revista brasileira de ciências policiais

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS POLICIAIS VOL. 1, N. 2, JUL-DEZ/2010 ISSN 2178-0013 Publicação da Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública Academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

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REVISTA BRASILEIRA DECIÊNCIAS POLICIAIS

VOL. 1, N. 2, JUL-DEZ/2010

ISSN 2178-0013

Publicação da Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública Academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 1, n. 2, p. 1 - 159, jul./dez. 2010.ISSN 2178-0013

Copyright © 2010 - ANP

Editor ResponsávelCélio Jacinto dos Santos

Comissão EditorialCélio Jacinto dos Santos (Presidente); Adriano Mendes Barbosa; Eliomar da Silva Pereira; Emerson

Silva Barbosa; Gilson Matilde Diana; Guilherme Henrique Braga de Miranda

Conselho EditorialAlexandre Bernardino (UnB - Brasil); Aili Malm (California State University - EUA); Carlos Roberto

Bacila (UFPR e DPF - Brasil); Denilson Feitoza (MPMG - Brasil); Elenice de Souza (Rutgers University - EUA); Guilherme Cunha Werner (DPF - Brasil); Jairo Enrique Suárez Alvarez

(CEPEP - Colômbia); José Pedro Zaccariotto (PCSP - Brasil); Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC - Brasil); Manuel Monteiro Guedes Valente (ISCPSI e UAL - Portugal); Michael Towsley (Griffith

University - Autrália); Patrício Tudela Poblete (ASEPIC e Universidade do Chile - Chile); Paulo Rangel (TJRJ e UERJ - Brasil), Spencer Chainey (UCL - Inglaterra).

Ministério da JustiçaMinistro: Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto

Departamento de Polícia FederalDiretor-Geral: Luiz Fernando Corrêa

Diretoria de Gestão de PessoalDiretor: Joaquim Cláudio Figueiredo Mesquita

Academia Nacional de PolíciaDiretor: Disney Rosseti

Coordenação de Altos Estudos de Segurança PúblicaCoordenador: Célio Jacinto dos Santos

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Revista Brasileira de Ciências Policiais, v. 1, n. 2, jul/dez 2010.

ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências PoliciaisPublicação semestral de doutrina em assuntos policiais, visando a difundir a produção acadêmica dos cursos de pós-graduação da Academia Nacional de Polícia (ANP), a cargo da Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública (CAESP), bem como do programa de pesquisa e outras produções congêneres de origem nacional e estrangeira.

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservadosNos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Correspondência EditorialRevista Brasileira de Ciência Policial

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2 - Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DFCEP - 71559-900 - Brasília-DF

E-mail: [email protected]

Publicação SemestralTiragem: 1.000 exemplares

Projeto Gráfico e Capa: Eliomar da Silva Pereira, Gilson Matilde Diana e Gleydiston RochaEditoração: Gilson Maltilde Diana e Guilherme Henrique Braga de Miranda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Revista Brasileira de Ciências Policiais / Academia Nacional de Polícia. – v. 1, n. 2 (jul./dez. 2010 - ) – Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2010. 159p. ISSN 2178-0013 Semestral1. Ciência policial – Periódico. 2. Investigação criminal. 3. Investigação policial. Polícia Federal. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.741

R 454

Artigos para análise e publicação: Normas ABNT (NBR 6022:2002)

���Copyright © 2010 - ANP

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SumárioArtigos

Devido Processo Legal e Investigação Criminal ..........................................................................11Due Process of Law and Criminal InvestigationDebido Proceso y Investigación Criminal

Daniel Fábio Fantini

A Dicotomia Sistêmica da Liberdade Provisória Mediante Fiança no Brasil e o Papel da Autori-dade Policial na Defesa do Direito Fundamental à Liberdade ..................................................41

The Systemic Dichotomy of Release on Own Recognizance by Bail in Brazil and the Role of the Police Authority in Defence of Fundamental Right to Freedom

La Dicotomía Sistémica de la Libertad Provisional a través de Depósito en Brasil y el Papel de la Autoridad de Policía de la Defensa del Derecho Fundamental a la Libertad

Sérgio Eduardo Busato

Actividade Policial como Ciência ...............................................................................................73Police Activity as ScienceActividad Policial como Ciencia

Germano Marques da Silva

Ciência Policial: Contributos Reflexivos Epistémicos ..................................................................79Police Science: Reflexive Epistemic ContributionsPolícia de la Ciencia: Contribuciones de reflexión epistemológica

Manuel Monteiro Guedes Valente

Reflexiones ...................................................................................................................................87ReflectionsReflexões

Miguel Antonio Gómez Padilla

A Actividade Policial como Ciência ......................................................................................... 105The Police Activity as ScienceLa Actividad Policial como Ciencia

Paulo Valente Gomes

Pensamento Complexo e Transdisciplinaridade Aplicados à Ciência Policial ......................... 127Complex Thinking and Transdisciplinarity Applied to Police SciencePensamiento Complejo y Transdisciplinariedad Aplicada a la Policía de la Ciencia

Welder Oliveira de Almeida

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Editorial

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A Academia Nacional de Polícia apresenta à comunidade policial e aos pesquisadores o segundo número da Revista Brasileira de Ciências Poli-ciais. Com este número, continuamos dando ênfase ao temário das ciências policiais, trazendo a lume artigos que versam sobre as atividades concernentes a este mister. Os artigos aqui publicados são provenientes, principalmente, de um evento ocorrido em Brasília no mês de julho de 2010, nomeado I Semi-nário Internacional sobre Ciências Policiais e Políticas Criminais. Neste evento foram discutidos vários temários, tais como Atividade Policial como Ciência, O Aporte de outras Ciências as Ciências Policiais, O papel da Polícia no Estado Democrático de Direito, Os desafios e perspectivas da Investigação Criminal no Brasil, A crise na legitimidade do Sistema Penal e atuação da Polícia e A Po-lítica Criminal no Estado Direito do século XXI. Estiveram reunidos vários pesquisadores do Brasil e de outros países, mais destacadamente Portugal, Espanha, Colômbia, bem como diversos juristas e pesquisadores brasileiros.

Os artigos foram organizados de forma a conduzir a sua leitura a partir da atividade de investigação criminal, perpassando por reflexões sobre atividade policial como ciência e por fim finalizando com a questão da trans-disciplinaridade e ciência policial.

No artigo de abertura, Daniel Fabio Fantini trabalha com o tema Devido Processo Legal e Investigação Criminal argumentando que a cláusula do due process of law constitui baluarte de justiça, voltado à proteção dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, mormente a vida, a liberdade e a propriedade, contra toda e qualquer ação indevida do Estado. Na primeira parte do artigo apresenta-nos duas dimensões do devido processo legal, uma procedimental e outra substantiva. Na segunda parte trata da investigação criminal, em seu aspecto do conteúdo e da forma da investigação. Na terceira parte faz uma relação entre o devido processo legal e a investigação criminal. E conclui que o devido processo legal evoluiu, e pode ser invocado sempre que o Estado cometer excessos.

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No segundo artigo, Sérgio Eduardo Busato nos traz o tema A Dicoto-mia Sistêmica da Liberdade Provisória Mediante Fiança no Brasil e o Papel da Autoridade Policial na Defesa do Direito Fundamental à Liberdade. Faz um apanhado histórico sobre a liberdade provisória e a fiança no Brasil desde o período colonial, passando pelo período Imperial, pelo período republicano até dias atuais. Após este apanhado, detém em analisar o paradoxo normativo erigido a partir da reforma de 1977 e suas consequências no sistema proces-sual penal, bem como as possíveis superações relacionadas a preconceitos de atuação da autoridade policial na defesa dos direitos e garantias fundamen-tais do indivíduo. O autor faz uma ampla e atual referência bibliográfica refe-rente ao assunto, o que o deixa o artigo mais interessante e consistente.

No terceiro artigo, Actividade Policial como Ciência, decorre de uma palestra de Germano Marques da Silva apresentada no II Congresso de Car-reiras Jurídicas de Estado. Relata a experiência da construção do currículo da Escola Superior de Polícia de Portugal, acentua que não tem dúvidas de que o direito é componente essencial da atividade policial, mas levanta a dúvida se a atividade policial é uma ciência, pois para ele é ainda cedo para se falar da autonomia das ciências policiais.

No quarto artigo, Manuel Monteiro Guedes Valente trata da Ciência Policial: contributos reflexivos epistémicos, apresentando uma argumentação no sentido de que a ciência policial deva emergir de um pensar epistêmico e de modo a promover um conhecimento racional, mas não subordinado ao primado da legalidade absoluta. Salienta que a ciência policial é interdisci-plinar deve se centrar na atividade da polícia, melhorando os procedimentos desta atividade.

No quinto artigo, denominado Reflexiones, são apresentadas, de fato, reflexões pelo autor. Estas reflexões tratam dos temas da profissionalização policial, cultura policial, o objetivo das escolas de policiais e o currículo. Des-taques para os pontos relacionados a cultura policial e os objetivos da escolas de polícia.

No sexto artigo, Paulo Valente Gomes nos apresenta A Actividade Po-licial como Ciência. Parece fazer um dueto com o autor de Actividade Policial como Ciência, só que agora, dando uma descrição mais definida, ao utilizar o artigo “A” ao enunciar o título. Este trabalho também foi apresentado no II Congresso de Carreiras Jurídicas de Estado. Um artigo muito elucidativo,

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de uma clareza e distinção que deixa o texto agradabilíssimo de ser lido. Re-monta a origem do termo ciência policial, trazendo elementos históricos que nos conduz ao século XVIII. Após esta abordagem histórica, nos apresenta algumas definições do termo “ciência policial”, bem como o objeto e método desta mesma ciência. Por fim, nos conduz ao fim do artigo numa abordagem sobre a formação do policial, e que as disciplinas científicas partícipes desta formação são auxiliares ou afins das ciências policiais.

No sétimo e último artigo, Welder Oliveira de Almeida nos agracia com o tema Pensamento Complexo e Transdisciplinaridade Aplicados à Ciên-cia Policial, que com o arcabouço teórico produzido por Edgar Morin e ou-tros pensadores da atualidade tenta entender a ciência policial como conheci-mento racional e objetivo, passível de compreensão e de refutação, e detentor de rigor epistemológico, aplicado à atividade policial. Welder nos apresen-ta um trabalho de fôlego, bem referenciado e construído, que impressiona pela sua clareza. Traz luz ao conceito de ciência policial, dando uma legítima contribuição ao entendimento de tal termo e de seu uso. Após apresenta o conceito de pensamento complexo para por fim aplicado a ciência policial. Surpreendentemente, aplica o pensamento complexo a uma atividade prática policial, a saber: o interrogatório policial, finalizando o artigo com a sinaliza-ção de que no bojo da ciência policial há de fato complexidade, e muito ainda interdisciplinaridade.

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Devido Processo Legal e Investigação Criminal

Daniel Fábio FantiniDepartamento de Polícia Federal - Brasil

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RESUMO

O presente trabalho discorre sobre a evolução do princípio do devido processo legal, nas suas duas dimensões - procedimental e substantiva, até ser expressamente consagrado na Consti-tuição da República Federativa do Brasil de 1988. Explicita, portanto, que a cláusula do due pro-cess of law constitui baluarte de justiça, voltado à proteção dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, mormente a vida, a liberdade e a propriedade, contra toda e qualquer ação indevida do Estado. Lado outro, trata da investigação criminal enquanto procedimento de elucidação de fatos criminosos, à disposição do Estado, esclarecendo a relação entre a busca pela verdade fática com as imposições obrigatórias do regime jurídico a que está submetida. Assim, considera que o conteúdo da investigação criminal e a sua forma são influenciados por disposições jurídicas, embora a busca pela verdade fática se aproxime das investigações científicas. Destarte, tendo em vista que a investigação criminal pode impor restrições, direta ou indiretamente, à vida, liberdade e propriedade dos indivíduos, justifica-se a aplicação do princípio do devido processo legal aos atos praticados no bojo de procedimento instaurado com o fim de apurar a prática de um delito. Por fim, identifica que os limites jurídicos impostos à investigação criminal se traduzem na efe-tiva aplicação do devido processo legal, seja nos aspectos inerentes ao conteúdo da investigação ou apenas em suas formalidades.

Palavras-chave: Devido Processo Legal. Dimensões do Devido Processo Legal. Investi-gação Criminal. Contéudo e Procedimento. Restrições Legais à Investigação Criminal.

Introdução

Um dos princípios expressamente consagrados na Constituição da República de 1988 como baluarte na contenção e balizamento do uso dos poderes do Estado trata-se da obediência ao “devido processo legal”. Oriunda do direito inglês e norte-americano, a garantia constitucional do devido processo legal impõe restrições ao Estado, evitando as ingerências indevidas

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na vida, liberdade e propriedade dos indivíduos. As restrições não são apenas de cunho procedimental, mas também possuem limitações substantivas, essencialmente de conteúdo.

Como se verá, o devido processo legal não é uma mera garantia proce-dimental relativa ao seguimento de rito processual, mas exige um agir justo do Estado, com espectro muito mais amplo, tanto no que diz respeito à observân-cia de ritos, como também no que tange à obediência a normas de conteúdo.

Da mesma forma, a investigação criminal também possui dois aspec-tos fundamentais, quais sejam: conteúdo e forma, isto é, o saber e a expressão deste saber por um procedimento.

Assim, a investigação criminal se caracteriza pela realização de ator visando a elucidação do fato criminoso, ou seja, uma busca pela verdade, tal como qualquer investigação científica, mas conformada por limitações jurídicas de forma e contéudo. Neste aspecto, denota certa correlação ao princípio do devido processo legal em sua concepção ampla, que também possui duas dimensões: procedimental e substantiva.

Por outro lado, considerando que a investigação criminal pode repercutir sobre a vida, a liberdade ou a propriedade dos indivíduos, sendo um procedimento conduzido pelo Estado, evidentemente que este deverá respeitar o limite do devido processo legal, consubstanciado nos ditames legais que limitam a própria investigação.

Destarte, a investigação criminal deve primar pela busca à verdade por meio de sua forma própria, sem ofender aos direitos e garantias individuais, sejam eles de natureza procedimental ou substantiva.

1 Do Devido Processo Legal

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou expressamente a garantia do devido processo legal:

Art. 5º

(...)

LVI - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

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Conforme SILVEIRA (2001), embora a origem da cláusula due process of law remonte a Magna Carta inglesa de 1215, ela somente foi positivada no direito brasileiro, pela primeira vez, no texto constitucional de 1988.

Cumpre, portanto, a tarefa hercúlea de resumir quase oitocentos anos de evolução história do instituto do devido processo legal para que se tenha a exata magnitude da garantia fundamental inscrita em nossa Constituição.

Como dito alhures, a origem da cláusula due process of law encontra-se na Magna Carta de 1215. Contudo, a expressão due process of law somente foi positivada em 1354, quando o Parlamento inglês editou lei usando esse termo vindo a substituir a expressão law of the land, encontrada na Magna Carta, originalmente no vernáculo latino per legem terrae (CASTRO, 2006). Conforme inúmeras decisões da Suprema Corte norte-americana, as significações são sinônimas e denotam a amplitude do conceito do devido processo legal (Idem, Ibidem).

Em que pese às particularidades que envolvem a evolução do devido processo legal, é certo que a sua existência sempre foi marcada pela necessidade de impor limites à atuação do Estado quando estão em disputa os direitos fundamentais do indivíduo, como a vida, a liberdade e a propriedade.

No direito inglês, o devido processo legal foi incluído nas exigências feitas pelos barões feudais para refrear as intervenções do Rei João Sem-Terra, especialmente a cobrança de elevados tributos e outras imposições tirânicas (SILVEIRA, 2001). Posteriormente, a cláusula foi estendida a todas as pessoas do reino (Idem, Ibidem), uma vez que a Magna Carta “passou a ser reverenciada como fonte de vasto conglomerado de direitos e liberdades antigas, os quais foram considerados como o nascimento do direito do povo inglês” (Idem, Ibidem, p. 17).

Posteriormente, a proteção oferecida pelo princípio do devido processo legal à vida, liberdade e propriedade, valores considerados pelos ingleses como direito natural, foi transposta para as colônias norte-americanas (CASTRO, 2006). Assim, os princípios fundamentais do commom law inglês foram incorporados às colônias norte-americanas como denotam as suas Constituições, e dentre tais prescrições inseriu-se a cláusula due process of law (SILVEIRA, 2001). Mas somente na formação e independência dos

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Estados Unidos da América foram estabelecidas as condições ideais para o pleno desenvolvimento do princípio do devido processo legal, em todos os seus sentidos.

Primeiramente, antes mesmo do término da Guerra da Independência, as colônias editaram constituições prestigiando a cláusula due process of law, sob a expressão law of the land (PEREIRA, 2008), na tentativa de aproximar o seu conteúdo ao sistema jurídico da commom law, bem como firmar a compreensão sobre a existência de direitos fundamentais superiores.

Após a independência das treze colônias, a necessidade premente de constituir um Estado, fez surgir a Constituição norte-americana de 1787. Em-bora incialmente não contivesse uma declaração de direitos fundamentais, dez emendas foram acrescidas em 1791, constituindo o Bill of Rigths, dentre os quais se destaca a Emenda n.º 5, na qual se previu, expressamente, o due process of law:

Amendment V

No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a grand juri, except in cases arising in the land or naval forces, or in the militia, when in actual service in time of war or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.1

A Constituição norte-americana inaugurou, destacamente, um Estado federativo, em que se previu a repartição de poderes entre a União (poder central) e os Estados-membros (poderes periféricos) (SILVEIRA, 2001), bem como a separação dos poderes políticos entre Legislativo, Executivo e um forte e independente poder Judiciário, que poderia anular leis promulgadas pelo poder Legislativo ou atos editados pelo poder Executivo (Idem).

1 Disponível em: http://www.archives.gov/exhibits/charters/bill_of_rights_transcript.html Acesso em: 19 set. 2010. “Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em casos que se apresentem nas forças terrestres e navais, ou na milícia, quando chamadas a serviço ativo em tempo de guerra ou perigo público; ninguém poderá ser acusado duas vezes pelo mesmo crime com risco de perder a vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem o devido processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização. (Tradução nossa)

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Estariam postos, portanto, nos dizeres de PEREIRA (2008, p. 113), os “pilares doutrinário-constitucionais” para o desenvolvimento do devido pro-cesso legal, quais sejam: “(a) constituição formal, rígida e suprema; (b) a efetiva vontade de fazer valer os direitos fundamentais e proteger os indivíduos peran-te o Estado (controle dos poderes instituídos), e (c) a supremacia judicial.

A preocupação, portanto, da nação que emergia, era garantir, definiti-vamente, sua independência e se prevenir contra as possíveis arbitrariedades do novo governo estabelecido em uma federação de estados-membros.

Assim, o direito natural invocado desde a transposição do commom law inglês para as colônias, foi reduzido a um texto escrito, rígido, cuja altera-ção dependia de condições excepcionais, de um rito especial.

No que tange ao controle dos poderes instituídos, a Constituição dos Estados Unidos criou organização estatal fortemente marcada pela idéia da completa separação de poderes, considerando o pensamento iluminista, mormente Montesquieu, de que a concentração de poderes é a origem da opressão dos governantes sobre os governados. Neste contexto, o Poder Judi-ciário deixa de ser mero coadjuvante, para adquirir status e atribuições capa-zes de contrabalançar os demais.

Além disso, o preconceito norte-americano contra o Poder Legisla-tivo, advindo de sua identificação ao Parlamento inglês – símbolo maior da metrópole dominante (CASTRO, 2006), resultou no deslocamento da pro-teção dos direitos e garantias fundamentais inscritos na constituição rígida para o Poder Judiciário.

Por fim, a própria separação de poderes em duas esferas, central e estadu-al, prevista na constituição, exigia um guardião, o mesmo Poder Judiciário, para garantir a existência do próprio Estado, quando presentes os constantes conflitos oriundos desta separação (PEREIRA, 2008), sob pena de, por um lado, desagre-gá-lo; e pelo outro, de sufocar os estados-membros independentes.

A própria Guerra Civil, travada no século seguinte, é exemplo evi-dente do embate entre estas duas esferas de poder (central e estadual), ge-rando outras emendas constitucionais, quando do seu término, com especial destaque à Emenda n.º 14, que estabeleceu a aplicação do devido processo le-gal a qualquer cidadão norte-americano, independentemente das leis estadu-ais existentes, ampliando sua proteção para além da esfera central, obrigando a todos os estados-membros a observarem o seu conteúdo:

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AMENDMENT XIV

Section 1.

All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws.2

Estabelecida, em apertadíssima síntese, a base temporal na qual o de-vido processo legal surgiu e se desenvolveu, cumpre tratar de seu conteúdo, também amoldado por esta evolução histórica, cujos contornos serão trata-dos nas próximas seções deste capítulo, pois cuidam de aclarar os sentidos dados à cláusula due process of law com o passar dos anos.

Considerando, portanto, que o princípio do devido processo legal apresentou conteúdo variável ao longo dos tempos (LUCON, 2001), se perce-be a dificuldade em conceituá-lo, nos dizeres de SILVEIRA, 2001, p. 236:

O princípio do devido processo legal incorpora valores culturais am-plos e profundos sentimentos de justiça sedimentados por séculos na cultura do povo anglo-saxão, inclusive em sua progenie americana. Diante da amplitude do conceito, não pode ser definido e dissecado tecnicamente, mas se manifesta e interpenetra no direito, e é sentido naturalmente pelo homem comum e de bom senso, em virtude da carga de evidência que carrega em si mesmo.

De qualquer forma, Thomas Cooley, (Apud MACIEL, 2009, p. 6-7), tenta nos oferecer uma noção abrangente do princípio:

O termo devido processo legal é usado para explicar e expandir os ter-mos vida, liberdade e propriedade e para proteger a liberdade e a pro-priedade contra legislação opressiva ou não–razoável, para garantir ao indivíduo o direito de fazer de seus pertences o que bem entender, desde que seu uso e ações não sejam lesivos aos outros como um todo.

2 Disponível em: http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution_amendments_11-27.html Acesso em 19 set. 2010. “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas a sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou propriedade sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis” (Tradução nossa)

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Então, trataremos nas próximas seções de suas duas dimensões: pro-cedimental e substantiva, com o intuito de esclarecer o conteúdo do devido processo legal.

1.1 Dimensão Procedimental do Devido Processo Legal

Inicialmente, o princípio do devido processo legal era compreendido apenas como uma garantia de direito processual penal, que asseguraria um rito regular do processo a ser observado pelas cortes judiciárias.

Dentro deste sentido restrito, o devido processo legal fundamentava uma série de garantias expressas e implícitas do sistema processual penal, dentre as quais se destacavam, no Bill of Rights, expressamente, conforme CASTRO (2006, p. 29-30):

a proibição de edição de “bill of attainder” e de Leis retroativas (ex post facto Law), ambas tratadas no art. 1º, Seção 9, item 3, bem como as disposições contidas na 5ª Emenda, como seja, o direito a julgamento por júri (juri trial), a proibição de alguém ser julgado duas vezes pelo mesmo fato (double jeorpardy) e a vedação da auto-incriminação forçada(self incrimination). Ajunte-se, ainda, as garantias ditadas pela 6ª Emenda, a saber, o direito a um julgamento rápido e público (speedy and public trial), por juri imparcial e com competência territorial predeterminada, bem como o direito de ser informado acerca da natureza e causa da acusação ( fair notice), além do direito de defesa e ao contraditório...como de resto o direito à assistência de advogado.

Destaca-se ainda, implicitamente, o direito de estar presente perante o juízo (his day in the Court) e de ser ouvido em audiência judicial (prompt hearings); “o direito de qualquer suspeito de infração criminal ser notificado pela autoridade policial da sua prerrogativa de permanecer calado” (grifos nossos) (CASTRO, 2006, p. 31); e de ser assistido por um advogado, ainda que não tivesse condições financeiras de contratar um.

Enfim, o devido processo legal procedimental propugna o direito do réu de conhecer as acusações que pesavam sobre ele e “de ser ouvido no tempo oportuno e da maneira adequada” (SILVEIRA, 2001, p. 304) perante o juízo imparcial antes que seja formulado um provimento definitivo. O de-vido processo legal exige um processo, nos dizeres de Daniel Webster (Apud

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CASTRO, 2006, p. 32), “which hears before it condemns, which proceeds on inquiry and renders judgment only after trial”.

Assim, a cláusula do procedural due process compreende, em si, as previsões: 1) do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o acusado deve conhecer das imputações que lhe são feitas e tem o direito de contestá-las, inclusive produzindo provas sob a orientação de defesa técnica; 2) da presunção de inocência, incluída a máxima do in dubio pro reo; 3) das condições para a imposição da prisão, mormente a de caráter processual ou cautelar, e por fim; 4) da vedação da utilização de provas obtidas de forma ilícita.

Em linhas resumidas, a aplicação do devido processo procedimental, no âmbito do direito processual penal norte-americano, se estabeleceu nos princípios supracitados e embora tenham a aparência de determinar limites rígidos para atuação do Estado, o seu conteúdo permanece elástico, cujos contornos serão estabelecidos após a análise particular de cada caso, tendo em vista o contexto histórico, social e legal da época.

SILVEIRA (2001) cita o caso Mapp v. Ohio – 1961, em que a Supre-ma Corte dos Estados Unidos da América, sob forte interesse de assegurar os direitos fundamentais, aplicou o princípio da exclusão das provas ilícitas, ampliando o seu sentido, para considerar irregulares as provas encontradas após a realização de busca e apreensão ocorrida sem um mandado judicial e sem uma causa provável – probable cause, mesmo tendo ciência de que elas demonstravam cabalmente o cometimento do crime. Posteriormente, res-tringindo a aplicação da exclusão das provas ilícitas, a Suprema Corte (Cali-fornia v. Ciraolo – 1986) considerou que o sobrevôo a uma residência, sem causa provável ou autorização judicial, por meio do qual se identificou uma plantação de maconha, não ofende ao devido processo legal (Idem, Ibidem). Da mesma forma, admitiu em US v. Leon - 1984 provas colhidas em cumpri-mento regular de mandado de busca e apreensão, mas cujo objeto foi amplia-do pela polícia por boa fé – good faith (Idem, Ibidem).

Vê-se, portanto, que o devido processo legal procedimental não se resume ao direito público subjetivo ao processo regular, mas trata-se, também, de garantia procedimental que pautará as condutas durante todo o desenrolar da disputa em juízo.

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De qualquer forma, as implicações do procedural due process oriundas do direito processual penal repercutiram na esfera cível. Neste aspecto, a adequação entre o ius libertatis e o ius puniendi denotou o caráter público do processo, em que o Estado deve garantir a regularidade no direito de tutela jurisdicional, como forma de respeitar e implementar a própria Justiça.

Considerando tais argumentos, o devido processo legal procedimental passou a garantir, no âmbito do processo civil, o direito à tutela jurisdicional e o princípio da ampla defesa e do contraditório, ainda que a disputa tenha por objeto o interesse exclusivamente privado das partes envolvidas, já que se entendia, nesta ocasião que o desenvolvimento do processo ocorre em uma esfera pública que deve ser levada a efeito pelo próprio Estado.

Decorre daí, portanto; 1) “a inafastabilidade da cognição judicial” (CASTRO, 2006, p. 302), pois o Poder Judiciário não poderá ser excluído da apreciação de qualquer ameaça ou lesão a direito; 2) o contraditório e a ampla defesa; 3) o juízo natural, que determina, de antemão, qual órgão competente para apreciar a lide; 4) o seguimento dos ritos processuais; 5) a restrição do provimento judicial à demanda proposta, e; 6) a fundamentação das decisões.

Por outro lado, além da ampliação da aplicação do devido processo legal ao processo civil, a garantia constitucional também lançou proteção contra as ingerências indevidas contidas em procedimentos administrativos. Neste diapasão, o devido processo legal procedimental procurou conter os abusos especialmente praticados pelas autoridades administrativas quando se utilizam dos poderes de polícia, de disciplina, de regulamentação ou de revisão dos atos administrativos que estão à disposição da Administração Pública para o cumprimento de seus deveres.

Nos moldes da guarida conferida aos âmbitos processuais penais e cíveis, acima mencionadas, a Administração Pública também é obrigada a respeitar a ampla defesa e o contraditório em procedimento administrativo aos cidadãos que tiverem a sua vida, liberdade ou propriedade possivelmente atingidos pela edição de ato que implique em punição administrativa (CASTRO, 2006). Da mesma forma observada na proteção conferida penal e civilmente, os atos deverão ser motivados e fundamentados, e o rito previsto deverá ser cumprido, conforme preconizado em lei.

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Contudo, as restrições impostas ao Estado pelo devido processo legal não se resumiram à justeza do procedimento penal, cível ou administrativo. Durante a sua evolução histórica, o sentido do due process of law foi estendido para verificar, inclusive, a adequação do conteúdo dos atos do poder público, inclusive da própria lei, com o sistema jurídico. Esta dimensão substantiva do devido processo legal será tratada na próxima seção.

1.2 Dimensão Substantiva do Devido Processo Legal

A dimensão substantiva do devido processo legal não trilhou a mesma linha de evolução da dimensão procedimental do princípio, nem mesmo onde foi desenvolvida e aplicada.

A idéia surgiu ainda na Inglaterra por conta das manifestações do juiz Sir Edward Coke, que “sustentava a existência de uma força de contenção substantiva na histórica cláusula de garantia dos direitos individuais” (PE-REIRA, 2008, p. 144) para impedir que atos do poder público, mormente as leis, avançassem sobre a propriedade, liberdade e a vida dos cidadãos, sem um motivo plausível. Contudo, as idéias de Coke, consistentes na nulidade das leis que atentassem contra a razão ou contra o direito comum vão evoluir nos Estados Unidos da América, especialmente em função da judicial review, implantada pela contribuição do Justice John Marshall no famoso caso Mar-bury v. Madison - 1803 que instituiu o controle de constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário (SILVEIRA, 2001).

Neste país, a dimensão substantiva do devido processo legal foi invoca-da inicialmente para resguardar o direito de propriedade. O caso, infelizmen-te, marcou negativamente a Suprema Corte, posto que serviu para manter a propriedade em detrimento da abolição da escravatura em alguns estados do sul do país, conforme se depreende do terrivelmente famoso case Dred Scott v. Sandfor – 1857. Assim, com base no substantive due process, a Suprema Corte considerou arbitrária uma lei que abolira a escravidão editada por um estado-membro, porque ela interferia no direito de propriedade de possuir um escravo (SILVEIRA, 2001). As conseqüências de tal decisão, “catapultou – ou mais suavemente, colaborou para – o ingresso do país na guerra civil” (Idem, Ibidem, p. 419). Alguns anos depois, a teoria foi resgatada do péssimo episódio e, se-gundo o Justice John Harlan, (apud MACIEL, 2009, p. 10), a força substantiva do princípio do devido processo legal tornou a ser necessária para a proteção da vida, liberdade e propriedade contra leis arbitrárias:

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Assim, as garantias do devido processo, embora tendo suas raízes no per legem terrae da Magna Carta e considerada como salvaguar-das processuais contra a usurpação e tirania do executivo, também se transformaram neste país numa (verdadeira) barreira contra a legislação arbitrária.

A doutrina do devido processo substantivo ampliou a força do Poder Judiciário, pois além do judicial review, por meio do qual os juízes já faziam uma análise de adequação de leis e atos administrativos com os demais princí-pios e normas constitucionais, agora também poderiam se imiscuir no mérito destas leis e atos, tal como um poder político, para dizer se, substancialmen-te, eles apresentavam pressupostos de “justiça, necessidade e razoabilidade” (SILVEIRA, 2001, p. 422) para regrar a vida, a liberdade ou a propriedade dos cidadãos.

Como dito, o devido processo substantivo se preocupou, principalmente, contra a intervenção arbitrária no direito de propriedade, sendo que nos diversos julgados em que foi invocado ou rechaçado, foram privilegiadas as idéias de liberdade contratual ou de intervenção governamental, conforme o contexto histórico, social e econômico. Mas aos poucos, também avançou para garantir a vida e a liberdade.

Assim, em Lochner v. New York – 1905 (Idem, Ibidem), a decisão da Suprema Corte prestigiou a liberdade contratual, em detrimento da “legislação regulamentar intervencionista” (PEREIRA, 2008, p. 140), considerada arbi-trária, sinônimo de “ação não razoável” (SILVEIRA, 2001, p. 428).

Posteriormente, em virtude da crise econômica de 1929 e da neces-sária intervenção estatal na economia, a Suprema Corte norte-americana decidiu rever o precedente Lochner, criando a utilização de dois padrões de escrutínio, também chamado “duplo-padrão” (PEREIRA, 2008, p. 141) na análise da conformidade da lei. Esta fórmula propugnava que se a lei regula-mentasse aspectos da área econômica, ela deveria ser analisada sob o crité-rio da razoabilidade, considerando, portanto, as decisões legislativas que a promulgaram. Noutro giro, se a lei afrontasse direitos e liberdades civis era “presumidamente considerada suspeita” (SILVEIRA, 2001, p. 440).

Este arrefecimento da dimensão substantiva do devido processo le-gal propiciou novas incursões indevidas na esfera dos direitos fundamentais, como se verificou no case Korematsu v. United States - 1944, (Idem, Ibidem)

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no qual um americano foi condenado por se recusar a obedecer à determina-ção de seguir para um campo de concentração durante o período da 2ª Guerra pelo simples fato de ter ascendência japonesa. No caso, apesar da condenação ter sido mantida, o voto do Justice Black acrescentou mais um elemento na evolução da dimensão substantiva do devido processo legal, ao afirmar que as leis elaboradas para restringir direitos civis baseadas em critérios de raça devem se sujeitar “ao mais rígido escrutínio” (Idem, Ibidem, p. 463) pelo Poder Judi-ciário. Assim, além de suspeita, a lei que se propor a regulamentar ou restringir os direitos fundamentais de determinados grupos de pessoas deverá ser objeto de escrutínio estrito, de análise acurada pelo Poder Judiciário, de forma que o Estado deverá comprovar, imperiosamente, a necessidade de tais medidas. Assim, no período pós-II Guerra, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, a efetiva defesa dos direitos fundamentais pelo substantivo processo legal ga-nhou força novamente, como demonstra a decisão tomada pela Suprema Cor-te em Brown v. Board os Education of Topeka – Kansas – 1954 (Idem, Ibidem), julgando atentatória a legislação estadual que segregava negros e brancos. No caso, embora o fundamento fosse a igualdade de tratamento, considerou-se que a legislação estadual segregadora não suportou o escrutínio estrito, posto que o Estado não comprovou a imperiosidade de manter o segregamento.

Ainda nos dias atuais, o devido processo substantivo está sendo aplicado para ampliar o sentido dos termos liberdade e vida, de forma a integrar e regulamentar as legislações que versam sobre privacidade, aborto, homossexualismo, eutanásia. No caso, a cláusula está protegendo direitos implícitos. Assim, a Suprema Corte utiliza os padrões de escrutínio, sob a orientação do devido processo substantivo, para analisar se as leis editadas interferem de forma irrazoável ou proibida sobre a esfera de direitos fundamentais da pessoa humana, mormente a liberdade e a vida. Cite-se, por exemplo, casos em que leis estaduais foram invalidadas porque proibiam “a distribuição de anticonceptivos a solteiros”3 (PEREIRA, 2008, p. 220) ou criminalizavam o homossexualismo4 (PEREIRA, 2008).

1.3 Considerações finais do capítulo

A evolução da clausula due process of law, em suas duas dimensões, prestou relevantes serviços para promover a atualização e a transformação

3 Cf. Eisenstadt v. Baird, 405 U.S. 438 (1972)

4 Cf. Lawrence v. Texas, 539 U.S. (2003)

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do direito constitucional norte-americano, proporcionando as mais diversas leituras de um texto que perdura para além dos seus duzentos anos, se tornando, verdadeiramente, num importante instrumento de limitação dos poderes do Estado, com significado muito maior do que uma simples garantia processual.

Cumpre transcrever as palavras de José Alfredo Baracho (1982, p. 90):

As expressões ‘law of the land’ e ‘due process of law’ examinadas conjun-tamente, na Inglaterra e nos Estados Unidos, deram origem à construção jurisprudencial, com o objetivo de proteção aos direitos do indivíduo, em especial em matéria de garantias processuais. Com o tempo, a cláusula do due process of law passou a ter maior relevo, alargando-se no âmbi-to da doutrina. De uma garantia, em face do juízo, passa a assegurar igualdade de tratamento frente a qualquer autoridade. Esta ampliação de sentido propiciou a limitação constitucional dos poderes do Estado: ‘O instrumento está criado’. Como escreve Pound, o ‘due process of law’ é um ‘standard’, pelo qual se guiam os tribunais, e, assim sendo, deve aplicar-se tendo em vista circunstâncias especiais de tempo e de opinião pública em relação ao lugar em que o ato tem eficácia.

Embora o princípio esteja expressamente consagrado no direito pá-trio há pouco tempo e não carregue toda força histórica da evolução concei-tual tratada acima, sua importância é indiscutível, nos dizeres do Ministro Adhemar Maciel (2009, p. 1): “é rara uma sessão do STJ em que não se fale no ‘devido processo legal’. Isso, por si só, já denuncia sua importância.”

De qualquer modo, a sua positivação no texto constitucional pátrio o torna norma de eficácia jurídica absoluta, embora a evolução de sua aplicação dependa da própria sedimentação do Estado Democrático de Direito (DAURA, 2009).

No último capítulo deste artigo, se pretende ampliar os horizontes teóricos da força limitadora do devido processo legal para a investigação criminal. Mas, antes, incumbe tratar da investigação criminal.

2 Da Investigação Criminal

Inicialmente cumpre partir de um conceito de investigação criminal. Tal conceito, com pequenas variações, é quase unanimemente repetido pelos estudiosos, como abaixo transcrito:

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A investigação criminal é processo de procura de indícios e vestígios que indiquem e expliquem e que façam compreender quem, como, quando, onde e porquê foi cometido o crime X. (VALENTE, 2009, p. 309).

Destarte, percebida a ocorrência de um fato supostamente tipificado como crime, é executada uma série de atos, dentro de um método legal, visando a sua possível reconstrução.

Note-se que deste conceito usualmente difundido, podemos dissecar a investigação criminal em duas realidades indissociáveis: uma fática; e outra relativa aos conceitos jurídicos que definem o que é crime, as suas circunstâncias e conseqüências, bem como ao processo que estabelece o método de desenvolvimento da investigação, todos estes relacionados à ciência do direito.

Contudo, se todos os elementos acima citados integram o conteúdo da investigação criminal, confluindo para elaboração de uma “verdade pro-cessual”, conforme expôs FERRAJOLI (2006, p. 36, ss), por certo que existe também “um método legal de demonstração obrigatório” (PEREIRA, 2010, p. 218), uma formalização ou instrumento que exprima o conhecimento atingido e que possibilite a verificação do conhecimento elaborado (Idem, Ibidem).

2.1 Do conteúdo da investigação criminal

O conteúdo da investigação criminal congrega, portanto, uma pesquisa científica do fato, orientada por conceitos jurídicos que servem de parâmetro para o direcionamento, aprofundamento e limite metodológico desta pesquisa.

Trata-se, realmente, de uma pesquisa judiciária da verdade (FOUCAULT, 2001). A necessidade de conciliar a verdade fática com as verdades jurídicas, de forma harmoniosa, resume a enorme dificuldade de compreensão e da evolução da investigação criminal, quiçá do próprio direito penal e processual penal.

Segundo FERRAJOLI (2006, p. 36), “Se uma justiça penal integral-mente “com verdade” constitui uma utopia, uma justiça penal completamente “sem verdade” equivale a sistema de arbitrariedade”.

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Na história ocidental, se registrou algumas formas jurídicas de apontar certa “verdade”, valendo-se de critérios diversos dos utilizados atualmente, tais como: 1) a prova da importância social de um indivíduo - nada dizia a respeito do fato, mas era suficiente para influenciar a responsabilização deste indivíduo conforme a sua posição social; 2) as provas verbais, consistentes na repetição de dizeres ou fórmulas que podiam decidir o processo conforme a sua adequação à forma considerada correta; 3) as provas mágico-religiosas do juramento, nas quais o acusado deveria prestar juramento, sem hesitação ou recusa, perante um ser supremo, sobre a sua inocência; 4) as provas corporais, físicas, chamadas or-dálios, nas quais o acusado se submetia a uma espécie de provação corporal para se garantir vencedor do processo, como por exemplo, se lograsse andar sobre brasas sem demonstrar cicatrizes, vencia o processo (FOUCAULT, 2001).

Nas hipóteses citadas, denota-se que os critérios utilizados se ba-seavam, quase exclusivamente, em regras jurídicas, abstraídos de qualquer empirismo fático. A rigor, não se tratava da análise do fato, conforme a sua realidade, mas apenas de uma ritualística jurídica.

Séculos de evolução histórica e do próprio direito, se conquistou, pri-meiramente, conforme Foucault (2001), uma forma racional da prova e sua demonstração, que implicam em um modo de produção da verdade.

Neste contexto, o estabelecimento de uma verdade fática tornou-se base fundamental para qualquer decisão jurídica de cunho penal.

E incumbirá à investigação criminal a reconstrução do fato, da mesma forma observada em outras espécies de investigações científicas, posto que se utilizam de padrões de averiguação semelhantes (DUTRA, 2010).

A aproximação da investigação criminal com a investigação científi-ca, conforme Pereira (2010), no que tange à definição da verdade fática, tam-bém pode ser percebida pela possibilidade de transposição de conceitos típi-cos do discurso científico para o conteúdo da investigação criminal, como, por exemplo, o estabelecimento do problema (um corpo encontrado morto, abandonado em local ermo), das hipóteses (alguém, utilizando-se de uma arma de fogo, matou e escondeu o cadáver) e das bases de dados (hábitos da vítima, cultura local, histórico de violência, causa da morte, etc.). Resguarda-se, evidentemente, as suas particularidades fundamentais, mormente o obje-to (crime) e o método, ambos fornecidos pela ciência do Direito.

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Embora alguns autores reduzam o objeto da investigação criminal a um fato (criminoso) histórico, passado (Idem, Ibidem), impossível de ex-perimentação, mas sujeito apenas de comprovação, (FERRAJOLI, 2006) as modernas técnicas de investigação, tais como a interceptação de comunica-ção de voz e dados, a infiltração de agente, a videovigilância, dentre outros, indicam a necessidade de estudo aprofundado sobre o tema, posto que nestes casos, a investigação criminal acontece contemporanemante à ocorrência do crime, de forma concomitante, consistindo, propriamente, no seu registro em tempo real, e não na reconstrução do fato.

Assim, entendido que o objeto da investigação criminal é o fato con-siderado criminoso, cumpre ressaltar que, conforme o princípio da estrita legalidade, somente o direito pode definir quais destes fatos adquirem a adje-tivação de delituoso, do ponto de vista jurídico-penal a merecer as reprimen-das do sistema punitivo legal. Além da definição do fato, as circunstâncias relevantes para a investigação criminal também serão apontadas pela própria lei, como qualificadoras ou formas privilegiadas, condições de agravamento ou atenuantes. De qualquer forma, a adequação do fato à norma, chamado subsunção, também se submete à possibilidade de verificação, mas esta de cunho classificatório (FERRAJOLI, 2006), como por exemplo, o fato X (por exemplo, corpo encontrado morto por causas externas) é um homicídio e não um suicídio, destacando-se:

uma justiça penal não arbitrária deve ser em certa medida “com verdade”, quer dizer, baseada sobre juízos penais predominante-mente cognitivos (de fato) e recognitivos (de direito), sujeitos como tais a verificação empírica (FERRAJOLI, 2006, p. 29).

Ainda no contexto do conteúdo da investigação criminal, resta tratar do método de investigação.

O método da investigação criminal não é estabelecido formalmente pela lei, de modo a impor um rito de cumprimento obrigatório, embora haja previsões expressas e vedações implícitas sobre os limites jurídicos para a produção da prova. Sobre este balizamento, o devido processo legal exerce papel fundamental que será tratado nas próximas seções.

Conforme Pereira (2010, p. 219):

não se trata de um método em sentido positivo, (que se mantém a requerer uma sistematização empírica pelos órgãos de investigação), mas em sentido negativo (limitado juridicamente).

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É neste momento que a investigação criminal se afasta de forma mais intensa dos demais tipos de investigação. Neste particular, a validade das provas coletadas influencia a verdade produzida pela investigação.

Ou seja, as provas colhidas fora dos limites impostos pelo direito, portanto inválidas juridicamente, não podem ser utilizadas para determinar a verdade processual, razão pela qual nem sempre haverá correspondência entre a verdade fática e a verdade processual.

Nos dizeres de Ferrajoli:

não é só a verdade que condiciona a validade, mas é também a validade que condiciona a verdade no processo. Esta é, com efeito, por assim dizer, uma verdade normativa, no tríplice sentido: a) uma vez comprovada definitivamente, tem valor normativo; b) está convalidada por normas; c) é verdade na medida em que seja buscada e conseguida mediante o respeito às normas. (FERRAJOLI, 2006, p. 50)

Enfim, o conteúdo da investigação criminal é composto pela investigação científica do fato criminoso, especialmente a reconstrução histórica do acontecido, tendo por condicionantes às determinações jurídicas que se referem à definição do crime, sua tipificação, suas circunstâncias e conseqüências, valendo-se de um método legal negativo que não estabelece um rito necessário, mas determina limite, ditado pelo devido processo legal, à produção e validade das provas colhidas.

2.2 Da forma da investigação criminal

Evidentemente que o conteúdo da investigação criminal deve ser exteriorizado de alguma forma para que informe o conjunto das ações realizadas e os resultados obtidos, especialmente para que a investigação atinja as suas finalidades, mormente a reconstrução de um fato criminoso sob as orientações do sistema jurídico criminal.

Dentro da concepção de proximidade entre investigação criminal e as investigações científicas, Dutra (2010, p. 144-145) relaciona inúmeras “condições ambientais e objetivas” que seriam comuns a ambas, dentre as quais destaca, referindo-as às investigações científicas:

(a) um dialeto técnico, com vocabulário específico, inclusive contendo termos para espécies (naturais ou sociais);

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(...)(h) meios materiais que comuniquem todos os elementos acima em uma literatura científica própria.

Dutra (Ibidem, p. 146-147) aponta que a investigação policial tam-bém se utiliza de elementos análogos:

(a) um dialeto técnico, com vocabulário específico, que permite descrever nos termos da legislação vigente as formas de comportamento ilegal ou criminoso;

(...)(h) meios formais para comunicar os elementos acima às formas de instrução de processos no sentido amplo, isto é, não apenas a instrução formal de um processo judicial, mas a instrução do próprio processo de investigação que conduzirá àquele(grifos nossos)

No âmbito das investigações criminais, os meios formais para comunicar os elementos obtidos durante a apuração são definidos pelo direito, posto que as investigações criminais estão vinculadas, inexoravelmente, a um processo, seja ao judicial, seja ao seu próprio desenvolvimento, com fim de apontar responsabilidade criminal, caso exista.

Assim, nos dizeres de Valente (2009, p. 317):

A investigação criminal compõe-se de actos juridicamente pré-ordenados que são praticados por grupos de pessoas legal e legitimamente autorizadas, que seguem um modelo padronizado e sistemático, e que irão dizer se existiu ou não um crime, determinar os autores e reunir as provas necessárias a uma decisão(grifos nossos)

No Brasil, por excelência, o instrumento que dá forma à investigação criminal é o inquérito. O modelo de descoberta judiciária da verdade pelo ins-trumento racional do inquérito tem origem na Grécia Antiga (FOUCAULT, 2001), mas foi no Império Romano que o “Inquisitio” se constituiu, segundo Daura (2009, p. 66) como uma “fase persecutória penal de nítido caráter inves-tigatório que, após esclarecidos os fatos segundo os critérios vigente naquela época, passava-se, de pronto, ao processo, cognitio”.

Em nosso país, se atribuiu à Polícia Judiciária, a incumbência de rea-lizar esta “atividade persecutória incial para desvendar a autoria e comprovar a materialidade dos ilícitos penais” (Idem, Ibidem, p. 67). Conforme o Prof. Daura (Idem, Ibidem), incialmente as atribuições de investigação criminal eram realizadas pelos representantes do próprio Poder Judiciário, mas com o passar do tempo, “com o aumento da população e das cidades, e consequente-mente da criminalidade”, tais atividades foram delegadas à Polícia Judiciária.

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Destarte se sedimentou o principal instrumento de formalização da investigação criminal, no caso, o inquérito policial, cujo regramento está pre-visto no Código de Processo Penal, mormente no Título II, cuja nomeclatura lhe faz referência expressa.

Contudo, o inquérito policial não é o único instrumento que expressa o conteúdo da investigação criminal. No caso, o direito pátrio também faz menção ao inquérito policial militar, conforme o Título III do Código de Processo Penal Militar. Os instrumentos formais de investigação criminal acima citados (inquérito policial e inquérito policial militar) estão expressamente previstos em lei, compreendendo, inclusive, a descrição de um rito formal mínimo que versa sobre o início, o desenvolver e o término da investigação.

Contudo, existem outros normativos legais que atribuem expressa-mente a função investigatória a outras autoridades, embora sejam silentes quanto ao procedimento formal a ser aplicado. Citem-se: 1) as Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs, (art. 58, §3º da Constituição da Repú-blica de 1988); 2) as Procuradorias Gerais de Justiça, que deverão apurar o envolvimento de membros do Ministério Público em eventual ilícito penal (Lei n.º 8.625/93 - Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); 3) os Tri-bunais de Justiça, Regionais Federais ou Superiores, que deverão promover a investigação criminal quando houver possível cometimento de ilícito penal por magistrado (Lei Complementar n.º 35/79 – Lei Orgânica da Magistra-tura Nacional).

Há, ainda, outras duas hipóteses, cujas autoridades possuem função investigativa, mas estes poderes foram conferidos por regimento interno, sem previsão constitucional ou legal, quais sejam: 1) o Presidente ou Ministro do Tribunal deverá presidir inquérito ou delegar esta função a outra autoridade quando ocorrer um crime no interior da sede do respectivo Tribunal (art. 43 RISTF; art. 58 RISTJ) e; 2) as polícias do Senado Federal e da Câmara dos Deputados (Resolução nº. 59/2002 do Senado Federal e Resolução nº. 018/2003 da Câmara dos Deputados) também serão responsáveis por apurar ilícitos praticados no interior das casas legislativas. Estas duas hipóteses, como já afirmado, não possuem qualquer sustentação baseada na legalidade, e portanto, plenamente discutível a constitucionalidade de tais resoluções e dispositivos regimentais, uma vez distoantes da determinação contida no artigo 144 da Constituição Federal de 1988;

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Por fim, o Prof. Daura (2009, p. 86) contempla outra autoridade dotada de função investigatória, com previsão expressa no direito positivo, no caso:

aquela desenvolvida pelo procurador do Tribunal Penal Internacio-nal, pois se submetendo o Brasil, em face de sua adesão, à jurisdição de Tribunal Penal Internacional, os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crime de guerra e o crime de agressão (en-tre países) podem ser investigados em nosso território por autoridade estrangeira em sede de inquérito, sendo que tal Tribunal visa à res-ponsabilização de pessoas físicas.

Resumidamente foram descritas as autoridades expressamente auto-rizadas, seja pela lei em sentido lato ou por regulamento, a presidirem uma investigação criminal, ressalvando-se, contudo, a falta de previsão legal sobre o procedimento formal a ser utilizado.

Dos exemplos citados, além dos inquéritos policiais (civil e militar), as Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs – possuem certo regramento dos trabalhos de investigação, previsto em regimento interno, que estabelece, mini-mamente, as hipóteses de instauração, desenvolvimento e conclusão da investiga-ção. Além das CPIs, a Resolução n.º 59/2002 do Senado Federal, que dispõe so-bre o poder de polícia no Senado Federal, e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, também prevêm que serão observados, no inquérito (presidido pelas polícias legislativas), o Código de Processo Penal e os regulamentos policiais do Distrito Federal, no que lhe forem aplicáveis” (art. 4º, § 1º da Resolução 59/2002 e art. 269 do RICD) quando estiverem investigando os ilícitos penais praticados no interior da sede do Poder Legislativo.

Percebe-se, portanto, a escassez procedimental do direito pátrio no que toca à investigação criminal, embora o instrumento formal de apresenta-ção da investigação seja fundamental dentro de uma concepção de processo penal que respeite ao devido processo legal.

No próximo capítulo deste artigo, se pretende tratar da aplicação do devi-do processo legal no que tange ao conteúdo e forma da investigação criminal.

3 O Devido Processo Legal e a Investigação Criminal

Conforme a moderna doutrina constitucionalista, a Constituição deve ser entendida como a pedra fundamental da formação do Estado e da

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conformação de uma sociedade. De onde, por meio de princípios estruturantes, se obtém uma ordem essencial que regula todo o ordenamento jurídico, e dos quais também se inferem restrições e limites ao legislador ordinário e aos demais entes públicos na utilização de seus poderes quando possam atingir direitos e garantias fundamentais do indivíduo (CANOTILHO, 1998). Assim, os princípios e normas constitucionais emanam suas determinações para todos os demais regramentos ordinários, sejam eles materiais ou processuais exigindo a adequadação destes dispostivos, ainda que interpretativa, sob pena de serem excluídos da ordem jurídica.

Considerando a positivação do devido processo legal no texto constitu-cional brasileiro, é patente que o seu conceito e abrangência formam toda ordem jurídica nacional, e sua observância deve ser completa, por todo e qualquer ato praticado pelos entes estatais. Conforme Pereira (2008, p. 75):

A claúsula representa uma diretriz fundamental, um balizamento estrito e inafastável, embora elástico, traçado para pautar qualquer ação ou disposição dos poderes instituídos, na direção do indivíduo – da sua vida, da sua liberdade e do seu patrimônio. Assim, não há ato estatal, de qualquer dos três poderes ou seus agentes, que possa contornar, fugir, evitar, deixar de lado ou ignorar o Due Process – o procedimento que faça Justiça – na sua inteireza: autorização em comando válido, cumprimento estrito do procedimento e concretização de um resultado qualificado como justo.

Como se viu, o princípio do devido processo legal não possui significado restrito ao seguimento de ritos processuais, mas impõe ao Estado um dever de agir de forma justa em todas as suas ações que possam atingir a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos.

Além disso, restou claro que o conceito de vida, liberdade e propriedade ganharam definições mais amplas, passando a proteger a privacidade, a igualdade, dentre outros direitos correlatos ao exercício daqueles inscritos expressamente no princípio. Assim, segundo DAURA (2009, p. 32-33):

é necessário frisar que a garantia da Constituição quando menciona o princípio do devido processo legal não o relaciona somente com as esferas processuais penal ou civil mas com ‘tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade e propriedade, como por exemplo, o di-reito á integridade moral, a liberdade religiosa e de manifestação

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do pensamento’ (NERY JÚNIOR, 1997, p. 36). O due process of law, enquanto princípio, apresenta um sentido mais amplo, que se carateriza pelo trinômio vida-liberdade-propriedade.

Em concomitância à evolução das teorias constitucionalistas, um-bilicamente ligada à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ho-mem, o direito penal seguiu na mesma direção, exigindo que o homem – o ser humano – seja o centro e a razão de existência de todo o sistema punitivo. Decorre daí uma concepção equilibrada do Direito penal, onde se encontra, de um lado: 1) a proteção de bens jurídicos da sociedade, importando na própria manutenção do Estado Democrático de Direito, e de outro: 2) os direitos humanos do próprio delinquente contra os excessos do Estado.

Assim, desde que o Estado tomou para si o monopólio da justiça pe-nal, por meio da qual é o único autorizado a impor consequencias jurídicas que restrinjam os direitos fundamentais dos indivíduos, mormente a liberdade, deve ser compreendido que todo o processo, desde o seu nascedouro, incluindo a investigação criminal, deve se pautar por princípios e normas legais que confi-gurem um agir justo. Nos dizeres de Valente (2010, p. 47):

O direito penal humanista impõe ao Estado (ao soberano) a existência de garantias processuais como a obtenção de provas com respeito pela liberdade plena do cidadão (liberdade de decisão e acção), com respeito à ordem jurídica legitimada por cada pessoa da coletividade. Do mesmo modo impõe ao Estado que não aplique a jujstiça como o indivíduo aplicaria por meio da vingança, que garanta, ao cidadão, a defesa do que é acusado ou indiciado e que seja, em efetivo, reconhecido ao cidadão o direito de presunção de inocência até o trânsito em julgado.

É certo que a investigação criminal é a base de todo o sistema processual penal, tanto para o ajuizamento da ação penal, mas principalmente para o desenvolvimento do processo penal em juízo, pois ao reconstruir o fato criminoso, coleta evidências e vestígios e produz provas que serão impossíveis de serem exatamente repetidas posteriormente, seja pelo decorrer do tempo, quando se observa o princípio da oportunidade, seja por absoluta impossibilidade fática.

Ainda que o objetivo imediato da investigação criminal não seja a punição de quem quer que seja, como afirmado alhures, pois a investigação criminal se destina à apuração de um fato criminoso, produzindo uma verdade

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processual, também é inegável que ela, por si só, poderá impor restrições aos direitos fundamentais do investigado.

A instauração de procedimento formal legal de investigação pode causar limitações aos direitos fundamentais do homem, sejam eles de menor repercussão, como danos à imagem ou honra dos envolvidos (alguns irreparáveis), ou mesmo conduzir à restrição de sua liberdade (prisões cautelares) ou propriedade (apreensões, sequestros). Além disso, a certeza de que o procedimento seguirá a sua marcha e em última instância poderá servir de base a eventual ajuizamento de ação penal ou mesmo de uma condenação criminal é suficiente para compreender que o investigado não é um mero objeto à disposição do Estado. Não há espaço, em qualquer momento da persecução criminal para considerar o indivíduo desprovido de direitos fundamentais.

Portanto, a toda evidência, o princípio do devido processo legal deve ser plenamente respeitado durante a investigação criminal, desde o seu início, incluindo o seu desenvolvimento e até mesmo após o seu término.

Como já dito, a investigação criminal cuida especialmente da reconstrução de fatos, em proximidade com as investigações científicas e a busca pela verdade, tendo limitações de ordem jurídica, tanto no que tange ao direcionamento da apuração, mas também no seu alcance e limites. Neste particular, o devido processo legal se caracteriza como sendo o balizamento jurídico, o limite negativo, por meio do qual a investigação criminal deve se ater para que não ofenda direitos fundamentais do homem de maneira proibida.

E como o objeto da investigação criminal é o fato criminoso, forçoso reconhecer que as permissões ou proibições jurídicas para elucidá-lo influenciam na caracterização da verdade. Este é o desafio que envolve os temas relativos à prova, pois concomitantemente, dizem respeito a procedimento e conteúdo, à forma e substância. Os estudiosos do due process of law nos Estados Unidos perceberam a dificuldade de distinção entre as suas dimensões do devido processo quando se trata da justiça criminal e da verdade probatória:

Afirmam os docentes que, no tocante à prova, por exemplo, as questões procedimentais (procedural) misturam-se com as questões substancias (substantive). Uma coisa é ser faticamente culpado e outra, legalmente

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culpado, asseguram. E as regras são estabelecidas com a Justiça em mente para os dois pontos de vista. Toda norma atinente à prova afeta o resultado do processo e, nesse aspecto, tem força substancial. Mas virtualmente toda norma de prova também é sobre procedimento e assim, procedimental. (PEREIRA, 2008, p. 92)

Assim, na hipótese supracitada, as violações de cunho procedimental podem invalidar evidências ou provas que elucidam o fato criminoso, ou seja, tais proibições de procedimento influenciam o conteúdo da investigação, mes-mo quando dizem respeito apenas à forma como foram obtidas. Uma confissão produzida em razão da prática de tortura seria o clássico exemplo de que a forma proibida por lei para a colheita da prova invalida as informações obtidas pelo ato, ainda que elas possam revelar ou elucidar materialmente o fato investigado.

Também se incluem nesta hipótese os atos investigativos realizados no bojo de instrumentos ilegais de investigação criminal. O manejo de pro-cedimento de investigação criminal, base inicial para a imposição de conse-qüências criminais que possam afetar diretamente a vida, a liberdade e a pro-priedade do indivíduo, deverá se ater, no mínimo, às exatas prescrições legais de procedimento e forma.

Não se concebe a existência de um procedimento de investigação criminal ou com finalidade criminal, realizada à sorrelfa do direito e da lei. No caso, tais instrumentos de investigação não podem embasar, sem ofensa ao devido processo legal, ação penal cujo propósito final é a condenação do indivíduo a penas que poderão lhe restringir a vida, liberdade ou proprie-dade. A investigação criminal não cuida apenas de obter informações sobre um fato, mas trata-se de desvendar um crime, remetendo-se a todas as conse-quencias que envolvem o conceito de ilícito penal.

Na consecução do direito processual penal não há espaço para subter-fúgios, pois as possíveis consequencias poderão ofender aos bens mais preciosos do ser humano, mormente a liberdade. Ora, quaisquer procedimentos, distin-tos daqueles previstos pela Lei, cuja finalidade precípua não envolve a apuração de delitos, não podem ser usados em processo criminal, uma vez que afrontam o devido processo legal, bem como ao princípio da legalidade. O devido pro-cesso legal impõe ao Estado a necessidade do agir justo. Assim o Estado não pode patrocinar procedimentos inexistentes juridicamente, ou cuja aparência se presta apenas para esconder outras intenções.

Recentemente, a República Federativa do Brasil foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela promoção de atos de in-

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vestigação conduzidos em procedimentos irregulares. No caso, pela falta de instrumento formal de investigação a dar supedâneo a medidas cautelares, conforme trecho abaixo transcrito do caso Escher e Outros v. Brasil, julgado em julho de 2009:

De acordo com o artigo 1º da Lei n. 9.296/96, a interceptação telefônica deve ter o propósito de investigar criminalmente ou de instruir um processo penal. No presente caso, apesar de indicar a necessidade de investigar supostas práticas delitivas, quais sejam, o homicídio de Eduardo Aghinoni e o desvio de recursos públicos, a solicitação do major Neves não foi apresentada no marco de um procedimento investigativo que tivesse por objeto a verificação dos fatos. O pedido de interceptação sequer mencionou os autos da investigação do homicídio que se encontrava a cargo da polícia civil de Querência do Norte, cujo delegado de polícia não teria sido notificado a respeito. Outrossim, tampouco consta que na época dos fatos existisse uma investigação pelo suposto desvio de recursos públicos por parte dos dirigentes da COANA e da ADECON. Quanto ao pedido do sargento Silva, este não apontou o propósito das interceptações pretendidas nem sua vinculação com uma investigação ou processo penal. Desse modo, em detrimento do artigo 8º da Lei No. 9.296/96, o Pedido de Censura foi uma diligência isolada e não tramitou em autos anexos a um procedimento de investigação ou processo criminal iniciados anteriormente. Portanto, ambas as solicitações descumpriram com o disposto nos artigos supracitados. (grifos nossos)5

E conclui:

A Corte conclui que as interceptações e gravações das conversas tele-fônicas objeto deste caso não observaram os artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º da Lei No. 9.296/96 e, por isso, não estavam fundadas em lei. Em consequência, ao descumprir o requisito de legalidade, não resulta necessário continuar com a análise quanto à finali-dade e à necessidade da interceptação. (grifo nosso)6

De modo geral, a grande maioria dos limites impostos pelo devido processo legal à investigação criminal residem nesta região obscura onde pro-cedimento formal e conteúdo se confundem.

5 Cf. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_por.pdf. Acesso em: 01 nov. 2010, p. 41

6 Cf. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_por.pdf. Acesso em: 01 nov. 2010, p. 45.

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Contudo, existem regras exclusivamente procedimentais, que não exercem influência sobre o conteúdo da prova, e que embora exijam o seguimento estrito de determinado rito ou forma, o conteúdo da investigação não será afetado caso tal prescrição não seja respeitada. Tais infrações procedimentais podem acarretar prejuízos ao desenvolvimento do processo penal ou da própria investigação, mas o conteúdo da apuração, a elucidação do fato criminoso não é prejudicado. Cite-se, por exemplo, o relaxamento da prisão em flagrante delito pela falta de comunicação ao juízo competente da medida cautelar aplicada. Assim, embora a prisão cautelar reste prejudicada e eventualmente cause algum prejuízo ao regular desenvolvimento do processo penal ou da investigação, as provas colhidas durante a lavratura da peça procedimental permanecem perfeitas e plenamente válidas.

E por fim, poder-se-ia cogitar atos que mesmo atendendo aos ditames procedimentais ofenderiam a limites materiais implicitamente inscritos pelo devido processo legal substantivo, intimamente relacionados à razoabilidade e proporcionalidade.

Vislumbra-se, no caso, a imposição de prisões ou medidas cautelares a hipóteses previstas pela legislação, mas que quando comparadas às conseqüências materiais do ato, especialmente as restrições que imporá à vida, liberdade, ou propriedade do indivíduo, não se justificam considerando as suas finalidades na elucidação do fato.

Cabe citar também a participação abusiva de uma das partes do processo penal durante a investigação criminal. No caso, ainda que procedimentalmente a investigação criminal esteja plenamente perfeita, substancialmente ou materialmente o seu conteúdo poderá estar impregnado pela visão distorcida de uma das partes, antes mesmo do processo penal. Assim como o Ministério Público, titular da ação penal, não poderia exceder na utilização de seus poderes antes da propositura do processo penal, sob pena de tornar desleal a instrução criminal previamente viciada, a defesa do indivíduo também não está autorizada a impedir, sem o manejo de instrumentos legalmente permitidos, o desenvolvimento normal de uma legítima investigação criminal, embora lhe seja constitucionalmente garantida, sem outros prejuízos, a posição de total inércia perante o Estado. Tudo isso porque o devido processo legal determina a observância da paridade de armas no desenvolver do procedimento, corolário do princípio do contraditório.

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Resumem-se, portanto, as três hipóteses acima aventadas: 1) atos ou medidas investigativas que ofendam normas procedimentais, mas que implicam restrições ao conteúdo da investigação criminal; 2) atos ou medidas que infringem normas exclusivamente procedimentais e que não afetam o conteúdo da investigação e, por fim; 3) atos ou medidas que transgridem disposições jurídicas de cunho substancial, referentes exclusivamente ao conteúdo da investigação. Na primeira e terceira hipóteses teríamos a ocorrência de vícios insanáveis, podendo resultar na completa nulidade da investigação criminal. Já na segunda hipótese, os atos poderiam ser repetidos, ou mesmo desconsiderados, sem qualquer prejuízo à investigação criminal.

Conclusões

O conceito do princípio do devido processo legal sofreu intensa e constante evolução nos países que já o consagraram em seus sistemas jurídicos. Seu sentido tornou-se mais abrangente, abrigando um padrão de justiça a ser seguido pelo Estado quando em risco a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos.

O devido processo legal deixa de ser mera garantia do direito processual penal, e passa a ser aplicado também ao direito processual civil, ao direito administrativo e por fim, para verificar a razoabilidade do conteúdo das leis perante o sistema jurídico vigente. No caso, sempre que houver a possibilidade do Estado invadir indevidamente a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos o princípio do devido processo legal poderá ser invocado.

Por outro lado, se analisou a investigação criminal, tendo como foco, o seu contéudo e a forma como é expressa. Considerando o seu conteúdo, se verifica que a busca pela verdade na elucidação do fato criminoso encontra limites e direcionamento pela ordem jurídica. Já no que tange à sua forma, o procedimento através do qual a investigação se manifesta deve ser previsto expressamente em dispositivo legal, conforme listados nas seções anteriores. Vislumbra-se, portanto, a evidente interferência da ciência do direito na apuração da verdade fática, tanto a verificada no seu conteúdo quanto à sua forma.

E considerando as evidentes consequências jurídicas advindas da investigação criminal, tanto diretamente quanto indiretamente, à vida, à liberdade e propriedade do indivíduo, torna-se óbvia a necessidade de

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observância do devido processo legal pelo Estado durante a realização da investigação criminal.

No caso, os limites e condicionamentos jurídicos impostos à investigação criminal correspondem ao limites exigidos pelo princípio do devido processo legal para que o Estado possa, de forma legítima e legal de investir sobre a vida, liberdade e propriedade dos indivíduos.

E considerando que o tema primordial da investigação criminal envolve o conceito de prova, as limitações de ordem procedimental influenciam também no conteúdo da apuração. E o que ocorre na produção de provas ilícitas ou de investigações criminais conduzidas em procedimentos ilegais. E embora existam proibições de cunho estritamente procedimentais que não influenciam no conteúdo da investigação, vislumbra-se também a existência de proibições referentes exclusivamente ao conteúdo, que não ofendem a regras de procedimento, mas que se configuram em hipóteses vedadas, como aplicação de medidas cautelares desproporcionais ou que ofendam a paridade de armas.

DANIEL FÁBIO FANTINI

O autor é Delegado de Polícia Federal, Chefe Substituto da Delegacia de Polícia Federal em Divinópolis/MG, bacha-

rel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e aluno do Curso de Especialização em Ciência

Policial e Investigação Criminal – 2010/2011 oferecido pela ANP/DPF. No Departamento de Polícia Federal já ocupou as Chefias da Delegacia de Repressão ao Tráfico de Armas, de

Imigração e de Defesa Institucional.

DUE PROCESS OF LAW AND CRIMINAL INVESTIGATION

ABSTRACT

This paper discusses the evolution of the due process of law principle, in its two dimensions – procedural and substantive, until its express enactment in the 1988 Constitution of the Federal Republic of Brazil. Accordingly, it clearly sets forth that the due process of law clause constitutes a bulwark of justice, directed toward protecting the fundamental rights and guarantees of individuals, above all, those of life, liberty and property, against any and every unreasonable action the state might effect. In turn, it broaches the matter of the criminal investigation as a process the state has at its disposal for the elucidation of criminal facts, clarifying the relation between factual

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truth and the constraints of the legal system to which it is subject. In this light, it considers that the content and methods of criminal investigations are influenced by legal guidelines, although the acts destined to elucidate the criminal fact verge on scientific investigations. Hence, bearing in mind that a criminal investigation could limit, directly or indirectly, the rights of the individual to life, liberty and property, the application of the principle of due process is justified in relation to acts effected within the sphere of an instated investigative process purporting inquiry into a felony committed. Finally, it identifies that the legal limits imposed on a criminal investigation translate into the effective application of due process, whether in relation to aspects inherent to the content or to the formal procedures of the investigation.

Keywords: Due process of law. Dimensions of Due process of Law. Criminal Investigations. Content and Procedures. Criminal Investigations Legal Restrictions.

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A Dicotomia Sistêmica da Liberdade Provisória Mediante Fiança no Brasil e o Papel da Autoridade Policial na Defesa do Direito Fundamental à Liberdade

Sérgio Eduardo BusatoDepartamento de Polícia Federal - Brasil

RESUMO

O presente estudo é uma análise do tratamento dado pelo legislador e pela jurisprudência pátria ao instituto das medidas cautelares pessoais desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais, expondo dicotomias surgidas na regulamentação da matéria causadas por opções legislativas in-fluenciadas à época por ideologias políticas antagônicas daquelas que justificavam a regulamen-tação anterior, sendo que por vezes essas alterações não observaram as cautelas necessárias para se evoluir a legislação a partir de uma análise do sistema em que a matéria está inserida, o que ocasio-nou a criação de paradoxos normativos que necessitam de uma profunda reflexão interpretativa e de posicionamentos ideológicos para sua superação. Diante da constatação da existência de normas antagônicas, uma vez que não guardariam entre si relação de gradualidade e adequação, questiona-se o papel da autoridade policial no enfrentamento do tema liberdade provisória, no escopo de se verificar a possibilidade ou não de se antecipar já na fase processual extra judicium a análise dos requisitos da prisão preventiva ao caso concreto, desencarcerando os flagrados nos casos de delitos aos quais a legislação expressamente vede a concessão da prisão preventiva, in-dependentemente de manifestação judicial, aplicando-se uma interpretação em conformidade com os princípios constitucionais da liberdade, igualdade e presunção de inocência.

Palavras-chave: Liberdade Provisória. Fiança. Autoridade Policial. Direitos Fundamentais.

Introdução

Sucessivas reformas pontuais realizadas pelo legislador no Código de Processo Penal, descompromissadas de um prévio estudo sistêmico de seu impacto no ordenamento jurídico pátrio, vêm causando, de forma rotineira, dicotomias normativas que geram relevante insegurança jurídica aos operadores do direito e, por conseqüência, a todas pessoas sujeitas às normas restritivas de direitos e suas possíveis interpretações. Tendo este panorama como premissa é que se pretende analisar no decorrer do trabalho se o instituto da liberdade provisória mediante fiança ainda encontra

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fundamento normativo e fático a justificar sua existência, tendo em vista o paradoxo no regramento das medidas cautelares pessoais surgido após a alteração legislativa que incluiu o parágrafo único no art. 310 do Código de Processo Penal, o qual ampliou sobremaneira o espaço à liberdade nos casos de flagrante delito, quando não presentes os requisitos da prisão preventiva, facultando ao Magistrado conceder ab initio a liberdade provisória ao acusado pelo cometimento de crimes de qualquer natureza, sejam afiançáveis ou não, vinculando o flagrado apenas ao comprometimento em comparecer a todos os atos do processo.

Diante dessa nova realidade processual surgida no campo das medidas cautelares pessoais, a partir de um resgate histórico do instituto no Brasil, questionar-se-á a respeito da efetiva utilidade do instituto da fiança no Brasil, a qual, apesar de não revogada tacitamente, teria sua aplicabilidade questionada face à existência de uma normatização mais benéfica facultada ao flagrado. Buscar-se-á verificar, ademais, a influência dessas alterações já na fase processual extra judicium, tendo como pano de fundo a análise do papel da polícia judiciária como garantidora de direitos individuais fundamentais dentro de nosso estado democrático de direito.

1 Esboço Histórico da Liberdade Provisória e da Fiança no Brasil

Para melhor compreensão do instituto da liberdade provisória em nosso ordenamento jurídico, torna-se fundamental uma análise histórica do tema desde a descoberta de nosso país em 1500, passando pela evolução ocorrida durante o período Colonial, as alterações realizadas após a proclamação do Império, e, em especial, estudando as modificações que se sucederem durante a República, em razão da opção política vigente à época, confrontanto o tratamento normativo dado à matéria pelas diferentes constituições brasileiras.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a primeira legislação efetivamente aplicada em nosso país foram as Ordenações Manuelinas, pois apesar destas terem sido promulgadas em Portugal apenas em 1521, em substituição às Ordenações Afonsinas, é importante ter em mente que de 1500 a 1530, quando o território nacional ainda era chamado Terra de Santa Cruz, a colonização limitou-se a expedições rápidas para coleta e transporte de pau-

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brasil. Somente com a famosa expedição de Martim Afonso de Sousa1 é que a nova colônia portuguesa passou a ser povoada, sendo marco relevante nesse momento histórico a fundação, em 1532, da vila de São Vicente.

Ainda assim, a título de resgate histórico, já nas Ordenações Afonsi-nas2 havia a previsão de quatro espécies de contracautelas, em seu sentido estri-to, a saber: Cartas de Seguro; Fiança; Fiéis Carcereiros; e Homenagem.

Conforme conceitua Marcellus Polastri Lima, cartas de seguro eram formas “de se cessar a prisão, quando o réu, mediante certas condições, per-manecia livre até o julgamento da causa, sendo concedida quando o imputa-do, confessando o fato, alegasse legítima defesa, ou quando negasse o próprio fato”3. Por outro lado, prossegue referido autor, a fiança era destinada aos presos, sendo excepcionalmente concedida aos soltos, servindo como uma faculdade à disposição do réu de se livrar solto mediante o pagamento de uma caução. Já os denominados fiéis carcereiros eram uma forma de caução fidejussória, pela qual terceiros se comprometiam pelo comparecimento do réu à Justiça, cabendo apenas nas hipóteses de delitos mais leves4. Por fim, a homenagem era uma espécie de liberdade provisória concedida especialmen-te aos nobres, constituindo-se em uma licença deferida ao réu para permane-cer solto mediante certa promessa5.

Em 1603, as Ordenações Manuelinas foram substituídas pelas Orde-nações Filipinas, as quais, no que tange o regramento referente ao cerceamen-to da liberdade dos réus era extremamente rigorosa, uma vez que atribuia um tratamento de regra ao instituto da prisão preventiva6.

Somente no século XIX é que este quadro começa a se modificar, prin-cipalmente a partir da edição do Decreto de 23 de maio de 1821, o qual dava providências para garantia da liberdade individual, nos seguintes termos:

1 Conforme extraído do site do http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_afonso_de_souza, Martin Afonso de Souza foi um nobre e militar português que partiu em dezembro de 1530 de Lisboa para o Brasil transportando 400 pessoas que viriam ajudar a construir a Vila de São Vicente.

2 Colectânea de leis divididas em cinco livros promulgadas, como primeira compilação oficial do século XV, durante o reinado de Dom Afonso V.

3 LIMA, Marcellus Polastri. A Tutela Cautelar no Processo Penal. 2a. ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 264.

4 LIMA, loc.cit.

5 LIMA, loc.cit.

6 Ibid., p. 265.

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Vendo que nem a Constituição da Monarchia Portugueza, em suas disposições expressas na Ordenação do Reino, nem mesmo a Lei da Reformação da Justiça de 1582, com todos os outros Alvarás, Cartas Régias, e Decretos de Meus augustos avós tem podido affirmar de um modo inalteravel, como é de Direito Natural, a segurança das pessoas; e Constando-Me que alguns Governadores, Juizes Criminaes e Magis-trados, violando o Sagrado Deposito da Jurisdicção que se lhes confiou, mandam prender por mero arbitrio, e antes de culpa formada, pretex-tando denuncias em segredo, suspeitas vehementes, e outros motivos horrorosos à humanidade para ipunimente conservar em masmorras, vergados com o peso de ferros, homens que se congregaram convidados por os bens, que lhes offerecera a Instituição das Sociedades Civis, o pri-meiro dos quses é sem duvida a segurança individual; E sendo do Meu primeiro dever, e desempenho de Minha palavra o promover o mais austero respeito à Lei, e antecipar quanto ser possa os beneficios de uma Constituição liveral: Hei por bem excitar, por a maneira mais efficaz e rigorosa, a observancia da sobre mencionada legislação, ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil possa jamais ser presa sem or-dem por escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, excep-to sómente o caso de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o delinquente. Ordeno em segundo logar, que nenhum Juiz ou Magistrado Criminal possa expedir ordem de prisão sem preceder culpa formada por inquirição summaria de tres testemunhas, duas das quaes jurem contestes assim o facto, que em Lei expressa seja declarado culposo, como a designação individual do culpado; escrevendo sempre sentença interlocutoria que o obrigues a prisão e livramento, a qual se guardará em segredo até que possa verificar-se a prisão do que assim tiver sido pro-nunciado delinqüente.(...)7

O princípio da liberdade restou fortalecido no Brasil com o fim do período Colonial e o advento da Constituição Imperial de 1824, oportuni-dade em que a fiança foi alçada a garantia constitucional, tendo sua funda-mentação prevista no art. 179, IX8, senão vejamos:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

(...)

7 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DIM/DNNI2351821.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010.

8 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010.

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IX. Ainda com culpa formada, ninguem será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idonea, nos casos, que a Lei a admitte: e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fóra da Comarca, poderá o Réo livrar-se solto.

Assim como previsto na Constituição Imperial de 1824, o Código de Processo Criminal daquela época (Lei de 29 de novembro de 18329) também regulava a possibilidade da fixação de fiança, havendo um capítulo próprio para regular a matéria (Capítulo VIII – DAS FIANÇAS), dispondo nos artigos 100 e 101 as hipóteses de cabimento da fiança, senão vejamos in verbis:

Art. 100. Nos crimes, que não tiverem maior pena do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fóra da Comarca, poderá o réo livrar-se solto.

Tambem poderá livrar-se solto, nem mesmo será conservado na prisão, se nella já estiver, prestando fiança idonea nos crimes não exceptuados no artigo seguinte.

Art. 101. A fiança não terá lugar nos crimes, cujo maximo da pena fôr: 1º morte natural: 2º galés10: 3º seis annos de prisão com trabalho: 4º oito annos de prisão simples: 5º vinte annos de degredo11.

Relevante destacar que nesta época a fiança podia ser de duas espécies, havendo a possibilidade do réu optar por dar uma fiança real ou pessoal, ou seja, poderia escolher o réu em hipotecar bens de raiz suficientes para cobrir o valor da fiança arbitrada, depositar o correspondente no cofre da Câmara Municipal, ou, ainda, apresentar fiadores que se comprometessem por aquele,

9 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010.

10 Segundo conceito extraído do site Wikipedia (consulta realizada no dia 04 de novembro de 2010 disponível no endereço http://pt.wikipedia.org/wiki/Gal%C3%A9) a galé designava qualquer tipo de navio movido a remos, muito usados em guerras na Europa, por isso teriam desempenhado um papel de grande relevância na época. Condenado às galés, destarte, significava ser sentenciado ao trabalho forçado como remador nesses barcos. Quando os remadores eram prisioneiroas, os carrascos marcavam em brasa duas letras nas costas dos condenados, os quais as temiam mais que tudo, já que um condenado às galés vivia muito pouco tempo, pois quase não tinham descanso, comiam mal e eram chicoteados quando não obedeciam. Os prisioneiros eram condenados às galés por terem cometido crimes muito pesados, mas com o tempo as guerras foram aumentando e o governo necessitava de mais remadores, por isso os juízes foram orientados cada vez mais a condenarem bandidos às galés, até mesmo pequenos infratores eram condenados.

11 Degredo era um afastamento compulsório do condenado de determinado contexto social, previsto no ordenamento jurídico como pena pelo cometimento de delitos graves. Era uma forma de banimento.

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ficando obrigados “até a ultima sentença do Tribunal Superior, a pagar certa quantia (que deve ser designada) se o réo fôr condemnado, e fugir antes de ser preso, ou não tiver, a esse tempo, meios para indemnização da parte, e custas” (art. 103, do Código Imperial).

Essa espécie de contracautela fidejussória prevista no art. 103 do Código Imperial se assemelha ao instituto dos fiéis carcereiros previsto nas Ordenações Afonsinas anteriormente mencionado, o mesmo não ocorrendo com o instituto das Cartas de Seguro, o qual deixou de possuir previsão legal em nosso ordenamento jurídico com a edição do Código Imperial.

Em referido diploma Imperial havia, ainda, a previsão de prisão, mesmo que sem culpa formada12, nos casos de verificação de situação flagrancial ou então nos casos em que o investigado fosse indiciado por um crime para o qual não se permitisse o arbitramento de fiança (art. 175).

Outra curiosidade dessa época decorre do fato do cargo de Chefe de Polícia ser exercido por um Juiz de Direito13, sendo que a ‘jurisdição policial’ competia cumulativamente ao Juiz Municipal (art. 35, §3º) e ao Juiz de Paz (art. 12), não havendo, destarte, a possibilidade fixação de fiança senão por autoridade judicial.

Entretanto, a partir da vigência da Lei nº 261, de 3 de dezem-bro de 1841, a qual reformou em parte o Código de Processo Criminal de 1832, criaram-se os cargos de Delegado e Subdelegado, atribuindo-se funções relevantes a estas Autoridades, as quais agiam em função do po-der ‘delegado’ pelo Chefe de Polícia, possuindo, entre suas atribuições, o poder de fixar fiança aos réus que pronunciassem ou prendessem (art. 4º, § 2º, da Lei nº 261/1841).

Esta mudança ocorrida no processo penal da época veio a ser conheci-da posteriormente como “policialismo judiciário”14, traduzindo uma estrutura de funcionamento do procedimento criminal que perdurou por três décadas,

12 “Culpa formada” representava um filtro para a admissibilidade da acusação, fundamentando-se nas provas até então produzidas, como, por exemplo, perícias, testemunhos, interrogatórios, entre outros (CRUZ, 2006, p. 35).

13 Art. 6º do Código Imperial – “Feita a divisão haverá em cada Comarca um Juiz de Direito: nas Cidades populosas porém poderão haver até tres Juizes de Direito com jurisdicção cumulativa, sendo um delles o Chefe da Policia”.

14 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar: Dramas, Princípios e Alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 35.

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em que a polícia tinha ‘competência’ para prender, investigar, acusar e pronun-ciar os réus de determinados crimes tido como de menor ofensividade.

Para melhor ilustrar o que ora se sustenta, transcreve-se abaixo trecho extraído da Lei nº 261 de 1841, in verbis:

Art. 4º Aos Chefes de Policia em toda a Provincia e na Côrte, e aos seus Delegados nos respectivos districtos compete:

§ 1º As attribuições conferidas aos Juizes de Paz pelo art. 12 §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º do Codigo do Processo Criminal.

§ 2º Conceder fiança, na fórma das leis, aos réos que pronunciarem ou prenderem.

§ 3º As attribuições que ácerca das Sociedades secretas e ajuntamentos illicitos concedem aos Juizes de Paz as leis em vigor.

§ 4º Vigiar e providenciar, na fórma das leis, sobre tudo que pertence á prevenção dos delictos e manutenção da segurança o tranquillidade publica.

§ 5º Examinar se as Camaras Municipaes tem providenciado sobre os objectos do Policia, que por Lei se achão a seu cargo, representando-lhes com civilidade as medidas que entenderem convenientes, para que se convertão em Posturas, e usando do recurso do art. 73 da Lei do 1º de Outubro de 1828, quando não forem attendidos.

§ 6º Inspeccionar os Theatros e espectaculos publicos, fiscalisando a execução de seus respectivos Regimentos, e podendo delegar esta inspecção, no caso de impossibilidade de a exercerem por si mesmos, na fórma dos respectivos Regulamentos, ás Autoridades Judiciarias, ou Administrativas dos lugares.

§ 7º Inspeccionar, na fórma dos Regulamentos as prisões da Provincia.

§ 8º Conceder mandados de busca, na fórma da Lei.

§ 9º Remetter, quando julgarem conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos que houverem obtido sobre um delicto, com uma exposição do caso e de suas circumstancias, aos Juizes competentes, a fim de formarem a culpa.

Se mais de uma autoridade competente começarem um processo de forma-ção de culpa, proseguirá nelle o Chefe de Policia ou Delegado, salvo porém o caso da remessa de que se trata na primeira parte deste paragrapho.

§ 10. Velar em que os seus Delegados, e Subdelegados, ou subalternos cumprão os seus regimentos, e desempenhem os seus deveres, no que toca a Policia, e formar-lhes culpa, quando o mereção.

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§ 11. Dar-lhes as instrucções que forem necessarias para melhor desempenho das attribuições policiaes que lhes forem incumbidas.

Art. 5º Os Subdelegados, nos seus districtos, terão as mesmas attribuições marcadas no artigo antecedente para os Chefes de Policia e Delegados, exceptuadas as dos §§ 5º, 6º e 9º.

Art. 6º As attribuições criminaes e policiaes que actualmente per-tencem aos Juizes de Paz, e que por esta Lei não forem especialmente devolvidas ás Autoridades, que crêa, ficão pertencendo aos Delega-dos e Subdelegados.

Percebe-se, destarte, que os Delegados e Subdelegados passaram a executar uma série de competências anteriormente afetas aos Juízes de Paz e, por via de consequência, a origem do cargo de Delegado de Polícia estaria vinculada ao Poder Judiciário e não ao Poder Executivo como ocorre hodier-namente15. Destacam-se, dentre as competências atribuídas aos Delegados e Subdelegados do Chefe de Polícia, a possibilidade de prender os culpados, expedir mandados de busca, conceder a fiança, formar a culpa e pronunciar os réus em crimes de sua competência16, encaminhando os autos do processo ao Juiz Municipal, o qual poderia sustentar a pronúnica, revogá-la, ou proce-der a despronúncia (art. 49 da Lei 261/1841).

Com a edição da Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871 pela Prin-cesa Imperial Regente, a qual, em sua ementa, dispunha alterar diferentes disposições da “Legislação Judiciária”17, houve uma mitigação dos poderes conferidos ao Chefe de Polícia, retirando-lhes a competência de julgar certas infrações penais (art. 9º), porém manteve o poder de conceder fiança, esta de caráter provisório18 (art. 10, § 2º).

15 Conforme as historiadoras Ana Carolina Eiras Coelho Soares e Elaine Cristina Ferreira Duarte, em artigo publicado no site do Arquivo Nacional e disponível no endereço http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=209&sid=90&tpl=printerview, em 1808 foi criado por D. João o cargo de Intendente Geral de Polícia, por intermédio do Alvará de 10 de maio daquele ano, representando a primeira estrutura básica da atividade policial brasileira, nos mesmos moldes que havia em Lisboa, tendo ocupado o cargo de Intendente Geral de Polícia o Desembargador e Ouvidor da Corte Paulo Fernandes Viana, o qual possuía “jurisdição ampla e ilimitada”, atuando como uma espécie de ministro da Segurança Pública, controlando todos os órgãos policiais do Brasil existentes à época, inclusive os ouvidores gerais, os alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estrada e assaltos.

16 Conforme ensina Rogério Schietti Machado Cruz (op.cit., p. 36), os Chefes de Polícias “assumiram a competência para processar e julgar contravenções às posturas municipais, bem assim os crimes punidos com prisão, degredo ou desterro até seis meses (art. 58, 6º do Regulamento nº 120, de 31/01/1842)”.

17 Mais uma vez se percebe que a atividade policial estava vinculada ao Poder Judiciário, uma vez que a regulamentação das competências dos cargos policiais era tida como ‘legislação judiciária’.

18 Conforme dispunha o art. 14 da Lei 2.033/1871, a fiança provisória tinha cabimento nos mesmos

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Interessante mencionar que de forma expressa nessa reforma cons-tou como critério para fixação da fiança a análise da gravidade do delito e da condição financeira do réu (art. 14, § 2º).

Para regular a aplicação da Lei nº 2.033/1871, a Princesa Imperial Regente editou o Decreto nº 4.824/1871, no qual constou de forma expres-sa, pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico, menção ao inquérito policial como atribuição do Chefe de Polícia (em regra um Magistrado), dos Delegados e Subdelegados (art. 11), trazendo em uma Seção própria a regu-lamentação desse novo procedimento (arts. 38 a 44), senão vejamos:

CAPITULO II SECÇÃO IDo Chefe de Policia, Delegados e Subdelegados (...) Art. 11. Compete-lhes, porém:1º Preparar os processos dos crimes do art. 12, § 7º do citado Codigo; procedendo ex-oficio quanto aos crimes policiaes. 2º Proceder ao inquerito policial e a todas as diligencias para o descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, inclusive o corpo de delicto. 3º Conceder fiança provisoria.(...)CAPITULO IIISECÇÃO IIIDo inquerito policialArt. 38. Os Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, logo que por qualquer meio lhes chegue a noticia de se ter praticado algum crime commum, procederão em seus districtos ás diligencias necessarias para verificação da existencia do mesmo crime, descobrimento de todas as suas circumstancias e dos delinquentes. Art. 39. As diligencias a que se refere o artigo antecedente comprehendem: 1º O corpo de delicto directo.2º Exames e buscas para apprehensão de instrumentos e documentos.

casos em que era passivem a fixação da fiança definitiva, diferenciando-se em virtude da autoridade competente pela concessão, bem como em razão de possuir um prazo determinado, em regra 30 dias, variável conforme exigência do caso concreto motivado pela distância do réu em se apresentar ao juiz para fixação da fiança definitiva, numa proporção de quatro léguas por dia.

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3º Inquirição de testemunhas que houverem presenciado o facto criminoso ou tenham razão de sabel-o.4º Perguntas ao réo e ao offendido.Em geral tudo o que fôr util para esclarecimento do facto e das suas circumstancias.(...)Art. 42. O inquerito policial consiste em todas as diligencias necessarias para o descobrimento dos factos criminosos, de suas circumstancias e dos seus autores e complices; e deve ser reduzido a instrumento escripto, observando-se nelle o seguinte: (...)19

Com a Constituição Republicana de 1891, a prisão provisória passou a ser tratada como exceção à regra da liberdade garantida a todos cidadãos, sejam brasileiros ou estrangeiros residentes no país, ao dispor na Seção II destinada às Declarações de Direitos20, mais precisamente no parágrafo 14, do art. 72, a seguinte garantia constitucional:

Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros resi-dentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberda-de, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 14 - Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as exceções especificadas em lei, nem levado à prisão ou nela detido, se prestar fiança idônea nos casos em que a lei a admitir.

Nesse diapasão, restou consagrada a fiança como garantia individual dos cidadãos assegurada na Constituição de 1934, ao dispor no Capítulo II Dos Direitos e das Garantias Individuais, em seu art. 113, nº 22, a seguinte proteção:

Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros re-sidentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liber-dade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

22) Ninguém ficará preso, se prestar fiança idônea, nos casos por lei estatuídos.

19 Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/103837/decreto-4824-71>. Acesso em: 13 nov. 2010.

20 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010.

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Conforme ensina Rogério Schietti Machado Cruz21, nosso modelo federativo adotado inicialmente na República foi inspirado na divisão vi-gente nos Estados Unidos da América, no qual cada Estado federado tinha autonomia para legislar sobre a matéria processual criminal, porém alguns dos entes mantiveram vigente a normatização disposta no Código Imperial, enquanto outros optaram por criar sua própria legislação, mas, mesmo estes, não se distanciaram das regras e princípios até então aplicáveis.

Entretanto, este quadro de prevalência das liberdades individuais se transmuda a partir da Revolução de 30. Com o início do Governo Ditatorial de Getúlio Vargas e a instituição do Estado Novo, especialmente com a outorga da Constituição ‘Polaca’22 de 1937, houve sensível redução das garantias individuais, inclusive com a supressão do instituto da fiança de sua condição de direito constitucional subjetivo do preso, apesar de se manter um capítulo próprio destinado aos direitos e garantias individuais, consubistanciado nas normas dispostas no art. 122. A título ilustrativo, reproduz-se23 a seguir o regramento constitucional referente à prisão:

Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros re-sidentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

11) à exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada; a instrução criminal será contraditória, asseguradas antes e depois da formação da culpa as necessárias garantias de defesa;

Da análise do dispositivo constitucional supra percebe-se que formalmente se garantia o contraditório e a ampla defesa, porém na prática a história nos relata que os direitos e liberdades individuais foram mitigados sob o fundamento da prevalência do interesse público, no caso, do Governo Ditatorial.

21 CRUZ, op.cit., p. 36.

22 Apelido pelo qual nossa Constituição de 1937 restou conhecida em virtude de ter se inspirado na normatização constitucional da Polônia.

23 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm>. Acesso em: 12 nov. 2010.

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Essa nova opção de política criminal restou evidenciada na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941, elaborado no Governo de Getúlio Vargas e influenciado de forma marcante pela matriz facista italiana de Mussolini, a qual objetivava unificar e sistematizar as normas processuais penais em um único Código para todo Brasil, como forma de atribuir maior eficiência e energia na ação repressiva do Estado, conforme se depreende dos trechos abaixo transcritos:

As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência de provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social.

O espaço para as prisões cautelares, seja em flagrante delito ou preventiva, foi sensivelmente ampliada no diploma processual de 1941, sendo que em relação à primeira, o clamor público deixou de ser condição necessária à equiparação do estado de flagrância, bastando a comprovação da perseguição após a fuga do autor; já em relação à prisão preventiva, autorizava-se o cerceamento cautelar da liberdade do acusado toda vez que reclamasse o interesse da ordem pública, da instrução criminal, ou a efetiva aplicação da lei penal.

A tendência da política criminal há época era influenciada pelo movimento lei e ordem, havendo um recrudescimento de normas de conduta que focavam o interesse social em detrimento de direitos e garantias individuais.

Ainda, com relação à prisão preventiva, o Código de Processo Penal de 1941, em sua versão original, determinava no art. 312 a decretação obrigatória da cautela prisional “nos crimes a que fosse cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos”, bastando, para tanto, apenas a existência de prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria (previsão do art. 311), não havendo necessidade de se analisar o periculum libertatis no caso concreto, o qual era presumido em razão da gravidade do delito previsto no tipo em abstrato.

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Apesar de ter deixado de ser uma garantia constitucional do indivíduo, a fiança restou regulamentada no Código de Processo Penal de 1941. Entre as novidades da nova legislação se destacam a extinção da fiança fidejussória e a possibilidade de o juiz não restar adstrito à tarifa legal para fixação do quantum da fiança, podendo aumentar até o tripo seu valor no caso de reconhecer que em sendo fixada no máximo previsto não asseguraria a ação da justiça em ra-zão da situação econômica abastada do preso (art. 325, parágrafo único24), ou, ainda, caso verifique ser impossível ao réu pagar a fiança fixada em razão de seu estado de pobreza, poderia o juiz conceder a liberdade provisória independen-temente de pagamento de fiança (art. 350, caput25).

Também relevante destacar que no art. 326 do Código de Processo Penal de 1941 restou disposto que “para determinar o valor da fiança, a au-toridade terá em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo”, até final julgamento, ampliando, destarte, os critérios de análise para fixação da fiança em relação à legislação anterior.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1946, a fiança voltou a constar no rol de direitos e garantias individuais (Capítulo II do Título IV), reassumindo de forma explícita sua natureza de direito subjetivo do indivíduo perante o Estado (art. 141, § 21)26, situação que permaneceu formalmente idêntica na Carta Constitucional de 1967 (art. 150, § 12)27.

24 Art. 325. O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder, nos limites seguintes: de duzentos mil réis a cinco contos de réis, quando se tratar de infração punida, no grau máximo, com detenção ou prisão simples até um ano; de quinhentos mil réis a dez contos de réis, quando o máximo da pena não for alem de dois anos; de setecentos mil réis a quinze contos de réis, quando não for alem de três anos; de um conto a vinte contos de réis, quando for maior de três anos.Parágrafo único. A fiança poderá ser aumentada até o triplo, se o juiz reconhecer que, em virtude da situação econômica do réu, não assegurará a ação da justiça embora fixada no máximo. (Redação posteriormente alterada pela Lei nº 7.780/89).

25 Art. 350. Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando ser impossível ao réu prestá-la, por motivo de pobreza, poderá conceder-lhe a liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328. Se o réu infringir, sem motivo justo, qualquer dessas obrigações ou praticar outra infração penal, será revogado o benefício.

26 Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)§ 21 - Ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança permitida em lei. (...).

27 Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

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Detalhe curioso e aparentemente contraditório em nossa história é que a partir da década de sessenta, em que pese a vigência do regime militar iniciado com o Golpe de 1964, houve uma paulatina flexibilização das nor-mas restritivas das liberdades individuais dispostas no Código de Processo Penal de 1941, ao menos formalmente, pois hoje são notórias as atrocidades ocorridas durante o regime militar, sejam aquelas cometidas à margem do sistema legal, ou mesmo as ocorridas com a complacência do Poder Judici-ário, então pressionado pelo contexto do regime de exceção. Um exemplo desse paradoxo é a Lei nº 5.349/73, a qual alterou os artigos 311, 312 e 313 do Código de Processo Penal, extinguindo a hipótese de prisão preventiva compulsória anteriormente mencionada.

Ainda nesse sentido, em 1973 foi editada - às pressas28 - a Lei nº 5.941, que alterou os artigos 408, 474, 594 e 596 do CPP29, facultando a manutenção do estado de liberdade ao réu pronunciado (§ 2º do art. 408) ou condenado (art. 594), os quais anteriormente eram automaticamente reco-lhidos à prisão.

O campo da liberdade provisória restou sensivelmente ampliado com a edição da Lei nº 6.416/1977, a qual incluiu o parágrafo único ao art. 310 do CPP, autorizando ao Juiz relaxar a prisão em flagrante delito, independentemente da fixação de fiança, quando verificasse a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

Em razão da relevância desta alteração legislativa e de suas conseqüências no ordenamento jurídico, ao menos no que tange a regulamentação do instituto da fiança e da liberdade provisória, analisar-se-á em um capítulo próprio o significado prático dessa reforma pontual que desconsiderou o sistema então vigente e que ainda hoje vem causando

§ 12 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será Imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal. (...)

28 Esta lei foi vulgarmente apelidada de Lei Fleury, em homenagem ao Delegado do Departamento da Ordem Pública e Social – DOPS de São Paulo Sérgio Paranhos Fleury, tendo se notabilizado a estranha e célere tramitação do projeto de lei que lhe deu origem no Congresso Nacional, a qual ocorreu no prazo de um mês e que acabou por beneficiar referido delegado que havia sido preso acusado de como comandante do Esquadrão da Morte, denunciado por torturar e matar inúmeras pessoas durante o Governo Militar. Sobre a história do Delegado Fleury e do contexto histórico vivido à época, sugere-se a leitura do livro Batismo de Sangue do autor Frei Betto.

29 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/L5941.htm>. Acesso em: 17 nov.2010.

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posicionamentos antagônicos e distorcidos, tanto na doutrina como na jurisprudência pátria, principalmente após a promulgação de nossa Carta Magna de 198830.

2 Do Paradoxo Normativo Surgido a Partir da Reforma de 1977 e suas Consequências no Sistema Processual Penal

Ao se analisar o Código de Processo Penal de 1941, perceber-se-á que não houve à época uma preocupação em se trabalhar o instituto das medidas cautelares pessoais31 de forma sistêmica, em consonância com os princípios e garantias assegurados constitucionalmente32. Entretanto, a falta de unidade e de capacidade política pós 88 em aprovar um novo diploma processual penal em conformidade com os princípios, direitos e garantias constitucionais forçou o legislador a propor reformas pontuais, por vezes induzidas por fatores externos que em nada se relacionam com o interesse da sociedade, mas sim decorrem de acontecimentos que ganham notoriedade nacional por serem selecionados e explorados exaustivamente por uma parcela sensacionalista da imprensa, ou mesmo para beneficiar determinado indivíduo ou grupo seleto de privilegiados como ocorrido no caso da cognominada Lei Fleury.

Essas reformas pontuais que, ao menos em parte, atenuaram os reclames de parte da doutrina e de operadores do direito mais afinados com os postulados garantistas constitucionais do que com o movimento lei e

30 A Constituição Federal de 1988 consagrou no art. 5º, LXVI, a liberdade provisória na condição de gênero, do qual a fiança é uma de suas espécies, ao assegurar que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (Grifo nosso).

31 Denomina-se como medidas cautelares pessoais aquelas incidentes sobre o investigado, indiciado ou réu, diferenciando-as das medidas cautelares reais, as quais tem como escopo a garantia da reparação de um determinado dano, ou mesmo assegurar a posterior decretação de perdimento do produto do crime, bem como das medidas cautelares probatórias, as quais são direcionadas à garantia da instrução da Ação Penal.

32 Tal cuidado parece ter sensibilizado nossos legisladores, pois no Projeto de Lei nº 156/2009, que dispõe sobre a reforma do Código de Processo Penal, houve uma sistematização das medidas cautelares pessoais, normatizando-se a matéria em um título próprio (Título II do Livro III) e, o que parece ser a evolução mais significativa, ampliando sobremaneira o rol de espécies cautelares pessoais no art. 521, citando, por exemplo, o recolhimento domiciliar; o monitoramento eletrônico; suspensão do exercício de função pública ou atividade econômica; suspensão das atividades de pessoa jurídica; proibição de freqüentar determinados lugares; suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor, em barcação ou aeronave; afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima; proibição de ausentar-se da comarca ou do País; comparecimento periódico em juízo; proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada; suspensão do registro de arma de fogo e da autorização para porte; suspensão do poder familiar, entre outras.

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ordem dominante à época da edição do Código de Processo Penal, tornaram assistemática e paradoxal a normatização relativa às medidas cautelares pessoais, causando posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais diametralmente antagônicos. O que, num primeiro momento, deveria representar um avanço em prol da evolução legislativa da matéria veio a causar um prejuízo ainda maior em virtude da insegurança jurídica decorrente da falta de clareza normativa.

Nesse sentido é o entendimento de Aury Lopez Jr.33 ao sustentar que, para nossa infelicidade, “no Brasil, as sucessivas ‘reformas pontuais’ do Có-digo de Processo Penal culminaram por gerar uma colcha de retalhos, um frankenstein jurídico, cujos paradoxos e dicotomias impedem que ele tenha higidez mental”. Referido doutrinador entende que o parágrafo único do art. 310 do CPP inserido pela Lei nº 6.416/77 ampliou substancialmente o es-pectro da liberdade provisória no Brasil, uma vez que possibilitou ao preso em flagrante delito obter a liberdade, independentemente da análise de afian-çabilidade ou não do delito, bastando que não estejam presentes os requisitos da prisão preventiva.

Até o advento da Lei nº 6.416/77, o indivíduo preso em flagrante delito permanecia encarcerado até o superveniente julgamento de sua ação penal, inde-pendentemente de se analisar no caso concreto a necessidade de manutenção da prisão cautelar, ou seja, do periculum libertatis, justificando-se que tal requisito era uma presunção iures et de iure34 decorrente da situação flagrancial.

Outro crítico dessa forma de legislar descompromissada com a visão de sistema, Rogério Schietti Machado Cruz35, ao se manifestar sobre a refor-ma processual de 1977, defendeu que referida alteração normativa “acabou por reduzir o instituto da fiança a uma quase inutilidade”, argumentando seu posicionamento no fato da nova norma ter autorizado ao juiz conceder a li-berdade provisória ao autor de qualquer crime36, independentemente da fixa-ção de fiança, em razão do disposto no art. 310, parágrafo único, do CPP.

33 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. II. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.165/166.

34 LIMA, op.cit., p.201.

35 LIMA, op.cit., p.39.

36 Importante salientar nesse ponto que ambas as turmas do STF divergem sobre a possibilidade ou não de concessão de liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados, tendo em vista a vedação constitucional da fiança nesses casos (art. 5º, XLIII, da CF), estando a matéria sujeita a análise pelo Plenário. Sobre o tema sugere-se a leitura dos HCs 95.015-9/SP e 92824 do STF.

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Em sentido similar, Antonio Scarance Fernandes acentua que nas re-formas procedidas no Código de Processo Penal de 1941 não houve preocu-pação do legislador em atentar aos princípios da adequação e da gradualidade, eis que, aquele que cometesse um crime mais grave, com pena mínima superior a dois anos, poderia ser beneficiado com a liberdade provisória sem fiança, em que pese vinculada à obrigação de comparecer aos atos do processo, porém não teria o direito de se livrar da prisão mediante o pagamento de fiança. Teria, destarte, direito ao mais, não possuindo, todavia, direito ao menos37.

No mesmo diapasão, Guilherme de Souza Nucci38 traz a tona outra incongruência do sistema das medidas cautelares pessoais ao prelecionar:

Se o indivíduo é preso em flagrante, acusado de crime hediondo, por exemplo, não poderá receber o benefício da liberdade provisória, mesmo que seja primário, de bons antecedentes e não ofereça maiores riscos à sociedade, mas se conseguir fugir do local do crime, apresentando-se depois à polícia, sem a lavratura do flagrante, poderá ficar em liberdade durante todo o processo, pelo mesmo crime hediondo, pois o juiz não está obrigado a decretar a preventiva. Parece-nos incompreensível essa desigualdade de tratamento.

Destarte, restaria à fiança, no que tange seu campo de aplicabilidade prática, apenas as hipóteses em que é autorizada sua fixação pela autoridade policial, pois desde logo o flagrado seria colocado em liberdade, independentemente da demora da tramitação de remessa e apreciação dos autos pelo Poder Judiciário e Ministério Público39.

Mas quais seriam essas hipóteses em que caberia à autoridade policial fixar a fiança como forma de concessão da liberdade provisória ao preso em flagrante delito? Será que essas hipóteses seriam em número relevante dentro do universo normativo penal, ou teria havido uma revogação fática do instituto?

37 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 302.

38 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 4. ed. rev. atual. e ampl. 2005, p. 575/576.

39 No mesmo sentido é o posicionamento de ROMEU PIRES DE CAMPOS BARROS in Processo penal cautelar, Rio de Janeiro:Forense, 1982, p.312, ao assegurar que a fiança ainda tem alguma aplicação porque, no auto de prisão em flagrante, a autoridade policial poderia concedê-la nos crimes punidos com detenção, enquanto a liberdade provisória sem fiança só pode ser deferida por juiz de direito, o que representaria uma vantagem ao preso, o qual não ficaria sujeito à demora da apreciação judicial do pedido de liberdade provisória, o que poderia lhe acarretar alguns dias de encarceramento.

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Conforme dispõe o art. 322 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 6.416/77, “a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples”. Dever-se-á atentar, ademais, aos requisitos impeditivos da concessão da fiança previstos nos arts. 323 e 324 de referido diploma legal40, pressupostos estes de análise comum também aos casos em que cabe ao juiz verificar a adequação da concessão da fiança.

Apesar de haver uma certa tendência na atualidade de se reduzirem as atribuições dos Delegados de Polícia, olvidando-se dos avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988 e do relevante papel que a instituição policial possui na defesa do Estado Democrático de Direito e na garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos, primando-se por uma atuação imparcial na busca da elucidação dos fatos suspeitos de ilicitude, importante destacar que desde à época do Império, mais precisamente a partir da Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, as autoridades policiais passaram a ter a ‘competência’ para conceder a liberdade provisória mediante fiança aos presos em flagrante delito, sendo importante atentar para a origem histórica do cargo vinculada ao Poder Judiciário, como fundamento desse ‘poder-dever’ mantido pela autoridade policial hodiernamente.

Entretanto, o limitado campo de incidência da fiança policial restou ainda mais reduzido com a superveniência da vigência da Lei nº 9.099/95, que regulamentou o procedimento de conciliação, julgamento e execução das in-frações penais de menor potencial ofensivo perante os Juizados Especiais Cri-

40 Art. 323. Não será concedida fiança:I - nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a 2 (dois) anos; (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)II - nas contravenções tipificadas nos arts. 59 e 60 da Lei das Contravenções Penais; (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977) III - nos crimes dolosos punidos com pena privativa da liberdade, se o réu já tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado; (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)IV - em qualquer caso, se houver no processo prova de ser o réu vadio; V - nos crimes punidos com reclusão, que provoquem clamor público ou que tenham sido cometidos com violência contra a pessoa ou grave ameaça. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança:I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se refere o art. 350;II - em caso de prisão por mandado do juiz do cível, de prisão disciplinar, administrativa ou militar;III - ao que estiver no gozo de suspensão condicional da pena ou de livramento condicional, salvo se processado por crime culposo ou contravenção que admita fiança;IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977).

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minais, pois o parágrafo único do art. 69 de referido diploma legal facultou ao flagrado o direito de assinar a um termo de comparecimento em juízo como vinculação única para obter a imediata liberdade, independentemente de fian-ça, a qual restou expressamente proibida de ser exigida nestes casos.

Apesar de algumas críticas ao procedimento criado pela Lei nº 9.099/95, especialmente em razão de referida normatização ter ‘ressuscitado’ uma série de contravenções penais outrora fadadas ao esquecimento por sua inaplicabilidade prática, não há como negar que essa legislação ampliou sobremaneira o espaço da liberdade, limitando o encarceramento aos casos de flagrante delito por crimes mais graves, priorizando formas alternativas de pacificação social.

Inicialmente a Lei nº 9.099/95 definia como infrações penais de me-nor potencial ofensivo “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”. Entretanto, com a edição da Lei nº 10.259/2001 que dispôs sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, muito se discutiu sobre a possível ampliação do conceito de infração de menor potencial ofensivo, pois a lei superveniente estabeleceu uma nova definição para delitos dessa natureza ao incluir os crimes a que a lei comi-nasse pena máxima não superior a dois anos, ou multa, situação que restou pa-cificada com a alteração legislativa promovida com a Lei nº 11.313/2006, que alterou os artigos pertinentes à competência dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Estadual e Federal, padronizando e unificando o enten-dimento no sentido de conceituar infração penal de menor potencial ofensivo como sendo “as contravenções e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa”.

Destarte, se cotejarmos os preceitos secundários dos tipos penais dispos-tos em nossa legislação penal substancial, constatar-se-á que todas as infrações penais punidas com prisão simples estarão englobadas no conceito de menor po-tencial lesivo, assim como grande parte dos delitos punidos com detenção41, o que reduz a pouquíssimas hipóteses em que ainda é cabível a fiança policial42.

41 LOPES JR., op.cit., p. 166.

42 Se limitarmos o campo de pesquisa ao Código Penal Brasileiro, verificar-se-ão apenas 25 (vinte e cinco) tipos penais em que seria passível a fixação de fiança pela autoridade policial, citando, pela relevância, os crimes de homicídio culposo; infanticídio; aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento; abandono de incapaz; dano qualificado; vilipêndio a cadáver; violência arbitrária, patrocínio infiel e abandono de função, nos quais a pena máxima prevista em abstrato extrapola o limite

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Diante desta constatação da existência de uma pequena gama de tipi-ficações penais passíveis de concessão de fiança pela autoridade policial e da possibilidade de concessão pelo juízo de liberdade provisória sem a fixação de fiança, questiona-se se seria efetivamente adequado o arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia quando se deparasse com a notícia de um flagrante por um crime apenado com detenção e que não se submete ao regime dife-renciado do juizado especial criminal?

Segundo Lopes Jr., seria ilógica a concessão de fiança nesses casos, eis que “se para crimes mais graves, inafiançáveis até, o art. 310, parágrafo único, permite a concessão de liberdade provisória sem fiança, como justificar a exi-gência de uma contracautela pecuniária para crimes menos graves?”43 Percebe-se a flagrante falta adequação do sistema ocasionada pelas sucessivas reformas pontuais que desconsideraram a necessidade de um tratamento sistêmico das medidas cautelares pessoais, ocasionando a paradoxal normatização que onera de forma mais gravosa aquele que cometeu uma conduta menos censurável44.

Entretanto, o dilema vivenciado pela autoridade policial é ainda mais profundo, pois salvo os casos em que o flagrado é vadio ou houver dúvida em relação a sua identidade, todas as demais hipóteses em que é facultado à auto-ridade policial fixar a fiança há determinação expressa em lei impondo o não cabimento da prisão preventiva (art. 313, II, do Código de Processo Penal)45, ou seja, por que vincular à liberdade nesses casos ao pagamento de uma caução

de dois anos disposto no conceito de infração de menor potencial ofensivo. Também pela frequência em que se verificam nas delegacias de polícia espalhadas em nosso país, destacam-se a seguir alguns crimes previstos em legislações especiais em que também seria cabível a fixação da fiança policial, quais sejam: Art.21, parágrafo único da Lei 7.492/86 (Lei dos Crimes de Colarinho Branco); Art. 39 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas); Art. 12 da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), Arts. 302 e 306 da Lei nº 9.503/97 (Lei de Trânsito) e Arts. 30, 33, 34, 38, 38-A, 39, 42, 67, 68 e 69 da Lei 9.605/98 (Crimes Ambientais).

43 LOPES JR., loc.cit.

44 Sobre a interpretação de gravosidade das medidas cautelares pessoais, interessante destacar a manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence, a qual é reiterada em diversas decisões de seus colegas Ministros no STF, assentada na idéia-força de que “a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: [...] seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança” (HC 83.468). Ou seja, depreende-se dessa interpretação que a liberdade sem fiança prevista no art. 310, parágrafo único do CPP é menos gravosa que a liberdade provisória com fiança.

45 Conforme já analisado anteriormente, à autoridade policial somente é cabível fixar fiança nos casos de crimes apenados com detenção, enquanto a lei somente autoriza a prisão preventiva nos crimes dolosos punidos com detenção quando o réu for vadio ou houver dúvida sobre sua identidade, portanto, ao se aplicar a norma prevista no parágrafo único do art. 310 do CPP, não estarão presentes os requisitos da preventiva, sendo o flagrado posto em liberdade provisória independentemente da fixação de fiança.

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se a própria lei dispõe de forma implícita e abstrata que nestas hipóteses não há periculum libertatis, uma vez que não cabe pedido de prisão preventiva?

A título ilustrativo, se porventura o Delegado se olvidasse de fixar a fiança numa das hipóteses em que a lei o autoriza, estando o preso devida-mente identificado e com residência fixa, o Magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante delito, somente teria duas alternativas: ou supre a omis-são da autoridade policial e estabelece a fiança46 ou, então, concede a liber-dade provisória ao preso47, pois no caso proposto jamais poderá converter a prisão em flagrante em preventiva, uma vez que a lei somente autoriza esta medida cautelar nos crimes punidos com detenção, quando o preso for vadio ou houver dúvida sobre sua identidade.

Esse panorama traz à tona novamente a inadequação e a falta de gradualidade do sistema, pois mais uma vez se estará diante de uma situação que exige a opção por se onerar de modo mais gravoso aquele que cometeu uma conduta ilícita apenada abstratamente de forma mais branda ou, então, aplicar o entendimento de que o instituto da fiança não mais se justifica em nosso ordenamento jurídico, concedendo desde logo a liberdade provisória aos casos em que não se verifique o periculum libertatis48.

3 Da Necessidade de Superação de Preconceitos em Busca da Efetiva Concretização de Direitos e Garantias Fundamentais Pilares do Estado Democrático de Direito

Demonstrado o paradoxo normativo que a falta de um cuidado sistêmico na atualização de nossas leis ordinárias vem causando, especialmente

46 A título de curiosidade, recentemente o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu sobre a desnecessidade do arbitramento de fiança quando o réu estiver comparecendo a todos os atos do processo (TRF4, RSE 0006959-66.2009.404.7002, Sétima Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D. E. 04/06/2010).

47 Nesse sentido relevante destacar que no julgamento realizado nos autos do RSE nº 0007823-07.2009.404.7002, pela Sétima Turma do TRF4, tendo como relator o Desembargador Márcio Antônio Rocha, D.E. 04/06/2010 restou expresso ser “pacífica a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não existindo motivo para prisão preventiva (art. 312 do CPP), a liberdade provisória com ou sem fiança, apresenta-se como direito do acusado e não como uma faculdade do juiz”.

48 Nesse sentido ver o julgado do TRF4, RSE 2009.70.02.006190-5, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D. E. 06/05/2010.

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no que tange o regramento das medidas cautelares pessoais, urge que se promova um debate sério e profundo sobre o tema, livre de preconceitos descontextualizados da realidade e avanços obtidos na modernidade, como forma de se evitar que a dicotomia do sistema ordinário afete garantias e direitos consagrados constitucionalmente.

Um dos questionamentos que tem de ser feito e debatido decorre da análise do próprio fundamento de existência do instituto da fiança. Com efeito, se a autoridade policial ou judiciária entendesse presentes os requisitos para fixação da fiança no caso concreto, então não se estaria afastando um dos pressupostos da prisão cautelar preventiva que é o periculum libertatis e, uma vez afastado esse requisito, não teria o flagrado o direito de ser posto em liberdade provisória, independentemente de pagamento de fiança, na forma disposta no parágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal? Não seria a fiança um instituto processual criado como forma de beneficiar àqueles detentores de capacidade econômica privilegiada, ferindo, portanto, o princípio constitucional da igualdade? Tal análise é de fundamental relevância para identificação da manutenção ou não do instituto da fiança em nosso ordenamento jurídico pátrio.

Parte da doutrina processualista clássica, ainda muito vinculada ao positivismo legal, desassociada da necessidade de compreensão do sistema a partir de sua fonte constitucional, repete a literalidade da regra ordinária, defendendo o posicionamento de que só o juiz pode conceder a liberdade provisória sem fiança, sempre, é claro, após ouvir o Ministério Público, sendo que para perfectibilização do ato deve ser assinado um termo de comparecimento por parte do acusado, que assim se compromete a se fazer presente em todos os atos do processo, sob pena de revogação49.

Nesse contexto, qual seria o verdadeiro papel da autoridade policial dentro de nosso Estado Democrático de Direito? Será que este servidor pú-blico somente tem o dever de cumprir aquelas regras ordinárias que explici-tam uma ação ou omissão sem qualquer margem à interpretação, ou então lhe é exigido que prime em sua atuação conforme as regras e princípios insculpi-dos em nossa Carta Maior?

Qual o limite de atuação da autoridade policial na defesa dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos? Inserida em um conceito de polícia

49 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 276.

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republicana, estaria a autoridade policial legitimada a antecipar a análise de cabimento ou não dos requisitos da prisão preventiva ao caso concreto já na fase processual extra judicium, desencarcerando os flagrados nos casos de delitos apenados com detenção, independentemente de manifestação judicial ou ministerial, aplicando uma interpretação em conformidade com os princípios constitucionais da igualdade, liberdade, proporcionalidade e presunção de inocência.

Para melhor visualizar a problemática, trabalhemos um caso hipotético que rotineiramente bate às portas de nossas delegacias de polícia espalhadas no Brasil. Com efeito, em razão da banalização da violência em nossa sociedade, cada vez mais os particulares buscam meios de autodefesa. Uma das formas mais comuns, além, é claro, de se aprisionar nas próprias residências, é adquirir e manter no trabalho ou em casa uma ou mais armas de fogo, numa ‘doce ilusão’ de que tal conduta trará a tranquilidade e segurança que tanto se almeja. Nesse contexto é cada vez mais comum a identificação e prisão de indivíduos sem histórico de violência que adquirem armas de fogo de uso permitido, sem que regularizem a transferência das mesmas, seja por uma questão econômica ou por qualquer outro motivo de ordem pessoal, incidindo, destarte, na conduta típica prevista no art. 12, da Lei nº 10.826/2003, cujo preceito secundário de referida norma impõe uma pena de um a três anos de detenção, cabendo, portanto, o arbitramento de fiança pela autoridade policial após a lavratura do auto de prisão em flagrante.

Ainda que este flagrado possua posses e propriedades, o que prova-velmente implicaria num aumento do quantum da fiança face à inteligência do art. 326 do CPP, se no momento o indiciado não possuir disponibilida-de financeira para cobrir a fiança arbitrada pela autoridade policial50, aquele será encaminhado à custódia no presídio, onde permanecerá até que o auto de prisão em flagrante seja distribuído na Justiça a um Magistrado, o qual somente poderá decidir sobre a liberdade provisória com ou sem fiança após manifestação do Representante do Parquet. Dependendo da (in)agilidade do Poder Judiciário local, poderá o flagrado ter sua liberdade segregada por um dia ou mais dias, mesmo que não esteja presente qualquer condição que im-plique a existência do periculum libertatis na hipótese relatada51.

50 Segundo o disposto no art. 325, b, do CPP, a fiança neste caso deveria ser arbitrada pela autoridade policial em um montante entre 5 (cinco) a 20 (vinte) salários mínimos de referência.

51 Segundo relatos obtidos em conversas com Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, seria comum a ocorrência de casos em que o juízo a quo se olvida de analisar o disposto no Parágrafo Único,

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Uma boa parte da doutrina pátria não vê maiores problemas nessa omissão da análise de um dos pressupostos fundamentais da prisão cautelar, sustentando que no caso de identificação de um ato de flagrância, havendo fundada suspeita de que o conduzido seja o autor do crime, se dará o recolhi-mento à prisão, bastando na fase processual extra judicium, apenas a aferição do fumus comissi delicti, prescindindo, pois, da análise do periculum libertatis, na forma em que preceitua o art. 304, caput e § 1º, do CPP52.

Nesse sentido é o entendimento de Polastri53 e Scarance54, os quais justificam seus posicionamentos no fato da Constituição Federal determinar no art. 5º, LXII, a imediata comunicação da prisão em flagrante delito ao Poder Judiciário, ao qual é exigido, então, analisar a presença ou não do peri-culum libertatis. Acrescentam, ademais, que tal análise diferida se justificaria pela urgência de instantânea reação social à prática do ilícito penal, assim como pela necessidade de imediata coleta de provas.

Nesse ponto ouso em discordar de ilustres doutrinadores no que diz respeito à primeira parte de suas fundamentações. Em que pese reconhecer a inexistência de regramento ordinário que faculte a análise do periculum libertatis pela autoridade policial, ilógico seria pensar que a mesma Constituição Federal que autoriza excepcionalmente o cerceamento da liberdade do acusado diretamente pela autoridade policial, quando verificada a ocorrência de um ato flagrancial, também não considere válida a atuação dessa mesma autoridade policial na defesa da dignidade da pessoa humana, princípio basilar que fundamenta nosso Estado Democrático de Direito.

Aqueles que se posicionam no sentido da autoridade policial não ter atribuição ou legitimidade para verificar se presente no caso concreto o pressu-

do art. 310, do CPP, deixando de analisar se presentes os requisitos da preventiva após a homologação do flagrante, o que ocasiona a manutenção da segregação do flagrado independentemente de presente o periculum libertatis. Exemplo prático desta constatação pode ser vista no HC nº 70038391512, da Primeira Câmara Criminal do TJRS, na qual o paciente ficou preso por nove dias até a concessão de liminar pelo juízo ad quem.

52 Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. § 1o Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

53 LIMA, op. cit., p. 205-206.

54 FERNANDES, op. cit., p. 286.

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posto cautelar do periculum libertatis precisam superar os estigmas do passado e abrir a mente à existência de uma nova polícia, guardiã do Estado Democrático de Direito e de seus valores, princípios e direitos fundamentais. Salvo melhor juízo, a urgência de instantânea reação social à prática do ilícito penal e a neces-sidade de imediata coleta de provas não justificam o afastamento desproporcio-nal de direitos fundamentais, sendo inexorável a necessidade de demonstração do periculum libertatis à imposição pelo Estado de qualquer medida cautelar pessoal que acarrete a segregação da liberdade do acusado.

Ora, se a lei impõe ao magistrado a concessão de liberdade provisória sem fiança ao preso em flagrante quando verificar que não estão presentes os requisitos da prisão preventiva, por que então a autoridade policial deveria cercear a liberdade deste flagrado quando se constatar na fase processual ex-tra judicium que a conduta praticada pelo agente é punida com detenção e de natureza culposa, por exemplo, ou então restar claramente demonstrado que o flagrado possui residência e trabalho fixo?

Aqui cabe destacar os ensinamentos do próprio Scarance, o qual de-fende uma virada do prisma ideológico que norteou a elaboração do Código de Processo Penal, ao sustentar que “se antes a regra devia ser a permanência do acusado em custódia provisória, hoje, em razão da presunção de inocência, a regra deve ser a sua liberdade”55. Complementa referido autor que somente em hipóteses taxativamente previstas e com base em critérios preestabelecidos pelo legislador é que se poderia cercear o direito à liberdade do indivíduo.

Destarte, se a lei expressamente veda a manutenção da prisão cautelar quando da ausência dos pressupostos da prisão preventiva, então não estaria atentando aos princípios da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e da proporcionalidade o ato da autoridade policial que determina o encarceramento do flagrado, sendo cabível, nessa hipótese, a impetração de habeas corpus contra este ato?

A partir de uma análise da matriz constitucional, como justificar que a autoridade policial encaminhe ao presídio um flagrado por homicídio culposo que não tenha condições de arcar com os custos da fiança fixada, se a legislação não autoriza a manutenção preventiva de acusados por crimes culposos? Qual a razão de prender alguém se a lei expressamente não autoriza sua manutenção na prisão?

55 FERNANDES, op. cit., p. 300.

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A incongruência daqueles que defendem a falta de atribuição da autoridade policial em conceder a liberdade provisória nessas hipóteses específicas é flagrante, somente se justificando a partir de uma interpretação positivista estrita, desconectada dos princípios56 e valores primeiros assegurados em nosso sistema normativo constitucional.

Ademais, a própria evolução legislativa ordinária vem sinalizando alterações normativas significativas que buscam compatibilizar as regras de conduta e processuais aos princípios constitucionais. Nesse sentido, a inova-ção trazida pela Lei no 9.099/95 com relação aos crimes de menor potencial ofensivo, em que é autorizado ao Delegado de Polícia liberar o flagrado após a lavratura do termo circunstanciado e da assinatura deste de um compromis-so de comparecer em juízo, poderia ser utilizada de forma analógica aos casos em que é vedada de forma expressa na lei a manutenção cautelar da prisão preventiva.

Não se pode olvidar que é a autoridade policial que está mais próxima dos fatos, que tem a possibilidade de perceber as circunstâncias que envolveram o flagrado com o ilícito, suas condições pessoais, suas motivações e até mesmo sua periculosidade, estando, destarte, habilitado para analisar a existência ou não do periculum libertatis no caso concreto.

Outrossim, na eventualidade da autoridade policial conceder a liberdade provisória em alguma hipótese em que não fosse pertinente, sempre seria possível ao Magistrado, quando do recebimento do auto de prisão em flagrante, ao verificar a ocorrência de erro de subsunção típica da conduta noticiada ou a existência de circunstância a justificar o cerceamento cautelar da liberdade do acusado, determinar de ofício sua recaptura, expedindo um mandado de prisão preventiva para cumprimento incontinenti.

Somente dessa forma estaríamos efetivamente virando o prisma ide-ológico citado por Scarance, estigmatizando preconceitos injustificados e tornando a liberdade efetivamente uma regra, um valor a ser preservado por todos dentro do Estado Democrático de Direito, utilizando as prisões caute-

56 Segundo HUMBERTO ÁVILA in Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. aum. São Paulo:Malheiros Editores, 2004, p. 72, “princípios são normas finalísticas que exigem a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado por meio de comportamentos necessários a essa realização”.

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lares apenas de forma excepcional, o que certamente iria atribuir credibilida-de ao instituto tão vulgarizado na atualidade, pois se houvesse a necessidade de segregação cautelar da liberdade, a sociedade saberia que efetivamente se trata de um caso relevante a exigir a medida extremada.

Considerações Finais

Conforme se buscou afirmar ao longo do presente trabalho, a regulamentação da liberdade provisória em nosso ordenamento jurídico possui uma série de incongruências causadas por reformas pontuais que, por melhor as intenções e motivações que as levaram à aprovação, pecaram por olvidarem dos cuidados com a análise sistemática da matéria.

É certo que essas mesmas alterações legislativas que causaram dicotomias no sistema das medidas cautelares pessoais tiveram por mérito ampliar sobremaneira o espaço à liberdade, redirecionando a balança normativa em direção aos princípios e valores insculpidos em nossa Carta Magna.

Entretanto, de nada adiantará o esforço legislativo em ampliar o espaço da liberdade em nossa sociedade se os paradoxos existentes no sistema normativo impedirem a concretude dos avanços obtidos. Somente por intermédio de um profundo debate acerca da atual normatização do instituto da liberdade provisória, de suas finalidades, da realidade brasileira e da superação de estigmas e preconceitos que circundam o tema é que poderemos dar efetividade ao direito fundamental à liberdade assegurado constitucionalmente.

Urge que consideremos em nossa análise a fragilidade do nosso sistema carcerário na atualidade, a falta de vagas e de suas péssimas condições de manutenção, o que, por si só, justificam a defesa da tese de que a segregação cautelar somente possa ser aplicada aos casos em que haja demonstração efetiva da impossibilidade de convivência do acusado com a sociedade em razão da periculosidade daquele.

Também de fundamental importância o reconhecimento, já na fase processual extra judicium, da posição do investigado como protago-nista principal e sujeito de direitos, devendo a autoridade policial primar, destarte, pela garantia dos direitos fundamentais individuais de todos os

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cidadãos, independentemente de sua posição circunstancial de investiga-do ou indiciado.

A mudança do paradigma, que em nada prejudica a persecução cri-minal, pelo contrário, atribui legitimidade ao agir policial, constituindo uma ‘nova’ autoridade policial, comprometida com um processo penal garantista e eficiente, conforme aos preceitos constitucionais.

Ao se propugnar no presente estudo a ampliação das responsabilidades da autoridade policial, autorizando-lhe a antecipar a análise de requisitos objetivos da prisão preventiva antes de determinar a segregação cautelar do flagrado na prática de uma conduta ilícita, evitando, destarte, o cerceamento temporário e desnecessário de um cidadão, nada mais se pretende do que se exigir daquela autoridade a adoção de cuidados especiais, imparcialidade e comprometimento com os ideais e princípios insculpidos em nossa Constituição Federal, em especial na defesa da dignidade da pessoa humana, fundamento basilar de nosso Estado Democrático de Direito.

Sérgio Eduardo Busato

O autor é Delegado de Polícia Federal desde o ano de 2006, tendo sua atuação voltada ao combate de crimes contra

o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no ano de 2002, atualmente cursando

pós-graduação lato sensu no Curso de Especialização em Direito Penal e Processo Penal promovido pela UNISINOS/

RS e o Curso de Especialização em Ciência Policial e Investigação Criminal 2010-2011 da Coordenação de Altos

Estudos de Segurança Pública - ANP/DPF.

The Systemic Dichotomy of Release on Own Recognizance by Bail in Brazil and the Role of the Police Authority in Defense of Fundamental Right to Freedom

ABSTRACT

This paper is an analysis of the treatment given by the legislator and the native jurisprudence to the institute of personal writs of prevention since the discovery of Brazil until the current days, exposing the dichotomies that arise in regulating the matter caused by legislative options at the

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time influenced by antagonistic political ideologies of those justifying the previous regulation, and sometimes these changes did not observe the necessary precautions to evolve the legislation from an analysis of the system in which matter is inserted, which led to the creation of normative paradoxes that require deep interpretative analysis and ideological positions to overcome it. Given the finding of conflicting rules, since no relationship is maintained between gradualism and adequacy, we questioned whether the police authority's role in addressing the issue release on own recognizance in scope to check if it is possible to anticipate to the extra procedural step the analysis of the requirements of the custody case, the extrication caught in cases of crimes for which legislation expressly seal the granting of probation, regardless of court manifestation, applying an interpretation in accordance with the constitutional principles of liberty, equality and presumption of innocence.

Keywords: Release on own recognizance. Bail. Police Authority. Fundamental Rights.

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Actividade Policial como Ciência1

Germano Marques da SilvaProfessor Catedrático do ISCPSI e

Universidade Católica Portuguesa - Lisboa - Portugal

RESUMO

A presente palestra constitui reflexão sobre a possibilidade de fala acerca de uma ciência policial. A experiência deste autor na Escola Superior de Polícia Portuguesa, na qual foi responsável pela criação do primeiro curriculum, demonstra o princípio de que a atuação policial deve ser pro-cedida em consonância com o direito, a cultura do povo e os princípios éticos. É nesse sentido que se afirma a importância do ensino do Direito, da Filosofia Política e da Ética Policial, bem como a necessidade de que o ensino delas esteja contextualizado a práxis policial e social. Por essa necessidade de conhecimentos em múltiplas áreas, o autor afirma ainda ser cedo para se pensar em autonomia das ciências policiais.

Palavras-chave: A experiência do ensino na Escola Superior de Polícia/ISCPSI portugue-sa. Actividade Policial como Ciência?

Introdução

Tinha ficado com a ideia que deveria falar-vos de Polícia e Direitos Fundamentais, mas fui surpreendido com o programa e tema desta oficina “As ciências policiais no Brasil/Actividade Policial como Ciência”. Tenho muitas dúvidas se a actividade policial é já uma ciência, mas não tenho dúvida alguma de que o Direito é componente essencial da actividade policial, que os Direitos e Liberdades Fundamentais são pressuposto e limite da actuação policial e que a metodologia do ensino e aprendizagem do Direito pelos po-lícias tem características próprias, distintas das demais profissões jurídicas. O

1 Palestra apresentada no II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado durante as atividades da oficina Actividade Policial como Ciência.

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Direito prossegue a Justiça e a Segurança colectivas; a polícia tem de cuidar da segurança de cada cidadão não podendo sacrificar à segurança colectiva os direitos e liberdades individuais. É equilíbrio difícil, sempre problemático, a exigir em cada intervenção policial muita prudência e diligência para cuidar das consequências e evitar os excessos.

É na busca deste equilíbrio, da conciliação prática entre os valores que o Direito prossegue e a sua realização em cada intervenção policial que se desenha uma nova metodologia, a metodologia da intervenção policial, que não é só técnica ou arte, é actuação com grande exigência ética e que alguns autores modernos pretendem constituir o objecto específico de uma nova ciência: a Ciência Policial.

Entendo as especificidades inerentes à formação policial. Fui o res-ponsável há mais de 25 anos pela elaboração do primeiro curriculum da então Escola Superior de Polícia portuguesa, hoje denominada Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna que forma os quadros superiores da Polícia de Segurança Pública em Portugal.

Recordo a minha principal preocupação de então. Para além das disci-plinas técnicas e jurídicas já experimentadas na formação dos polícias, propus que fosse destinada uma carga horária considerável ao ensino dos Direitos e Liberdades Fundamentais, à Filosofia Política, à Cultura Portuguesa e à Éti-ca Policial. Escuso de dizer que nos primeiros tempos fui quase escarnecido por querer formar polícias doutores, em vez de me preocupar essencialmente com a eficácia da sua intervenção. Acabávamos de sair da Revolução de Abril, mas eram muitas ainda as vozes que vinham do passado a reclamar sobretudo a eficácia da intervenção policial. Que era mais importante saber manejar de-vidamente o casse-tête do que conhecer os direitos de cada cidadão, a cultura do povo e os princípios e limitações éticas, diziam alguns Velhos do Restelo! Aquelas propostas foram adoptadas e hoje são aquisição indiscutível nos curri-cula das Escolas Superiores de Polícia portuguesas.

1 A Experiência do Ensino na Escola Superior de Polícia/ISCPSI Portuguesa

Nestes 25 anos de vida do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna português, o curriculum tem sido alterado para acompanhar as novas competências atribuídas à PSP, embora o núcleo essencial das disciplinas leccionadas se mantenha.

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Permitam-me uma referência aparentemente anedótica mas real. A par da inclusão no plano de estudos das quatro disciplinas já referidas, considero hoje que o acto mais significativo em termos de projecção no advir e sucesso da Escola foi a admissão de mulheres nos seus Cursos de Oficiais de Polícia. Já então havia mulheres polícias, mas não mulheres Oficiais de Polícia. A admissão para o primeiro Curso de uma mulher foi uma batalha dura. Muitos defendiam que na Polícia deveria haver um quadro administrativo e um quadro operacional e que só para aquele deveriam ser admitidas mulheres. Os argumentos eram muitos, mas fracos; quase sempre assentes nas exigências de preparação física dos polícias operacionais e na condição física das mulheres. No presente, mesmo os mais conservadores, aplaudem a integração plena. Mérito e exemplo das Senhoras Oficiais formadas pelo ISCPSI.

Com a atribuição de competência à PSP para a investigação criminal, competência de que carecia à data da fundação da Escola, foi necessário alterar o plano de estudo para introduzir disciplinas ligadas à investigação e aprofundar a formação nas áreas do Direito e do Processo Penal e da Política Criminal. A experiência da Escola vem mostrando, e são disso testemunho bastante as dissertações de final de Curso, que os métodos do ensino destas disciplinas, especialmente no processo penal e investigação criminal, não podem ser iguais aos seguidos nas Faculdades. A dogmática, que é a base, tem de ter sempre presente a jurisprudência dominante e há que dar especial enfoque aos modos e limites da intervenção policial, prestando especial cuidado à forma dos actos para que não haja excessos na actuação policial e não se viciem as provas por incorrecção no uso dos meios para a sua obtenção. Esta perspectiva, de a par do conhecimento da norma estudar os meios admissíveis para a intervenção policial nos casos da vida, é uma das características que distinguem o ensino daquelas disciplinas.

O ensino dos Direitos e Liberdades Fundamentais caminha a par da Filosofia Política e da Ética Policial. Verdadeiramente, também agora para além das normas e dos princípios filosóficos que as informam, importa despertar o espírito dos estudantes e formá-los no ideal democrático, nas virtudes e no culto da liberdade que o integram. É um diálogo permanente que não se limita à sala de aula mas passa necessariamente pelo acompanhamento por parte dos docentes e quadros policiais na formação do Corpo de Alunos. É preciso educar os jovens estudantes para as exigências de uma polícia democrática e para educar não basta dar a conhecer, é preciso também e sobretudo exigir a prática das virtudes que se aprendem praticando. Liberdade total, mas

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tolerância zero, porque Polícia é Cultura, é civilização, escrevia Camões nos Lusíadas, e para conhecer o grau de civilização de um povo deve começar-se por «ver a polícia desse povo».

O ensino policial tem de ser um ensino dinâmico, muito atento à pró-pria dinâmica social e política da sociedade porque a Polícia está na sociedade, no seu seio, faz parte dela e deve ser motor na busca do bem comum e espelho da comunidade que serve. A polícia não está ao serviço dos Governos; existe para servir o Estado/Comunidade, os cidadãos. Por isso que a autonomia na acção seja essencial, a justificar o aprofundamento na Escola das disciplinas de Direito Constitucional (fins e funções do Estado) e Ética Policial (deontologia profissional) que exige liberdade com responsabilidade.

2 Actividade Policial como Ciência?

O tempo escoa-se e já lá vão os meus quinze minutos. Não tratei ain-da com profundidade e rigor científico do tema anunciado para esta oficina. Nem vou tratar, desculpem. É que entendo que é cedo ainda para se falar em autonomia das ciências policiais. O oficial de polícia tem de ser quase enciclopédico, tem de ser culto, tantas e tão diversas são as solicitações a que tem de acudir. Tem de estudar Direito, Sociologia, Psicologia, Matemática e Física; tem de dominar línguas, técnicas policiais de prevenção e repressão, tem de conhecer as ciências auxiliares da investigação criminal e tanto mais. Não será certamente a multiplicidade de matérias que constitui o objecto específico de uma nova ciência. Creio é que as várias ciências que compõem o leque de formação necessária aos Oficiais de Polícia, têm de ser tratadas na perspectiva da sua aplicação prática. A teoria importa, mas apenas como preparação para a intervenção policial, para a prática. É neste caminho, do método de ensino e aprendizagem, que me parece que as escolas de formação dos oficiais de polícia devem caminhar. Uma nova ou novas ciências? Talvez, tendo em conta a exigência de métodos próprios. Não é importante.

Conclusão

Vou fechar, concluindo a intervenção, mas sem conclusões sobre o objecto do painel, desta oficina. Faço-o recordando ainda as polémicas que travámos em Portugal vai para 30 anos sobre o perfil ideal do polícia e sobre

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as exigências da sua formação académica em vista à profissionalização. Sobre o perfil ainda andamos à procura… Entendemos então que a formação ideal deveria ser feita de raiz, atenta a complexidade e diversidade das matérias que o Oficial de Polícia tem de dominar, mas não só e nem sobretudo por isso: porque é na aprendizagem constante dos valores da liberdade e do culto da liberdade dos outros que se faz um democrata, que é exigente e tolerante, co-rajoso e humilde, prudente e justo, como deve ser o polícia do nosso tempo. A Escola e o ambiente imposto pelo espírito de corpo e de serviço faz-se por-ventura melhor numa Escola especialmente vocacionada. Assim acreditámos e assim o creio ainda.

Muito obrigado. Saudações deste português que ama o Brasil.

Germano Marques da Silva

Professor Catedrático do ISCPSI e Universidade Católica Portuguesa - Lisboa - Portugal

ABSTRACT

This lecture is a reflection about the possibility to think about a police science. The experience of this writer on the College of Portuguese Police, in which was responsible for the creation of the first curriculum, show the principle that the police works has to be proceeded sync with the law, the culture of the people and the ethical principles. Is in this sense that we say about the importance of teaching about laws, political philosophy and police ethics, and the necessity of his teaching will be in context with the police and social praxis. Because this necessity of knowledge in multiple areas, the writer says to be too early to think about in autonomy of police science.

Keywords: The experience of teaching in the High School of Police / ISCPSI Portuguese. Po-lice activity as Science?

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Ciência Policial: contributos reflexivos epistémicos

Manuel Monteiro Guedes ValenteInstituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna

& Universidade Autônoma de Lisboa - Portugal

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1. A ideia de criar uma nova ciência com um objecto de estudo transversal e interdisciplinar assenta no pensamento da teoria da imprevisibilidade e da incerteza da sociedade mutável1 e da necessidade da actividade policial enraizar-se em uma lógica de afirmação do ser humano como pessoa igual em dignidade2. O mundo da incerteza do pós-guerra fria e o mundo dos «novos» velhos riscos ou perigos exigem à ciência um estudo abrangente da actuação policial de modo a lhe atribuir um objecto não racional matemático, mas racional material de equilíbrio entre o pensar e o fazer, entre o ser e o dever ser.

O incremento e afirmação das ciências policiais como ciência detentora de um objecto complexo foram (e são) dois processos de um longo percurso académico, científico, filosófico, histórico, político e social. No mundo ou na era da estabilidade e da certeza, as ciências tradicionais respondiam a todo e a qualquer fenómeno como se tudo já estivesse programado: ao fenómeno x correspondia a resposta y. A previsibilidade e

1 A sociedade tradicional fracciona-se com o fim da guerra fria e com a queda do muro de Berlim. O «inimigo» cognoscível, identificável e determinado dá lugar ao desconhecido, ao perigo, à incerteza e à fractabilidade societária. Esta realidade desenvolve-se com o desaparecimento do «Estado fronteira» e com a implementação do Estado fronteiras. Incrementam-se os fluxos humanos – societários e criminógenos – complexos e especializados. O território dá lugar aos fluxos políticos, económicos, culturais e, concomitantemente, criminais. Esta realidade promove a sociedade da incerteza e mutável, conceito societário mais abrangente e realístico do que sociedade de risco de Ulrich Beck, que, na nossa opinião, é a consequência da sociedade mutável.

2 Cfr. artigos 1.º e 5.º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) e artigos 1.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), na linha da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), a Convenção Americana dos Direitos do Homem (CADH) e a Convenção da União Africana dos Direitos Humanos (CUADH).

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Ciência Policial: contributos reflexivos e epistémicos

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a certeza reinavam face ao fenómeno cognoscível e identificável. No mundo ou na era da imprevisibilidade e da mutação célere não só a ciência isolada é incapaz de responder ao fenómeno, como também a estanquicidade da ciência desmorona-se. Exige-se um novo pensar, um novo olhar, uma nova acção na afirmação dos direitos humanos.

A sociedade de risco3 e os tempos líquidos4 trazem para cima da mesa a discussão da estanquicidade e da imobilidade do fenómeno ou do facto. A norma jurídica tinha uma vigência secular, a locomoção humana obedecia a padrões de tranquilidade física mecânica, a edificação de um projecto seguia os padrões da física e da matemática fixados como dogmas. Tudo estava programado sob um determinado primado evolutivo incontestado.

Se, hoje, a sociedade mutável, produtora da sociedade de risco, é um trajecto incontrolável e exigente de uma ciência flexível e adequada a respon-der aos fenómenos com a celeridade máxima e com a incerteza do fármaco administrado ao enfermo, essa imagem evolutiva já pertenceu à era de Gali-leu e de Copérnico e à era de Einstein. A imprevisibilidade e a incognoscibi-lidade do fenómeno e do fármaco a administrar são as características da nova era: a era do paneon.

A problematização do status quo e a certeza da imprevisibilidade da vida obrigou a sociedade mutável e do paneon a defender a transversalidade da ciência e a criar e a desenvolver uma nova ciência: as ciências policiais. Ciência que parte do homem para o homem e que, desde o início, colocou no centro do debate dogmático o ser humano5.

2. Esta ciência é o resultado de uma certeza na era da imprevisibili-dade. Montesquieu escrevera que as «acções da polícia são rápidas e elas se exercem sobre coisas que voltam todos os dias» (2005, p. 523). A certeza da

3 Quanto à sociedade de risco e as mutações a si inerentes, BECK, ULRICH. La Sociedad del Riesgo: Hacia una Nueva Modernidad. Barcelona: Paidos Iberica, 2006 e La Sociedad del Riesgo Global. 2. reimpressão da 2. edição, Madrid: Siglo XXI, 2009.

4 Quanto à teoria dos tempos líquidos e à sociedade fragmentada e do medo – a sociedade líquida – BAUMAN, ZYGMUN. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007 e Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

5 A Escola Superior de Polícia, actual Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, foi o primeiro estabelecimento de ensino superior universitário a inserir no seu plano de estudos a unidade curricular de Direitos Fundamentais e de Direitos do Homem. Desde o início, a assumpção das ciências policiais como ciência dos novos mundos e da teoria da falibilidade prendeu-se à ideia do ser humano como referência de estudo e de debate científico.

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Manuel Monteiro Guedes Valente

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actividade permanente e de que não cessa impõe não uma visão positivista da ciência policial, mas uma visão jusnaturalista enganchada em um equilíbrio racionalista. O voltar todos os dias não significa que volte sempre da mesma forma, do mesmo modo ou com a mesma intensidade. Voltar todos os dias impõe um conhecimento e um olhar aperfeiçoado do ser humano: actor prin-cipal da ciência.

A celeridade e a incerteza dos nossos dias exigem uma Polícia com conhecimento, competência e capacidade de acção ao mesmo nível de in-tensidade e de actualidade que os fenómenos da realidade pós-industrial ou tecnológica. Este pensar obriga-nos a defender um pensar da Polícia centrada em valores e axiomas que evitem uma ciência sem princípios e a consequente «autocoisificação» do ser humano6. O alerta de Habermas é crucial para o debate da criação e assumpção das ciências policiais que não pode esquecer alguma vez a teoria falibilista de Popper (2005, p. 310-322).

O demonstrativismo7 ou o racionalismo puro e formal – fundado na teoria da justiça como resultado da legalidade inatacável - geram a valência absoluta do normativismo8 como valor central da vida humana, arreigado em um padrão de construção científica sob dois factores: periculosidade e segu-rança9. Geram uma verdade única e não uma busca de teorias verdadeiras, não um desenvolvimento continuado fomentador de uma «carácter racional e empírico do conhecimento científico» (POPPER, 2005, p. 293 e 311) não demonstrativista nem normativista.

3. Estes dois factores, que à partida parecem ser os motores de acção da Polícia, podem ser antagónicos de uma acção dotada de cientificidade porque se enraízam em uma lógica de persuasão – i. e., de retórica – e não em uma lógica epistémica – i. e., de conhecimento.

6 Quanto à priorização da teoria da «autocoisificação» do homem em detrimento da “autocompreensão culturalmente determinada de um mundo social da vida”, HABERMAS, JÜRGEN. Técnica e Ciência como “Ideologia”. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 73-74.

7 Para uma análise crítica à teoria do demonstrativismo ou do verificacionismo, POPPER, KARL. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2003, p. 293-338.

8 Na defesa de um normativismo como organização da sociedade e como fonte legitimadora e de tutela dos bens jurídico-criminais, JAKOBS, GÜNTHER. Sobre la Normativización de la Dogmática Jurídico-Penal. Madrid: Thomson Civitas, 2003.

9 Nesta linha de pensamento RODRIGUES, ANABELA MIRANDA. “Política Criminal – Novos Desafios, Velhos Rumos”. In: Liber Discipulorum JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 216-220.

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Ciência Policial: contributos reflexivos e epistémicos

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A lógica da persuasão ou da retórica, como excludente de uma ciência policial presa a princípios estruturantes e valorativos da vida em comunidade e do ser humano, está patente na edificação de uma ciência policial de resposta aos perigos e aos medos – ao paneón (pânico esquizofrénico) – e de criação de espaços de elevado nível de segurança. A mistificação do perigo e do medo emerge de uma lógica persuasiva e retórica sobre a comunidade e prossegue em uma construção espacial de segurança cognitiva e fora de uma mínima raciona-lidade construtiva e de equilíbrio evolutivo da humanidade: não interessa se há, de verdade, fenómeno criminal, mas que se pense em sua existência.

Uma ciência policial centrada na teoria da persuasão gera uma actua-ção policial fora do racionalismo mínimo e abre portas ao livre arbítrio do actor policial, assim como permite ao poder político-legislativo um amplo campo de legiferação restritivo dos direitos, liberdades e garantias do cidadão. Esta am-pliação típica dos Estados totalitários e autoritários reflecte-se na construção de uma ciência policial promotora de dogmas securitizantes que geram uma acti-vidade de polícia restritiva de direitos e liberdades fundamentais. Neste cenário, a decisão político-legislativa e operacional da polícia não parte de um pensar científico, mas de um pensar cognitivo persuasivo que nos pode influenciar como a feiticeira Medeia influencia as filhas de Pélias: Medeia persuadiu, com a sua eloquente retórica, as filhas do velho Pélias, rei de Tessália, a matar seu pai, a cortá-lo e colocá-lo a ferver para regressar ao vigor da juventude.

Esta imagem demonstra o perigo da teoria da persuasão ou da retó-rica na construção de uma ciência policial enraizada na lógica da eliminação da periculosidade e da edificação da segurança como factores legitimadores do normativismo jurídico. O decisor político-legislativo, face à inexistência de uma ciência policial subordinada aos princípios ético-jurídico-filosófico-históricos, pode socorrer-se da persuasão para fomentar uma ciência policial de negação da pessoa ou da negação do ser humano e da afirmação da mesma como objecto da «pátria» e como «coisa» da comunidade10.

4. A ciência policial emergente de uma lógica epistémica ou do co-nhecimento encontra os seus paradigmas em um pensar produto do labor do

10 Quanto à despersonalização ou à construção da pessoa como «não-pessoa», JAKOBS, GÜNTHER e MELIÁ, MANUEL CANCIO. Derecho Penal del Enemigo. 2. ed., Madrid: Thomson Civitas, 2006. Quando a uma evolução histórica e assumpção político legislativa pelo poder instaurado, VALENTE, MANUEL MONTEIRO GUEDES. Direito penal do Inimigo e o Terrorismo. O “progresso ao Retrocesso”. São Paulo: Almedina Brasil, LTDA., 2010 e ZAFFARONI, E. RAÚL, O Inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio Janeiro: Revan, 2007.

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conhecimento que se enraíza em passos cognoscíveis e controláveis, em uma colecta de informação, na comprovação da fiabilidade, na análise da relevância e na formulação de inferências logicamente válidas que conduzam a conclusões justificadas racionalmente sem abandonar a ideia da falsicacionismo ou falibili-dade11. Podemos afirmar que esta concepção epistémica da ciência policial im-põe um «procedimento cognoscitivo estruturado e comprovável de maneira intersubjectiva»12 e fundante de uma comunicabilidade interdisciplinar13.

Consideramos que a ciência policial, como toda ciência e não metafísica, nem pseudo-ciência, está sujeita à “confirmabilidade (ou atestabilidade ou corro-boralidade)” que assenta em um aumento real da testabilidade (POPPER, 2003, p. 345). A ciência policial, cujo objecto não é na nossa opinião o ente policial como defendem alguns autores, mas a actividade de polícia dotada de forma e de matéria14, engancha “um conjunto de conhecimentos dotados de certeza por se fundar em relações objetivas confirmadas por métodos de verificação definida, susceptível de levar quantos os cultivam a conclusões ou resultados concordan-tes” (LALANDE apud REALE, 2010, p. 73). Acresce referir que este conjunto de conhecimentos é, na linha de Popper, refutável não obstante ter sido e ser sub-metido ao princípio da testabilidade em cada momento da vida humana15.

A ciência policial deve emergir de um pensar epistémico de modo a promover um conhecimento racional, mas não subordinado ao primado

11 A ciência policial não é arte, não se resume a “um conjunto de regras práticas” cujo objecto é “tornar possível a acção”. A ciência policial é uma verdadeira ciência: é, na nossa opinião, «um sistema de conhecimento, cujo objecto é “possuir a realidade” e pretende promover “saber” e não só “agir”». Cfr. CAETANO, MARCELO. Direito Constitucional – Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 30.

12 TARUFFO, MICHELE, Consideraciones sobre la prueba judicial. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2009, p. 33. Tradução nossa.

13 Toda a ciência tem uma linguagem, uma comunicabilidade, que pode ser fechada, modal, causal e aberta. A ciência policial, como ciência interdisciplinar, está subordinada a uma comunicabilidade aberta mitigada pela modal e causal, implicando um paradigma intersubjectivo comunicacional.

14 Não obstante esta posição e de se aceitar como base da ciência o objecto formal – “a especial maneira com que a matéria é apreciada, vista, considerada” – não podemos olvidar que a ciência ou esta acepção formal do objecto centra-se no “ângulo especial de apreciação de um objecto material”, ou seja, a ciência policial tem como objecto a actividade de polícia que engloba em si um padrão formal – maneira especial de ser observada, ser considerada e vista – e um padrão material – a essência da razão de ser da polícia. Quanto a estes conceitos, REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 8. tir. da 20. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 73-76.

15 Este conjunto de conhecimentos não se encontra em um modelo de ordenação coerente segundo princípios como é a filosofia: “a ciência por excelência”. Quanto à concepção de ciência em uma visão ampla e filosófica, REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 8. tir. da 20. ed., pp. 73-74. Nesta linha de testabilidade ou verificabilidade desses conhecimentos científicos (ao falar dos conhecimentos do direito), KAUFMANN, ARTHUR. Filosofia del Derecho. Bogotá: Universidad Externato de Colombia, 1999, p. 131.

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da legalidade absoluta. A ciência policial como ciência interdisciplinar da comunicabilidade humana e ciência intersubjectiva centrada em um conhe-cimento implica que se centre no estudo da actividade de Polícia. Este estudo deve desenvolver-se com o fim de melhorar aquela actividade e de promover o bem-estar e a qualidade de vida a toda a comunidade através de um méto-do e uma linguagem multidisciplinares, mas dotados de (alguma) autonomia de modo a concretizar convergência e integração científica em ininterrupta continuidade crítica e divergente. Só com este pensar epistémico ou conheci-mento racional orientado pela legalidade e matrizes não absolutas da ciência – conscientes da falibilidade – se pode criar a ciência policial.

5. Esta actividade deve seguir os primados e valores do labor científico sem perder de vista o ser humano. A legitimidade da acção policial, que deve ser cientificada, centra o acto decisório em uma lógica normativa e em uma lógica sociológica.

A lógica normativa tem a sua manifestação máxima na Constituição – v. g., art. 144.º da CRFB e no art. 272.º da CRP – e nas leis orgânicas e de funcionamento e nos regulamentos de cada Polícia. A ciência policial, cujo objecto é em sentido amplo a actividade de polícia, tem de se subordinar à legitimidade de lógica normativa. Contudo, a ciência policial não pode esgotar o seu estudo nesta lógica. Devemos trazer para o cerne da ciência policial a legitimidade de lógica sociológica que dá razão à normativa. Se o povo não aceitar nem encontrar na ciência policial um objecto útil e necessário à qualidade de vida e bem-estar da própria comunidade em vivência harmoniosa, será uma ciência condenada ao fracasso. A Constituição (Brasil e Portugal) subordina toda a legitimidade normativa à vontade do povo e à dignidade da pessoa humana, ou seja, à legitimidade sociológica. A ciência policial deve desenvolver o estudo do seu objecto dentro dos paradigmas da legitimidade normativa e sociológica. Só com este olhar podemos fazer nascer, crescer e afirmar uma ciência policial que estuda a actividade de polícia fundada em uma única theos: os direitos humanos.

Toda a ciência está ao serviço do cidadão. A ciência policial está, e só assim a admitimos como tal, ao serviço de todos os cidadãos, de todos sem qualquer excepção: seja rico seja pobre, seja acusado seja inocente, seja criança seja adulto, seja homem seja mulher. A ciência policial deve, em um Estado democrático e de direito, ser a primeira ciência a materializar a construção da cláusula de não discriminação consagrada na Declaração Universal dos

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Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na Convenção Americana dos Direitos do Homem (Pacto de São José da Costa Rica).

6. Esta ciência jurídica, sociológica, filosófica, histórica e política – inter-multidisciplinar – é uma ciência que surge para ajudar a construir um paradigma de legitimidade da acção humana em geral e da acção estatal em especial. Só assim podemos falar de uma validade, de uma vigência e de uma efectividade da ciência ao serviço da humanidade: proteger e garantir os direitos de todos os cidadãos contra quaisquer agressões e proteger o agente de qualquer infracção contra a vingança privada e pública. Podemos, desde já, afirmar que a ciência policial é essencial para a realização do ser humano por dotar a Polícia de um padrão de actuação científico racional epistémico centrado em um equilíbrio construtivo.

Este equilíbrio alcança-se se a ciência policial desenvolver o seu estudo dentro dos elementos da construtividade jurídica – legitimidade, validade, vigência e efectividade - e dos elementos filosóficos, históricos e políticos – concepção cultural do povo, concepção dogmática do ser humano e concepção dogmática de sistema de Estado.

É, neste sentido, que defendemos a inserção da ciência policial, capaz de responder à imprevisibilidade e à incerteza dos nossos dias e à diminuição da teoria do paneón edificada sob os pilares da periculosidade e da segurança, no mundo científico que impõe aos cientistas um pensar célere sem diminuição ou lesão do núcleo central dos direitos e liberdades fundamentais do ser humano.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

Director do Centro de Investigação e Professor do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna

Professor Convidado da Universidade Autónoma de Lisboa

Referências

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BAUMAN, Zygmun. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro:

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Ciência Policial: contributos reflexivos e epistémicos

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Revista Brasileira de Ciências Policiais

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Reflexiones

Miguel Antonio Gómez PadillaGeneral (r)

Bogotá - Colombia

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PREFACIO

Aunque encontramos algunos conceptos con los cuales no comulgamos (v. gr. “cultura poli-cial”) las reflexiones están cimentadas en cuestiones de mucho valor científico, sociológico y pedagógico, acerca de muchas de las cuales hemos razonado solidariamente y han sido moti-vo de acuerdo como preámbulo de los planteamientos que desde vieja data he sostenido para desarrollar una filosofía policíaca y la real iniciación del conocimiento en policía, a partir de su ciencia y la teoría jurídica a que ella ha dado lugar y tiene ya una fundamentación como es la que la que nos dejaron los destacados policiolgos colombianos Miguel Lleras Pizarro y Roberto Pi-neda Castillo, de cuyos escritos y tesis seguiremos bebiendo como hontanar de prístina doctrina y cenital contenido.Ahora para no dejar inadvertido su abandono, en estas consideraciones, de su estilo epistolar, sin embargo, mantiene la tendencia al sarcasmo que da cierto color propio a su retórica.Permita Dios que sus lectores atiendan sus aciertos y, en consenso, busquemos a todo trance la verdadera profesionalización policiaca, como lo esperamos, no solo los colombianos, sino el mundo.Gracias por esta otra oportunidad de referirme a sus escritos, y :”Deo omnis gloria”.

BG. FABIO ARTURO LONDOÑO CÁRDENAS

Administrador Policial

Reflexiones 1 - professionalización policial

Desde el 5 de noviembre de 1891, cuando el comisario francés Juan María Marcelino Gilbert, presentó a la sociedad bogotana a los primeros po-licías nacionales, se inició el proceso de profesionalización, porque ella le per-mite a la Policía afianzar su identidad e individualización; ellas son las que la hacen única, diferente y singular ante otras profesiones y oficios paralelos.

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Profesionalizar no significa otorgar títulos y diplomas, sino sociali-zar la cultura policial. Un profesional en Policía, aunque parece una perogru-llada, es un docto de la ciencia policial. ¿Realmente lo somos?

Existe una ciencia autónoma llamada Ciencia de Policía, que ha evolucionado a partir de la experiencia y la investigación científica, que está integrada por: La filosofía, el derecho, la sociología, la antropología y la psi-cología policiales, entre otras.

Es evidente que la ciencia policial requiere auxiliarse de otros cam-pos del conocimiento. El riesgo está, y, es lo que al parecer sucede, en que, lo aparentemente complementario, se convierta en principal. De allí los errores que desdibujan la imagen del funcionario policial.

Me aventuro a definir la ciencia policial como “el estudio sistemático, ordenado y crítico del ente policía en su contexto histórico cultural, sociológi-co, político, económico y filosófico en su dimensión universal y local.

Existen unos organismos encargados de aplicar este saber universal, integrados por el ENTE POLICÍA. En Colombia, y, tristemente entre los policías, hay una tendencia a confundirle con el cuerpo- institución, cuando éste es solamente uno de sus componentes. La confusión se da por crasa ig-norancia del Derecho de Policía y por desconocer que el vocablo policía es multívoco y polisémico, con mayor razón cuando no se saben las variaciones del vocablo y sus interpretaciones a través del tiempo.

Desde la Grecia, en la tiranía, con los “guardias de corps” y los espías; y en la democracia, con los inspectores de mercados, del trigo, de los puertos, de pesas y medidas, de los guardianes de mujeres no solo de las heteras y flautistas; y los inspectores urbanos. ¡Cómo nos enriquece leer a Platón en las Leyes y Aristóteles en la Política!

Y de Roma con los “curatores urbi”, los “curatores viarium” (los ante-cesores de nuestra policía de carreteras), los“speculatoris”, los “frumentariis”, los agentes “in rebus”, los ediles, hasta Francia en donde se extendió el tér-mino policía, allá por 1776 y como lo entendemos hoy; es decir, un cuerpo independiente de lo militar; de estructura y naturaleza civil; encargada fun-damentalmente de la convivencia democrática y no de la defensa del estado. Y ¡qué no decir! de la manera técnica como se define en el artículo 218 de nuestra carta vigente.

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Sentirse orgulloso de ser policía es estar comprometido, sin reser-va, con el saber profesional, con la filosofía y la doctrina policiales y estar ausente de toda contaminación de doctrinas y teorías no policiales; es decir, estar en capacidad de diferenciar, qué lo hace auténtico y qué lo confunde con otras laderas.

Corresponde al sistema docente policial a través de sus escuelas inte-riorizar en los futuros policías la cultura policial y transmitirle el saber de su Ciencia en su contexto universal y local.

Es mediante el currículo, como formamos profesionales en Policía. Afirma Emile Durkheim que “la educación es la acción ejercida por las gene-raciones adultas sobre las que aún no se encuentran preparadas para la vida social (nuevos policías); y tiene por objeto crear y desarrollar en las personas una serie de estados físicos, intelectuales y morales, reclamados por la sociedad política en su conjunto y por el medio particular en que se desenvuelve”(el cuerpo institución policía).

Posee la institución policial un estatuto orgánico que la define y determina su objeto y fines, el cual obedece a un ordenamiento superior, la Constitución Nacional, norma rectora en la cual se consagran los derechos, deberes y garantías y los mecanismos para protegerlos, como objeto del dere-cho de policía que debemos conocer con suficiencia.

Esta carta contiene “por un lado la definición, la estructura y el obje-tivo, por otro lado, las reglas que ese grupo debe obedecer”. Pero como cuer-po social, “está integrado por personas, consideradas no solo por su número, sino también según su lugar en la jerarquía y su especialización en la división de tareas”. “Contiene de igual modo un aparato material, de todo lo que se vale para su consumo y producción”

Pero también, ese estatuto debe corresponder a los usos y costumbres histórico-sociales que explican el porqué de esta o aquella estructura o de una y otra dependencia. Obviamente, está integrada por personas que desempe-ñan roles o papeles al interior de la misma y poseen jerarquías en una técni-ca y juiciosa división del trabajo, con la manifestación expresa y aceptación voluntaria del ingreso y permanencia, según sus principios filosóficos y que vienen a constituir las características que nos diferencian de otras organiza-ciones similares.

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Los anteriores aspectos son necesarios e importantes; pero el entra-mado que le da la cohesión, la caracterizan y la hacen única y singular, está determinado por el lenguaje, los símbolos, los ceremoniales, los rituales, los mitos, las leyendas, los relatos, las virtudes, los valores, las normas, las actitu-des y los sentimientos.

“Las organizaciones son algo más que estructuras horizontales o ver-ticales, relaciones de autoridad, etc. ,como los individuos pueden ser rígidas o flexibles, poco amistosas o serviciales, innovadoras o conservadoras, pero una y otra tienen una atmósfera y carácter especiales que van mas allá de los simples rasgos estructurales” (ROBBINS, 1991).

Y qué no decir de la filosofía y doctrina policiales, ese sustento espi-ritual que se ha ido hilvanando paso a paso, que le da vida, esencia y hace que lo mítico y lo simbólico logren un equilibrio con lo real.

He aquí el verdadero sentido de la cultura policial, esa interrelación de las estructuras materiales y de la esencia y sustancia que le dan vida y vigor al organismo policial.

Reflexiones 2 – cultura policial

Continúo con nuestro tema anterior sobre dicha cultura policial. Aspiro a inquietarle con estos apuntamientos, que sólo insinúan e invitan a escrutar sobre tema de grato sabor para quienes han hecho de lo policial, un vivir y un realizarse como personas humanas.

Busco recrear una historia que explique el pasado y nos indique en qué sentido se mueve la Institución, sin ignorar sus raíces, su génesis para superar los aciertos y evitar o corregir los errores. “Y no que en los afanes de renovar se aniquile lo de antes, se olvide lo sustantivo, pues lo sustantivo fue de ayer, es de hoy y lo será de mañana.”(E. Simancas, F. Otero. Universidad y cambio).

Las actitudes que desconocen el pasado son nefastas para la evolu-ción cultural del Cuerpo Institución Policial y la obligan a moverse de tumbo en tumbo al vaivén de la moda; generan inestabilidad y crean desconcierto entre sus integrantes.

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Una sociedad sin conciencia histórica - sin memoria - es un haci-namiento de soledades que solo se disputan un espacio, por cuanto no les pertenece tiempo común alguno (GIANINI, 2001).

El tiempo y el olvido producen disgregación de lo sucedido; de allí lo indispensable de la memoria. La epopeya, el ditirambo, la historia, la tra-gedia, el cuento, las leyendas, el lema, la divisa, el mito, la tradición oral, re-cuerdan y evocan el pasado.

Queremos hacer, no simplemente fenomenología sino historiográ-fia, y profundizar en el análisis cultural que dio origen al hecho histórico y no aceptar que tales eventos se dan “per se”.

¿Por qué el Presidente Carlos Holguín Mallaríno decide contratar una misión policial con el gobierno de Francia y no con el de España, Inglaterra, Italia o los Estados Unidos de Norteamérica?; y ¿por qué el oficial que llega es precisamente de la policía de París y no de Marsella o de Lyon? Son interrogan-tes que debemos despejar. ¿Qué no hay espacio en el currículo para ello?

Se impone ahora que me refiera al término cultura. Cultura del latín “cultura” y este a su vez de “colere” (habitar, laborar la tierra, proteger, honrar con adoración).

Recordemos que “honrar con adoración” se convirtió en culto; habi-tar un lugar, en colono; laborar la tierra, en cultivar; y, en cultura todo lo que el hombre crea y recrea.

De las múltiples definiciones que sobre cultura se expresan, proven-gan ellas del ámbito de la sociología, la antropología, la psicología o el psicoa-nálisis, intentaré hacer una síntesis, seguro de no agotar el tema; recordemos que Karl Cluckhoholm (1952) hizo un inventario de 169 definiciones y solo en el idioma inglés.

Afirmemos, pues, que cultura es todo aquello que el hombre crea y recrea pero igualmente es el conjunto de rasgos distintivos, espirituales y materiales, intelectuales y afectivos, que caracterizan a toda una sociedad o a un grupo social.

Digamos, también, que es la manera que cada cual tiene para dar res-puesta a los desafíos de la existencia; o “todo saber y poder adquirido por los

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hombres para dominar las fuerzas de la naturaleza”; y por otra, todas las or-ganizaciones necesarias para fijar las relaciones entre ellas; y, por último, es el conjunto de procesos históricos que tienden a la consolidación de sistemas de vida y de pensamiento.

Para Kroeber y Cluckhoholm: “La cultura consiste en pautas de comportamiento, explicitas o implícitas, adquiridas y transmitidas mediante símbolos y constituye el patrimonio singulador de los grupos humanos, in-cluida su plasmación en objetos, el núcleo esencial de la cultura son las ideas tradicionales,( es decir, históricamente generadas y seleccionadas) y, espe-cialmente los valores vinculados a ellas; los sistemas de culturas, pueden ser considerados ,por una parte, como productos de la acción, y por otra, como elementos condicionantes de la acción futura”.

Y, bien, opinemos ahora sobre la acepción Policía. Nos referiremos aquí a la institución social Cuerpo de Policía, como una agrupación humana organizada para realizar unos objetivos y fines, que posee jerarquías en sus funcionarios y división del trabajo, con lenguaje, símbolos, rituales, virtudes, valores, actitudes y sentimientos propios y a la cual se acogen voluntaria-mente sus integrantes y que no puede funcionar, si no existe consenso profesional entre sus miembros.

Aventurémonos a una definición sobre cultura policial, escrudiñan-do toda una gama de manifestaciones culturales que van apareciendo en la medida en que la sociedad en la cual está inmersa se modifica y se transforma. Es decir, que el cuerpo policial, se constituye y se reconstruye, de generación en generación, mediante la interrelación de sus contemporáneos, pero tam-bién con sus antecesores y sucesores. Por tanto, que ella es el fruto de un pro-ceso evolutivo continuo y no de una creación espontánea.

Desde cuando Carlos Holguín Mallarino, en 1891, crea la policía Nacio-nal hasta el hoy que nos ocupa, la Institución ha recorrido caminos ascendentes y de progreso constante, indudablemente con algunos serios altibajos.

La influencia francesa se aprecia en los reglamentos que para esa época se emitieron con una concepción eminentemente civilista. El deambular del Ministerio de Gobierno al de Guerra y de éste a aquel, indudablemente han impedido que hoy posea un perfil definido y permanente. Amén del influjo constante de la moda, que la hace a ratos desdibujar su origen y su destino.

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Es en las escuelas en donde el saber policial se acrisola y se decanta y así lo entendieron quienes en 1910 organizaron la escuela de preparación y selección de personal (Bogotá) con un pensum modesto. El indicado para la época: Instrucción militar, formación física, reglamentos, derecho civil, mo-ral, religión y la enseñanza del directorio telefónico de Bogotá.

El gran hito se marca con la fundación de la Escuela de Cadetes de Policía General Francisco de Paula Santander (1940-¡manes del cambio! Seccional de cadetes). instituto en el cual se forma y capacita la oficialidad policial y en donde, en su momento, recibieron actualización los oficiales departamentales, municipales, detectives y agentes.

Surge, igualmente, con identidad propia la Escuela Nacional de sub-oficiales Gonzalo Jiménez de Quesada (¡manes del cambio! Seccional Gon-zalo Jiménez de Quesada).

Sin proponérselo y obligados por las circunstancias van surgiendo las escuelas de formación de agentes y ahora de patrulleros, ubicadas en los diferentes paisajes culturales de nuestro país, para respetar las idiosincrasias y para evitar, a veces sin éxito, desarraigar a los policiales.

No olvidemos las escuelas Marceliano Vélez de Bello; Próspero Pin-zón de Cundinamarca y Pedro de Heredia de Cartagena, intentos importan-tes en el proceso de profesionalización.

Y, por qué no recordar con afecto a la División Docente o Dirección Docente, que dirigió, impulsó y desarrolló los procesos de formación, capa-citación, especialización, germen de la actual Dirección nacional de escuelas. y a quien se le dio muerte súbita y sepultura (¡manes del cambio!) en un silencio de pobres.

A través del currículo, podemos apreciar toda una constante histó-rica de evolución. Desde los balbucientes programas de Gilibert y los de 1910 a los progresistas de años posteriores, hasta los estructurados de hoy, que otorgan títulos de pregrado y postgrado. ¿En ciencia policial?

¡Qué rico filón nos ofrecen las publicaciones policiales: circulares, directivas, manuales, reglamentos, textos y la biblioteca policial con sus varia-dos y escasos volúmenes. Las tesis de grados, las monografías, y qué no decir de las revistas: de la Policía, de la Escuela de Cadetes y los boletines de los

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demás institutos, sin olvidar la revista Cultura y Servicio de la Escuela Carlos Holguín, ya desaparecida, sin razones lógicas.

Es imperioso referirnos a la Revista de Criminalidad y a su comple-mento el Boletín Criminológico de consultas obligatorias en la academia, en la investigación y en el análisis de la problemática socio-delincuencial y para las propuestas de una sana y científica política criminal. Actualmente se están llenando los requisitos pertinentes para su indexación.

Las misiones policiales venidas a Colombia, enriquecieron nuestro acervo de conocimientos. Pero igualmente, las misiones colombianas han transferido nuestra cultura policial a otras latitudes, pero también hemos educado en nuestros institutos a policiales de otros países.

Referencia especial a las bandas de músicos departamentales y a la Sinfónica Policial que han brindado esparcimiento y solaz en parques y pla-zoletas, que enseñaron y desarrollaron en los educandos policiales sentidos musicales y estéticos.

Los concursos sobre cuento, poesía y música policial nos han llevado a descubrir en los uniformados sensibilidades artísticas.

He de reseñar con especial simpatía la presencia femenina en todas las actividades y quehaceres. Ellas trajeron nuevas expresiones y actitudes que enriquecieron el panorama.

Las diferentes especialidades introducen su argot específico y parti-cular.

Es a través del Derecho de Policía como la filosofía y doctrina poli-cial florece en un proceso sistemático, analítico y científico. Roberto Pineda Castillo, Miguel Lleras Pizarro y Álvaro Castaño Castillo, entre los no uni-formados, fortalecidos con las doctas y pedagógicas enseñanzas de Bernardo Camacho Leyva, Luis Valderrama Núñez, Víctor Alberto Delgado Mallarino y Fabio Arturo Londoño Cárdenas, entre otros, nos han trazado el norte que jamás debe la institución olvidar, si no quiere ser sustituida o disminuida.

Permítame esquematizar, mediante una división arbitraria, en dos grandes periodos, la historia de la cultura policial.

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El primero incipiente o nuevo. Con una etapa temprana, muy ligada al “Sereno”, a las “rondas” del comercio y a la calle real de Santa Fe y a los gri-tos “son las tres de la mañana y no hay novedad”, y, “garbosos y apuestos con la ruana, el poncho, las alpargatas, las sandalias y las abarcas”.

Una época de afianzamiento con el comisario francés Juan Marce-lino Gilibert, “quien incorpora un selecto grupo de jóvenes distinguidos y de buena ilustración (sabían leer y escribir), con pautas de conducta, moral, ética y disciplina y con uniformes de impecable corte Francés”, al decir de un cronista de la época. Etapa que se consolida con la creación de la “Escuela de preparación y selección de agentes y detectives”.

Y una de claro-oscuro horizonte, de crisis e incertidumbres o como afirmara el teniente coronel (Honorario) Bernardo Echeverri Ossa, de “tur-bulencias”.

El período de la edad de oro, aparece con las escuelas de: Cadetes General Santander, la Jiménez de Quesada y de Carabineros.

Y surgen: los himnos, los escudos, las banderas y los estandartes.

Nace el Código Nacional de Policía y el instituto de enseñanza supe-rior policial. La policía adquiere estatus constitucional con la carta política de 1991 y recupera la función de investigación criminal que le fuera arreba-tada.

Se incorpora tecnología de punta en todos los servicios.

Sanchos y Quijotes, han creado y recreado golpe a golpe esta cultura. A ratos se piensa que la policía de hoy, es fruto de una concepción espontánea y no de un proceso evolutivo que se ha ido perfeccionando y decantando y en el cual nada ha sido gratuito, todo debió ser conquistado.

Fue un pasear por cientos y tantos años de civilización y luchas. Enfaticemos que “las organizaciones tienen una finalidad, objetivos de su-pervivencia; pasan por ciclos de vida y enfrentan problemas de crecimien-to. Tienen una personalidad, un carácter y se les considera como micro so-ciedades que tienen sus procesos de socialización, sus normas y su propia historia”(MOREA LUCAS, 1997).

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Es en las escuelas policiales donde se crea la cultura policial hasta con los estereotipos, prejuicios y exclusiones; si ellas existieran solo para transmi-tir conocimientos de cómo actuar en el lugar de los hechos, o cómo planear un turno de vigilancia o cómo recaudar pruebas, ellas sobrarían; cualquier universidad está en capacidad de hacerlo y, de pronto, con mejores resulta-dos. Es en las escuelas donde hombres y mujeres aprenden el recto vivir poli-cial y desarrollan el sentimiento de pertenencia.

Afirma Armando Cuvillier que. “una institución representa un con-junto enteramente instituido de actos o de ideas que los individuos encuen-tran ante ellos y cuya transmisión se hace en general por vía de la educación y que con frecuencia es impuesto”

Se puede afirmar también que lo aprendido en las escuelas se enrique-ce en los lugares de interrelación: clubes, casinos, estaciones, la calle, etc.

Existen ciertos comportamientos explícitos e implícitos, que de al-guna manera intentan distorsionar, y de hecho lo logran, el discurso institu-cional.Es esta una verdadera subcultura, al decir, de la antropología y la socio-logía, que las analiza como formas opuestas a la cultura dominante y nacen de un punto de ruptura con formas de vida, de ideologías y organización so-cial; no estamos refiriéndonos a la acuñada por el “nacional socialismo” sino a las interpretaciones dadas por Dick Hebdige a los punk, mod,boys,rockers, emos, tribus urbanas, Maras , etc . Es obvio, que en el cuerpo institución, tienen otras formas de expresarse: el anónimo, el chisme, los apodos, las ex-presiones peyorativas y desobligantes, la corrupción en sus variadas manifes-taciones, la interpretación equivocada del “espíritu de cuerpo” y los gestos y actitudes excluyentes, entre otras conductas larvadas.

Reflexiones 3 – el objetivo de las escuelas

¿Cuál es el fin de las escuelas policiales, llámense de agentes, patru-lleros, suboficiales nivel ejecutivo o de oficiales? La teleología pedagógica viene en nuestra ayuda y nos dice que no es otro diferente a FORMAR PRO-FESIONALES EN POLICÍA. Así, con mayúsculas.

Todas nuestras escuelas deben ser unas autenticas comunidades educativas. En sus claustros no pueden existir personas, actividades, lugares, fenómenos o cosas que no estén siempre estimulando un desarrollo integral

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permanente. Todo su tiempo y sus espacios viven, existen solamente para un ambiente pedagógico continuo.

Hay que percibir el currículo, no como un escueto instrumento para transferir conocimientos en tecnología y ciencia policial, sino como una ver-dadera herramienta pedagógica para la formación integral del hombre poli-cía colombiano.

Hombres y mujeres que, a partir del proceso educativo se compro-metan a ser ciudadanos en uniforme para quienes la aceptación y aprecio de los habitantes se apoye en la observancia constante de los postulados consti-tucionales y legales y el extremo respeto a los derechos y garantías; y no que se fundamente en el uso y el abuso desafortunado de la fuerza y la intimida-ción. Hay que asegurarle al común de nuestras gentes el goce pleno de sus libertades y derechos.

El cuerpo- institución policía ha proclamado como sus valores rec-tores: Honestidad, respeto, justicia, vocación de servicio, lealtad, tolerancia y responsabilidad; y, en su escudo “Dios y Patria”; principios, virtudes y valores definidos en la Resolución nº 01750 de 22.03.06 que, en algunos, suenan realmente a palabras hueras y extrañas; no son un compromiso de vida. Todo indica que es un simple discurso que no ha llegado aún al alma de todos los policiales.

Evidentemente, se trata de virtudes y valores vitales y trascendentes, pero no siempre tienen lecturas iguales; decía Montaigne: “las verdades de este lado de los Pirineos, son errores al otro lado.”

“Para que algo sea considerado un valor es preciso que las personas de una comunidad reconozcan en él beneficios comunes, capaces de darles significado coherente y continuo, de manera que puedan integrarlos en sus vidas” (NIELSEN NETO, 1992). He aquí uno de los grandes compromisos de las escuelas policiales.

Todo modelo educativo, desde el jardín de párvulos hasta el de estu-dios superiores policiales, deben cumplir unos objetivos educacionales para lograr la educación integral, expresión tan manoseada a ratos, que me aven-turo a condensar en estos tres temas a saber:

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Formar a la persona humana y con énfasis;•

al ciudadano para la vida en democracia;y,•

para la vida productiva, en nuestro caso, al funcionario público policial•

A la persona humana hay que formarla en su tríada de naturaleza: biológica, psicológica y social. Fuertes físicamente para enfrentarse y so-portar una función exigente y en climas y territorios agrestes; pero tam-bién, recios para oponerse al embate de las tentaciones que los delincuentes ponen en su camino. Si bien es cierto, que los valores y virtudes se aquistan en el hogar y en el medio educativo; ellos se burilan y decantan en el pro-ceso educativo policial.

El miembro del Cuerpo- institución policía es un ciudadano en uni-forme, para quien las exigencias de la vida en comunidad deben tener el más altísimo grado de sublimidad: el debe ser un prototipo en todo sentido para su comunidad.

Si lográramos interiorizar, por lo menos, los dos primeros en el poli-cial, de tal manera que sea un modelo de ser humano y de ciudadano, el tercer objetivo educacional sería de fácil alcance. ¿Estamos idealizando demasiado a alguien de materia tan frágil?

Se piensa que como a la institución se llega ya adulto y que el pro-ceso de selección es muy riguroso y científico, no es necesario sino transmi-tir conocimientos, habilidades y destrezas. Grave error, pues se entregan a la sociedad profesionales con amplios conocimientos en áreas del saber, pero débiles en contenidos afectivos, normativos , valorativos y teleológicos, algo muy común en el sistema educativo colombiano.

Puedo afirmar, sin lugar a equivocarme, que la mayor preocupación institucional está centrada en alcanzar el tercer objetivo, títulos y más títulos.

El profesional Policial, ha de ser un hombre o una mujer curtidos en su función, en la constante capacitación humanística y en la ciencia policial. La calle los ayuda y los hace duchos y avezados. ¿Se puede afirmar que quien termina el pregrado policial sea un verdadero administrador de lo policial? Sí, a veces, es triste afirmarlo, en los llamados oficiales superiores, muchos no le hacen honor a esta denominación.

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El arte de ser un buen policía se aprende a horcajadas en órdenes, reglamentos, disciplina, doctrinas, motivos de policía, el contacto diario con los habitantes y los sabios consejos de los maestros esos que legaron la honra policial y el ejemplo permanente de los superiores.

Las escuelas no son un espacio neutral, la sociología de la educación nos habla de situaciones aparentemente paradójicas del aparato educativo: reproducción y resistencia; la primera, cuando la educación reproduce los contenidos de la cultura social, y resistencia en creación de nuevos valores y contenidos culturales.

La evolución pedagógica progresista, ha logrado eliminar de los cen-tros académicos policiales, prácticas nocivas en los procesos de formación, pero aún falta erradicar todas aquellas actitudes que humillan, vejan, opri-men y limitan el desarrollo de una personalidad fuerte e invencible ante el crimen y la corrupción. Es frecuente confundir disciplinados con débiles y alza-fuelles con creativos y participativos. “El manejo inconciente de ciertas conductas al parecer no perniciosas, pero al ser prácticas reiteradas, distor-sionan el discurso formal y envían mensajes errados como: “quien tiene auto-ridad, aun sea momentánea, puede abusar de ella”, “autoridad que no abusa, se desprestigia”; “quien posee la fuerza tiene el poder”; “si no te ven puedes hacer lo que quieras”, “lo que interesa es que no te sorprendan”; “si tienes las barras y las jinetas, úsalas para que no te crean tonto o débil”; “cuadrarse” no es robar y así no te tildaran de bobo”; “tu tienes el bastón, úsalo no importa como”; “da informes corrompidos, te creerán más”. (GÓMEZ PADILLA, 2003). Los ritos de iniciación para recibir a los novatos (no reclutas, ni “pri-míparos”), son otros ejemplos de costumbres perversas.

Reflexión 4. el currículo

Lo que antes se llamaba “planes de estudios o programas educativos”, los conocemos hoy como “currículo”, quizá con una concepción más amplia.

El llamado Sistema Educativo Policial, define el currículo como: “el conjunto de políticas(sic), programas, metodologías, procesos, procedi-mientos y recursos, que contribuyen a la formación integral de un policía competente y un ciudadano ejemplar”(Doctrina educativa para el docente policial)

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También podemos definirlo como: “el conjunto de objetivos, conte-nidos, métodos pedagógicos y criterios de evaluación de cada uno de los ni-veles, etapas, ciclos, grados y modalidades del sistema educativo que orientan la práctica docente.”

Se duele el Ministerio de Educación que “el culto a la planificación de los objetivos, contenidos y demás elementos del currículo, nos han llevado a olvidar que lo importante no es lo que se dice que se hace en unas planillas cuidadosamente elaboradas, sino lo que se transmite a partir de los currículos oculto y real”( Ministerio de Educación-Revolución Educativa-Colombia Aprende 2004).¿ No será esta la práctica cotidiana en nuestro medio?

Se impone, entonces, analizar la dimensión oculta del currículo en sus tres tipos: planificado (formal), no planificado (oculto) y el real (el que verdaderamente se realiza).El primero explícito, manifiesto y escrito, que res-ponde a las exigencias para obtener un registro calificado, en lo que somos expertos y con el cual nos engañamos con relativa frecuencia.

El oculto, latente o implícito, es todo aquello que se aprende en las escuelas policiales y que no están en los libros de textos, pero si en los men-sajes de los más antiguos: alféreces, oficiales de planta, profesores y de los mismos compañeros. Él “per se” no es positivo ni negativo, pero envía con asiduidad mensajes errados que afectan notoriamente la erradamente llama-da “cultura de la legalidad.” Los ejemplos a montones, ya nos referimos a al-gunos de ellos, en una reflexión anterior; pero no me resisto a relatar éste, por lo sutil del mismo: el alférez a la cadete: señorita, parece que hoy no se peinó, mire como está de desgreñada;- mi alférez usted está un poco errado;- no me contradiga, pero no se preocupe, no la voy a reportar, pero debe entregarme mañana en una cuartilla, un ensayo sobre “el amor a primera vista.”

Y, el real, es, el currículo en uso, el que se enseña después de descon-tar los ensayos, las interminables arengas de aquellos superiores en afán de oradores, etc.etc. etc.

El currículo policial tiene una guía, un norte del cual no se puede apartar en ninguno de sus ciclos de pregrado y postgrado. Esa dirección, ese camino está determinado por el articulo 218 de nuestra Carta Política.

El currículo se instrumentaliza en el proceso de enseñanza-aprendi-zaje donde discentes y docentes interactúan experiencias y conocimientos

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y se logran cambios de conductas. Es conveniente recordar que cuando hay memorización pura se obtiene información; cuando existe memorización con comprensión hay conocimiento parcial y cuando se da comprensión au-tónoma de temas y contenidos hay saber, este es el verdadero aprendizaje y así podremos hablar de auténticas competencias profesionales.

Reflexión 5. A guisa de conclusiones.

Hay un dilema que debemos resolver los policías: ¿desempeñamos una ocupación o una profesión? ¿O somos unos semiprofesionales, pues nuestras actividades son subordinadas y carentes de autonomía? (Weber)

P. W. Musgrave afirma que las profesiones autenticas poseen una se-rie de rasgos, veamos:

El tipo de conocimientos que se requieren para ejercerla;•

Un • alto nivel de exigencias académicas,

El modo de controlar el ingreso en la profesión;•

La formulación de un código deontológico que rija la conducta • profesional;

La libertad que ha de tener el profesional para ejercer sin interfe-• rencias de los legos en la materia.

Podemos afirmar también que toda profesión posee unos atributos específicos, a saber.

Estar precedida por un largo periodo de formación•

Sus miembros deben privilegiar la función al lucro•

Tener un riguroso código deontológico•

Aceptación social y jurídica.•

Al existir dos escalones de funcionarios, oficiales, suboficiales, agen-tes y nivel ejecutivo, con ciclos diferentes de formación y niveles de exigen-cias académicas dispares; por vía de discusión, aparentemente estamos ante profesionales, semiprofesionales y simples trabajadores.

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¿Puede una institución así integrada, decir que se es profesional, cuando la gran masa no lo es, pues no está habilitada para ello? Lo más deli-cado y preocupante es que quienes están en la calle, quienes tienen contacto permanente con los “motivos de policía” son los menos preparados para re-solverlos y se mueven sin autonomía técnica y a menor jerarquía son cada vez más subordinados.

¿Qué hacer entonces? Tomemos el titulo de Administrador policial (nivel universitario) ¿Por qué no habilitar a los primeros rangos como técni-cos profesionales y a los subsiguientes como tecnólogos, con la posibilidad real de acceder al nivel universitario?, pues los títulos universitarios no tienen que estar adosados a los grados jerárquicos.

Las profesiones para lograr los niveles de exigencia y mantener la dig-nidad de las mismas, se colegian. Ya existe el “Colegio de Administradores Policiales”, que bien puede ser un gran auxiliar en estos propósitos.

Quiero dejarles esta reflexión de Buda: “No aceptes nada de lo que digo como verdadero simplemente porque lo he dicho yo. En vez de ello, ponlo a prueba como lo harías con el oro para ver si es auténtico o no. Si des-pués de examinar mis enseñanzas, crees que son verdaderas, ponlas en prácti-ca. Pero no lo hagas simplemente por respeto a mí.” Ya es del pasado aquello de “magister dicit, ergo veritas.”

Miguel Antonio Gomes Padilha

Administrador Policial, Sociólogo, Licenciado en Ciencias Sociales y Económicas, estudios de Maestría en Educación

de la Universidad de Brasilia, Ex director General de la Policía Nacional de Colombia, Embajador de Colombia en

Paraguay, Asesor del Fiscal General de la Nación, Presidente del Colegio profesional de administradores Policiales,

Actualmente es Asesor del Centro de Pensamiento Policial en la Escuela de Postgrados de Policía y Asesor de la Secre-taria de Gobierno para la seguridad y la convivencia de la

Alcaldía Mayor de Bogotá, Distrito capital en Colombia

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105ISSN 2178-0013

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A Actividade Policial como Ciência1

Paulo Valente GomesInstituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna

Lisboa - Portugal

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1 Um Contexto de Mudança, Complexo e Imprevisível

1.1 Uma Nova Ordem Global

O mundo do século XXI é um mundo complexo, caótico e em mu-dança vertiginosa. Vivemos numa sociedade do risco e das fontes de perigo, que alimenta as incertezas, as inseguranças e os medos individuais e colecti-vos; uma sociedade de meritocracia de serviços, de funcionamento em rede, cada vez mais dependente da informação, do conhecimento e da tecnologia; que aposta na inovação, na imagem, na ideia de juventude eterna, no mérito, no conforto e no bem-estar, no consumo em massa, no hedonismo.

A nova ordem internacional em que vivemos caracteriza-se por congregar os seguintes seis elementos: a globalização; a multipolaridade ou apolaridade dos poderes na cena internacional; a mutação da figura do Estado-nação soberano; o multilateralismo; a segurança humana no cerne do securitário; e a aceleração dos factores de mudança, a sua complexificação, imprevisibilidade e incerteza.

Esta sociedade pós-moderna terá, talvez, como traço mais distintivo o facto de ser uma sociedade de múltiplas crises: de valores, de conceitos, de

1 Trabalho apresentado durante as atividades da Oficina 6 – As Ciências Policiais no Brasil, do II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado, realizado em Brasília/DF, de 06 a 09 de julho de 2010.

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lideranças, humanitárias, demográfica, de fronteiras, do Estado-Providência, do Estado-nação e do Estado-soberano, financeira e económica, do emprego, das pandemias, energética, ambiental e das alterações climáticas. Crises que geram a insegurança e a incerteza, as catástrofes e desastres naturais e tecnológicos, a luta crescente por recursos naturais cada vez mais escassos, a fome e a desigualdade, o medo do outro, a supressão das fronteiras, a perda da importância do espaço em prol do tempo, a tensão dialéctica entre global e local – “glocal”.

A palavra “crise” tem origem no étimo grego krisis, que significa distinção, sentença, escolha, decisão, juízo, separação. Por conseguinte, uma situação de crise deve ser por todos encarada como uma janela de oportunidade, um momento privilegiado para reflectirmos sobre o que correu menos bem, o que há a mudar e escolher o caminho a seguir doravante. O período de múltiplas crises que atravessamos actualmente convoca-nos, pois, para esse balanço e para uma decisão sobre aspectos fundamentais da nossa vida em sociedade, desde o nível local à escala global.

Por outro lado, nesta sociedade planetária, pelo menos no discurso político e institucional, a segurança, o bem-estar e os direitos fundamentais do indivíduo adquirem crescente primazia sobre os interesses e prioridades dos Estados, na busca incessante do equilíbrio entre mais segurança e mais liberdade, visando a felicidade do Homem.

O Estado pós-moderno está, assim, obrigado não só a prevenir e combater as ameaças e os riscos reais, mas também os fenómenos que são subjectivamente percepcionados pelos cidadãos como ameaças à sua sobrevivência e à sua qualidade de vida. Os problemas de segurança já não encontram solução apenas no sector da segurança mas exigem uma abordagem política transversal e uma mobilização social, resultado de uma co-produção pelo conjunto dos actores públicos e privados.

Este é o pano de fundo que convoca para a urgência de reformas significativas das ideias, valores, conceitos, estratégias e sistemas de segurança nacionais e internacional.

1.2 «Novos» Riscos, Ameaças e Vulnerabilidades

Os «novos» riscos, ameaças e vulnerabilidades não são uma invenção da sociedade contemporânea. O que mudou foi a escala (de um nível pessoal

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e local, para uma escala global, onde ameaças e riscos não são facilmente identificados e calculados), a sua magnitude e as suas consequências.

Estes “novos” riscos e ameaças surgem como resultado de combinações complexas entre ameaças tradicionais e da mutação engendrada pelo poder mutagénico, entre outros, da tecnologia, revelando novas vulnerabilidades dos Estados e exigindo, por conseguinte, o desenvolvimento de novas capacidades, o que abre também novas oportunidades e mercados no domínio da segurança.

Podemos enunciar, ainda que de forma não exaustiva, o seguinte catálogo das «novas» ameaças transnacionais: proliferação de armas de destruição massiva (ADM); acesso ilícito à ciência e tecnologia; radicalismo religioso; Estados falhados; terrorismo transnacional; crime organizado transnacional; tráficos diversos (pessoas, armas, veículos, droga, obras de arte, pedras preciosas, substâncias perigosas...); crime económico e financeiro sistémico; e pirataria.

Também, de forma não exaustiva, apresentamos o catálogo de riscos transnacionais: desigualdades Norte-Sul; epidemias/pandemias; degradação ambiental; crises humanitárias; tendências demográficas; controlo do espaço cibernético; dependência de estruturas em rede (comunicações, transportes, energia eléctrica, água, combustíveis fósseis…); desregulação do domínio espacial; crise energética; conflitos regionais remotos; actual crise global; e branqueamento de capitais.

Para além destas ameaças de escopo transnacional, internamente, os territórios urbanos, em consequência do aumento da urbanização, da multiplicação dos espaços de anonimato e das transformações sociais, culturais e económicas, são associados a um conjunto de perigos, dos quais se destaca a criminalidade e a delinquência juvenil e grupal.

Estas renovadas ameaças, riscos e fontes de perigo vieram evidenciar novas vulnerabilidades e incapacidades dos Estados e das instâncias tradicionais de controlo formal, como as Polícias, os Tribunais e as Forças Armadas, donde resulta a necessidade de se encontrar um novo paradigma.

1.3 Uma Revisão de Conceitos e Fronteiras Conceptuais

As «novas» ameaças e riscos típicos da nova ordem internacional precipitaram a revisão de conceitos e estratégias do paradigma tradicional.

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Desde logo, os conceitos de Estado-nação e de segurança. Mas também en-traram em crise as clássicas fronteiras entre categorias conceptuais, como a segurança interna e externa; os meios civis e militares; o local, o nacional e o internacional; a prevenção, as informações e a repressão; o security e o safety; a oferta pública e privada de segurança; as incivilidades, a pequena criminali-dade e o crime organizado transnacional, e assim por diante.

O tradicional conceito de segurança, assente primordialmente na defesa do Estado, cedeu ao tão propalado conceito de segurança humana (PNUD, 1994), que nos recorda algo muito simples e essencial: a comunidade política, seja ela o Estado ou outra forma, existe para o homem e a essência do conceito situa-se precisamente no actor (a pessoa humana como objecto da segurança) e não no sector (militar, não-militar).

A Comissão de Segurança Humana, das Nações Unidas, apresentou, no Relatório Final sobre Segurança Humana, a seguinte definição: “a segurança humana significa proteger o núcleo vital de todas as vidas humanas através de meios que reforcem as liberdades individuais e a realização das pessoas”2.

O Estado, o mesmo é dizer, as Polícias, estão, assim, obrigados não só a prevenir e combater as ameaças e os riscos reais, mas também os fenómenos que são subjectivamente percepcionados pelos cidadãos como ameaças à sua sobrevivência e à sua qualidade de vida. Os problemas de segurança já não encontram solução apenas no sector da segurança, mas exigem uma abordagem política transversal e uma mobilização social, resultado de uma co-produção pelo conjunto dos actores públicos e privados.

Esta nova forma de pensar e de fazer segurança é muito mais exigente e complexa, pois exige uma mudança de mentalidade e de atitude, quer por parte das instâncias formais, quer por parte das organizações e dos cidadãos, pois requer uma acção conjunta, co-responsável e participada de todos eles na definição das estratégias e dos planos de acção para resolver os problemas da segurança.

1.4 Um Novo Paradigma: a governança da segurança

O processo de mudança acelerada tem conduzido, na maioria dos países, a uma substituição do Estado por empresas privadas, na produção de bens e prestação de serviços públicos, como é o caso de áreas importantes da segurança e da protecção. O Estado define as regras que permitem controlar

2 Cf. “Human Security Now”, Commission on Human Security, 2003, in www.humansecurity-chs.org.

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a acção do monopólio privado, através de um processo de regulação pública: o Estado intervencionista cede perante o Estado regulador.

Mas como conciliar o novo paradigma regulador com a necessidade de garantir os direitos fundamentais? Reconhecida a dificuldade de adaptação do Estado à mudança social, como evitar uma crise de governabilidade?

A resposta surge com o paradigma da governança, nova forma de intervenção pública que visa responder a um mundo mais complexo, caracterizando-se pela passagem da tutela ao contrato, da centralização à descentralização, da gestão do serviço público à gestão segundo princípios de mercado, da direcção pública à cooperação entre os actores públicos e privados.

Configura-se, assim, uma governação em rede, em que o papel do Estado passou da simples atribuição e regulação, por via da autoridade, para uma tripla qualidade de prestador, dinamizador e regulador da segurança.

O trabalho policial é também influenciado por este novo paradigma. O desenvolvimento de novos modelos de policiamento - como o policiamento comunitário ou de proximidade, o policiamento orientado para a resolução de problemas, o broken windows ou o policiamento orientado pelas informações -; a multiplicação do número de novas profissões ou actividades auxiliares da actividade policial, como os adjuntos de segurança ou a vigilância de bairro, desenvolvidas em alguns países por pessoas ou associações locais; a propagação de contratos locais de segurança e outras formas de contratualização a nível local ou nacional; a pulverização de programas de prevenção dirigidos a gru-pos sociais particularmente vulneráveis, como a “escola segura”, o “comércio seguro”, entre outros; o surgimento de novas formas de parceria com entida-des públicas e privadas, em matéria de prevenção, segurança e/ou protecção de infra-estruturas críticas; a diversificação das actividades de segurança que, saindo do monopólio do Estado, estão a ser cometidas a empresas privadas; todos estes são exemplos de novas formas de co-produzir a segurança, em que o Estado, ou as Polícias públicas, se perfilam como um entre vários actores da se-gurança, com necessidade de trabalhar em rede com outras entidades públicas e privadas, comunidades locais e cidadãos. Assim também as Polícias recuperam a sua legitimidade e eficácia, que entraram em perda com o esboroamento do modelo tradicional de policiamento.

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1.5 A Mudança Social Acelerada

O efeito de aproximação gerado pela globalização faz com que ameaças e riscos longínquos gerem a mesma insegurança que aquelas que estão mais próximas e, ao mesmo tempo, quando se materializam em território nacional têm, frequentemente, origem em factores externos, obrigando os Estados a buscar respostas na cooperação internacional.

Por outro lado, num mundo globalizado, a segurança é cada vez mais um factor estratégico de desenvolvimento e de competição entre países, regiões e cidades, decisivo nas opções de investimento. O processo de mudança social originou a descontextualização das relações sociais, cujas consequências são, entre outras, a erosão dos mecanismos informais de controlo social, como a família, e a quebra das solidariedades. A interacção destes factores favorece subculturas e ambientes sociais que encorajam a prática de actividades anti-sociais e criminosas. Também as mudanças ocorridas nas estruturas económicas originaram fenómenos como o desemprego de longa duração, o aumento das desigualdades sociais e o alastramento da pobreza. O acelerado processo de urbanização e metropolização gerou a desorganização urbana e fomentou o desenvolvimento de subúrbios, onde são visíveis os efeitos de exclusão e de marginalização social.

Policiar adequadamente as comunidades, hoje em dia, significa levar em consideração que as estruturas sociais, o controlo social e a estrutura familiar tradicionais estão a mudar rapidamente, gerando novas culturas juvenis urbanas, com novas formas de expressão da violência e do mal-estar de uma geração que não vislumbra a estabilidade e a previsibilidade que as gerações anteriores viveram.

1.6 Conclusões Preliminares

É neste contexto de um mundo complexificado, caótico e imprevi-sível, de mudança social acelerada, de diversificação das relações, de difusão e imprevisibilidade das ameaças e riscos, que a Polícia se vê forçada a mudar conceitos, estratégias e modi operandi.

As ameaças e riscos, os eventos previsíveis que requerem segurança, os incidentes inopinados, em suma, todas as situações e problemas que a Polícia

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é solicitada a resolver, ganharam uma natureza holística, multifactorial e interdisciplinar, que exige, do mesmo modo, uma abordagem e uma resposta também elas sistémicas e holísticas.

Para ilustrar esta afirmação, tomemos como exemplo o caso da gestão da segurança de um grande evento desportivo como a fase final de um Campeonato Europeu ou Mundial de Futebol. O conceito e a estratégia de segurança desse que é o maior evento a nível mundial compreendem todas as valências da segurança: o security, o safety e a emergência médica; a segurança pública e privada; os meios civis e, eventualmente, os meios militares; a prevenção criminal, a manutenção e o restabelecimento da ordem pública, as informações e a investigação criminal; a política de fronteiras e estrangeiros; os vários níveis de uso da força, de acordo com o princípio da proporcionalidade: desde o nível mais baixo da polícia de proximidade, até à intervenção de unidades especiais, altamente preparadas e equipadas, para a gestão e resolução de incidentes táctico-policiais de elevada perigosidade; a polícia de trânsito, entre várias outras especialidades do trabalho policial.

Por isso costumamos referir a gestão de um grande evento desportivo de nível internacional como o exemplo de um verdadeiro laboratório da actividade policial. A Polícia é, neste contexto, chamada a gerir uma miríade de capacidades, meios e especializações, a trabalhar em conjunto com uma diversidade de actores, para prevenir, dissuadir e responder a uma multiplicidade de situações e incidentes, que dão uma noção cabal da complexidade, diversidade e imprevisibilidade do seu objecto de estudo e de acção.

Na busca de maior legitimidade, eficiência, eficácia, economia e ética (os 4 Es), o trabalho policial aposta cada vez mais numa abordagem holística, científica e flexível dos problemas, buscando de soluções inter e transdiscipli-nares, que garantam uma resposta humana e realista, o mesmo é dizer, que vá ao encontro das expectativas e necessidades dos cidadãos, garantindo, acima de tudo, o respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fun-damentais.

A complexidade, natureza aplicada e integrada da actividade policial afirma-se, crescentemente, como um campo fértil para o trabalho dos cientistas, nas mais diversas áreas do saber, não só pelo seu interesse científico, como pelo impacto social e político que sempre caracteriza a acção da Polícia.

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O estudo das instituições policiais e dos processos exige, por isso, a consolidação de uma área científica autónoma, a que se dá o nome de ciência policial ou, de forma menos ambiciosa, estudos policiais.

Vejamos, em seguida, como se construiu e afirmou progressivamente a ciência policial, e quais as potencialidade e desafios que enfrenta nos dias de hoje, tomando como pano de fundo a realidade europeia continental e anglo-saxónica, para terminarmos com o estudo de caso de Portugal.

2 A Actividade Policial como Ciência

2.1 Historial

Se quisermos situar historicamente o surgimento da expressão, podemos afirmar que as “ciências policiais” remontam ao século XVIII. Nessa época, este ramo era considerado como a ciência do governo, ou a ciência da felicidade, conceito que abrangia quase todas as tarefas da governação. Na segunda metade do séc. XIX, o que restou desse conceito inicial foi uma vertente política da ciência policial, mais tarde completada com uma vertente criminológica.

Mas é só a partir dos anos 60 do século XX que a investigação na área das ciências sociais passou a contribuir de forma significativa para o desenvolvimento das ciências policiais no sentido moderno. Desde essa década que os estudos sobre a Polícia e a actividade policial se expandiram rapidamente. Autores como Banton (1964) e Skolnick (1967), que integram o leque de fundadores da moderna criminologia empírica e das ciências policiais na Europa e nos EUA, realizaram estudos de campo sobre a realidade da acção policial na resposta a tumultos originados por conflitos étnicos e revoltas estudantis, num período em que, nos meios político, académico e social, se começou a questionar o modelo tradicional da Polícia, de pendor reactivo e repressivo. É neste contexto que os estudos policiais começam a fazer parte integrante da criminologia, das ciências sociais e do direito.

Numa fase inicial, a Polícia encarava estes estudos académicos, em geral, como um ataque externo ao seu auto-conceito profissional, o que evidenciava tão-só a existência de um choque entre dois mundos e duas culturas diferentes, que apenas começavam a descobrir-se.

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Com o decorrer do tempo, a investigação na área policial e as ciências policiais passaram a ser um instrumento útil para ambas as partes: para a sociedade, que sente a necessidade de estar mais informada sobre o que se passa no seio da Polícia e no domínio da actividade policial; e para a Polícia, que aspira a fazer o seu trabalho da forma mais “científica” e, também por isso, mais legitimada, perante uma sociedade cada vez mais exigente. Em certa medida, revisita-se um velho conceito, inventado em 1930 por August Vollmer, do “polícia científico”3, que enfatiza a necessidade de a Polícia alicerçar o seu planeamento e acção nas teorias, nas boas práticas e nas lições aprendidas, com uma base científica.

A situação actual é bem melhor, ainda que persistam algumas incompreensões recíprocas entre os mundos académico e policial. Num processo de aprendizagem constante e de crescentes exigências políticas e sociais relativamente à qualidade do trabalho policial, a Polícia encontra cada vez mais vantagens nos estudos científicos, como fonte de legitimação e como forma de melhorar a sua gestão e actuação prática. Por isso também, a própria Polícia, com o decorrer do tempo, considerou ser importante a criação dos seus próprios centros de investigação científica, juntando cada vez mais, em projectos comuns, cientistas policiais e académicos independentes.

Hoje em dia, a complexidade da sociedade e as missões e tarefas exigentes da Polícia num mundo em mudança levam a uma busca constante de métodos científicos e à consolidação de uma ciência policial com um método e objecto próprios.

No caso concreto Europa, a ciência policial não é, consensualmente, uma disciplina estabelecida como tal, pelo menos por agora. No entanto, em vários países europeus o conceito começa a ganhar forma.

Em Portugal, país pioneiro nesta matéria, foi criado, em 1999, o Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), instituição de ensino superior vocacionada para a formação de oficiais da Polícia de Segurança Pública e para a investigação científica nessas áreas. Em 2009, fruto da plena integração no processo de Bolonha, o curso de licenciatura em ciências policiais foi actualizado e convertido em curso de mestrado integrado em ciências policiais, mantendo a duração de cinco anos

3 Conceito referido pela primeira vez por Vollmer num artigo publicado em 1930 no American Journal of Police Science. Vollmer seria o fundador, em 1941, da Sociedade Americana de Criminologia.

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e uma variedade de disciplinas técnicas e científicas que vão ao encontro da diversidade e complexidade do trabalho de um oficial de Polícia.

Nessa linha, em Outubro de 2010, o ISCPSI lançará o primeiro curso de mestrado não integrado em ciências policiais, compreendendo cinco especializações diferentes, a saber: gestão da segurança, segurança interna, gestão da segurança municipal, criminologia e investigação criminal e gestão civil de crises. Este curso, com quatro semestres, para além de manter a grande diversidade de temáticas, apresenta a originalidade de ser aberto a toda a sociedade civil, permitindo assim que pessoas oriundas do mundo académico, profissional e comunitário possam partilhar e reflectir sobre temas transversais da segurança que dizem respeito, não apenas à Polícia, mas a toda a comunidade.

No médio a longo prazo, o ISCPSI, em associação com universidades nacionais, estará em condições para lançar um curso de doutoramento em ciências policiais, que permitirá afirmar e consolidar, juntamente com o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo seu centro de investigação (ICPOL), uma verdadeira doutrina das ciências policiais.

Ainda no panorama europeu, a Alemanha, em 2006, viria a criar a Universidade de Polícia em Münster, com o encargo de desenvolver as ciências policiais e de uniformizar a formação policial superior a nível da federação. Também nesse mesmo ano, a Universidade de Polícia da Noruega viria a iniciar o programa de mestrado em ciências policiais.

Na América Latina, designadamente nas Universidades e Polícias do Brasil, Argentina e Colômbia, estão em franco desenvolvimento os cursos, os centros de investigação e a doutrina no domínio das ciências policiais. No Brasil, apresentamos como caso exemplar, no âmbito da Academia Nacional da Polícia Federal do Brasil, a criação, ainda em 2010, da Escola Superior de Polícia e o trabalho meritório que vem sendo desenvolvido pelo centro de investigação, através da publicação de estudos e da organização de seminários sobre a temática das ciências policiais.

No futuro, será de todo exequível e desejável a constituição de uma rede de escolas e de centros de investigação na área das ciências policiais, no espaço ibero-americano, congregando uma importante comunidade de

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centros de recursos que poderão alavancar, de forma significativa, e com proveito para todos, a construção de uma verdadeira ciência policial.

2.2 Um Conceito de Ciência Policial

Quando se abre a discussão sobre o conceito de ciência policial e sobre a sua autonomia como disciplina científica, autores há que preferem a expressão “estudos policiais”, para abarcar não só a investigação, como também o campo mais vasto de discussão sobre matérias policiais, evitando, assim, o isolamento desta área do saber. Sendo menos rígida, essa expressão peca, no entanto, por ser demasiado generalista, pelo que outros autores preferem usar a expressão “ciência policial”. Mas subsistem as discussões sobre se esta é verdadeiramente uma ciência autónoma.

Porque congrega e integra, de forma particular, interesses de investigação e objectivos de diferentes campos da ciência, o ramo das ciências policiais é mais do que uma simples disciplina mas, para vários autores, talvez não deva ser ainda considerada uma ciência de per si.

Ao longo da sua História, o desenvolvimento da Polícia como profissão conduziu à consolidação de um corpo de conhecimento gerado por disciplinas científicas tão diversas como o Direito, a Ciência Política, a Sociologia, a Psicologia, a Pedagogia, a Economia, a Antropologia e a Biologia, entre outras. Mas o contributo importante da prática policial para esse processo também não deve ser negligenciado. Existem, assim, duas formas de gerar a ciência policial: por um lado, a ciência policial relacionada com disciplinas científicas formais; e por outro, a ciência policial como resultado da prática policial.

De acordo com Jaschke e Neidhardt (2004)4, a ciência policial pode ser vista como uma ciência integrada, baseada, entre outras, nas ciências so-ciais como a criminologia e em aspectos específicos das disciplinas das ciên-cias naturais, como algumas vertentes da investigação criminal e das ciências forenses ( Jaschke e Neidhardt, 2004, p. 18).

4 Jaschke, H.-G e Neidhardt, K. (2004), “Moderne Polizeiwissenschaft als integrationswissenschaft. Ein Beitrag zur Grundlangendiskussion”, Polizei und Wissenschaft, Vol. 5. Nº 4, p. 14-24, citados em AAVV (2009), Police Science Perspectives: Towards a European Approach. Extended Expert Report, Project Group on a European Approach to Police Science, Verlag für Polizeiwissenschaft, CEPOL, Frankfurt, p. 61.

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No contexto europeu, já existe pelo menos uma definição operativa, adoptada pela Academia Europeia de Polícia (CEPOL): “a ciência policial é o estudo científico da Polícia como instituição e da actividade policial como processo. Como disciplina aplicada, combina métodos de outras disciplinas vi-zinhas no âmbito da actividade policial. Inclui tudo o que a Polícia faz e todos os aspectos externos que têm um impacto na actividade policial e na ordem pública. Actualmente, este é um conceito operativo que descreve os estudos policiais rumo a uma disciplina científica aceite e consagrada. As ciências poli-ciais tentam explicar factos e adquirir conhecimento sobre a realidade policial, tendo em vista generalizar e poder prever possíveis cenários”5.

Para atingir este desiderato, as ciências policiais recorrem ao conhecimento policial fundado na experiência, ao conhecimento científico de diversas disciplinas relacionadas com a actividade policial e a um conjunto de métodos estabelecidos que são prática comum em outras disciplinas. Para o estabelecimento das ciências policiais, haverá vários passos a seguir no futuro: continuidade dos pontos de partida; promoção de actividades nas comunidades científica e policial; desenvolver a actividade académica, como a criação de projectos de investigação, encontros, revistas e publicações; e procurar o apoio de pessoas e instituições. Além disso, a gradual aceitação das ciências policiais no mundo académico e nas organizações policiais requer muito trabalho e publicitação.

2.3 Objecto e Método da Ciência Policial

Tomando como base de trabalho a definição de “ciência policial” adoptada pelo CEPOL, e corroborando a abordagem do grupo de peritos europeus em ciências policiais6, diremos que os objectos de estudo da ciên-cia policial são a “Polícia como instituição e a actividade policial como um processo”. O seu vasto espectro e complexidade implicam que tenha que ser dividida em elementos mais simples, que constituem ou delimitam as áreas de investigação na ciência policial.

As situações concretas que são objecto de estudo da ciência policial como disciplina, podem ser definidas através de um grande número de variáveis, como o contexto físico, as acções humanas, as

5 Cfr. op.cit., p. 30 e 110.

6 Op. cit., p. 116 e ss.

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condutas ou modelos de comportamento dos actores. Ao mesmo tempo, estas situações são determinadas pelas estruturas formais ou informais do contexto em que se desenvolvem.

Tal significa que os objectos de estudo podem ser descritos como vectores caracterizados por um contexto físico, condutas particulares, tempo, aspectos políticos e sociais, assim como por uma grande diversidade de variáveis, todas elas relacionadas e influenciadas entre si.

Também de acordo com o grupo de peritos europeus, a mesma situação pode ser examinada segundo modelos de diferentes disciplinas académicas. Cada uma delas contribuirá com um conhecimento específico para o corpo de conhecimento a que designamos de “ciência policial”. Cada disciplina estará interessada no estudo de um tipo de variável muito específico.

Ou seja, e seguindo o mesmo raciocínio, qualquer investigação relacionada com as áreas que são do interesse da ciência policial pode ser levada a cabo sob as mais diversas perspectivas. Por um lado, quando a investigação é desenvolvida sob uma única perspectiva académica, diremos que a abordagem adoptada é monoscópica. Quando, ao invés, as circunstâncias do objecto de estudo são do interesse de várias disciplinas académicas e cada uma delas pode dar o seu contributo para o corpo de conhecimento da ciência policial, a abordagem metodológica tem uma natureza holística.

Continuando a seguir de perto o mesmo grupo de peritos europeus, a ciência policial deve procurar investigar a diversos níveis e recorrendo a múltiplas perspectivas de estudo. Esta atitude metodológica deve basear-se numa atitude de curiosidade e de constante interrogação, que aspire a compreender os eventos sociais, tanto individuais como institucionais, que são o quadro da realidade policial. A única forma de conhecer esta realidade é estudar a rede complexa de relações que se entrecruzam e coincidem numa situação particular.

Uma forma intuitiva de conceber a ciência policial como um corpo de conhecimento que é suportado por outras disciplinas é, segundo os mesmos autores, o conceito de um poliedro, uma figura tridimensional formada por diversas faces, arestas e vértices. Este conceito poliédrico da ciência permite-nos contemplar o conhecimento gerado a partir de (e por) diferentes vértices e eixos e permite uma abordagem multi-referencial.

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Bordua e Reiss (1966) consideraram as organizações policiais como estando em permanente transacção com o ambiente. Este conceito sistémico significa que a Polícia afecta e influencia o contexto externo e, ao mesmo tempo, é afectada e influenciada pelo ambiente. Daí a importância de uma abordagem holística, sistémica, para captar a multidimensionalidade da realidade7.

Vejamos agora, mais em detalhe, e segundo o mesmo grupo de peritos europeus, qual o método a adoptar pela ciência policial, ou seja, os mecanismos através dos quais é elaborado o corpo de conhecimento policial.

As linhas orientadoras da ciência policial, enquanto disciplina científica, devem ser definidas, em primeiro lugar, através de uma descrição dos factos que ocorrem no evento estudado. A informação recolhida através da descrição das correlações e interdependências contribui para dar sentido aos detalhes nas relações entre variáveis e elementos. Em segundo lugar, haverá que decifrar ou descodificar os factos descritos, tendo em vista explicar os eventos ou, dito de outro modo, escrutinar a correlação e interdependência das variáveis. Por último, e tendo por base esta perspectiva compreensiva e antropológica, o cientista policial interpreta os eventos. Esta interpretação acrescenta conhecimento ao corpo de conhecimento da ciência policial.

2.4 Tópicos de Investigação da Ciência Policial

Numa breve nota inicial sobre a evolução dos temas que foram sendo objecto do interesse da ciência policial, começamos por invocar Cyrille Fijnaut, que, há cerca de 25 anos, publicou um artigo8 no qual esboçou uma futura ciência policial, elencando cinco sub-ramos ou áreas temáticas, a saber:

“- uma ciência policial política (governamental), sobre a definição normativa das missões e competências da Polícia e das suas relações com outras autoridades e a população;

- uma ciência policial social, focada no real e desejável funcionamento da instituição policial, no que concerne aos seus objectivos mas também às suas relações com as autoridades e a população;

- uma ciência policial tecnológica, no seio da qual são desenvolvidos

7 Op. cit., p. 117.

8 Theoretische opstellen rondom de politie, Apeldoorn, Países-Baixos,1983, in: AAVV (2009), Police Science Perspectives: Towards a European Approach. Extended Expert Report, Project Group on a European Approach to Police Science, Verlag für Polizeiwissenschaft, CEPOL, Frankfurt, p. 35.

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meios técnicos e organizacionais, para que a Polícia funcione de modo a evidenciar um sentido de responsabilidade política e que pareça desejável, do ponto de vista científico social;

- uma ciência policial histórica, que, por um lado, evolua no sentido da actual investigação socio-histórica, mas que, por outro lado, derive para a actual investigação da ciência histórica; e

- uma ciência policial comparativa, que seja específica da História e da actual organização das estruturas policiais na Europa” (Fijnaut, 1983, p. 36-37).

Na prática, os tópicos de investigação que se tornaram património comum e foram consistentemente seguidos durante as décadas de 1960-1990, tanto na Europa como nos EUA, foram os seguintes: selectividade da conduta da Polícia; uso da violência / uso da autoridade; poder discricionário; cultura profissional; eficácia do trabalho policial / procedimentos operacionais; vigilância; e relações entre a Polícia e a população. Com o decurso do tempo, estes tópicos dividiram-se em sub-tópicos.

Como vimos referindo, a ciência policial pertence a um campo mais vasto do conhecimento, que partilha com outras disciplinas académicas, em especial a criminologia, o direito e diversas ciências forenses, mas também a ciência política, a sociologia, a gestão, a psicologia, os sistemas e tecnologias de informação e comunicação, entre outras. Alguns dos tópicos da ciência policial também podem ser abordados por estas disciplinas vizinhas, ainda que muitas vezes numa perspectiva distinta.

A questão-chave que se deve colocar é: o que é uma boa actividade policial numa sociedade democrática? Tal implica que se estude a Polícia como instituição e a actividade policial como um processo.

Hoje em dia, e em sintonia com o citado estudo de peritos europeus encomendado peloo CEPOL9 podemos elencar um conjunto de dez grandes tópicos de investigação da ciência policial, a saber:

i) As origens históricas e evolução da Polícia e da actividade policial

Descrever, comparar e analisar as responsabilidades sociais e políticas da Polícia nas suas diversas manifestações históricas constitui uma base para a reflexão sobre o papel e as funções da Polícia no momento actual.

9 Op. cit., p. 76 e ss.

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Em certos países, sobretudo na Europa Meridional, uma das princi-pais missões da Polícia tem sido a de defender o Estado. Em outros países, a missão da Polícia é proteger o público.

A questão de saber em que medida esta diferença de mandato se re-flecte na forma como se exerce a actividade policial no terreno é uma matéria de investigação empírica da ciência policial. Apesar de o paradigma tradicio-nal estar a sofrer uma mudança significativa, mesmo nos países mais conser-vadores, continua a ser importante estudar as origens do mandato da Polícia para melhor compreendermos os diferentes modelos nacionais e as actuais tendências das reformas policiais.

ii) Política e actividade policial

Em algumas dimensões, a actividade policial é fundamentalmente uma actividade política, representando o monopólio estatal do uso legítimo da força, nas palavras de Max Weber.

Descrever e comparar os fundamentos legais e institucionais da Polícia, a forma como é governada e tutelada politicamente, a influência dos ciclos político-eleitorais na actividade policial, bem como a divisão de poderes entre Polícias, Forças Armadas e organizações de segurança priva-da, a transparência, as formas de controlo democrático, a ética policial e os direitos humanos, são outros tópicos de investigação sobremaneira impor-tantes nos dias de hoje.

iii) Os papéis e funções da Polícia

A ciência policial deve investigar a grande variedade de papéis que a Polícia desempenha na prevenção e luta contra o crime, como prestadora de serviços, como reprodutora da ordem e repressora da desordem e do desvio; como agentes da paz e gestores de conflitos e de crises. Uma Polícia moderna, eficiente e eficaz, precisa ser uma Polícia integral, agregadora de múltiplas valências e capacidades e beneficiando das sinergias daí decorrentes, para que possa aspirar a uma melhor compreensão e actuação sobre uma realidade também ela complexa e multifactorial.

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iv) Estratégias e estilos de policiamento

Este tem sido outro domínio de grande interesse para a ciência poli-cial, dada a sua dinâmica e impacto social e político. O estudo da evolução dos vários modelos de policiamento, desde o “modelo profissional” ao modelo de “policiamento comunitário (ou de proximidade)”, ao modelo de “policiamento orientado para os problemas” (“problem-oriented policing” – POP), ao modelo do “broken windows” ou de “tolerância-zero”, até ao modelo de “policiamento orientado pelas informações” (“intelligence-led policing”); bem como o estudo das diversas vertentes da investigação criminal, são matérias que têm interessa-do de forma crescente o mundo académico, os polícias e os políticos, ainda que, por vezes, estes modelos não passem de meros slogans políticos, ou enformem políticas públicas de segurança com objectivos eminentemente político-eleito-rais, sem que se perceba muito bem a sua natureza, sentido e alcance.

v) Organizações policiais e gestão

Esta área deu origem, nas últimas décadas, a um vasto conjunto de tópicos de investigação, tais como: definir a visão e missão das organizações policiais; a estrutura e concepção organizacional; a divisão do trabalho; os estilos de gestão e liderança policial; a comunicação organizacional; a gestão da mudança; a motivação; a gestão de recursos humanos; a gestão por objectivos; o processo de planeamento e tomada de decisão; a gestão de recursos humanos; entre muitos outros.

Um tópico específico dentro deste domínio é o estudo da cultura policial. Aspectos como a origem social, geográfica, económica e cultural dos polícias, a questão do género, o recrutamento de membros das minorias étnicas ou outras, bem como o modo como estas categorias sociais recrutadas para a Polícia são moldadas pela formação e socialização policiais, são dados de grande importância para a compreensão da forma como a Polícia actua no quotidiano.

vi) Policiamento da diversidade

Numa sociedade global cada vez mais marcada pela pluralidade cul-tural, étnica, linguística e religiosa, o estudo das relações entre a Polícia e as minorias étnicas, das percepções, atitudes e comportamento dos agentes po-liciais e dos membros desses grupos minoritários, em particular os jovens, constitui sem dúvida um tema de grande relevância para a melhoria da acti-vidade da Polícia.

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vii) Responsabilidade da Polícia, integridade e corrupção

A conduta da Polícia deve ser encarada em relação às normas e valores da profissão policial mas também à luz das normas e valores da sociedade em que se integra.

Grande parte da investigação científica sobre o tópico geral da ética policial tem por base condutas anti-éticas, como a corrupção policial, o excesso no uso da força, discriminação, racismo ou xenofobia, abuso na utilização de poderes processuais penais, entre outros. Outro aspecto relevante para a ciência policial é o estudo dos mecanismos de controlo interno e externo da actividade policial e as formas de responsabilização ou prestação de contas, por parte da Polícia.

viii) Avaliação de métodos de policiamento e da prevenção criminal

A Polícia tem ao seu dispor uma panóplia de métodos, ferramentas e estratégias para diversos aspectos da sua actividade. Alguns deles têm uma vertente tecnológica, como o uso de CCTV. Outros situam-se ao nível táctico, como as diversas técnicas de prevenção situacional, ou os métodos específicos de interrogatório, no âmbito da investigação criminal. Outros ainda têm uma natureza estratégica, como os modelos de policiamento a que já aludimos acima.

Uma das tarefas dos investigadores é a avaliação dos efeitos desses métodos de policiamento. Frequentemente, não é pacífica a metodologia de avaliação, discute-se a independência dos avaliadores, a mensurabilidade dos efeitos da prevenção, entre outras questões polémicas. No entanto, o que é certo é que a avaliação da actividade policial é um sólido instrumento de conhecimento, apto a fundamentar, legitimar e corrigir as políticas públicas de segurança.

ix) Policiamento de tipos de crime específicos

A investigação sobre os indivíduos criminosos e sobre tipos de crime específicos, apesar de ser eminentemente uma tarefa da criminologia, merece também a atenção da ciência policial, no sentido de saber como a Polícia lida com várias formas de crime ou quais as estratégias adequadas para prevenir e reprimir esses crimes em particular.

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x) O futuro da Polícia numa sociedade pós-moderna

Os processos de globalização, modernização, desenvolvimento social e tecnológico, terão certamente um forte impacto na forma como se fará polícia no futuro. Conscientes de que irão sempre atrás de novos modi operandi, as Polícias fazem o possível para acompanhar e adaptar as suas estratégias a estas mudanças vertiginosas da sociedade global.

Além disso, e neste contexto de globalização, importa cada vez mais estudar a natureza e o impacto da dimensão externa da actividade policial, ou seja os diversos tipos de missões internacionais de manutenção da paz e de gestão de conflitos, num Mundo em que se alargou dramaticamente a noção de fronteira e de segurança interna, levando a que a segurança de um país ou de uma região se garantam em paragens cada vez mais longínquas, onde germinam e propagam renovadas ameaças e riscos, como o terrorismo transnacional ou a criminalidade organizada transnacional.

2.5 Conclusões Preliminares

Feita a análise, ainda que necessariamente sintética, destas dez áreas de investigação de grande potencial para a ciência policial, fica patente que a actividade policial será uma actividade baseada no conhecimento e na ciência. No futuro, os líderes e os agentes policiais carecerão de mais e melhor educação e formação; deverão encarar a formação como um processo que se desenvolve ao longo da sua carreira e da sua vida; e deverão ter sempre presente que a mudança é a grande, se não a única, constante deste século XXI, pelo que deverão estar disponíveis para se adaptarem a sucessivas mudanças nas filosofias, estratégias e métodos de policiamento, porque a rápida mudança social e tecnológica a isso obrigam. A ciência policial, pelo papel que desempenha na busca do conhecimento e do saber sobre o que a Polícia faz e como pode fazer melhor, ocupará um lugar cada vez mais central na modernização da Polícia.

3 A Formação Policial

A ciência policial situa-se na encruzilhada da investigação, formação, educação, desenvolvimento e inovação. O conhecimento que constitui

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o corpo da ciência policial deve ser transmitido e consolidado através da educação e formação.

Daí a importância de a formação e educação policiais, sejam elas de natureza inicial ou contínua, sejam elas relativas aos agentes policiais ou aos quadros intermédios ou superiores, deverem reflectir o melhor possível, as áreas científicas que concorrem para a construção da ciência policial.

O caso do nosso Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna deve ser objecto de análise, por ser, como referimos acima, uma instituição pioneira na construção das ciências policiais, a nível europeu, mas também pelo conteúdo e objectivos dos seus ciclos de estudos integrados e não integrados de mestrado, das suas pós-graduações e outros cursos avançados e de especialização, abertos aos quadros policiais intermédios e superiores, bem como à sociedade civil portuguesa e dos países lusófonos e outros.

Em geral, todos os planos de estudos destes cursos compreendem uma variedade de disciplinas científicas que são auxiliares ou afins das ciências policiais e que conferem a visão holística, sistémica, multidimensional, que permite à Polícia analisar, compreender, interpretar e agir sobre uma realidade também ela complexa, caótica e imprevisível.

Para mais informações sobre este Instituto e os seus cursos, recomen-damos a consulta do seu sítio Internet: www.iscpsi.pt

4 Conclusão

De tudo o que foi dito, resulta claro que a ciência policial é, de forma relativamente consensual, uma ciência em construção, revelando algumas características que a distinguem e afirmam o seu potencial de desenvolvimento. A ciência policial, porque age sobre uma realidade antropológica complexa, imprevisível, multicausal e multifactorial, constrói-se como uma encruzilhada de enfoques de várias ciências sociais e humanas, naturais e exactas.

Como um corpo de conhecimento, a ciência policial assemelha-se a um “olho complexo”10, parafraseando o grupo de peritos europeus, capaz de descrever, analisar, interpretar e agir, de forma holística e sistémica, sobre um

10 Op. cit., p. 131.

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caleidoscópio de factos, situações e incidentes, mais ou menos previsíveis ou inopinados, fazendo uso homeopático de métodos e ferramentas de vários ramos do conhecimento científico, de modo a alterar essa realidade no sentido de manter ou repor a tranquilidade, a paz, a ordem e a segurança públicas.

A formação, a educação e a investigação no domínio das ciências policiais devem, por isso, reflectir também um espírito humanista, eclético, trans e interdisciplinar, uma abordagem sistémica, flexível e aberta ao diálogo e à constante mudança, com o concurso de diversos actores, trabalhando em rede, no plano nacional e internacional.

PAULO VALENTE GOMES

Intendente da Polícia de Segurança Pública

Director do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Portugal

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127ISSN 2178-0013

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Brasília, v. 1, n. 2, p. 127-158, jul/dez 2010.

Pensamento Complexo e Transdisciplinaridade Aplicados à Ciência Policial

Welder Oliveira de AlmeidaDepartamento de Polícia Federal - Brasil

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RESUMO

O presente trabalho é uma análise sobre a aplicabilidade dos conceitos de pensamento com-plexo e transdisciplinaridade à Ciência Policial, levando-se em consideração a realidade globa-lizada de uma sociedade do risco, que não pode mais ser compreendida à luz de pensamentos simplificadores, redutores ou mutiladores, notadamente uma visão engessada pelo racionalismo cartesiano. Para o escopo desta pesquisa, há que se levar em consideração, principalmente, a visão da complexidade moriniana atrelada à ação, que deve observar os conceitos de ação, retroação (feedback), acaso, bifurcações, programa e estratégia. Vislumbra-se, desse modo, a possibilidade de utilização de uma visão interdisciplinar, e mais modernamente, uma abordagem transdiscipli-nar, para demonstrar que a Ciência Policial não possui um objeto singelo e uno, mas, sim, com-plexo e plúrimo, razão pela qual seria perfeitamente factível a compreensão de que tal ramo do saber possui caracteres de pensamento complexo, e, então, valendo-se de tais embasamentos teó-ricos, procurar-se demonstrar, por meio de um instituto de investigação policial, o interrogatório policial, que o pensamento complexo e a transdisciplinaridade estão presentes nos meandros da ciência Policial.

Palavras-Chave: Ciência Policial. Interdisciplinaridade. Pensamento Complexo. Transdis-ciplinaridade.

Introdução

"O jurista que é só jurista é uma pobre e triste coisa" (Francesco Carnelutti, repetindo Martinho Lutero).

A realidade complexa, dinâmica, transnacional e globalizada da sociedade do risco trouxe para o campo de discussões acadêmicas a necessidade de se compreendê-la sem reduções, limitações ou mutilações. Isso engendrou um

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problema epistemológico de fôlego, posto que, do ponto de vista da sociedade ocidental, desde o advento da revolução cartesiana1, sempre se procurou consolidar uma abordagem analítica ao extremo, dividindo-se problemas maiores em suas partes menores, para que se pudesse tentar enfrentá-los.2

Com isso, surgiram realidades compartimentadas, tais como jurídicas, econômicas, psicológicas, antropológicas, sociológicas etc., que passaram a ser estudadas em ramos de disciplinas cada vez mais especializados, fragmentando-se, ao máximo, a realidade e os saberes, alienando-se a pessoa humana de uma visão conglobante, muito mais consentânea com as Weltanschauung da antiguidade grega e da escolástica.

Segundo Aleixina Andalécio (2009), a complexidade das sociedades, as interpolações fortes entre as diferentes nações, governos, políticas e estruturas econômicas e sociais levam a estudos também mais interligados, nos quais devem ser consideradas todas as dimensões e seus pertinentes inter-relacionamentos.

É, exatamente, nesse contexto sócio-cultural, retrato da pós-modernidade, que surge a Ciência Policial, saber relativamente novo, dotado de caracteres de transversalidade e de interdisciplinaridade, quiçá de transdisciplinaridade, locus ideal para a aplicação do pensamento complexo, nos moldes alinhavados por Edgar Morin e outros pensadores da atualidade, construção teórica que se vale, como é cediço, de uma visão suplantadora da disciplinaridade, tão em voga nestes tempos de hiperespecialização de saberes.

O início desse processo de compreensão passa, justamente, pela introjeção do que viria a ser essa hiperespecialização de saberes, até se

1 Fritjof Capra (2006) afirmou que para Descartes o universo material era uma máquina, nada além de uma máquina. Segundo ele, não havia propósito, vida ou espiritualidade na matéria. A natureza funcionava de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas partes. Esse quadro mecânico da natureza tornou-se o paradigma dominante da ciência no período que se seguiu a Descartes. Passou a orientar a observação científica e a formulação de todas as teorias dos fenômenos naturais, até que a Física do século XX ocasionou a mudança radical. (...) Descartes deu ao pensamento científico sua estrutura geral – a concepção da natureza como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas (CAPRA, 2006, p. 56).

2 Consoante lição de Héctor Ricardo Leis (2005), o pesquisador dos mundos clássico e medieval não estava muito preocupado em estabelecer separações significativas entre os diversos conhecimentos disponíveis sobre a realidade. (...) Não havia hiatos intransponíveis. (...) As premissas básicas do conhecimento científico eram comuns e os estudiosos de um ou outro objeto podiam conversar e trocar idéias de forma produtiva. Embora, obviamente, existisse uma especialização em torno de cada objeto, a mesma não estabelecia qualquer exclusão ou desinteresse recíproco entre os pesquisadores, do tipo que levou Snow (1993) a falar de ‘duas culturas’, na metade do século XX, para descrever a falta de comunicação existente entre os cientistas das ciências humanas e das exatas e naturais, (...)

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chegar ao ponto, como relembrou Georges Gusdorf (1976), de se afirmar que o especialista é aquele que sabe tudo sobre nada. Além disso, essa hiperespecialização de saberes poderia ser compreendida como a manifestação concreta de um estado de carência em que a multiplicação das especializações e seu rápido desenvolvimento culminaram na fragmentação crescente do horizonte epistemológico (ANDALÉCIO, 2008, p. 47).3

Para que se vislumbre o alcance desse estado de coisas, há necessidade de se apresentarem marcos teóricos e epistemológicos, notadamente os conceitos de disciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, alguns deles ainda indeterminados.

Ora, tendo em conta que os conceitos que são apresentados como marcos teóricos e epistemológicos dizem, também, respeito a uma realidade concreta, mas não meramente empírica, passa-se, em seguida, à tentativa de se compreender a Ciência Policial como conhecimento racional e objetivo, passível de compreensão e de refutação, detentor de rigor epistemológico, aplicado à atividade policial4, que, no caso da Polícia Judiciária, diz respeito, precipuamente, à investigação criminal, que, embora permeada pela complexidade e pela transdisciplinaridade, possui limitadores próprios.

Há autores da atualidade, como Hans-Gerd Jaschke (2005), que vislumbram que a Ciência Policial é uma disciplina integrada e integradora, como se pretende esmiuçar, no momento oportuno. Isso, é óbvio, implica no reconhecimento de inquestionável interdisciplinaridade e, é certo, de alguma transdisciplinaridade.

O próprio nome da fase atual deste Curso de Especialização em Ciência Policial e Investigação Criminal (CECPIC), denominada “Trabalho Acadêmico Interdisciplinar I”, reforçou o que se pretendeu pesquisar aqui: a confirmação de que a Ciência Policial da atualidade não pode ser vislumbrada à luz dos conceitos clássicos de ciência, onde se lança a exigência, por exemplo, de um objeto de

3 Essa autora mencionou que um trabalho de Julie Thompson Klein no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em 1994, informava a existência, naquela quadra, de 8.530 campos de conhecimento catalogados, e que eles continuavam a se multiplicar.

4 Na visão de Jairo Enrique Suárez Alvarez (2010), embasando-se em Miguel Antonio Gómez Padilla, a Ciência Policial possui caráter interdisciplinar, pois seria evidente que ela se socorre de outros campos de conhecimento, tendo este definido Ciência Policial como o estudo sistemático, ordenado e crítico do ente polícia em seu contexto histórico, cultural, sociológico, político, econômico e filosófico, tanto em sua dimensão universal, quanto em sua dimensão local.

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estudo singelo e único, posto que o verdadeiro objeto desse saber é plúrimo, consagrando-se a visão de uno e múltiplo, ao mesmo tempo, sempre se levando em consideração o contexto, com notáveis caracteres transdisciplinares.

Passa-se, em seguida, a vislumbrar o estado da arte do pensamento complexo e da transdisciplinaridade (um constructo, tenha-se em mente, desde já, para alguns considerado, até mesmo, utópico), para que se possa rumar para o arremate do desenvolvimento desta argumentação, aplicando-se à Ciência Policial esses conceitos morinianos, permeando-se essa construção teórica com visões imbuídas do pensamento sistêmico, considerado por alguns doutrinadores como o novo paradigma da ciência.

Buscar-se-á compreender a aplicabilidade do pensamento complexo moriniano, com peculiaridades transdisciplinares, por meio do estudo de instrumento de investigação policial, que é balizado pela Ciência Jurídica, saber que coordena e permeia a Psicologia, a Antropologia, a História e tantos outros ramos interdependentes e coligados, como seria o caso da Neurolinguística Aplicada. Esse instrumento de investigação policial é o interrogatório policial, que, de forma dinâmica, pode ser visto como ato, como procedimento e como processo, frisando-se que o pensamento sistêmico, segundo Fritjof Capra (2006), é aquele embasado em processos.

Há que se estudar o interrogatório policial sob essa ótica transdisciplinar, focando-se, em dado momento e em determinado contexto, os matizes pré-processuais e processuais (jurídicos), em outro momento, os carizes antropológicos, e, ainda, em outro momento, os aspectos psicológicos etc., tudo isso de forma conjunta, sistêmica e religada, e não como saberes díspares e compartimentados.

1 Marcos Teóricos e Epistemológicos

1.1 Hiperespecialização de Saberes

Consoante Aleixina Andalécio (2009), a atitude simplificadora, analítica, fragmentadora, disjuntiva e reducionista da ciência clássica resultou na compartimentação do saber, na fragmentação do conhecimento científico em disciplinas, nas quais especialistas em conteúdos específicos têm dificuldade para se comunicar com especialistas de outras áreas.

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Conforme, ainda, Aleixina Andalécio (2009), com a divisão em disciplinas, os sistemas reais complexos são transformados em sistemas simples, meros agregados de partes em relações causais separadas umas das outras. Como conseqüência direta disso, tem-se que campos de conhecimento que se relacionam a um mesmo objeto restam desconectados e ignoram-se, dificultando assim uma compreensão mais próxima do real dos fenômenos estudados.

Isso, em verdade, é extremamente desfavorável ao saber construído pela Ciência Policial, pois, como se verá adiante, há sempre necessidade de se trabalhar os conhecimentos disciplinares que a convolam de forma interligada e integrada.

Segundo lição de Edgar Morin (2010), “há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre as disciplinas” (MORIN, 2010a, p. 13).

Já Aleixina Andalécio (2009) asseverou que a crise do saber científico moderno deu ensejo a que se questionasse a forma de organização do conhecimento do paradigma da ciência moderna, que se baseia em disciplinas e especialidades vizinhas, porém que se ignoram umas às outras e não se tocam.

De outra parte, Edgar Morin (2010) aduziu que as realidades ou problemas são cada vez mais transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários (MORIN, 2010a, p. 13). Vide, por exemplo, o fenômeno da criminalidade organizada transnacional, ente que se problematiza com todos esses caracteres.

Segundo esse autor francês, compreende-se por hiperespecialização

aquela especialização que se fecha em si mesma, sem permitir sua integração em uma problemática global ou em uma concepção de conjunto do objeto do qual ela considera apenas um aspecto ou uma parte. A hiperespecialização impede de se ver o global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui) (MORIN, 2010a, p. 13).

Os problemas essenciais, na visão de Edgar Morin (2010a), jamais são destrincháveis, e os problemas globais são cada vez mais atrelados à essência dos entes e fenômenos. Todos os problemas particulares só podem ser compreendidos e assimilados de forma correta levando-se em conta os seus contextos.

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Morin (2010a) afirmou que

os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira (MORIN, 2010a, p. 15).

A modernização colocou em posição insulada os conhecimentos e recrudesceu sua fragmentação, “acentuando a oposição entre o generalista, o indivíduo que sabe pouco sobre tudo ou quase tudo, e o especialista, que sabe tudo ou quase tudo sobre uma única coisa ou quase nada, ignorando todo o resto” (ANDALÉCIO, 2009, p. 49).

Pela ótica de Edgar Morin (2010), “o crescimento ininterrupto dos conhecimentos constrói uma gigantesca Torre de Babel, que murmura linguagens discordantes” (MORIN, 2010a, p. 16).

Aleixina Andalécio (2009) afirmou que a superespecialização [de saberes] é embasada na divisão e na subdivisão de setores consolidados do conhecimento, que possibilitou um crescimento notável nos patamares de produtividade científica. Essa característica, vislumbrada por alguns como positiva, não afastou a ocorrência das demais peculiaridades negativas citadas acima.

Edgar Morin (2010a) ponderou que, por outro lado, “o retalhamento das disciplinas torna impossível apreender ‘o que é tecido junto’, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo” (MORIN, 2010a, p. 14).

Héctor Ricardo Leis (2005) asseverou que se detecta nos dias atuais uma forte tendência geral que enclausura os pesquisadores, fazendo-se com que haja entrincheiramento em suas especialidades ou sub-especialidades, compartilhando os seus conhecimentos apenas no interior de um círculo próximo e restrito.

Esse autor mencionou as conclusões da denominada Comissão Gulbekian no sentido de que

houvesse o desmantelamento das fronteiras artificiais entre os saberes, recomendando fortemente o trabalho interdisciplinar e transdisciplinar sobre os problemas prementes de nossa época, algo que continua sendo pouco atendido, por enquanto, no dia a dia das universidades, [mas que vem se buscando no âmbito da Ciência Policial, mesmo que de forma ainda incipiente] (LEIS, 2005, p. 4).

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1.2 Conceitos de Disciplinaridade, Pluridisciplinaridade, Multidisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade

Segundo Hilton Japiassu (1976), entende-se por disciplinaridade o estudo científico especializado de “determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organizado de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos de ensino, da formação, dos métodos e das matérias” ( JAPIASSU, 1976, p. 72).

Quanto ao verbete disciplina, consoante Japiassu (2006), “trata-se de um conjunto específico de conhecimentos, possuindo suas características próprias no campo do ensino, da formação, dos métodos, dos mecanismos e dos materiais” ( JAPIASSU, 2006, p. 38).

Segundo Aleixina Andalécio (2009), disciplina passou a designar uma matéria ensinada, um ramo particular do conhecimento e, por extensão, princípios, regras e métodos característicos de uma ciência particular.

Ora, ainda sob o escólio de Aleixina Andalécio (2009),

por serem produtos de um devenir histórico, as disciplinas não são eternas e imutáveis, sofrendo constante transformação e evolução, influenciadas pelas contingências que modelam e condicionam a mentalidade e os ideais dos homens e mulheres que constroem e reconstroem os conhecimentos (ANDALÉCIO, 2009, p. 46).

Por outro viés, conforme Japiassu (1976), compreende-se por multidisciplinaridade uma mera combinação, uma singela justaposição, em uma pesquisa determinada, dos recursos de várias disciplinas, sem implicar necessariamente um trabalho de equipe valendo-se de coordenação.

E o mesmo doutrinador asseverou que em relação à pluridisciplinaridade,

trata-se de um agrupamento intencional, ou não, de certos módulos disciplinares, com algumas relações entre as disciplinas, dando margem à construção de um sistema de um só nível e com objetivos distintos, mas possibilitando certa cooperação, embora excluindo toda coordenação (JAPIASSU, 1976, p. 73).

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No que concerne à interdisciplinaridade5, pode ser vislumbrada como o patamar em que a colaboração entre os díspares ramos do saber ou entre os campos heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações verdadeiras em sua essência, ou seja, resulte em uma peculiar e precisa reci-procidade nas trocas, de tal forma que, ao final do processo de combinação/interação/ligação, cada disciplina experimente maior enriquecimento.

Aleixina Andalécio (2009) asseriu que

a interdisciplinaridade seria uma das mudanças mais significativas na cultura científica, proporcionando trocas de informações e críticas e contribuindo para reorganizar o meio científico, justificada pela exigência de uma organização interna mais econômica e eficaz, que pode ser atingida pelo compartilhamento de projetos de pesquisa, e pela complexidade dos problemas que a sociedade enfrenta, como urbanismo, meio ambiente, poluição [e outros, tal como a criminalidade organizada transnacional, que exigem um trabalho conjunto de diversas disciplinas] (ANDALÉCIO, 2009, p. 48).

Hilton Japiassu (1976) disse que se estaria perante um empreendimento interdisciplinar sempre que se conseguisse absorver os resultados de vários ramos do saber, valendo-se de determinados instrumentais metodológicos extraídos de outras ciências e “fazendo uso de esquemas conceituais e das análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados” ( JAPIASSU, 1976, p. 75).

Ainda sob a ótica de Japiassu (2006),

a pesquisa interdisciplinar é a que se realiza nas fronteiras e pontos de contato entre diversas ciências, podendo ser obra tanto de um in-divíduo quanto de uma equipe. Essa modalidade de pesquisa não se conforma em promover a convergência e a complementaridade de

5 Hector Ricardo Leis (2005) apresentou 3 (três) conceitos imbricados de interdisciplinaridade, embasados em uma visão francesa, em uma ótica americana e em um viés brasileiro, sendo certo que na visão francesa, seria um conceito que estaria associado à cultura científica francesa, fixado em dimensões epistemológicas dos saberes disciplinares e na racionalidade científica, que pode ser qualificado como lógico racional, centrado na busca de significado (portanto, abstrato). Já na ótica americana, por sua vez, restaria associado à cultura científica norte-americana, de tipo metodológico, que remete a uma preocupação marcada pela lógica instrumental, orientada para a busca da funcionalidade social (portanto, profissionalizante). Já na ótica brasileira, o conceito estaria associado a uma cultura científica brasileira emergente, que privilegia as dimensões humanas e afetivas, expressando uma lógica subjetiva à procura do próprio ser. A partir de um enfoque interdisciplinar, essas 3 (três) visões se complementam muito mais do que se excluem.

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várias disciplinas para atingir um objetivo comum – busca utilizar essa colocação em presença para tentar obter uma síntese entre os métodos utilizados, as leis formuladas e as aplicações propostas (JA-PIASSU, 2006, p. 38-39).

Consoante Héctor Ricardo Leis (2005),

a interdisciplinaridade pode ser definida como um ponto de cruzamento entre atividades (disciplinares e interdisciplinares) com lógicas diferentes. Ela tem a ver com a procura de um equilíbrio entre a análise fragmentada e a síntese simplificadora (Jantsch e Bianchetti, 2002). Ela tem a ver com a procura de um equilíbrio entre as visões marcadas pela lógica racional, instrumental e subjetiva (Lenoir e Hasni, 2004). Por último, ela tem a ver não apenas com um trabalho de equipe, mas também individual (Klein, 1990) (LEIS, 2005, p. 9).

Aleixina Andalécio (2009) mostra que “a interdisciplinaridade amplia a formação geral dos pesquisadores, prepara melhor os indivíduos para a vida profissional, que cada vez mais exige uma formação polivalente, e assegura educação permanente” (ANDALÉCIO, 2009, p. 48).6

A interação entre disciplinas pode surgir de diversos fatores, entre eles as demandas sociais, que retiram a ciência de sua ‘torre de marfim’, “quando a sociedade cobra o estudo de problemas complexos que exigem a participação de várias especialidades” (ANDALÉCIO, 2009, p. 49).

Por fim, valendo-se de visão de Jean Piaget, citada por Hilton Japiassu (1976), poder-se-ia apresentar a transdisciplinaridade como uma etapa superior, que não se contentaria em atingir interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas que situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras estabelecidas entre as disciplinas.

Japiassu (2006) aponta que a pesquisa transdisciplinar

é a que se afirma no nível dos esquemas cognitivos podendo atraves-sar as disciplinas e visando à criação de um campo de conhecimen-tos onde seja possível a existência de um novo paradigma ou de um novo modo de coexistência e diálogo entre os filósofos e os cientistas, os esquemas nocionais devendo circular da filosofia às ciências na-turais e humanas, sem que haja nenhuma hierarquia entre esses di-

6 Mencionando visão de Georges Gusdorf, a autora pondera que o tema do conhecimento interdisciplinar remontaria tão longe quanto a desintegração moderna do conhecimento.

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versos modos de problematização e experimentação. As noções mais fundamentais implicadas nesse tipo de pesquisa são a cooperação, articulação, objeto e projeto comuns (JAPIASSU, 2006, p. 39-40).

Nesse tipo de pesquisa, surge, como verdadeira necessidade histórica, a tentativa de recomposição dos diferentes fragmentos do conhecimento, dissociados pela já explanada hiperespecialização dos saberes.

Reforçando-se o que acima vai dito, consoante lição de Aleixina Andalécio (2009), a transdisciplinaridade seria o equivalente a uma reação à excessiva especialização da ciência e resposta à dificuldade da ciência fragmentada em oferecer soluções para problemas complexos enfrentados pela sociedade, pois, “os verdadeiros problemas de nosso tempo escapam à competência dos experts, porque os experts, via de regra, são testemunhas do nada” ( JAPIASSU, 1976, p. 8).

Aleixina Andalécio (2009) expôs lista contendo dez razões que levariam à busca pela transdisciplinaridade, a saber:

1) a complexidade dos problemas que emergem no mundo acadêmi-co e fora dele; 2) a excessiva especialização do saber, que leva à perda mesmo do objeto; 3) a mesma superespecialização [hiperespecializa-ção], que aproxima uma especialidade das fronteiras de outra; 4) a necessidade de instituições universitárias interagirem com o que está fora delas; 5) a mudança de padrões homologatórios nas ciências; 6) o deslocamento do posto privilegiado do cartesianismo, provocado pela superação da ciência pela tecnologia e pela tecnociência; 7) a rápida obsolescência das ferramentas e dos conhecimentos especiali-zados; 8) a percepção de que há múltiplas verdades; 9) o apelo por novos sentidos do saber; e 10) a constatação de que o progresso, ao contrário do que se apregoava, nunca chega a grande parte do mun-do e continua carregando junto de si a barbárie (ANDALÉCIO, 2009, p. 49-50).

Aleixina Andalécio (2009) ponderou que não há consenso acerca do conceito de transdisciplinaridade, reforçando, inclusive, que o termo ainda não tinha sido registrado no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, por exemplo. Essa autora trouxe à baila algumas visões consagradas acerca da transdisciplinaridade, entre elas a de Jean Piaget, a de Erich Jantsch e a de Basarab Nicolescu.

Na visão de Jean Piaget, transdisciplinaridade implicaria a cons-trução de um sistema total sem fronteiras sólidas entre as discipli-

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nas, tal qual uma etapa superior de integração (ANDALÉCIO, 2009, p. 59).

Por sua vez, Erich Jantsch assinalou que transdisciplinaridade seria um nível superior de integração, em que os limites entre as disciplinas se dissolvem, constituindo um sistema total que transcende o plano de relações e interações entre elas (ANDALÉCIO, 2009, p. 60).

Arrematando a análise, a autora disse:

Basarab Nicolescu afirmou que haveria três pilares onde a transdis-ciplinaridade se embasa, a saber, níveis de realidade, axioma do ter-ceiro incluído e a complexidade, [sendo certo que esta última é a que mais vai interessar a este esforço de pesquisa]. Segundo o autor, a com-plexidade, que se nutre da explosão da pesquisa disciplinar e acelera a multiplicação das disciplinas, teria se instalado em todas as ciências, exatas ou humanas, rígidas ou flexíveis, mesmo naquela que seria a fortaleza da simplicidade, a física (ANDALÉCIO, 2009, p. 62).

Aleixina Andalécio (2009) mencionou que a transdisciplinaridade é, antes de tudo, um procedimento, uma atitude, contextualizada e referida a um determinado problema de interesse mútuo de especialidades diferentes, na qual se ‘desconfia de toda homogeneidade cultural e científica universal e de uma teo-ria demasiado geral’ e não se aceita o relativismo, a fragmentação e atomização das práticas sociais e epistemológicas (ANDALÉCIO, 2009, p. 65).

2 Ciência Policial

2.1 Conceito de Ciência Policial

Segundo lição de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes (2008), ciência7, em seu sentido mais tradicional e amplo, é um saber dotado de método e de rigor,

7 Segundo Ercy José Soar Filho (2003), algumas mudanças definitivas vêm ocorrendo nos fundamentos epistemológicos da ciência e para entendê-las é conveniente voltar a atenção para o conceito de paradigma, uma palavra que vem do grego e que significa ‘modelo’ ou ‘padrão’. Fomos todos treinados a pensar com um paradigma que nos impele a tomar o nome pela coisa designada. Somos induzidos a crer, e a não colocar em dúvida nossa crença, que os constructos científicos são retratos de uma realidade existente per si, e que refletem totalidades. Facilmente nos esquecemos de que os modelos teóricos isolam os dados que os contrariam e nos levam a recortar detalhes daquilo que observamos: os detalhes que, recursivamente, confirmam nosso modelo. (...) Geralmente não estamos atentos para o fato de que, quando o nosso modelo (nosso ‘paradigma’ ou nossa ‘epistemologia’) se torna o único modo de ver e de fazer, ‘instala-se uma disfunção que é chamada de ‘paralisia de paradigma’ ou ‘doença fatal da certeza’. E essa doença é mais fácil de contrair do que se pode imaginar.

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isto é, “um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados, e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino” (JAPIASSU e MARCONDES, 2008, p. 44).

Ainda sob a pena de Japiassu e Marcondes (2008), segundo visão mais recente,

ciência é a modalidade de saber constituída por um conjunto de aquisições intelectuais que tem por finalidade propor uma explica-ção racional e objetiva da realidade. Mais precisamente ainda: é a forma de conhecimento que não somente pretende apropriar-se do real para explicá-lo de modo racional e objetivo, mas procura estabe-lecer entre os fenômenos observados relações universais e necessárias, o que autoriza a previsão dos resultados (efeitos) cujas causas podem ser detectadas mediante procedimentos de controle experimental (JAPIASSU & MARCONDES, 2008, p. 44).

André Lalande (1999) assinalou que “as ciências aplicadas são estudos que têm por objeto aplicar leis a um fim prático (leis que pertencem, em geral, a diversas ordens de conhecimento teórico)” (LALANDE, 1999, p. 158). A Ciência Policial, por óbvio, possui todos os caracteres de verdadeira ciência aplicada.

A Ciência Policial pode ser vislumbrada como o conhecimento racional e objetivo8, passível de compreensão e de refutação, detentor de rigor epistemológico [pelo menos nos moldes da ciência dogmática], apli-cado à atividade policial9, que, no caso da polícia judiciária, diz respeito, pre-cipuamente, à investigação criminal, que, ainda que permeada pela comple-xidade e pela transdisciplinaridade, possui limitadores próprios, como seria o caso das limitações constitucionais e legais relativas às provas, notadamente

8 Consoante Ercy José Soar Filho (2003), o paradigma tradicional das ciências valoriza o conhecimento científico como única forma válida de saber, está centrado na busca de verdades universais e dissocia o senso comum do conhecimento especializado. Ao valorizar a especialização do conhecimento, o paradigma tradicional cria uma relação simbiótica entre saber e poder e afasta-se dos outros discursos circulantes na sociedade, desqualificando outras versões da realidade e negando-lhes a competência que de fato possuem para a resolução de problemas da vida cotidiana. Ao operar através da disjunção, da segmentação e da redução do conhecimento, esse paradigma conforma um pensamento simplificador; orienta-se por uma racionalidade formal e instrumental que despreza o que há de caótico, desorganizado e imprevisível na realidade.

9 Na visão de Jairo Enrique Suárez Alvarez (2010), embasando-se em Miguel Antonio Gómez Padilla, a Ciência Policial possui caráter interdisciplinar, pois seria evidente que ela se socorre de outros campos de conhecimento, tendo este definido Ciência Policial como o estudo sistemático, ordenado e crítico do ente polícia em seu contexto histórico, cultural, sociológico, político, econômico e filosófico, tanto em sua dimensão universal, quanto em sua dimensão local.

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no que concerne à verdade real atingível, que não pode ser aquela alcançável a qualquer preço, valendo-se o sujeito que conhece de meios ilícitos ou ilegí-timos para alcançar esse conhecimento, por exemplo.

Digno de nota é o seguinte trecho do “balanço” do I Seminário Internacional sobre Ciências Policiais e Política Criminal 2010, apresentado por Célio Jacinto dos Santos (2010), a saber:

Vimos, ainda, que esta nova ciência policial, como bem ressaltou o Prof. Jairo Alvarez, é multidisciplinar por natureza, com pluralidade metodológica, embora seja possível, conforme a função de polícia a ser exercida, identificar a preponderância de um ramo do saber que informa seu trabalho.

De maneira semelhante Manuel Valente pontuou que a Ciência Policial emergente encontra seus paradigmas em um pensar em passos con-troláveis e cognitivos, na formulação de inferências e conclusões justificadas, sendo interdisciplinar e intersubjetiva, centrando no estudo da atividade da polícia, (...) omissis; (SANTOS, 2010).

Percebe-se, claramente, desse excerto que o rigor conceitual acerca dos caracteres a serem identificados com essa nova Ciência Policial ainda não está consolidado, vislumbrando-se doutrinadores dessa estirpe arrolando ora como característica a multidisciplinaridade, ora a interdisciplinaridade.

Hans-Gerd Jaschke (2005) afirmou que a lépida troca de informações e de conhecimentos, das pessoas e dos bens, das culturas e dos valores e, ainda, o surgimento de uma ascendente desigualdade social, têm engendrado novos tipos de crimes, tais como o crime organizado, a corrupção, o crime cibernético e o terrorismo, com suas ameaças inerentes. As forças policiais e os órgãos judiciários dão respostas a essas modernas ameaças, valendo-se de conhecimentos científicos para a realização desses misteres.

Segundo esse autor alemão, os fatos relativos ao 11 de setembro de 2001 tiveram um impacto amplo e duradouro na dinâmica da cooperação internacional, que resultou, em grande parte, no interesse e no emprego de métodos científicos no âmbito das investigações policiais. Essa mesma atitude, de Ciência Policial aplicada, que implica soluções científicas em questões de criminalística, também se reflete no âmbito das ciências sociais aplicadas atreladas a esse saber.

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Hans-Gerd Jaschke (2005) disse que a investigação policial acadêmica em disciplinas como a Criminologia, a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia, a Antropologia etc., tem apresentado um amplo leque de estudos empíricos e de discussões teóricas, alguns deles relacionados às bases estruturais da Ciência Policial.

Esse doutrinador afirmou que, diversas vezes, isso tem sido feito levando-se em conta os padrões das diferentes disciplinas e suas respectivas metodologias, sendo certo que, pontualmente, por ora, há experiências que empreendem enfoques interdisciplinares e isso tangencia o escopo deste esforço de pesquisa. Reputa-se que tais enfoques sejam o caminho natural a ser percorrido pela Ciência Policial da atualidade: mais interdisciplinaridade e, conseqüentemente, mais transdisciplinaridade.

Hans-Gerd Jaschke (2005) disse que são conhecidas algumas experiências no sentido de se lecionar disciplinas denominadas “Estudos Policiais” ou “Ciência Policial”, algo que ainda não é aceito em parte da Europa e, logicamente, no mundo afora, reconhecendo-se, portanto, que a Ciência Policial, como disciplina integrada e integradora, isto é, interdisciplinar ou, quiçá, transdisciplinar, está em sua fase embrionária, reputando-se, ainda, muito incipiente.

2.2 História da Ciência Policial10

Hans-Gerd Jaschke (2005) mencionou que embora o termo “Ciência Policial” não tenha um conceito comum no âmbito das modernas ciências sociais, ele já possui uma certa tradição. Já no século XVIII, a ciência da polícia (Polizeiwissenschaft) era a ciência do Estado, conceito muito dilargado, que englobava quase todas as tarefas de que se desincumbia o governo. Similarmente ao verbete francês Police, a palavra alemã Polizei se referia ao conjunto de atividades governamentais muito antes da existência de forças policiais que as levassem a cabo, já que isso só ocorreu principalmente a partir do século XIX.

O referido autor tudesco assinalou que seu significado original, que remonta ao século XV, era coincidente com o de governo ou administração em si, ainda que se utilizasse esse verbete, de forma muito ampla, no contexto

10 Para um estudo de fôlego, sob o ponto de vista histórico, da Ciência Policial, veja-se o trabalho de Jairo Enrique Suárez Alvarez, publicado no Volume 1 da Revista Brasileira de Ciência Policial, sob o título “Avances de la Ciencia de Policía em América Latina”.

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de manutenção da ordem e de prevenção de conflitos civis. Ponderou que a Ciência Policial chegou a ser uma disciplina acadêmica em algumas nações européias, durante o século XIX, sendo ministrada nas universidades.

Ainda se reportando a aspectos históricos, Hans-Gerd Jaschke (2005) afirmou que, durante o século XX, começou a desaparecer o sentido governamental da “Ciência Policial”, sendo substituído por um significado ligado à Criminologia e à Criminalística. Por sua vez, a partir dos anos setenta desse mesmo século, a investigação policial de caráter empírico se inicia em quase todas as nações européias, seguindo dois caminhos principais: a investigação realizada por acadêmicos acerca da Polícia e a pesquisa realizada pela própria Polícia.

2.3 Tendências da Ciência Policial

Hans-Gerd Jaschke (2005) aduziu que a atividade policial é uma atividade baseada no conhecimento. Os servidores policiais necessitam, cada vez mais, de uma formação e conhecimentos minuciosos a respeito dessa atividade e de seus desafios colocados por uma realidade cada vez mais dinâmica e globalizada, como a existente nos meandros da sociedade global do risco. A Ciência Policial oferece a base de investigação que delimita esse conjunto de conhecimentos.

O recente desenvolvimento das sociedades européias [e também no âmbito global], e as matérias objeto de pesquisa policial como as que acima se descrevem, demonstram a necessidade de um enfoque interdisciplinar que tenha como propósito coordenar e integrar as disciplinas relativas à Polícia já existentes, tendo como metadisciplina a Ciência Jurídica. Não se supõe que qualquer dessas disciplinas hoje existentes possa dar respostas aplicando-se somente seus próprios métodos, discursos e achados isoladamente.

Segundo, ainda, a visão de Hans-Gerd Jaschke (2005), a Ciência Policial é o estudo científico da Polícia enquanto instituição, e da ação policial [atividade policial] enquanto processo. Como disciplina aplicada, combina os métodos e os propósitos de outras disciplinas relacionadas dentro do âmbito da atividade policial, [aqui se vislumbrando certa interdisciplinaridade], incluindo-se tanto o que a Polícia faz quanto as influências externas que têm um impacto na ordem pública e na atividade policial. O fato de se vislumbrar a atividade policial enquanto processo abre espaço para estudos de aplicações do pensamento complexo e do pensamento sistêmico no âmbito desse objeto.

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Esse doutrinador afirmou que a Ciência Policial tem por objetivo adquirir conhecimentos e explicar os fatos que surgem da realidade da atividade policial. A Ciência Policial é uma ciência que combina os métodos e instrumentos conhecidos a partir de disciplinas próximas, tais como as ciências sociais aplicadas, entre elas a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a História, a Criminologia e o Direito, razão pela qual pode ser considerada interdisciplinar, por excelência.

A Ciência Policial provê matérias de investigação conjunta cuja finalidade é reagir às divisões e às fronteiras que se instalam entre as disciplinas existentes. Sempre que se pugna trabalhar nas divisões e nas fronteiras de disciplinas, faz-se opção pela abordagem transdisciplinar.

Por ser uma ciência social aplicada, a Ciência Policial tem como objeto aportar o conhecimento de que necessitam os gestores da Polícia, para executar suas tarefas. Além disso, oferece conhecimento de que precisam as sociedades democráticas para controlar a prática policial e para tomar parte nos processos da atividade policial.

Hans-Gerd Jaschke (2005) asseverou que a Ciência Policial é uma ciência aplicada e segue as perspectivas comparativas e as normas metodológicas de outras ciências, próximas das metodologias das ciências sociais. Trata-se de uma ciência social aplicada.

Ao abordar as atuais atividades de pesquisa, formação e educação policiais, tanto nacionais quanto internacionais, pode-se afirmar, embasando-se em Hans-Gerd Jaschke, que a maioria dessas se constitui de questões isoladas que respondem a exigências práticas, mas na cultura policial as questões de tipo geral restam mais ou menos abandonadas. Pode ser que haja uma relação disso com a cultura da pesquisa e da formação, dominada por conceitos práticos e empíricos, e pelo chamado temor da teoria. O que se tem em mente ao se pesquisar este tema é, exatamente, dar um contributo, ainda que singelo, para a construção das bases estruturais da Ciência Policial, elaborando-se delimitações teóricas nem sempre vistas como importantes pela denominada cultura policial.

Não obstante, segundo o supracitado autor alemão, a Ciência Policial precisa de teoria. Não apenas nos aspectos propriamente metodológicos, mas também nas discussões relativas aos temas principais. Uma das mais

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importantes tarefas será, no futuro, aquela de tratar aspectos gerais da atividade policial, a observação, a descrição, a análise e o provimento de conceitos às atividades específicas de pesquisa e formação.

3 Pensamento Complexo e Transdisciplinaridade

Hilton Japiassu (2006) asseverou que inúmeros são os problemas que não encontram mais lugar no interior de uma disciplina tomada isoladamente. Revelam-se como um novo recorte do saber. A ecologia, a energia, a alimentação, a demografia, a comunicação internacional, a criminalidade organizada transnacional etc. constituem problemas exigindo um iter a ser percorrido por meio de várias disciplinas, portanto um espírito verdadeiramente transdisciplinar.

O campo mais fértil para a experiência transdisciplinar é justamente aquele reservado às ciências aplicadas, onde o desafio prático se coloca perante o indivíduo ou a equipe. Questões e problemas de cunho prático surgem a todo instante no âmbito de estudo da Ciência Policial. Um exemplo disso é, sem dúvida, o interrogatório policial, que é ação caracterizada pela complexidade, por envolver e implicar saberes de diversas disciplinas, tais como Direito, História, Psicologia, Antropologia, Sociologia e, até mesmo, Neurolinguística Aplicada.

Hilton Japiassu (2006) afirmou que, mais recentemente, um elemento novo veio alterar os rumos das pesquisas interdisciplinares. Ganha cada vez mais adeptos a corrente propondo-se a estudar o pensamento complexo que se apresenta como um pensamento animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um saber não fragmentado, não parcelar, não estanque, não redutor, e o reconhecimento de seu estado de não acabamento e de sua incompletude.

Segundo o supracitado autor, partindo-se da afirmação de Pascal segundo a qual, “é impossível conhecer o todo sem conhecer cada uma das partes, bem como conhecer as partes sem conhecer o todo”,

os pensadores da complexidade, reconhecendo ser possível uma arti-culação entre a ordem, a desordem e a organização, acreditam que devemos hoje pensar os fenômenos (naturais, sociais e humanos) fa-zendo interagir uma multidão de fatores que seriam interdependen-tes. Precisamos recompor uma visão da realidade religando os saberes

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dispersos sem fundi-los numa hipotética síntese global. Ademais, pre-cisamos ainda integrar a desordem, o incerto, o inesperado e o acaso no conhecimento do real. E sem comprometer o rigor, resgatar a parte de irredutível e de subjetividade no estudo dos fenômenos humanos. Cada vez mais tomamos consciência de que não podemos nos resignar com o saber esfacelado nem isolar os objetos de estudo de seu contexto, de seus antecedentes e de seu devir. Porque a grande maioria dos obje-tos de estudo só consegue ser apreendida por um pensamento realmen-te multidimensional (JAPIASSU, 2006, p. 61).

Ora, ainda segundo Hilton Japiassu (2006), o novo transdisciplinar deveria fundar-se no paradigma da complexidade, o único capaz de promo-ver um tipo de comunicação sem redução, pois nasce ao mesmo tempo do desenvolvimento e dos limites das ciências contemporâneas.

O que deve ser ressaltado é que o complexo aqui tantas vezes mencionado não deve ser visto como elucubração teórica, mas, sim, como ação, como práxis. A explicação advém de argumentação de Edgar Morin, que será apresentada em estudo de caso ao final deste opúsculo.

4 Pensamento Complexo e Transdisciplinaridade Aplicados à Ciência Policial

Maria Vasconcellos (2002) aduziu, ao tentar distinguir dimensões no paradigma emergente da ciência contemporânea, que um dos avanços notados, certamente, poderia ser detectado a partir da transmutação de um pressuposto da simplicidade para um pressuposto da complexidade, isto é, o reconhecimen-to de que a simplificação obscurece as inter-relações de fato existentes entre todos os fenômenos do universo e de que é imprescindível ver e lidar com a complexidade do mundo em todos os seus níveis. Disso decorreria, entre outras coisas, uma atitude de contextualização dos fenômenos e o reconhecimento da causalidade recursiva (VASCONCELLOS, 2002, p. 101).

Segundo, ainda, Maria Vasconcellos (2002), hoje se fala tanto em complexidade, sistemas complexos, complexidade das organizações, complexidade da sociedade, que até se corre o risco de pensar que a complexidade é mais um produto novo que se deve consumir neste início de século XXI. Ora, a complexidade em si não é nova, mas, tão-somente o seu reconhecimento pela ciência moderna é que é muito recente (VASCONCELLOS, 2002, p. 104).

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Mudou-se a visão acerca da complexidade que era vislumbrada como uma invocação de dificuldade de compreensão ou de realização, ou uma justificativa da falta de uma teoria ou da insuficiência das explicações. Passou a ser, então, entendida como uma questão a ser abordada, um objeto de estudo e de pesquisa sistemática.

Tendo em conta que a complexidade por muito tempo foi deixada de lado, para que se pudesse fazer prevalecer a simplicidade cartesiana, hoje em dia se reconhece que a complexidade não é, como se acreditava, uma propriedade específica dos fenômenos biológicos e sociais, tornando-se, portanto, um pressuposto epistemológico transdisciplinar.

Maria Vasconcellos (2002) asseverou que, partindo-se do étimo, complexidade11 tem origem latina no verbete complexus, o que está tecido em conjunto, referindo-se a um conjunto, cujos constituintes heterogêneos estão inseparavelmente associados e integrados, sendo ao mesmo tempo uno e múltiplo, conforme apregoara Edgar Morin (VASCONCELLOS, 2002, p. 110).

A mesma autora aduziu que quando se fala em perceber o complexo, isso remete à idéia de complexidade como pressuposto ou paradigma. Viu-se que o paradigma tradicional treinou os estudiosos para perceber simpli-ficando, e a dominância desse paradigma da simplificação dificultou que se pensasse e que se percebesse a complexidade (VASCONCELLOS, 2002, p. 110-111).

Uma das conseqüências desse pensamento complexo é que, em vez de pensar a compartimentação estrita do saber, passa-se a focalizar as possíveis e necessárias relações entre as disciplinas e a efetivação de contribuições entre elas, caracterizando-se uma interdisciplinaridade [ou quiçá uma transdisciplinaridade]. Aliás, o próprio Edgar Morin afirmou

11 Segundo JAPIASSU & MARCONDES (2008), complexidade (do latim complecti: abraçar) significaria a noção desenvolvida por Edgar Morin, não só para dar razão a Pascal, quando dizia: “considero impossível conhecer o todo sem conhecer cada uma das partes, bem como conhecer as partes sem conhecer o todo”, mas para responder aos principais desafios do pensamento contemporâneo. Ao apresentar-se como um novo paradigma nascido ao mesmo tempo do desenvolvimento e dos limites da ciência atual, o pensamento da complexidade procura integrar seus princípios em um esquema mais amplo e mais rico. Donde dar-se por objeto: a) compreender os fenômenos naturais e humanos sobre os quais incidem múltiplos fatores interdependentes; b) recompor uma visão da realidade capaz de religar os saberes fragmentados sem cair numa hipotética síntese global; c) integrar no conhecimento do real a desordem, o incerto, o inesperado e o acaso; d) superar as clivagens entre modelos rivais: sujeito/objeto, indivíduo/sociedade, natureza/cultura, ordem/desordem e explicação/compreensão ( JAPIASSU & MARCONDES, 2008, p. 49).

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que o problema da epistemologia complexa é fazer comunicar as instâncias separadas do conhecimento (VASCONCELLOS, 2002, p. 114).

Pensar o objeto em contexto significa pensar em sistemas complexos, cujas múltiplas interações e retroações não se inscrevem em uma causalidade linear12 – tal causa produz tal efeito – e exigem que se pense em relações causais recursivas. Essa complexidade de que tanto se fala hoje em dia, na verdade, mui-to mais cuida de ser um desafio que incita os pesquisadores a buscar uma nova forma de pensar e de agir (VASCONCELLOS, 2002, p. 114 e 118).

4.1 Estudo de Caso: pensamento complexo e transdisciplinaridade aplicados ao interrogatório policial

O interrogatório policial é um exemplo interessante de ação [atividade] que se vale do pensamento complexo e da transdisciplinaridade para se estruturar.

A doutrina jurídica apresenta diversos conceitos de interrogatório e, a título de condensação, valendo-se da visão de Fernando Capez (2009), extrai-se que esse instituto é o “ato judicial no qual o juiz ouve o acusado sobre a im-putação contra ele formulada, sendo ato privativo do juiz e personalíssimo do acusado, possibilitando a este último o exercício da sua defesa, da sua autodefe-sa” (CAPEZ, 2009, p. 350). Essa visão é processualista penal, como é cediço.

Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, o interrogatório é o ato ou efeito de interrogar, bem assim pode ser compreen-dido como sendo o momento processual em que autoridade judicial argúi o réu sobre sua identidade e fatos relacionados à acusação que lhe é feita. Por determinação legal, a mesma positivação jurídica do interrogatório judicial é utilizada no Livro I do CPPB, tendo por fito dar lastro técnico-jurídico ao interrogatório policial.

O interrogatório, segundo a melhor doutrina policial, faz parte do arcabouço operacional da atividade de polícia judiciária (ANP, 2002).

12 Importante reforçar a idéia de que o pensamento complexo é constituído das imbricações fortes existentes entre o pensamento linear e o pensamento sistêmico, jungindo-se essas duas formas de pensar, sem se aplicar o método dialético, onde o pensamento complexo seria a síntese do pensamento linear e do pensamento sistêmico. O pensamento complexo é mais do que a soma de suas partes, mais do que a mera adição de pensamento linear e pensamento sistêmico.

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A apostila de técnicas de entrevista e interrogatório utilizada pela ANP/DPF, nos idos de 2002, assinalava que, em sentido amplo, o interrogatório pode ser aplicado tanto às entrevistas, quanto aos interrogatórios propriamente ditos (em sentido estrito). Em verdade, quando uma autoridade policial realiza a oitiva de uma testemunha, o que se vê é uma espécie de interrogatório, por meio do qual as indagações são efetuadas. A grande diferença entre interrogatórios e entrevistas é que nestas, o que se busca são informações não incriminatórias; naqueles, o que se tem em mira é a obtenção de informações de natureza específica, que podem incriminar tanto o suspeito, quanto outros indivíduos a ele vinculados (ANP, 2002).

O interrogatório, no âmbito policial, tem dupla finalidade, a saber:

a) diálogo entre autoridade ou agentes da autoridade de um lado e indiciado, suspeito ou testemunha de outro lado, tendo por fito a colheita de elementos de convicção para a instrução de um inquérito policial;

b) ato formal e solene, previsto em nosso CPPB, a partir do artigo 185 (e seguintes) (ANP, 2002).

Na visão abalizada de Eugênio Pacelli de Oliveira (2007), percebe-se, em relação à natureza jurídica do interrogatório,

que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores problemas, até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa. Trata-se, efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo (OLIVEIRA, 2007, p. 330).

O interrogatório policial é composto de uma estrutura complexa, sendo certo que, doutrinariamente, ele é apresentado, em termos técnico-jurídicos, como constituído de duas partes13. A primeira parte é equivalente

13 Fernando Capez (2009), ao discorrer sobre o conteúdo do interrogatório, disse que o Código de Processo Penal, em seu artigo 187, com a redação determinada pela Lei n.º 10.792/2003, divide o interrogatório em duas partes: a) interrogatório de identificação (relativo à pessoa do acusado), e b) interrogatório de mérito (relativo aos fatos imputados ao acusado). O interrogatório de identificação diz respeito à pessoa do acusado, buscando a sua identificação, bem como a individualização de

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a um programa; a segunda parte é equivalente a uma estratégia. A primeira parte é formada de um conjunto de indagações, insculpidas em norma positi-vada, que resultam em identificação e qualificação do interrogado. A segunda parte, a despeito de existência de perguntas clássicas de processo penal, que deverão, necessariamente, restar presentes, permite o desenvolvimento do inesperado, do inusitado, do acaso, das referências, das bifurcações etc., que convolam a complexidade em si.

O interrogatório policial pode ser qualificado pelo menos como interdisciplinar, posto que, por meio da coordenação da disciplina Ciência Jurídica, outras disciplinas são interligadas e mescladas para a realização do ato. Não se pode olvidar que há, certamente, interpolações na ação complexa sob comento de diversos ramos do saber, como, por exemplo, da História, tendo em conta a ambição de verdade a que se reporta o processo penal e seus entes correlatos, como o inquérito policial. Resta clara a importância dos aportes conceituais de prova, verdade, vestígio, traço etc.

Mas não apenas da História aqui se trata. Há também aportes metodológicos e conceituais oriundos da Psicologia, vide, por exemplo, os conceitos de consciência e vontade, perfeitamente sedimentados no âmbito da Ciência Jurídica, bem assim os conhecimentos técnicos oriundos desse ramo do saber que tanto auxiliam no descobrimento da verdade real atingível, como, por exemplo, aportes metodológicos e conceituais relativos a entrevistas e interrogatórios. Não se pode afastar, ademais, a importância dos conceitos e das teorias relativos à memória, algo muito relevante para esse ramo do saber, que tem, certamente, implicações diretas no âmbito do interrogatório policial.

Ora, além da História e da Psicologia, não se pode deixar de lado o contributo da Antropologia, notadamente quando se está diante de interrogatórios de membros de grupos inseridos em nossa sociedade, com seus diletantismos, posturas, repulsas, éticas peculiares etc., como, exempli gratia, os hackers ou os indígenas. A autoridade policial que se propuser a

sua personalidade. (...) Omissis; a seguir, isto é, vencida a fase da identificação, deve o juiz, antes de proceder à oitiva sobre a imputação propriamente dita, cientificar o réu da acusação que lhe é dirigida, o que, em outras palavras, significa dar-lhe conta dos elementos probatórios até então coligidos, possibilitando-lhe, assim, o correto desempenho de sua autodefesa. Inicia-se, pois, o interrogatório de mérito, em que o magistrado deve, adaptando-se às peculiaridades do caso concreto, formular, entre outras, as perguntas consignadas nos incisos I a VIII do § 2.º do artigo 187 do CPP (cf. redação determinada pela Lei n.º 10.792/2003) (CAPEZ, 2009, p. 363-364).

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interrogar componentes de tais grupos sociais, caso esteja supedaneada por uma ótica transdisciplinar e que leve em consideração as complexidades inerentes a tais situações fáticas, certamente há de obter melhores resultados qualitativos, frise-se, acerca de seu proceder.

Tendo em conta que a linguagem corporal é fator fundamental no processo e no agir comunicativos de um indivíduo, não há que se abrir mão do contributo apresentado pela chamada Neurolinguística Aplicada, algo que já está consolidado no âmbito da práxis de interrogatórios policiais.

Vê-se que a utilização da Ciência Jurídica, como balizadora dos saberes da História, da Psicologia, da Antropologia e da Neurolinguística Aplicada, dá ensejo ao reconhecimento de uma realidade mais conglobante do que aquela que surgiria da atuação isolada de quaisquer dessas disciplinas. E a Ciência Jurídica é a coordenadora desses saberes porque há limitações constitucionais e legais à realização dessa atividade policial, posto que inaceitável, em um Estado Democrático de Direito, a descoberta da verdade a qualquer preço.

Agreguem-se a isso os conhecimentos especializados oriundos de outros ramos do saber que podem, sim, ser atrelados àqueles expressamente menciona-dos acima, para se confirmar que o interrogatório policial é, sem dúvida, um obje-to cognoscente dotado de complexidade e de necessária interdisciplinaridade.

Ressalte-se que sendo o pensamento complexo um dos pilares da transdisciplinaridade, conforme apregoado por Basarab Nicolescu (ANDA-LÉCIO, 2009, p. 62) pode-se afirmar, com segurança, que o interrogatório policial é, de fato, um objeto cognoscente dotado de complexidade e realiza-dor de transdisciplinaridade.

A complexidade inerente ao interrogatório policial possui seu lastro no pensamento sistêmico, que busca seus fundamentos na Cibernética de segunda ordem, razão pela qual há necessidade de se sedimentar conceitos fundamentais inerentes a esse ramo do saber.

Os conceitos mais importantes que são apresentados pela Cibernética de segunda ordem são o de ação, retroação (feedback), programa e estratégia. Outros conceitos tais como input, output, máquinas triviais e máquinas não triviais têm sua relevância, sendo certo que noções desses conceitos podem ser apresentadas, contudo, estudos mais aprofundados acerca de Cibernética de segunda ordem fogem ao escopo deste opúsculo.

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Segundo Edgar Morin (2007),

às vezes tem-se a impressão de que a ação simplifica, porque frente à alternativa, tomada a decisão, corta-se sem piedade. A ação é uma decisão, uma escolha, mas também é um desafio. Na noção de desa-fio há a consciência do risco e da incerteza. Qualquer estrategista, não importa em que domínio, tem consciência do desafio, e o pen-samento moderno compreendeu que nossas crenças mais fundamen-tais são objeto de desafio (MORIN, 2007, p. 79).

Entende-se por estratégia, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, por extensão de sentido, “a arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos”.

Por sua vez, do mesmo dicionário, a partir da expressão programa de computador, extrai-se que programa pode ser compreendido como um conjunto ordenado (pré-ordenado) de passos ou ações a serem executados.

Edgar Morin (2007) afirmou que a ação é estratégia. Nesse contexto, a atividade policial é ação, inclusive muitos dos mais singelos atos que a compõem são ações, e, claro, necessitam de estratégias. Segundo esse doutrinador, a palavra estratégia não designa um programa pré-determinado que basta aplicar de forma invariável no tempo e no espaço. Conforme o autor sob comento, “a estratégia permite, a partir de uma decisão inicial, prever certo número de cenários para a ação, cenários que poderão ser modificados segundo as informações que vão chegar no curso da ação e segundo os acasos que vão se suceder e perturbar a ação” (MORIN, 2007, p. 79).

Sintetizando-se o pensamento moriniano acerca da complexidade, percebe-se que a estratégia luta contra o imprevisível e persegue a informação. Além disso, ela não se limita a se digladiar com o acaso, também procura se valer dele. A estratégia aproveita-se do acaso e, quando se trata de estratégia em relação a outro player, como, por exemplo, o interrogado, em contraposição à autoridade policial, a estratégia utiliza-se dos “equívocos” do oponente. Assim, “no campo da estratégia, o acaso não é apenas o fator negativo a ser reduzido. É também a chance que se deve aproveitar” (MORIN, 2007, p. 80).

Edgar Morin (2007) disse que a questão da ação também torna as pessoas cônscias das “derivas” e das “bifurcações”, eis que “situações iniciais muito próximas podem conduzir a afastamentos irremediáveis” (MORIN,

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2007, p. 80). O autor afirmou, ademais, que o campo da ação é imprevisível, incerto e aleatório, algo que impõe a necessidade de tomada de consciência bem atilada acerca “dos acasos, derivas, bifurcações, e nos impõe a reflexão sobre sua própria complexidade” (MORIN, 2007, p. 80).

Esse autor francês mencionou que a ação pressupõe o pensamento complexo, ou seja, a presença do acaso, do imprevisto, da iniciativa, da decisão, da consciência das derivas, das bifurcações e das transformações. Ponderou, outrossim, que

a palavra estratégia se opõe a programa. Para as sequências integradas a um meio ambiente estável, convém utilizar programas, [tal como no procedimento inicial do interrogatório policial, onde se busca identificar e qualificar o cidadão]. O programa não obriga [a autoridade policial] a inovar. Sempre que possível, portanto, deve-se utilizar múltiplos fragmentos de ação programada nessa primeira fase, para que se possa concentrar no que é importante, no que está por vir, que, certamente, dependerá, e muito, da correta utilização de estratégia no acaso, [que, fatalmente, surge com o desenvolvimento de interrogatórios policiais] (MORIN, 2007, p. 81).

Edgar Morin (2007) alerta para o fato de que não há que se falar, por um viés, de um campo da complexidade, que seria o do pensamento, do questionamento, da indagação e da reflexão, e por outro espectro, de um campo das coisas simples, que seria o da ação. Reforçou sua visão alardeando que “a ação é o reino concreto e vital da complexidade” (MORIN, 2007, p. 81), disso resultando a importância da aplicação do pensamento complexo e da transdisciplinaridade à atividade policial, que, como se viu antes, é ação em sentido estrito.

A ação, vez por outra, pode se contentar com a estratégia imediata que “depende das intuições e dos dons pessoais do estrategista” (MORIN, 2007, p. 81). O pensamento complexo demonstra, inclusive, que o predomínio do saber científico, de forma compartimentada e estanque, é simplificador e mutilador. A intuição14 deve atuar, gregariamente, com o sa-ber científico transdisciplinar. Percebe-se, portanto, que a autoridade policial

14 Intuição, segundo Maria Francisco Carneiro (2009), é a forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo evidente, mas não necessitando de demonstração. A autora sob comento assinalou que intuição empírica seria o conhecimento imediato da experiência, seja externa (intuição sensível), seja interna (intuição psicológica). Mencionou, ainda, que intuição pode ser entendida como o sentimento súbito (insight) de um caminho para a solução de um problema ou da descoberta de uma relação científica.

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pode se beneficiar, claramente, da aplicação do pensamento complexo ao in-terrogatório policial.

Em verdade, a autoridade policial traz para o interrogatório policial toda a sua experiência pessoal, toda a sua vivência profissional, todas as infe-rências que o que comumente acontece pode oferecer (quod plerumque acci-dit). Jungindo-se toda essa carga de saber empírico-pragmático aos saberes científicos transdisciplinares (Ciência Jurídica, Direito, História, Antropo-logia, Neurolinguística Aplicada etc.), o que se detecta é um novo patamar de conhecimento, muito maior do que a soma de experiências, de savoir-faire e de técnicas de interrogatório.

Relembrando-se o pensamento moriniano, “o todo é mais do que a soma das partes que o constituem” (MORIN, 2007, p. 85).

Uma visão simplificada linear tem sua importância, não se está, em momento algum negando isso, contudo, essa modalidade de visão tem todas as chances de ser mutiladora, arrematou Edgar Morin (2007), e ela não deve ser aplicada, mecanicamente, em interrogatórios policiais, a não ser em suas fases iniciais.

Edgar Morin (2007) mencionou que “os seres humanos não são máquinas triviais: uma máquina trivial é aquela da qual, ao se conhecer todos os inputs e todos os outputs, pode-se predizer o seu comportamento desde que se saiba tudo o que entra na máquina” (MORIN, 2007, p. 82).

Edgar Morin (2007) asseverou, também, que

de fato, a vida social exige que nos comportemos como máquinas triviais. Não se age como puro autômato, [principalmente na realização de interrogatórios policiais]. Busca-se meios não triviais quando se constata que não se pode alcançar os fins colimados. O importante é que surgem momentos de crise, momentos de decisão, onde a máquina se torna não trivial: ela age de uma maneira imprevisível. Tudo o que diz respeito ao surgimento do novo não é trivial e não pode ser dito antecipadamente, [e isso ocorre com freqüência na segunda parte dos interrogatórios policiais] (MORIN, 2007, p. 82).

O interrogatório policial, como atividade complexa que é, necessita de uma estratégia. Trechos iniciais específicos dessa ação podem ser compostos de segmentos programados com seqüências em que o aleatório

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não intervenha e isso pode ser útil ou necessário, inclusive na obtenção de padrões de respostas verbais e corporais dos interrogados, algo relevante ao extremo para a neurolinguística aplicada, posto que “o corpo fala”.

Sempre que o inusitado e o imprevisível surgem ou se apresentam, a estratégia se impõe. Quer isso significar que a estratégia sempre será necessária, toda vez que surgir uma questão importante, e, certamente, na realidade cotidiana dos interrogatórios policiais isso sempre ocorre.

Ora, “o pensamento complexo não resolve por si só os problemas, mas se constitui em uma ajuda à estratégia que pode resolvê-los” (MORIN, 2007, p. 83).

Conforme visão moriniana, o pensamento complexo está situado em uma posição inicial direcionada para uma ação mais enriquecedora e, ob-viamente, menos simplificadora e menos mutiladora.

Considerações Finais

A despeito das oscilações conceituais, percebe-se, claramente, que a construção de uma nova Ciência Policial vem se dando a passos largos, quase sempre trilhados sob uma ótica interdisciplinar e, vez por outra, sob os augúrios de uma visão transdisciplinar, e não poderia ser diferente, posto que os saberes atrelados a essa nova ciência são dotados de complexidade, algo que demanda reflexões acerca da realidade globalizada em que se vive, bem assim algo que impende uma busca incessante por lastros teóricos e epistemológicos, que poderão contribuir para a consolidação e o avanço desse constructo.

A complexidade exige, como se viu, a suplantação da excessiva fragmentação do conhecimento científico, o reconhecimento da serventia e da importância de outras formas de conhecimento, como, por exemplo, o conhecimento intuitivo, desde que agregado aos diversos saberes científicos transdisciplinares, surgidos de uma atitude transdisciplinar, sendo certo que isso requer, muitas vezes, um trabalho em equipe, posto que não há indivíduo que detenha conhecimentos generalistas suficientes que possa desprezar os conhecimentos de especialistas.

Esse saber engendrado no pensamento complexo e na transdisciplinaridade busca na Cibernética de segunda ordem os fundamentos

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para a concretização da ação, haja vista que a abordagem sistêmica é vista, por alguns doutrinadores, como o novel paradigma da ciência.

Assim, para se compreender um mundo globalizado, dotado de enorme complexidade e de incrível dinamismo, há necessidade de se valer de um raciocínio equivalente, onde se levam em consideração as ações, as retroações, as decisões, as bifurcações, os acasos etc., algo que a racionalidade cartesiana não pode oferecer e, por isso, deve ser suplantada.

Os mecanismos de pensamento complexo, compreendido este como algo mais do que mera junção de pensamento linear com pensamento sistêmico, estão à altura do desafio de se vislumbrar e enfrentar a realidade dinâmica e multidimensional que convola a complexidade do real.

Para se aclarar esses instrumentais teóricos modernos, verdadeiros estados da arte da epistemologia contemporânea, valeu-se, primeiramente, da consolidação de importantes conceitos de disciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, e, em segundo lugar, da assimilação do estado da arte da Ciência Policial. Em um terceiro momento, buscou-se conhecer o pensamento complexo, notadamente na sua aplicação à ação [atividade], para, então, sob uma ótica transdisciplinar, realizar um estudo de caso em que se implementaram esses conceitos e reflexões a um instituto de investigação policial, o interrogatório policial, tentando-se demonstrar, cabalmente, que no bojo da Ciência Policial, há, de fato, complexidade, que é compreendida e introjetada a partir de uma nova abordagem que, no mínimo, é interdisciplinar, e, vez por outra, detém cariz transdisciplinar, valendo-se, para tanto, de uma criação moriniana, denominada pensamento complexo, o que confirmou que essa novel ciência possui um objeto de estudo plúrimo e não singelo.

Welder Oliveira de Almeida

O autor é Delegado de Polícia Federal, 1.ª Classe, possuidor dos títulos de Bacharel em Direito pela Universidade de

Brasília (UnB) e de Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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COMPLEX THINKING AND TRANSDISCIPLINARITY APPLIED TO THE POLICE SCIENCE

ABSTRACT

This study is an analysis of the applicability of the concepts of complex thinking and transdisci-plinarity to Police Science, taking into account the reality of a global risk society, which can not be understood in light of simplistic, reducing or mutilating thinking, notably a vision hamstrung by Cartesian rationalism. For the scope of this research, one must take into account mainly the view of the Morin’s complexity linked to action, should note the concepts of action, feedback, chance, bifurcations, program and strategy. Envisions itself, thus, the possibility of using an inter-disciplinary approach, and more recently, a transdisciplinary vision, to show that Police Science does not have one single and simple object, but rather a complex and plural one, something that would perfectly feasible to understand that this branch of knowledge has characters of complex thinking, and then resorting to such theoretical grounds, sought to demonstrate, through an ins-titute of police investigation, the police interrogation, that complex thinking and transdisciplina-rity are present in the meanderings of police science.

Keywords: Police Science. Interdisciplinarity. Complex Thinking. Transdisciplinarity.

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Edição de TextoGilson Matilde Diana

Guilherme Henrique Braga de Miranda

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