. Si nous introduisions ds le composant linguistique la rgle prcdente, il faudrait donner au composant rhtorique le moyen de prvoir les exceptions imposes par le contexte ce qui ne simplifierait en rien la description totale. (p.131)

    As regras de que vamos tratar tm em comum o fato de produzirem um efeito de sentido que propusemos alhures chamar subentendidos. Uma primeira caracterstica do subentendido

    sua dependncia em relao ao contexto, sua instabilidade. Dizendo ao gerente de um hotel Esta manh o caf estava quente, d-se a entender que estava frio nos dias anteriores. Mas impossvel formular uma regra: Ao empregar um enunciado da forma No momento t, o objeto A tem a propriedade P, sempre se d a entender que A tem a propriedade P somente nesse momento. Pois o enunciado precedente pode muito bem ser empregado pelo prprio gerente, prestes a anunciar que no dia seguinte, em consequncia de uma falha de abastecimento de gs, no poder, excepcionalmente, servir caf quente. Por outro lado,

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    pode-se facilmente imaginar um hspede que, depois de um dia passado no hotel, enumera suas crticas: Esta manh o caf estava frio; na hora do almoo, a carne estava dura... Eis uma das razes pelas quais reservamos ao componente retrico, que conhece os contextos, o clculo dos subentendidos. Se introduzssemos desde o componente lingustico a regra

    precedente, seria preciso dar ao componente retrico o meio de prever as excees impostas pelo contexto o que no simplificaria em nada a descrio total. (p.142)

    Verificamos nesse trecho trs marcas de traduo decorrentes de exemplos: Ces matins, les croissants taient frais, on laisse entendre quils taient secs les jours prcdents traduzido por Esta manh o caf estava quente, d-se a entender que estava frio nos dias anteriores; Car lnonc prcdent peut trs bien tre utilis par le patron, sur le point dannoncer que le lendemain, par suite de la grve des boulangers, il ne pourra pas, exceptionnellement, servir des croissants frais traduzido por Pois o enunciado precedente pode muito bem ser empregado pelo prprio gerente, prestes a anunciar que no dia seguinte, em consequncia de uma falha de abastecimento de gs, no poder, excepcionalmente, servir caf quente e Ce matin, les croissants taient scs; au djeuner, la viande tait dure traduzido por Esta manh o caf estava frio; na hora do almoo, a carne estava dura.... Para explicar essas marcas, pensa-se em aplicar o procedimento de traduo de Arrojo (1986) e o conceito de reflexo/refrao. Arrojo (1986) afirma que o conhecimento das diferenas lingustico-culturais um dos fatores essenciais para que o tradutor seja promissor em seu ofcio. A adaptao, como foi vista no trecho anterior, no demonstra um erro ou um desvio, mas uma forma de traduzir, uma das ferramentas que servem de auxlio para o escultor das palavras. A partir da teoria dialgica, pode-se evocar os seguintes enunciados: o hbito de comer croissants pela manh legitimamente francs, o hbito de tomar caf legitimamente brasileiro. O tradutor buscou em seu conhecimento de mundo as informaes necessrias para fazer uma traduo coerente. Assim, a criao de novos elos do material para o simblico e do simblico para o material ocorre por causa da interveno de

    um discurso no outro.

    3.1.3 A NOO DE PRESSUPOSIO: APRESENTAO HISTRICA

    Trecho 5 Ainsi donc, si on utilise, dans la recherche des prsupposs, les critres signals par Strawson

    et Collingwood, on ne peut pas les considrer comme des conditions dinformativit. La

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    rciproque est dailleurs vraie. Dincontestables conditions dinformativit ne possdent pas cette rsistance la ngation et linterrogation qui est une des manifestations les plus spectaculaires de la prsupposition. Que lon considre par exemple: 16. Pierre a achet un magntophone Paris. Si vous tes convaincu que Pierre na pas achet de magntophone, de quoi pourriez-vous tre inform lorsquon vous dit quil en a achet un Paris? Or on vrifie facilement que la

    ngation Pierre na pas achet de magntophone Paris, et linterrogation Est-ce que Pierre a achet un magntophone Paris? ne maintiennent en rien quil a achet un magntophone. La ngation, par exemple, devrait tre paraphrase ici par Ou bien Pierre na pas achet de magntophone, ou bien il la achet ailleurs qu Paris. (p.58)

    Assim, pois, utilizando no estudo dos pressupostos, os critrios apontados por Strawson e

    Collingwood, no se pode consider-los como condies de informatividade. A recproca, porm, verdadeira. Condies de informatividade incontestveis no possuem essa resistncia negao e interrogao que uma das manifestaes mais espetaculares da pressuposio. Consideremos por exemplo:

    16. Pedro comprou livros em Campinas. Se estivessem convencidos de que Pedro no comprou livros, de que poderiam ser informados

    quando lhes dissessem que ele comprou livros em Campinas? Ora, verifica-se facilmente que a negao Pedro no comprou livros em Campinas e a interrogao Pedro comprou livros em Campinas? no sustentam necessariamente que ele comprou livros. A negao, por exemplo, deveria ser parafraseada aqui por Ou Pedro no comprou livros, ou comprou-os em outro lugar que no Campinas?

    Nesse trecho utilizaremos a teoria de Arrojo (1986), enfatizando a questo cultural e lingustica. Nesses enunciados, percebem-se os seguintes signos: Pierre a achet un magntophone Paris por Pedro comprou livros em Campinas; Pierre na pas achet de magntophone por Pedro no comprou livros em Campinas; Est-ce que Pierre a achet un magntophone Paris? por Pedro comprou livros em Campinas?e Ou bien Pierre na pas achet de magntophone, ou bien il la achet ailleurs qu Paris por Ou Pedro no comprou livros, ou comprou-os em outro lugar que no Campinas? Como afirma Arrojo (1986), o tradutor no deve apenas usar dos conhecimentos das duas lnguas em questo, ele deve ter domnio tanto de uma como da outra em seus aspectos culturais. Sabe-se

    que tanto a lngua francesa como a lngua portuguesa reconhecem essas duas palavras, mas o

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    tradutor usou a adaptao como uma forma de estabelecer um vnculo com seu pblico leitor. A partir da teoria dialgica se pode constatar que a reflexo/refrao so conceitos flutuantes, pois no h no uso da lngua sentidos pr-determinados, os sentidos so vrios devido ao contexto discursivo, a relao locutor e interlocutor e aos elos discursivos existentes. Dessa

    forma, nenhum signo pode substituir o outro j que cada um forma o sentido a partir do tema (irrepetibilidade), significao ( repetibilidade, coletividade), acento apreciativo ( entoao expressiva) e a entoao expressiva ( valorao do signo por determinada situao social e pela orientao apreciativa).

    Verifica-se, portanto, que todos os signos so caracterizados pelas suas especificidades e seus sentidos singulares que revelam as escolhas do tradutor, um ser subjetivo que carrega no seu discurso realidades refletidas, refratadas atravs da sua tomada de deciso. A ressignificao sempre revela o sujeito como autor do seu prprio discurso, sendo o acabamento e a conclusibilidade iluses que procuram tornar invisveis as vrias subjetividades presentes nos signos ideolgicos.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    Verifica-se, portanto, que o acabamento e a conclusibilidade, entendidas como

    sentidos fechados, isentos de quaisquer intervenes, no existem. Para Arrojo (1986), o sentido de um texto traduzido depende das ferramentas usadas pelo tradutor. Se ele aplic-las adequadamente, o sentido no apenas ter marcas de subjetividade, mas de algum que antes de tradutor, um eterno leitor-aprendiz. Para Bakhtin (1995), o sentido sustentado pelo signo ideolgico, revestido de entoao expressiva. Essa entoao caracteriza-se pela valorao e o tradutor precisa capt-la no processo de transformao de seu texto, perceber as ressonncias para ter um texto estvel, ou seja, desconstruir o desnvel que h de uma lngua para outra.

    O tradutor trabalha o signo que, segundo Bakhtin, no pode ser entendido como pura

    abstrao, pois capaz de criar diversas refraes da realidade. As refraes so caracterizadas pelas possibilidades de ressignificaes que so marcadas por outros discursos,

    pelo conhecimento de mundo e pelas posies valorativas do autor-tradutor. No processo tradutrio, percebe-se a expressividade do tradutor. Nenhum tradutor invisvel na sua obra e nenhuma palavra construda e acabada. Bakhtin acredita na desconstruo e no inacabamento de um texto traduzido, pois no existe um potencial texto nico dos textos. O

    texto mostra a subjetividade e as escolhas do tradutor atravs dos signos escolhidos. Dessa

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    forma, traduzir no promover igualdade lingustica entre original e traduo, mas implica transformar o original pela ao do sujeito na linguagem. Acredita-se que estudos nessa linha podem contribuir para a valorizao do tradutor, um estudioso da linguagem que marca a sua posio de sujeito a cada signo que utiliza, produzindo sentidos.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    ABSTRACT: This article aims to study the translation process and its functionality within the perspective of Mikhail Bakhtin about the conception of word, reflexion and refraction of the sign. Another perspective is the Translation Theory, by Rosemary Arrojo. In order to illustrate this research, the source text written by Oswald Ducrot and his collaborators was used, researchers of the language who develop the Theory of Argumentation within Language and its respective translations. Through a brief analysis of words of the target text and words of the source text, the study aims to show that no translation can be totally built and finished because besides the fact that one language can not recover another one, it was noticed that the expressiveness of the translator, inevitably, comes out in the translated text. KEYWORDS: translation process; word; refraction; expressiveness.

    Recebido no dia 30 de novembro de 2010. Artigo aceito para publicao no dia 28 de fevereiro de 2011.