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REVISTA DE ARQUEOLOGIA VOLUME 26 _ NUMERO 1 _ JULHO 2013

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REVISTA DE ARQUEOLOGIAVOLUME 26 _ NUMERO 1 _ JULHO 2013

Capa: Tatiane Gama

REVISTA DE ARQUEOLOGIAVOLUME 26 _ NUMERO 1 _ JULHO 2013 _ ISSN 0102-0420

REVISTA DE ARQUEOLOGIAVOLUME 24 _ NUMERO 1 _ JULHO 2011 _ ISSN 0102-0420

Conselho EditorialAbdulay CâmaraAdriana S. DiasAstolfo Gomes de Mello AraujoAlberico Nogueira de QueirozAndré P. ProusAndré O. RosaClaudia Rodrigues Ferreira de CarvalhoDenise P. SchaanEduardo G. NevesFabíola A. SilvaGilson RambelliGislene MonticelliGustavo PolitisJoão Pacheco de Oliveira FilhoJosé Lopez MazzLoredana RibeiroLuiz Cláudio SymanskiLuiz OssterbeekMarco Aurélio Nadal De MasiMichael HeckenbergerSheila Mendonça de SouzaTania Andrade LimaVeronica Wesolovski

A Revista de Arqueologia, fundada em 1983 pela Profª Maria da Conceição M. C. Beltrão e editada originalmente pelo Museu Paraense Emilio Goeldi/CNPq, é uma publicação oficial e semestral da Sociedade de Arqueologia Brasilieira - SAB.

Dados Internacionais de Catalogação

Diretoria da SABSociedade de Arqueologia BrasileiraPresidenteGilson Rambelli – Universidade Federal de Sergipe Vice-PresidenteMarcia Bezerra - CNA/Iphan/Universidade Federal do Párá 1ª SecretáriaSuely Amancio Martinelli – Universidade Federal de Sergipe2º SecretárioLuis Cláudio Symanski – Universidade Federal de Minas Gerais1ª Tesoureira:Loredana Ribeiro - Universidade Federal de Pelotas2ª Tesoureira:Rosiclér T. da Silva - Universidade Federal do PiauíComissão de Seleção:Andrés Zarankin – Universidade Federal de Minas GeraisFabíola Andréa Silva – Universidade de São PauloFlávio R. Calippo – Universidade Federal do PiauíComissão EditorialLucas Bueno – Universidade Federal de Santa CatarinaAdriana Schmidt Dias – Universidade Federal do Rio Grande do SulEdithe Pereira – Museu Paraense Emilio GoeldiConselho FiscalDilamar Cândida Martins – Universidade Federal de GoiásAlbérico Queiroz – Universidade Federal de Sergipe Cláudia Rodrigues-Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu de Arqueologia e EtnologiaUniversidade de São PauloAv. Prof. Almeida Prado, 1466São Paulo - SP - Brasil05508-900

Comissão Editorial: Lucas Bueno, Adriana Dias, Edithe PereiraEditor Responsável: Lucas BuenoGestão 2011-2013

Revista de Arqueologia / Sociedade de Arqueologia Brasileira, 2013. São Paulo: SAB, 2013, V. 26, Nº1

Semestral a partir de 2008: 2011.ISSN: 0102-0420

1. Ciências Humanas. 2. Arqueologia. 3. Antropologia.4. Sociedade de Arqueologia Brasileira

SUMÁRIO

VOLUME TEMÁTIcO

ARTIGOS

RESEnhA

07 EDIToRIAl

10 ARquEoloGIA, MEMóRIA E HISTóRIA INDíGENA: uMA INTRoDução Lucas Bueno e Juliana Salles Machado

16 ARquEo-ETNoGRAFIA DE TIERRADENTRo Cristóbal Gnecco

28 TERRITóRIo, luGARES E MEMóRIA DoS ASuRINI Do XINGu Fabíola Andréa Silva 42 CoSMo-oNTolóGICA MBYÁ-GuARANI: DISCuTINDo o ESTATuTo DE “oBJEToS” E “RECuRSoS NATuRAIS” Sergio Baptista da Silva

56 SEGuINDo o FluXo Do TEMPo, TRIlHANDo o CAMINHo DAS ÁGuAS: TERRIToRIAlIDADE GuARANI NA REGIão Do lAGo GuAíBA Adriana Schmidt Dias e Sérgio Baptista da Silva

72 HISTóRIA(S) INDíGENA(S) E A PRÁTICA ARquEolóGICA ColABoRATIVA Juliana Salles Machado

86 ARquEoloGIA E ETNo-HISTóRIA NA TERRA INDíGENA lAlIMA, MIRANDA/MS Eduardo Bespalez

96 TERRITóRIoS EM DISPuTA: o PAPEl DA PESquISA ETNoARquEolóGICA NoS ESTuDoS DE IDENTIFICAção E DElIMITAção DAS TERRAS INDíGENAS GuARANI ÑANDEVA No SuDESTE Do ESTADo DE São PAulo Robson Rodrigues

112 CoRPo, CoMuNICAção E CoNHECIMENTo: REFlEXÕES PARA A SoCIAlIZAção DA HERANçA ARquEolóGICA NA AMAZÔNIA Cristiana Barreto

130 ARquEoloGIA PElAS GENTES: uM MANIFESTo. CoNSTATAçÕES E PoSICIoNAMENToS CRíTICoS SoBRE A ARquEoloGIA BRASIlEIRA EM TEMPoS DE PAC Bruna Cigaran da Rocha, Camila Jácome, Francisco Forte Stuchi, Guilherme Z. Mongeló e Raoni Valle

142 HISToRIAS DE ARquEoloGíA SuDAMERICANA DE JAVIER NASTRI E lúCIo MENEZES FERREIRA (EDIToRES). BuENoS AIRES, FuNDACIóN DE HISToRIA NATuRAl FélIX DE AZARA uNIVERSIDAD MIAMóNIDES, 2010. 239 PÁGINAS Resenhado por Adriana Schmidt Dias

146 NoRMAS EDIToRIAIS

Editor Responsável: lucas Bueno

EDITORIAL

O volume 26, número 1 da Revista de Arqueologia se constitui como um Volume Temático. Neste número temos 10 artigos, que representam parte dos trabalhos apre-sentados durante o Simpósio “Arqueologia, Memória e História Indígena”, realizado em novembro de 2012 na Universidade Federal de Santa Catarina.

O primeiro artigo, de minha autoria em parceria com Juliana Machado, apresenta as características gerais do evento que resultou neste volume, explicando seus motivos, ob-jetivos e resultados.

O segundo artigo, de autoria de Cristobal Gnecco, apresenta a dialética da construção de um conhecimento construído com base em relações não hierárquicas entre comuni-dade e academia, utilizando como exemplo um estudo de caso sobre uma proposta de gestão de um parque arqueológico na Co-lômbia, rejeitado pela comunidade indígena em cujo território foi criado.

O artigo de Fabiola Silva apresenta uma reflexão sobre o modo específico como os Asurini do Xingu apreendem o seu territó-rio na Terra Indígena Kuatinemu e quais os significados que atribuem a determinados

lugares, bem como aos vestígios materiais (arqueológicos e históricos) neles existentes, constituindo o que se pode definir como lu-gares da memória.

O quarto artigo, de autoria de Sergio Ba-tista da Silva apresenta uma reflexão sobre a experiência relativa à elaboração de três re-latórios de identificação e delimitação de terras indígenas no Rio Grande do Sul, em colaboração com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e contando com a participa-ção de profissionais oriundos de diferentes especialidades: antropólogos, arqueólogos, geógrafos, socioambientalistas, botânicos e zoólogos.

O artigo de Adriana Dias e Sergio Ba-tista da Silva apresenta as pesquisas rea-lizadas por ocasião da produção de um relatório de identificação de terras indí-genas Mbyá-guarani na região metropo-litana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Essas pesquisas, decorrentes de uma demanda dos Mbyá, resultram na iden-tificação de vários sítios da Tradição Guarani, indicando que as ocupações pré-coloniais formavam um horizonte sócio-cultural e ambiental que atual-

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mente também é manifestado pelos Mbyá-guarani.

O sexto artigo, de autoria de Juliana Machado aborda questões teórico-me-todológicas da prática arqueológica co-laborativa em comunidades indígenas. Para encaminhar essa discussão a autora apresenta uma pesquisa colaborativa en-tre os Xokleng de Santa Catarina.

O artigo de Eduardo Bespalez apresenta uma pesquisa arqueológica realizada na Terra Indígena Lalima. O autor aborda questões como território e territorialidade, dando ênfase à discussão sobre identificação e significado de lugares significativos.

O artigo de Robson Rodrigues trata de uma pesquisa sobre a ocupação Guarani no sudeste paulista. Utilizando dados etnohis-tóricos e etnoarqueológicos o autor se pro-põe a discutir aspectos da dinâmica de ocu-pação Guarani Ñandeva no vale do rio Itararé.

Cristiana Barreto apresenta algumas re-flexões sobre o papel do arqueólogo no atual contexto de discussões sobre multivocalida-de na socialização do patrimônio arqueoló-gico da Amazônia. Com base nessas refle-xões a autora apresenta uma proposta conceitual e metodológica de comunicação e transmissão de conhecimento científico mais afinada com uma arqueologia pública do século XXI.

Fechamos a seção de artigos deste volu-me com a publicação de um manifesto ela-borado por um coletivo de pesquisadores (Bruna Cigaran da Rocha , Camila Jácome , Francisco Forte Stuchi , Guilherme Z. Mon-geló , Raoni Valle) que reforçam a necessi-dade e a urgência de uma reflexão crpitica sobre a práxis arqueológica no Brasil, apon-tando para o papel político desempenhado pela disciplina no começo do século XXI, estreitamento atrelado ao processo de ex-

pansão desenfreada do grande capital pelo país que segue deixando comunidades lo-cais, já marginalizadas, em situações ainda mais precárias. Ao final do artigo publica-mos a lista com todos os signatários do ma-nifesto.

Esperamos que aproveitem a leitura e que este volume possa contribuir para uma reflexão crítica sobre o fazer arqueológico no Brasil que aponte alternativas, novos ca-minhos para a produção de um conheci-mento participativo, engajado e plural, que reconheça o papel político da Arqueologia na agenda da sociedade nacional e atue de forma efetiva na ampliação do espaço e do reconhecimento das populações tradicio-nais que ocupam o território brasileiro.

ARQUEOLOGIA, MEMÓRIA

E HISTÓRIA INDÍGENA:

UMA INTRODUÇÃOLucas Bueno1 e Juliana Salles Machado2

1- Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected] Pós-doutoranda, Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, julianasalles-

[email protected]

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 10-14 - 2013

Este volume é resultado de um simpósio realizado em 2012 sobre o tema “Arqueolo-gia, Memória e História Indígena”. O evento foi realizado em Florianópolis, na Universi-dade Federal de Santa Catarina, e contou com a presença de diversos pesquisadores nacionais e internacionais, a maior parte de-les autores deste volume. A organização des-te evento foi fruto de uma parceria entre o LEIA, Laboratório de Estudos Interdiscipli-nares em Arqueologia/UFSC, o LINTT, La-boratório Interdisciplinar de Estudos sobre Tecnologia e Território/MAE-USP e o LETT, Laboratório de Tecnologias Tradicio-nais/UFRGS. Este evento deu continuidade aos seminários do LINTT, que atingiu sua terceira edição, a primeira fora do Estado de São Paulo, unindo-se à VI Semana de Ar-queologia e Patrimônio da UFSC. Para sua concretização o evento contou com finan-ciamento CAPES e UFSC.

O tema escolhido para a realização do simpósio inicial dessa parceria - História In-dígena e Arqueologia -, tendo como eixo temático os ameríndios, buscou conjugar pesquisas etnográficas com análises mate-riais abarcando contextos atuais, coloniais e pré-coloniais. O conjunto de abordagens se desdobra em temas tais como memória, re-presentações e formas de interação, tecnolo-gia e território, cotidiano, cultura material, tradição oral/escrita, e educação e formação intelectual indígena (Fausto e Heckenberger 2011; Heckenberger 2001; Machado 2009; Neves 2006, 2001; Oliveira e Pereira 2009; Silva 2012, 2011, 2009; Silva et al. 2011, 2010, 2007; Stuchi 2010). De caráter multi-disciplinar, tais abordagens buscam com-preender a diversidade sócio-cultural destas populações atuais e pretéritas, pautando-se em reivindicações das comunidades indíge-nas com relação à memória, história e cultu-

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ARQUEOLOGIA, MEMÓRIA E HISTÓRIA INDÍGENA: UMA INTRODUÇÃO Lucas Bueno e Juliana Salles Machado

ra. A integração desses diferentes eixos tem o intuito de conferir um caráter histórico para a situação contemporânea das popula-ções indígenas, prerrogativa necessária para atuação em discussões relativas ao lugar do indígena na sociedade brasileira, sua diver-sidade e perspectivas de futuro.

A escolha deste tema se deve primeira-mente à crescente demanda das populações indígenas por pesquisas arqueológicas em seus territórios (Silva 2012, 2011, 2009; Sil-va et al. 2011, 2010, 2007; Stuchi 2010). Esta por sua vez, se deve a um crescente processo de reafirmação e reconstrução identitária que as populações indígenas vêm experimentando, também relacionado a novas delimitações das atuais terras indí-genas, numa tentativa de ampliação e res-gate de territórios ancestrais. A luta pela permanência das populações indígenas em seus territórios e pela sua continuidade cul-tural sempre fez parte da relação destas po-pulações com a sociedade nacional, no en-tanto, a interação destas práticas com a arqueologia é um processo muito recente no Brasil. O tema é, no entanto, muito dis-cutido internacionalmente, com especial destaque em países como Estados Unidos, Canadá e Austrália (Colwell-Chanthapho-nh e Ferguson 2009; Fairclough et al. 2008; Meskell 2009; Silliman 2008; Smith e Wo-bst 2005; Van Dyke 2008; Zedeño 2008, 1997), mas também está presente em ou-tros contextos.

As reivindicações das populações indíge-nas com relação à construção de sua própria história têm impulsionado uma série de mu-danças teóricas e metodológicas na arqueo-logia, etnoarqueologia e antropologia, sendo cada vez mais aceita a necessidade e impor-tância da multivocalidade na construção dos discursos científicos. No Brasil, contudo, esta demanda indígena ainda encontra pou-ca interlocução no meio acadêmico da ar-

queologia e muito menos na arqueologia consultiva. Não obstante, alguns pesquisa-dores têm demonstrado a riqueza teórico--metodológica de abordagens colaborativas com populações tradicionais, entre povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. A or-ganização de um seminário acerca deste tema permitiu um compartilhamento de ex-periências de pesquisa em diversos contex-tos brasileiros e enriqueceu o debate com pesquisadores nacionais e internacionais que têm se voltado para este tema.

O estabelecimento destas parcerias, em síntese, visa aprofundar o conhecimento sobre o passado das populações indígenas brasileiras integrando múltiplas e diversas visões em sua construção no presente. Este volume, assim como o seminário que o pre-cedeu, nos fornece a oportunidade de pen-sarmos sobre estas novas abordagens da arqueologia e da história em terras indíge-nas, proporcionando reflexões comparati-vas sobre esta construção multivocal do conhecimento.

A TEMÁTICA INDÍGENA E A ARQUEO-LOGIA EM CAPÍTULOS

Podemos sintetizar a temática deste volume em três eixos que refletem as discussões propostas aos autores no evento realizado, são elas: Memórias lo-cais e academia; Memória, laudos antro-pológico-arqueológicos e delimitação de terras indígena; e Território e Territoria-lidades.

A idéia do tema “Memórias locais e aca-demia” visa trazer a problemática da cons-trução do conhecimento por vezes confli-tantes entre acadêmicos e populações tradicionais, enfatizando as experiências de projetos de pesquisa colaborativos e a cons-trução de discursos multivocais.

Já Memória, laudos antropológico-arque-ológicos e delimitação de terras indígena,

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 10-14 - 2013Lucas Bueno e Juliana Salles Machado

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2009 b. A etnoarqueologia e na Amazônia: contribuições e

trata do papel dos arqueólogos e da arqueo-logia na realização de laudos antropológi-cos e arqueológicos e sua consequente rela-ção com a delimitação de terras indígenas.

Território e Territorialidades aborda a questão do território de maneira a abarcar tanto a construção e percepção de pertenci-mento de um sujeito à terra e à paisagem, quanto sua construção e vinculação políti-ca, como por exemplo, na demarcação de terras indígenas.

Por fim cabe registrar que durante o evento contamos com a participação de cer-ca de 100 estudantes indígenas, todos alu-nos do curso Licenciatura Intercultural In-dígena do Sul da Mata Atlântica, o que sem dúvida, trouxe uma contribuição funda-mental para o debate. Infelizmente essa par-ticipação não resultou numa participação efetiva na elaboração deste volume, mas certamente estimulou e criou uma ponte para concretizar essa parceira futuramente.

A partir destas propostas temáticas con-vidamos a todos a refletir sobre um fazer arqueológico engajado com a história indí-gena e reflexivo, aberto às diversidades de formas de pensar o tempo e o espaço, as inúmeras formas de percepção e construção de memórias locais.

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ARQUEOLOGIA, MEMÓRIA E HISTÓRIA INDÍGENA: UMA INTRODUÇÃO Lucas Bueno e Juliana Salles Machado

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2012 b O passado no presente: narrativas arqueológicas e nar-rativas indígenas. In FERREIRA, LÚCIO MENEZES. Multivoca-lidade, no prelo.

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Lucas Bueno e Juliana Salles Machado

ARTIGO

ARQUEO-ETNOGRAFIA DE TIERRADENTRO

Cristóbal Gnecco1

1- Universidad Del Cauca

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 16-27 - 2013

RESUMO: A diferença da etnoarqueolo-gia, que procura ampliar a hermenêutica disciplinaria através da utilização metodoló-gica de culturas vivas, a arqueo-etnografia que realizo neste artigo procura etnografiar os acontecimentos nos quais participa a dis-ciplina. Neste caso concreto, procuro mos-trar como a arqueologia participou de uma proposta de gestão de um parque arqueoló-gico em Colômbia, rejeitado pela comuni-dade indígena em cujo território foi criado o parque. Analiso essa rejeição desde catego-rias nativas e intento entende-la no contexto atual, mostrando os resultados de uma rela-ção não hierárquica entre a comunidade, o estabelecimento e a academia.

PALAvRAS-ChAvE: arqueo-etnografía, Cólombia, indígenas, patrimônio.

ABSTRACT: Making a difference with ethnoarchaeology, which seeks to expand disciplinary hermeneutics through the me-thodological use of living cultures, the archa-eo-ethnography I perform in this paper seeks to ethnography events in which the discipli-ne participates. In this case, I try to show how archeology partook of a management plan for an archaeological park in Colombia, rejected by the indigenous community in whose territory the park was created. I analyze this rejection from native categories and attempt to understand it in the present context, showing the results of a non-hierar-chical relationship between the community, the establishment and academia.

KEywORDS: archaeo-ethnography, Co-lombia, indigenous peoples, heritage.

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Arqueo-etnogrAfiA de tierrAdentro Cristóbal Gnecco

Em 1945 o Estado colombiano estabele-ceu o Parque Arqueológico de Tierradentro em território dos indígenas Nasa,1 no meio da reserva de San Andrés de Pisimbalá. Por anos Tierradentro, um dos três parques ar-queológicos existentes na Colômbia, tem sido um lugar emblemático para a posta em cena do discurso histórico nacional. Duran-te décadas ninguém impediu os trabalhos dos arqueólogos e do Instituto Colombiano de Antropologia e Historia (ICANH), en-carregado da administração do parque; nin-guém desafiou as suas pretensões acadêmi-cas. Tierradentro tornou-se um lugar icônico para a realização do sono arqueoló-gico: vestígios glamorosos —inigualáveis tumbas comunais pintadas e esculpidas, ce-râmica decorada, estatuas de pedra (cf. Cha-ves e Puerta 1986)— em uma localização esplêndida habitada por índios, esses sujei-tos estranhos que os arqueólogos não busca-ram conhecer mas a quem eles agradece-ram, secretamente, dar um toque de autenticidade à paisagem, um toque que re-dimiu a sua nostalgia imperialista.2 Também foi icônico por outra razão: esses índios que certificaram o autentico não estavam inte-ressados nas cosas que a eles, aos arqueólo-gos, interessavam. O circulo de interesses excludentes foi solidamente fechado: os in-dígenas e os arqueólogos conviveram em um mesmo lugar sem se atrapalhar, igno-rando-se placidamente. Os indígenas não perguntaram o que faziam esses estranhos

1- Cerca de 200.000 Nasa, cuja relação com o Estado (colo-nial e republicana) foi marcada por capitulação tanto como por rebelião, vivem principalmente na região chamada de Tierradentro, na Cordilheira dos Andes do sudoeste da Co-lômbia.2- Segundo Rosaldo (1993:69) na nostalgia imperialista os agentes do colonialismo "normalmente apresentam nostal-gia pela cultura do colonizado como era ‘tradicionalmente’ (ou seja, como era quando a encontraram pela primeira vez). A peculiaridade de seu lamento é, certamente, que os agentes do colonialismo suspiram pelas formas de vida que alteraram ou destruíram intencionalmente... um tipo particular de nostalgia, muitas vezes encontrada no impe-rialismo, na qual as pessoas lamentam a morte daquilo que elas mesmas têm transformado."

que desenterravam coisas que eles, os indí-genas, preferiam enterradas, longe de suas vidas; se o perguntaram, as respostas não foram inquietantes; se o foram, não se tra-duziram em oposição à labor dos arqueólo-gos. Os arqueólogos não perguntaram por que os indígenas ignoravam seu trabalho. Não perguntaram por que deixavam que eles, os arqueólogos, traficaram livremente com os restos daqueles que, talvez, pode-riam ser os seus ancestres. A falta de per-guntas —e a ausência concomitante de res-postas— criou as condições da relação: os arqueólogos escavaram, exibiram, arquiva-ram, deslocaram aquilo que chamaram ar-queológico; entanto, os indígenas continua-ram com as suas vidas, lutando por não sucumbir aos embates da civilização, dei-xando aos arqueólogos fazer.

Este situação idílica e ideal para os ar-queólogos começou a mudar muito antes que as mudanças foram visíveis, muito antes que os tempos de turbulência mexeram as folhas das árvores em Tierradentro. A revol-ta indígena de 1970 e a adoção do multicul-turalismo pelo Estado colombiano foram os responsáveis de que o piso sólido dos arque-ólogos começara a tremer. Os indígenas, pela primeira vez, viraram seus olhos para as coisas de interesse para os arqueólogos, desta vez não para fugir delas ou ficar longe, mas para inseri-las no âmbito de suas rei-vindicações. Em 2006, o cabildo (conselho indígena) de Calderas, uma das comunida-des que formam Tierradentro, propôs ao ICANH a co-administração do Parque Ar-queológico, apenas parcialmente concedida. Esta situação reflete o interesse atual dos Nasa pelo arqueológico, antes desdenhado por causa de prescrições culturais de longa data (Gnecco e Hernández 2008). O interes-se dos Nasa pelo parque e seus referentes arqueológicos coincidiu com sua declaração como patrimônio mundial pela UNESCO,

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 16-27 - 2013Cristóbal Gnecco

em 1995; esta declaração levou ao ICANH em 2009 a desenhar um plano de gestão “como uma ferramenta de gestão adminis-trativa, técnica, social e financeira para ga-rantir uma programação consistente, efi-ciente e sustentável das atividades que o ICANH vai desenvolver no Parque durante os próximos dez anos, exclusivamente ou em cooperação com outras instituições e or-ganizações sociais.” A proposta de este plano de gestão ocorreu em um momento de gra-de agitação social na zona que não só levou à conhecida confrontação com o Estado se-não também ao enfrentamento entre indíge-nas e os habitantes não indígenas, velhos vizinhos que agora não se reconhecem. Este artigo é um registro de acontecimentos re-centes e uma opinião cândida sobre a situa-ção na zona; é, então, uma arqueologia etno-gráfica sobre a colisão entre as memórias indígenas e a academia.

CRONOLOGIA E SORTE DE UM PLANO DE GESTãO

Para levar a cabo o plano de gestão o ICA-NH estabeleceu uns termos de referência. As lideranças indígenas da reserva de San An-drés, em cujo território está localizado o par-que arqueológico, foram convocadas a uma reunião em maio de 2009 para apresentar e discutir os termos de referência. O resultado mínimo da reunião foi que as lideranças re-jeitaram que os termos de referência não ti-vessem sido acordados com elas, especial-mente tendo em conta acordos previamente estabelecidos com ICANH em relação com consultas em caso de ações no parque, e dis-seram que em breve se pronunciariam sobre o assunto. O fizeram. Em 24 de julho de 2009 os Governadores dos cabildos do município de Inzá, também em Tierradentro, enviaram uma comunicação ao ICANH, rejeitando a proposta por inconsulta e excludente. Na carta de 24 de julho expressaram que

…se levem em conta as operações, expressões ou opiniões e conhecimentos das comunidades indígenas, represen-tadas pelas suas autoridades tradicionais, a respeito de qualquer intervenção que envolva diagnóstico, estudo, pesquisa ou investimento relacionados com os aspectos arqueológicos, antropológicos, etnográficos, lingüísticos e históricos, neste caso específico em relação ao denomi-nado Plano de Gestão Arqueológica, uma ação que será desenvolvida sem o conhecimento e consentimento pré-vio das comunidades indígenas legitimas, repositórias do direito de participar nas decisões que as afeitam, es-pecialmente se elas são científicas ou educativas. Consi-derando os aspectos anteriores, apresentamos a vocês que no âmbito do Plano de Vida das reservas e cabildos indígenas do município do Inzá estaremos analisando, discutindo e propondo as atividades relacionadas ao tema arqueológico, etnográfico e turístico. Portanto, até que seja possível a divulgação dos componentes concei-tuais legitimados pela assembléia máxima de cabidos de Inzá, qualquer intervenção anterior carece de reconheci-mento e validade jurídica e administrativa.

A carta enfatiza quatro pontos e põe de presente (a) as opiniões da comunidade so-bre assuntos que a academia e o Estado con-sideram domínio exclusivo do conhecimen-to dos especialistas; (b) o propósito de discutir estes assuntos no seu próprio marco conceitual, o Plano de Vida; (c) a legitimida-de das comunidades; e (d) a declaratória do plano de gestado do ICANH como ilícito. Pela primeira vez o instituto nacional encar-regado de proteger e promover o patrimó-nio arqueológico é confrontado por uma organização de base de uma forma muito direta e abrangente; pela primeira vez, as ações de uma instituição nacional que traba-lha dentro de um quadro legal reificado são declaradas ilegais por uma organização in-dígena.

O significado político e cultural da decla-ração de “ilegalidade” do plano de gestão do ICANH pelas lideranças deve ser entendido desde a sua cosmovisão. Os Nasa nao têm uma concepção do “mau” senão de “não bom”: ewme kayatxisa —ew/me/ka-yatxisa (bom/não tiver/que faz-pensar; o não tiver

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do bom que faz pensar; o vazio do bom no pensar faz o não bom). O que não é bom também pode ser bom na medida em que os atos que não são bons sejam bem adminis-trados. O bom e o não bom estão no fazer do pensar. Um fato o uma ação podem care-cer de ewme, quer dizer, o vazio do bom que leva a ação que carece do conteúdo de o bom. Ewme é uma palavra composta que as-sinala, ao mesmo tempo, o bom e o não bom; dali que o mau não existe. Ew denota a categoria do bom e me é o não haver que in-dica a ausência do não bom no conteúdo de uma ação. O sufixo ka denota aquilo que faz pensar no não bom enquanto yatxisa vem da raiz da palavra yatxnxi que é pensar a partir de uso da memória. Em suma, ewme kayat-xisa é o vazio do bom que faz pensar no não bom na realização de uma ação; é o ilícito, o que não deve ser e que, portanto, é rejeitado. A rejeição radica na forma de pensar que é a ação de fazer memória; a memória está sem-pre presente na tomada de decisões. Desde essa compreensão começou a se configurar a ilicitude dos atos do ICANH.3

A rejeição da comunidade aos termos de referência do plano de gestão é um desafio político e cultural a uma proposta institu-cional que ela considera prejudicial à sua independência, autonomia e cosmovisão. Para os Nasa as pretensões institucionais de realizar um plano de gestão em um parque arqueológico localizado no seu território é ilegal em mais dois sentidos: porque ignora uma autonomia constitucional (a jurisdição local), apoiada por mandatos internacionais (a Convenção 169 da OIT, por exemplo) e porque trata a temporalidade Nasa como um elemento exótico. Em uma das reuniões entre a comunidade e o ICANH uma lide-rança manifestou que “o plano de gestão e o ICANH têm que se ajustar ao tempo indíge-

3- As anotações desde o nasa yuwe, a língua dos Nasa, fo-ram feitas por Juan Carlos Piñacué.

na.” A mensagem é clara: qualquer interven-ção do Estado que ignore a participação da comunidade — não periférica, como quer o multiculturalismo, senão estrutural— care-ce de legalidade frente a sua concepção do que é legal e bom. Os Nasa rejeitaram o pla-no de gestão porque não é justo, porque cria tensões, rompendo um equilíbrio amplo e abrangente. A injustiça é confrontada pelos Nasa com a defensa do lugar, a permanência e a vida, não tanto a sua como a do territó-rio, chamado uma (mãe).

A resolução das tensões criadas pelas ações e comportamentos injustos (ilegais/ ilícitos) assim concebidos desde os domí-nios interligados da política e das crenças pode descansar no entendimento de cosmo-visões locais que permitam construir agen-das programáticas (mesmo metodológicas) que respeitem relações justas, direitas, legí-timas e legais. Esse entendimento deve co-meçar por reconhecer que os Nasa têm se-guido os ensinamentos do Manuel Quintin Lame, um líder indígena da primeira meta-de do século XX, quem desafiou duas vene-ráveis formas de dominação: a da cultura sobre a natureza e a da Ocidente sobre os índios. No manifesto de Lame (escrito em 1939, mas publicado só até 1971), ainda co-nhecido como A doutrina (Lame 2004), as conotações ocidentais negativas sobre a na-tureza —que reificaram a idéia de que a his-tória é uma longa viagem em direção até sua desaparição ontológica— assumiram um caráter positivo e afirmativo. O outro étnico falante desabou a legalidade e legitimidade do Ocidente: tornou o natural uma virtude (Lame foi educado pela natureza, a única es-cola cuja validade ele reconhecia) e deixou claro que os índios eram bons é os brancos maus. O equilíbrio perturbado por causa da maldade dos brancos sobre a bondade dos índios só poderia ser restaurada pela Lei da compensação, males divinos que cairiam so-

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patrimônio tangível e intangível enquanto que para os Nasa o “intangível” são os espí-ritos contidos no “tangível.” Não são inde-pendentes, mas inseparáveis; melhor, não podem ser conceituados de essa maneira e o nasa yuwe não tem palavras para nomeá-los como entidades separadas. O boom do patri-mônio, impulsionado pelo mercado, que ele-vou os bens “tangíveis” e “intangíveis” ao nível de riqueza explorável, violenta a cos-movisão Nasa porque objetiva o passado para torná-lo mercadoria e fica construído sobre uma concepção de história que lhe re-sulta inconcebível. Os povos indígenas na Colômbia, assim como em outras partes do mundo, estão agora preocupados com a mercantilização dos ensinamentos de seus antepassados e como têm sido reduzidos a categorias estranhas. Especificamente, a ma-neira como a indústria turística apresenta o patrimônio para a venda insulta o caráter confidencial do sagrado. Uma liderança mesmo sugeriu que “as tumbas expostas no parque arqueológico nunca deveram ter sido abertas e deveriam ser fechadas.” O tu-rismo, portanto, espera ser reavaliado e re-definido pela comunidade.

Uma lista esquemática e imprecisa de re-lações opostas —não-indígena/indígena, patrimônio/ancestral, arqueológico/sagra-do, turismo/mostrado a vender, intangível/espírito- corpo, tangível/corpo-espírito— mostra que foi prejudicial e agressivo dese-nhar um plano de “gestão” em um território indígena sem ter como elemento constituti-vo os planos de vida Nasa, precisamente onde convergem o conhecimento e pensa-mento indígenas. Assim, estabelecer a legiti-midade da perspectiva subalterna —usual-mente negada por a lei e as instituições porque a consideram ilegítima— é uma questão política e, ao mesmo tempo, uma confrontação de legitimidades ancorada a cosmovisões diferentes. Isso não pode ser

bre aqueles que maltrataram a sua gente. A convulsão retórica do Lame, política até a medula, foi a declaração mais forte já emiti-da por um indígena sobre a cosmovisão mo-derna, desvelando a historicidade de afirma-ções vernáculas voltas universais por meios coloniais. Mas sua voz foi silenciada, presa, exilada. Mais de meio século se passaria an-tes que seus ensinamentos encontraram um terreno fértil para florescer na legitimidade (política e cultural) alcançada pelas comuni-dades indígenas. Enquanto as disposições constitucionais e legais das duas últimas dé-cadas reconheceram autonomias étnicas li-mitadas e circunscritas, as comunidades pressionaram para que sua opinião fosse le-vada em conta na definição de políticas pú-blicas, mesmo em questões contenciosas que o Estado reformado não estava disposto a discutir, como o simbolismo histórico e o domínio do mercado. Nas mãos das comu-nidades esses assuntos abandonaram seus alojamentos tradicionais nos prédios dos especialistas para se tornar elementos cen-trais na definição de planos de vida, projetos para uma vida melhor, amplamente discuti-dos. Os planos de vida não são apenas pro-jetos para a vida interna das comunidades, mas também para as relações com o mundo exterior. Os Nasa consideram ilícita a ausên-cia daquilo que-deve-ser, isto é, o conteúdo legitimo duma ação. O que-deve-ser é uma ação respeitosa de o seu yatxnxi (pensamen-to). As ameaças ao yatxnxi são enfrentadas com atos que buscam preservar o seu mun-do e a sua vida coletiva. O plano de gestão do ICANH tocou aspectos sensíveis da vida Nasa e foi rejeitado; não considerou o plano de vida das comunidades; estava baseado em conceitos (patrimônio, arqueologia, na-cional, objeto, passado, parque) alheios à cosmovisão Nasa. Por exemplo, o conceito de patrimônio não existe para os Nasa. Os discursos institucionais diferenciam entre

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feito apenas apelando para princípios mo-rais ou boas intenções, tipicamente multi-culturais —a consulta prévia,4 por exemplo. Isso só pode ser firmemente estabelecido desnaturalizando as condições metafísicas e ontológicas em que a legalidade institucio-nal está baseada e mostrar que elas são o re-sultado de relações históricas específicas atravessadas por relações de poder, que são parte de uma historicidade vestida de natu-reza.

Para as comunidades de Tierradentro a ilegalidade/ilicitude dos termos de referên-cia do plano de gestão repousava sobre cos-movisões em conflito, sobre concepções di-vergentes da história. A história Nasa não fica no passado, mas no presente; ela vive em quem a enuncia, independentemente de seu status ou condição. Falar do histórico/rela-cional em termos arqueológicos com um Nasa é um diálogo desigual porque supõe que o arqueológico contem o passado, lem-brado em segmentos de tempo (o bicentená-rio da independência, por exemplo). Se o arqueológico fosse lido desde a cosmovisão Nasa —uma proposta realmente estranha porque os Nasa não compartilham o pensa-mento dos arqueólogos— haveria que dizer que ele não contém o passado, porque este é implícito e só obtém relevância no espírito. A história Nasa não tem tempo tanto como lugar. A temporalidade Nasa está ligada ao lugar: reside em seres vivos ou mortos como lugar. Os seres estão sempre no território da memória. O território como um lugar é a 4- A consulta prévia foi estabelecida pelo articulo 6 da Convenção 169 da OIT: “os governos deverão... consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições represen-tativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente.” Embora possa ser considerada um passo na direção certa (a direção da justiça social), a consulta prévia não é uma panacéia. Quando é executada em projetos de desenvolvi-mento em que grandes quantidades de dinheiro estão em jogo (e, não surpreendentemente, quando as corporações transnacionais estão envolvidas), a consulta prévia pode ser uma simulação de respeito e democracia enquanto só é uma formalidade cercada por corrupção e ameaças.

realização de que tudo o que vive lá tem vida/espírito. O tempo histórico não decor-re; só o que está no lugar acontece. O lugar de seu pensamento vive em fatos e estes de-correm. A temporalidade Nasa é resumida no conceito neesnxi (permanência): a gente não esta no tempo, mas no território.

Levar em conta a cosmovisão Nasa e as necessidades e expectativas da comunidade, em fim, a sua opinião sobre questões cen-trais para a sua vida, levou que a relação en-tre o ICANH e as pessoas de Tierradentro fosse reconsiderada em outros termos. Em setembro de 2010, a governadora e alguns membros do cabildo de San Andrés, a presi-dente da Associação de Cabildos Juan Tama e eu nos encontramos para discutir o plano de gestão impugnado, sobre a base de que o ICANH aceitava abandonar os termos de referência iniciais e que estava disposto a aceitar novos termos que satisfizeram as partes. A comunidade manifestou o seu in-teresse em participar de um amplo processo de reflexão e consulta sobre patrimônio, tu-rismo, história e território e sobre a sua rela-ção com o Estado e os seus vizinhos não indígenas. Para isso foi proposta a metodo-logia que tinha logrado uma ampla mobili-zação da comunidade em torno de questões educativas. Esta metodologia está baseada em assembléias e workshops e complemen-tada por grupos de trabalho específicos.

A discussão entre o ICANH, a academia e a comunidade tem permitido pensar uma proposta concebida e formulada desde a base, com ampla participação, para recupe-rar, reconhecer e reapropriar a memória e o conhecimento e as relações com o território ancestral de wêdx yu’ (reserva de San An-drés de Pisimbalá). Essa proposta também busca a recuperação da memória e da histó-ria da comunidade Nasa de Tierradentro; a proteção de sítios sagrados (alguns deles coincidem como o que o ICANH e os arque-

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formas nômades, a sua economia tradicio-nal, o uso de línguas vernáculas e se recusa-vam a negociar com os brancos e ao uso do dinheiro, deviam ser reduzidas pela Igreja e mantidas fora da legislação nacional; se as comunidades indígenas já haviam adotado o modelo nacional baseado na agricultura, a vida da aldeia, o uso do castelhano e o exer-cício da religião católica, sobre elas operaria a jurisdição nacional. A distinção entre indí-genas civilizados (já localizados dentro dos limites conhecidos, reduzidos e domados pela moral civilizadora do Estado-nação) e incivilizados (localizados fora desses limi-tes) estabeleceu o desinteresse do Estado pelo destino da parte mais numerosa e dife-renciada da população nativa e, em um ato de negligência irresponsável, a entregou à Igreja Católica.

As convenções sobre missões de 1888, 1908 e 1928 deram a Igreja Católica o con-trole das zonas de fronteira do país, mais da metade do território, onde morava a maior parte da população indígena. A constituição de fato de um Estado (o das missões) dentro de outro (o da república) permitiu que em áreas de fronteira (cerca de 3/4 partes da Co-lômbia ao início do século XX) a Igreja Ca-tólica fosse o poder absoluto que dominou a vida das comunidades indígenas. A emenda constitucional feita durante o primeiro go-verno de Alfonso López revogou o acordado na Concordata, mas o novo acordo assinado em 1953, no governo de Laureano Gómez, restabeleceu os direitos da Igreja, especial-mente o seu papel na evangelização dos ín-dios, continuando e acrescentando o traba-lho missionário em 18 territórios. Um deles, criado em 1921, foi a Prefeitura Apostólica de Tierradentro, com sede em Belalcázar, elevada a Vicariato Apostólico em 2000.

A violência política da década de 1950 afetou gravemente aos Nasa. A denúncia do Padre David Gonzalez (sd) mostrou como o

ólogos chamam de “sítios arqueológicos”); o fortalecimento da educação própria, levan-do em conta a relação espiritual com o terri-tório; a criação de grupos de trabalho regio-nais (pu’yaksa); e o estabelecimento de posições mais informadas sobre turismo, meio ambiente e educação. O contexto atual em que este trabalho se desenrola é comple-xo e exige um mínimo de leitura, sobre todo porque no campo da semântica, aparente-mente inofensivo, são reproduzidas as assi-metrias e as relações de força. Por exemplo, nos termos de referência do plano de gestão do ICANH as comunidades foram apresen-tadas como “adjacentes” ao parque, negando sua centralidade e reforçando o domínio institucional. Enquanto o ICANH e o esta-belecimento acadêmico seguem falando de sítios arqueológicos a comunidade fala de sí-tios sagrados. Não são conceitos intercambi-áveis , equivalentes entre uma visão de mun-do e do outra; eles são, realmente, abismos de diferença.

CONTExTO Tierradentro tem uma longa história de

desapropriação, violência e luta. Desde o sé-culo XVII, quando os espanhóis alcançaram um controle territorial precário, alguns pou-cos povoados não indígenas sobreviveram em uma área que era abertamente hostil a eles. Os missionários católicos tiveram me-lhor sorte: estavam presentes desde os pri-meiros dias da ocupação espanhola, apren-deram a língua nativa e fizeram sua doutrina nela. No final do século XIX o governo co-lombiano apoiou o seu trabalho e, inspirado pelo espírito da Concordata de 1887, produ-ziu a Lei 89 de 1890 que dividiu os índios em duas categorias: (a) “os selvagens a serem reduzidos à vida civilizada” e (b) “as comu-nidades indígenas já reduzidas à vida civil.” Esta taxonomia estabeleceu que se algumas comunidades indígenas mantinham as suas

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governo conservador do Cauca, com o apoio de mercenários, atacou duramente à popu-lação indígena de Tierradentro, punindo tentativas nascentes de organização. A cria-ção do Conselho Regional Indígena do Cau-ca, em 1971, começou a mudar o equilíbrio de forças na região. Embora a igreja conti-nuasse tendo poder, especialmente na edu-cação, e os partidos políticos tradicionais ainda puderam implantar sua máquina de clientelismo na região, a organização indíge-na adquiriu força suficiente para desafiar o poder do Estado e da Igreja. A recuperação de terras, a fim de restaurar as reservas ao seu tamanho colônia e talvez expandi-lo, juntou-se ao fortalecimento das autoridades tradicionais e da língua.

Este difícil cenário moderno pouco inte-ressou aos antropólogos. Desde a obra de Henri Pittier Fábrega (1907), o primeiro es-tudioso que trabalhou na área, até os anos 1990, os antropólogos reificaram a cultura dos Nasa e a extraíram, assepticamente, do contexto. Segundo Bernal (1953a, 1953b, 1954, 1955) é talvez o melhor exemplo. Suas bucólicas e pacíficas descrições da vida Nasa foram feitas no auge da violência Conserva-dora mas voam sobre ela sem vergonha, ig-norando o genocídio. A exceção foi Anthony Henman; no seu livro Mama Coca (1978) não só criticou a assepsia acadêmica de seus antecessores senão que mostrou as duras condições da vida dos Nasa, presos entre as políticas segregacionistas dos regimes aris-tocráticos caucanos e os assalto à mão arma-da contra os seus territórios, muitas vezes complementados por legislações que possi-bilitaram a dissolução de várias reservas. Os arqueólogos, por sua vez, estavam muito ocupados em suas escavações para notar o que estava acontecendo ao seu redor.

Desde então, muita água passou debaixo das pontes. Na década de 1970 o governo colombiano começou a lenta adoção de po-

líticas multiculturais que foram acordadas pelas instituições globais. Em 1974 começou a tomar forma uma nova moralidade nas re-lações com os indígenas. O ponto de vira-gem foi a Concordata de 1973, ratificada pela Lei 20 de 1974. Enquanto a Concordata anterior e as convenções sobre missões per-mitiram a criação de um estado dentro de um estado encarregado dos indígenas e dei-xou as mãos livres a Igreja, o novo tratado com o Vaticano apenas afirmou que “O Es-tado à Igreja cooperarão na rápida e eficaz promoção das condições humanas e sociais dos indígenas.” Ainda que os vicariatos e as prefeituras apostólicas continuassem exis-tindo e a influência da Igreja em áreas indí-genas seguiu sendo proeminente, os efeitos dos novos regulamentos do “problema” in-dígena, a partir de uma perspectiva não as-similacionista e auto-governante, foram imediatos e começaram a definir a política multicultural que seria elevada a status constitucional em 1991. A consagração constitucional dos critérios de autonomia e reconhecimento da diversidade cultural ter-minou por dar forma ao contexto atual, ca-racterizado por três elementos que devem ser levados em conta no planejamento de políticas públicas relacionadas à arqueologia e ao patrimônio: (a) a retórica generalizada do multiculturalismo, (b) o empoderamento étnico, e (c) o interesse indígena para ques-tões arqueológicas anteriormente ignoradas ou proibidas.

O cenário atual, no qual se desenvolvem a promoção e a legitimação das diversidades culturais, especialmente étnicas, é a conver-gência entre a ordem do capital e as exigên-cias locais. O surgimento de uma nova legis-lação que objetiva, precisa e estimula as fronteiras da diversidade pode muito bem ser uma forma de fragmentar a consciência de classe e a oposição ao capitalismo multi-nacional, mas também é produto da pressão

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dos movimentos sociais. Apesar de que pro-move a abertura e a compreensão entre cul-turas e subscreve as promessas de igualdade e justiça com as quais estreou a retórica mo-derna há três séculos, a academia contempo-rânea (multicultural, então) não desistiu da sua maneira como trata outras formas de produzir, transmitir e apropriar o conheci-mento. Também não renunciou a seu mono-pólio narrativo. Este fenômeno tão perto e onipresente, o multiculturalismo, faz que as disciplinas sociais que procuram superá-lo terminem alimentando-lo. Esse parece ser o caso da antropologia: apesar de condenar o colonialismo, apesar de ser a caixa de som (autonomeada) das lutas da alteridade, seu horizonte de valoração está construído sobre o destaque (distante) dos outros. Thomas (1994:89) observou que os antropólogos acreditam que os outros têm naturezas espe-cíficas e cognoscíveis, preservando o privilé-gio epistêmico do colonialismo ao mesmo tempo em que rejeitam a sua violência.

Tierradentro, especialmente San Andrés de Pisimbalá, é um cenário multicultural onde os outros reais partem do roteiro dos outros virtuais e criam conflitos que o Esta-do adjetiva com epítetos antes só dados às organizações armadas. Lá você pode ver como o Estado e seus discursos associados promovem a alteridade enquanto procuram limitá-la; quando isso não acontece, se vol-tam para a estigmatização. A educação é o melhor exemplo, pois em torno dela foram produzidos os enfrentamentos mais graves entre indígenas e não indígenas já vistos na zona. De fato, seguindo políticas estabeleci-das desde a década de 1980 e ante a mobili-zação da comunidade, o Governador do Cauca emitiu o Decreto 0591, em 2009, que abrangeu os colégios e escolas de San An-drés sob critérios étnicos de educação, ou seja, tratamentos especiais e autônomos, considerando que se tratava de estabeleci-

mentos localizados em áreas indígenas e que atendiam uma população majoritariamente indígena. O decreto foi acordado com as au-toridades indígenas, respondendo a sua luta para estabelecer o que chamam de educação própria. Porém, em abril de 2010, o Gover-nador publicou o Decreto 0102 sobre esta-belecimentos educativos indígenas, excluin-do estas instituições e violando os acordos com os Nasa de San Andrés com o argu-mento de que alguns setores da comunidade educativa estavam desconformes. A respos-ta dos indígenas foi rápida: o 22 de abril ocuparam a escola de San Andrés de Pisim-balá —cujos alunos são Nasa quanto não Nasa— em uma mobilização no âmbito do que eles chamaram de “trabalho coletivo de resistência pelo direito à educação própria.”

A ocupação do colégio ocorreu no mes-mo período de fechamento do hotel turísti-co e, um pouco mais tarde, do Parque Ar-queológico. O hotel foi fechado em junho de 2010, citando ameaças contra funcionários, e reaberto em dezembro daquele ano, em grande parte devido ao apoio mostrado pela comunidade. Entre junho e julho de 2010, o diretor do ICANH enviou comunicações ao cabildo de San Andrés, ao prefeito de Inzá e ao Diretor de Assuntos Indígenas alertando sobre os perigos que corria, em sua opinião, o patrimônio arqueológico. Parte de suas preocupações foi baseada em rumores de uma tomada do Parque Arqueológico pelos indígenas. A tomada do colégio e a tomada do parque surgiram, assim, como duas par-tes de um mesmo propósito: a reivindicação de soberania territorial, cultural e histórica das comunidades Nasa. Em 30 de agosto de 2010 o ICANH decidiu fechar o Parque Ar-queológico argumentando a incapacidade de proteger aos turistas da ameaça de vio-lência. Embora, o assunto foi lido de outra forma por várias lideranças locais: o Estado procurava limitar o radicalismo indígena

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alimentando a agitação dos vizinhos não in-dígenas, cuja vida depende em grande parte do turismo que vem para o parque. Feliz-mente o fechamento não durou muito tem-po: o parque foi reaberto em 7 de outubro desse ano. A ocupação do colégio terminou no final de 2011 através de um acordo, tipi-camente multicultural, alcançado com o Governo do Cauca: haverá duas sessões de aula, uma para os indígenas e outra para os não indígenas. Mas esta fragmentação mul-ticultural não tem porque se estender a ou-tros âmbitos, como o arqueológico. Em vez disso, um cenário diferente é possível de atingir.

ESBOçOS DE UM CENÁRIO INTERCUL-TURAL

Nestes tempos não há dúvida de que o conhecimento é, cada vez mais, um lugar de batalha, desafio e discussão. O conhecimen-to arqueológico antes inquestionável é agora objeto de luta. Os arqueólogos (e o estabele-cimento que os apóia) são questionados, junto com seu monopólio narrativo. Este desafio, geralmente originado nas organiza-ções indígenas (agora interessadas em mui-tos dos assuntos que os arqueólogos consi-deravam exclusivamente seus), pode ser respondido com argumentos multiculturais; nesse caso, o único que terá sido feito é aco-modar a disciplina as circunstâncias, tentan-do preservar seus privilégios. Também pode ser respondido com argumentos saídos do que pode ser chamado de arqueologia inter-cultural, um imenso desafio que exige aos arqueólogos abandonar seu controle (físico e retórico) do arqueológico. A relação entre a arqueologia e as comunidades locais pode ser reconstruída por uma moralidade dife-rente tecida em torno de uma agenda co-mum de questões a serem resolvidas, a me-nos importante das quais não é a dominação colonial. Isso não implica uma prática disci-

plinar diferente, talvez complementar a for-mas tradicionais de fazer, como propõe a chamada arqueologia pública; implica no-vos relacionamentos que só podem ser en-contrados fora dos portões disciplinares. A nova moralidade que pode ser construída entre as comunidades e a academia não vai surgir das entranhas da ortodoxia discipli-nar, ocupada em afiar o arsenal multicultu-ral com o qual procura canalizar a energia dos movimentos sociais em proveito pró-prio. Eu acho que surgira de situações novas, como a que está acontecendo em Tierraden-tro, do acompanhamento dos projetos de vida daqueles que sempre foram empurra-dos para as margens da modernidade —aqueles sujeitos estranhos de seu lado escu-ro, cuja exterioridade era uma condição básica para o funcionamento do projeto moderno. De esses sujeitos podemos espe-rar a maior impugnação e o trabalho de ree-dificação mais importante. O ímpeto de essa reedificação sairá de uma condição de exte-rioridade; não de um lugar intocado pela modernidade (um afora ontológico) senão desde um afora “que está, precisamente, constituído como diferença pelo discurso hegemônico. Com a apelação desde a exte-rioridade na qual é localizado, o Outro se torna a fonte original do discurso ético vis a vis a totalidade hegemônica” (Escobar 2005:36). Tal discurso ético está contra o discurso moderno —contra os discursos que o sustentaram e lhe deram substância, como a arqueologia— com a legitimidade política e histórica que dá falar/agir desde a diferença colonial e desde a exterioridade constitutiva. O Outro étnico como o afora da modernidade localiza a legalidade e legi-timidade do Ocidente no lugar onde seu mistério é desnudado: a modernidade preci-sa do ilegal por a mesma razão que o sujeito moderno precisa da alteridade para se defi-nir e limitar. A criação ocidental do legal

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esteve baseada no ilegal. No entanto, o nú-cleo exposto da questão é queimante. A rei-ficada legalidade ocidental é apenas circuns-tancialmente contornada, só exposta apenas em casos específicos enquanto é preservada em outros. Voltando a Tierradentro, desafiar ao ICANH e trazê-lo para aceitar os termos da comunidade pode ser visto como uma vitória importante mas, a longo prazo, não é tão crucial como quebrar as condições onto-lógicas e metafísicas que fazem possível a reificação do legal e do ilegal, tal como são definidos pelos discursos institucionais; não é tão crucial como estabelecer relações não autoritárias e não logocêntricas que possam preencher o vazio criado pela imposição e arrogância, pela operação irrefletida de con-cepções verticais e policiais sobre patrimô-nio, arqueologia, justiça, bem-estar.

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ARTIGO

TERRITÓRIO, LUGARES E MEMÓRIA

DOS ASURINI DO XINGU

Profª Drª Fabíola Andréa Silva1

1- Docente e Pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo. Coordenadora do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Tecnologia e Território (LINTT).

Bolsista de Produtividade CNPq (PQ 2).

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RESUMO: A Arqueologia e a Etnoarque-ologia buscam, entre vários objetivos, com-preender o modo como as populações huma-nas exploram, transformam e gerenciam as paisagens e os seus recursos e, simultanea-mente, verificar como tais comportamentos resultam na formação dos registros materiais. Neste trabalho quero contribuir para esta agenda de pesquisa, apresentando uma refle-xão sobre o modo específico como os Asurini do Xingu – um povo Tupi-Guarani que vive às margens do Xingu, no estado do Pará – apreendem o seu território na Terra Indígena Kuatinemu e quais os significados que atri-buem a determinados lugares, bem como aos vestígios materiais (arqueológicos e históri-cos) neles existentes, constituindo o que se pode definir como lugares da memória.

PALAvRAS-ChAvE: Arqueologia, Ter-ritorio, Memória, Asurini do Xingu.

ABSTRACT: Archaeology and ethnoar-chaeology have searched, among various objectives, for the understanding of the ways in which human populations explore, trans-form and manage landscapes and their re-sources and, simultaneously, verify how these behaviors result on the formation of material records. In this work I intend to contribute for this research agenda, present-ing a contribution on the specific ways in which the Asurini of the Xingu – a Tupi-Guarani population that lives at the margins of the Xingu river, Pará State – apprehend their territory within the Kuatinemu Indig-enous Land, and which meanings are attrib-uted to certain places, as well as to the exist-ing material record (archaeological and historical), constituting what could be de-fined as places of memory.

KEy-wORDS: Archaeology, Territory, Memory, Asurini of the Xingu.

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TERRITÓRIO, LUGARES E MEMÓRIA DOS ASURINI DO XINGU Profª Drª Fabíola Andréa Silva

A Arqueologia e a Etnoarqueologia bus-cam, entre vários objetivos, compreender o modo como as populações humanas explo-ram, transformam e gerenciam as paisagens e os seus recursos e, simultaneamente, veri-ficar como tais comportamentos resultam na formação dos registros materiais. Os principais temas investigados nesta pers-pectiva tem sido: 1) a disponibilidade e dis-tribuição dos recursos no ambiente (Bin-ford 1982, 1983a; Politis 1996; Smith 2003); 2) as atividades econômicas, sociais, políti-cas e culturais realizadas em nível local e regional (Kent (Ed.) 1987; Tomka 1996; Panja 2003; Hutson et. al. 2007); 3) a conti-nuidade e/ou ruptura na ocupação local e regional (Wüst 1998; Heckenberger 2001; van Gijseghem e Vaughn 2008; Fitzpatrick 2008); 4) as causas e consequências sócio--históricas e culturais dos processos de mo-bilidade que resultam tanto na formação de grandes assentamentos, quanto na dissolu-ção ou diminuição de assentamentos (Nel-son e Hegmon 2001); 5) a variabilidade dos processos de mobilidade uma vez que as sociedades são distintas (Cameron e Tomka (Eds.) 1996); 6) a complexidade das causas da mobilidade que podem estar relaciona-das com questões ecológicas, políticas, reli-giosas, ideológicas, cosmológicas, etárias, de gênero, sociais, etc (Nelson 2000). Final-mente, cabe ressaltar que várias dessas pes-quisas revelaram ser comum às populações ocuparem e reocuparem locais previamente antropizados, que já apresentavam indícios de ação humana.

No Brasil os estudos arqueológicos sobre o uso do espaço são bastante frequentes, tanto para compreender as dinâmicas das populações caçadoras-coletoras, como das populações ceramistas. No entanto, não se pode dizer o mesmo a respeito dos estudos etnoarqueológicos, que ainda são poucos, mas que têm apresentado informações inte-

ressantes sobre a dinâmica espacial de dife-rentes populações indígenas (p. ex.: Noelli 1993; Eremites de Oliveira 1996; Hecken-berger 1996; Assis 1997; Neves 1998; Wüst 1991; Silva 2000; Rodrigues 2007; Moi 2007; Bespalez 2009; Stuchi 2010; Silva e Stuchi 2010).

Neste trabalho quero contribuir para esta agenda de pesquisa, apresentando uma reflexão sobre o modo específico como os Asurini do Xingu – um povo Tupi-Guarani que vive às margens do Xingu, no estado do Pará – apreendem o seu território na Terra Indígena Kuatinemu e quais os significados que atribuem a determinados lugares, bem como aos vestígios materiais (arqueológi-cos e históricos) neles existentes, consti-tuindo o que se pode definir como lugares da memória.

SOBRE OS LUGARES SIGNIFICATIvOS Em 1982, Lewis Binford publicou “The

Archaeology of Place”, artigo onde estabele-ce parâmetros para a análise dos sítios ar-queológicos como lugares de atividades hu-manas cuja configuração e variabilidade seriam resultantes das atividades econômi-cas e sociais de captação e processamento dos recursos disponíveis no ambiente, ao longo do tempo. Este trabalho orientou vá-rias pesquisas e ainda é citado em muitas publicações sobre arqueologia espacial e da paisagem.

No entanto, desde 1982, ocorreram mui-tas mudanças na chamada “arqueologia do lugar”. Na atualidade, vários autores se de-dicam a estudar os lugares para além de seus significados em termos de organização e logística sócio-econômica. Os lugares as-sim como as paisagens passaram a ser en-tendidos como significativos, adjetivados de várias maneiras (p.ex. sagrados, perigo-sos, tradicionais, culturais) e estudados em termos de suas biografias, significados me-

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tafóricos e metonímicos, políticas, lógicas, redes, transformações e persistências (Wi-thridge 2004; Stewart et.al. 2004; Carroll et.al. 2004; Brown 2004; Bowser e Zedeño (Eds.) 2009). Assim, pode-se entender uma “arqueologia do lugar” como “aquela que se concentra sobre os modos como as pessoas comunicam significado – tanto simbolica-mente como através da ação – ao seu entor-no físico e cultural em múltiplas escalas e sobre as formas materiais que estes signifi-cados adquirem” (Zedeño e Bowser 2009:5).

As pessoas criam lugares através de suas experiências com o meio (tangível e intangí-vel), dando significados a eles e produzindo conhecimento sobre os mesmos. Os lugares tem uma dimensão individual e social, bem como agência para modelar e influenciar as ações das pessoas. Os lugares são irremedia-velmente ligados à história e à memória das pessoas e, por isso, podem também assumir dimensões políticas e identitárias (Bowser e Zedeño (Eds.) 2009; Stewart e Strathern 2003a).

O TERRITóRIO DOS ASURINI DO xINGUApós dezessete anos entre os Asurini do

Xingu, pesquisando os processos de produ-ção, uso, armazenagem, descarte, inovação, transformação da cultura material, trans-missão de conhecimentos e, além disso, par-ticipando de projetos de educação em par-ceria com Regina Polo Müller1 (Silva 2009b, 2009c, 2012a, 2012b), eu nunca havia reali-zado uma investigação mais aprofundada sobre a ocupação territorial da T. I. Kuatine-mu. Eu havia apenas documentado os vestí-gios arqueológicos encontrados na aldeia e seu entorno, registrado as interpretações Asurini sobre estes vestígios, visitado a anti-

1- Projetos financiados pelo CNPq (Cerâmicas e Trançados, Músi-ca e Dança dos Asurini do Xingu – Edital MCT/MMA/SEAP/SEP-PIR/CNPq 26/2005) e pelo PNPI-IPHAN/MINC (Documentação e Transmissão dos Saberes Tradicionais dos Asurini do Xingu – Edital 001/2005), que foram coordenados por Regina P. Müller.

ga aldeia do Kuatinemu no igarapé Ipiaçava e realizado um estudo arqueométrico com-parativo entre o material cerâmico arqueo-lógico e etnográfico existente na atual aldeia do Kuatinemu (p. ex. Silva 2000, 2002, 2003, 2008, 2009d, 2009e, 2010; Silva e Rebelatto 2003; Silva et al 2004, 2007).

Em 2007, no entanto, uma conversa com Apewu Asurini me fez perceber que o foco de minhas pesquisas estava em tempo de ser redirecionado. Ele apelou para que eu conseguisse recursos para um projeto de pesquisa com o objetivo de visitar os anti-gos locais de ocupação Asurini na T. I. Kua-tinemu. Para Apewu “os jovens precisavam conhecer a história de ocupação desta terra e assumir a responsabilidade de zelar pela sua preservação”. Com o tempo percebi que esta não era uma preocupação exclusiva de Apewu, mas tratava-se de uma demanda tanto das velhas como das novas gerações de Asurini. Os velhos queriam rever suas antigas moradas e possibilitar aos mais jo-vens o conhecimento local desta parte de sua história e os jovens, por sua vez, que-riam visitar estes antigos locais de ocupação dos seus ancestrais, que eles conheciam apenas dos relatos orais de seus pais e avós. Além disso, havia a preocupação de ambas gerações em garantir a vistoria e proteção de suas terras contra possíveis invasões de grileiros, posseiros e madeireiros. Atual-mente, esta é uma questão crucial para os Asurini que acompanham os embates rela-tivos às tentativas de invasão das terras in-dígenas nesta região paraense do Baixo--Médio Xingu e, especialmente, neste atual contexto de expectativa da construção da Hidrelétrica de Belo-Monte.

Assim, no ano de 2008, formulei o proje-to intitulado Território e História dos Asurini do Xingu. Um estudo bibliográfico, documen-tal, arqueológico e etnoarqueológico sobre a trajetória histórica dos Asurini do Xingu (sé-

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culo XIX aos dias atuais) 2. Ele foi concebido como uma proposta de pesquisa colaborati-va, que procurava compreender as transfor-mações culturais dos Asurini, desde o seu encontro com as populações não indígenas, ao mesmo tempo, para satisfazer as suas ex-pectativas em relação ao resgate do conheci-mento “dos velhos” sobre a sua trajetória e dinâmica de ocupação territorial nesta área do Xingu, mais especificamente, no entorno do Igarapé Ipiaçava. O projeto tinha três ob-jetivos principais: 1) visitar os antigos locais de ocupação Asurini, na TI Kuatinemu; 2) vistoriar partes da TI que há muito anos não era percorrido por eles e que poderia estar sendo invadido por grileiros; e 3) fazer um levantamento do potencial arqueológico desta parte da Terra Indígena.

De acordo com as primeiras informa-ções sobre os Asurini, datadas do século XIX, o local mais antigo de ocupação deste povo teria sido a região às margens do alto curso do Bacajá, de onde se deslocaram para o lado do rio Xingu devido às pressões dos extrativistas regionais e em função dos ataques das populações indígenas Kayapó. Eles, então, ocuparam a região dos igarapés Piranhaquara e Ipiaçava onde estabelece-ram, desde a década de quarenta, várias al-deias e onde, novamente, foram persegui-dos se deslocando, desta vez, para a região do igarapé Ipixuna. Eles permaneceram nessa região até serem expulsos pelos Ara-weté que para lá se deslocaram – por volta da década de sessenta – empurrados pelos grupos indígenas Kayapó e Parakanã. Des-locando-se novamente em direção ao igara-pé Ipiaçava, a população Asurini ali se fixou dispersando-se em pequenos grupos cons-tituídos de parentes e agregados. Parte de-les se estabeleceu em uma nova aldeia de-nominada Taiuviaka, localizada no interior

2- Projeto de pesquisa FAPESP (Processo 2008/58278-6).

da mata, enquanto os demais se dispersa-ram pela área, formando pequenos acam-pamentos localizados próximos das mar-gens do igarapé Ipiaçava.Todos estes locais de ocupação eram interligados por cami-nhos, fazendo com que os Asurini manti-vessem constante contato entre si, apesar desta estratégica dispersão que, segundo eles, os tornava menos vulneráveis aos ata-ques inimigos.

Diante da situação de perigo eminente e já debilitados pelas perdas populacionais que vinham sofrendo ao longo dos anos, os Asurini finalmente se renderam ao contato com os brancos, acreditando ser esta a so-lução para evitar o seu extermínio (Muller, 1984/85:92-95, 1990:36-40; Ribeiro, 1982:27; Viveiros de Castro, 1986:166-167; Fausto, 2001:39-101). Assim em 1971, os Asurini do Xingu foram contatados oficial-mente, primeiramente, pelos padres Anton e Karl Lukesch e, posteriormente pela FU-NAI, a partir da frente de atração liderada por Antônio Cotrim Soares (Lukesch 1985). Logo após o contato, a população Asurini ficou distribuída em duas aldeias localizadas às margens do igarapé Ipiaçava (Akapepugui e Kuatinemu). A partir de 1972, no entanto, ela passou a ocupar uma única aldeia (Kuatinemu), na margem di-reita do igarapé onde permaneceu até 1985 quando se transferiu para o local em que se encontra hoje a nova Aldeia Kuatinemu (Coudreau, [1897]1977:33-34; Muller, 1984/85:91-92, 1987:37-42, 1990:35-40; Nimuendajú, 1948:225).

A região do igarapé Ipiaçava foi a última terra ocupada pelos Asurini no período pré e pós-contato. Os acampamentos e aldeias que nela se localizam são testemunhos deste mo-mento de suas vidas que, em grande parte, se caracterizou pelas fugas, belicosidade com outros povos e morte de seus entes queridos. No entanto, os Asurini não querem esquecer

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Figura 1. Mapa da Terra Indígena Kuatinemu com a localização dos sítios arqueológicos e dos assentamentos e acampamentos dos Asurini do Xingu.

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esta história e muito menos perder esta terra tendo em vista que ela foi o lugar onde eles puderam prosseguir com o seu modo de vida. Como disse um jovem líder Asurini:

“É muito bom conhecer nossas aldeias e relembrar dos nossos antepassados, daquilo que eles fizeram, como eles escaparam dos ataques, como foi o encontro deles com os brancos. É muito importante conhecer o nosso passado” (Ajé Asurini).

Assim, relembrar e reviver a história de ocupação da T. I. Kuatinemu através da ex-periência sensorial com os lugares e a paisa-gem, se configura como uma ação simbólica que remete à tradição oral e à memória e que, portanto, tem conteúdo e significado identitário.

OS LUGARES DA MEMóRIA NA T.I. KUATINEMU

Em 2010, durante doze dias, subimos o Igarapé Ipiaçava e acampamos às suas mar-gens para localizar as antigas aldeias e acam-

pamentos (Silva et al 2011). O grupo foi composto por 55 pessoas (50 adultos e crianças Asurini, 3 arqueólogos, 1 auxiliar de saúde, 1 cozinheira e 1 professora da es-cola indígena). Durante este período locali-zamos três antigos assentamentos e um acampamento Asurini, todos situados sobre ocupações pretéritas não-Asurini e áreas com Terra Preta Antropogênica (TPA) (Fi-gura 1). Durante este tempo, os Asurini fo-ram fundamentais na determinação dos lo-cais de acampamento e na localização dos antigos assentamentos e acampamentos de seus antepassados. Os velhos moradores das aldeias e acampamentos mostraram uma memória muito precisa sobre a localização e a distribuição das estruturas e dos espaços domésticos e coletivos nestes locais de habi-tação, sendo que vestígios materiais foram facilmente detectados através das prospec-ções. Além disso, os assentamentos ficavam em locais visivelmente domesticados em

Figura 2. Jovens Asurini auxiliam no trabalho de campo arqueológico. Foto Fabíola Andréa Silva (2010)

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termos da paisagem. Inúmeras espécies ve-getais, a exemplo de cuieiras, bananeiras, li-moeiros, urucuzeiros e pés de algodão, são comuns nos antigos assentamentos Asurini, assim como as chamadas capoeiras; eles, in-clusive, revisitam eventualmente alguns des-tes locais antigos para coletar estes recursos.

A pesquisa arqueológica foi eminente-mente oportunística e conduzida para con-templar os interesses da pesquisadora e dos Asurini. Assim, todos os seus antigos locais de ocupação ao longo do Ipiaçava foram visita-dos (Aldeia Kuatinemu Velho, Aldeia Akape-pugui, acampamento Itapemuu, Aldeia Taiu-viaka) e pesquisados do ponto de vista arqueológico (coletas superficiais, tradagens e poços-teste) – como ressaltei anteriormente, todos estes locais eram sítios arqueológicos (Figura 2). Os Asurini auxiliaram nos traba-lhos arqueológicos tanto na definição dos lo-cais de coleta e prospecção, como nas ativida-des de coleta, escavação, peneiramento e acondicionamento do material Asurini e de sub-superfície. Na Aldeia Kuatinemu Velho, inclusive, eles nos preveniram de que não se poderia coletar ou intervir no espaço onde es-tavam os vestígios (p.ex. esteios, vasilhas cerâ-micas) da tavyva (casa comunal). Além disso, explicaram a importância daqueles que ali estavam enterrados e o modo como até hoje eles interagiam com os mortos e aquele lugar.

Kwain Asurini3: Você está olhando para o cemitério. É proibido perturbar este lugar. Vários pajés estão enterrados aqui. Este era o lugar onde estava a tavyva, a casa grande.

Manduca Asurini4: Nós não perturbamos este cemitério porque os nossos pajés mais poderosos estão enterrados aqui. Eles costumavam matar veado, comer sua carne crua e beber seu sangue. Eles eram os mais velhos pajés Asurini. Os pajés mais novos não comem a carne crua, só os antigos faziam isto... comiam a carne crua de vários animais, anta, veado, qualquer animal...Meu pai está enterrado

3- Jovem liderança que na época da pesquisa era o vice-presidente da Associação Indígena Awaeté Asurini.4- Um homem com mais de cinqüenta anos e uma antiga liderança Asurini.

neste lugar... Eu falei com meu pai quando ele estava mor-rendo e ele me disse que quando eu viesse aqui eu deveria rezar para ele me proteger, para ele controlar as chuvas, para ele não deixar as doenças me pegarem. Isto foi o que ele me disse. Eu sempre peço estas coisas para ele.

No final das atividades neste local per-guntei a um deles o que ele havia achado do trabalho arqueológico realizado, bem como dos seus resultados. Foi interessante perce-ber que a prática arqueológica foi identifica-da por Kwain como um trabalho detalhado e organizado – certamente a maioria dos arqueólogos concordaria com esta definição da sua prática de campo e laboratório. Ao mesmo tempo, ele fez uma apropriação po-sitiva de seus resultados em termos de seus próprios interesses:

Kwain: A gente pode ver que este trabalho de arqueolo-gia é um trabalho bem detalhado, bem organizado... A gente está ajudando e também está aprendendo neste trabalho de arqueologia. A gente acha cerâmica e isto deixa a gente mais contente... Esta cerâmica é a dos mais antigos Asurini.

Em diferentes contextos já foi observa-do que os povos indígenas conectam os vestígios materiais às narrativas sobre o seu passado, atribuindo-lhes significados cul-turais e históricos. É a tradição oral e a me-mória que embasam as interpretações indí-genas sobre os mesmos e isto os torna significativos nos processos de construção de suas identidades e de pertencimento aos lugares (Brown 2004; Carrol, Zedeño, Sto-ffle 2004; Whitridge 2004; Bowser e Ze-deño (eds) 2008; Silva 2002, 2009a; Silva et al 2011). Neste sentido, os registros arque-ológicos não falam apenas de acontecimen-tos no passado (histórico ou mítico), mas eles também são testemunhos de realida-des no presente.

Desde que iniciei minha pesquisa junto aos Asurini registrei as suas explicações e interpretações sobre os vestígios arqueológi-cos encontrados em suas terras (Silva 2000, 2002). Durante esta etapa de pesquisa ocor-

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reu o mesmo e todos os lugares e os vestígios materiais encontrados na coleta e na pros-pecção receberam uma explicação Asurini sobre os seus significados históricos e/ou cosmológicos (Silva et.al. 2011).

As oficinas líticas existentes nos aflora-mentos rochosos ao longo Ipiaçava, são para eles as marcas deixadas por Maira – entidade mítica – na terra mole do firmamento, antes da catástofre que fez o mesmo desabar sobre os bava – seus ancestrais. Assim, as bacias de polimento são o banco de Maira e os polido-res em canaleta as marcas de seus pés. Os vestígios cerâmicos, por sua vez, são atribuí-dos a diferentes personagens míticas e às an-tigas ceramistas Asurini. Aqueles de paredes grossas teriam sido produzidos por Anumaí, irmã dos xamãs primordiais e a primeira ui-ratimbé – dona do mingau – que deixou o mundo dos homens por causa de um con-fronto com Tapijawara – ser sobrenatural monstruoso – que afogou os humanos com as águas do mundo subterrâneo. Anumaí te-ria jogado suas vasilhas cerâmicas com pare-des grossas em Tapijawara para fazê-lo vol-tar às profundezas, sendo que estas se quebraram restando apenas os fragmentos espalhados no chão. Neste episódio, todos os Asurini morreram com exceção de Ajaré que sobreviveu sentado em um banco sobre uma palmeira. Quando as águas baixaram, Ajaré reiniciou a vida dos Asurini, pois teve filhos com Uirá uma mulher-pássaro que todos os dias vinha até ele e lhe fazia o mingau. Os restos das vasilhas cerâmicas desses antigos Asurini que morreram, até os dias de hoje, estão espalhadas pela superfície da terra. Os fragmentos cerâmicos de paredes finas, por outro lado, pertenceram a Tauwuma, uma mulher que abandonou o mundo dos vivos depois que o seu irmão assassinou o seu “na-morado”, um homem-anta. Esses fragmentos são finos como os dos Asurini – daqueles que viveram nestes locais e dos atuais – po-

rém, segundo os velhos Asurini, eles só são encontrados junto à árvore do frutão, lugar onde Tauvuma mantinha relações sexuais com este homem-anta e lhe servia o mingau. Cada vez que consumia o mingau, ele que-brava a vasilha e Tauvuma precisava refazer suas vasilhas. Ao partir do mundo dos ho-mens ela se transformou em Tauva, retor-nando apenas em momentos rituais específi-cos que evocam o seu espírito (Müller 1990; Silva 2000; Silva 2002; Silva et al 2011).

Os Asurini apreendem os vestígios mate-riais, como sendo a materialização da exis-tência e da presença de seus ancestrais, dos personagens míticos e da sua cosmologia. Assim, se pode dizer que eles são objetiva-ções de subjetividades, ou ainda, a “encor-poração” (embodiment) de pessoas (huma-nas e não humanas) e de relações sociais (entre humanos e entre humanos e seres sobrenaturais) (Santos-Granero 2009). Ao mesmo tempo, os locais onde eles aparecem são lugares significativos (Zedeño e Bowser 2008) aos quais os Asurini atribuem uma dimensão histórica e mítica – a partir dos seus próprios regimes de historicidade –, tornando-os testemunhos da sua ancestrali-dade, como lugares da memória (Stewart e Strathern 2003b).

As narrativas Asurini sobre alguns destes lugares do Ipiaçava, porém, revelam a situa-ção de desespero vivida por eles no período do contato com os brancos. Não foi à toa que quando chegamos à antiga aldeia Akapepu-gui – acampamento do padre Anton Lukesh que se tornou uma pequena aldeia por eles ocupada antes da instalação da aldeia do Kuatinemu Velho pela FUNAI – eles ficaram profundamente tristes ao lembrarem de to-dos aqueles que sucumbiram naquele lugar vítimas, especialmente, de doenças trazidas pelos “brancos” (Lukesh 1985). Pela primei-ra vez – após quinze anos de pesquisa – pude de fato compreender o porquê da resistência

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dos Asurini em retornar a aldeia Akapepu-gui. Este lugar foi sempre considerado peri-goso por eles, pois está repleto de anyngas (espíritos) que podem afetar física e espiritu-almente os vivos. Nossa visita a esta antiga aldeia trouxe de volta essas lembranças e vá-rios relatos foram formulados pelos velhos Asurini enquanto realizávamos as atividades de coleta e prospecção. Após visitarmos Aka-pepungui, dois integrantes do grupo adoece-ram – a professora da aldeia e um indígena Arara que vive com os Asurini há vários anos – e os pajés atribuíram seu mal-estar a influ-ência do espírito (anynga) de um perigoso pajé cuja intenção seria manter estas pessoas junto dele naquele lugar. Para libertar os dois indivíduos desta influência e restaurar seu ynga (princípio vital), os pajés realizaram vá-rias práticas terapêuticas e, através do sonho, apaziguaram a ira do referido pajé. Este evento me foi relatado por um jovem pajé, vários meses depois da viagem. Como se pode perceber o significado inscrito nos lu-gares está intrinsecamente relacionado com as experiências nele vividas no passado e/ou no presente (van Dyke 2008; Strang 2008).

Outros lugares como, por exemplo, a al-

deia Taiuviaka que foi a última aldeia Asurini pré--contato, também trouxe lembranças tristes “do tempo em que ainda ha-via muitos Asurini viven-do no Igarapé Ipiaçava”. Muitos Asurini que mor-reram no evento do con-tato em Akapepugui fo-ram transportados e enterrados neste local. É interessante ressaltar que a interação com esse lugar possibilitou, para alguns, o retorno a este passado através de experiências

sensoriais que os uniram aos seus antigos moradores; o relato de um jovem Asurini revela a intensidade deste tipo de experiên-cia:

Ajé: Eu e Tukura5 ficamos sentados na capoeira próxima da aldeia Taiuviaka e ficamos conversando sobre como teria sido a vida dos velhos ali naquele lugar, o que eles teriam passado, como deve ter sido difícil para eles fica-rem fugindo dos outros índios… quase dava para a gen-te sentir o que eles tinham passado ali.

Outro aspecto importante a ser conside-rado nesta relação dos Asurini com os luga-res e os vestígios materiais neles existentes diz respeito ao modo como eles atuam no processo de construção da identidade e de pertencimento ao lugar que constitui hoje o seu território de vivência, a Terra Indígena Kuatinemu, demarcada pela FUNAI, nos anos oitenta. Isto ficou evidente por ocasião de nossa busca pela Aldeia Taiuviaka que ficava no interior da mata, a quatro quilô-metros do igarapé Ipiaçava. Durante o tra-balho de localização eles observaram a ocor-rência de uma “picada”, ou seja, uma derrubada de mata feita pelos brancos com

5- Jovem Asurini, filho de um pajé que morreu de tuberculose na Aldeia Kuatinemu.

Figura 3. O acampamento Itapemuu em 1971. Fonte: LUKESH, A. Bearded Indians of the Tropical Forest. Graz/Austria: Akademische Druck – u. Verlagsanstalt.1976. p.107.

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marcações que indicavam uma provável in-tenção de ocupação da terra. Este fato cau-sou uma profunda revolta, especialmente, nos jovens Asurini que resolveram construir algumas tukaias6 em diferentes pontos desta picada como um aviso aos invasores “de que esta terra tem dono”. Na volta ao acampa-mento base às margens do igarapé Ipiaçava eu pude conversar com os jovens e testemu-nhar seus sentimentos com relação ao fato:

Fabíola: Kwain, o que você sentiu quando percebeu aquela picada de brancos em suas terras?

Kwain: Eu senti revolta e constrangimento porque eles entraram na nossa área, no lugar onde estão as velhas aldeias. Eu senti desgosto ao ver aquela picada de bran-co. O lugar onde nossos antepassados viveram por tanto tempo, o homem branco agora quer controlar. Eu não aceito este tipo de coisa e nossa vinda para este lugar é muito importante. O que eu realmente espero encontrar são as aldeias mais antigas de que nosso povo fala. Esta viagem está sendo difícil. É difícil de chegar neste lugar, mas é muito importante ver de perto o que está se pas-sando com as nossas terras.

Os Asurini do Xingu acionam a sua me-mória e tradição oral para estabelecer seus vínculos a estas terras do Xingu. Estes vín-culos, por sua vez, se reforçam na medida

6- Um abrigo feito de folhas de palmeira e que é utilizado pelos homens durante a caçada para espreitar e surpreender os animais na mata.

em que os Asurini dei-xam seus rastros de vida nestas terras, seguindo aqueles de seus antepas-sados e ancestrais míti-cos. A viagem pelo Ipia-çava é um exemplo disso, pois nós revistamos os lugares de seus antepassa-dos e inscrevemos neles nossas experiências, unindo passado e presen-te (Figura 3 e Figura 4).

Esta experiência jun-to aos Asurini me faz concordar com a pers-

pectiva de Lane (2008:242) que afirma que as “paisagens não são estáticas, formas ins-critas e convencionalmente documentadas por cartógrafos, arqueólogos e geógrafos históricos, mas são fenômenos temporais com múltiplos e, muitas vezes, sobrepostos ritmos que decorrem do processo de ocu-pação humana ou, em outras palavras, do estar na terra”. Para os Asurini do Xingu a ocupação e o conhecimento da T.I. Kuati-nemu possibilita a eles a (re)vitalização de sua memória e tradição oral, reforçando a sua identidade e o seu pertencimento a esta terra que eles chamam de ure yvi (nos-sa terra), a terra dos Asurini do Xingu.

PALAvRAS FINAISEm 2011, após quarenta anos de contato

oficial, os Asurini dividiram-se e formaram uma nova aldeia - Aldeia Itaaka, situada no extremo norte da T.I. Kuatinemu, na mar-gem direita do rio Xingu. Foi o grupo do-méstico do falecido Kurijá, um grande pajé, que fundou esta aldeia a partir da intrépida liderança de Kwain, seu filho mais velho. Ita-aka é o nome da aldeia onde nasceu Tureí, a avó de Kwain e, segundo ele, foi ela que no-meou esta nova aldeia com o mesmo nome

Figura 4. O acampamento Itapemuu em 2010. Foto Fabíola Andréa Silva (2010)

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do seu lugar de nascimento. Essa antiga al-deia ficava às margens do alto rio Bacajá, de onde eles foram expulsos, muitos anos antes do contato com os brancos. Tureí veio ao mundo em Itaaka e, provavelmente, irá completar seu ciclo de vida na nova Itaaka. Penso que este é o modo dos Asurini evi-denciarem a ligação entre o passado e o pre-sente e, ao mesmo tempo, de afirmarem sua persistência cultural e demonstrarem que eles nunca vão acabar, pois eles sempre en-contram um lugar onde podem recomeçar e dar continuidade ao seu modo de vida.

AGRADECIMENTOS: À FAPESP pelo financiamento da pesquisa no período 2009-2011 (Processo 2008/58278-6). Ao CNPq por ter me concedido a Bolsa de Pro-dutividade (Processo 300994/2009-5). Aos meus alunos Eduardo Bespalez e Francisco Forte Stuchi, que contribuíram para que o trabalho de campo funcionasse como o es-perado. Aos Asurini pelo apoio de sempre, pelo brilhantismo em campo e por me levar para novos caminhos na pesquisa e no meu relacionamento com eles. Ao Francisco No-elli pelas sugestões e revisão do texto.

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COSMO-ONTOLÓGICA

MBYÁ-GUARANI: DISCUTINDO O ESTATUTO

DE “OBJETOS” E “RECURSOS

NATURAIS”Sergio Baptista da Silva11

1 -1- Núcleo de Antropologias das Sociedades Indígenas e Tradicionais - NITPrograma de Pós-graduação em Antropologia Social – PPGAS

Universidade Federal do Rio Grande do [email protected]

ARTIGO

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 42-54 - 2013

RESUMO: Neste artigo apresento algu-mas reflexões oriundas da experiência na elaboração de três relatórios circunstancia-dos de identificação e delimitação de terras indígenas no Rio Grande do Sul. Este traba-lho surgiu como uma demanda dos Guarani e foi realizado em colaboração com a FU-NAI, contando com a participação de um grupo técnico composto por antropólogos, arqueólogos, geógrafos, socioambientalis-tas, botânicos e zoólogos. O território anali-sado compreendeu áreas geográficas ao sul de Porto Alegre, conhecidas como Itapuã, Morro do Coco e Ponta da Formiga, situa-das às margens do Lago Guaíba ou da Lagu-na dos Patos. A partir destas experiências, discutimos neste artigo a territorialidade guarani como uma cosmo-ontológica, enfo-cando as relações, de um lado, entre corpo e território e, de outro, entre natureza e cultu-ra ou objeto e sujeito, discutindo e proble-matizando as articulações entre os campos da Antropologia e da Arqueologia, tomando como pano de fundo a cosmologia e a onto-logia destes coletivos ameríndios.

PALAvRAS-ChAvE: guarani, território, arqueologia, antropologia

ABSTRACT: In this article I present some ideas from the experience in the de-velopment of three detailed reports for iden-tification and demarcation of indigenous lands in Rio Grande do Sul. This work emerged as a demand of the Guarani and was carried out in collaboration with FUN-AI, with the participation of a technical group composed of anthropologists, archae-ologists, geographers, botanists and zoolo-gists. The analysed territory included areas from the south of Porto Alegre, known as Itapuã, Morro do Coco and Ponta da For-miga, situated on the shores of Lake Guaíba or Laguna dos Patos. From these experi-ences, we discuss in this article the territori-ality guarani as cosmo-ontological, focusing on relationships, between body and territo-ry and, on the other hand, between nature and culture or object and subject, discussing and questioning the relations between the fields of anthropology and archeology, tak-ing into account the cosmology and ontol-ogy of these Amerindians collectives.

KEywORDS: guarani, territory, archae-ology, anthropology

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COSMO-ON TOLÓGICA M BYÁ-GUARANI : D I SCUTI NDO O E STATUTO DE "OBJETOS " E "RECURSOS NATURAIS " Sergio Baptista da Silva

Gostaria de refletir neste artigo sobre a experiência relativa à elaboração de três re-latórios circunstanciados de identificação e delimitação de terras indígenas no Rio Grande do Sul, em colaboração com a Fun-dação Nacional do Índio (FUNAI). Partici-pou das pesquisas e redação destes relató-rios um grupo técnico que abrigou uma série de profissionais oriundos de diferentes especialidades: antropólogos, arqueólogos, geógrafos, socioambientalistas, botânicos e zoólogos.

O território analisado compreendeu áre-as geográficas ao sul de Porto Alegre, conhe-cidas como Itapuã, Morro do Coco e Ponta da Formiga, situadas às margens do Lago Guaíba ou da Laguna dos Patos, grandes ex-tensões de água que interligam estes três ter-ritórios indígenas entre si.

O processo de identificação destas áreas decorreu de uma série de demandas indíge-nas, iniciadas há décadas pelos guarani, e que resultou, inicialmente, em estudos pre-liminares por parte da FUNAI, até a consti-tuição do referido grupo técnico em 2008, para estudar os três casos específicos.

A partir destas experiências de campo, o objetivo deste artigo é o de discutir a territo-rialidade guarani como uma cosmo-ontoló-gica, enfocando as relações, de um lado, en-tre corpo e território e, de outro, entre natureza e cultura ou objeto e sujeito, discu-tindo e problematizando as articulações en-tre, principalmente, os campos da Antropo-logia e da Arqueologia, tomando como pano de fundo a cosmologia e a ontologia destes coletivos ameríndios, através da etnografia realizada neste contexto de laudos, e que pretendeu ser o mais simetrizante possível em relação aos conhecimentos e aos concei-tos destes coletivos.

Deste modo, uma parte significativa des-te texto estará centrada na discussão do es-tatuto cosmológico guarani dos analitica-

mente por nós chamados de “objetos inanimados”, tendo por fim problematizar estas percepções analíticas, externas, euro-referenciadas e disciplinares destas catego-rias que costumamos designar como artefa-tos ou adornos. Da mesma forma, estarei ao longo deste artigo refletindo sobre o estatuto cosmológico mbyá-guarani daquilo a que nos referimos como “recursos naturais” ou “recursos minerais”, enfatizando-os unica-mente enquanto elementos da economia, da sustentabilidade e da “natureza”.

Neste sentido, inicialmente, gostaria de trazer alguns exemplos etnográficos ocorri-dos no contexto destas pesquisas, tendo como objetivo compreender as categorias e conceitos êmicos que compõem os estatutos cosmológicos mbyá-guarani de “colar-pul-seira-adorno”, “espécies animais e vegetais” e “areia”, com todas as implicações decorren-tes para as duas disciplinas acadêmicas aqui comentadas.

Como comentário inicial, quero dizer que os vegetais, animais, recursos minerais e, por consequência, os ”objetos”, não são percebidos pelos mbyá como elementos dis-tantes, relacionados a uma categoria separa-da e afastada do humano, como pode se ver nos exemplos etnográficos a seguir. Ao lon-go dos itinerários percorridos no trabalho de campo do GT, muitos outros “remédios”, frutos, animais, plantas e minerais, com suas propriedades imateriais agentivas, foram vistos, observados, comentados, pelos sur-preendidos e agora alegres guarani diante destes existentes do seu cosmos, imprescin-díveis para compor/fabricar/fixar seus cor-pos e pessoas. Vejamos alguns deles.

1. GUAPO ÍTaussira: Guapo í em guarani. E figueira

em portuguêsSergio: E qual é o uso que os mbya dão

para o guapo í?

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 42-54 - 2013

Taussira: Guapo í é para ficar forte. No dia que quiserem brigar contigo, que que-rem te pegar, aí não vão te pegar.

Sergio: E como faz para pegar essa forta-leza do guapo í?

Taussira: A gente tira a casquinha para a gente botar no pulso, tipo pulseira e depois tirar a seringuinha também dele, o mel dele passa em cada junta que a gente tem.

Sergio: Nas juntas das mãos?Taussira: Na mão e da perna, do joelho

também.Sergio: Para ficar forte?Taussira: Para ficar forte!Sergio: A seringuinha que tu dizes é a

aguinha que sai lá de dentro?Taussira: O leite dele que sai quando a

gente corta. Sergio: Da casquinha faz algum trança-

dinho?Taussira: Faz um trançadinho para botar

no pulso.Sergio: E quem é que usa, criança, adulto?Taussira: Todo mundo. Sergio: E guapo í tem nas outras aldeias

ou é muito difícil?Taussira: Desse guapo í mesmo acho que

não. Não vi ainda. Sergio: Tu não viu ainda?Taussira: Eu vi aqui no mato. O interlocutor indígena Rogério, na

Ponta da Formiga, ao encontrar uma espé-cie particular de figueira, faz um importan-te relato sobre esta alteridade vegetal im-prescindível para a reprodução cultural guarani.

Rogério: Usa para remédio.Sergio: E para que daí, Rogério?Rogério: Tira a casquinha e amarra para

a criança ficar forte e ninguém segura ela. Guapo í quando segura ele termina com a madeira, se pegar na madeira já era.

Sergio: Ela mata outra árvore. É uma ár-vore forte.

Rogério: Isso aí; é remédio para ficar for-te.

Sergio: Para a criança ficar forte que nem o Guapo í.

Rogério: Se eles brigarem com alguém, ninguém aguenta.

Sergio: Isso os guarani costumam fazer sempre. Só que agora está difícil de fazer, não tem mais o guapo í.

Rogério: Não tem mais, mas antigamen-te...

Sergio: Todo mundo fazia. Conta como é que faz. Pega a casquinha...

Rogério: Tira a casquinha, amarra em toda juntinha que vai usar, na pele, para ficar forte.

Sergio: Em cada junta bota uma casqui-nha daí, cotovelo, pulso, perna, cintura. Até no pé também?

Rogério: Não.Sergio: Até o joelho.Rogério: Até joelho só.O mato, como se vê, é o local onde estão

presentes inúmeras alteridades extra-huma-nas que possuem vontade, propriedades imaterias, e com os quais é possível relacio-nar-se. Estes “outros”, e as relações que os guarani com eles estabelecem, são impres-cindíveis para a manutenção de seus corpos e pessoas, aproximando-os do modo de per-feição, da divindade.

Nele, processam-se os ensinamentos fei-tos pelos mais velhos. Nele são socializadas as crianças e os jovens, e os saberes são transmitidos.

2. TUJÁ RENîPî-A É um exemplo muito significativo, pois

além de demonstrar o entusiasmo e alegria dos interlocutores indígenas na constatação da presença de mais um elemento vegetal não mais encontrado em suas aldeias, remete à agência deste ser na constituição dos cor-pos e das pessoas de mães e recém-nascidos.

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COSMO-ON TOLÓGICA M BYÁ-GUARANI : D I SCUTI NDO O E STATUTO DE "OBJETOS " E "RECURSOS NATURAIS " Sergio Baptista da Silva

Jaime: Quando a mulher tiver com bebê novinho, pode tomar banho só com isso, não pode tomar banho simplesmente com água. Pode cozinhar para tomar banho só com isso aí enquanto estiver com dois, três meses. (...) Na realidade, antes de três meses pode tomar só com esse aí.

Sergio: Como é o nome dele, repete aqui para a câmera?

Jaime: Tujá renîpî-a. Sergio: A mulher usa para que essa plan-

ta no banho?Jaime: Tujá renîpî-a que a gente chama,

para mulher quando está com as crianças novas, os maridos delas procuram esse re-médio para cozinhar para ela tomar banho.

Sergio: E serve para que para mulher?Jaime: Para se sentir bem, ver como está,

com força ou não, tomar banho com isso aí, se sente forte. Sente que o bebe está maman-do bem, descendo o leite bem.

Sergio: E no Cantagalo não tem?Jaime: No Cantagalo não tem; seria im-

portante se a gente pudesse levar umas mu-das também.

3. COLARESO guarani Sebastião, morador da Terra

Indígena do Cantagalo, esclarece-nos sobre o uso de colares em geral e, em particular, sobre aqueles com a presença do rabo do tatu.

Sebastião: Nós usávamos o rabinho do tatu daquele mais fininho para botar no co-lar.

Sergio: E para que serve o rabinho do tatu?

Sebastião: Para ser forte. O tatu, tu agar-ra ali, vai na toca, tu pega no rabinho e tu não tira na hora, não. Ele é forte, é pequeno, mas você não vai tirar na hora.

Sergio: E se usa o rabinho dele no colar, o que acontece com a pessoa que usa o colar?

Sebastião: Faz oração para ficar forte.

Sergio: Como é que faz uma oração para ficar forte?

Sebastião: Na nossa língua é diferente.Sergio: Fala na língua dos guaranis, va-

mos ver?Sebastião: Quando bota assim o colar,

pode falar na nossa língua assim: (fala em guarani). Eu disse assim: Deus fez a oração com a ponta do rabinho do tatu para eu ficar forte, porque o deus está vendo. Ninguém me prejudique em nada e até hoje eu vou fi-car forte.

Sergio: E tu alguma vez usaste o colar com o rabinho do tatu?

Sebastião: Usei muitas vezes.Sergio: Então deve ser por isso que tu és

forte e está com 77 anos.Sobre o uso de colares, em geral, Sebas-

tião relata:Sergio: Mas esses colares que a piazada

usa hoje em dia, também são importantes?Sebastião: São importantes, mas para fa-

zer o conjunto, mas tem que confiar em Deus, não é para fazer assim, olha, só para brincar, não. Tem que confiar em Deus.

Sergio: Sempre que tu colocas uma coisa no colar, tem que pedir para Deus?

Sebastião: Pedir para Deus sempre que tem encontro ali ... tem que botar ele para Nhanderu... Então Nhanderu vai proteger ele para não acontecer nada.

Sergio: E o colar já traz junto essas pro-teções. Porque no colar, por exemplo, eu es-tava falando do rabinho do tatu, mas tam-bém tem colar de semente

Sebastião: Eu sei, porque no meio, que-rem botar dois tipos, um do lado do outro, e o rabinho do tatu fica no meio. O que signi-fica do mesmo jeito que um santo que vocês fizeram. Um santo para nosso cristo, para nosso pai, para nossa mãe e tudo o que o santo foi feito.

Sergio: E que tipo de sementinha usa nos colares?

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Sebastião: tem sementinha de dois tipos, miudinho, pode ser chamar, daquele miudi-nho bem pretinho e mistura com aquele do rosário, daquela semente mais grandinha.

Sergio: É uma branca e uma preta, é isso?

Sebastião: É, ... e uma preta. Podia botar três sementinhas pretas e a do rosário tam-bém tem que botar um, um de cada lado, já vai ficar muito respeitado. Também serve.

Sergio: E para que serve estas sementi-nhas?

Sebastião: É sagrada, do nosso Cristo Sergio: E qual é o nome da sementinha

pretinha?Sebastião: Essa daí eu não sei, na língua

...Sergio: E em guarani como é que é?Sebastião: Ivy a üSergio: Que é preto?Sebastião: Bem pretinho.Sergio: E isso o karaí benze ou não pre-

cisa?Sebastião: Não. Não sei. É duas partes, a

do karaí é outra. A gente que tem confiança em Nhanderú trabalha por dentro, mas nunca pergunta o que fazer. É muita coisa que tu estás sabendo que para nós nos ali-mentarmos é muita coisa. O cacique nem que seja estudado não sabe. Que por minha parte eu sei. Eu como um pouquinho, se tem mistura eu como bem pouquinho.

4. yvyJU Em outro momento do campo, o interlo-

cutor mbyá Mariano, além de refletir sobre a indissociável relação entre crianças guarani, felicidade e terra sagrada, indica-nos a ex-tensão ou alargamento do conceito êmico guarani de terra sagrada, para além da mata, quando fala da importância das faixas are-nosas litorâneas, aqui particularmente sobre o Arroinho, na Ponta da Formiga:

“Essa areia para nós é importante para

caçar ... passarinho. Quando a criança vive em cima dessa areia, ela está feliz; para pes-car é boa essa areia. É como uma farinha de terra ou de pedra. Quando é amarela é yvyju. Ela é boa, é sagrada. Yvy porã”.

Mariano: É, farinha de terra. Por exem-plo, a gente fala itakuí.

Sergio: Porque também é uma farinha de pedra?

Mariano: Sim, é parecido.Sergio: E quando ela é amarela vocês

chamam de yvyju? Mariano: Quando é amarelo é yvyjuSergio: E ela é boa?Mariano: A gente chama de yvy porã ...Sergio: Yvy porã ou yviju.Mariano: Yvyju é terra sagrada.Ao longo dos trabalhos de campo, como

se pode observar através destes poucos exem-plos, os interlocutores mbyá-guarani trouxe-ram uma rica e densa gama de preceitos so-ciocosmológicos, baseados solidamente nas suas concepções cosmológicas e ontológicas, com clara relação à temática da continuidade de seu modo de ser. Em outras palavras, a ex-periência etnográfica relatada conecta-se inexoravelmente a uma práxis tradicional guarani possível nos ambientes ecológicos presentes nas áreas estudadas, revelando uma condição de não separação entre os con-ceitos de cultura e natureza. Esta divisão on-tológica entre natureza e cultura, animais e humanos, plantas e humanos, minerais e hu-manos, objeto e sujeito, sociedade e indiví-duo, humanos e não humanos, entre tantas outras, costuma ocorrer nas sociocosmolo-gias euroreferenciadas, marcadas por concei-tos antagônicos, que indicam oposições biná-rias, sem conectividade entre seus termos. Daí, certamente, nossas dificuldades e cons-trangimentos cosmológicos, na compreen-são de inúmeros preceitos êmicos mbyá-gua-rani, essencialmente importantes para o entendimento das suas noções de corpo e

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território, e imprescindíveis para o entendi-mento e continuidade da noção de pessoa mbyá-guarani, nas suas especificidades face às relações com outros seres extra-humanos.

Com relação àquilo que no “ocidente”, ou melhor, em contextos euroreferenciados, denominamos “cultura material”, podemos dizer que o estatuto dos objetos neste con-texto sociocosmológico e histórico é bastan-te distinto, pois tais “objetos” possuem agên-cia na constituição de corpos e pessoas, além de serem materializadores de significados socioculturais importantes e de memórias de encontros passados, num quadro teórico que encara estas manifestações de arte como o resultado do encontro com alteridades hu-manas e extra-humanas (animais, plantas, divindades, e outros seres do cosmos, com-preendidos enquanto personas), constituti-vas de fluidas, compósitas e cumulativas identidades.

Portanto, tais objetos de arte (colares, pulseiras, cestos, etc.) são a materialização de encontros com alteridades extra-huma-nas, imprescindíveis para a constituição e transformação de seus corpos, na medida em que possuem agência e estão interliga-dos a uma série de imagens virtuais, sono-ras, rituais e mito-cosmológicas.

Além disso, considerando que “as mani-festações artísticas condensam significados culturais fundamentais para cada socieda-de” (Vidal, 1992), estou interessados no con-teúdo simbólico que estas manifestações estéticas expressam, uma vez que a arte sig-nifica e não apenas representa.

Estas manifestações estéticas são siste-mas de representação que procuram expli-car como a sociedade pensa a si própria e o mundo que a rodeia. Nesse sentido, são en-caradas como um código visual de comuni-cação, extrapolando uma análise estilística e/ou descritiva, para desvelar seus conteú-dos semânticos.

Por outro lado, procuro associar, tal qual os guarani nos indicavam em suas falas e ações, seu sistema de objetos com outros sis-temas simbólicos de seu contexto cultural, tais como o social e o mito-cosmológico.

Os atuais estudos sobre arte indígena têm “aportado evidências importantes para a análise das ideias subjacentes a campos e domínios sociais, religiosos e cognitivos” (Vidal, 1992:13). Ainda de acordo com a au-tora, “manifestações simbólicas centrais para a compreensão da vida em sociedade”, como concepção da pessoa humana, sua ca-racterização social e material, expressão da ordem cósmica, são comunicadas por este sistema altamente estruturado, que são as manifestações estéticas de uma sociedade indígena. Em outras palavras, a arte “mate-rializa um modo de experiência que se ma-nifesta visualmente”, principalmente na de-coração do corpo e no sistema de objetos, permitindo que os membros de uma socie-dade vejam-se ao olhar seus grafismos e ob-jetos (Van Velthem, 1994:86). Neste sentido, consideramos a arte indígena como um sis-tema de signos compartilhados pelo grupo e que possibilita a comunicação (Vidal & Lo-pes da Silva, 1992). Estas manifestações vi-suais são a expressão estética de identidades étnicas e culturais.

Além de expressar esteticamente identi-dades, igualmente, certos artefatos certos artefatos têm o poder de materializar mate-rializar memórias de encontros passados, conforme a discussão teórica atual sobre o estatuto dos artefatos nas cosmologias ama-zônicas (Descola, 1996, 1998, 2005a, 2005b; Viveiros De Castro, 1979, 2002; Van Vel-then, 1994, 2003) e de acordo com outras referências bibliográficas (Strathern, 2006; Gell,1998).

Como já disse em outro lugar (Baptista da Silva, 2010) e exemplificando esta esta relação entre objetos e pessoas em uma cos-

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mologia amazônica, temos o caso mbyá--guarani, cujo sistema classificatório dos grafismos estabelece categorias de sentido, nos quais se observa que os significados por ele indicados enfatizam conceitos de uma ecologia simbólica, isto é, de um es-quema cultural de percepção e concepção do meio ambiente que aponta para concei-tos cosmológicos. Em outras palavras, a arte mbyá evidencia em seus padrões gráfi-cos os domínios da natureza e da sobrena-tureza, através da representação de seres primevos: deuses, animais, vegetais e de-mais elementos do cosmos, com a exclusão da figura humana, de artefatos culturais e outros itens de sua organização social. O domínio do humano, portanto, parece estar excluído do sistema de representação visual guarani.

Estes seres primordiais, imagens vindas dos domínios da natureza e da sobrenature-za, relembram os tempos míticos, originá-rios, nos quais humanos (Guarani) e divinos ainda habitavam a mesma terra.

Desta maneira, os grafismos guarani possuem características bem marcantes:

eles são abstratos; geométricos na forma;

eles são iconográficos, isto é, seu padrão geométrico e abstrato remete a um signifi-cante pertencente aos domínio da natureza ou da sobrenatureza; em outras palavras, o padrão geométrico/estilizado é o ícone, o elo entre a representação gráfica e o significante;

eles são estilizados (reduzidos a linhas gerais) ou, melhor dizendo, eles reduzem os seres representados a alguns poucos ele-mentos deles constitutivos (em alguns casos, elementos anatômicos), como, por exemplo, a asa da mariposa para representar a mari-posa, a mandíbula do peixe para representar graficamente todo o peixe, etc.;

eles estabelecem uma ponte de comuni-cação com Ñanderuvuçu, constituindo-se em uma “aproximação desejada e controla-da pela comunidade com o mundo sobrena-tural” (Gallois, 1992:228, referindo-se aos Waiãpi), uma vez que representam os ele-mentos primevos do cosmos, criados pelos heróis míticos, e eles próprios.

Em resumo, tem-se que a origem divina dos grafismos presentes na cultura material, origem esta exterior ao domínio dos huma-nos, da sociedade, está bem marcada e conti-nua a ser lembrada e reatualizada atualmente, o que evidencia o vínculo entre a ornamenta-ção (da cultura material e também dos cor-pos) e o mundo da sobrenatureza.

A pintura corporal, e, de um modo geral, os grafismos guarani, têm um importante papel na prevenção e proteção contra estes perigos, uma vez que representam uma apro-ximação, controlada socialmente, com o es-pírito presentes nos animais e plantas. Esta concepção de “natureza”, na qual animais e plantas não estão separados ontologicamen-te dos humanos, como no ocidente de tradi-ção europeia, outorga a todos os elementos do cosmos atributos humanos, especialmen-te aos animais e vegetais, que diferem apenas em grau dos homens. Estas cosmologias in-dígenas amazônicas concebem os animais como ex-humanos, vendo neles muitos atri-butos da antiga humanidade perdida (Des-cola, 1998). É no contexto deste sistema xa-mânico-cosmológico guarani que devemos compreender os significados dos grafismos e de outras materializações de seres oriundos do domínio da natureza.

Segundo os Guarani-Mbyá, a pintura fa-cial (yti) deve ser usada a partir dos cinco anos “para proteger da doença e do espírito do animal”. Em situações de margem (nasci-mento, iniciação, menstruação, morte, etc.), as diluídas e interpenetráveis fronteiras dos

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três domínios do cosmos guarani (da natu-reza, da humanidade, da divindade ou so-brenatureza) tornam-se mais frágeis e inter-cambiáveis, correndo muitos perigos os que se encontram nestes momentos de limbo.

Descrevendo o “encantamento sexual”, o ojepotá, um interlocutor Mbyá assim se ex-pressa:

Irmão ou pai se pinta para se proteger quando nasce o irmão mais novo ou o filho. Nesses momentos, se não estiver pintado, a alma (nhe’e) do bicho - tivi (onça) ou outro qualquer - entra no teu corpo, se transfor-ma. Ela não traz doença, troca a alma: pode [a pessoa] virar um bicho. Pode ser cobra, sapo. Árvore e bicho têm nhe’e, mas não é boa. Se transforma em moça bonita. [A pes-soa] fica com ela e não volta mais (Valdeci Karaí Mirim, Tekoá Jataity-RS).

Resumindo, os Mbyá enfatizam o domí-nio da natureza em suas representações grá-ficas e manifestações estéticas, tanto num estilo abstrato, geométrico e iconográfico, que se faz presente nos grafismos que ocor-rem nos vários suportes por eles trabalha-dos, como num estilo figurativo, que apare-ce nos vixú rangá (zoomorfos confeccionados em madeira) e nos desenhos escolares. Tra-ta-se, evidentemente, de um modo particu-lar, construído cultural e localmente, se-guindo a lógica do nhandé rekó (nosso costume), de conceber o meio ecológico circundante, de atribuir sentido aos seus di-versos elementos constitutivos, e, principal-mente, de estabelecer uma relação controla-da socialmente com os domínios da natureza e da sobrenatureza, pelos perigos que representa franquear as suas fronteiras interpenetráveis e diluídas.

A clássica oposição entre natureza e cul-tura, presente no ocidente euroreferenciado, não faz nenhum sentido para o pensamento

ameríndio existente entre os coletivos indí-genas das terras baixas americanas. Para es-tes coletivos, particulartmente para os gua-rani, todos os seres do cosmos, sejam eles humanos, divindades, animais, plantas, mi-nerais, etc., são considerados personae, pos-suidores de subjetividades e atributos de humanidade. Não há, portanto, separação ontológica entre seres da natureza e seres culturais, existindo, sim, gradações hierár-quicas entre estes seres, que irão variar con-forme o coletivo indígena enfocado, mas que não impedem a comunicação e a relação entre os seres, todos eles dotados de ponto de vista, subjetividade e agência uns sobre os outros (Descola, 2005b). Temos, assim, ao contrário do pensamento ocidental, o com-partilhamento de uma única cultura entre todos os seres do cosmos, que estarão distri-buídos em inúmeras categorias, de acordo com sua natureza e seus diferentes corpos. O multinaturalismo ameríndio opõe-se ao multiculturalismo ocidental. Além disso, o primeiro inclui, apesar das diferenças de na-tureza – corpos diferentes e não espécies to-talmente separadas, como no pensamento ocidental – a possibilidade relacional entre todas as alteridades constitutivas do cosmos (Viveiros De Castro, 2002). Percorrer o ter-ritório ancestral e tradicional Mbyá-Guara-ni – o Ka’águy porã -, portanto, é estar em relação não só com outros coletivos Mbyá--Guarani ou estrangeiros, mas, sobretudo, também com todos os outros seres extra--humanos deste horizonte ecológico-cultu-ral (não separado) de terras: divindades e espíritos/essências/almas/donos/proprieda-des imateriais/agências dos seres extra-hu-manos que povoam os vários domínios cos-mológicos. Estes domínios possuem fronteiras especialmente porosas e interpe-netráveis, que possibilitam o trânsito tanto dos humanos como dos extra-humanos, permitindo a relação mútua entre alterida-

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des e, principalmente, a contínua troca e predação simbólica destas qualidades/sub-jetividades/essências, entre estes outros. Neste sentido, corpos/pessoas Mbyá-Guara-ni – naturezas diferentes – são construídos/fabricados/compostos/transformados em um contínuo processo temporal – devir -, como objetivo de alcançar perfeição corpo-ral/espiritual em um mundo imperfeito, se-gundo a concepção mbyá-Guarani. Corpos/pessoas mbyá-Guarani necessitam de um constante cuidado para sua formação, que para além da obtenção de saúde e proteção, precisam adquirir, na relação com as alteri-dades, uma identidade Mbyá-Guarani pró-pria que as distinga das outras identidades que povoam o cosmos, que têm corpos/na-turezas diferentes, mas que possuem essên-cias/propriedades imateriais necessárias à constituição dos corpos/pessoas mbyá (Bap-tista da Silva, 2008). Corpos são formas flui-das, instáveis e em transformação, que ne-cessitam de constantes esforços técnicos/rituais/sociais para que adquiram as carac-terísticas desejáveis e para que não sejam metamorfoseados – através das agências de alteridades perigosas – em outros corpos, não Mbyá-Guarani, como no caso de djepo-tá, acima descrito e comentado.

Assim, a relação com alteridades - que agem e reagem entre si - é constitutivo do pensamento mbyá-guarani: formas, corpos e naturezas estão em contínua transforma-ção, pois não são rígidos e estão sobre cons-tante ameaça de transformação ou meta-morfose. Temos, pois, de um lado, a imperiosa precisão de transformar corpos imperfeitos em corpos perfeitos, produzin-do-os, e, de outro, a igualmente importante necessidade de impedir que alteridades mal intencionadas atinjam-nos, protegendo-os.

Mas como se produzem e se protegem corpos/pessoas Mbyá-Guarani?

No primeiro caso, induzindo/provocan-

do/negociando a relação com a alteridade, objetivando incluir/incorporar a qualidade/propriedade imaterial visada, materializada nos corpos/pedaços/partes de outros seres do cosmos, e através de inúmeras técnicas e rituais, que vão desde a confecção e uso de pinturas/adornos/objetos junto ao corpo, passando pela ingestão/inalação de parcelas dos corpos dos outros/alteridades, até a ex-periência onírica onde a relação com a alte-ridade acontece, sem esquecer da audição da palavra divina, exarada pela boca dos xa-mãs, mas também experienciada por cada Mbyá (Baptista da Silva, 2008; Baptista da Silva et al., 2010; Tempass, 2005).

Pelo imbricamento dos vários domínios cosmológicos mbyá-guarani, e da conse-quente ação e contra-ação que os seres de uns agenciam sobre os de outros, os perigos de ser seduzido por seres mal intenciona-dos, especialmente em momentos de fragili-dade dos corpos/pessoas mbyá-guarani, proteções devem ser processadas, sendo proveniente destas várias modalidades de relação estabelecidas com as alteridades.

A incorporação destas inúmeras essên-cias/poderes mágicos provenientes destes vários outros, compõe um ser Mbyá-Guara-ni que pode ser compreendido não como um “indivíduo” ocidental, pensado como único e indivisível, mas como um “divíduo”, formado de vários outros e que pode vir a formar vários outros, constitutivos de seu corpo/pessoa (Strathern, 2006). Um concei-to mais apropriado para esta concepção de corpo e pessoa, que mais se aproxima das categorias nativas Mbyá-Guarani, é aquele proposto por McCallum (2002): “composite being” (pessoa composta), pois enfatiza o processo temporal – devir – de acumulação de espíritos/propriedades imateriais/potên-cias mágicas de inúmeras alteridades que são incorporadas.

Assim, faz-se necessário compreender

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uma outra dimensão ou concepção de “re-médio”, expressa pelos guarani nos exem-plos já citados e nos que virão a seguir. Para além da categoria de remédio da cosmologia euroreferenciada, os guarani indicam o uso de “objetos”, plantas, animais, minerais e ou-tros extra-humanos como a incorporação de propriedades imateriais, almas e essên-cias, presentes nestes existentes do mundo, nestes seres, nestas alteridades, que com-põem, protegem e curam.

Pode-se dizer, de forma genérica, que o corpo humano nas sociedades indígenas brasileiras é percebido de forma diferente de como o representamos na tradição ociden-tal. Ao contrário do que ocorre nessa última, as sociedades do Alto Xingu, por exemplo, não fazem distinção entre processos fisioló-gicos e processos sociológicos ou entre transformações corporais e mudanças na identidade social ou na posição social. Na concepção dessas sociedades, “o corpo hu-mano necessita ser submetido a processos intencionais, periódicos, de fabricação”. Sendo assim, “a natureza humana é literal-mente fabricada, modelada, pela cultura” (Viveiros de Castro, 1979, p.32).

Nessas sociedades alto-xinguanas, é no-tório que a fabricação de um novo papel social, especialmente nos momentos de transição entre os estados da pessoa (prin-cipalmente nascimento, puberdade/maturi-dade e morte), requer toda uma tecnologia do corpo, através da intervenção da socie-dade sobre a pessoa, submetendo-o a uma normalização sócio-fisiológica (op. cit., pág. 33-4).

Essa tecnologia de criação sociocultural do corpo da “pessoa humana” (negando-se a possibilidade de um corpo “não humano”) inclui desde relações sexuais entre os genito-res, passando por um “conjunto sistemático de intervenções sobre as substâncias que co-municam o corpo e o mundo: fluidos corpo-

rais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais” (op. cit., pág. 31) até a re-clusão em espaço doméstico privado e, acrescentando à ideia original do autor, a presença ritual de “objetos” e “adornos” cor-porais, como foi comentado e analisado a partir dos exemplos etnográficos colhidos em campo.

Segundo a proposição de Viveiros de Castro, a identidade social ou a posição so-cial de um alto-xinguano não é depositada sobre o corpo como “um suporte inerte”, pois este corpo é fabricado, criado. Dessa forma, conclui que “a persona xinguana não parece ser facilmente redutível a um dualis-mo (...) e muito menos no homo duplex da metafísica durkheimiana [corpo/alma]” (op. cit., pág. 32).

Neste sentido, é importante ressaltar a relação entre corpo, pessoa e território para os guarani.

A concepção de território para os guara-ni tem especificidades, que gostaria de subli-nhar, principlalmente a não separação entre natureza e cultura, e a relação constante eles estabelecem com as alteridades humanas e extra-humanas que o compõem.

Assim, o conceito de território aqui é concebido como um valor simbólico, para além de ser este amontoado de matéria, para muito além de ser um conjunto de elemen-tos “naturais”, ecológicos, cuja materialidade está ao alcance dos cinco sentidos, pois po-demos ver seus contornos, formas e desdo-bramentos, ouvir seus sons e murmúrios, tocar seus vários corpos, cheirar seus inú-meros aromas e mesmo provar os sabores dele e que dele brotam. Ele constitui-se em espaço vivido e vivenciado por grupos que nele constroem suas experiências de mun-do, articulando a memória de seus antepas-sados com a recriação e re-elaboração de suas tradições no cotidiano da atualidade.

Metáfora gasta, é na terra que se lançam

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raízes. Seus espaços de significação são múl-tiplos e polissêmicos: lugar de nascimento (raízes pessoais); lugar de pertencimento, de identidade (raízes grupais); lugar de cresci-mento, de socialização, de convivência, de relações familiares, sociais; lugar de tradi-ções; lugar dos antepassados; lugar onde vi-vos e mortos que carregam de sentido as existências individuais e de grupos inteiros estão presentes no mesmo espaço de ligação com o mundo. Neste território material, for-mado por relevos, cursos de rio, vegetação, minerais, além de habitações e vestígios da sua cultura material, estão inscritas marcas imateriais profundas, modos particulares de apropriação e categorização desta natureza, deste espaço ecológico.

Em comunidades específicas, em relação intensa com seu território e em constante diálogo com as marcas imateriais e materiais nele inscritas, são engendradas, articuladas e recriadas visões de mundo específicas. Este território marcado, vivido, vivenciado, experimentado, é o palco de uma organiza-ção social diferenciada, fruto das relações estabelecidas entre grupos de pessoas que compartilham uma identidade e bens sim-bólicos.

Ao mesmo tempo, é bem verdade, este território é a fonte de sustento do grupo nele radicado. Ele representa, também, o local que permite a reunião das condições para a reprodução e continuidade física do grupo enquanto tal, através da agricultura, da cria-ção de animais, da coleta de vegetais, da caça, da pesca, do beneficiamento de produ-tos ... Daí, sua dupla importância

Do ponto de vista teórico, a territoriali-dade é aqui encarada enquanto a interpene-tração e inter-relação entre território, con-cepções cosmo-ontológicas, corporalidade, ideologias sobre natureza, noção de pessoa e as redes de parentesco lançadas sobre esta base territorial. Neste sentido, as relações

entretecidas entre humanos, não humanos, divindades, vivos e mortos, são fundamen-tais e norteadoras para o entendimento das formas de conceber a territorialidade mbyá--guarani. Da mesma forma, a cultura mate-rial das populações em foco servirá como importante instrumental para investigar es-tas relações híbridas, notadamente entre na-tureza e cultura, sociedade e divindade, mortos e vivos, e seus conceitos cosmo-on-tológicos.

Nesta tarefa e neste desafio, parece--me, as disciplinas antropológica e ar-queológica têm papel importante no sentido de dialogar simetricamente com os conceitos do coletivo estudado, evi-denciando as especificidades de suas so-ciocosmologias e as diferenças em rela-ção às concepções euroreferenciadas, sem cair na dupla armadilha da exotiza-ção e do divisor/Rubicão entre primitivo e moderno.

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56ARTIGO

SEGUINDO O FLUXO DO TEMPO,

TRILHANDO O CAMINHO DAS

ÁGUAS: TERRITORIALIDADE

GUARANI NA REGIÃO DO LAGO

GUAÍBAAdriana Schmidt Dias1

Sérgio Baptista da Silva2

1- Coordenadora das pesquisas arqueológicas do Plano Operacional para a Identificação e Delimitação de Terras Indígenas nas Regiões Sul do Lago Guaíba e Norte da Laguna dos Patos, RS. Professora do Departamento e Programa de Pós-gradução em história da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. Pesquisadora do [email protected]

2- Coordenador Geral do Plano Operacional para a Identificação e Delimitação de Terras Indíge-nas nas Regiões Sul do Lago Guaíba e Norte da Laguna dos Patos, RS, Professor do Departamento

e Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected]

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 26 - N.1: 56-70 - 2013

ABSTRACT: Between 2008 and 2010 stu-dies have been conducted with the aim to produce a report about Mbyá-Guarani indi-genous lands in the metropolitan region of Porto Alegre, Rio Grande do Sul. The focus of activities were related to the regulariza-tion of the Pindó Mirim Village and evalua-tion of other sites with potential for traditio-nal use by Mbyá as the Morro do Coco and Itapuã State Park, in Viamão, and Ponta da Formiga, in Barra do Ribeiro. Mbyá leaders demands that archaeological surveys were also carried out because they understand that the archaeological sites represent an an-cestral relationship with the territory clai-med. In the three areas surveyed were iden-tified 18 sites Guarani Tradition, indicating that the pre-colonial occupations formed a socio-cultural and environmental horizon which is currently also expressed by Mbyá--Guaraní.

KEy wORDS: Guarani Archaeology, Mbyá-guarani, Territoriality, Ethnoarchaeo-logy.

RESUMO: Entre 2008 e 2010 foram rea-lizados estudos com o objetivo produzir um relatório de identificação de terras indígenas Mbyá-guarani na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O foco das atividades estava relacionado à regulariza-ção da Aldeia Pindó Mirim e à avaliação de outros locais com potencial de uso tradicio-nal como o Morro do Coco e o Parque Esta-dual de Itapuã, em Viamão, e a Ponta da Formiga, em Barra do Ribeiro. Pesquisas arqueológicas foram incluídas nestes levan-tamentos atendendo às demandas dos Mbyá que entendem que os sítios arqueológicos da área representam uma relação de ancestrali-dade com o território reivindicado. Nas três áreas pesquisadas foram identificados 18 sí-tios da Tradição Guarani, indicando que as ocupações pré-coloniais formavam um ho-rizonte sócio-cultural e ambiental que atual-mente também é manifestado pelos Mbyá--guarani.

PALAvRAS-ChAvE: Arqueologia Gua-rani, Mbyá-guarani, Territorialidade, Etno-arqueologia.

58

SEGUIN DO O FLUXO DO TE MPO , TR I L HANDO O CAMI NHO DAS ÁGUAS : . . . Adriana Schmidt Dias e Sérgio Baptista da Silva

INTRODUçãOAtualmente vivem no Rio Grande do Sul

em torno de 2.600 Mbyá-guarani. Este cole-tivo indígena ocupa de forma precária apro-ximadamente 83 áreas, das quais apenas uma pequena parte possui algum procedi-mento jurídico de reconhecimento fundiá-rio. Os Mbyá da região metropolitana de Porto Alegre se caracterizam como parte de uma ampla rede comunitária de relações de parentesco e afinidade que abrange muitos outros grupos do Brasil e do Exterior. Uma parte considerável desta extensa rede deslo-ca-se através de um arquipélago de áreas in-dígenas de tamanhos e características fundi-árias diversas. Apesar da existência de famílias extensas cujos membros permane-cem em uma dada aldeia, não é incomum que estas também possuam parentes em di-versos Estados brasileiros ou mesmo em ou-tros territórios nacionais (Baptista da Silva et al., 2008, 2010).

Entre 2008 e 2010 foram realizados estu-dos com o objetivo de produzir relatórios de identificação e delimitação de terras indíge-nas guarani na região metropolitana de Por-to Alegre. Integradas ao Plano Operacional para a Identificação e Delimitação de Terras Indígenas nas Regiões Sul do Lago Guaíba e Norte da Laguna dos Patos, Rio Grande do Sul estas pesquisas buscaram conjugar da-dos etnográficos, históricos, arqueológicos e ambientais. Conforme a Portaria n° 14 da FUNAI, os trabalhos de campo foram reali-zados com a participação dos indígenas e no decorrer das pesquisas suas manifestações e interpretações foram incorporadas aos rela-tórios produzidos.

O foco das atividades estava relacionado à regularização da área de implantação da Aldeia Pindó Mirim, bem como à avaliação de outros locais com potencial de uso tradi-cional pelos Mbyá como o Morro do Coco e a Unidade de Conservação Parque Estadual

de Itapuã, no município de Viamão, e a Pon-ta da Formiga, no município de Barra do Ribeiro. O núcleo residencial e as áreas de roças da Aldeia Pindó Mirim restringem-se a uma área de 26 hectares em uma porção de terras limítrofes ao Parque Estadual de Ita-puã que possui uma área de 5.566,5 hecta-res. Até 1973 havia três aldeias mbyá no Morro da Praia de Fora, onde viviam em torno de 60 pessoas, sendo estas aldeias abandonadas quando o Parque foi criado. Em 1998 o Ministério Público Federal insti-tuiu um processo administrativo para inves-tigar o fato de o Parque de Itapuã ter-se constituído sobre território tradicional mbyá. Contudo, a presença indígena na área do Parque antes de sua criação foi contesta-da pela Administração Pública, culminando em 2004 com a proibição pelo Conselho Es-tadual de Parques da entrada de indígenas no Parque de Itapuã (Comandulli, 2009). Quanto às demais áreas investigadas, o Mor-ro do Coco é composto por quatro proprie-dades privadas, das quais duas são Reservas Particulares do Patrimônio Natural e a Pon-ta da Formiga é uma área de Preservação Ecológica pertencente a uma empresa de produção de celulose (Aracruz Celulose no momento da pesquisa, atualmente Fíbria Celulose).

Por um lado. As três áreas investigadas têm em comum o fato de serem extrema-mente ricas do ponto de vista ambiental, constituindo-se em referenciais tradicio-nais importantes para o processo de reivin-dicação mbyá por permitirem a sustentação do Ñandé Rekó, o modo de ser guarani. Como a concepção de territorialidade mbyá não é contínua, estas áreas com riqueza de recursos naturais para o estabelecimento de aldeias podem ser comparadas a “ilhas”, cercadas pela Sociedade Nacional e interco-nectadas por complexas redes de relações de toda a ordem. Nos trabalhos de campo

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realizados conjuntamente com os Mbyá--guarani inúmeros exemplos de plantas, animais, divindades e outros seres cosmoló-gicos foram identificados pelos indígenas, demonstrando a relação forte e indissociá-vel que traçam entre seus corpos/pessoas e estas “matas sagradas” essenciais a conti-

nuidade e manuten-ção mbyá.

Estas áreas apre-sentam condições fundiárias diversas, gerando dificulda-des no processo de demarcação tendo em vista distintos in-teresses. A maioria dos raros locais com bom estado de pre-servação ambiental e abundância de re-cursos naturais no sul do Brasil já foi reservada para a criação de Unidades de Conservação Na-tural, não admitindo a presença humana no seu interior. Tam-bém propriedades privadas e empresas tendem a opor-se ao processo de demar-cação de terras indí-genas pelo fato de serem indenizados apenas pelas benfei-torias presentes em suas terras. No caso da Ponta da Formiga há o agravante do ponto de vista eco-nômico que a em-presa de celulose

proprietária da área terá que desativar esta unidade de produção (Baptista da Silva et al., 2010).

As pesquisas arqueológicas foram inte-gradas às atividades destes relatórios de de-marcação a partir de uma demanda das lide-ranças indígenas, pois os sítios arqueológicos

Figura 1 – Sítios da Tradição Guarani no Lago Guaíba: 1) RS-JA-23: Praça da Alfândega, 2) Arroio do Conde, 3) RS-SR-342: Santa Rita, 4) RS-JA-16: Ponta do Arado, 5 ) RS-LC-71: Ilha Chico Manuel, 6) RS-JA-02: Lami Bernardes, 7) RS-JA-01: Reserva Biológica do Lami, 8) PA-300: Rogério Christo, 9) RS-LC-18: Morro do Coco, 10) RS-JA-07: Lajeado, 11) RS-LC-01: Cantagalo, 12) RS-323: Ilha das Pombas, 13) RS-LC-08: Praia das Pombas, 14) RS-LC-11: Praia da Onça, 15) RS-LC-70: Ilha do Junco, 16) RS-LC-39: Morro da Fortaleza, 17) RS-LC-74: Praia da Pedreira, 18) RS-LC-07: Praia do Araçá, 19) RS-LC-15: Praia do Sítio, 20) RS-LC-16: Prainha, 21) RS-LC-17: Morro do Farol, 22) RS-LC-75: Lagoa Negra, 23) RS-324: Tarumã, 24) RS-LC-22: Tekoá Porã, 25) RS-LC-21: Tekoá Mareÿ, 26) RS-LC-20: Tekoá Yma, 27) Arroinho I.

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da Tradição Guarani são entendi-dos pelos Mbyá como as “marcas do caminhar dos avós” que de-monstram uma relação de ances-tralidade e imemorialidade com o território reivindicado (Baptista da Silva et al., 2010).

As pesquisas arqueológicas re-alizadas entre 1970 e 2010 na re-gião do Lago Guaíba atestam a presença de uma ocupação pré--colonial intensa, associada a 37 sítios arqueológicos da Tradição Guarani dentre os quais dois apre-sentam datações entre 610 e 440 anos AP. Por sua vez, nas três áre-as de interesse dos Mbyá foram identificados 18 sítios arqueológi-cos da Tradição Guarani (tabela 1) (Baptista da Silva, 1992; Carle & Santos, 2000; Gazeano, 1990; Gaulier, 2001-2002; Noelli, 1993; Noelli et al., 1997; Pouget & Thies-sen, 2002; Zortea, 1995. Para maiores detalhes sobre estas pes-quisas ver Dias & Baptista da Sil-va, prelo).

A distribuição destes sítios re-vela uma rica rede de assentamen-tos que interligava o Delta do Ja-cuí com os pontais e ilhas, estendendo-se até a desemboca-dura do Lago Guaíba com a Lagu-na dos Patos (figura 1). Observa--se, portanto, que as ocupações guarani pré-coloniais formam um horizonte sócio-cultural e am-biental que é também manifesta-do atualmente pelos Mbyá-guara-ni através da presença de aldeias e acampamentos nesta região, como é o caso das Aldeias de Ita-puã (Tekoá Pindó Mirim), do Cantagalo (Tekoá Jataity) e de Co-

Tabela 1 - Sítios Arqueológicos da Tradição Guarani na porção norte do Lago Guaíba localizados entre 1970-2010

Nome do Sítio Sinonímia Coordenadas Intervenção Município Instituição RS-119 RS-152: Ponte

do Guaíba Sem registro Coleta de

superfície Eldorado do Sul PUCRS

Arroio do Conde 22J 0469 770 6675 048

Coleta de superfície e sondagem

Eldorado do Sul Não localizado

RS-SR-342: Santa Rita

Complexo Automotivo da Ford

22J 0469 294 6671 719

Escavação e datação: 540+60 AP 440+60 AP

Guaíba PUCRS

RS-LC-71: Ilha Chico Manuel

RS-C-01 22J 0484 300 6651 800

Escavação e datação: 610+50 AP

Porto Alegre MARSUL MARS MJJF

RS-87: Romeu Ponta do Chico

Sem registro Coleta de superfície

Porto Alegre PUCRS

G1: Vila da Restinga

Sem registro Coleta de superfície

Porto Alegre FAPA

RS.JA-74: Lomba do Pinheiro 2

22J 0488 226 6669 014

Escavação Porto Alegre FAPA

RS-JA-01: Reserva Biológica do Lami

22J 0493 050 6655 665

Coleta de superfície e sondagem

Porto Alegre MJJF

RS-JA-02: Lami Bernardes*

22J 0493 025 6654 372

Coleta de superfície e sondagem

Porto Alegre MJJF

RS-JÁ-16: Ponta do Arado

22J 0481 711 6655 320

Coleta de superfície e sondagem

Porto Alegre MJJF

RS-JA-07: Lajeado*

Morro São Pedro Morro das Quirinas

22J 0490 337 6662 732

Coleta de superfície e sondagem

Porto Alegre MJJF

RS-JA-23: Praça da Alfândega

22J 0477 701 6677 966

Escavação Porto Alegre MJJF

RS-JÁ-24: Rede DMAE

Sem registro Escavação Porto Alegre MJJF

Morro do Osso Sem registro Registro Porto Alegre UFRGS RS-88: Novo Lar dos Menores

Sem registro Coleta de superfície

Viamão PUCRS

PA 300: Rogério Christo

Morro do Coco

22J 0493 665 6651 662

Coleta de superfície

Viamão PUCRS

RS-LC-18: Morro do Coco

22J 0495 718 6651 542

Registro Viamão UFRGS

RS-272: Nei Bueno Sem registro Coleta de superfície

Viamão PUCRS

RS-LC-01: Aldeia do Cantagalo

G4 Tekoá Jataity

22J 0498 081 6659 494

Coleta de superfície

Viamão MARS FAPA

RS-LC-02: Colônia de Itapuã

Sem registro Coleta de superfície

Viamão MARS

Pomar da Lagoa I Águas Claras 22J 0513 106 6663 477

Coleta de superfície e

Viamão UFRGS

sondagem RS-LC-70: Ilha do Junco

22J 0493 700 6141 900

Coleta de superfície e sondagem

Viamão MARSUL

RS-LC-74: Praia da Pedreira**

RS-LC-03: Sitio da Pedreira-Morro do Fortaleza

22J 0495 161 6641 730

Coleta de superfície

Viamão MARSUL MARS

RS-LC-75: Lagoa Negra*

RS-LC-04: Lagoa Negra I RS-LC-06: Lagoa Negra II

22J 0500 977 6641 531

Coleta de superfície e sondagem

Viamão MARSUL MARS

RS-323: Ilha das Pombas

PA 253 22J 0496 400 6645 300

Coleta superfície

Viamão PUCRS

RS-LC-39: Morro da Fortaleza*

22J 0495 200 6642 250

Escavação Viamão MARSUL MARS

RS-LC-08: Praia das Pombas**

22J 0496 303 6643 308

Coleta de superfície

Viamão MARS

RS-LC-07: Praia do Araçá

22J 0496 150 6640 750

Registro Viamão MARS

RS-LC-11: Praia da Onça

22J 0495 088 6642 544

Coleta de superfície

Viamão MARS

RS-LC-15: Praia do Sítio

22J 0495 594 6639 135

Coleta de superfície e sondagem

Viamão UFRGS

RS-LC-16: Prainha 22J 0494 944 6638 618

Registro Viamão MARS

RS-LC-17: Morro do Farol

22J 0494 500 6638 400

Coleta de superfície e sondagem

Viamão UFRGS

RS-324: Tarumã Riocel Tekoá Karaguata'ity

22J 0489 112 6641 514

Coleta de superfície

Barra do Ribeiro PUCRS

RS-LC-22: Tekoá Porã

22J 0490 802 6640 887

Registro Barra do Ribeiro UFRGS

RS-LC-21: Tekoá Mareÿ

22J 0490 094 6639 842

Registro Barra do Ribeiro UFRGS

RS-LC-20: Tekoá Yma

22J 0487 816 635 842

Registro Barra do Ribeiro UFRGS

Arroinho I 22J 0486 318 6633 595

Registro Barra do Ribeiro PUCRS

*Possível associação com material lítico da Tradição Umbu/** Atualmente destruídos.

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xilha Grande (Tekoá Porã) e dos Acampa-mentos do Lami (Tekoá Pindó Poty), do Pe-tim, de Passo Grande e da Flor do Campo (Baptista da Silva et al., 2008).

ASPECTOS DA TERRITORIALIDADE E DA MOBILIDADE MByÁ-GUARANI

A língua guarani no Brasil (Família lin-guística Tupi-Guarani do Tronco Tupi) cos-tuma ser subdividida em três dialetos: o Mbyá, o Nhandeva e o Kaiowá. A este ponto de vista linguístico devem ser agregados elementos de identidade sócio-cultural, o que permite falarmos atualmente de três parcialidades étnicas guarani: os Mbyá, os Nhandeva ou Xiripá e os Kaiowá. Estas par-cialidades passaram por diferentes proces-sos históricos de contato com populações não-indígenas e com vários Estados Nacio-nais da América do Sul, culminando em identidades sócio-políticas diversas. Em ou-tras palavras, temos no povo Guarani uma unidade cultural mito-cosmológica que dialoga com uma diversidade de identida-des sócio-políticas constitutivas das rela-ções entre as três parcialidades.

Os Mbyá-guarani distribuem-se entre os Estado do Rio Grande do Sul, Santa Catari-na, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espí-rito Santo, estando também presentes no Uruguai, Argentina e Paraguai. A dinâmica societária que orienta o processo de territo-rialização desta população caracteriza-se, concomitantemente, pela descentralização em pequenos grupos familiares e pela inten-sa articulação destes mesmos grupos em redes de parentesco inter-aldeãs. Neste sen-tido, o território mbyá-guarani apresenta-se como um complexo de conexões sociais e ambientais, uma vez que os recursos básicos para a reprodução da sociedade estão arti-culados nas redes de parentesco, as quais condicionam também o acesso a recursos naturais imprescindíveis para a reprodução

do modo de vida tradicional (Baptista da Silva, 2008; Pradella, 2009). Portanto, para compreender as demandas territoriais mbyá na região do Lago Guaíba deve-se situar este território no complexo multilocal da territo-rialidade guarani, atentando para as relações com as demais aldeias localizadas a leste, centro e norte do Rio Grande do Sul, nos outros Estados do sul e sudeste do Brasil, bem como nos países limítrofes do Cone Sul Americano.

Ao analisar aspectos das noções de terri-torialidade e mobilidade mbyá através da perspectiva histórica, sugere-se que o conta-to inter-étnico constituiu-se em um marco de resignificação destas categorias, cujo im-pacto tem uma longevidade de pelo menos 300 anos. Embora os Mbyá se tornem “visí-veis” aos ocidentais enquanto grupo étnico somente no início do século XX, há fortes indícios nas fontes documentais do período colonial de que as referências aos Ka’yguá (“os do mato”) tratem do mesmo grupo. Seu território original situava-se onde hoje é o Paraguai, organizando-se a sociedade a par-tir de grupos de parentesco e afins em torno de uma liderança religiosa e/ou política. Neste contexto, a mobilidade circunscrevia--se ao território contínuo e era motivada pela circularidade regular das sedes de al-deias, pela exploração sazonal do ambiente, pelo encontro com os extra-humanos nele presentes ou por crises sociais internas (Gar-let, 1997; Garlet & Assis, 2009; Soares, 1997).

É a partir da segunda metade do século XVII que o processo de testerritorialização mbyá inicia-se, em função da expansão co-lonial voltada à exploração das reservas de madeira e erva-mate a leste de Assunsión, área então dominada pelos Guarani não in-cluídos no sistema reducional jesuíta ou no sistema colonial das encomiendas. Estes so-freram um intenso processo de depopula-ção, causado pelos confrontos e epidemias e

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pela perda da quase totalidade do território original, exigindo uma reestruturação das noções tradicionais de território e mobilida-de espacial (Garlet, 1997; Garlet e Assis, 2009).

A organização social também se reestru-turou a partir desta nova noção de território, tendo como base a família extensa configu-rada de maneira dispersa entre vários aldea-mentos, dispostos na amplitude do territó-rio. Atualmente, a mobilidade espacial é a principal estratégia de re-elaboração dos la-ços sociais e a dinâmica da ocupação do ter-ritório se caracteriza pela circularidade, uma vez que os espaços que correspondem mini-mamente às pautas culturais são constante-mente retomados pelos grupos familiares num sistema de revezamento (Garlet, 1997).

A mobilidade contemporânea configura--se a partir de uma conjunção de fatores que a impulsiona e justifica, destacando-se a busca de espaços que ofereçam condições mínimas para que a existência ocorra de acordo com o ideal de vida projetado cultu-ralmente, permitindo “manter-se Mbyá através do caminhar. Portanto, mesmo não havendo mais espaços ideais que permitam uma existência plena e perfeita, através da circularidade é possível maximizar o poten-cial existente sobre o território e viver de acordo com o modo de ser tradicional (...) caracterizado por uma dinamicidade que recicla e recria o novo a partir da lógica tra-dicional” (Garlet, 1997: 187).

Também na perspectiva cosmológica, é através dos deslocamentos que os Mbyá re-petem constantemente a ação paradigmática das divindades, dando origem a uma nova Terra Sem Males, fundada, estabelecida e cultivada segundo os princípios da cultura (Garlet, 1997).

“Ao proceder desta forma, repetem uma outra ação pa-radigmática: criam o mundo ao caminhar. Imitam os heróis culturais que ao caminharem sobre a terra nomi-

naram as plantas e os animais. Movimento (dança e caminhar) e palavra (palavra-alma e reza) são os fun-damentos do mundo. Ao caminhar e dizer sua palavra ritualizada, os Mbyá fundam o seu mundo e podem ampliar constantemente seu território. Da mesma for-ma, a palavra (proferida e ritualizada) e o movimento (caminhar, partir para outro espaço) podem ser tomados como elementos culturais eficazes tanto na afirmação da identidade como de resistência às pressões inter-étnicas” (Garlet, 1997:187).

Entre os Guarani os motivos do cami-nhar são diversos. Existem deslocamentos por questões de saúde (em busca de trata-mentos xamânico ou da medicina ociden-tal), por motivos de relacionamento (casa-mentos e separações), por saudades de parentes ou ainda para evitar o agravamento de conflitos (na ótica guarani, se afastar dos problemas é a forma preferencial de resolu-ção). Em um sentido cosmológico-religioso, o jeguatá (caminhar) possui grande impor-tância, uma vez que é considerado inerente à condição humana guarani. Caminha-se depois de um sonho premonitório ou de uma visão, bem como por conta da busca por um local mais adequado ao “modo de ser”. Trata-se de uma territorialidade espe-lhada em experiências de ocupações do pas-sado, atualizadas pela memória, sonhos e indicações xamânicas, privilegiando a esco-lha por lugares contempladores de um am-biente propício para se viver, onde se façam presentes a mata (Ka’aguy porã) e determi-nados animais, constituindo um horizonte ecológico-cultural de terras (Garlet, 1997; Pradella, 2009).

As lógicas da mobilidade mbyá são or-denadas pelos grupos de parentes e afins relacionados a um sênior (kuery). Em geral, os acampamentos mbyá são constituídos por um kuery em mobilidade pelo territó-rio, ao passo que a maioria das aldeias indí-genas com situações fundiárias mais estabe-lecidas teria na sua constituição dois ou mais kuery, com localização espacial preci-

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sa e nucleada. Além disso, há uma forte dis-tinção e diferenciação interna entre estes coletivos. Isto significa que atualmente há uma nucleação e atomização importante dos coletivos mbyá que se deslocam neste amplo território. Certamente, esta atomiza-ção não impede a intensa mobilidade acima referida, que se dá, de preferência, dentro destes coletivos, especialmente quando mo-tivados por visitas e consultas aos xamãs. Igualmente, se observa que a mobilidade em conjunto, abarcando uma quantidade expressiva de pessoas, num deslocamento definitivo de uma área para outra, dá-se a partir da lógica do kuery (Gobbi, 2008; As-sis, 2009).

ARQUEOLOGIA GUARANI NO MORRO DO COCO, NO PARQUE ESTADUAL DE ITAPUã E NA PONTA DA FORMIGA

A ênfase das atividades arqueológicas desenvolvidas nas áreas de interesse dos Mbyá foi registrar novas ocorrências e mo-

nitorar as condições de preservação de sítios arqueológicos já identificados. Como a maioria dos dados arqueológicos sobre a re-gião do Lago Guaíba encontra-se inédita, realizou-se uma pesquisa documental junto aos acervos das Instituições depositárias com o objetivo de coligir informações rela-tivas à localização e ao grau de integridade dos sítios e conferir possíveis sinonímias.

Em 1972 Guilherme Naue registrou na porção oeste do Morro do Coco o sítio PA 300: Rogério Christo. Foram realizadas na ocasião coletas superficiais que geraram uma coleção numerosa de vestígios lito-ce-râmicos, sob guarda do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio Grande do Sul (CEPA/PUCRS). A documentação de cam-po original indicava uma área de dispersão de material de 130 m2, a uma distância de 20 m da linha da praia. Durante nossas ativida-des de campo este sítio foi localizado nova-mente e nele foram identificadas cerâmicas

Figura 2 – Sítios Arqueológicos da Tradição Guarani no Morro do Coco.

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arqueológicas aflorando em baixa densidade na linha de praia, em função da ação erosiva das cheias do Guaíba. A continuidade das prospecções na vertente leste do Morro do Coco permitiu o registro de um sítio inédito da Tradição Guarani (RS-LC-18: Morro do Coco) que a semelhança do anterior apre-sentava afloramentos dispersos de fragmen-tos de cerâmica ao longo de 30 m da linha de praia (figura 2).

Na área do Parque Estadual de Itapuã foram registrados de 11 sítios arqueológi-cos da Tradição Guarani desde 1970 (figura 3). Tendo em vista o histórico de litígios entre os Mbyá e a Administração do Par-que, uma das nossas prioridades nas ativi-dades de campo arqueológicas era docu-mentar a existência das aldeias abandonadas na década de 1970. Para tanto, foram reali-

zadas prospecções no Morro da Praia de Fora, contando com a presença de infor-mantes indígenas e não-indígenas que resi-diam nesta área antes da fundação do Par-que. Estruturas associadas a uma destas aldeias foram identificadas sob as coorde-nadas UTM 22J 0494912/ 66538058 e re-gistradas como o sítio histórico RS-LC-19: Tekoá Pindó Mirim. Segundo um dos infor-mantes, nesta aldeia haveria um cemitério onde estão enterrados um homem e uma criança.

Quanto à vistoria dos sítios arqueológi-cos pré-coloniais já identificados e a locali-zação de novas evidências na área do Parque de Itapuã, estas atividades viram-se compro-metidas pela falta de conservação das tri-lhas, pela ausência de limpeza de praias não utilizadas pelo público e pela proibição de

Figura 3 – Sítios Arqueológicos da Tradição Guarani no Parque Estadual de Itapuã

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acesso a certas áreas pela Administração do Parque por motivos de segurança. Destaca se que a construção de estacionamentos e vias de acesso às praias públicas em 1998 ocorreram sem inspeção prévia, levando a destruição de sítios arqueológicos já identi-ficados. A própria visitação do Parque pela população da região metropolitana de Por-to Alegre em busca de locais de lazer no ve-rão é outro fator que contribuiu para a de-gradação dos sítios arqueológicos. Pode-se observar claramente este processo ao resga-tar os dados de acervo das pesquisas ante-riores. A abundância de materiais resgata-dos nos trabalhos das décadas de 1970 e 1980 contrasta fortemente com os resulta-dos das pesquisas dos anos subseqüentes a fundação do Parque.

Os sítios arqueológicos do Parque de Itapuã distribuem-se em quatro ambien-tes: nas praias do Lago Guaíba, nas ilhas, nos morros graníticos (Itapuã, em guarani, significa topo [de morro] de pedra) e nas margens da Lagoa Negra. Nas praias do Lago Guaíba as pesquisas anteriores ti-nham identificado seis sítios arqueológi-cos, dos quais dois foram destruídos pela construção das benfeitorias do Parque: RS--LC-74: Praia da Pedreira (sinonímia RS--LC-03: Sítio da Pedreira-Morro da Forta-leza) e RS-LC-08: Praia das Pombas. Não foi possível localizar novamente os sítios RS-LC-07: Praia do Araçá e RS-LC-11: Praia da Onça, na medida em que estas praias encontravam-se encobertas por de-jetos trazidos pelas cheias do Lago Guaíba e não sofriam manutenção há alguns anos. Por sua vez, os sítios RS-LC-15: Praia do Sítio e RS-LC-16: Prainha foram revisita-dos e apresentaram cerâmica da Tradição Guarani aflorando na linha de praia, em decorrência da erosão fluvial, a semelhan-ça das ocorrências anotadas quando de seu registro original nos anos 90 (Zortea,

1995). Embora estas praias também não tenham sofrido manutenção recente, sua posição geográfica impediu o atulhamen-to. Por outro lado, a ausência de trilhas tem afastado os turistas, contribuindo para a sua preservação.

A ausência de trilhas com manutenção foi usada como justificativa pela Adminis-tração do Parque para impedir o acesso aos sítios arqueológicos situados nos Mor-ros de Itapuã, a fim de garantir a segurança de seus funcionários que deviam nos acompanhar em todas as atividades. O sí-tio RS-LC-39: Morro da Fortaleza foi pes-quisado em 1981 por Eurico T. Miller, jun-to ao Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul (MARSUL), tendo sido identificado em uma área lavrada nos patamares planos da encosta oeste do Morro da Fortaleza, voltado para a Praia da Onça. Neste sítio foi realizada uma escavação de 20 m2, reve-lando uma rica coleção lito-cerâmica, des-tacando-se ainda a presença de duas pon-tas de projétil. O sítio lito-cerâmico RS-LC-17: Morro do Farol foi registrado em 1994 e encontrava-se perturbado pela ação agrícola. O material cerâmico estava distribuído por uma área aproximada de 200 m2 situada sobre um patamar plano, na encosta do último promontório que se-para o Guaíba da Lagoa dos Patos. Foi rea-lizada uma coleta assitemática de superfí-cie e o acervo está sob guarda do Laboratório de Arqueologia da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul (LAE/UFRGS) (Zortea, 1995).

No extremo nordeste da Ilha do Junco foi registrado em 1970, por Pedro A. Mentz Ri-beiro, o sítio RS-LC-70: Ilha do Junco. Situ-ado junto a linha d’água, o sítio distribuía-se por uma área de 150 m2, sobre solo arenoso, tendo sido parcialmente destruído pelas cheias. Foram realizadas coletas de superfí-cie e uma sondagem que evidenciou mate-

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rial lito-cerâmico até a profundidade de 50 cm, sob guarda do MARSUL. As novas visi-tas realizadas neste sítio não identificaram materiais em superfície. Em 1980 Guilher-me Naue registrou o sítio RS-323: Ilha das Pombas (sinonímia PA253), realizando co-letas superficiais e sondagens em uma área de 600 m2. O sítio apresentava característi-cas superficiais, tendo sido resgatada uma numerosa coleção lito-cerâmica sob guarda do CEPA/PUCRS. Não foi possível revistar este sítio, tendo em vista tratar-se de área de nidificação com acesso restrito pela Admi-nistração do Parque.

O sítio RS-LC-75: Lagoa Negra (sinoní-mia RS-LC-04: Lagoa Negra I e RS-LC-06: Lagoa Negra II) foi registrado original-mente no MARSUL por Pedro Mentz Ri-beiro em 1970, sendo caracterizado pela presença de material lítico aflorando em superfície, disperso por uma área de 50 metros. Foram coletados lascas e núcleos, , batedores, pedras com depressão semi-es-férica e apenas um fragmento de cerâmica Guarani. Entre 1990 e 1992 o sítio foi nova-mente estudado por Sergio Baptista da Sil-va, tendo sido realizadas coletas superfi-ciais e uma escavação de 10 m2 que atingiram a profundidade de 1 m. O con-junto artefatual é caracterizado por mate-rial lítico similar ao descrito por Ribeiro e encontra-se sob a guarda do Museu Antro-pológico do Estado do Rio Grande do Sul (MARS). Atualmente a área do sítio é utili-zada como pastagem para o gado e está so-frendo um processo erosivo intenso, em função da ação das cheias da Lagoa Negra.

As investigações na Ponta da Formiga indicam a presença de cinco sítios da Tradi-ção Guarani (figura 4). No Pontal da Faxi-na, situa-se o sítio RS-324: Tarumã (sinoní-mia Riocel e Tekoá Karaguata’ity = aldeia da plantação de caraguatá pequeno), pesquisa-do por Guilherme Naue em 1980. O acervo

documental do CEPA/PUCRS indica que o sítio apresentava grandes concentrações de material lito-cerâmico assentado sobre solo arenoso, tendo sido realizadas coletas de su-perfície. A nova vistoria realizada indicou uma dispersão de cerâmica e artefatos líti-cos a partir linha da praia em direção à mata de eucaliptos, cobrindo uma distância de 150 m.

Nas prospecções que realizamos no Pontal da Faxina registramos três sítios inéditos da Tradição Guarani, próximos ao sítio Tarumã. O sítio RS-LC-22: Tekoá Porã (=aldeia bonita/sagrada) está associa-do a uma duna, situada a poucos metros do Guaíba, com uma altitude de 12 m. O material lito-cerâmico é abundante, distri-buindo-se em duas concentrações distan-tes aproximadamente 100 m. O sítio RS--LC-21: Tekoá Mareÿ (=terra sagrada/pura/perfeita) localiza-se em frente à Ilho-ta, apresentando duas manchas pretas de solo orgânico, gerados por ação antrópica. Ao todo foram identificados neste sítio cinco concentrações distintas de cerâmica e um polidor em canaleta, distribuídas por uma área de 160 m2. Sobre uma duna que dista 300 m das margens do Guaíba foi re-gistrado o sítio RS-LC-20: Tekoá Yma (= aldeia antiga), apresentando baixa densi-dade de material cerâmico em superfície.

Na porção sul da Ponta da Formiga foi registrado em 2007 por Gislene Monticelli o sítio Arroinho I. Situado em área de du-nas na vertente oeste do Morro da Formi-ga, este sítio apresentava fragmentos de cerâmica e uma lâmina de machado lítico polido (Monticelli, 2007). Durante nossas atividades de campo não foi possível relo-calizar este sítio, porém foi registrado um sítio lítico inédito, RS-LC-23: Itaty (= local de muitas pedras/onde as pedras estão nas-cendo/tem vida), caracterizado por uma concentração de núcleos e lascas. Suas co-

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ordenadas são UTM 22J 0485748/6634809 e ausência de artefatos diagnósticos justifi-cou que não tenha sido computado entre as ocorrências da Tradição Guarani aqui ana-lisadas.

SEGUINDO O FLUxO DO TEMPO, TRI-LhANDO O CAMINhO DAS ÁGUAS

A Região Hidrográfica do Guaíba ocupa a porção centro-leste do Estado do Rio Grande do Sul e é formada pelas bacias que drenam direta ou indiretamente para o Del-ta do Jacuí, formando o Lago Guaíba (do guarani “lugar onde a água se alarga”). A su-perfície do Lago Guaíba é de 496 km2, com profundidade média de 3 m, possuindo en-tre 900 m e 19 km de largura e 50 km de comprimento entre o Delta do Jacuí e o Pon-tal de Itapuã, onde desemboca na Laguna

dos Patos. As características hidrodinâmicas do Lago Guaíba apontam, por um lado, para uma facilidade de deslocamentos por água no sentido norte-sul e leste-oeste, tendo em vista o predomínio das correntes no sentido sul e dos sistemas de ventos do quadrante E/SE, ambos de baixa intensidade. Por outro lado, as alterações dos sistemas de vento com a entrada de frentes frias ao longo do ano, mas principalmente no inverno, podem gerar fluxos de ondas de maior intensidade, dificultando as possibilidades de atracagem, pois a arrebentação se dá na proximidade das praias (IBGE, 1986; Nicolodi, 2007; Ni-colodi et al., 2010; Knippling, 2002).

Analisando a distribuição e densidade dos sítios arqueológicos da Tradição Guara-ni na região do Lago Guaíba observa-se um padrão de distribuição regular dos assenta-

Figura 4 – Sítios Arqueológicos da Tradição Guarani na Ponta da Formiga.

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a sobreposição de áreas de ação de distintos tekohá que mantivessem alianças políticas. Este modelo sugere que a área de captação de recursos de um tekohá pré-colonial po-deria ser estimada com um tamanho médio de 50 km de raio.

Integrando este modelo aos dados aqui apresentados, podemos pensar que a área de captação de um tekohá Guarani pré-colonial poderia incorporar ambas as margens do Lago Guaíba, estendendo-se do Delta do Ja-cuí ao Pontal de Itapuã. Assim, teríamos um território de domínio simbolicamente con-tinuo, porém geograficamente descontínuo em função das águas do Lago. As estratégias de manejo de longa duração deste tekohá por pelos menos dois séculos é atestada pe-las datações entre 600 e 400 anos atrás dis-poníveis até o presente para a área (Dias & Baptista da Silva, prelo). Por sua vez, os sí-tios identificados podem estar representan-do tanto o deslocamento das sedes de aldeia neste tekohá ao longo do tempo, quanto a distribuição de aldeias contemporâneas es-trategicamente situadas em distintos pontos da paisagem lagunar.

Mesmo que os recursos sejam abundan-tes e perenes em toda a região, pode-se per-ceber variações sutis de oferta entre deter-minadas áreas do Lago Guaíba, como solos mais férteis para os cultivos ao norte, junto ao Delta do Jacuí; maior concentração de florestas nas encostas voltadas para o sul na porção centro-leste do Lago Guaíba; e maior diversidade de pesca e caça sazonal junto aos banhados do sul, delimitados pelos Pon-tais de Itapuã e do Morro da Formiga (IBGE, 1986). Pode-se sugerir, assim, que o proces-so de colonização pré-colonial do território do Lago Guaíba seria representado por um padrão disperso de aldeias interligadas por laços de parentesco que ocupariam contem-poraneamente pelo menos estes três pontos da paisagem (figura 1).

mentos, privilegiando determinados espa-ços estrategicamente posicionados. Desde o Delta do Jacuí até a desembocadura na La-guna dos Patos, as aldeias antigas ocuparam preferencialmente os pontais, as ilhas e as baias, buscando locais abrigados da incidên-cia do vento sul e privilegiando também a proximidade das margens do Guaíba, em detrimento das encostas graníticas (figura 1). Esta orientação com relação ao sistema de ventos sinaliza, em grande parte, a im-portância dos deslocamentos aquáticos nes-te território, sugerindo que os sítios situados em ambas as margens do Guaíba, bem como nas ilhas, estavam integrados em uma mes-ma rede de sociabilidade. Trataría-se, por-tanto, de um território com características socioculturais contínuas, circunscrito a um espaço geográfico disperso em função do ambiente lagunar. Assim como se configu-ram no presente os assentamentos mbyá, podemos pensar as ocupações pré-coloniais do Guaíba enquanto “ilhas” articuladas por um complexo sistema sócio-cosmológico, compartilhando os recursos do território e conectando-se entre si também através dos “caminhos das águas”, ordenados pelo siste-ma de ventos e correntes.

Partindo do modelo etnoarqueológico defendido por Noelli (1993), podemos en-tender a densidade e profundidade temporal do registro arqueológico do Lago Guaíba em função de estratégias de manejo agro-flores-tal que ofereceriam sustentação a ocupações de longa duração. O padrão de colonização e ocupação territorial Guarani pré-colonial seria temporal e espacialmente contíguo, re-fletindo um modelo de mudança de sede de aldeia dentro de locais anteriormente mane-jados na sua área de domínio (tekohá). Por sua vez, o tamanho da área de captação de recursos de um tekohá poderia variar em função do grau de reciprocidade do conjun-to multi-comunitário, não sendo incomum

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Embora a noção de território e coletivi-dade mbyá seja produto de uma situação histórica dada, as condições geográficas do Lago Guaíba podem ter contribuído signifi-cativamente para uma tendência similar no passado de descentralização territorial das famílias extensas (kuery). Assim como hoje entre os Mbyá, a família extensa (kuery) se-ria a base da organização social no passado, porém configurada de maneira dispersa en-tre vários aldeamentos dispostos na ampli-tude do território, sendo a mobilidade espa-cial e a circularidade das pessoas através da via terrestre e fluvial a principal estratégia de manutenção dos laços sociais e políticos.

Portanto, os espaços escolhidos para ocu-pação pré-colonial se manteriam os mesmo em função da abundância de recursos locais, justificando os padrões nucleados de sítios observados junto a determinados comparti-mentos paisagísticos da região do Lago Gua-íba. Estes seriam os lugares de reprodução do Ñandé Rekó que ao longo de séculos foram recorrentemente retomados pelos grupos fa-miliares, num constante movimento de cir-cularidade que buscava recriar cotidiana-mente o mundo através do caminhar pelas terras e pelas águas do tekohá do Guaíba.

AGRADECIMENTOS: A Fernanda Neu-bauer, Mariana Araújo Neumann, Marilise Moscardin dos Passos, Michael J. Schaefer e Roberta Porto Marques que participaram das pesquisas de campo arqueológicas. Aos coordenadores do, MARS, MARSUL, CEPA/PUCRS e LAE/UFRGS, pelo acesso ao acervo documental sob sua guarda. Por último, gostaríamos de agradecer aos Mbyá que nos acompanharam nas pesquisas de campo, compartilhando conosco suas Belas Palavras.

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ARTIGO

HISTÓRIA(S) INDÍGENA(S)E A PRÁTICA

ARQUEOLÓGICACOLABORATIVA

Juliana Salles Machado1

1- Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo

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RESUMO O presente artigo aborda questões teóri-

co-metodológicas da prática arqueológica colaborativa em comunidades indígenas. Abordaremos questões relacionados a como e porquê realizar pesquisas envolvendo po-pulações tradicionais. A fim de encaminhar tal reflexão, apresento uma pesquisa colabo-rativa entre os Xokleng de Santa Catarina. A co-existência de trajetórias históricas parti-culares em seu território e o conhecimento deste palimpsesto de ocupações e reocupa-ções é o cerne desta pesquisa. Através de uma prática científica colaborativa, tem-se priorizado a construção de discursos multi-vocais, permitindo assim a formação e a in-corporação de distintas noções de tempo, espaço, história e memória.

PALAvRAS-ChAvE: Xokleng, territó-rio, memória, arqueologia colaborativa, ar-queologia indígena.

ABSTRACT This article approaches theoretical and

methodological issues of the collaborative archaeological practice in indigenous com-munities. We will deal with questions rela-ted to the how and why to realize research involving traditional populations. In order to address this, I present a collaborative re-search with the Xokleng, an indigenous group of Santa Catarina. The co-existence of particular historical trajectories in their ter-ritory and the understanding of this palimp-sest of occupations and reoccupations is the focus of this research. Through a collabora-tive scientific practice, we have given priori-ty to the construction of multivocal discour-ses, thus allowing the formation and incorporation of distinct notions of time, space, history and memory.

KEywORDS: Xokleng, territory, me-mory, collaborative archaeology, indigenous archaeology.

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HISTÓRIA(S) INDÍGENA(S) E A PRÁTICA ARQUEOLÓGICA COLABORATIVA Juliana Salles Machado

PROTESTO POR wALDERES COCTÁ PRIPRÁ TI LAKLãNõ, AGOSTO 2013

No Brasil temos um grande numero de povos, cada um com o seu modo de viver e de ver o mundo. Dentre tantos povos e culturas temos também os povos indígenas que também possuem seu modo de ver e viver, todos tem um ponto de vista e por isso devem ser respeitados. Muitos que não conhecem a trajetória do meu povo, Xokleng/Laklãnõ, muitas vezes questionam dizendo, por que o índio quer tanta terra? Mal sabem eles que o povo Xok-leng/Laklãnõ durante muitos anos habitou no vale do Itajaí, nas encostas das montanhas e no planalto do sul do Brasil e sobreviviam da caça, da pesca e da coleta de frutos silvestres e mantinham vivas sua língua, cultura e tradição, com a chegada da chamada civilização euro-peia tudo mudou, os índios foram  massacrados e uns levados para serem vendidos como escravos nos merca-dos de São Vicente e na Baia de Todos os Santos, os que sobreviveram foram mortos por doenças transmitidas pelos colonizadores, dizimando quase todos os indígenas. Hoje os sobreviventes do povo Xokleng/Laklãnõ lutam para reconquistar uma terra que um dia já foi deles, mas devido a tantas burocracias o povo perece,  pois, se no passado os índios foram mortos a fio de facão, escopetas e espingarda, hoje tentam matar na caneta e no cansaço mais como sobrevivemos a tantos ataques na aurora do dia iremos lutar até o fim para reconquistar nossos direi-tos pelas terras ao qual esta sendo reivindicada. 

Com o protesto de Walderes Coctá Pri-prá, acadêmica Xokleng inicio este artigo, no qual quero refletir sobre aspectos teórico--metodológicos da prática arqueológica rea-lizada em áreas habitadas por populações chamadas de “tradicionais”, tais como indí-genas, ribeirinhos, quilombolas, entre ou-tras. Mais especificamente gostaria de focar em um fazer colaborativo da pesquisa que recentemente vem sendo realizado nos con-textos brasileiros e mundiais e de maneira mais ampla tem sido relacionado a uma perspectiva de pesquisa mais comumente conhecida como etnoarqueologia (David e Kramer 2001, Silva et al 2007, 2009a, 2009b, 2011a, 2011b, 2012a, 2012b). O intuito é tra-zer à discussão os distintos interesses em pauta quando tratamos da questão do patri-mônio arqueológico. Para dar suporte a esta

questão irei utilizar como estudo de caso o diálogo estabelecido por mim com os acadê-micos indígenas Xokleng, tal como Walde-res, além de posições de outros membros dessa população indígena. Tal diálogo teve início no âmbito da formulação de um pro-jeto de pesquisa no qual se buscou tratar questões relativas ao passado a partir de situ-ações do presente, tendo como eixo nortea-dor a história de formação do território indí-gena Xokleng no estado de Santa Catarina.

A importância de abordarmos esta pes-quisa neste artigo em específico está, em um primeiro momento, na compreensão de sua própria formulação a partir de uma deman-da indígena dos Xokleng pela pesquisa ar-queológica em sua terra. Tratarei aqui por-tanto de esclarecer o contexto desta demanda e as consequencias destas distintas visões sobre arqueologia para a (re)configu-ração de nossas práticas científicas.

Os Xokleng ocupam atualmente no esta-do de Santa Catarina a terra indígena Lak-lãnõ. A TI Laklãnõ iniciou-se com a criação de um posto indígena de atração em 1914 (Nigro 2004), quando foi demarcada uma área de 20 mil ha. Ao longo destes anos, no entanto a área foi diminuindo em função das frentes de colonização, exploração de madeira, construção de hidroelétricas, inva-são das terras pela agricultura e pecuária e pelo crescimento urbano na região (Nigro 2004, Pereira et al 1998). Atualmente apenas 14.088 ha da terra indígena estão registrados (CRI – SPU), no entanto os Xokleng utili-zam cerca de 17 ha em 8 aldeias. Em 1999 foi definido uma ampliação da terra indígena para 37.108 ha, contudo, desta apenas 23.024 ha foram declarados e estão em questão no STF. A questão da delimitação da terra indí-gena é, portanto, um tema que tem preocu-pado muito os Xokleng.

Há aproximadamente cinco anos ou mais, os Xokleng vêm passando por um pro-

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cesso de auto-reflexão ou auto-re-criação, o que na antropologia muitos têm chamado de aprender a ser índio no mundo contempo-râneo. Isto é, um processo consciente de busca e reflexão de sua própria cultura e re-afirmação de sua identidade cultural, atra-vés da retomada de saberes e conhecimentos do passado. Este complexo processo de re--construção de sua memória está intrinseca-mente relacionado com os fenômenos polí-ticos, econômicos e sociais do presente. Cada povo indígena possui sua trajetória histórica particular o que faz com que tam-bém suas demandas contemporâneas com relação a sociedade nacional, com a propria transformação e manutenção de sua cultura lhe seja específica. A atual busca do ser índio hoje, mais do que uma reflexão sobre seu próprio eu, é uma reflexão da sua relação com o externo. É uma construção contem-porânea do que lembrar e do que esquecer, de quais objetos devem compor o repertório tradicional de seu povo, suas festas, rituais, histórias ancestrais, enfim qual é o repertó-rio significativo para ser Xokleng hoje. Tal fenômeno no entanto deve ser compreendi-do através deste contexto de mudanças, o que no caso específico dos Xokleng, de um contexto de aumento demográfico intenso, perda acelerada de sua língua nativa, de suas relações de trabalho e poder com os brancos e, como já havíamos mencionado anterior-mente, a iminente ameaça a sua terra.

Foi neste cenário que em 2011 foi criado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a Licenciatura Intercultural Indíge-na do Sul da Mata Atlântica: Xokleng, Kain-gang e Guarani, com o enfoque “Territórios indígenas: questões fundiária e ambiental no Bioma Mata Atlântica”, curso que atualmen-te conta com 33 alunos Xokleng. Os estu-dantes indígenas passaram por um processo de indicação dentro de suas aldeias e a maio-ria dos indígenas Xokleng que frequentam

este curso são professores da escola diferen-ciada indígena, no entanto há também ou-tras pessoas vindas de diversas aldeias, além de lideranças e caciques regionais que não estão vinculadas a escola. Este grupo teve como parte de sua atividade curricular aulas de arqueologia ministradas na universidade e um trabalho a ser realizado na aldeia (no chamado tempo-comunidade). A disciplina chamou especial atenção dos Xokleng, que muito se interessaram pelas questões relati-vas à identificação da cultura material de seus antepassados e a possibilidade de discu-tir o passado Xokleng na academia. Com base nestes interesses muitos buscaram al-deias antigas e sítios arqueológicos no entor-no da terra indígena e trouxeram sepulta-mentos e cerâmicas para a universidade, sem naquele momento saberem da prática de sistematização da coleta e documentação dos mesmos, além da política nacional de preservação destes objetos, tidos como pa-trimônio da união. Tendo sido repassados então tais noções da prática arqueológica e as especificidades metodológicas desta disci-plina, os Xokleng então demonstraram vivo interesse no estabelecimento de uma pesqui-sa arqueológica sobre o seu passado naquele território.

Quando esta demanda Xokleng chegou a mim, tivemos um primeiro encontro na uni-versidade para discutir quais eram as expec-tativas deles em relação a esta pesquisa. Des-ta conversa inicial o principal tema era como a arqueologia podia ajudá-los no reconheci-mento de seu território tradicional. Após esta discussão, eles também ressaltaram seu interesse no potencial da pesquisa em trans-mitir o conhecimento tradicional Xokleng para os mais jovens, usando assim a arqueo-logia como forma de preservação de sua me-mória. Com base nesta demanda e expecta-tivas propus um projeto baseado na abordagem da arqueologia colaborativa, na

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qual podíamos conjuntamente elaborar (e constantemente re-elaborar) as questões pertinentes à pesquisa arqueológica e ao co-letivo Xokleng, além de todos se envolverem na sua aplicação prática (cronograma, méto-dos e técnicas) e a interpretação dos dados.

Em um segundo encontro, ainda na uni-versidade, expus a eles as discussões arque-ológicas já existentes para a região atual-mente ocupada pela terra indígena, mostrando quais foram as questões aborda-das e quais são os modelos científicos exis-tentes para compreender a trajetória pré--colonial dos índios na região (Noelli 1996, 1999, 1999/2000, Schmitz e Beber 2011, Sil-va 2000, Eble 1973). Neste momento foi ex-posto a dificuldade da arqueologia em asso-ciar os vestígios arqueológicos encontrados na região sul do Brasil aos Xokleng, sendo mais comumente utilizado uma macro-divi-são entre os Jê do sul (categoria que envolve os Xokleng e os Kaingang) e os Guarani. Outra abordagem utilizada está relacionada a divisão entre tradições arqueológicas (tra-dição cerâmica Itararé, Casa de Pedra e Ta-quara) sem uma correlação direta as popu-lações que as produziram.

Há no entanto, uma tentativa dos pes-quisdores em identificar grupos culturais associados aos vestígios categorizados. A Tradição Taquara estaria associada no Rio Grande do Sul aos Kaingang, pois seus ves-tígios são encontrados em áreas ocupadas historicamente por estes grupos. A tradição Casa de Pedra, segundo Miller, teria sido um erro de classificação e estaria relaciona-da as outras duas tradições. O problema maior entre a correlação das tradições ar-queológicas com grupos etnográficos está na tradição Itararé, que se espalha por áreas de Santa Catarina, Paraná e São Paulo e ora é associada aos Xokleng ora aos Kaingang.

Tal quadro foi muito questionado pelos Xokleng que afirmavam conseguir diferen-

ciar seus vestígios daqueles relacionados aos Kaingang. Eles então me perguntaram, “isso não vale?” Esta pergunta tocou no ponto crucial do fazer arqueológico contemporâ-neo: como lidar com as diferentes formas de construção do conhecimento, especialmente no caso de trabalhos com, para ou pelas po-pulações indígenas? Como praticar uma ar-queologia menos excludente e mais respon-sável perante as populações indígenas que durante muito tempo permaneceram relega-das à objetos de pesquisa e não sujeitos ativos na construção de um conhecimento público ou cientificamente aceito (Colwell-chantha-phonh e Ferguson 2008, Colwell-Chantha-phonh 2009, Silliman 2008, Smith e Wobst 2005, Meskell 2009, Silva 2012, 2011).

Pega de surpresa, minha resposta para esta pergunta tão pertinente foi que ela atu-almente era válida entre eles e pequenas partes da sociedade, sensíveis às questões indígenas, mas que com este projeto, nosso intuito seria discutir e refletir sobre as pos-sibilidades de torná-la válida também pe-rante o discurso público, legal e/ou científi-co. Acredito ser este o desafio contemporâneo da arqueologia colaborati-va, flexibilizar a pesquisa arqueológica para incorporar diferentes visões sobre o passa-do, não de forma a produzir um discurso homogêneo e estável, mas sim trazendo a complexidade e diversidade de idéias sobre o passado, sobre cultura material e sobre o patrimônio como um todo. Assim a impor-tância deste projeto está baseada na possibi-lidade de contemplar, por um lado, uma problemática tradicionalmente classificada como “arqueológica” acerca da trajetória histórica dos Xokleng nesta região sul do Brasil (vide questões ainda em aberto sobre a diferenciação dos vestígios materiais rela-cionados aos Xokleng ou Kaingang, ainda agrupados na designação Jê do sul; a asso-ciação das tradições cerâmicas Itararé-Casa

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de Pedra-Taquara e líticas como Umbu, com estas populações indígenas, ampla-mente debatida, mas ainda com poucas abordagens interdisciplinares e principal-mente etnoarqueológicas (ver Noelli 1999), e questões mais geral sobre território, mobi-lidade e padrão de assentamento) e outra êmica, relacionada à questões sociais, polí-ticas e de memória em grande indissociá-veis da questão da terra e do território.

Através deste diálogo estabelecemos conjuntamente que o território seria por-tanto o eixo comum de nossos interesses e através dele poderíamos abordar questões centrais tanto do ponto de vista acadêmico, como para os interesses coletivos indígenas. Usando a linguagem já difundida dentro da acadêmia (mas que acreditamos agrupar as questões relevantes tanto para nós pesqui-sadores, como pelos coletivos indígenas, conforme discutido anteriormente), pode-riamos apontar então que a pesquisa passou a tratar de questões relativas à: forma de utilização do território (Zedeño 2008, 1997, Silva e Stuchi 2010; Silva 2011, Silva et al 2011); ao significado dos lugares (Bowser e Zedeño 2009, Whitridge 2004, Carroll, Ze-deño e Stoffle 2004, Silva 2011, 2010), ao manejo ambiental (Machado 2012, Stewart, Keith e Scottie 2004), e às concepções de mundo relacionadas ao uso e apropriação do espaço e a criação do sentimento de ter-ritorialidade (Machado 2012, Zedeno 2009, Bowser e Zedeño 2009; Colwell-chantha-phonh e Ferguson 2008). No questionamos sobre como estas atividades do presente es-tão imbricadas com aquelas do passado. Es-tas ações mudaram com relação ao passa-do? Como?

Na prática este projeto incorpora uma pesquisa documental, a coleta e análise de aspectos da história oral e a implementação de práticas arqueológicas de levantamento, prospecção e escavação amostral nas aldeias

antigas e áreas de manejo ambiental (Balée 1994, Posey 1987, Machado 2012) identifi-cáveis na TI e entorno, incorporando tam-bém sítios arqueológicos previamente iden-tificados e selecionados amostralmente dentre o vale do Itajaí (Eble 1973, Schmitz e Beber 2011, Noelli 1996, 1999, 1999/2000, Nigro 2004, Reis 2002). É a partir de uma visão integrada entre estes aspectos que re-fletimos sobre o que mudou e o que perma-neceu na ocupação, uso e manejo deste ter-ritório na longa-duração.

Articulando estes interesses podemos realizar um fazer arqueológico mais ético e responsável para com estas populações (vide bibliografia como por exemplo, Colwell-chanthaphonh e Ferguson 2008, Colwell-Chanthaphonh 2009, Silliman 2008, Smith e Wobst 2005, Meskell 2009, Silva 2012, 2011a, Silva et al 2011, entre ou-tros), na qual busca-se aliar interesses so-ciais e políticos das populações indígenas com os acadêmicos em busca de uma pro-dução do conhecimento sobre o passado mais inclusiva e multivocal, uma que incor-pore diferentes visões sobre o passado e so-bre o usufruto do patrimônio arqueológico (Smith 2008, Silva 2011b). A possibilidade de tecer pesquisas que conjuquem interes-ses e problemas científicos, acadêmicos, so-ciais e políticos representa um grande passo para uma nova prática arqueológica, mais responsável e ciente de seu papel perante a sociedade e, mais especificamente, perante populações historicamente silenciadas (Sil-va 2011a, 2011b; Silva et al 2011). Tendo em vista que toda arqueologia tem implicações sociais e políticas (Smith e Wobst 2005, Meskell 2009), uma prática colaborativa re-força a necessidade de repensarmos os mé-todos e teorias até então praticados tanto do ponto de vista da disciplina arqueológica (Colwell-chanthaphonh e Ferguson 2008, Colwell-Chanthaphonh 2009, Silliman

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2008, Silva 2011a), como do gerenciamento e usufruto do patrimônio arqueológico (Smith 2008, Ferreira 2011, Silva 2011b).

LUGAR, MEMóRIA E TERRITóRIOComo mencionamos anteriormente, ao

estabelecer como eixo norteador deste pro-jeto o seu território tradicional Xokleng, es-tamos dialogando principalmente com as discussões do manejo ambiental e da paisa-gem. Na arqueologia, paisagem é tida mui-tas vezes como sinônimo de meio-ambiente, dissociada da sociedade humana e concebi-da como repositória de recursos necessários para obtenção e manutenção da subsistência dos grupos humanos; como sinônimo de es-paço, paisagem como terra, composta por componentes bióticos e abióticos, com es-trutura e transformação própria, decorrente de uma dinâmica interna a qual os homens tentam se adequar e domesticar. Essa mes-ma paisagem externa, que precisa ser do-mesticada para ser incorporada pode ser vista como algo indissociável, construído não apenas pela domesticação, mas pela percepção.

Durante muito tempo, na arqueologia a noção de lugar era isenta da idéia de um lu-gar significativo (meaningful places) (Zede-no 2008, Bowser e Zedeno 2009) e de um significado de “estar em um lugar” (meanin-gful emplacement), assim como estava isenta de experiência social e “saliência”, como nos indica David e Thomas (2008). Ainda na dé-cada de 1980, os trabalhos de Ian Hodder (1986) indicavam que o registro arqueológi-co sinalizava não tanto humanos biologica-mente adaptados, mas pessoas sociais inte-ragindo que se engajavam com seu entorno de diversas maneiras, incluindo práticas simbólicas. Paisagens então deixaram de ser “paisagens ambientais” para serem de fato “paisagens sociais”. Arqueologia da paisa-gem hoje trata tanto de dimensões ontológi-

cas e cosmológicas dos lugares como de ca-racterísticas físicas.

A dwelling perspective proposta por In-gold ressalta a historicidade, ou temporali-dade para usar seu próprio termo, desta pai-sagem. Este engajamento perceptivo dos humanos com o ambiente cria a própria paisagem e dentro dela encontramos a cria-ção dos chamados lugares. Lugar para Paul Lane (2008:240) é parte de uma paisagem maior constituída de história, atividades ro-tineiras ou ambos. Cada lugar tem qualida-des distintas e significativamente particula-res derivadas de suas inter-relações com outros lugares que são eles próprios parcial-mente criados pela performance repetida de atividades costumeiras mas também par-cialmente pelo ato de contar.

Segundo David e Thomas “para entender a paisagem deve-se delinear seus meios de engajamento, a maneira que é entendida, codificada e vivida na prática social e cada um desses, assim como a própria paisagem, tem história (2008: 36). É nesse sentido que as paisagens são sempre espaços territoriais, porque são controladas e contestadas na prática social e política e são ontológicas “porque são sempre conhecidas através da emergência de visões de mundo históricas” (David e Thomas 2008:38).

Estudos contemporâneos de território em sociedades passadas moveram além da distribuição espacial de artefatos portáteis para abarcar feições anteriormente ignora-das como santuários, megalitos, arte rupes-tre entre outros, como sinais materiais de territórios antigos. Muitos habitats de plan-tas assim como fontes minerais também fo-ram abordadas da perspectiva dos direitos de uso individual e de grupo, assim como seres espirituais (Zedeño 2008:213). A com-binação de fatores naturais com modifica-ções humanas é que permite aos arqueólo-gos identificar não apenas territórios, mas

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formas e estratégias específicas de territoria-lidade, que é um processo que “envolve con-trole, exclusão e defesa para humanos serem capazes de interagir em um espaço tridi-mensional que pode eventualmente ser um território” (Zedeño 2008).

ALGUMAS REFLExõES SOBRE PATRI-MôNIO

Ao ter como foco o território e a territo-rialidade, ao trabalhar de forma conjunta com coletivos indígenas, estamos lidando não apenas com o significado da variabilida-de dos vestígios arqueológicos, mas também com distintas formas de pensar, disttintas percepções sobre o passado, sobre os objetos e sobre a paisagem. Tais diferenças tem con-sequencias importantes para a pesquisa e geram reflexões contundentes sobre o papel do arqueólogo. Escolher que sítios arqueoló-gicos serão preservados e quais serão pes-quisados e destruídos é função do arqueólo-go. O arqueólogo é portanto o responsável pelo gerenciamento do patrimônio arqueo-lógico, mesmo que, em geral, as pesquisas arqueológicos não tenham como principal preocupação a questão do patrimônio. O fa-zer arqueológico é portanto inexoravelmen-te relacionado a preservação ou não deste patrimônio. No entanto, a questão patrimo-nial é pouco discutida dentre as pesquisas (Smith 2008), e quando o é, normalmente está relacionada a sua gestão e não a uma postura reflexiva. Contudo, quando estamos tratando de uma arqueologia colaborativa em terra indígena, uma questão de base se coloca, parafraseando alguns autores, a quem interessa o passado (apud Silva 2011b)? Quem tem o direito de escolher o que deve ser preservado ou destruído e como? Alguns autores, principalmente no contexto internacional, trouxeram à luz esta questão (Smith 2008; Faircclough et al 2008; Ferreira 2011; Silva 2011b) e nos indicam

como a ciência e mais especificamente a ar-queologia assumiu uma postura de autori-dade perante as instituições e orgãos públi-cos em detrimento às comunidades e coletivos não-científicos. Como alguns au-tores tornam evidente, o processo de valori-zação da ciência enquanto único ponto de vista válido para decidir acerca da gestão do patrimônio arqueológico está pautado em uma história colonialista de formação da disciplina (Smith 2008; Smith e Wobst 2005; Ferreira 2011) e sua ratificação pelo aparato institucional e governamental (Smith 2008; Fairclough 2008, Silva 2011b).

Tal legado colonialista vem sendo trata-do por diversos autores que propoem práti-cas contemporâneas que visem equilibrar de maneira mais justa a construção do discurso sobre o passado incorporando percepções de outros agentes não-cientificos também interessados no tema. Como nos ressalta Sil-va (2011:189), “não são apenas os arqueólo-gos que valorizam o conhecimento sobre o passado e que as razões para a preservação do patrimônio arqueológico são múltiplas, contextuais e situacionais”. Esta mesma au-tora chama atenção para as percepções dis-tintas sobre o que é patrimônio e como ele deve ser usufruído: “em contextos indíge-nas, portanto, a investigação arqueológica precisa fazer um esforço para abandonar suas concepções “etnocêntricas” sobre o passado e a memória, considerando a diver-sidade e o pluralismo destas concepções na interpretação e apropriação do patrimônio cultural” (Silva 2011:207)

Como indicamos ainda na introdução deste artigo, a questão sobre quem pode produzir conhecimento sobre o passado é latente desde a formulação desta pesquisa junto com os Xokleng. O que buscamos ao longo de toda a prática arqueológica cola-borativa é uma atitude reflexiva sobre a questão do patrimônio. Por lidar com as po-

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pulações indígenas ou tradicionais em geral, temos a oportunidade de dispor de práticas que contemplem suas próprias formas de percepção histórica. Fugindo de uma forma de “ensinamento” sobre o patrimônio, mas construindo conjuntamente visões mais plurais sobre o que é patrimônio cultural para cada um e como podemos vivencia-lo, preservá-lo e integrá-lo nas realidades parti-culares de cada contexto.

O QUE ESPERAMOS DE NOSSAS PES-QUISAS COLABORATIvAS?

Os resultados de pesquisas colaborativas podem ser entendidos por dois vieses: um relacionado ao conhecimento produzido so-bre os povos tradicionais (neste caso, os Xokleng, o Jê do sul e o manejo e concepção do território do vale do Itajaí – dados pou-quíssimo explorados até o momento) – e outro relacionado ao próprio processo de construção de um fazer arqueológico com os coletivos indígenas. No nosso estudo de caso, poderíamos associar a produção de co-nhecimento sobre a problemática arqueoló-gica de ocupação pré-colonial do sul do Bra-sil (Noelli 1999, 1999/2000, Schmitz e Beber 2011, Reis 2002) e a dificuldade em relacio-nar os vestígios materiais, especificamente neste caso a cerâmica (Silva 2000, Noelli 1999) com grupos étnicos. Segundo Noelli (1999), é apenas a partir de abordagens in-terdisciplinares e, mais especificamente, de abordagens que envolvam pesquisas etnoar-queológicas, que a relação entre os Xokleng e os Kaingang e os vestígios arqueológicos atualmente atribuídos de forma genérica ao Jê do sul, poderão ser melhor compreendi-dos e, consequentemente, a ocupação pré--colonial desta região por estas populações. No entanto, esta pesquisa não se propõe a diferenciar as cerâmicas arqueológicas co-nhecidas entre os grupos indígenas atuais, mas sim, buscar compreender como neste

processo atual de “pró-vitalização cultural” (parafraseando um termo muito corrente entre os acadêmicos indígenas), os Xokleng tem pensado e resgatado seu patrimônio cultural em termos de ações cotidianas, ati-vidades produtivas (manejo ambiental, co-nhecimento etnobotânico, produção de ob-jetos). Buscamos assim as associações destas práticas com o passado e construção de sua memória. O foco aqui é compreender como o passado compõem o presente, como a his-toricidade ou a temporalidade é pensada e praticada e como ela tem se representado como um elemento transformador do futu-ro destas sociedades na sua relação com a sociedade nacional. Talvez com este tipo de abordagem, que favorece uma visão integra-da do patrimônio material e imaterial, pos-samos ter novos subsídios para discutir os contextos arqueológicos e buscar novos sig-nificados para nossas tão desgastadas classi-ficações.

O segundo viés que pesquisas colabo-rativas traz está na descentralização da produção do conhecimento, ao propagar uma prática mais reflexiva, inclusiva e ética. Trata-se de criar uma nova relação entre pesquisadores e coletivos locais, trazendo para a disciplina arqueológica uma postura de engajamento social e político que no contexto internacional há algum tempo a antropologia de uma maneira mais ampla já adotou, mas que no Brasil, devido em grande parte à his-tória colonialista da arqueologia, esta fi-cou à margem dessas discussões. Acredi-to que o estabelecimento de uma relação distinta entre sujeitos e objetos da pes-quisa tem um potencial efetivo de mu-dança na produção do conhecimento em arqueologia.

Os resultados de pesquisas colabora-tivas também reverberam em dois âmbi-tos, no meio acadêmico e entre os coleti-

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vos indígenas envolvidos. No exemplo utilizado de nossa pesquiso junto com os Xokleng, no âmbito acadêmico, esta pes-quisa será realizada em parceria com os acadêmicos indígenas da Licenciatura Intercultural Indígena da UFSC, que so-licitaram a pesquisa em sua terra e que participam do projeto desde sua concep-ção. Assim o projeto, seu andamento e resultados serão discutidos na universi-dade com os Xokleng através de grupos de trabalho no tempo-universidade, participação nas etapas de campo e reu-niões de trabalho durante o tempo-co-munidade. Atualmente aproximada-mente 20 alunos Xokleng fazem parte do grupo de trabalho sobre este três se de-dicam mais efetivamente na co-coorde-nação desta pesquisa, o que deverá gerar publicações em co-autoria e participa-ção de eventos sobre o tema.

Outra forma de disseminação dos re-sultados está relacionada as comunida-des indígenas. Entre os Xokleng, sendo uma pesquisa colaborativa, a participa-ção dos interessados na pesquisa entre os Xokleng das oito aldeias, está aberta para além dos chamados acadêmicos in-dígenas. Assim, realizamos encontros abertos nas aldeias, discussões com lide-ranças e caciques, de forma que todos os interessados da comunidade possam participar, incluindo formas variadas de envolvimento no projeto. A repercussão de tal envolvimento não pode ser medi-da a priori, pois é dependente do engaja-mento das pessoas ao longo da pesquisa e tem se mostrada bastante variável, de-pendendo do calendário de outras ativi-dades coletivas na TI, como as festas da escola e do tão popular Dia do Índio. No entanto, tendo em vista tratar-se de um projeto baseado em uma demanda dos próprios indígenas, é esperado uma in-

tensa participação deles nas atividades e resultados do projeto. Trabalhos seme-lhantes realizados em comunidades in-dígenas no Brasil (Silva 2011, Silva et al. 2011, Bespalez 2009, Stuchi 2010), Esta-dos Unidos (Zedeño 1997, 2008; Colwell-chanthaphonh e Ferguson 2008; Siliman 2008) e Australia (Smith 2008) mostram um grande impacto na dinâ-mica interna das comunidades, gerando uma mobilização interna e uma reflexão geral sobre o passado e sua ancestralida-de. A importância do passado dentre as comunidades indígenas é bastante co-nhecida na antropologia, no entanto, o que os índios tem buscado através destas parcerias é tornar este conhecimento tradicional válido em termos científicos. Isto se deve, em grande parte, a dificul-dade que estes grupos tem enfrentando na manutenção de seu território tradi-cional. O aumento no número de obras de desenvolvimento (hidrelétricas, es-tradas, linhas de transmissão, etc.) tem gerado um conflito crescente entre estes grupos e a sociedade nacional. O uso tradicional do território e seu vínculo com a região tem sido um dos principais argumentos utilizados na defesa de suas terras. É neste sentido que a arqueologia assume um lugar privilegiado nesta dis-cussão, pois tem o potencial de transmi-tir a partir de moldes científicos a rela-ção dos grupos indígenas com o território em uma ampla escala tempo-ral. Tal possibilidade tem motivado um grande envolvimento das comunidades indígenas com a prática arqueológica, revitalizando discussões sobre o passado e, em muitos casos, levando a uma prati-ca intensiva dos mais velhos para os mais novos sobre o uso do território, as anti-gas aldeias e as práticas ancestrais. Em muitos casos, objetos materiais tradicio-

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nais que há muito haviam sido abando-nados, voltam a ser produzidos e ativa--se um engajamento dos mais novos para a manutenção deste conhecimento tradicional.

É neste sentido que o envolvimento dos Xokleng na pesquisa arqueológica tem um potencial de reflexivilidade so-bre o passado Xokleng, seus vestígios e uso do território. Desde sua concepção, ele tem estimulado os mais jovens a bus-car os sábios mais velhos na busca do fortalecimento e reafirmação de uma memória coletiva tradicional. Foi pro-posto por eles a criação de material didá-tico como resultado desta pesquisa para utilização em sala de aula na escola indí-gena da TI La-Klaño. Este material será produzido em colaboração com a Licen-ciatura Indígena Intercultural e será concebido pelos próprios indígenas do curso a partir de uma discussão conjun-ta dos resultados da pesquisa.

Outro resultado que poderia ser con-siderado um produto de ambos vieses, e que tem sido uma prática em contextos internacionais é a produção do que po-demos chamar de mapas êmicos ou et-nomapas. Um mapa êmico é uma repre-sentação visual, gráfica, do território. Esta materialização visa agregar diversos conhecimentos acerca do território e pode ter inúmeras variações dependen-do dos interesses da comunidade e dos pesquisadores envolvidos. De maneira geral, vê-se uma associação entre uma visão ocidental, pautada na cartografia de escalas métricas, e as concepções, e associações nativos acerca de sua terra. Pretende-se assim produzir uma repre-sentação gráfica em papel que demons-tre o significado e articulações dos luga-res que compõem o território atual e passado indígena. Trata-se de uma for-

ma de tradução visual das múltiplas co-nexões estabelecidas entre os coletivos indígenas e seu território, condensando visões de passado, presente e futuro que perpassam relações de pertencimento social, de parentesco e suas cosmovisões. A articulação entre a materialização des-tas relações e as representações de cunho cartográfico são frequentes, tendo em vista o uso recorrente desta documenta-ção não apenas pelos pesquisadores, mas também como ferramenta política na delimitação de suas terras e direitos tradicionais. No estudo de caso de Xok-leng, a produção coletiva deste mapa foi proposta como parte consitutiva do ma-terial didático a ser produzido.

Realizar pesquisas colaborativas e, mais especificamente pesquisas arqueo-lógicas em terras indígenas ou de popu-lações tradicionais de maneira geral, é, em um primeiro momento, compreen-der as diferentes expectativas, práticas e visões sobre o mundo - passado, presen-te e futuro de cada uma das partes envol-vidas na execução desta pesquisa. É tam-bém refletir o que vamos fazer sobre esta diferença. Não trata-se pois do estabele-cimento de uma narrativa histórica so-bre as populações indígenas, um discur-so que consiga articular tanto visões acadêmicas ocidentais e visões nativas. Trata-se sim de respeitar e compreender as distintas historicidades, temporalida-des e relações com os objetos, pessoas e lugares. Trata-se de um compromisso ético de que estas pessoas sejam ouvidas perante a sociedade e perante as legisla-ções, trata-se assim de tornar mais simé-trico o papel de seus discursos e visões sobre o passado (e assim inevitavelmen-te sobre seu presente e seu futuro) pe-rante uma sociedade que atualmente não possui as ferramentas necessárias

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para estabelecer esta multivocalidade em termos legais, especialmente quando estamos tratando do gerenciamento do patrimônio cultural (material e imate-rial) e a regulamentação de seus direitos sobre a terra.

AGRADECIMENTOS: Esta pesquisa tem financiamento da FAPESP e faz parte de meu pós-doutorado no Museu de Arqueolo-gia e Etnologia da Universidade de São Pau-lo. Agradeço a Fabíola A. Silva e Francisco Noelli pelo apoio e comentários ao longo da pesquisa e a todos os acadêmicos Xokleng da Licenciatura Intercultural Indígena da UFSC pela colaboração e oportunidade de trabalho conjunto.

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Eduardo Bespalez

ARTIGO

ARQUEOLOGIAE ETNO-HISTÓRIA

NA TERRA INDÍGENA LALIMA,

MIRANDA/MSEduardo Bespalez1

1- Doutorando em Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), professor do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de

Rondônia (DARQ/UNIR)

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 86-94 - 2013Eduardo Bespalez

RESUMO:Desde a primeira vez em que demonstrei

meu interesse em pesquisar arqueologia na Terra Indígena Lalima aos índios que a ocu-pam, muitos identificaram pesquisa arqueo-lógica com etno-história e territorialidade. Um deles, Manoel de Souza Neto, escolhido pelas lideranças indígenas para auxiliar as atividades de pesquisa, logo se mostrou um profundo conhecedor da paisagem cultural e do território tradicional. Além das taperas ou ruínas das antigas moradias, o Manoel também pôs ênfase numa rede de lugares dispostos na paisagem, tais como marcos territoriais, recursos naturais e locais cheios de significados culturais, situados dentro e fora dos limites territoriais registrados pela FUNAI. Assim, este artigo tem o objetivo de apresentar os resultados iniciais de um estu-do etnoarqueológico destes lugares signifi-cativos.

PALAvRAS-ChAvE: arqueologia, etno-arqueologia, etno-história, história indíge-na, Terra Indígena Lalima/Miranda/MS.

ABSTRACT:Since the first time that I showed my in-

terest in researching archeology in the Lali-ma Indigenous Land to the Indians occu-pying it, many identified archaeological research with ethno-history and territoriali-ty. One, Manoel de Souza Neto, chosen by indigenous leaders to assist research activi-ties, soon showed a deep knowledge of the cultural landscape and the traditional terri-tory. Besides the Taperas or ruins of ancient villages, Manoel also put emphasis on a ne-twork of places arranged in the landscape, such as territorial landmarks, natural re-sources and places full of cultural meanings, located inside and outside the territorial li-mits recorded by FUNAI. Thus, this paper aims to present the initial results of an eth-noarchaeological study of these meaningful places.

KEywORDS: Archaeology, Ethnoarcha-eology, Ethno-history, Indian History, Lali-ma Indigenous land / Miranda / MS.

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ArqueologiA e etno-históriA nA terrA indígenA lAlimA, mirAndA/ms Eduardo Bespalez

Guana, pensei num levantamento arqueo-lógico que buscasse os correlatos materiais da trajetória histórica da ocupação indígena regional. Eu queria demonstrar que Lalima poderia ser compreendida, arqueológica e etnoarqueologicamente, como um palimp-sesto da História Indígena regional (Bespa-lez, 2009).

Em uma reunião um tanto quanto tensa, discutida em outros escritos meus e dos co-legas que me acompanhavam, cada qual com os seus próprios objetivos (Bespalez, op. cit.: 169-79; Pouget, 2010; Silva, 2009; Silva et al.: 2010), explicamos o projeto às lideranças indígenas, formadas pelo caci-que, o vice-cacique, o conselho tribal, os anciões e o chefe de posto da FUNAI, e pe-dimos que eles nos indicassem duas pessoas que pudessem nos auxiliar nas atividades de pesquisa.

No dia seguinte, foi-nos apresentado Manoel de Souza Neto, um índio Guaikuru, “filho do lugar” (ver figura 2).

No período em que fomos realizar o pro-jeto de levantamento arqueológico em Lali-ma, o Manuel fazia parte do conselho tribal.

“AUQUEOLOGIA”Quando cheguei à Terra Indígena Lali-

ma, em Miranda/MS, no Pantanal (ver figu-ra 1), eu estava interessado em contribuir com a história cultural da ocupação indíge-na regional. O contexto etnográfico em La-lima é constituído por índios Guaikuru, Terena, kinikinao e Laiana (Cardoso de Oli-veira, 1970: 75-77), e, pelo que era sabido até então, o contexto arqueológico era for-mado por um sítio Guarani (Kashimoto & Martins, 2008: 153, 155). Historicamente, os Guarani abandonaram a região de Mi-randa no século XVII, e então os Guaikuru e os Guana, entre os quais se incluem os Te-rena, Kinikinao e Laiana, entre outros, se estabeleceram na região1. Destarte, visto que já havia um Sítio Guarani em Lalima, e que o contexto etnográfico atual era forma-do por descendentes dos Guaikuru e dos

1- As fontes primárias e secundárias sobre a ocupação indígena re-gional são relativamente abundantes, de modo que seria inviável ci-tar as referências sem olvidar um ou outro título imprescindível sobre o assunto. Assim, gostaria de remeter os interessados às reflexões e bibliografias contidas nos textos dos seguintes autores: Carvalho (1992), Eremites de Oliveira (2009) e Gadelha (1980). Em se tratan-do especificamente da Terra Indígena Lalima, além das duas referên-cias citadas antes desta nota, ver Azanha (2004), Cardoso de Oliveira (1968, 2002), Ferreira (2007), Ribeiro (1980), Taunay (2000) e Von den Steinen (1940).

Figura 1: Mapa de localização da Terra Indígena Lalima

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Logo me lembrei, assim que o vi, que o mes-mo havia participado da reunião no dia an-terior. Reiteramos as explicações sobre o projeto e o Manoel começou a nos auxiliar. A resposta dele às nossas questões foi nos levar até as taperas mais antigas de Lalima e nos contar a história do lugar.

“FOI ANSSIM”Resumidamente, conforme umas anota-

ções feitas em conjunto com o Manoel, Lali-ma começou na “Tapera do Pirizar”2, com os Guaikuru, os “vô” dele. Os “vô” do Mano-el, ou seja, duas tias-avós e o seu avô, eram “purunguero” (pajé). “Lalima” é um termo Guaikuru. Significa “por do sol”. Vem de

2- Daqui em diante, recomendo que a leitura do texto seja acompanhada com a figura 3.

“Lalimagad”, que quer dizer “o sol se põe aqui”.

No tempo do “Pirizar” não tinha muita gente. Só tinha 13 casas. Era só mato. Não tinha es-trada, só trilho. Era só “Guaiku-ruzada”, mas também tinha Tere-no, Kinikinao e Laiano, e branco, correntino e paraguaio.

A “Divisa do Lalima” era maior que a “Divisa da FUNAI” . Tinha “marco” na “Baía do Ar-rozal”, no “Córgo Fundo” e na “Ponta da Mata Grande”. Na “Ponta da Mata Grande” tinha o “marco de vinhático”. Mas os “marco” foram derrubados, com machado, trator, e foram quei-mados pelos fazendeiros.

“Daí”, a “Santa Rosa” e a “Var-ge Grande”, duas fazendas que usurparam terras indígenas, avançaram.

O “João da Praia”, que era ca-sado com uma índia, guardava a “Divisa do Lalima”. “Tropelaro

ele” e ele veio pro “Pirizar”O “Capitão Inocêncio Xavier”, um chefe

Guaikuru, demarcou uma área, que é a “Di-visa do Inocêncio”. Também “tropelaro ele” e ele foi para a “Campina do Inocêncio”. Morou um tempo por lá, mas adoeceu e morreu.

Também tinha marco na “Divisa do Ino-cêncio”, mas só sobrou um, que se encontra na “Santa Rosa”. Tinha marco onde tem a “Figueira”, na beira do Miranda, mas a en-chente levou. Tinha um onde tem o “Gua-pombeiro”, na “Santa Rosa”, mas o fazendei-ro destruiu. No “marco” que sobrou, na “Santa Rosa”, tem escrito um L e um H, que é entendido como a sigla de “Lalimagad”.

Quando veio o SPI, veio gente do “Otro Lado”, principalmente do “Morro Grande” e

Figura 2: Manoel de Souza Neto, índio Guaikuru, principal cola-borador nas pesquisas arqueológicas e etnoarqueológicas na Terra Indígena Lalima

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ArqueologiA e etno-históriA nA terrA indígenA lAlimA, mirAndA/ms Eduardo Bespalez

da “Fazenda Jaboti”, que foi morar na “Mata do Urumbeva”, na “Tapera do Urumbeva”. São os “Cororó”, que são Tereno, e a turma da “Vovó Ñhola”, que são Guaikuru. Eles eram “que nem escravo” dos fazendeiros do “Otro Lado”.

Construíram o “Posto” (do SPI) e a “Igreja” (católica), na “Sede”. Veio mais gente, Terena, Kinikinao, Laiano, que foi morar na “Sede”. “É a turma do Vicentão, do Chefe e do Seu Pau-lino”, Tereno, Kinikinao e Laiano. Veio tam-bém os “Olivera”, que são “correntino”.

Figura 1: Mapa de localização da Terra Indígena Lalima

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NAI, Polícia Federal, “mais num teve jeito”. Os assentados foram removidos e os indíge-nas retomaram o “Potrero”.

Geralmente, o Manoel começa suas falas com o advérbio “então”, conecta um fato ao outro com a locução adverbial “daí” e termi-na com a fórmula “foi ansim”. Ele pausa vá-rias vezes, pensa e fala, e mesmo cansado, nunca deixa uma pergunta sem resposta, mas encerra a conversa antes da próxima pergunta.

Com a convivência, eu soube, pelo pró-prio Manoel, que ele já havia colaborado antes com pesquisas antropológicas, mas do tipo “aplicada”, encomendadas pela FUNAI. Uma destas pesquisas, inclusive, foi rejeita-da pelos índios, mesmo pelo Manoel, devi-do à desconfiança de que o antropólogo res-ponsável e as próprias lideranças indígenas teriam se mancomunado com os fazendei-ros. Ele me contou que muitas das histórias que ele sabia eram histórias das quais ele ti-nha sido testemunha, mas que muitas outras eram histórias que ele havia “escuitado” dos seus “tio”, dos seus “vô” e dos “antigo”. Ele também disse que depois de ser escolhido pelo conselho para nos acompanhar, per-guntou ao seu pai e a um tio onde tinha “ta-pera e caco de pote”. Além disso, por mais circunstancial ou esclarecedor que isso pos-sa parecer, os “vô” dele, os “purunguero” que moravam no “Pirizar”, colaboraram com Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Olivei-ra nas pesquisas que estes antropólogos rea-lizaram, respectivamente, nas décadas de 40 e 50, em Lalima (Cardoso de Oliveira, 2002; Ribeiro, 1980).

“NUM É DIZ QUE”Dentre os lugares mencionados pelo Ma-

noel, tive a oportunidade de conhecer a “Ta-pera do Pirizal”, a “Tapera do Urumbeva”, a “Sede”, a “Campina”, a “Divisa da FUNAI”, o “Marco”, a “Figueira” e o “Potrero” (ver figu-ra 4) – de onde pude contemplar a “Campi-

Os “Souza”, os Guaikuru mais antigos em Lalima, também se mudaram do “Pirizar”. Foram para “Campina”, depois que a Vicên-cia morreu, uma das tias do Manoel, à qual ora ele chama de tia, ora de vó.

Os Cororó e a turma da “Urumbeva” também mudaram. Foram para a Sede.

O fazendeiro da “Santa Rosa” arrendou 600 hectares da “Divisa do Inocêncio”, em troca de um boi por mês. Ele pagou o arren-damento por um tempo. Cercou e formou o pasto, mas parou de pagar e vendeu a fazen-da, com a parte arrendada junto. A “linha” da “Divisa da FUNAI” ficou na cerca que o fazendeiro construiu.

O fazendeiro que comprou também “tomo” uma parte da “Divisa do Inocêncio”, que fica na “Quebrada da cerca do Três Can-to”. A “linha” da “Divisa do Inocêncio” vinha reta do “Canto do Jaraguá” direto pro “Três Canto”, não tinha a “Quebrada da cerca”.

O fazendeiro da “Varge” morreu e os fi-lhos dele dividiram a fazenda e venderam. A “linha” ficou no “Córgo do Barrero”, que é a “Divisa da FUNAI”.

O fazendeiro que comprou a “Varge” também “tomo” um pedaço da “Divisa da FUNAI”, por que a “linha” era o “Córgo do Barrero”, mas o fazendeiro passou a cerca reto e “tomo” um pedaço do lado de cá.

Os Pires e os Andrade moravam na “Var-ge”, mas se mudaram por causa do fazendei-ro. Eles foram lá para a “Divisa”, na “Bera do Barreiro”. Lá também tem “Tapera”. É a “Ta-pera da Divisa”. Depois eles foram para a “Campina”.

O INCRA desapropriou o “Potrero”. O “Potrero” era da “Varge”. Foram os filhos do fazendeiro que venderam depois que ele morreu. Mas os indígenas consideram que o “Potrero” é deles, pois tá dentro da “Divisa do Inocêncio”. Já tinha até gente assentado lá. Então foi feito um movimento para reto-mar o “Potrero”. Veio o presidente do IN-CRA e os índios “prendero ele”. Veio FU-

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ArqueologiA e etno-históriA nA terrA indígenA lAlimA, mirAndA/ms Eduardo Bespalez

na do Inocêncio”, situada na vertente oposta, no piemonte do “Morro do Jaraguá”. Simul-taneamente, detectamos muitos sítios ar-queológicos em Lalima, inclusive o sítio Guarani que havia sido achado antes. Sele-cionamos alguns desses sítios para a realiza-ção de atividades de coleta em superfície e subsuperfície, analisamos algumas amostras de materiais cerâmicos, datamos dois sítios pelo método do carbono 14 e recolhemos informações etno-históricas com vários co-laboradores.

Conforme tornei público em um artigo onde sintetizei os resultados desse levanta-mento arqueológico (Bespalez, 2010: 119):

“As observações realizadas em campo, as análises cerâmicas e as informações etno-gráficas de caráter etno-histórico, revelaram a presença de 4 conjuntos de materiais ar-queológicos cerâmicos tecnologicamente distintos... Os conjuntos observados foram os seguintes: a) Guarani (cf. La Salvia & Bro-chado, 1989); b) Tradição Pantanal análogo

à Fase Jacadigo (cf. Schmitz et al.,1998: 226-228); c) Tradição Pantanal análogo aos ma-teriais detectados no sitio MS-CP-25, em Corumbá/MS (idem: 228-229); e d) mate-riais detectados em sítios arqueológicos his-tóricos relativos à formação do contexto et-nográfico atual... Aos conjuntos detectados nos contextos arqueológicos, ainda podem ser somadas as poucas vasilhas confecciona-das com a tecnologia atual dos Terena (con-forme Cardoso de Oliveira, 2002: 237), uti-lizadas em alguns domicílios para armazenar água e como souvenir, o que totalizaria 5 conjuntos de materiais cerâmicos associa-dos à dinâmica histórica da ocupação indí-gena regional...”

Quanto aos significados desses conjun-tos, inferi que os Guarani e os povos porta-dores da Fase Jacadigo poderiam ser com-preendidos como populações agricultoras culturalmente distintas que se estabelece-ram na região desde períodos pré-históri-cos. É importante citar que Schmitz et al.

Figura 4: Potrero, retomada territorial na Terra Indígena Lalima.

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tropólogos, arqueólogos e geólogos buscam para vender e “inchê o borso” – o que, diga--se de passagem, trata-se de um crime con-tra eles, semelhante à tomada das suas terras e a exploração dos seus recursos.

Não obstante, entre um ou outro conflito mais dramático, os indígenas não tiveram dificuldades em compreender arqueologia como história indígena. Com efeito, eles so-maram à essa concepção uma outra, mais cultural, pois, pelo que se depreende do que foi lido até agora, os registros arqueológicos estão plenamente inseridos na cultura indí-gena em Lalima. Assim, eles fizeram aquilo que, de uma certa perspectiva antropológi-ca, é o que mais interessa nas questões ame-ríndias: indigenizaram a arqueologia, pro-pondo uma arqueologia como etno-história (Sahlins, 1997a, 1997b, 2011), mas com uma etno-história no sentido antropológico do termo, ou seja, como uma “etno-historiolo-gia”, uma historicidade particular, discursi-va, conceitual, possessiva e êmica, calcada em memórias, identidades, territorialidades e paisagens, e como uma “etno-filosofia da história”, com as concepções sobre o passado voltadas no entendimento do presente e nas transformações do futuro (Viveiros de Cas-tro, 1993: 25, 1999). Um modo próprio de atribuir significado histórico ao lugar, de ge-rir o patrimônio e de fazer arqueologia (González-Ruibal, 2008; Hodder, 1988: 143; Lane, 2006: 417; Zedeño & Bowser, 2009).

Toda vez que o Manoel achava uma tape-ra e que nós respondíamos que era isso mes-mo que nós estávamos procurando, ele con-cluía para si mesmo e para quem quer que fosse: “então tá provado”. De fato, numa Ter-ra Indígena onde a população cresceu mil por cento em menos de um século, passan-do de 130 pessoas, em 1919, à 1379, em 2007, e onde o espaço, ao contrário, dimi-nuiu uns 200 hectares, passando de 3600 à 3400 – sendo que destes apenas 3 mil foram

(1998: 228), os proponentes da Tradição Pantanal, suspeitaram “...que os sítios da fase Jacadigo sejam recentes, talvez taperas dos pastores Mbayá-Guaicuru do séc. XIX” (sic). Seja como for, essa discussão ainda não terminou, pois apesar da data de 1070 +/- 60 (Beta 238768) obtida em Lalima, ain-da são necessárias muitas pesquisas arqueo-lógicas para compreender os significados da Fase Jacadigo.

No que se refere aos conjuntos formados por materiais semelhantes aos do sítio MS--CP-25, os quais apresentam uma tecnologia similar àquela registrada etnograficamente entre os Kadiwéu, e aos materiais associados pelos interlocutores indígenas à história de formação do contexto etnográfico atual, fiz coro com os meus colaboradores, e associei esses conjuntos aos ancestrais dos índios Guaikurú, Terena, Kinikinao e Laiana que ocupam a região de Miranda, inclusive Lali-ma, desde o período colonial até hoje. Con-tudo, é importante esclarecer que apesar dos Guaikurú em Lalima se identificarem com os sítios que apresentam fragmentos de va-silhas cerâmicas parecidas com as vasilhas Kadiwéu, pois eles mesmos se reconhecem como “Cadiveu”, eles não têm memórias so-bre a ocupação desses sítios. Por outro lado, a história dos sítios identificados por eles como tapera é conhecida por praticamente quase todos os velhos, pela maioria dos adultos e também por alguns jovens, princi-palmente entre aqueles que incorporam o conhecimento necessário para se tornarem caçadores.

Já os sítios Guarani e Jacadigo, geralmen-te maiores e mais densos, são compreendi-dos em termos míticos, mágicos e minerais, sendo considerados “enterros”, “guardados” ou “encantados”, onde há ou houve potes cheios de pedras preciosas escondidos no tempo da Guerra do Paraguai, ou como algo de valor, como ouro e diamantes, que os an-

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ArqueologiA e etno-históriA nA terrA indígenA lAlimA, mirAndA/ms Eduardo Bespalez

registrados pela FUNAI – nada mais justo que compreender a “auqueologia” como a “prova” de que “num é diz que”, ou seja, que o que é “falado” aconteceu mesmo, “foi an-sim”, e que, portanto, a reclamação territorial “tá no nosso direito”.

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Eduardo Bespalez

96ARTIGO

TERRITÓRIOS EM DISPUTA: O PAPEL

DA PESQUISAETNOARQUEOLÓGICA

NOS ESTUDOS DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DAS

TERRAS INDÍGENAS GUARANI ÑANDEVANO SUDESTE DO

ESTADO DE SÃO PAULORobson Rodrigues1

1- Doutor em Arqueologia pelo MAE/USP e Pós-Doutor em Antropologia pelo CEIMAM/FCL/UNESP.GEA/CEIMAM/FUNDAçãO ARAPORã.

[email protected]

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 96-111 - 2013

RESUMOEm diferentes períodos históricos as ter-

ras da região sudeste paulista eram habita-das por populações indígenas Guarani e que durante o processo de colonização foram transferidas para a Terra Indígena Araribá, município de Avaí, região de Bauru, centro oeste do estado, local da criação de um dos primeiros aldeamentos oficiais do SPI. O próprio deslocamento Guarani pelo seu Ter-ritório demonstra que eles sempre foram da região estudada e que não chegaram por acaso ao local. As migrações aconteciam an-teriormente à chegada dos europeus, consti-tuindo-se em aspectos próprios da cultura Guarani. O que se pretende desenvolver nesse artigo é o entendimento de aspectos da dinâmica de ocupação Guarani Ñandeva no vale do rio Itararé, além de informações sobre o grupo no que diz respeito a dados etnoarqueológicos sobre a ocupação das ter-ras indígenas, tendo em vista os aspectos culturais, espaciais e temporais.

PALAvRAS-ChAvE: Guarani Ñandeva, Território, São Paulo.

ABSTRACTIn different historical periods the lands

of the southeast of São Paulo were inhabited by the Guarani indigenous population, whom, during the colonization process, where transferred to the Indigenous Land Araribá, Avaí district, Bauru region, central west of the state, place of creation of one of the first official SPI villages. The Guarani movement within their territory, demon-strates that they always have been of the re-searched region and that they did not reach this place randomly. The migrations oc-curred before the Europeans reached the area, being part of the specific aspects of the Guarani culture. What we intend to develop in this article is the understanding of aspects of the Guarani Ñandeva occupation dynam-ics in the Itararé river Valley, including the informations of the group related to ethno-archaeological data concerning the occupa-tion of the indigenous lands, including cul-tural, spatial and temporal aspects.

KEy-wORDS: Guarani Ñandeva, Terri-tory, São Paulo.

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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: O PAPEL DA PESQUISA ETNOARQUEOLÓGICA NOS ESTUDOS DE IDENTIFICAÇÃO E .. . Robson Rodrigues

INTRODUçãOA construção da realidade sociocultural

do Estado de São Paulo, no contexto da América Latina não pode ser entendida sem a presença e a história dos povos Guarani. Este grupo étnico conhece perfeitamente a localização de suas áreas territoriais, estejam elas no Brasil ou em outro país. Além disso, o domínio dos Guarani sobre o seu territó-rio é anterior à divisão do mesmo efetuada entre portugueses e espanhóis.

Os Guarani, na função de guias, carrega-dores, escravos, catequistas, ao longo da co-lonização da América Latina, auxiliaram desbravadores, jesuítas, Coroas Portuguesa e Espanhola a conhecerem e explorarem os territórios que há muito lhes pertenciam.

Apesar da distância temporal que as afir-mações acima parecem ter do presente, as pesquisas e entrevistas com moradores de Itaporanga e Barão de Antonina, região su-deste do estado de São Paulo, durante as pesquisas realizadas para identificação e de-limitação das terras indígenas1, mostraram claramente a presença dos Guarani naquelas paragens, ainda presente na memória de moradores vivos. Segundo estes atuais mo-radores locais, os Guarani viviam ali até por volta de 1950 e foram embora devido ao contínuo fluxo e povoamento de não-índio, além das perseguições a eles infringidas (Rodrigues et all, 2010).

No contexto histórico oficial do municí-pio de Barão de Antonina, anteriormente petencente à Itaporanga e, hoje, emancipa-do, em texto elaborado para a apresentação do município2 se faz a menção de que suas terras pertenciam aos índios Caiuás existen-tes na região e que, posteriormente, foram

1- O grupo de pesquisa que realizou os estudos foi com-posto por equipe multidisciplinar e contou com um arque-ólogo, duas historiadoras, uma etnóloga, uma bióloga, um engenho ambiental e um engenheiro agrimensor.

2- www.baraodeantonina.sp.gov.br

transferidos para a região de Bauru, onde se encontra a Terra Indígena Araribá, no mu-nicípio de Avaí, centro oeste do estado, e toda terra indígena destinada a formação do núcleo colonial, com a locação e demarca-ção dos lotes no ano de 1929, realizado pelo Departamento de Imigração e Colonização do Governo. O Hino Oficial do município também faz referência a respeito da ocupa-ção Guarani em duas estrofes:

(...) Que num gesto de amor e grandezaAos Caiuás que viviam aquiDoou tuas terras a esses brasileirosDa natureza bravos guerreiros

Mata dos Índios foste outroraDo rio Verde e ItararéVales e serras paragens belasQue nunca se viu por aí (...) (PMBA, 2010)

Historicamente, o próprio deslocamento Guarani pelo seu território prova que eles são da região estudada e que não chegaram por acaso ao local. As migrações aconteciam anteriormente à chegada dos europeus, constituindo-se em aspectos próprios da cultura Guarani, claro que o objetivo se transmutou devido a anos de contato com o não-indígena. Antes era uma busca por ma-tas e rios, pela necessidade de renovar as fontes de alimentos e, com os anos de conta-to, teria se transmutado para a busca da ter-ra sem mal, no intuito de evitar os cataclis-mos na terra (dilúvios, desmatamentos, incêndios), ou mesmo a visita aos parentes. Afinal, aos Guarani concerne um sistema econômico e social que resguarda o ambien-te ao qual se insere.

Apesar de no passado terem vivido em um vasto território (boa parte do que hoje é a região sul, sudeste e centro-oeste do Bra-sil), atualmente, devido ao longo processo de colonização do país e a exploração capi-talista das terras, o sistema de aldeamentos, as perseguições de bugreiros, perseguições

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várias e a própria tutela realizada pelo go-verno brasileiro, através da criação, em 1910, do órgão SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e, em 1967, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), os Guarani encontram--se confinados, recolhidos, em pequenas al-deias reconhecidas ou não pela administra-ção federal.

O sistema capitalista, caracterizado prin-cipalmente pelo individualismo, pela explo-ração do meio ambiente e pela propriedade privada, avançou em quase toda parte das antigas terras Guarani, deixando-lhes pouca ou nenhuma opção de vida e de movimento relacionado com sua forma étnica.

Por meio de sua organização política, por sua vez, passaram a lutar pela manuten-ção de sua identidade e retomada de seus territórios, aldeias e aldeamentos, em geral usurpados pelos não-indígenas e, muitas ve-zes, regularizados pelos Governos Estaduais (caso ocorrido em Barão de Antonina e Ita-poranga), em um franco desrespeito a ime-morialidade desses povos quanto ao seu di-reito originário às terras indígenas que lhes são necessárias para sua sobrevivência física e cultural à qual têm direito conforme artigo 231, da Constituição Federal de 1988, na qual é enfática e clara:

São reconhecidos aos índios sua organização social, cos-tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originá-rios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com-petindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Em um movimento recente e para fazer valer este artigo da CF/1988, os Guarani Ñandeva se deslocaram da Terra indígena Araribá, para as Terras Indígenas de Itapo-ranga e Barão de Antonina no intuito de re-tomar parte de seu antigo território.

Durante esses longos e sofridos séculos e apesar das perdas, os Guarani continuaram lutando por sua liberdade de ir e vir e pela manutenção da identidade e do território

nos parâmetros exigidos por sua cultura.Ao longo da pesquisa pretendeu-se des-

tacar como se manifestou a presença Guara-ni na localidade ora reivindicada com a de-nominação de Terra Indígena Itaporanga e Terra Indígena Barão de Antonina, bem como, as muitas perseguições e imposições dos não-indígenas àquele povo, fruto do et-nocentrismo e do sistema capitalista (Rodri-gues et all, 2010).

No decorrer da pesquisa desenvolvemos uma análise caracterizando o Território Guarani, explanando a localização geográfi-ca e histórica deste povo no Brasil e em ou-tros países, as suas migrações míticas e an-cestrais por esse Território, a sua presença na região atualmente reivindicada e que consta desde o período pré-colonial, os embates com os não-índios e o confinamento em al-deamentos, apresentando a vida no aldea-mento de São João Baptista do Rio Verde em paralelo ao controle ou tentativa de controle efetuado pelos não-índios. Além de discutir sobre o povoamento não-indígena e a reto-mada dos territórios Guarani, com base na memória oral de depoentes Guarani e não--índios, para relatar a questão fundiária na Terra Indígena Itaporanga e Terra Indígena Barão de Antonina, propondo uma delimita-ção territorial que dará conta de possibilitar a reprodução física e cultural dos grupos Guarani que hoje ocupam a região do vale do rio Itararé (Rodrigues et all, 2010).

Informações a respeito da ocupação Guarani Ñandeva no contexto do vale do rio Itararé, além de informações sobre o grupo no que diz respeito a dados históri-cos sobre a ocupação das terras indígenas, tendo em vista os aspectos espaciais e tem-porais. Elementos a respeito do território ocupado pelo povo Guarani Ñandeva na região de Itaporanga e Barão de Antonina, enfatizando sua permanência habitacional, foram sistematizados para caracterizar sua

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efetiva ocupação deste território paulista.Tratando das atividades produtivas,

abordamos aspectos presentes nas aldeias organizadas nas respectivas Terras Indíge-nas para desenvolver um amplo estudo da caracterização regional a partir de um diag-nóstico ambiental, apontando as condições observadas e as possibilidades de utilização dos recursos naturais no contexto das terras reinvindicadas, abordando aspectos do modo de vida Guarani e sua reprodução fí-sica e cultural.

Este caminho foi percorrido para chegar-mos a análise da questão fundiária observa-da no processo histórico e apresentarmos uma proposta de delimitação das Terras In-dígenas Itaporanga e Barão de Antonina.

Em todos os momentos do trabalho de pesquisa houve a participação consciente da comunidade indígena, permitindo que seus membros tivessem controle das informa-ções recolhidas e que, futuramente, a utili-zem no dia a dia das aldeias e no trato com seu território.

Na época da chegada dos Guarani na re-gião, em agosto de 2005, saídos da Terra In-dígena Araribá, se instalaram em locais que ofereciam condições mínimas para a sobre-vivência do grupo. Este movimento contou com a participação de Claudemir Marcolino, importante liderança Guarani da TI Araribá que documentou e reproduziu em um mapa a viagem dos Guarani Ñandeva entre a TI Araribá e Itaporanga e Barão de Antonina.

De acordo com as informações recolhi-das pelo Grupo Técnico que realizou as pes-quisas na região, os motivos que levaram os Guarani Ñandeva saírem da TI Araribá para Itaporanga e Barão de Antonina foram fato-res ecológico-ambientais e conflitos sociais internos, aspectos atuais da constante movi-mentação que historicamente se ocupam esse povo e que caracteriza seu modo de ser (Rodrigues et all, 2010).

O OLhAR ETNOARQUEOLóGICO NA DE-FINIçãO DO TERRITóRIO GUARANI NA BACIA DO ALTO PARANAPANEMA

O grupo étnico Guarani, presente na me-mória, na história e na cultura material da região pesquisada, apresenta como principal característica identitária uma grande mobi-lidade por seus territórios, outrora relacio-nados à sua sobrevivência física e posterior-mente a questão mítico-religiosa.

Atualmente a área onde se encontra inse-rida as TIs Barão de Antonina e Itaporanga é banhada pelas águas do lago da UHE Xa-vante que foi construída nos anos 70 do sé-culo XX. Nesse período se realizou pesqui-sas arqueológicas que foram coordenadas por Igor Chmyz, pesquisador da Universi-dade Federal do Paraná (Araújo, 2001).

As pesquisas associadas a Arqueologia Guarani no alto curso da bacia do rio Para-ná, no estado de São Paulo, apresentam da-dos materiais sistematizados a respeito das áreas onde, no passado, já se movimentaram grupos domésticos do povo Guarani (Ro-drigues, 2001). O vale do rio Paranapanema em sua junção com o alto Paraná é conside-

FIGURA 1: Desenho da viagem feita pelos Guarani entre Araribá e Itaporanga realizado por Claudemir Marcolino

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rado pelos pesquisadores como sendo a porta de entrada dos Guarani para os atuais estados de São Paulo, Paraná e sul do Brasil. Quando da chegada dos europeus na região da bacia do Paraná, estimava-se que exis-tiam mais de duzentos mil indígenas ocu-pando toda a região (Mota, 2007; Noelli, 2000 e Brochado, 1984).

Como bem indicam as pesquisas arqueo-lógicas, assentamentos de grupos Guarani ocorreram ao longo de todo Paranapanema e seus afluentes e várias evidências apontam para uma grande intensidade de sua ocupa-ção. Prospecções extensivas desenvolvidas na região levaram à identificação de mais de cem sítios arqueológicos, não deixando dú-vidas quanto a intensidade com que se pro-cessou a ocupação de todo o vale por parte deste povo (Robrahn-González, 2000; San-tos E Faccio, 2007).

Associado ao elemento material das pes-quisas arqueológicas, definido pelas cerâmi-cas e líticos polidos, pesquisas etnobiológi-cas e de história indígena vem demonstrando que os territórios de domínio de alguns po-vos Tupi eram lentamente conquistados, manejados e longamente usufruídos (Noelli E Dias,1995). Noelli (1993), ao analisar os processos de ocupação territorial do povo Guarani, apresenta como termo mais ade-quado para definir os deslocamentos deste povo pelos territórios que iam ocupando, o conceito de expansão territorial.

É certo, porém, que as datações arqueo-lógicas associadas aos elementos materiais da cultura Guarani mostram que este povo já estava instalado na bacia do Paranapane-ma, desde 2.000 AP (Morais, 2000:215).

De acordo com as datações já realizadas para o contexto do município de Itaporan-ga, o processo de ocupação espacial através do tempo por parte do povo Guarani, desde a data mais antiga até a mais recente, corres-ponde às principais datas 1870+/-100 (Bro-

chado, 1973 apud Noelli, 2000:250), 1.195+/-80 (Brochado, 1973 apud Noelli, 2000:250) e 850+/-150 (Brochado, 1973 apud Noelli, 2000:250). Estas informações apontam para uma continuidade ocupacio-nal desta área, só sendo interrompida com a presença européia no período colonial.

Os Guarani realizam seus movimentos, seja para visitar parentes ou mesmo religio-sos em direção a serra do mar no litoral pau-lista desde tempos imemoriais. Entre o povo Guarani, o deslocamento populacional num determinado território, constitui-se numa das características de sua forma de vida, de sua forma de ser. As migrações acontecem dentro de limites geográficos que lhes são muito claros e se realizam em caminhadas e em visitas aos parentes, principalmente (Ro-drigues, 2001).

O contato com os não-índios teve influ-ência sobre os povos indígenas, especial-mente sobre os seus deslocamentos popula-cionais. Doenças como a gripe, o sarampo, e outras, adquiridas pelo contato com “civili-zados” bem como a forma de vida capitalis-ta-individualista, empecilho à realização do modo de ser Guarani, provocaram a depo-pulação, certo sedentarismo nas periferias de centros urbanos que se construíram em seus antigos territórios e, de certa forma, acentuou o deslocamento geográfico dos que são sobreviventes para áreas menos pro-curadas pelos não-índios.

A frequência desses deslocamentos, de-terminada também pelas más condições de realização do ser Guarani, se modificou ge-rando também ajuntamento de grupos que antes tinham seus espaços próprios.

Toda a sorte de dificuldades à realização do modo de ser Guarani, causadas pelo con-tato com os não-índios, estimulou a busca da terra sem males no plano da realidade objetiva e não apenas da espiritualidade Guarani. Grupos de Guarani deixaram de

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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: O PAPEL DA PESQUISA ETNOARQUEOLÓGICA NOS ESTUDOS DE IDENTIFICAÇÃO E .. . Robson Rodrigues

voltar para lugares que lhes era familiar de-vido à penetração e à apropriação desses lu-gares pelo sistema capitalista, realizada pe-los não-índios (Rodrigues et all, 2010).

No início do século XX, o etnólogo e fun-cionário do governo federal no Serviço de Proteção aos Índios – SPI, Curt Nimuendaju Unkel, que viveu e acompanhou por mais de 40 anos os povos Guarani e seus desloca-mentos, principalmente no Estado de São Paulo, registrou as vicissitudes e as migra-ções Guarani ocorridas no século XIX e princípio do século XX, período de acirra-mento da apropriação dos territórios Guara-ni em São Paulo pelos fazendeiros do café, incluindo dentre esses o Barão de Antonina.

Segundo Curt Nimuendaju, Pajés, inspirados por visões e sonhos, constituíram-se em profetas do fim iminente do mundo; juntaram à sua volta adeptos (...) e partiram em meio a danças rituais e cantos mágicos, em busca da “Terra sem Mal”; alguns a julgavam situada, conforme a tradição, no centro da ter-ra, mas a maioria a punha no leste, além do mar. So-mente deste modo esperavam poder escapar à perdição ameaçadora (Nimuendaju, 1987:8 e 9).

Nesse período, o interior do Estado de São Paulo e outras regiões do Brasil, eram ob-jeto de conhecimento e registro pelas Comis-sões Geográficas e Geológicas e pelas equipes de reconhecimento de território e de povos dirigidas pelo Marechal Rondon. Comissões e equipes que preparavam o espaço, derru-bando florestas, reconhecendo cursos de rios, montanhas, instalando telégrafos e contatan-do povos indígenas para que pudessem então receber agricultores e extrativistas nacionais. Toda essa gente trazia para os Guarani, doen-ças e devastação, tornando a realidade para esses indígenas ameaçadora e apocalíptica.

Segundo registros de Nimuendaju, no século XIX, a marcha dos Guarani Tañyguá (1820), vizinhos meridionais dos Guarani Apapocúva, liderados pelo pajé-chefe Ñan-deryquyní, seguiu a rota descrita abaixo:

Subiram lentamente pela margem direita do Paraná, atravessando a região dos Apapocúva até chegar à dos Oguauíva, onde seu guia morreu. Seu sucessor, Ñande-ruí, atravessou com a horda o Paraná – sem canoas, como conta a lenda -, pouco abaixo da foz do Ivahy, su-bindo então pela margem esquerda deste rio até a região de Villa Rica, onde, cruzando o Ivahy, passou-se para o Tibagy, que atravessou na região de Morros Agudos. Ru-mando sempre em direção ao leste, atravessou com seu grupo o rio das Cinzas e o Itararé até se deparar, final-mente, com os povoados de Paranapitinga e Pescaria na cidade de Itapetininga, cujos primeiros colonos nada melhor souberam fazer que arrastar os recém-chegados para a escravidão. Eles, porém, conseguiram fugir, per-severando tenazmente em seu projeto original, não de volta para o oeste, mas para o sul, em direção ao mar. Escondidos nos ermos das montanhas da Serra dos Ita-tins fixaram-se então, a fim de se prepararem para a viagem milagrosa através do mar à terra onde não mais se morre (Nimuendaju, 1987:9-10).

Os não-indígenas, sabendo da proximi-dade destes índios, se prepararam para ex-pulsá-los. Os Tañyguá, por sua vez, com o auxílio de Avavuçú, seu melhor guerreiro, revidaram armando uma emboscada na de-sembocadura do Rio do Peixe no Itariri, “infligindo-lhes perdas que os rechaçaram”. Posteriormente, com a mediação do guarani chamado Capitão Guaçú, estabeleceu-se “re-lações amistosas” entre os Tañyguá e os não--índios, recebendo, os Tañygua, “em 1837, do Governo Imperial, uma légua quadrada de terra no rio do Peixe e no rio Itariry” (Ni-muendaju, 1987:10).

Como resultado dos contatos entre Tañy-guá e não-índios notou-se a diminuição quase imediata do grupo, devido às epide-mias e à miscigenação, bem como a poste-rior perda das terras indígenas Guarani do Itararé para os grupos de não-índios.

Elliot (apud Lima, 1978) verificou que em 1830 apareceu, nas vizinhanças da Vila de Itapetininga (distrito de Itapeva), uma porção de índios Guarani, provenientes da área compreendida entre os Rios Ivinhema e Iguatemy (ao sul do Mato Grosso). Apesar de a referência citar, genericamente, índios

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Guarani, é bem provável que sejam os Tañy-guá em sua migração.

Em 1833, um outro grupo de índios Gua-rani foi localizado nas matas do rio Juquiá (sul da Província de São Paulo). Estes índios, na década de 1840, também foram confina-dos no aldeamento de Itariri, em Iguape, li-toral da então Província de São Paulo.

Nimuendaju destacou que os Tañyguá ao passarem pelo território dos Oguauíva (o Mbaracaý) perceberam que aqueles não sa-biam as danças religiosas relacionadas ao mito da “terra sem mal”. Ao aprenderem com os Tañyguá, logo em seguida os Oguauí-va iniciaram a sua migração.

Em 1830 a sua caminhada foi igualmente interrompida na grande estrada de São Paulo ao Rio Grande do Sul, na região de Itapetininga. Os Oguauíva então retrocede-ram um pouco na direção oeste, até entre os rios Taqua-ry e Itararé, vivendo em bons termos na fazenda Piritu-ba, do Barão de Antonina, que solicitou ao governo um missionário para eles. Em 1845 este chegou, na pessoa de Frei Pacífico de Montefalco, que fundou no Rio Verde a missão São João Baptista, atual Itaporanga (Nimuenda-ju, 1987:10-11).

Os índios que caminhavam pela Comar-ca de “Coritiba” estabeleceram três aldeias próximas uma das outras nas adjacências dos Rios Paranapanema, Itararé e Verde,

sendo esses dois últimos afluentes do pri-meiro. No ano de 1843, no município de Ita-peva, havia uma aldeia situada à margem esquerda do Rio Verde (“aldeia indígena do Capitão Manal”) e outra à direita do Rio Ita-raré. Estas aldeias distavam uma légua entre si e doze léguas da residência do Barão de Antonina. “Esta aldêa com vinte e tantas ca-sas está vantajosamente situada no lado es-querdo do rio Verde, tendo a poente uma ou-tra aldêa pouco menor debaixo dos mesmos auspícios”. Na Comarca de Coritiba, um pouco distante do Rio Itararé, havia uma ter-ceira aldeia Guarani, que foi destruída num embate com os “Guayanazes”. Do embate sobreviveram 28 índios que se juntaram a uma das aldeias citadas (Nimuendaju, 1987).

Assim, os deslocamentos dos Guarani, no século XIX, para a região do Itararé foi influenciado pela presença de seus parentes por aquelas paragens, pois, as aldeias men-cionadas e os muitos vestígios arqueológi-cos indígenas nessa área sugerem diferentes datações para os povoamentos indígenas. É importante frisar a importância do desloca-mento Guarani em busca da Terra Sem Mal e das visitas aos parentes, pois esses fatos ocorrem em terras reconhecidas na memó-

ria desses povos, se con-figurando em seus anti-gos territórios.

De acordo com as in-formações registradas por Nimuendaju (1987) em seu mapa etno-histó-rico, os Guarani já esta-vam ocupando as terras entre os rios Itararé e Verde, onde hoje está o município de Itaporanga, no período anterior ao ano de 1830.

A área em questão, durante o século XIX, es-

FIGURA 2: Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju identificando o território Guarani onde hoje se encontra o município de Itaporanga

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tava sob a órbita do que seria, a partir de 1853, divisa entre as duas províncias – São Paulo e Paraná – território tradicionalmente Guarani. Os interesses dos não-índios eram vários: apossar-se das terras dos indígenas para estabelecimento da lavoura e da pecuá-ria capitalista; transformação do indígena em mão-de-obra barata; criação de rotas de comunicação, transporte e comércio entre Mato Grosso, São Paulo e Paraná; proteção das fronteiras face aos vizinhos estrangeiros. Região de aldeias e de caminhadas Guarani, essa era objeto de implantação de políticas capitalistas.

Para poder se fixar naquelas paragens, os não-índios, tendo conhecimento dos confli-tos deles com os grupos indígenas Kaingang, que também viviam nesse território, aliam--se aos Guarani e expulsam os Kaingang. Isso feito, os não-índios rompem o pacto celebrado e passam a expulsar, perseguir e escravizar os Guarani que já se encontra-vam enfraquecidos devido às doenças, da qual não possuíam imunidade.

Segundo Frei Nelson Berto (1983:01), as tentativas do governo de criar missões indí-genas para controlar os deslocamentos indí-genas na Província de São Paulo fez com que os parentes Guarani viessem da Comarca de Coritiba, devido aos conflitos que travaram com os Kaingang por lá.

Em relação ao conflito Kaingang e Gua-rani, o que se observa é a rivalidade dessas duas etnias, com os Kaingang muitas vezes vencendo os Guarani. Entretanto, isso não ocorreu na região de Itapetininga, pois os Guarani uniram-se aos não-índios com o intuito de manter longe os grupos indígenas Kaingang, também habitantes da região, que se tornaram “o inimigo comum” para Gua-rani, posseiros, fazendeiros e agrimensores (Rodrigues et all, 2010).

Os colonos não-índios do Médio e Alto Vale do rio Paranapanema, dos Vales dos

rios Itararé, Verde, Apiaí, Apiaí-Mirim, Ita-petininga, Turvo e Taquari (todos eles com nomes de origem Guarani) perceberam a vantagem do uso dos históricos conflitos ét-nicos entre Kaingang e Guarani para, literal-mente, ganharem terreno. Os Kaingang so-breviventes do conflito desse período, século XIX, uniram-se aos grupos de Salto Grande do Paranapanema e àqueles que viviam nos Vales dos rios Feio Aguapeí e do Peixe (Ro-drigues, 2003).

No entanto, no decorrer do relaciona-mento, as contrapartidas do não-índio fo-ram rareando. Dessa forma, os Guarani per-ceberam que haviam sido enganados pelos não-índios, pois esses queriam apenas a li-beração de mais terras e a expulsão dos Kaingang. Conseguido esse intento descui-daram da aliança e das promessas feitas aos Guarani. Por outro lado, os Guarani, após a aliança feita, precisavam muito mais da as-sistência, pois estavam doentes, sujeitos à vingança dos Kaingang e com dificuldades para viverem conforme suas premissas cul-turais (economia, língua, imaginário, costu-mes, pensamento) devido à presença cres-cente e constante dos colonos (fazendas e cidades), suas plantas (café, cana) e seus ani-mais (gado bovino, eqüino, cachorros).

A aliança dos Guarani com os não-índios teve como conseqüências, entre outras, as doenças já mencionadas e a escravidão, ób-via ou dissimulada, de Guarani na região de Itapetininga, Salto Grande e Itapeva (Pinhei-ro, 1992; Saint-Hilaire, 1972; Lima, 1978).

Famílias Guarani ou indivíduos viviam agregados às terras que se tornaram pro-priedades dos não-índios, servindo às famí-lias na casa ou na fazenda. Alguns grupos, mais isolados, deixaram até hoje vestígios, dessa fase do relacionamento, que podem ser vistos na denominação de Mata dos Ín-dios para uma propriedade onde eles então viviam.

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Essa região denominada Mata dos Índios é bem conhecida pela população da região do município de Itaporanga. Assim que os atuais proprietários souberam do retorno dos Guarani para a região, eles removeram a placa, mas deixaram os palanques que fo-ram fotografados por esse Grupo de Traba-lho (Rodrigues et all, 2010).

A comissão técnica da Inspetoria de Ter-ras, Colonização e Imigração, criada pela Secretaria de Agricultura para evitar um conflito maior entre índios e posseiros, identificou e delimitou um grande terreno conhecido por Mata dos Índios que “inicia-va-se aproximadamente a dois quilômetros da cidade do Rio Verde, estendendo-se até a confluência dos rios Verde e Itararé. Coberto de espessas matas era habitado nas margens dos dois rios por índios e invasores brancos” (Mendes, 1996:79).

O mapa etnográfico organizado por Hermann Von Ihering (1911) identifica a Mata dos Índios e outros assentamentos da ocupação Guarani na área definida entre os rios Itararé e Verde, hoje município de Ita-poranga.

O interesse em ocupar terras indígenas por parte da expansão colonizadora na re-

gião se intensificou a partir dos anos 80 do século XIX, o que desencadeou uma sequ-ência de iniciativas com a finalidade de ex-propriação total do território Guarani.

De acordo com Mendes (1996), Jorge Se-ckler identifica a fertilidade do solo e lamen-ta a ocupação indígena por não explorá-lo a contento: “Entre o Itararé e o rio Verde há um extenso terreno de superior qualidade, muito próprio para a cultura do café, todo livre de geada. Mede 33 quilômetros de comprimento sobre 3 quilômetros de largura. Este terreno é ocupado pelos índios que pouca plantação fa-zem” (Mendes, 1966:78).

A ocupação indígena nesta região sem-pre foi contínua e ininterrupta e o processo de expropriação das terras Guarani se deu em etapas e durou mais de vinte anos.

Segundo Nimuendaju (1987), e outros documentos consultados, os Guarani aceita-ram o “auxílio” oferecido pelo latifundiário e político Barão de Antonina pelo temor que os Guarani tinham em relação aos Kain-gang, pois haviam estabelecido aldeias pró-ximas aos rios Verde e Itararé, durante a re-alização do seus movimentos migratórios proféticos. Mas, segundo Amoroso, o conta-to do Barão com os Guarani e o patrocínio de aldeamentos “foram concebidos como uma solução para o povoamento do sertão meridional, perigosamente desguarnecido às vésperas da Guerra do Paraguai” (Amoroso, 1998:41). Sendo, portanto, de interesse do governo manter os Guarani na região.

Hoje encontramos por todas a áreas dos dois municípios relatos da população local sobre a presença dos Guarani na região, bem como outras evidências como o apareci-mento de objetos e utensílios arqueológicos, plantas sagradas e medicinais usadas por esse antigo povo e, que após a sua passagem pelo local, elas nascem, espontaneamente, por toda parte, especialmente onde eles vi-veram mais intensamente, como é o caso da

FIGURA 3: Mapa etnográfico de Von Ihering identificando o ter-ritório Guarani onde hoje se encontra o município de Itaporanga

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planta do tabaco, usada nos rituais sagrados e encontrada pelos pastos da região, bem como outras apontadas pelos moradores lo-cais como medicinal e que seu uso foi apren-dido com a tradição Guarani (Rodrigues et all, 2010).

No entanto, há outros documentos que destacam que os Guarani da região foram procurados pelo Barão de Antonina, que possuía o interesse claro em utilizá-los como mão de obra em sua fazenda e como guias nas expedições exploradoras que promovia. Segundo Pinheiro, o ato adicional de 12/08/1834 deu às Assembléias Legislativas Provinciais o direito de legislar sobre cate-quese e civilização dos índios, juntamente com o Governo Central. Esse fato transfere para a iniciativa privada local a conquista dos territórios e o controle das comunida-des tribais (Pinheiro, 1992:196).

Em 1845, foi fundado pelos Guarani, com apoio do Barão, o aldeamento de São João Baptista do Rio Verde, na confluência dos rios Verde e Itararé. Além de viverem nesse local, alguns o utilizaram como lugar de passagem em suas caminhadas e outros ainda, como local de abastecimento de “bens civilizados”.

No final do século XIX, nota-se uma eu-foria para que fosse povoada por não-índio e utilizada sob a forma capitalista a área ter-ritorial que até então estava sob domínio da forma de uso indígena. O Barão, a Igreja Católica, a constituição de vilas e cidades e os agrimensores e bugreiros eram os atores da transformação almejada pelo poder pú-blico e particular.

O aldeamento de São João Baptista foi criado, bem como, outros na região do vale do rio Itararé, mas, o movimento mítico--profético desse povo permanece ao longo dos séculos XIX e XX. Como já foi aponta-do, os aldeamentos criados seriam utiliza-dos como ponto de apoio e parada nas ca-

minhadas Guarani. Sendo território por eles reconhecido, permaneciam o tempo que quisessem no local que lhes era de di-reito (Rodrigues et all, 2010).

Vários grupos Guarani seguiram o ca-minho dos Tañyguá e dos Oguauíva, entre eles, em 1870, estavam os Apapocúva. Se-gundo Nimuendaju (1987, p. 12) os pajés Apapocúva Guyracambí e Nimbiarapoñý rumaram para leste. Guyracambí tentou, por duas vezes, ir em direção ao mar, mas foi impedido pelas autoridades brasileiras, assim, ficou um período no aldeamento de Jatahy, na província do Paraná, “onde fazia oposição aberta à catequese” do missioná-rio Timotheo de Castelnuovo, talvez devi-do à exploração da mão de obra indígena e imposição do modo de vida do não-índio aos Guarani, liderada pelo missionário cristão.

No Jatahy uma grande parte do seu bando desligou-se, buscando voltar para o rio Verde. Este novo bando esta-va sob a chefia de Honório Araguyraá, neto do afamado guerreiro Papaý que no princípio do século XIX foi o terror do Kaingýgn. Até o ano de 1892 ele estava na vi-zinhança dos Oguauíva, mas sem se misturar com estes, morando na parte mais setentrional do território indí-gena do rio Verde (Nimuendaju, 1987:12).

Nimuendaju (1987) afirmou que a docu-mentação da terra doada pelo Barão de An-tonina para a formação do aldeamento de São João Baptista foi perdida, e, isso auxiliou os não-índios nas usurpações que se segui-ram. Parte desses índios, após dizimações por epidemias, mestiçagem e o desgaste das lutas contra as usurpações de suas terras, estabeleceram-se no Posto Indígena de Ara-ribá, em 1912.

O aldeamento de São João Baptista do Rio Verde (1845) foi o primeiro a ser criado no Vale do Paranapanema. Depois dele, fo-ram estabelecidos o de São Sebastião do Pi-raju (1854) e o de São Sebastião do Tijuco Preto (1864).

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As áreas dos aldeamentos eram normal-mente pequenas, pois a concepção que pre-dominava junto aos responsáveis pela polí-tica que os introduzia, era de que os índios não necessitavam de tanta terra para sobre-viver, bastava uma porção suficiente para o desenvolvimento da lavoura familiar e da pecuária de subsistência. Segundo docu-mento oficial, do funcionário da província de São Paulo, responsável pela Diretoria Ge-ral dos Índios, José Joaquim Machado de Oliveira, o aldeamento de São João Baptista do Rio Verde possuía duas léguas de largura e 3 a 6 de comprimento, o de São Sebastião do Piraju era formado por “meia légua qua-drada, pouco mais ou pouco menos” e o de Itariri também era constituído da mesma quantidade de terra que o de Piraju (Rodri-gues et all, 2010).

O Barão de Antonina, em 1843, comuni-cou ao Governo Imperial a existência de al-deias Guarani próximas a sua fazenda e a necessidade de fazê-las progredir. A idéia de progresso convergia com o estabelecimento de aldeamentos, comandados por freis ca-puchinhos, com o objetivo de catequizar e civilizar os indígenas. Ao Governo cabia, então, “animar este estabelecimento, dar-lhe a consistência e o prestígio” necessário para tornar-se auto-suficiente e criar condições de inseri-los na sociedade civilizada.

No intuito de convencer o Governo Im-perial, Antonina apresentou os benefícios que proporcionaria um aldeamento de ín-dios na região. Para tanto, sugeriu que as três aldeias constituíssem um único aldea-mento, próximo ou do Rio Verde ou do Rio Itararé, constituído de todos os empregos que se fizesse necessário para o desenvolvi-mento do indígena ao encontro à civiliza-ção, ao seu “bem-estar” e, principalmente, ao seu posterior auxílio à sociedade. A pedi-do do Barão de Antonina, João H. Elliot, em 1845, elabora um mapa da região, espaciali-

zando e delimitando o território Guarani onde hoje se encontram os municípios de Itaporanga e Barão de Antonina (Mendes, 1996).

O Barão afirmava que os índios ficariam acostumados com os hábitos civilizados, a ponto de se recusarem a voltar à “vida erran-te”, preferindo fixar-se em um local dotado das benesses da civilização. Aponta que o acolhimento destes índios em um aldea-mento continuaria garantindo a proteção dos moradores locais em face de outros gru-pos indígenas, considerados ferozes, bem como serviria de exemplo para que outros índios, ao perceberem as vantagens de habi-tar neste estabelecimento, o procurassem também como moradia.

O próprio Barão, em 1845, enviou uma expedição para explorar os rios Verde, Itara-ré, Paranapanema, Paraná, Tibagi, Ivahy e seus afluentes, assim como os sertões do en-torno. O relatório produzido, a partir dessa expedição, apresentou pormenores dos con-tatos delineados entre índios e não-índios e a significativa presença indígena constatada pela expedição reforçou a idéia do Barão, de estabelecer aldeamentos na região (Rodri-gues et all, 2010).

Em relação à realidade dessa época e que perdura até hoje, Nimuendaju afirma:

O Barão de Antonina presenteara os índios com a ponta de terra entre os rios Itararé e Verde; mas os documentos pertinentes desapareceram muito a propósito, e assim, também aqui os intrusos rapidamente prevaleceram, transformando a terra dos índios em trunfo no jogo sujo da politicagem regional. Todas as queixas por parte dos índios em São Paulo e Rio somente pioraram a sua pró-pria situação (Nimuendaju, 1987:11).

Várias foram as expedições patrocinadas pelo Barão de Antonina que convergiram na atração de muitos índios Guarani que cami-nhavam, aparentemente dispersos pela re-gião ou mesmo vindos de outras Províncias, por exemplo, do Mato Grosso. O objetivo

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era estabelecê-los em aldeamentos controla-dos pelo Governo, nas províncias de São Paulo e Paraná.

Fundado em 1845 o aldeamento de São João Baptista do Rio Verde será utilizado como ponto de apoio estratégico para o abastecimento e para a formação de outros aldeamentos, na província do Paraná, no en-torno dos rios Paranapanema e Tibagi.

Em 1854, vieram para o aldeamento de São João Batista da Faxina (ou do Rio Verde) 200 Guarani do aldeamento de São Jerôni-mo do Jatahy, localizado na Província do Paraná, fugindo dos Kaingang. A chegada de tal número de pessoas, equivalente a um grande agrupamento, causou conflitos den-tro do aldeamento, no entanto, ao serem in-quiridos a partirem do local, relutaram afir-mando que possuíam parentes e amigos que ali moravam. Dois anos depois, a população do aldeamento de São João Baptista da Faxi-na registrou 130 índios.

Em 1869, o Diretor Geral dos Índios Francisco Antonio de Oliveira apontou a ocorrência de onze aldeamentos na provín-cia: “Pinheiros, Mboy, Carapicuíba, Barueri, S. Miguel, Escada, S. João de Queluz, Itaqua-quecetuba, S. João Baptista, Itariri e Tijuco Preto” (Rodrigues et all, 2010).

No final do século XIX, os Guarani esta-vam sem apoio do Governo e pressionados pelos imigrantes europeus que chegavam cada vez em maior número, munidos de todo um aparato legal que os favoreciam na legitimação enquanto proprietários das ter-ras, até então, de pobres e humildes possei-ros ou de índios Guarani.

Como se pode observar, devido às amea-ças dos fazendeiros e posseiros, que invadi-ram o território Guarani, o Serviço de Pro-teção aos Índios não garantiu a posse indígena ao seu território, deixando que os intrusos se fixassem no local. Além disso, funcionários da Inspetoria de São Paulo, do

SPI e LTN, continuaram a reconhecer a exis-tência das terras indígenas do antigo aldea-mento localizadas em Itaporanga, mas tam-bém admitiam a inoperância do órgão em administrar bens dos seus tutelados (Rodri-gues et all, 2010).

Os Guarani, por sua especificidade, con-sidera todas as terras indígenas Guarani como parte de um único Território, bem como, apresentam uma grande mobilidade dentro deste, haja vista, que pertence a todos.

O fato desta terra ser pequena, como a maioria das terras Guarani, também justifi-ca a migração destes indígenas para territó-rios reconhecidamente de suas etnia – devi-do a ancestralidade. É o caso das famílias Ñandeva que reocuparam junto com seus familiares provenientes de Araribá as terras ora reivindicadas em Itaporanga e Barão de Antonina, no estado de São Paulo.

Assim, observa-se, que o Governo Esta-dual aliado aos interesses da propriedade privada da terra, efetivou projeto de coloni-zação, por meio da expulsão e do esbulho dos povos nativos, os Guarani, de suas terras tradicionais e originárias. Colocando em seu lugar o não-indígena brasileiro e estran-geiro para por em prática a agricultura e a pecuária capitalista. Na desculpa de evitar a sua extinção, causada por agentes epidemio-

FIGURA 4: Quadro populacional do aldeamento Guarani de São João Batista do rio Verde entre o século XIX e início do XX (Mendes, 1996:81)

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lógicos, perseguições, assassinatos, humi-lhações, imposição de um modo de ser e viver que negava o ser Guarani, foram con-finados em pequenos espaços de terras a se-rem protegidas por servidores públicos sem poder para reagir à política de colonização em andamento. Nesse espaço continuaram a sofrer com as ações dos não-indígenas, mas, assim mesmo, conseguiram manter, a custo, a sua identidade e cresceram popula-cionalmente (Rodrigues et all, 2010).

PARA CONCLUIRO território indígena se caracteriza como

um espaço fortalecedor de sua identidade étnica e de reconhecimento enquanto per-tencente a um universo diverso. Nesse con-texto, o modo de ser Guarani Ñandeva se configura pelo sentimento de pertencimen-to a terra e aos elementos viventes nesse meio, pelo qual concebem a sua visão de mundo. Retomar o território de domínio in-dígena passa a ser, na atualidade, uma ação fundamental na estruturação das condições necessárias para a própria continuidade da diversidade étnica presente no Estado de São Paulo.

Apesar da distância temporal que as afir-mações do presente sugerem, as pesquisas e entrevistas com moradores da região de Ita-poranga e Barão de Antonina, no estado de São Paulo, mostram claramente a presença dos Guarani naquelas paragens, ainda em tempo de memória de moradores vivos. Se-gundo eles, os Guarani viviam ali até por volta de 1950 e foram embora devido ao contínuo fluxo e povoamento de não-índio, além das perseguições a eles infringidas.

Apesar de no passado terem vivido em um vasto território (boa parte do que hoje é a região sul, sudeste e centro-oeste do Bra-sil), atualmente, devido ao longo processo de colonização do país e a exploração capi-talista das terras, o sistema de aldeamentos,

as perseguições de bugreiros, perseguições várias e a própria tutela realizada pelo go-verno brasileiro, através da criação, em 1910, do órgão SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e, em 1967, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), os Guarani encontram--se confinados, recolhidos, em pequenas al-deias reconhecidas ou não pela administra-ção federal.

Através de sua organização política, por sua vez, passaram a lutar pela manutenção de sua identidade e retomada de seus terri-tórios, aldeias e aldeamentos, em geral usur-pados pelos não-indígenas e, muitas vezes, regularizados pelos Governos Estaduais (caso ocorrido em Barão de Antonina e Ita-poranga), em um franco desrespeito a ime-morialidade desses povos quanto ao seu di-reito originário às terras indígenas que lhes são necessárias para sua sobrevivência física e cultural à qual têm direito conforme artigo 231, da Constituição Federal de 1988, na qual é enfática e clara.

O povo Guarani sempre foi da região in-cerida no vale do rio Itararé onde hoje se encontram os municípios de Itaporanga e Barão de Antonia, haja vista, o território ser por eles reconhecido.

Pelas diversas informações se pode veri-ficar os anos de exploração, perseguições e preconceitos pelos quais passaram os sujei-tos desta história – os Guarani. Esse antigo aldeamento se faz presente na memória identitária desse povo, como território an-cestral, o que é percebido através de seus depoimentos, da documentação histórica analisada, da vegetação local, dos objetos ar-queológicos ali encontrados e demais aspec-tos de sua cultura, observados por historia-dores, antropólogos, biólogos, arqueólogos que realizaram a pesquisa no contexto do vale do rio Itararé.

A região do outrora aldeamento de São João Batista do Rio Verde continuou a servir

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de passagem de indígenas que saíram da TI Araribá em direção ao Paraná e do Paraná em direção do litoral do Estado de São Pau-lo, configurando os deslocamentos naturais de grupos Guarani por seu território.

Hoje, à alternativa de se esconder na mata virgem vê-se apenas a de retomada dos territórios ancestrais, lugar da identidade e da história, da reprodução de seu modo de viver e da possibilidade de existência como sujeitos de fato.

Na memória da população local ainda se recordam do momento no qual os últi-mos Guarani, que viviam nas matas das proximidades das propriedades rurais, fo-ram embora, devido às pressões dos pos-seiros e proprietários da região que por meio de cercas e intimidações impediam o acesso do Guarani às terras, rios e matas imprescindíveis à realização de seu modo de ser.

Também é importante destacar que os Guarani possuem uma história de terem sido confinados em pequenos espaços de terras. Partindo da história regional, obser-va-se que na Terra Indígena Araribá (SP), os Guarani não possuem terras suficientes para minimamente sobreviver, que dirá de-senvolver demais aspectos da sua cultura. No caso da Terra Indígena Araribá, a situa-ção se configura pior, tendo em vista, a con-vivência compulsória de várias etnias indí-genas completamente diferentes entre si, além da falta de matas, rios, animas e terra para produzirem, muito frisado nas falas dos Guarani.

A alternativa encontrada pelos Guarani tem sido justamente a retomada de seus ter-ritórios ancestrais, na qual, possuem identi-dade étnica e histórica e que apresentam características físicas, geográficas e biológi-cas para reprodução de seu modo de viver e, assim, dar continuidade a sua vivência his-tórica como sujeitos de fato.

Retomar os seus antigos territórios que foram usurpados pelos não-indíge-nas é mais que um direito do povo Gua-rani no Estado de São Paulo, garantido pela Carta Magna, a Constituição Fede-ral, é um dever da sociedade atual fa-zendo justiça histórica com aqueles que tiveram muito a perder para que as ci-dades fossem criadas e abrigassem seus atuais habitantes tornando-se o lugar que são.

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112ARTIGO

CORPO, COMUNICAÇÃO

E CONHECIMENTO:REFLEXÕES PARA A SOCIALIZAÇÃO

DA HERANÇA ARQUEOLÓGICANA AMAZÔNIA1

Cristiana Barreto2

1- Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Seminário “Tecnologia, Arte e Patri-mônio: abordagens críticas sobre aquisição e transformação de conhecimentos” organizado em

dezembro de 2011 pelo LINTT (Laboratório Interdisciplinar de Tecnologia e Território) e CEstA (Centro de Estudos Ameríndios), Universidade de São Paulo.

2- Pesquisadora do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos e Pós-doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 112-128 - 2013

RESUMOEste artigo parte de algumas reflexões so-

bre o papel do arqueólogo no atual contexto de discussões sobre multivocalidade na so-cialização do patrimônio arqueológico da Amazônia, para apresentar uma proposta conceitual e metodológica de comunicação e transmissão de conhecimento científico mais afinada com uma arqueologia pública do século XXI. Em resumo, trata-se de pri-vilegiar certas áreas da interpretação arque-ológica cuja capacidade agentiva de comu-nicação visual e esferas de reconhecibilidade sejam mais abrangentes e inclusivas quanto aos públicos e audiências em jogo.

PALAvRAS ChAvE: Arqueologia ama-zônica, divulgação científica, patrimoniali-zação.

ABSTRACTThis article presents ideas about the role

archeologists play in the processes of turn-ing public Amazonian archaeological heri-tage, within the present debates about mul-tivocality. It advances some concepts and methods for improving communication and knowledge transmission which would be more in tune with public archaeology practices for XXI century. In sum, it pro-poses to prioritize certain areas of archaeo-logical interpretation with a greater poten-tial for visual communication and from which recognition spheres can be expanded and become more inclusive of the types of audiences at play.

KEy-wORDS: Amazonian archaeology, knowledge transmission, heritage socializa-tion.

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CORPO, COMUNICAÇÃO E CONHECIMENTO: REFLEXÕES PARA A SOCIALIZAÇÃO DA HERANÇA ARQUEOLÓGICA NA AMAZÔNIA Cristiana Barreto

DILEMAS DA ARQUEOLOGIA AMAZô-NICA NO SÉCULO xxI

A arqueologia da Amazônia encontra-se hoje em uma encruzilhada. O rápido avanço da crescente prática da pesquisa voltada para o licenciamento de empreendimentos, a chamada “arqueologia de contrato” tem trazido à tona uma enorme quantidade de dados brutos, revelando cada vez mais o quanto nos falta conhecer sobre um diverso e complexo passado pré-colonial. Nunca a região tinha sido objeto de tantas mudanças paradigmáticas, modelos interpretativos concorrentes e intensos debates sobre os sig-nificados de novos achados. Mas, pela pró-pria dinâmica da pesquisa de contrato, com seus prazos acelerados e recortes aleatórios, as pesquisas têm falhado em transmitir o conhecimento adquirido de forma satisfató-ria para a sociedade em geral e, sobretudo, para as comunidades mais diretamente en-volvidas com este patrimônio.

Perpassando esta realidade, temos uma legislação e órgãos do Estado preocupados com a preservação do patrimônio arqueoló-gico que investe cada vez mais em projetos de educação patrimonial como a principal forma de conscientizar o público sobre a re-levância deste patrimônio e sua preservação, mas também no sentido de “socializar” a gestão e os usos culturais que podem ser fei-tos deste patrimônio.

Quer pela obrigatoriedade legal de dar um retorno à sociedade, quer pela renova-ção que perspectivas como a da “arqueolo-gia pública” tem trazido ao debate, o papel e as funções do arqueólogo no processo de patrimonialização da arqueologia da Ama-zônia vêm se transformando rapidamente. Contudo, apesar deste debate estar direta-mente relacionado à própria concepção da disciplina, suas competências e atribuições, limites e alcances, pouco tem sido discutido sobre como os contornos epistemológicos

da Arqueologia têm sido postos à prova por esta nova realidade. A divulgação científica como instrumento de interação com o pú-blico têm sido discutida por jornalistas es-pecializados (Amorim, 2010; Tega-Calippo, 2008). Mas os arqueólogos têm ficado alheios a estes esforços. Este artigo chama a atenção não só para a necessidade de se re-tomar esta discussão no contexto das práti-cas arqueológicas aplicadas a uma região estratégica para o desenvolvimento da ciên-cia, a Amazônia, como também para que esta discussão seja direcionada para que se estabeleçam novos rumos para uma Arque-ologia do século XXI.

Mais especificamente, propomos repen-sar o papel do arqueólogo nas suas práticas de transmissão de conhecimento na região, tanto para o grande público como para as comunidades locais, focando em caracterís-ticas e potenciais que os próprios contextos arqueológicos amazônicos oferecem. Suge-rimos assim, algumas estratégias de comu-nicação, para que, em contextos multivocais, a voz do arqueólogo possa de fato se tornar um vetor de diálogo para com os diferentes agentes do processo de patrimonialização da herança arqueológica na Amazônia.

No cotidiano da prática arqueológica, inicialmente, assistimos a processos em que o arqueólogo acaba por cumprir diferentes papéis na cadeia de pesquisa, produção e transmissão de conhecimento científico. De forma mais ou menos amadorística, mas cada vez mais consciente das implicações sociais e políticas de sua autoridade enquan-to cientista especializado, o arqueólogo vem se tornando também comunicador, educa-dor, sociólogo, museólogo, curador, desig-ner, editor, enfim, tem ocupado uma multi-plicidade de funções de forma a garantir a transmissão do conhecimento arqueológico a outros públicos que não apenas o acadê-mico. Não raro, vemos a composição de

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equipes multidisciplinares e uma aproxima-ção muito grande da museologia, ou da co-municação museológica nos ajudando a cumprir estes papéis.

Contudo, na medida em que a museali-zação dos acervos escavados tem sido consi-derada uma forma definitiva de patrimonia-lizá-los, quer em museus de sítio, que envolvem as comunidades locais, quer em museus universitários, vimos propostas em que o papel do arqueólogo se torna secun-dário, sendo até mesmo excluído da criação dos conteúdos museológicos em muitos projetos.

São também cada vez mais comuns as iniciativas de patrimonialização, que envol-vem a comunicação e transmissão de conhe-cimento arqueológico, em que o arqueólogo está ausente, ou está presente apenas como um negociador. Na Amazônia, este é o caso tanto do turismo e da indústria de suvenires, como de certa forma, das práticas de licen-ciamento ambiental.

A hERANçA ARQUEOLóGICA COMO MARCA E MERCADORIA

Talvez um dos casos mais formalizados de transmissão de conhecimento arqueoló-gico para comunidades locais tenham sido aqueles projetos voltados para oficinas de capacitação de artesãos e geração de renda com base em conteúdos arqueológicos. Mais especificamente, vimos alguns programas do SEBRAE tanto no Pará, como no Amapá, em que se retomou a inspiração da cerâmica arqueológica para o a produção local artesa-nal, tanto entre os ceramistas de Icoaraci, no Pará, como no design de suvenires (camise-tas, chaveiros, etc.) no Amapá1. Nas lojas de

1. Em 1998, o Governo do Estado do Pará juntamente com o Serviço de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (SE-BRAE) e com apoio do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), instalaram o Programa de Artesanato do Pará. O Programa proporcionou, a exemplo do que o MPEG já havia feito na década anterior, o contato com os principais elementos das culturas Marajoara, Maracá e Tapajônica.

Belém e Macapá, é possível comprar cerâmi-cas que replicam as arqueológicas com gran-de primor e exatidão, mas também há um amplo espectro de objetos que exibem rea-propriações e transformações tão extrema-mente distantes dos referentes iniciais, isto é, dos estilos da cerâmica arqueológica, e de seus significados, que fica evidente a perda de interesse pelas culturas tradicionais do passado em detrimento de objetivos pura-mente mercadológicos.

Também direcionadas ao turismo, vemos algumas iniciativas de prefeituras e o secretarias de turismo no desenvolvimento de equipamentos urbanos com design inspi-rado em peças ou imagens da arqueologia amazônica: telefones públicos de Belém em forma de urna marajoara; fonte em praça de Santarém em forma de vaso de cariátides, latas de lixo com desenhos de pinturas ru-pestres em Monte Alegre, piso de calçada com desenhos de muiraquitãs em Santarém, são alguns exemplos destas iniciativas.

Nestes processos de reapropriações e usos deste patrimônio, não temos apenas uma comodificação da arqueologia, como já havia notado Schaan para o material mara-joara (Schaan, 2006). O objeto arqueológico passa também por uma perda de sua quali-dade de testemunho de um passado, ainda pouco conhecido do grande público e, tal-vez, por isso mesmo, lhe seja desinteressan-te, mas ainda é mantida, ou ressignificada sua qualidade de herança cultural, isto é o caráter exótico e regional. Assim sendo, as-sistimos um movimento de ressignificação

Como resultado desse trabalho foi elaborado pelo SEBRAE e pelo MPEG o livro “A Arte da Terra: Resgate da Cultu-ra Material e Iconográfica do Pará” (1999). No Amapá, em 2006, o SEBRAE iniciou um programa de capacitação para os empresários do setor artesanal, com a realização de di-versas oficinas, incentivando-os a promover a construção de diferenciais que não só agregassem valor econômico a seus produtos e/ou serviços, como possibilitassem a cons-trução de uma identidade para seus produtos e/ou empre-sas, o que resultou em diversas exposições e a publicação intitulada “O legado das civilizações Maracá e Cunani: O Amapá revelando sua Identidade” .

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do objeto arqueológico como herança cultu-ral, movimento no qual a voz da arqueolo-gia, isto é o conhecimento científico, fica muitas vezes ausente.

Não se trata aqui da defesa de um “puris-mo” cultural; o artesanato é uma área em que inovações e reapropriações estão sem-pre ocorrendo e a referência à história (ou pré-história) pode ser uma estratégia bas-tante positiva e genuína para reforçar a iden-tidade de um local e dar a conhecer esta his-tória e este passado aos visitantes e turistas (Borges, 2012).

Contudo, esta não tem sido a direção to-mada no design de artesanato da Amazônia. Ao contrário, usos e abusos do patrimônio arqueológico têm ocorrido de forma a afas-tar o público cada vez mais do universo dos conhecimentos produzidos pela arqueolo-gia. Quer seja a urna funerária Marajoara transformada em telefone público em Be-lém, os muiraquitãs tornados calçamento em Santarém, ou ainda a vasta gama de ce-râmicas “tapajoaras” vendidas nos merca-dos, devemos nos perguntar quais são as

mensagens que estão sendo veiculadas sobre o passado arqueológico da Amazônia atra-vés destes projetos. Os usos destes objetos e imagens teriam sido diferentes caso houves-se um entendimento mais aprofundado so-bre os povos que os fabricaram, os contextos em que foram encontrados e o papel espe-cial que eles podem desempenhar na com-preensão de nosso passado indígena?

Com exceção das primorosas réplicas de cerâmicas arqueológicas efetuadas de forma bastante exclusiva por alguns artesãos, na Amazônia, nos parece que o conteúdo ar-queológico não só vem se tornando secun-dário para o grande público, mas também vem sendo reapropriado para fins variados, não apenas comerciais, mas, sobretudo, como marca de identidade visual, às vezes reforçando antigos estereótipos sobre as so-ciedades indígenas amazônicas, em uma vi-são ainda bastante “colonizadora” da histó-ria pré-colonial.

A própria idéia de que objetos arqueoló-gicos podem ser replicados ad infinitum, ou ilimitadamente transformados, em suas

Figura 1- Exemplo de equipamentos urbanos com design inspirado em peças arqueológicas. À esquerda, telefone público em forma de urna marajoara em Belém; à direita calçada com desenho de muiraquitã em Santarém.1

1- Todas as fotografias deste artigo são de autoria de Cristiana Barreto (com exceção do material compilado na figura 5)

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proporções, cores, mate-riais ou técnicas, reduz o caráter único, genuíno, in-substituível e testemunha-dor de um passado parti-cular que representa um objeto arqueológico. As intervenções realizadas nas cópias minimizam a autoria propriamente in-dígena da peça, e a trans-formam em algo mais “atraente” à estética oci-dental. Não raro vemos, por exemplo, uma eroti-zação exacerbada das re-presentações antropo-morfas femininas, onde as peças, supostamente ins-piradas nas urnas funerá-rias e estatuetas arqueoló-gicas, exibem órgãos sexuais de forma exagera-da ou pintados com cores chamativas. Em outras instâncias, os suportes materiais originais são deixados de lado, ficam apenas os desenhos, mais facilmente aplicados em outros tipos de mídia.

Assim, as dinâmicas da comunicação visual contemporâneas são pos-tas em ação, sem realmen-te aproveitar ou dialogar a capacidade co-municativa original do objeto, pautada pelas intenções por trás do projeto original e seu contexto no passado arqueológico. No en-tanto, muitos dos objetos replicados, copia-dos, transformados, possuem uma intensa capacidade agentiva de comunicação.

O uso que se faz assim do repertório do material arqueológico nada tem a ver com a

transmissão de conhecimentos sobre cultu-ras passadas, mas ao contrário, vai na dire-ção de sua negação e esvaziamento de signi-ficados.

Por esses motivos, se faz necessário um questionamento mais aprofundado das ini-ciativas que vêm associando o patrimônio arqueológico a valores monetários em geral, mesmo que a intenção inicial destas iniciati-

Figura 2: Artesanato em cerâmica vendido no mercado Veropeso em Belém, com diferentes versões de cerâmica “marajoara”.

Figura 3: Artesanato cerâmico vendido em Santarém inspirado em estatuetas tapajônicas. Note-se a interpretação erotizada das peças, com a representação exacerbada dos órgãos sexuais.

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vas tenha sido a de favorecer comunidades locais através da geração de renda. Esta mo-netarização do patrimônio arqueológico, e a conseqüente trivialização e “adaptação” vi-sual da cultura material arqueológica a uma estética mais comercial, quer enquanto mar-ca de identidade de produto (no sentido usado pelos especialistas das áreas de Co-municação e Marketing), quer para o consu-mo turístico, acaba, de certa forma, por in-terferir na própria comunicação, transmissão e socialização do conhecimento arqueológi-co junto ao público.

Na base destas questões, talvez resida ou-tra bem maior, que é o descompasso identi-tário que temos entre as comunidades ama-zônicas contemporâneas e o passado cultural indígena, descompasso este ainda permeado por preconceitos, discriminação e desco-nhecimento geral das culturas indígenas, tanto do presente como do passado. Refiro--me aqui, sobretudo, às comunidades cabo-clas que em geral não tem nenhuma relação de herança com o patrimônio indígena pré--colonial local, quer pertençam a grupos de afrobrasileiros descendentes de quilombo-las, ou a comunidades nordestinas que se deslocaram para a Amazônia na época da indústria da borracha.

Junta se a esta falta de identificação com as culturas indígenas, as fortes tradições ca-tólicas da maioria da população em centros urbanos da região, e compreende-se melhor as razões pelas quais se justifica o fato de que conteúdos indígenas não só devam ser for-çosamente reapropriados de forma a impri-mir a marca deste descompasso, deixando evidente a diferença com o original, mas também o fato de que a intervenção deva ser feita dentro de uma concepção de “melho-rar” as peças para que possam ser admiradas e usadas em contextos completamente dis-tintos do original.

Nos processos de patrimonialização e

transmissão de conhecimento temos ainda como variável complicadora a multiplici-dade de vozes e de interesses implicados com este patrimônio. Para além dos arque-ólogos temos as empreiteiras que financiam a maior parte dos programas de educação patrimonial, os educadores, os órgãos do governo, as comunidades e associações re-presentativas de várias minorias – indíge-nas, quilombolas, e caboclas em geral, ór-gãos mistos, como o Sebrae, além de organizações não governamentais, e outras fundações que lidam com a indústria cul-tural.

Nesta seara de muitas vozes, existem, como sempre, contradições irrefutáveis e in-teresses irreconciliáveis. Na enorme teia de multivocalidade, existe uma assimetria de poder que é bastante comum nestes contex-tos; na arqueologia de contrato em particu-lar, a resolução destas contradições muitas vezes se dá em negociações, intermediadas pelos órgãos governamentais responsáveis, quase sempre envolvendo uma política de compensações. Compensações por perdas que são na verdade incompensáveis, insubs-tituíveis, nem mesmo se justificadas pelas oportunidades excepcionais de pesquisa em áreas antes de difícil acesso ou condições de pesquisa.

Diante destas assimetrias de poder, con-cordamos com Hodder sobre o fato de que a multivocalidade deva ser um componente central da prática arqueológica, mas que também é preciso reconhecer os perigos do termo e da idéia.

“In many ways, the dangers of multivocality parallel those associated with pluralism and multiculturalism. In all such cases, it appears as if the main intent is to allow the participation of more voices, more groups and more individuals without taking into account the fact that achieving the participation of marginalized groups in-volves a lot more than providing a stage on which they can speak. …It involves ethics and rights” (Hodder, 2008: 195).

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Ian Hodder reforça a necessidade de se-paramos uma arqueologia socialmente enga-jada com a multivocalidade e os objetivos comercialmente conscientes de incluir a maior quantidade possível de vozes enquan-to apenas consumidores (Hodder, 2008: 196; Silberman, 2008). Mas também aponta para o fato de que a comercialização da arqueolo-gia pode abrir oportunidades de alianças pouco comuns que, surpreendentemente, podem ser usadas para melhorar e aprofun-dar o engajamento do público com a herança arqueológica. Conclui que para se evitar es-tes perigos é preciso desenvolver uma arque-ologia mais reflexiva, com uma plataforma de comunicação onde grupos que estão em desvantagem de poder não somente tenham a oportunidade de serem ouvidos, mas tam-bém possam agir sobre como se dá a pesqui-sa arqueológica em todas as suas fases, in-cluindo a divulgação e socialização do conhecimento.

Voltando à Amazônia, acredito que o de-safio maior da arqueologia reside então na criação desta plataforma de comunicação, na qual arqueólogos, enquanto especialistas, não só ocupam um papel relevante, mas po-dem realizar avanços reais naquilo que está propriamente dentro de suas atribuições e expertises, que é entender as relações entre as pessoas e a cultura material, seja ela no passado ou no presente, e a partir deste en-tendimento repensar o papel do arqueólogo na patrimonialização da arqueologia da Amazônia.

Recentemente, pesquisadores que traba-lham com a perspectiva da Arqueologia Pú-blica, isto é, da educação patrimonial como antropologia aplicada (Bezerra de Almeida, 2003, 2012) propõem que este entendimen-to seja feito através de uma etnografia de como as comunidades se relacionam com este patrimônio, para fortalecer a comunica-ção e a pedagogia de como transmitir os

conteúdos arqueológicos, e também para que tornemos a educação patrimonial uma experiência mais democrática, mais simétri-ca, de troca ou “socialização” de conheci-mentos, do que propriamente de transmis-são unilateral de conteúdos que muitas vezes não têm significados relevantes para os públicos almejados.

Esta proposta é sem dúvida a mais fértil que tem surgido até agora para a transmis-são do conhecimento arqueológico. Neste mesmo terreno, da etnografia arqueológica, podemos ainda avançar em outra frente, que é a de aplicar nossas observações de como o patrimônio arqueológico vem sendo inter-pretado e reapropriado pelos vários públicos para fortalecer a própria interpretação ar-queológica, fechando de fato um ciclo de transmissão de conhecimento na cadeia operatória do processo epistemológico da arqueologia.

MAPEANDO INTENçãO E RECONhECI-BILIDADE

Nos processos de divulgação científica, inicialmente partimos da premissa de que, apesar de a arqueologia ser uma ciência in-terpretativa, podendo acomodar múltiplas interpretações sobre um mesmo objeto, ela continua todavia sendo uma ciência, no sen-tido de que as leituras produzidas são tantas quantas o objeto e seu contexto permitem. Ao contrário das narrativas literárias ou ar-tísticas, os limites são dados, não pela nossa imaginação ou criatividade, mas pelo objeto arqueológico em si, e as informações de que dispomos sobre seus contextos.

Assim, na comunicação com o público, a primeira coisa que o arqueólogo deve dei-xar transparecer, são estas qualidades do objeto arqueológico que guiam a interpre-tação arqueológica. Por outro lado, seguin-do na proposta de fortalecimento da inter-pretação arqueológica a partir de um

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melhor entendimento de como as pessoas interagem com objetos arqueológicos, po-demos de início isolar alguns conteúdos que parecem mais relevantes para o público, no sentido de produzirem um maior im-pacto na percepção e reconhecimento do patrimônio arqueológico. Além disso, po-demos mapear algumas áreas onde a per-cepção e as leituras destes conteúdos arque-ológicos sejam minimamente coincidentes, isto é, diante dos quais as diferenças de perspectivas e subjetividades sejam meno-res e permitam a construção de uma plata-forma comum de comunicação. (Figura 4)

Está claro que a relação entre o público atual e a arqueologia, seja ele oriundo de pequenas comunidades, ou do turismo de massa na Amazônia, é, e sempre será inter-mediada por uma série de idéias, conceitos e pré-conceitos, talvez adquiridos em expe-riências anteriores, sobre o que é a arqueolo-gia, como são as sociedades indígenas e, so-bretudo, como eram no passado. Contudo, de maneira geral, existe um enorme desco-nhecimento sobre o assunto, apesar de sem-pre acompanhado por uma grande curiosi-dade. Afinal, as oportunidades existentes de entrar em contato direto com este patrimô-nio são raras e por vezes inexistentes, seja indiretamente através de experiências edu-cativas, como na escola, na televisão ou na internet, ou diretamente observando peças em museus ou visitando sítios arqueológi-cos. O contato mais comum, para o turista, talvez seja justamente, indiretamente, atra-vés do artesanato e da mídia voltada para este mercado.

Contudo, apesar do desconhecimento generalizado, desde os primórdios da arque-ologia na Amazônia, duas categorias de re-gistros arqueológicos se destacam na sua capacidade de despertar a atenção do públi-co e engendrar múltiplas leituras e interpre-tações. A primeira se refere às modificações

da paisagem: a arte rupestre, os mounds em Marajó e, mais recentemente, os geoglifos do Acre, ou os megalitos do Amapá. A se-gunda categoria engloba recipientes e peças escultóricas, em cerâmica ou pedra, em ge-ral antropomorfas, cujas denominações va-riam entre ídolos, imagens, efígies, bonecas, estatuetas, e etc.

Ambos os tipos de registros arqueológi-cos são resultantes de ações realizadas com a intenção de que estas construções fossem percebidas visualmente, são intervenções ou objetos feitos para serem vistos, por seus pa-res e para além de seus pares. São produções intencionalmente duradouras, cujos signifi-cados podem ser reconhecidos, ou apreen-didos, pelo menos em parte, por diferentes públicos, a partir de alguns elementos em-pregados, tecnológicos ou estilísticos que lhe conferem algumas características agenti-vas (no sentido proposto por Gell, 1998): um alto grau de reconhecibilidade, grande capacidade de afetar sensorialmente ou emotivamente, ou alto grau de iconicidade, isto é, em termos peircianos, com grande semelhança entre o referente e sua represen-tação (Pierce, 1981).

Aqui, como um exercício inicial, na dire-ção de um melhor aproveitamento das capa-cidades agentivas dos objetos arqueológicos na comunicação e transmissão do conheci-mento científico, trataremos em maior pro-fundidade o caso dos objetos antropomorfos, - vasos, urnas funerárias ou estatuetas - visto o amplo uso que têm sido feito destes objetos tanto na divulgação científica, na musealiza-ção dos objetos arqueológicos, como nas rea-propriações do artesanato e turismo.

Inicialmente, para discutirmos a capacida-de agentiva destes objetos, são úteis algumas das idéias de Alfred Gell, como as de que toda representação visual é icônica (e portanto é diferente de um simples código de conven-ções), e o que realmente interessa ao antropó-

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logo ou ao arqueólogo, é o grau de se-melhança com o que está sendo representado, e o grau de reconhecibi-lidade por parte do observador, pois são estes elementos que definem e con-trolam o tipo de percepção e de relação almejada pelo artista entre o observa-dor e as entidades ali representadas ou constituídas. Além disso, Gell traz para a discussão o fato de que o reconheci-mento da entidade ali constituída, nem sempre ocorre de forma espontâ-nea, podendo ser induzido de várias maneiras, as chamadas tecnologias de encantamento (Gell, 1998).

Está claro, que estes objetos com alto grau de reconhecibilidade, ape-sar de serem universalmente reconhecidos, foram realizados almejando-se determina-dos públicos, e que mesmo se suas capacida-des agentivas tenham se estendido no tem-po, permanecendo até hoje reconhecíveis, deve-se diferenciar as diversas esferas de leituras possíveis e, conseqüentemente, as diferentes camadas de significados que po-dem adquirir. Em outras palavras, a inter-pretação do objeto arqueológico é relacio-nal, depende de características do objeto, mas também dos significados atribuídos a estas características pelo observador.

Para além de sua reconhecibilidade en-quanto corpos humanos, temos, por um lado, um enorme leque de informações identitárias encorporadas(embodied) nestes objetos, feitos segundo estéticas e lingua-gens visuais particulares, comunicando as diferentes maneiras ameríndias de represen-tação e de fabricação de seus corpos.

Não por acaso, nas últimas décadas, a et-nologia amazônica tem insistido na impor-tância da “fabricação do corpo” enquanto processo de construção de identidades. Inú-meros estudos salientam a corporeidade e os atributos visuais do corpo como elementos

definidores da sociabilidade em sociedades ameríndias, em particular as perspectivistas (Breton et al., 2006; Conklin, 1995, 1996; Taylor, 2010; Turner, 1995; Rival 2005; Vila-ça 1993, 2005 e 2009, para citarmos apenas alguns).

Um denominador comum das socieda-des indígenas amazônicas é a idéia de que, ao mesmo tempo que todos os humanos compartilham corpos semelhantes, decorar, pintar e transformar o corpo é o que real-mente tece a complexa relação entre seme-lhança e diferença. Tais atividades relaciona-das à construção do corpo social (Lambert e McDonald, 2009), ou da “pele social” (Tur-ner, 1980, 1995) aparecem tanto na organi-zação da prática ritual, como no discurso das artes visuais, muitas vezes como uma prática classificatória cotidiana dos seres e das coisas (Lagrou, 2007).

Por outro lado, isto é, o do público, e de todo ser humano em geral, é através do cor-po que apreendemos sensorialmente conte-údos externos, que aprendemos a reconhe-cer e a nos relacionar com o outro, e que internalizamos nossas experiências de aprendizado sobre o mundo exterior. Práti-

Figura 4: Entre o registro arqueológico e público: mapeando as áreas com maior possibilidade de leituras coincidentes

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cas museológicas contemporâneas têm en-fatizado a importância das experiências sensoriais no nível do aprendizado indivi-dual.

“Learning is defined as “an act of perception, interaction and assimilation of an object by an individual”, which leads to an “acquisition of knowledge or the development of skills or attitudes” (Allard and Boucher, 1998). Learn-ing relates to the individual way in which a visitor as-similates the subject (ICOM, 2010).

Não por acaso, os objetos antropomorfos estão entre os mais expostos nas vitrines de museus e exposições, e cujas imagens foram mais veiculadas em capas de catálogos, re-vistas e materiais de divulgação científica em geral. (Figura 5).

A MEDIAçãO DAS DIFERENçAS: UM ExERCÍCIO NECESSÁRIO

O foco na percepção, reconhecimento e interação visual de elementos identitários, sobre uma base universalmente comum (o corpo humano), constitui assim uma esco-

lha de artefato particularmente privilegiada para a transmissão de conhecimento, tanto no passado, como no presen-te. Contudo, se-ria falacioso e et-nocêntrico de nossa parte, usar-mos esta base co-mum para proje-tar nossas noções ocidentais de cor-po e humanidade em uma leitura direta do material a r q u e o l ó g i c o . (Isso é justamente o que vemos nas

transformações feitas livremente pelo arte-sanato).

E é aí que se faz necessário o trabalho de tradução do arqueólogo, a mediação das diferenças, e os enfoques comparativos en-tre “eles” e “nós”, entre como concebemos e construímos nossos corpos e como e eles o faziam no passado. E além disso, como fab-ricavam seus corpos comparativamente aos de outras gentes. Afinal, conforme nos lem-bra Eduardo Viveiros de Castro,

“comparison is not just our primary analytic tool. It is also our raw material and our ultimate grounding, be-cause what we compare are always and necessarily, in one form or other, comparisons” (Viveiros de Castro, 2004:4)

Assim, seguimos aqui o que tanto Sally Price (1989) como Edward Morphy (1994) vêm argumentando em relação à apreciação e entendimento de objetos etnográficos pelo público ocidental em geral: não basta expor estes objetos com base em um universalis-mo estético; é preciso primeiro criar con-

Figura 5: As caras da divulgação científica na arqueologia da Amazônia: a escolha intuitiva das peças antropomorfas em capas de catálogos, livros e guias temáticos confirma o seu potencial comunicativo.

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dições de igualdade para se entender as diferenças, e segundo, traduzir estas difer-enças de acordo com os universos culturais específicos com que se está lidando. Hodder também nos lembra o importante papel do arqueólogo não só como um interprete en-tre o passado e presente, mas também entre diferentes perspectivas sobre o passado (Hodder, 1992).

A seleção, tradução e a mediação, no en-tanto, só serão possíveis se a arqueologia avançar no entendimento dos princípios e técnicas que conferem a capacidade agenti-va destes objetos, primeiro na arena de “leitura” para os quais foram feitos; as inten-ções e efeitos almejados para o público “original”, dentro de uma perspectiva das teorias de percepção e agência dos objetos.

Na arqueologia amazônica, boa parte dos corpos fabricados em cerâmicas, consti-tui na verdade segundos corpos para o en-terro secundário de indivíduos. De maneira geral, os objetos que vemos nas estantes das lojas de artesanato, se inspiram em urnas fu-nerárias de variados complexos culturais em tempos arqueológicos.

O conjunto de urnas funerárias conheci-das para a Amazônia pré-colonial certa-mente exibe um grau de semelhança que compõe uma linguagem comum, pan-amazônica. Uma síntese panorâmica destes registros ao longo da bacia amazônica indi-ca, sobretudo, uma longa permanência de aproximadamente 1200 anos da prática de enterramentos secundários em urnas cerâmicas antropomorfas, de uma ponta à outra da bacia amazônica.

São, portanto, artefatos rituais que encer-ram a intenção de representar corpos huma-nos (pessoas ou personagens ?) de formas mais ou menos icônicas, dependendo da tradição cultural e que, para além da forma do corpo humano, apresentam elementos estilísticos de engajamento com o público

tais quais eixos de simetria que atuam no es-paço ritual, ritmo, movimento, efeitos ciné-ticos, e muitos outros que podemos identifi-car nos motivos pintados, incisos, e na relação entre os elementos bi e tridimensio-nais. Incluem-se aqui as combinações de elementos que compõem seres híbridos, animais e humanos. São todos elementos que fazem parte da tecnologia de encanta-mento de determinados rituais funerários (Barreto, 2009).

Algumas constantes, como as formas tu-bulares com tampa, a antropomorfia, sobre-tudo com a representação de uma face hu-mana, a divisão entre urna/tampa correspondendo a corpo/cabeça, a constru-ção do corpo na posição sentada, a presença de pintura e adornos corporais, a indicação do sexo, e a variabilidade de tamanho (às vezes correlacionada com a idade), e o uso de elementos decorativos (incisos ou pinta-dos) em faixas e espirais com representações de cobras, fazem parte desta linguagem pan--amazônica.

São estes elementos que garantem uma das características fundamentais para se de-finir estilos particulares, isto é, aquilo que Peter Roe, em sua definição de estilo, chama de reconhecibilidade – um termo que vimos empregando com um sentido mais amplo neste texto, mas que aqui se refere à capaci-dade do objeto em ser identificado enquanto distinto de outros estilos (Roe, 1995:30). Além da reconhecibilidade, para Roe, entre outros elementos importantes na definição de um estilo, está o que ele chama de contex-tualidade, ou seja, o fato de que sua reco-nhecibilidade depende do contexto a sua volta, podendo ser induzida ou não por este contexto (o que certamente acontecia em tempos pré-coloniais, visto serem os sítios arqueológicos em que foram encontrados prováveis territórios de domínio ritual, fu-nerário e, portanto, sagrado).

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Na Amazônia pré-colonial, o contexto é sem dúvida parte deste alto grau de reco-nhecibilidade dos objetos funerários antro-pomorfos. Muitos dos sítios em que são en-contradas as urnas exibem algum aspecto que garantem sua preservação e sua visibili-dade, associados a verdadeiros marcos da paisagem, marcos estes que podem ser natu-rais (como as grutas, abrigos, e topos de morros) ou construídos, como os tesos de Marajó e os túmulos Aristé e que, portanto, podem atuar como um marcador de lugares sagrados (assim como os templos religiosos em geral) onde se exibem as marcas estilísti-cas tradicionais e ancestrais das sociedade que os constroem.

Nos cemitérios Maracá, as urnas ficam em lugares protegidos (como abrigos e ca-vernas), e ao invés de serem enterradas, fi-cam expostas aos visitantes (Guapindaia, 2001). As urnas Aruã e Mazagão também não eram propriamente enterradas, mas eram colocadas em abrigos ou outros luga-res protegidos, porém visíveis (Meggers e Evans, 1957).

Esta visibilidade intencional sugere forte-mente a prática de uso da representação dos ancestrais enquanto marcadores de identida-de política e cultural para um mundo exte-rior, isto é, para as outras sociedades amazô-nicas contemporâneas. Em tempos pré-coloniais, a variação que encontramos nas formas de representação do corpo, com um grau de iconicidade mais ou menos agu-çado, pode traduzir a necessidade de se man-ter uma linguagem extra-regional, e talvez seja esta intenção de comunicação com ou-tros mundos que tenha assegurado sua reco-nhecibilidade até os dias de hoje, mesmo em contextos de conhecimentos ocidentais.

Mas o que garante a reconhecibilidade deste estilo panamazônico para o público em geral, que desconhece estes contextos es-pecíficos? O que faz com que um turista ou

visitante olhe para uma urna Maracá e reco-nheça ali uma pessoa sentada sobre um ban-co, ou seja capturado pelo olhar de uma urna Marajoara com seus grandes olhos de coruja?

Roe fala também da capacidade dos ob-jetos de afetar emocionalmente (affect ) ou sensitivamente o público. Mas não no senti-do estetizante em que museus e exposições com materiais etnográficos vêm trabalhan-do na linha de “deixar o objeto falar por si só”. Ao contrário, a idéia é justamente usar o objeto para entender as ações, as intenções, as técnicas e linguagens usadas para produ-zir determinados efeitos no público.

Aqui talvez a reconhecibilidade se daria simplesmente pelo fato de se tratar de um tema universal, o corpo, em que sua compo-sição, por mais que seja culturalmente espe-cífica, seja sempre reconhecível por outro ser humano. Mas em se tratando de socieda-des ameríndias da Amazônia, entre as quais sabemos que a forma do corpo humano nem sempre corresponde à noção de huma-nidade, e que estas formas podem ser múlti-plas, híbridas (antropo e zoomorfas ao mes-mo tempo), transformacionais e instáveis, em outras palavras, podem ser corpos cons-truídos sob a teoria nativa do perspectivis-mo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002), não podemos simplesmente lançar mão des-te tipo de reconhecibilidade universal. A mediação e a tradução são necessárias.

Devemos reconhecer e explicitar alguns outros princípios de representação dos se-res, como algumas das linguagens metafóri-cas utilizadas comumente nas artes amerín-dias que tomam a simetria e a composição das partes de um corpo (humano ou não) pela representação de animais, ou a compo-sição de uma serie de artefatos, para além daquilo que chamamos de antropomorfos (como, por exemplo, a composição das vasi-lhas marajoaras ou xinguanas). Contrapon-

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do urnas funerárias antropomorfas, a outros gêneros de artefatos antropomorfizados, tais quais vasos que possuem cabeça, membros, cauda, e etc., ou as estatuetas cerâmicas en-quanto modelos reduzidos de corpos, pode--se, assim não só entender os diferentes sis-temas de representação dos seres, mas, sobretudo, as diferentes concepções de como os seres são construídos, ou seja suas cosmologias.

A “tradução” arqueológica, pode tam-bém explorar as diferenças contextuais entre o arqueológico e o contemporâneo. Por exemplo, é interessante notar que a repre-sentação humana em urnas funerárias cerâ-micas, uma tradição regional tão dissemina-da na Amazônia pré-colonial, e apesar de continuada durante os primeiros tempos de contato (como atestam as contas de vidro européias encontradas em algumas urnas), parece ter sido abandonada por completo entre as sociedades indígenas ao longo da história.

Assim, estes objetos constituem também uma categoria privilegiada para tratarmos das diferenças entre o passado pré-colonial e o presente etnográfico, mostrando que o papel da cultura material como intermedia-ção na relação entre vivos e seus ancestrais talvez tenha mudado radicalmente. A fabri-cação material de corpos ancestrais tais quais em tempos pré-coloniais talvez encon-tre correlatos em alguns rituais indígenas atuais, mais conhecidos do público em geral, como na fabricação dos postes Kuarup no ritual funerário xinguano.

Mas de maneira geral os rituais funerá-rios documentados etnograficamente ou en-volvem objetos que não possuem esta ampla esfera de reconhecibilidade formal, talvez em função de situações em que a coloniza-ção e o contato tenham reprimido a fabrica-ção de imagens tão icônicas, ou talvez por-que tenham passado por mudanças bem

mais profundas, em que novos regimes de percepção, regidos pela instabilidade das formas corporais e a constante transforma-ção dos seres tenham produzido novos meios imateriais de se interagir com outros mundos, incluindo os ancestrais, através de outros meios mais imateriais, tais quais so-nhos, visões alucinógenas, e etc.

Se as urnas funerárias são interessantes para se tecer conteúdos sobre a relação entre corpo, identidade e idéias nativas de vida e morte, outra categoria de objetos antropo-morfos, as estatuetas, talvez representem a forma mais intencional de representar cor-pos. Com certeza elas são hoje um dos gêne-ros mais copiados e transformados na in-dústria artesanal, e ao longo da história, sejam as estatuetas tapajônicas ou marajoa-ras, foram transformadas em verdadeiros ícones da arqueologia amazônica. Alguns poucos exemplares inteiros e mais bem con-servados foram tão repetidamente reprodu-zidos em materiais de divulgação científica, que acabaram por fixar uma visão “canôni-ca” de como os corpos eram representados no passado arqueológico. No entanto, o re-gistro arqueológico e as coleções de museus, demonstram uma enorme variabilidade morfológica e decorativa deste gênero de ar-tefato cerâmico.

As estatuetas constituem uma forma cor-poral tangível e específica, onde os elemen-tos corporais aparentemente não são molda-dos em função de outras características utilitárias do objeto, tais quais os vasilhames ou as urnas, com exceção de parte das esta-tuetas marajoaras que parecem ter servido como chocalhos. Por isso, elas podem se tor-nar o meio por excelência para se tratar de semelhanças e diferenças de concepção dos corpos e seres.

Aqui também, as diferentes esferas de leitura e reconhecibilidade nos levam a con-siderar questões que podem ser exploradas

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de forma mais ou menos didática para um público não nativo. Os temas a serem explo-rados podem girar em torno dos diferentes significados associados aos padrões de va-riabilidade formal, os diferentes tratamentos corporais (pinturas, adornos, penteados), os significados das diferentes posições em que os corpos são representados (sentados, em pé, em posição de parto, etc.), os diferentes modelos de corpo de acordo com o contexto cultural (comparando-se as estatuetas mara-joara com as tapajônicas, por exemplo), e relacionando este gênero de representação a outros, dentro dos sistemas artefatuais indí-genas amazônicos.

A idéia aqui, não é apenas transmitir as associações dos materiais a determinadas identidades culturais que a arqueologia clas-sifica com categorias tais como tradição, fase, cultura, complexo cultural ou outras. Mas fazer ver, nos objetos, as linguagens e os sistemas nativos de comunicação e expres-são destas identidades, compartilhá-los com o público.

AS CULTURAS SãO FEITAS PARA DIA-LOGAR

Assim dizia o slogan que, no início do sé-culo XXI anunciou a criação de um novo museu em Paris para abrigar as coleções de culturas antes ditas “primitivas”, mas agora reconhecidas como primeiras, ou primor-diais.

Na museologia do século XX, a produção de grupos e povos mais ou menos distantes da civilização ocidental aos poucos migrou dos tradicionais museus de antropologia para os museus de arte. Contudo, aprende-mos que nem sempre basta expor esta pro-dução enquanto obra de arte para as fazerem falar. Reiterando as idéias de Sally Price, é preciso achar a lente certa para fazer ver as diferenças e abrir o diálogo. É preciso esta-belecer relações que iluminem a compreen-

são do outro a partir do conhecimento que se tem de si, das diferenças e semelhanças.

Se quisermos efetivar o projeto de uma socialização do patrimônio arqueológico da Amazônia de forma menos hierárquica e autoritária, fazendo uma real diferença não só para a preservação do patrimônio, mas também para despertar interesses locais no seu gerenciamento, não basta incluí-los na arena da multivocalidade; não basta deixar os outros falarem, pois como nos lembra Hodder, nem sempre os discursos construí-dos sobre este patrimônio estão alinhados com os mesmo interesses éticos de celebra-ção de um herança arqueológica. Assim, o arqueólogo tem um papel ativo fundamen-tal a cumprir nesta arena de multivocalida-de, que envolve a comunicação, a mediação e a tradução do conhecimento arqueológico para os cenários de patrimonialização que se apresentam na Amazônia do século XXI.

Vista desta maneira, a atuação do arque-ólogo na Amazônia não mais deveria se res-tringir à comunicação do seu conhecimento em veículos de divulgação científica, quer os acadêmicos ou os mais generalizados, mas engajar-se mais profundamente nos projetos de comunicação visual (governamentais ou privados), de design de produtos, de fomen-to ao artesanato, de programação cultural, tais quais feiras, festivais e exposições, etc.

O papel do arqueólogo é procurar as áre-as, temas, recortes, problemas e, sobretudo, linguagens onde este diálogo é mais prová-vel e profícuo, e fornecer, a partir de todo o seu instrumental teórico e metodológico próprio da disciplina, os elementos para tor-nar a troca de conhecimento possível, isto é, aprender sobre os artefatos arqueológicos a partir da relação do público com eles e fazer uma arqueologia do presente para melhorar a arqueologia do passado.

Como apontam Bezerra de Almeida e Najjar (2009), no Brasil, são ainda muito tí-

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midos os estudos sobre a relação de públicos com o patrimônio arqueológico. Uma ne-cessária atenção está se voltando para a rela-ção entre povos indígenas e este patrimônio (Silva 2002, 2009; Oliveira, 2006), assim como com os quilombolas (Guimarães, 2003) e comunidades locais em geral. A re-lação com o público escolar também tem sido objeto de reflexões relevantes (Bezerra de Almeida, 2003; Bezerra 2005). No entan-to, na Amazônia atual, o discurso mais in-tensamente veiculado sobre a arqueologia está sendo construído fora da arena de con-tato entre arqueólogos e comunidades lo-cais. Reflexões acadêmicas sobre o desen-volvimento do turismo arqueológico não têm se traduzido em iniciativas concretas (Pereira, Figueiredo e Bezerra, 2013).

Pensar a divulgação da arqueologia a par-tir das interfaces com as comunidades locais, da educação escolar e do turismo arqueoló-gico são, de certo, caminhos importantes as serem percorridos na arqueologia amazôni-ca do século XXI. Contudo, a interface com o público deve também ser pensada a partir do conhecimento antropológico sobre as di-ferentes capacidades e potenciais dos objetos intermediarem relações sociais, e a transmis-são de conhecimento em particular.

Fecha-se assim um ciclo epistemológico, onde o saber arqueológico não é mais cons-truído de forma confinada à academia, e não é mais repassado unilateralmente da acade-mia para o público, mas sim construído a par-tir de uma relação dinâmica entre o próprio patrimônio arqueológico e seus públicos, in-termediada pela voz da arqueologia.

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ARQUEOLOGIAPELAS GENTES:UM MANIFESTO.

CONSTATAÇÕES E POSICIONAMENTOS CRÍTICOS SOBREA ARQUEOLOGIA

BRASILEIRAEM TEMPOS DE PAC

Bruna Cigaran da Rocha1, Camila Jácome2, Francisco Forte Stuchi3, Guilherme Z. Mongeló4 e Raoni valle5

1- Doutoranda em arqueologia pela University College London ([email protected])2- Doutoranda em arqueologia pelo MAE-USP ([email protected])

3- Prof. Dep.Biologia/Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, Msc. Etnoarquelogia MAE/USP ([email protected])

4- Mestrando - ArqueoTrop – MAE/USP ([email protected])5- Prof. Dr. – PAA – Universidade Federal do Oeste do Pará UFOPA ([email protected])

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RESUMO A expansão desenfreada do grande capi-

tal pelo país segue deixando comunidades locais, já marginalizadas, em situações ainda mais precárias. O presente artigo (Manifes-to1) traz uma reflexão crítica sobre a atuação de arqueólogos enquanto cúmplices, sendo coniventes e participantes de processos ile-gais e ilegítimos de expropriação e de espo-liação de territórios tradicionais, bens cultu-rais e recursos naturais. A atuação acrítica da Arqueologia de contrato nas obras do PAC, como exemplo repetido ad nauseum do conundrum em que nos situamos, não é uma inexorabilidade de nossa disciplina, é uma escolha política. Outras arqueologias eram possíveis antes e continuam sendo, mas devem ser retomadas e postas em práti-ca com urgência. Nosso primeiro compro-misso é com as gentes, não o capital.

PALAvRAS-ChAvE: Arqueologia de contrato, PAC, Populações marginalizadas.

1- Divulgado inicialmente no World Archaeological Con-gress 2013, em Porto Alegre, e posteriormente na internet, conta com 112 signatários listados em agradecimentos.

ABSTRACTThe big capital expansion all over the

country is leading local communities, which are already marginalized, to even more pre-carious situations. This article (Manifesto) brings a critical reflection about archeolo-gists as accomplices, being convenient and partaker of illegal and illegitimate processes of expropriation and spoliation of tradition-al territories, cultural property and natural resources. Uncritical proceedings at PAC shell-work, as the repeated ad nauseum do conundrum we are lying at, is not an inexo-rability of our discipline. Other archaeolo-gies were possible and still are, but should be resumption restarted and put into practice. Our first commitment is with people, not capital.

KEy-wORDS: Contract Archaeology, PAC, Minority populations.

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ARQUEOLOGIA PELAS GEnTES: UM MAnIFESTO. Bruna C. da Rocha, Camila Jácome, Francisco F. Stuchi, Guilherme Z. Mongeló e Raoni Valle

Viramos reféns de uma legislação que preza pela preser-vação do patrimônio, mas que não conseguiu, até hoje, barrar um único empreendimento com base na legisla-ção vigente e argumentos de que o patrimônio arqueoló-gico é mais importante do que o próprio empreendimen-to e seus inúmeros impactos, irreversíveis no caso do patrimônio cultural. Um agravo constitui-se no fato de que, em muitos casos, não há como mitigar ou compen-sar a perda do meio de vida e de memória de populações atuais que têm em marcos geográficos específicos ou mesmo em sítios arqueológicos – sobrepostos a locais sa-grados – a gravação de sua história que raramente está escrita. (Autores do presente artigo, 2013).

O desenvolvimento da Arqueologia no Brasil tem frequentemente se mostrado incompatível com a agenda da Arqueologia mundial, promovida pelo World Archaeolo-gical Congress (WAC), na qual a disciplina fornece uma plataforma para mediação en-tre diferentes interesses – comunidades lo-cais, instituições públicas, empresas estatais e privadas. Nesse sentido, há uma necessida-de urgente por assumirmos esta atuação, considerando que o passado dos povos indí-genas e demais populações marginalizadas é negado até hoje e que este passado se cons-trói no hoje.

Isso se dá no contexto de flagrantes em-penhos no desmantelamento de direitos conquistados (e.g. PECs 215 e 237) e da pos-tura política autoritária e desenvolvimentis-ta governamental atual e soma-se à recente descoberta do chamado “Relatório Figueire-do” que traz à tona atos de tortura, campa-nhas de extermínio e esbulho de populações indígenas em todo o país que poderá quin-tuplicar o número de mortes atribuídas à ditadura (Balza, 2012). Entendemos que este é um momento em que, mais do que nunca, uma postura coerente e responsável é cobra-da da comunidade de arqueólogos profissio-nais e da Sociedade de Arqueologia Brasilei-ra (SAB).

Entretanto, salvo raras exceções, obser-vamos a alarmante quietude e silêncio da

comunidade arqueológica frente à falta de uma conduta ética em trabalhos desempe-nhados por arqueólogos e empresas de ar-queologia no Brasil. A expansão desenfrea-da do grande  capital  pelo país segue deixando comunidades locais, já marginali-zadas, em situações ainda mais precárias. Ao participarem de trabalhos de processos de licenciamento ambiental em contextos nos quais os direitos de comunidades atingidas não são respeitados – com destaque ao di-reito à consulta livre, prévia e informada prevista na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário –, entendemos que arque-ólogos estão se colocando como cúmplices, sendo coniventes e participantes de proces-sos ilegais e ilegítimos de expropriação e de espoliação de territórios tradicionais, bens culturais e recursos naturais.

É importante frisar que não se trata de fazermos críticas generalistas e idealistas à arqueologia de contrato como um todo, mas sim de problematizarmos aspectos dessas práticas quando se dão em contextos de re-lação direta com populações indígenas e tra-dicionais e/ou em contextos de obras de alto impacto socioambiental. Essas situações são problemáticas e sua resolução não se benefi-cia da dicotomização reducionista que cria uma oposição entre pesquisadores “ingênu-os e idealistas” e pesquisadores “ambiciosos que venderam as almas ao capital”. Embora existam atores que se enquadrem neles, am-bos os cenários são “ficções” quando gene-ralizados. É preciso acima de tudo qualificar a crítica.

Mas também é importante destacar nos-so apoio à ideia de que “a economia sem a cultura não pode mais do que propagar a desvalorização de uma sociedade, colocan-do-a à mercê de interesses estritamente eco-nômicos” (Chauí e Cohn, 2012). Além disto, conforme define Spensy Pimentel, “num

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 130-140 - 2013

país como o Brasil, o bom trato com a ques-tão indígena ajuda a definir o grau de nobre-za de um governo. Porque os indígenas, aqui, não são expressivos, em termos eleito-rais, mas eles são um componente da mais alta relevância no que se refere à nossa his-tória e nossa identidade como brasileiros” (CEPAT e Sanson, 2013)2. Acreditamos que a arqueologia deve contribuir para a promo-ção e valorização da diversidade cultural do país, sem dúvida uma de suas maiores  ri-quezas. Mais do que isso, o componente in-dígena na história dessa parte do mundo hoje chamada Brasil apenas pontualmente é percebido pela antropologia social e etno-história, pois a maior parte dessa história indígena de longa duração – e isso pode sig-nificar entre 15.000 e 50.000 anos antes do presente – é acessível somente à arqueolo-gia, aos pajés e narradores indígenas.

ARQUEOLOGIA PARA QUEM?Tanto quanto a Antropologia e a Histó-

ria, a prática arqueológica imbrica teoria, método e posição política. Nesse sentido é impossível desvincular a pesquisa da relação com as pessoas vivas. Por isso, a opção por fazer “salvamentos” arqueológicos em em-preendimentos tão controversos do ponto de vista social e ambiental como as mega usinas hidrelétricas na Amazônia – Santo Antônio e Jirau, Belo Monte, Teles Pires e Tapajós; a transposição do rio São Francis-co; os grandes projetos de mineração, entre outros, acaba por, de certa forma, referendar lógicas históricas antagônicas às dos grupos culturais pretéritos e atuais que buscamos entender. Fica claro que, apesar de ser am-plamente criticado, um posicionamento político-epistemológico colonialista ainda é corrente na práxis brasileira recente (Latour 1994, Mignolo 2003, Gnecco 2009).

2- CEPAT - Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores

No exercício dessa arqueologia observa--se uma omissão da reflexão, discussão, po-sicionamento e manifestação crítica perante os direitos adquiridos por povos tradicio-nais e ao patrimônio cultural material e ima-terial a eles relacionados. Parece-nos que o sacro argumento da Arqueologia para justi-ficar sua função social que aprendemos nas cartilhas e manuais, o de entender o passado para ter uma melhor compreensão das cau-sas do presente e um quase-consequente melhor planejamento do futuro, se torna uma falácia, pois a proposição fundante, o entendimento do passado perde seu sentido. Quais, então, seriam os objetivos e justifica-tivas dessa Arqueologia?

Dentre outros exemplos, Politis e Curtoni (2011) notam como a criação de museus na-cionais na Argentina, na década de 1880, compunha uma estratégia para neutralizar a presença política indígena no presente, ao atribuí-la ao passado, quebrando uma conti-nuidade cultural e “congelando no passado algo repleto de vitalidade no presente” (2011:498). Nos parece que a arqueologia de contrato, infelizmente, desempenha este pa-pel hoje no Brasil. A divulgação da pesquisa arqueológica e constituição de novos museus não são problemas em si, mas o projeto ide-ológico que está por detrás deles é profunda-mente problemático. Não se troca vidas por exposição de vidas. A cega leitura das nor-mas que são impostas pelos órgãos legislado-res transformou nossa prática em um traba-lho técnico; assistimos à alienação no desenvolvimento de atividades impostas por empresas que forçam a diluição da autoria dos trabalhos finais. É com pesar que perce-bemos a Arqueologia brasileira sendo domi-nada por “buracólogos” acríticos e autôma-tos. Arqueo-Drones, para nos alinharmos à moda mais atual nas tecnologias da morte.

A Arqueologia não pode nem deve ser apenas um conjunto de resultados descone-

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xos entre si, produzidos pelas urgências de um trator atrás do pesquisador (o “lupem-proletariado de campo”) ou do empreende-dor cobrando relatórios que acreditam ser feitos magicamente, sem necessários pro-cessos de reflexão, pesquisa e inclusão dos envolvidos, sejam índios, quilombolas, ri-beirinhos, ciganos, mendigos, o  Estado  e suas instituições, inúmeros setores da socie-dade civil, empresários e empreiteiros. Co-nhecimento cientifico não pode ser produ-zido a toque de caixa. A Ciência requer tempo para pensar, para refletir, entre outras coisas, nos processos de conversão de uma informação em dado científico, que não é automática, nem estatística, nem inúmeros dígitos numa planilha Excel: é um processo reflexivo relacional e contextual, necessaria-mente demorado (The Slow Science Acade-my. 2010).

Percebe-se uma tendência cada vez mais generalizada de instrumentalização e mer-cantilização do fazer científico. No Brasil ob-servamos aspectos diversos dessa tendência presentes, por exemplo, na obsessão pelo “I” no MCTI (Ministério da Ciência Tecnologia e “Inovação”) e na mencionada rapidez agressiva com que a “ciência de contrato” é feita. Um dos mecanismos que entendemos favorecer esse processo de instrumentaliza-ção é a condição, ou prerrogativa contratual nos licenciamentos ambientais que os em-preendedores têm acerca da edição e conso-lidação dos relatórios. Ou seja, o pesquisador que levanta a informação e a partir dela tenta gerar o dado reflexivo e o coloca no relatório não detém o direito autoral sobre o dado, ele é cedido ao contratante, ou empreendedor. O mecanismo de edição, ou como dito, de con-solidação final dos relatórios, é um procedi-mento problemático porque incide direta-mente na capacidade real de tais documentos, quando apontam para aspectos que inviabi-lizariam as obras, serem validados e conside-

rados enfaticamente enquanto tais, e não serem “relativizados” em Termos de Ajusta-mento de Conduta (TACs), cláusulas condi-cionais, medidas mitigatórias.

A consequência direta é que mesmo quando arqueólogos apresentam dados de pesquisa que demonstrem tal inviabilidade, seja por critérios relacionados ao patrimô-nio arqueológico em si ou pela relação deste com grupos sociais atuais, seus relatórios, por terem seus direitos autorais cedidos, passam pelos filtros das empresas e consór-cios contratantes e se tornam “neutros”, leia-se, pró-empreendimento. Assim sendo, a ética individual não traz as garantias espera-das que tais observações cruciais, embasa-das cientificamente, sejam consideradas em seu potencial crítico-reflexivo e embargante, apoiado no princípio da precaução (Colom-bo, 2004), pois os relatórios são reconsidera-dos, editados, segundo uma agenda política.

Esta constatação tem um segundo efeito colateral: derruba também outro argumento comumente difundido, de que “se arqueólo-gos que se colocam enquanto éticos não as-sumirem o contrato, outros que não se sabe acerca de seus posicionamentos éticos assu-mirão, tornando piores os resultados e con-sequências”. Portanto, como dito, não se trata mais de ética individual, mas da “ausência de ética em termos de um paradigma” (Kuhn, 1970) que oriente uma comunidade de prati-cantes de uma ciência. Nos perguntamos se o Código de Ética da Sociedade de Arqueo-logia Brasileira (SAB) é suficiente para pre-encher essa lacuna, ou se precisamos ampliar e atualizar a reflexão ética sobre a Arqueolo-gia de Contrato em contextos específicos, dentro e fora “dos tempos do PAC”.

Diante da ausência de um paradigma éti-co basilar emerge um exemplo paradigmáti-co dessas “novas” práticas arqueológicas, no mínimo digno de reflexão. Em abril de 2013, veio a conhecimento público que a empresa

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de arqueologia Documento, a serviço do consórcio de empresas responsável pela obra da Hidrelétrica Teles-Pires, escavou um número desconhecido de urnas funerá-rias reclamadas por indígenas Munduruku relacionadas a um lugar considerado sagra-do por esta etnia, assim como para os indí-genas Kayabi e Apiaka, na Cachoeira Sete Quedas/rio Teles Pires (Associação Indíge-na Pussuru e Conselho Missionário Indige-nista, 2013).

Invocar o caso Munduruku é pertinente pela sua atualidade e implicações. No con-texto de uma série de ataques contra sua in-tegridade física – das quais a mais trágica foi a morte a tiros de Adenilson Kirixi Mundu-ruku (em 07/11/2012) por um delegado da Polícia Federal – e a recente escolta armada para pesquisadores envolvidos nos estudos para licenciamento no rio Tapajós, podemos considerar a intervenção da Documento, que não contou com o consentimento dos Munduruku, como uma investida contra o próprio passado do grupo, contra sua iden-tidade materializada nas urnas, fato que pode comprometer toda a comunidade de arqueólogos em sua relação com os povos indígenas no País.

Existem outros casos como esse, notoria-mente um transcorrido em 2006, que envol-veu a mesma empresa a serviço do consórcio da PCH Paranantinga II, quando foi denun-ciada pelo antropólogo Carlos Fausto por, dentre outros problemas, ter desconsiderado o que diziam lideranças indígenas da região do rio Culuene – de que a obra ameaçava seu patrimônio cultural, pois estava destruindo um local sagrado onde, de acordo com a mi-tologia alto-xinguana, teria ocorrido o pri-meiro Quarup, ritual de homenagem as lide-ranças falecidas (Fausto, 2006).

Tais procedimentos remetem a um tipo de prática arqueológica que há muito tempo é utilizada no continente americano para

justificar o “progresso”. Assim, apresenta-se como um exemplo perfeito da chamada Ar-queologia colonialista definida por Trigger (1986) para a práxis desenvolvida nos EUA no século XIX, quando o estudo organizado de artefatos indígenas emulava o interesse pela pré-história na Europa e que se encai-xava em uma “convicção romântica de que americanos brancos tinham o dever de pre-servar um registro da raça que eles estavam a suplantar no continente norte americano” (1986:192).

Enquanto objetos etnográficos eram exibidos como troféus apropriados de po-vos conquistados, “a exibição de artefatos pré-históricos simbolizava o controle bran-co do solo e territórios onde estes objetos foram retirados” (1986:193). Ações como essas exemplificam outros casos em que não se observa o Código de Ética da SAB no que toca ao

“Reconhecer como legítimos os direitos dos grupos étni-cos investigados à herança cultural de seus antepassa-dos, bem como aos seus restos funerários, e atendê-los em suas reivindicações, uma vez comprovada sua ances-tralidade” (2.2.1) (SAB, 2013)”,

ou mesmo a ignorada Moção sobre a relação entre arqueólogos, patrimônio e comunida-des indígenas, construída no I Seminário Internacional de Gestão do Patrimônio Ar-queológico Pan-Amazônico em 2007 (Gon-zález e Migliacio, 2007).

No citado ponto do Código de Ética fica implícito, ou mesmo explícito uma visão colonialista, pois supõe que somente atra-vés da arqueologia poderia se definir a an-cestralidade de um grupo. Há aqui uma desconsidera particularidade da memoria-lidade e narrativas históricas indígenas que, em sua diversidade, não são necessaria-mente lineares como as da arqueologia.

Semelhante à lógica dos bons arqueólo-gos éticos disputando os contratos contra os antiéticos, entendemos como conformis-

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ta e falaciosa a impotência implícita na lógi-ca de que a obra não vai parar pela argu-mentação arqueológica. Argumento este que não pode servir para legitimar a des-truição de sítios arqueológicos e de lugares sagrados ameríndios, nem para afirmar diante desta suposta impotência que nos colocamos como salvadores de um patri-mônio condenado a perecer inexoravel-mente e que, sem a Arqueologia, absoluta-mente nada restaria. O sentido da história, do passado, de forma nenhuma se encontra num objeto ou no acúmulo de objetos numa  reserva  técnica, mas num contexto situado; contradizer esse princípio é negar fundamentalmente a Arqueologia, e por contexto entendemos um complexo de rela-ções numa paisagem social, num sistema vivo. Portanto, destruir o sítio, o lugar, a paisagem, o ambiente, para resgatar peças não legitima os beneméritos do contrato, porque ele parte de uma premissa falsa, a de que a peça resgatada compensa, ainda que minimamente, a destruição cientificamente questionável de um contexto.

Alguns dos empreendimentos que a Ar-queologia baliza em seus laudos, são muito mais do que causadores de danos ao patri-mônio arqueológico e histórico, eles são a perpetuação de um processo histórico e co-lonialista de sublimar o direito de todos à terra e ao seu modo de vida escolhido. As-sim, quando ao “salvamento” arqueológico se agrega uma escolta armada da Força Na-cional de Segurança, como se testemunha no Tapajós, perde-se o sentido da história e da vida, dá-nos vergonha de nossa profissão. Empunhar uma pacetta entre fuzis aponta-dos a indígenas é neo-colonialismo brutal e brutalizador. É a perpetuação reeditada das práticas expostas no Relatório Figueiredo e, o que é mais aterrorizante, sob a chancela de “Ciência Humana” na maior democracia da América do Sul.

Eco-genocídio simplesmente não é pro-gresso; é extinção, antítese da valorização e promoção do patrimônio arqueológico, so-cioambiental, humano e biosférico. Esses mega-empreendimentos simbolizam a falta de um projeto nacional, perpetuando o pa-pel do Brasil como fornecedor de commodi-ties, matérias primas ou bens industrias pri-mários. A energia produzida nas usinas beneficia lobbies políticos e uma pequena parte da população (Brum, 2011); uma de suas principais funções é fornecer às indús-trias eletrointensivas, alimentando o projeto desenvolvimentista atual. Os beneficiados de fato são outros grandes empreendimen-tos e empreendedores, como as próprias empreiteiras construtoras de mega-obras e financiadoras de campanhas e agendas polí-ticas; a mineração em escala industrial; o agronegócio; e, de maneira geral, as indús-trias multinacionais instaladas no Brasil com incentivo fiscal.

O nó górdio desse processo, é a argu-mentação de que o atual modelo de desen-volvimento energético do Brasil necessita inexoravelmente das mega usinas hidrelé-tricas, projetos estes todos licenciados pela Arqueologia e outras ciências. O argumen-to de que as mega usinas hidrelétricas re-presentam as únicas alternativas energéti-cas em larga escala para o Brasil vem sendo contestado  e questionado de forma con-tundente (Novaes, 2010). Entretanto, mui-tos ainda se convencem pelo discurso da inexorabilidade do processo. São argumen-tos falaciosos. A natureza apresenta pro-cessos inexoráveis – erupções vulcânicas, impactos de meteoro, eventos de mega-niño, por exemplo; assim como hidrelétri-cas e grandes minerações, são capazes de afetar processos ecossistêmicos de forma irremediável. A diferença entre ambos é o fator da escolha: os fenômenos naturais es-tão além de nosso controle, diferente de

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nosso modelo de desenvolvimento. Não se trata de necessidade como condição sine qua non, pois há uma escolha política ex-plícita nisso. O alto custo de matérias-pri-mas e energia “baratas” está sendo exterio-rizado e pago pelas comunidades locais e meio ambiente.

Temos a obrigação de defender a vida e o direito à terra de inúmeras populações, reco-nhecidas ou não pelos critérios postos pelo próprio governo como tradicionais, e alerta-mos o direito (e dever) de sermos éticos. Ín-dios, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, ci-ganos, povo de santo, sertanejos, enfim, as populações tradicionais socioambiental-mente diversas: cabe a nós arqueólogos, como cientistas sociais e humanos, não es-quecermos que é sobre o passado dessas po-pulações que empreendemos esforços de pesquisa.

Entendemos, por prática arqueológica, não somente o bem fazer dessa disciplina que envolve reflexões teóricas e proposições metodológicas adequadas, mas aquilo que a torna uma disciplina ética: sua posição po-lítica clara e aberta em relação a todos os atores sociais que possam estar envolvidos e que reconstroem a si mesmos com base no historicizar e ressignificar suas representa-ções do próprio passado. A Arqueologia não se resume a simples contagem de cacos e elaboração de laudos técnicos. Somos contra uma Arqueologia que intenta unica-mente à liberação de áreas, uma Arqueolo-gia que desconsidera as populações do pre-sente.

Somos a favor do nosso direito enquanto arqueólogos de sermos éticos, e não simples-mente cumpridores de protocolos legais, po-rém ilegítimos, que muitas vezes nos são im-postos como a única forma de ganharmos nosso beijú e caxirí de cada dia. A atuação acrítica da Arqueologia de contrato nas obras do PAC, como exemplo repetido ad

nauseum do conundrum em que nos situa-mos, não é uma inexorabilidade de nossa disciplina, é uma escolha política. Outras ar-queologias eram possíveis antes e continuam sendo, mas devem ser retomadas e postas em prática com urgência. Nosso primeiro com-promisso é com as gentes, não o capital.

AGrADeCImenTOs Agradecemos aos Munduruku e to-

dos os Povos e suas resistências em nome do patrimônio da Vida e tudo que ela abarca. Agradecemos também todos os 112 signatários do presente texto/mani-festo, que constituem professores, pes-quisadores e alunos de graduação e pós--graduação das áreas de arqueologia, antropólogos, história, geografia, direito, sociologia, espeleologia, indigenista, pe-dagogia, membros e funcionários de ONGs e aqueles que mesmo em institui-ções governamentais não se calam pe-rante a injustiça e ilegalidade (vide abai-xo lista de signatários). Também não podemos deixar de agradecer a organi-zação da WAC, onde a primeira versão deste manifesto pode ser lida e circulou entre os participantes, e também à Tania Pacheco e toda equipe do blog do Com-bate ao Racismo Ambiental, primeiro meio que veiculou este manifesto.

1.Adauto Okuyama – graduando em arqueolo-gia – UNIFASF2.Adriana Dias – arqueóloga – UFRGS3.Alenice BaetaDoutora Arqueologia MAE USP4.Alexandre de Lima - – graduando em arqueo-logia – FURG5.Ana Carolina Cunha - International Doctorate Quaternary and Prehistory/Erasmus Mundus, UFMG6.Anaeli Queren Xavier Almeida, arqueólo-ga, UFMG7.André Dal Bosco de Oliveira– graduando em arqueologia – FURG8.Andres Zarankin – arqueólogo- UGMG

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9.Angela Buarque – Museu Nacional/UFRJ10.Ângelo Alves Corrêa - MAE/USP11.Anne Rapp Py-Daniel– arqueóloga UFOPA12.Aparecida Oliveira – Socióloga, Ilhéus-BA13.Artur Henrique Franco Barcelos - Universi-dade Federal do Rio Grande FURG.14.Beatriz Ferreira de Oliveira - – graduanda em arqueologia - FURG15.Beatriz Ramos da Costa -Arqueóloga- Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville16.Beatriz Valladão Thiesen - Bacharelado em Arqueologia, Programa de Pós-Graduação em 17.Geografia, Instituto de Ciências Humanas e da Informação, FURG18.Breno Feijó Alva Zúnica - estudante / Arque-otrop - MAE-USP19.Bruno Ribeiro, graduando em História PUC--MG20.Bruno Sanches Ranzani da Silva - Doutoran-do em História Cultural/Unicamp21.Carlos Eduardo Marques- Doutorando em Antropologia (UNICAMP)22.Carlos Fausto – Antropólogo MN-UFRJ23.Carolina Torres Borges, Mestranda em Ar-queologia, UFPE24.Claide de Paula Moraes – arqueólogo- UFO-PA25.Claudia Plens – arqueóloga- UNIFESP26.Cleiton S. da Silveira – graduando em arque-ologia – FURG27.Cliverson Pessoa (PPGA-UFPA)28.Creise Correa Vieiro – graduanda em arque-ologia – FURG29.Daiane Pereira - Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Arqueologia, Universidade Federal de Sergipe30.Débora Leonel Soares – mestranda – MAE/USP31.Diego Martinez Celis - Mgter. en Patrimonio Cultural y Territorio (PUJ), Bogota,Colombia32.Dimitri Zin Vaucher – graduando em arque-ologia – PUC/GO33.Eberson Martins do Couto– graduando em arqueologia – FURG34.Edison Rodrigues de Souza - Antropólogo - UFBA35.Eduarda Rafaella Rippel – graduanda em ar-queologia – FURG36.Eduardo Bespalez – arqueólogo- MAE/USP37.Elisângela de Morais – arqueóloga – UFMG38.Erendira Oliveira – mestranda –MAE/USP

39.Evelin Luciana Malaquias Nascimento - Ar-queóloga, Mestre pela UFMG.40.Fabiana Belém – arqueóloga – MAE/USP41.Fabiola Andrea Silva – PPArq –MAE (USP)42.Fernando Ozorio de Almeida, Doutor em Ar-queologia (MAE-USP)43.Francisco dos S. Carvalho Junior - Graduan-do em Arqueologia (UFPI)44.Gilmar Barcellos – Espeleólogo e Mestre em Ecologia Humana, Universidade Nova de Lis-boa.45.Glaucia Malerba Sene - Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas (IBPA)46.Glória Kok - Historiadora, Arqueotrop.47.Grasiela Tebaldi Toledo - Doutoranda em Ar-queolgia MAE-USP48.Greciane Neres do Nascimento – Antropólo-ga, UFBA49.Guilherme Macedo – graduando em arqueo-logia - FURG50.Gustavo Jardel Coelho – estudante – UFMG51.Gustavo Neves de Souza - Arqueólogo (Pes-quisador Colaborador do MNHJB-UFMG)52.Henrique de Alcantara e Silva - graduação Antropologia (UFMG) e estagiário do MHNJB--UFMG53.Ícaro Ruis Cabral da costa - Graduação An-tropologia (UFMG)54.Igor Morais Mariano Rodrigues- Arqueólo-go-UFMG55.Ingrend Comaquini - – graduanda em arque-ologia – FURG56.Isabela Cristina Suguimatsu - graduada em Ciências Sociais - Arqueologia (UFPR)57.Jessica Rafaella de Oliveira - graduanda em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela UNIVASF58.João Victor Souza Faria - aluno de graduação em Antropologia (UFMG)59.Johni Cesar - graduação em Antropologia com habilitação em Arqueologia60.Jonas Vaz Leandro Leal, Antropólogo do In-cra-MG61.José Alberione dos Reis – arqueólogo- FURG62.José Cândido Lopes Ferreira - antropólogo - IDSM63.Jouran de Deus Ferreira - Arqueólogo forma-do na UNIVASF64.Juliana de Paula Batista - Advogada (Mov. Te-les Pires Vivo)65.Juliana Pozzo Tatsch, mestranda da Pós-Gra-

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duação em Antropologia/Arqueologia pela UFPel.66.Jullie Anne Kutz Truss – mestranda – PP-GAN – UFMG67.Karla Fredd– graduanda em arqueologia – FURG68.Lennon Oliveira Matos - Graduando em Ar-queologia e Preservação Patrimonial (UNI-VASF)69.Leonardo Napp - graduado em História UFR-GS70.Loredana Ribeiro – arqueóloga – UFPel71.Luciana Barroso Costa França - Antropóloga - PAA/UFOPA72.Luciano Pereira da Silva - arqueólogo/UNE-MAT73.Luisa de Assis Roedel - UFMG74.Luisa Girardi – Antropóloga Iepé75.Luiz Carlos da Silva Junior – Arqueólogo – FUNAI/Juina MT76.Luiz de Lima – graduando em arqueologia – FURG77.Luiza Maria Fonseca Câmpera : bolsista Insti-tuto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá78.Marcelo Garcia da Rocha -UFPEL79.Marcia Lika Hattori – arqueóloga – MAE/USP80.Maria Goreti Witt Constante - Graduanda em Geografia (UNIVILLE)81.Marina da Fonseca Lopes– graduanda em ar-queologia - FURG82.Marina Kahn - indigenista83.Matheus Fuscaldo Ballé– graduando em ar-queologia – FURG84.Mauricio André Silva – educador – MAE/USP85.Meliam Gaspar - estudante MAE/USP86.Michael Joseph Heckenberger - Prof. Dr. Ar-queólogo da Universidade da Florida)87.Milena Acha – MAE/USP88.Natalia Fraga – graduando em arqueologia - FURG89.Orestes Jayme Mega - bacharel em Arqueolo-gia e Preservação Patrimonial pela UNIVASF90.Pedro Henrique de Almeida Batista Damin - mestrando - MAE/USP91.Ricardo Chirinos Portocarrero. Instituto Unay Rvna. Perú.92.Ricardo Reis Vieira – estudante – UFMG93.Robin M. Wright -Professor Titular aposenta-do da UNICAMP

94.Robson Rodrigues - arqueólogo – Fundação Araporã95.Ruben Caixeta de Queiroz- Antropólogo e professor da UFMG96.Rute Ferreira Barbosa - Arqueóloga (Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológico - NEPA/UFAL)97.Sabrina de Assis Andrade - mestranda em Antropologia Social - UFPR 98.Sandra Martins Farias - Antropóloga, douto-randa em Integração na América Latina-USP99.Sarah Kelly Silva Schimidt – Graduanda em Antropologia (UFMG)100.Sergio Murillo Pinto - Doutor em História - UFF101.Sílvia Peixoto, arqueóloga do Museu Nacio-nal/UFRJ102.Silvio Cordeiro – Doutorando MAE-USP103.Suellem Dayane Moraes Esquerdo - gradu-anda de Arqueologia (UFOPA).104.Suellem Dayane Moraes Esquerdo, graduan-da de Arqueologia da UFOPA 105.Tailine Rodrigues Valério da Silva - gradua-ção em arqueologia e conservação de Arte Ru-pestre- UFPI106.Tania Andrade Lima - Museu Nacional / UFRJ107.Tania Pacheco - historiadora108.Telma Monteiro - Pedagoga109.Thalis Daiani Paz Garcia – graduanda em arqueologia - FURG110.Vanessa Linke – USP111.Verônica Pontes Viana -   Arqueóloga IPHAN-CE112.Vinicius Melquíades – Arqueólogo

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142RESEnhA

HISTORIAS DEARQUEOLOGÍA

SUDAMERICANA DE JAVIER NASTRI

E LúCIO MENEZES FERREIRA

(EDITORES).BUENOS AIRES,

FUNDACIÓN DE HISTORIANATURAL FéLIX DE AZARA/

UNIVERSIDAD MIAMÓNIDES, 2010.239 PÁGINAS

Resenhado por Adriana Schmidt Dias1

(Departamento de história/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 26 - N.1: 142-145 - 2013

Vindo a preencher uma lacuna existente nos estudos de história da arqueologia ameri-cana, o livro organizado por Nastri e Mene-zes Ferreira nos oferece uma rica fonte de análise crítica sobre as histórias de estrutura-ção do campo arqueológico em diferentes contextos nacionais da América do Sul. A idéia deste livro surgiu de um simpósio orga-nizado pelos editores em 2007 por ocasião da VI Reunião Internacional de Teoria Arqueoló-gica na América do Sul (TAAS). Dividido em cinco sessões temáticas, cada uma composta por duas contribuições de países diferentes, Histórias de Arqueología também é um convi-te a pensar a memória da prática arqueológi-ca a partir do protagonismo de seus agentes. Ameghino, Lumbreras, Reichel-Dormatoff, Paulo Duarte, são alguns dos personagens destas histórias coligidas por Nastri e Mene-zes Ferreira que nos falam dos contextos po-líticos e ideológicos de produção e uso da arqueologia na América do Sul.

A primeira sessão, intitulada “Arqueolo-gia e Nação”, analisa o papel da prática ar-queológica nos processos de consolidação dos Estados Nacionais Sul Americanos. No Capítulo 1, Lino Meneses Pacheco apresen-ta uma reflexão de como a arqueologia ve-nezuelana de finais do século XIX estrutu-rou-se no marco filosófico positivista como um instrumento “científico” do Estado, re--atualizando o etnocentrismo colonial ao identificar a modernidade com a civiliza-ção européia. No inicio do século XX, a imagem de modernidade é projetada para um novo parceiro econômico e político, os Estados Unidos, e o discurso arqueológico venezuelano passa a atender aos interesses destas novas agendas intelectuais. A mes-ma conjuntura histórica é analisada por Sergio R. Carrizo para o noroeste argentino no Capítulo 2. Observa-se, porém, uma po-sição ativa do Estado argentino em fomen-tar através das pesquisas arqueológicas

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Historias de arqueología sudamericana de Javier nastri e lúcio menezes Ferreira... Resenhado por Adriana Schmidt Dias

nesta região a negação da possessão terri-torial nativa. Este processo identificado em Tucumã é compatível com as políticas ar-gentinas da segunda metade do século XIX de expansão colonial “fronteiras adentro”. A arqueologia, inicialmente praticada por estrangeiros e depois pela academia porte-nha a partir de 1890, tem por objetivo situ-ar o território nativo no passado pré-colo-nial e desta forma gerar novos territórios a serem apropriados pelo Estado Moderno.

A segunda sessão do livro é intitulada “Internacionalismos” e comporta a análise sobre o papel de intelectuais estrangeiros na institucionalização da arqueologia sul americana. No Capítulo 3, Lúcio Menezes Ferreira tem por objeto as relações institu-cionais e científicas de Herman von Ihering com os Museus Argentinos no final do sé-culo XIX, analisando o compromisso polí-tico deste intelectual com o colonialismo interno no Brasil. No Capítulo 4, Javier Nastri avalia os estudos de cronologias cul-turais na arqueologia andina do inicio do século XX, comparando os métodos em-pregados por Max Uhle, no Peru, e por Eric Boman, Juan Ambrosetti e Salvador Debe-nedetti no noroeste argentino. O objetivo do autor ao analisar os “estilos teóricos” empregados é transcender os dados e aces-sar as conjunturas de estruturação do cam-po da arqueologia na América do Sul.

“Crítica do Nacionalismo” é o título da terceira sessão do livro que se debruça so-bre os usos que distintos Estados sul ame-ricanos fizeram da arqueologia para justifi-car as ideologias nacionais no começo do século XX. No Capítulo 5 as lutas de signi-ficado de distintos grupos de interesse na Argentina quanto à figura de Florentino Ameghino são tratadas por Pablo Perazzi. Transformado em herói popular por sua tese quanto à origem pampeana da huma-nidade, Ameghino passa a ser representado

após a sua morte como o herói popular, símbolo de enfrentamento aos poderes es-tabelecidos e à supremacia européia nas ciências. No Capítulo 6 a relação entre ar-queologia e nacionalismo no Peru é o tema de investigação de Henry Tantaleán, to-mando como eixo analítico a figura emble-mática de Luis Guillermo Lumbreras na teoria arqueológica americana. A idéia do autor é oferecer uma critica interna a práti-ca da arqueologia social latinoamericana em sua associação às políticas de Estado, expondo as contradições inerentes desta aliança. Mesmo que o nacionalismo perua-no tenha suas bases nas reivindicações in-dígenas, a arqueologia de Lumbreras trata, em ultima instancia, da produção de dis-cursos de dominação ideológica sobre o passado.

O “Indigenismo” é o tema da quarta ses-são do livro. A origem do conceito do “ín-dio ecológico” na Colômbia é investigada por Carl H. Langebaek Rueda no Capítulo 7. Destaque é dado à produção acadêmica de Gerardo Reichel-Dormatoff, sendo res-gatada sua importância na auto-percepção indígena e na visão dos políticos de esquer-da quanto às populações originárias na-quele país na conjuntura histórica de surgi-mento dos movimentos ambientalista e contra-cultural. Uma situação oposta é representada por Diana L. Mazzanti ao analisar no Capítulo 8 o desenvolvimento da arqueologia pampeana. A autora analisa como a arqueologia argentina tem respon-dido desde o século XIX às práticas estatais voltadas à expropriação, extermínio e es-quecimento do elemento nativo na cons-trução da memória Nacional. Para a autora a renovação teórico-metodológica da ar-queologia pampeana nos anos 1990, no en-tanto, não contribuiu para uma mudança de cenário. A arqueologia histórica nesta região, centrada na colonização européia,

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representa a continuidade de uma tradição invisibilidade do nativo pampeano e de marginalização de seus descendentes.

A título de conclusão da obra, a relação entre “Memória” e Arqueologia é abordada na última sessão. No Capitulo 9 Gustavo M. Rivolta trata a relação entre arqueologia e discursos nativos sobre identidade, me-mória e narrativa, tendo por cenário mais uma vez a região noroeste da Argentina. Estes temas estão entrelaçados no estudo do sítio Los Cardones, realizado em con-junto com os indígenas Amaichas, em Tu-cumã. O sítio arqueológico assume um pa-pel catalisador de memórias e narrativas nativas de resistência e pertencimento ter-ritorial desde o século XVII, até aquele mo-mento esquecidas ou deixadas em segundo plano frente às pressões da sociedade Na-cional. No Capítulo 10, Pedro Paulo Funari e Gladyson José da Silva tratam do resgate da memória de estruturação do campo científico da arqueologia no Brasil na pri-meira metade do século XX através do es-tudo acervos documentais produzidos por Paulo Duarte. Trata-se de uma defesa per-tinente de ações de preservação da memó-ria dos próprios arqueólogos e dos docu-mentos originais gerados pela investigação dos sítios arqueológicos.

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nORMAS EDITORIAIS

OBJETIvOS E PERIODICIDADEA Revista de Arqueologia é um veículo

oficial da Sociedade de Arqueologia Brasi-leira (SAB) e destina-se à publicação de tra-balhos que possam contribuir para o apro-fundamento e a socialização de conhecimentos científicos sobre temas rela-tivos à Arqueologia Brasileira e seus campos interdisciplinares. Ela tem como prioridade a divulgação dos trabalhos nacionais mais expressivos nesta área de conhecimento, bem como de artigos de pesquisadores es-trangeiros considerados relevantes para a disciplina.

A revista está aberta a todos os sócios da SAB e a outros pesquisadores, sejam eles da área de arqueologia ou de áreas afins. Sua periodicidade será semestral, podendo ter tiragem diferenciada.

O calendário de publicação da Revista de Arqueologia, bem como as datas de fecha-mento de cada edição, são definidos pela Comissão Editorial da SAB, composta por três membros eleitos para um mandato de dois anos, sendo apenas um deles o editor da revista.

MODALIDADES DE TRABALhOS ACEITOS PARA PUBLICAçãO

Serão aceitos para publicação trabalhos elaborados em português, espanhol, francês e inglês. No caso específico de artigos origi-nais e artigos de revisão ou atualização, estes somente serão aceitos após serem submeti-dos à apreciação de pelo menos dois reviso-res ou pareceristas. A identificação do pare-cerista é opcional, cabendo a cada um a

opção de assinar ou não seu parecer. Notas, resumos de dissertações de mestrado e de teses de doutorado, resenhas e documentos inéditos serão submetidos à apreciação da Comissão Editorial e do Conselho Editorial da revista. Os trabalhos que forem aceitos para publicação deverão estar de acordo com as especificações que se seguem:

I. Artigos originais que envolvam aborda-gens teórico-metodológicas referentes à Ar-queologia, desde que contenham resultados conclusivos e relevantes do ponto de vista científico, não devendo ultrapassar a exten-são máxima de 8.000 palavras. Excepcio-nalmente poderão ser aceitos trabalhos com uma extensão superior, desde que aprovados pela Comissão Editorial da re-vista.

II. Artigos de revisão ou atualização que cor-respondem a textos preparados a partir de uma análise crítica da literatura existente sobre determinada temática de valor cientí-fico, não devendo ultrapassar 6.500 pala-vras.

III. Resenhas versando sobre obras recente-mente publicadas no país e no exterior, de interesse para a Arqueologia, com no máxi-mo 2.000 palavras.

IV. Resumos de dissertações de mestrado e de teses de doutorado defendidas nos últimos dois anos sobre temática arqueológica ou sobre assunto de interesse à arqueologia, de-vendo ter entre 500 e 2.000 palavras.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Vo lume 26 - N .1 : 146-148 - 2013

V. Notas que consistem em textos curtos, nas quais são apresentados os resultados preli-minares de pesquisas em andamento ou co-mentários e críticas à artigos e resenhas pu-blicados na Revista de Arqueologia, devendo ter, entre 1.000 e, no máximo, 2.000 pala-vras.

VI. Documentos inéditos transcritos ou re-produzidos, de interesse para a história da Arqueologia Brasileira, desde que aceitos pela Comissão Editorial e pelo Conselho Editorial.

INSTRUçõES AOS AUTORESI. Os trabalhos deverão ser acompanhados, obrigatoriamente, de resumo em português (que não exceda 120 palavras) e resumo em inglês fiel ao resumo em português, e igual-mente de três palavras-chaves para indexa-ção da revista.

II. Ao título do trabalho seguir-se-á(ão) o(s) nome(s) do(s) autor(es). No rodapé serão mencionados a(s) instituição(ões) em que o artigo foi elaborado, endereço completo para correspondência e, sendo necessário, a indicação da(s) instituição(ões) da(s) qual(is) foram obtidos os auxílios relativos à produção do trabalho.

III. Os trabalhos deverão ser elaborados se-guindo estritamente a seguinte ordem: Títu-lo, autor(es), resumo, palavras-chave, abs-tract, key-words, informações sobre o(s) autor(es) em nota de rodapé; Texto; Agrade-cimentos; Referências bibliográficas.

IV. Os originais devem ser encaminhados anexados a mensagens eletrônicas para [email protected]. O texto deve ser digitado através de editor compatí-

vel com Word for Windows em folha A4, espaço 1,5, margens direita e esquerda com 2 cm, topo e base com 2,5 cm, margem di-reita não justificada, fonte Arial, tamanho 11, com páginas numeradas sequencial-mente.As obras citadas deverão ser referenciadas no próprio corpo do texto, indicando-se: sobrenome do autor, data da publicação, página citada. Exemplos: (Clark, 1975), (Lévi-Strauss, 1982:47), (Renfrew & Bahn, 1998); Willey & Philipps (Willey & Phili-pps, 1958:95), Plog et al. (Plog et al., 1976), Binford (Binford 1967, 1978, 1983). Notas de rodapé (numeradas sequencialmente) deverão ser utilizadas exclusivamente como notas explicativas. As referências bibliográ-ficas completas das obras citadas deverão vir em uma lista ao final do trabalho.

VI. As referências bibliográficas deverão se-guir as seguintes normas:

Livros:MEGGERS, B. J. 1979 América Pré-histórica. Trad. de E. T. de Carvalho. 2ª ed. Rio de Ja-neiro, Paz e Terra. 185pp.Artigos ou capítulos em livros:PROUS, A. 1999 Arqueologia, Pré-história e História. In: TENÓRIO, M. C. (Org.), Pré--história da Terra Brasilis. Rio de Janeiro, EdUFRJ, pp.19-32.Mais de uma citação do mesmo autor:MARTIN, G. 1998 O povoamento pré-his-tórico do vale do São Francisco (Brasil). Clio, Série Arqueológica, Recife, 13:9-41.MARTIN, G. 1997 Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife, Ed. Univ.UFPE.Artigos de revistas(com um, dois ou mais autores):MARTIN, G. 1998 O povoamento pré-his-tórico do vale do São Francisco (Brasil).

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Clio, Série Arqueológica, Recife, 13:9-41.NEME, S. & BELTRÃO, M. 1993. Tupinam-bá, franceses e portugueses no Rio de Janei-ro durante o século XVI. Revista de Arqueo-logia, São Paulo, 7:133-151.Dissertações e teses:WUST, I. 1990. Continuidade e mudança: para uma interpretação dos grupos pré-colo-niais na bacia do rio Vermelho, Mato Grosso. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. 210pp.

VII. A revisão gramatical deve ser previa-mente providenciada pelo(s) autor(es).

VIII. As ilustrações (que não excedam a 6), tabelas, gráficos e demais figuras com res-pectivas legendas deverão ser numeradas sequencialmente e apresentadas, quando for o caso, com os devidos créditos autorais, en-viadas separadamente, com a indicação no texto do lugar onde devem ser inseridas. To-das as imagens deverão ser apresentadas em arquivos digitais individualizados, em for-mato jpg ou tif, em preto e branco com reso-lução igual ou superior a 300 dpi.

IX. Textos encaminhados fora das normas acima definidas serão retornados aos auto-res antes de serem encaminhados aos pare-ceristas.

X. O(s) autor(es) será(ão) informados sobre a avaliação do texto que encaminhou(ram) para publicação no prazo máximo de 3 (três) meses, contados após o envio dos artigos de acordo com as normas estabelecidas neste documento.

XI. São de responsabilidade do(s) autor(es): o conteúdo científico do trabalho, a tradu-ção do título do trabalho para o inglês, o abstract e keywords.

XII. Cada autor(a) poderá publicar até um trabalho individual em cada número da re-vista e mais um outro em co-autoria, desde que não seja o autor principal.

XIII. Os trabalhos aprovados serão encami-nhados em PDF para revisão final dos auto-res, que devem devolvê-lo no prazo máximo de dez dias a partir da data do recebimento. O Editor deve ser informado por escrito so-bre possíveis alterações ou sobre a aprova-ção final de cada trabalho. Nessa etapa não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem em alterações no número de páginas. Caso o autor não responda no prazo, o trabalho será publica-do conforme a última versão autorizada.

XIV. Após aprovado, o trabalho será publi-cado por ordem de chegada. O Editor res-ponsável também pode determinar o mo-mento mais oportuno.

XV. A Revista de Arqueologia não aceita re-sumos expandidos nem textos na forma de relatórios.

XVI. Ao autor principal de cada trabalho publicado serão oferecidos, gratuitamente, até 5 (cinco) exemplares do número corres-pondente da revista.

XVII. Uma vez publicados os trabalhos, a Revista de Arqueologia se reserva todos di-reitos autorais, inclusive os de tradução, per-mitindo, entretanto, sua posterior reprodu-ção como transcrição, desde que com a devida citação da fonte.

XVIII. Os casos não previstos nestas normas serão analisados e decididos pela Comissão Editorial da SAB, ouvido o Conselho Edito-rial da revista.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA

SUMÁRIO

VOlUMe teMÁtIcO

ARtIGOS

ReSenhA

ReVIStA De ARQUeOlOGIA

07 Editorial

10 arquEologia,MEMóriaEHistóriaindígEna:uMaintrodução LucasBuenoeJulianaSallesMachado

16 arquEo-EtnograFiadEtiErradEntro CristóbalGnecco

28 tErritório,lugarEsEMEMóriadosasurinidoXingu FabíolaAndréaSilva 42 CosMo-ontológiCaMBYÁ-guarani:disCutindooEstatuto dE“oBJEtos”E“rECursosnaturais” SergioBaptistadaSilva

56 sEguindooFluXodotEMPo,trilHandooCaMinHodasÁguas: tErritorialidadEguaraninarEgiãodolagoguaíBa AdrianaSchmidtDiaseSérgioBaptistadaSilva

72 História(s)indígEna(s)EaPrÁtiCaarquEológiCaColaBoratiVa JulianaSallesMachado

86 arquEologiaEEtno-HistórianatErraindígEnalaliMa,Miranda/Ms EduardoBespalez

96 tErritóriosEMdisPuta:oPaPEldaPEsquisaEtnoarquEológiCa nosEstudosdEidEntiFiCaçãoEdEliMitaçãodastErrasindígEnas guaraniÑandEVanosudEstEdoEstadodEsãoPaulo RobsonRodrigues

112 CorPo,CoMuniCaçãoEConHECiMEnto:rEFlEXÕEsParaasoCialiZação daHErançaarquEológiCanaaMaZÔnia CristianaBarreto

130 arquEologiaPElasgEntEs:uMManiFEsto.ConstataçÕEsE PosiCionaMEntosCrítiCossoBrEaarquEologiaBrasilEira EMtEMPosdEPaC BrunaCigarandaRocha,CamilaJácome,FranciscoForteStuchi,GuilhermeZ.MongelóeRaoniValle

142 HistoriasdEarquEologíasudaMEriCanadEJaViErnastri ElúCioMEnEZEsFErrEira (EditorEs).BuEnosairEs,FundaCióndEHistorianaturalFéliXdEaZara uniVErsidadMiaMónidEs,2010.239PÁginas ResenhadoporAdrianaSchmidtDias

146 norMasEditoriais

Fotosdacapa:FranciscoStuchi