revista cult (parcial) - edição 139

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entrevista Jacques Rancière O filósofo francês “Não há crescimento da direita, mas sim um desencanto da esquerda” 139 ANO 12 R$ 9,90 www.revistacult.com.br dossiê QUAL É O SENTIDO DO TRABALHO? O que a sociologia, a filosofia e a psicologia têm a dizer sobre o trabalho hoje Livro de Modesto Carone explora a obra de Kafka literatura Lançamentos contam a história do design resenha Mulheres que ousaram ser compositoras de MPB música Obra-prima de Adorno recebe primeira tradução no Brasil filosofia

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Algumas páginas da edição de setembro de 2009 da revista CULT

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entrevista

JacquesRancièreO fi lósofo francês

“Não há crescimento da direita, mas sim um desencanto da esquerda”

139

ANO 12 R$ 9,90 www.revistacult.com.br

dossiê

QUAL É O SENTIDO DO TRABALHO?O que a sociologia, a fi losofi a e a psicologia têm a dizer sobre o trabalho hoje

Livro de Modesto Carone explora a obra de Kafka

literatura

Lançamentos contam a história do design

resenha

Mulheres que ousaram ser compositoras de MPB

música

O que a sociologia, a fi losofi a e a psicologia têm a dizer sobre o trabalho hoje

Livro de Modesto Carone explora a obra de Kafka

literaturaObra-prima de Adorno recebe primeira tradução no Brasil

fi losofi a

Page 2: Revista CULT (parcial) - edição 139

ISSN 1414707-6 – Nº 139 – SETEMBRO/2009 – ANO 12

Diretora e editora resp. – Daysi M. BregantiniDiretor de redação – Marcos FonsecaEditor – Eduardo SochaEditor-assistente – Wilker SousaRepórter – Julia AlquéresSite – Carolina RossiniRevisora – Kiel PimentaImagem de capa – Nienke TerpsmaEditor de arte – Fábio GuerreiroAssistente de arte – Nícolas GodoyTradutor – Abilio Godoy

Departamento fi nanceiro – Ana Lúcia P. Silvae-mail: fi [email protected]

Departamento administrativo – Dejair Bregantino

Atendimento ao leitor e assinaturas – Herik Krajewski e-mail: [email protected].: (11) 3385-3385

Assessoria de imprensa – Andréa Simõese-mail: [email protected]

Publicidade em São Paulo:Gilberto Rala (executivo de negócios)e-mail: [email protected]úlia Farina (executiva de negócios)e-mail: [email protected].: (11) 3385-3385

Publicidade em Brasília:Front Comunicação – Pedro Abelha e-mail: [email protected] Tel.: (61) 3321-9100

Gráfi ca – ParmaDistribuição exclusiva no Brasil (Bancas) – Fernando Chinaglia

CULT – REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar Paraíso – São Paulo – SP – CEP 01533-070Tel.: (11) 3385-3385 – Fax: (11) 3385-3386

CULT ONLINEwww.revistacult.com.br

Matérias e sugestões de pauta: [email protected]

Espaço Revista [email protected]

[email protected]

a orGaniZaÇÃo Do traBalho É uma construÇÃo humana. Deve ser QuestionaDa

No mundo contemporâneo, as relações de trabalho tornam-se cada vez mais complexas. As organizações estimulam a competitividade inclusive internamente, entre seus profi ssionais. O resultado é um mundo individualizado, do “cada um por si” – e a empresa pelos lucros.

O psiquiatra francês Christophe Dejours, uma das maiores autoridades mundiais em psicologia do trabalho, escreve no Dossiê deste mês: “Gostaria de sublinhar que as novas formas de organização do trabalho podem e devem ser questionadas. Elas não têm nada a ver com a consequência inevitável de um destino. Toda organização do trabalho é uma construção humana”.

E a fi lósofa gaúcha Suzana Albornoz observa: “Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem?”.

São essas as questões abordadas nesta edição de CULT. Como sempre, pela palavra de especialistas criteriosamente convidados, com formação acadêmica e muita base para emitir opinião sobre o assunto.

Outra fi lósofa gaúcha, Marcia Tiburi, nossa colunista, presenteia o leitor com um texto magnífi co sobre a correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia. É o que ela batiza de neobovarismo. Marcia é uma jovem pensadora, preparada, estudiosa e de uma lealdade comovente. Uma sorte para nós tê-la como colaboradora.

O francês Jacques Rancière, professor emérito de estética e política na Universidade Paris 8, tem uma ligação antiga com o Brasil. Sua esposa, Danielle Ancier, lecionou na USP em 1968 e foi aqui que se conheceram, quando Rancière esteve no país para uma conferência. Autor de obras importantes, como A partilha do sensível e O mestre ignorante, entre muitas outras, o fi lósofo concedeu uma entrevista exclusiva à revista. É mais um destaque desta edição de CULT.

Escreva para nós. Dê sugestões, faça críticas.

Um abraço,Daysi Bregantini

[email protected]

eDitorial

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The State R

ussian Museum

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09

08 Do leitor

11 cultura em movimento

Vanguarda russa • Cinco peças fundamentais para Newton Moreno • Cartier-Bresson • Tertúlia tradutores • Sonatas de Mozart

17 entrevista

A associação entre arte e política segundo o fi lósofo Jacques Rancière

24 resenha

A presença física do livro e o debate sobre qual será sua feição na era digital estão em duas obras que contam a história do design gráfi co

26 literatura – crÍtica

Em A teoria do jardim, Dora Ribeiro faz da poesia o reforço de sua identidade

Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, obras-primas & loucura (Record, 2008)

Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e jornalista. É autor dos livros Tropicalismo – decadência bonita do samba (Boitempo, 2000) e Como dois e dois são cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)

Marco Aurélio Santana, professor de sociologia da UFRJ. É autor de Sociologia do trabalho no mundo contemporâneo (Mauad, 2006) e organizador de Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social (Boitempo, 2003), entre outros

Suzana Albornoz, professora aposentada de fi losofi a da FURG (Universidade Federal do Rio Grande). É autora do livro O que é o trabalho (Brasiliense, 1994), entre outros

Marcia Tiburi, fi lósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofi a em comum (Record, 2008), entre outros

Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros

Gabriela Longman, jornalista e pós-graduanda em história da cul-tura na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É colaboradora dos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico, entre outros

Diego Viana, jornalista e economista. É pós-graduando em fi losofi a política e estética na Universidade de Nanterre, França

Ruy Braga, professor de sociologia da USP e diretor do Cenedic/USP. Autor de A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea (Xamã, 1996), entre outros

colaBoraDores Desta eDiÇÃo

Ricardo Antunes, professor da Unicamp. É autor de Adeus ao trabalho? (Cortez, 2009), Os sentidos do trabalho (Boitempo, 2000) e O caracol e sua concha (Boitempo, 2005), entre outros

Josélia Aguiar, jornalista e mestre em história cultural pela Universidade de São Paulo. Editou a revista EntreLivros, foi repórter, redatora e correspondente em Londres do jornal Folha de S.Paulo

Ivan Marques, professor de literatura brasileira da USP. É organizador de Histórias do modernismo (Scipione, 2008) e O espelho e outros contos machadianos (Scipione, 2008)

Christophe Dejours, psiquiatra e membro do Laboratório de Psicologia do Trabalho do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios de Paris. É autor de A loucura do trabalho (Cortez 2003), entre outros

1711 cultura emmovimento

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DossiÊ44C

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17 entrevista

66 oFicina literÁria

49

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54

57

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O trabalho na balança dos valorespor Suzana Albornoz

Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalhopor Christophe Dejours

Os dilemas do trabalho no limiar do século 21por Ricardo Antunes

De volta à condição proletária por Ruy Braga e Marco Aurélio Santana

Um operário na academiaEntrevista de Michael Burawoy a Ruy Braga

44 DossiÊQual É o sentiDo Do traBalho?

64 ensaio

O Haiti (não) é aqui, Dubai também (não) éFRancisco Bosco

42 mÚsica PoPular

A trajetória de mulheres que, num ambiente governado por homens, ousaram ser compositoras de MPB

PeDRo aleXanDRe sancHes28 literatura – lanÇamento

Livro reúne ensaios escritos por Modesto Carone ao longo de quase três décadas dedicadas ao estudo da obra de Franz Kafk a

40 FilosoFiaMaRcia TiBuRi

Neobovarismo: a correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia

34 resenhaUma das obras mais importantes do século 20, Dialética negativa, de Theodor W. Adorno, é publicada no Brasil

36 ensaio

Livro de Edward W. Said descreve o “estilo tardio” como o gesto paradoxal de recusa à maturidade e à complacência estética

32 mÚsica clÁssica

A questão judaica na música clássica nos exemplos de Mendelssohn e Mahler

noRMan leBRecHT

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n°13910 n°13910

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n°139 11

Imag

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009

ONDE CCBB São PauloQUANDO 15 de setembro a 15 de novembro, de terça a domingoENTRADA FRANCA

VIRADA RUSSA – A VANGUARDA NA COLEÇÃO DO MUSEU ESTATAL RUSSO DE SÃO PETERSBURGO

vanguarda russa

As telas Passeio, de Chagall (alto) e São Jorge, de Kandinsky

cultura em movimento

Com curadoria de Rodolfo Athayde e Ania Rodríguez em parceria com Yevgenia Petrova e

Joseph Kiblitsky, do Museu de São Petersburgo, o even-to reúne mais de cem obras de 52 artistas, entre telas, esculturas, cartazes e peças de vestuário. “O que nos levou a fazer essa exposição foi trazer uma mostra na qual o público descobrisse fontes de muitas das ten-dências predominantes na arte hoje”, explica Rodolfo Athayde, curador.

A chamada vanguarda russa, ocorrida entre os anos de 1890 e 1930, revolucionou a arte daquele país em diversas manifestações culturais, tais como artes plásti-cas, literatura, cinema e teatro. O espírito transgressor e o experimentalismo dos modernistas resultaram no construtivismo de Vladimir Tatlin, no abstracionismo de Kandinsky, entre outros movimentos que infl uen-ciaram profundamente a arte contemporânea.

O período também deixou suas marcas na arte bra-sileira. A incorporação dos materiais da vida cotidiana à própria obra de arte, característica do construtivismo, inspirou neoconcretistas e contemporâneos brasilei-ros. Segundo Rodolfo, “esse tipo de pensamento abriu caminho para artistas como Ernesto Neto, que trata seus materiais com um sentido de leveza e suspensão”. Entre os destaques da exposição estão a tela Passeio, de Chagall; o Contrarrelevo de Esquina, de Tatlin; e os quadros geométricos de Maliévitch.

Obras de Wassily Kandinsky, Marc Chagall, Vladimir Tatlin, Kazimir Maliévitch e de outros expoentes da vanguarda russa estão em Virada russa – A vanguarda na coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, exposição que o Centro Cultural Banco do Brasil traz a São Paulo a partir de 15 de setembro

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n°13916

Leonardo Froés e Ivan Junqueira: tradutores de Virginia Woolf e Charles Baudelaire

Clara Sverner: O desejo de balancear a delicadeza de Mozart com a paixão e dramacidade

Deleitar-se com as aventuras de Dom Quixote montado em seu cavalo Rocinante; conhecer as inquietudes e

angústias dos heróis de Dostoiévski; encantar-se com o rea-lismo fantástico de Gabriel García Márquez. A importância dos clássicos estrangeiros na construção do imaginário de leitores mundo afora deve-se, sobretudo, a uma fi gura por vezes esquecida: o tradutor. Na tentativa de trazer à tona o trabalho desse profi ssional, o Sesc Pompeia, em São Paulo, promove o encontro Tertúlia tradutores. “O objetivo é lan-çar luz sobre uma dimensão da literatura que é esquecida”, explica o escritor Tiago Novaes, idealizador do projeto.

De setembro a dezembro, grandes nomes da tradução no Brasil falam de seu ofício e aprofundam-se nas obras por eles traduzidas. Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra falam dos cânones russos Tolstói e Dostoiévski; Ivan Junqueira discute o mal-estar presente na poesia de Baudelaire; e Modesto Carone descortina o realismo peculiar da prosa de Kafka. Esses são apenas alguns dos convidados. Estarão presentes ainda os tradutores de Virginia Woolf (Leonardo Fróes), Cervantes (Sérgio Molina), García Márquez (Eric Nepomuceno), entre outros. A cada edição, dois atores fa-zem a leitura dramática de trechos das obras.

tertúlia tradutores

ONDE Sesc Pompeia – SPQUANDO 13 de setembro a 13 de dezembroENTRADA FRANCAConfi ra a programação completa no site: www.sescsp.org.br

TERTÚLIA TRADUTORES

Fotos: Divulgação

Div

ulga

ção

Chega ao público uma caixa com cinco CDs que reúnem o ciclo inte-gral das “Sonatas para piano”, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-

1791), gravado pela pianista Clara Sverner. O quinto álbum é inédito e contém as quatro últimas sonatas feitas pelo compositor, que são também as mais complexas de todo o ciclo. A pianista, que já gravou Pixinguinha, Villa-Lobos e Chiquinha Gonzaga, é conhecida por dedicar-se não so-mente à música brasileira, como também aos compositores esquecidos no país, como Glauco Velásquez. Mas, desta vez, sentiu que estava preparada para aprofundar-se nas sonatas daquele que foi um dos maiores compo-sitores da música erudita. “Desde jovem eu sempre tive uma afi nidade muito grande com Mozart”, conta.

A pianista conta que o trabalho foi longo, mas muito prazeroso. “Mozart na música é como Shakespeare na literatura”, diz. Foram quatro anos de estudo antes da gravação do primeiro CD, que reúne as primeiras sonatas do compositor. “Eu queria dar uma versão pessoal”, explica Clara Sverner. Nos tempos em que se dedicou aos estudos, surpreendeu-se ao conhecer um lado audacioso em Mozart. “Comecei a ver ressonâncias já na primeira sonata, coisa que não era comum naquela época”, conta. A partir de então, trabalhou na tentativa de “balancear a delicadeza de Mozart com a paixão, a dramaticidade e o romantismo dele”.

sonatas de mozart

Mozart por Clara Sverner – Íntegra das Sonatas para PianoCaixa com 5 CDsAzul Music – R$ 89

cultura em movimento

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n°139 17 n°139 17

Partilha do sensívelA associação entre arte e política segundo o fi lósofo Jacques Rancière

gaBRiela longMan e Diego Viana

FoTos: ilana licHTensTein

Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o fi lósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito

que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.

Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil), debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de confe-rências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre pro-fessores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.

Originalmente discípulo do fi lósofo marxista Louis Althus-ser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia mar-xista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Univer-sidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professo-ra de fi losofi a na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.

O fi lósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arron-dissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afi rma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um confl ito de agenda, mas concendeu a seguinte entrevista para a CULT.

entrevistaJa c q u e s Ra n c i è R e

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n°139 19

Rancière – Não defi nimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.

O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografi a no cinema não é só uma forma de mostrar o visí-vel, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.

A partir do momento em que tudo é represen-tável, não há mais especifi cidade. A especifi cidade não será dada, enfi m, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.

Há algumas décadas, as análises de Arthur Dan-to vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de insti-tuição sempre foi necessária para identifi car uma coisa como pertencente ao universo da arte.

CULT – Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresenta-ção e a recepção?

Rancière – Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circu-lar, seus críticos.

Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão sim-plesmente não se colocava, porque a arte não exis-tia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.

CULT – A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fi m da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”?

Rancière – Podemos fazer o vazio signifi car várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Pode-mos conceber uma exposição sobre o tema do va-zio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostran-do o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos concei-

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n°13920

tuais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.

Mas a verdade é que eu nunca estou muito in-teressado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.

São estratégias eficazes, mas não tão interes-santes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “va-zio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como icono-grafia provocante. Há multiplas estratégias.

CULT – O senhor critica muitas vezes a separa-ção a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colabora-tivas que estão surgindo na atividade artística?

Rancière – O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda ativi-dade comporta também uma posição de especta-dor. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.

Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese glo-bal, que não está ligada só a uma arte interativa.

Todas as obras que se propõem como interati-vas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do es-pectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.

Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.

CULT – O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaça-dos por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida po-lítica com essas novas formas?

Rancière – Isso depende de até que ponto a inter-net define uma escritura específica. Para mim, na

verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.

Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliote-cas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.

Para pensar essa questão da política e da li-teratura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Por-tanto, não deve causar grandes mudanças.

É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no sé-culo 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a ima-gem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi

entrevista Ja c q u e s Ra n c i è R e

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n°13928

Lições de Modesto CaroneLivro reúne ensaios escritos ao longo de quase três décadas dedicadas ao estudo da obra de Franz Kafka

Wi l k e r So u S a

O ensaio intitulado “Franz Kafka e o mundo invisível”, escrito por Otto Maria Carpeaux em 1942, é considerado o marco inicial

da recepção crítica da obra do escritor tcheco no Brasil. Passados dez anos, em 1952, coube a Sérgio Buarque de Holanda ampliar os horizontes críticos por meio do ensaio “Kafkiana”, publicado nas pági-nas do Diário Carioca. A abordagem mais voltada propriamente à técnica de composição viria anos depois, na década de 1960, com Anatol Rosenfeld. Para Modesto Carone, tradutor brasileiro da obra de Kafka, esses são os momentos centrais da fortu-na crítica do autor no Brasil, a qual considera insu-ficiente, se comparada à de outros países. “Até onde eu enxergo, a fortuna crítica de Kafka no Brasil é pequena. É claro que várias pessoas analisaram as-pectos parcelados, pequenos. Antonio Candido, por

exemplo, escreveu um livro chamado Quatro espe-ras (1990), mas não é uma avaliação de conjunto”, explica à CULT.

Ante essa lacuna, e após quase 30 anos de-dicados à tradução e à análise da obra kafkiana, Modesto Carone decidiu reunir ensaios, prefá-cios, textos produzidos para conferências, além de outros inéditos, e publicá-los em livro. Com texto fluido e envolvente, Lição de Kafka esmiúça as particularidades da poética kafkiana, além de presentear o leitor com reflexões acerca dos desa-fios impostos pelo ofício da tradução.

Realismo às avessasAo visitar uma exposição de pintores cubistas em Praga no início do século passado, o jovem poeta tcheco Gustav Janouch comentou com seu men-tor Kafka que Picasso distorcia deliberadamen-te as formas. Em resposta ao amigo, Kafka disse que o pintor espanhol apenas registrava “as de-formidades que ainda não penetraram em nossa consciência”. A análise perspicaz preconizava um aspecto hoje comum à arte: a superação das for-mas tradicionais, em busca de um novo realismo. Tal raciocínio foi incorporado à sua literatura, de modo que em sua prosa “as deformações são pre-cisas”, como analisou Walter Benjamin.

Ao contrário daqueles que inserem o autor de O processo na chamada literatura fantástica, Modesto Carone o associa ao realismo, porém não àquele praticado no século 19, cujo narra-dor onisciente sabe de tudo o que se passa à sua volta. “Para mim, Kafka é um autor realista, mas um realista não convencional. Ele criou uma nova forma para dar conta de uma nova realida-de, pois o mundo havia se tornado tão obscuro, tão insolúvel, que ele deveria fazer uma constru-ção literária para dar conta literariamente da-quilo. Então ele inventou um narrador que não sabe, e esse narrador somos nós”.

Por meio de uma prosa límpida, oriunda da linguagem de protocolo, Kafka narrou o insólito, como a terrível metamorfose sofrida por Gregor

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Modesto Carone: “O melhor que o tradutor tem a fazer é ficar próximo à letra, sem, no entanto, se deixar iludir pelo comodismo da liberdade”

lançamento li t e r at u r a

Page 13: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°139 29

Samsa. “Esta é uma característica definitiva em sua obra: a colisão entre a clareza absoluta da linguagem e o assunto opaco.”

Um programa a ser seguidoEm meados dos 1960, quando ingressou no curso de letras da USP, Modesto Carone planejava estu-dar literatura anglo-americana. Contudo, as aulas ministradas por um professor berlinense fizeram-no mudar de planos e dedicar-se aos estudos de língua e literatura alemãs. Em vez de ensinar a gramática de modo convencional, o professor uti-lizava textos literários, acessíveis do ponto de vista formal, o que despertava maior interesse por par-te dos alunos. Em uma das aulas, o texto analisado foi a parábola Diante da lei, de Kafka. As orações incisivas e a narrativa protocolar aliadas à inven-tividade do escritor tcheco encantaram o jovem

aluno. Era o convite ao universo kafkiano. Tem-pos depois, Modesto partiu para a Áustria, onde estudou no Instituto de Tradutores e Intérpretes da Universidade de Viena, aprofundando-se nos estudos da língua alemã. Nos anos 1980, já de vol-ta ao Brasil, decidiu embrenhar-se na tradução da ficção de Kafka.

Por ocasião do centenário de nascimento do escritor, em 1983, Modesto foi convidado pelo jornal Folha de S.Paulo a escrever um ensaio que viria acompanhado de algumas traduções. Aqueles primeiros textos tornaram-se o embrião de seu vi-goroso projeto. As traduções até então disponíveis no mercado brasileiro, além de não serem feitas diretamente do idioma original, continham erros crassos. “Recordo-me que, em uma das edições, em vez de ‘bando de gralhas’, publicaram ‘enxame de urubus’, algo inacreditável”, comenta.

Ciente de que toda tradução, por mais es-crupulosa que seja, é sujeita a perdas inevitáveis, Modesto Carone pormenoriza alguns dos desafios enfrentados por ele ao longo dos anos dedicados à obra kafkiana. No ensaio “Alguns comentários pessoais sobre a tradução literária”, Modesto cita o início de A metamorfose, no qual três expressões negativas prefiguram o clima ruim da novela (un-ruhig, ungeheuer e Ungeziefer, todas com a partí-cula negativa “un”). Em português, porém, só foi possível traduzir literalmente a primeira, resul-tando em “intranquilo”. As demais (ungeheuer e Ungeziefer, que significam “monstruoso” e “inseto daninho que ataca pessoas”) não encontram pa-ralelo de negação em língua portuguesa. As per-das são significativas, na medida em que, etimolo-gicamente, tais expressões remetem às noções de “não familiar” e “animal inadequado, que não se presta ao sacrifício”, aspectos intimamente ligados à trajetória do protagonista, Gregor Samsa.

Enfrentar tais desafios requer acuidade e, sobre-tudo, paciência. Questionado sobre a razão de es-tudar exclusivamente o mestre tcheco ao longo de tantos anos, Modesto Carone é objetivo e, a exem-plo do narrador kafkiano, desconhece os porquês: “É um mistério que não consigo desvendar”.

Lição de KafkaModesto Carone

Companhia das Letras

144 págs.

R$ 29,50

Creative C

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Kafka: um realistanão convencional

Page 14: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°13936

Testamentos de um exílio enigmáticoLivro de Edward W. Said descreve o “estilo tardio” como o gesto paradoxal de recusa à maturidade e à complacência estética

Ed u a r d o So c h a

Ensaios l a n ç a m E n t o

A apatia quase protocolar de boa parte dos intelectuais contemporâneos em relação à música de vanguarda é compreensível

até certo ponto. Razões internas à própria histó-ria da música, como o encapsulamento formal da linguagem em torno de si própria (ocorrido prin-cipalmente a partir da atonalidade) e a cooptação da música popular pela indústria do entreteni-mento explicam apenas de maneira parcial essa indiferença.

Afinal, no cinema, no teatro, na literatura ou na pintura, o século 20 também testemunhou uma espinhosa e difícil evolução em seus respec-tivos modos de expressão. Entretanto, ao contrá-rio do que acontece com a música, a apatia (ou o desconforto) aqui tende a não existir. Se nomes como Godard, Beckett, Joyce e Pollock transitam livremente pela vida letrada como notórias figu-ras de transgressão em seus domínios, esse trânsi-to parece bloqueado para artistas igualmente fun-damentais da cultura ocidental como Alban Berg e György Ligeti.

No contexto nacional, Gilberto Mendes detec-tou o fenômeno com bastante precisão: “Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guima-rães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha... e Caetano Veloso, Chico Buarque. Nem mesmo Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira”. Tal indi-ferença generalizada, diga-se de passagem, não se restringe ao caso brasileiro. Adorno já procurava expor as razões estruturais para o divórcio entre a

produção da vanguarda musical e sua recepção no sistema da cultura.

Para o elitismo renitente e corrosivo de Adorno, todavia, seriam precisamente o interes-se e as análises de obras musicais que fornece-riam o estofo a reflexões filosóficas consistentes, de modo que a música, em vez de ser reduzida ao mero divertissement, converte-se em solo fér-til de conhecimento. Se a franqueza perturba-dora e quase obscena, o refinamento acalorado, as frases desconcertantes e o alcance crítico da escrita de Adorno não encontraram precedentes na história da filosofia, isso se deve em boa parte à sua relação com a música.

Evasão do tempoA coleção de ensaios, lançada agora no Brasil, do crítico de origem palestina Edward W. Said (1935-2003) apenas confirma a centralidade da reflexão musical adorniana para além do domínio exclusi-vamente musical; a começar já pela expressão que dá título ao livro – “estilo tardio” é um conceito desenvolvido por Adorno no pequeno ensaio so-bre as obras do terceiro período de Beethoven (as cinco últimas sonatas para piano, os seis últimos quartetos, a Missa solemnis e a Nona sinfonia).

Said, que foi professor de literatura compara-da em Columbia (Nova York) e pianista compe-tente, tornou-se conhecido pelo engajamento a favor da causa palestina e pelo livro Orientalismos, no qual discutia a imagem caricatural do Oriente forjada secularmente pela cultura ocidental. Em Estilo tardio, porém, a referência política apare-ce de maneira transversal – na realidade, aparece com feições episódicas no ensaio sobre o escritor francês Jean Genet, em que se apresenta a relação com o Oriente Médio e a política árabe.

Publicado originalmente em 2006, três anos de-pois da morte de Said, o livro de sete longos ensaios examina o caráter de obras tardias de artistas tão di-ferentes como Thomas Mann, Jean Genet, Konstan-tinos Kaváfis, Glenn Gould, Luchino Visconti, além do próprio Adorno, o interlocutor “saturado de cul-tura” que permanece implícito ao longo do livro.

O crítico palestinoEdward W. Said:

“estilo tardio” como forma de exílio do artista

Divulgação

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n°139 37

Seria necessário esclarecer aquilo que, para Said, não é o “estilo tardio” desses pensadores e ar-tistas: não é o coroamento resignado de uma vida de produção intensa destinada a fi nalmente enca-rar a proximidade da morte, não é a consequên-cia madura de um pensamento satisfeito consigo próprio, nem o acordo subjetivo com as normas sociais e estéticas estabelecidas de sua época.

Ao contrário, é antes um tipo de postura cria-tiva que, afastada das tradições e intolerante ao “tom afável ou ofi cial” de época, abandona o pre-ceito da expressividade e inibe toda possibilidade de síntese. As obras tardias, contraditórias e não reconciliadas com as obras anteriores “constituem uma forma de exílio”, como defende Said, um exí-lio radical que obriga à evasão do tempo.

Mas, se artistas como Strauss, Gould e Lampe-dusa “transitam na contramão dos grandes códi-gos totalizantes da cultural ocidental e da difusão cultural”, isso não signifi ca dizer que o estilo tardio corresponda a uma rebeldia cega contra todas as convenções. Pois há casos, como os de Beethoven e Strauss, em que o estilo tardio é justamente pertur-bador por sua adesão quase primitiva às convenções: convenções e fórmulas prontas transformam-se nesses casos em “representação nua delas mesmas”. Como se estivessem livres do controle do composi-tor, como se o compositor abandonasse a obra pela metade e deixasse o clichê falar por si, a mais vulgar retórica musical emerge de forma arbitrária.

Said exemplifi ca com o tema inicial da Sonata nº 31 opus 111, uma das últimas de Beethoven. O tema, apresentado de maneira “desajeitada”, de escrita imperfeita, recebe um acompanhamento insistente e “rasgadamente primitivo”, e portanto incompreensível na pena rigorosa de Beethoven. Dando a impressão de ser um “material não pro-cessado”, contrastava com a força do desenvolvi-mento temático e a clareza irresoluta do composi-tor da Quinta sinfonia.

O elitismo de AdornoSeria esse “descuido” o sintoma de uma intervenção psicológica provocada pela iminência da morte? Não, pois a morte, no estilo tardio assim como na arte, aparece apenas “como refração, como ironia” ou alegoria – a obra em si nunca morre. O estilo tardio não é grito de morte, não é o distanciamento desesperado do mundo, o protesto de um não que seria reiterado na história da arte. Se fosse apenas isso, o estilo tardio não passaria de uma obviedade desinteressante. Há algo de construtivo e inédito no gesto tardio que permanece em aberto, como um enigma para a posteridade.

O desvelo crítico de Said procura mapear as di-ferentes formas de exílio do estilo tardio, mas não se propõe a fazer disso uma “teoria geral”. A ópera Ariadne auf Naxos, de Richard Strauss, a releitura das Variações Goldberg por Glenn Gould, o poe-ma A cidade, de Kaváfi s, o romance O leopardo, de Lampedusa, são obras que possuem o denominador comum da intransigência; no entanto, o conceito mesmo de intransigência padece de um contínuo deslocamento semântico, que Said não hesita em acompanhar com erudição e coloquialidade.

Em que pesem os ensaios sobre Genet, Kavá-fi s, Lampedusa e Visconti (na capa da edição feita pela Companhia das Letras aparece estranhamen-te também “Samuel Beckett”, nem sequer mencio-nado nos ensaios do livro!), o centro de gravida-de da obra está mesmo na música (a julgar pelas considerações exaustivas a respeito de Mozart, Beethoven, Britten, Strauss e Gould).

Também pelo veio da música (em especial a de Arnold Schoenberg), surgem as páginas, prova-velmente as melhores do livro, dedicadas à prosa e ao estilo da ensaística de Adorno. Nelas, encontra-mos as coordenadas necessárias para entender o incômodo que ainda hoje sentimos ao ler Adorno, não apenas por seu estilo exigente (cuja difi cul-dade é popularmente exagarada), nem pelo “dile-tantismo inspirado” que pressupõe os privilégios de uma sólida formação cultural, mas, sobretudo, pelo “pendor miniaturista para o detalhe cruel: ele procura e acha a última mácula, a ser contempla-da com um risinho de satisfação pedante”, inde-pendentemente do assunto a ser tratado.

Adorno, profundo conhecedor de palavras e sons, não realizava concessões didáticas nem permitia que questões técnicas travassem seu ar-gumento. Nisso residia talvez o maior protesto de seu estilo tardio: diante das esperanças ilusórias de uma sociedade crecentemente administrada, resta a solenidade intransigente como característica do pensamento autêntico.

Estilo tardioEdward W. Said

Trad.: Samuel Titan Jr.

Companhia das Letras

194 págs.

R$ 59

Page 16: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°13940

NeobovarismoA correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia

FilosoFia Ma r c i a Ti b u r i

Bovarismo” é a expressão criada por Jules de Gaultier para explicar a insatisfação com a própria vida característica de Madame Bo-

vary, heroína do romance de Flaubert que apren-deu nos livros a se iludir sobre a possibilidade de ser outra. O fim de Emma Bovary foi o suicídio, em explícita fuga do real. Bovarismo é, desde en-tão, a postura daquele que, se negando a viver a própria vida, sonha com outra. O bovarista vive-ria como se fosse o protagonista de um romance.

Antes da morte, para Emma, havia o livro, a única mídia sobre a qual Flaubert podia instaurar sua história em que a questão da função da ficção na vida estava em jogo. Desde as ilusões de Emma podemos tentar compreender nossa cultura em que o livro é esquecido dando espaço ao cinema e à televisão. Perguntar qual teria sido o destino da moça sonhadora em nossos tempos hiperpublici-tários, em que toda insatisfação é resolvida com o tapa-furo existencial da mercadoria, não é absurdo. O que ela faria nestes tempos do prestígio da inter-net como domínio fantasmático?

Para além da literatura, do lado de cá da fic-ção que chamamos ainda por convenção de “real”, devemos dizer que os integrados a esta cultura hi-pertecnológica são avatares de Emma Bovary.

O termo “avatar” provém do hinduísmo e sig-nifica uma encarnação de um deus em forma hu-mana ou animal. Em sânscrito é a descida do Céu à Terra. É tão curioso quanto lógico que o termo tenha feito carreira no universo do entretenimen-to tecnológico. Chamam-se Avatar um desenho animado de televisão e um jogo de videogame. São a representação gráfica de um usuário no contex-to da realidade virtual. O avatar é uma espécie de selo. Alguém que queira usar jogos ou brincadei-ras ou simplesmente se expressar por meio de um ícone na internet deve necessariamente criar seu avatar. Alguns sites falam em “alter ego virtual”, outros apenas incentivam o usuário a trocar a própria foto em contextos como chats, MSN, Fa-cebook, Orkut, Twitter, nos quais alguém precise se apresentar. Avatar é algo que apresenta e, em seu caráter de máscara, fala, de certo modo, por quem se apresenta. Vale como brincadeira. O pa-radoxo do avatar é o seu próprio prazer, que por meio dele alguém se apresente sem se apresentar. Como máscara virtual, o avatar permite entrar no

virtual sem ser visto no real que carrega por trás. A afirmação do real não vem ao caso no jogo da internet. Afinal, in-lusio significa entrar em jogo.O avatar entre nós promete essa mágica. E quem não gostaria de dominá-la?

DissimulaçãoCrianças são incentivadas a criar seu avatar – cor-pos, cabelos, cor da pele, cor dos olhos, roupas, mo-radias, profissões, gostos, objetos de uso pessoal... –, fazendo dele o outro que o si mesmo almeja ser: o idealizado, o “pertencente a uma tribo” ou o mero sinal, o design, o ícone. O bonequinho – como um botão que substitui o ego – que permite “interagir”. Está em jogo também o destino do que um dia se chamou de “representação”.

A internet não é mais o lugar de “representa-ções”, uma categoria que servia para explicar tanto a política quanto a estética. Ela é o lugar de “simu-lações”. Podemos dizer que por trás de toda repre-sentação há um irrepresentado, algo que não se contempla, que escapa, que fica de fora no esforço de exposição e de demarcação daquilo que se tem a dizer por meio da representação. Essa sobra é o real. Pode haver enganação na representação, quando al-

Emma Bovary: A personagem foi interpretada no cinema por Jennifer Jones, em 1949

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ão

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n°139 41

guém tenta representar aquilo que não é.A simulação pode ser um modo de fa-

zer arte de computador, mas quando ela chega à vida concreta as coisas podem se complicar. Simular é recriar o real sem que se esteja a representá-lo. Se o real compa-rece na representação como uma alusão, na simulação ele é a novidade. No entan-to, se ao representarmos nos referimos ao real como algo que foi imitado ou altera-do, na simulação o real é desconsiderado como o que em nada surpreende. Por trás da simulação há, portanto, o que se dis-simula, mas não saber disso faz parte do jogo. Quando escondemos algo, deixamos de impor abertamente, manifestamos tão somente, como que por viés, aquilo que não pode ser dito no “olho no olho”. Dissi-mular é um desvalor em um contexto que valoriza a verdade, mas se simular tornou-se óbvio é porque algo como a “verdade” já não importa. Capturar a dissimulação em pessoas com quem convivemos é mui-to difícil, mais ainda no discurso de quem conhecemos só pela internet.

No começo da modernidade, Torqua-to Accetto defendeu a ideia de uma “dis-simulação honesta” como a necessidade, própria do caráter precário da condição humana, de adiamento da verdade na es-fera pública. Não seria necessariamente a sustentação da mentira, mas um jeito de sobreviver em um mundo de paixões. Um mundo que deseja a honestidade, mas ao mesmo tempo a teme e, portanto, se especializa em contatos indiretos com ela. Caillois defendeu o mascaramento como uma prática lúdica própria da vida humana e animal. Sem moralismo, en-quanto simular é mostrar o que não está presente, dissimular é não deixar apare-cer aquilo que está presente. O dissimu-lado disfarça, mas o que pode ver? Para além do prazer de usar máscaras, ou de fingir, ou de atuar, é, para muitas pessoas, a única chance de viver uma vida menos insatisfatória. O neobovarismo seria a chance de ser a expressão do que não se é. Seria também a inexpressão pessoal que encontra um jeito de não aparecer?

Mutilação existencial A hipervalorização da vida privada como algo passível de “aparição” (blogs, fotologs,

videologs, culto às celebridades ou a si mes-mo) corresponde ao extermínio do espaço público que se sustenta em caricaturiza-ções da política, da arte e do próprio co-nhecimento. Essa hipervalorização resulta de uma espécie de mutilação existencial. A privação de biografia leva à caricaturiza-ção da vida privada. A experiência pessoal não aparece na parafernália impressa ou virtual senão como fantasmagoria.

A biografia da qual somos privados ressurge em sua versão larval nesses meios como promessa de identidade, de inser-ção, de contemplação por parte do outro. O outro é alguém a ser enganado funda-mentando a minha esperteza. Afinal, sou “avatar”, tenho uma encarnação virtual com a qual ataco e me protejo. Cada um está facilmente desincumbido de ser ele mesmo até quando faz guerrilha psíquica.

Ao mesmo tempo em que avança a caricaturização da privacidade por suas representações nos meios de comunica-ção e até pelas artes que incorporaram o princípio do reality show (vide as obras confessionais de Catherine M., de Sophie Calle – atualmente no Sesc Pompeia, de São Paulo – e de seu ex-namorado Gré-goire Bouiller), vemos crescer o aumento da clandestinidade na política (vide os “atos secretos” perpetrados pelo Senado brasileiro em estado de putrefação nes-te ano de 2009). Enquanto Catherine M. confessa todas as suas aventuras amoro-sas, as traz a público, os políticos escon-dem o que seria direito de todos saber. Saberemos de algumas coisas, mas ape-nas enquanto forem capturadas e mais ou menos espetacularizadas pelos meios de comunicação.

Enquanto isso, neobovaristas, nem artistas, nem políticos, criamos nossos avatares. Bem mais fácil do que reiventar a vida real. É a contemplação de si mesmo que está em jogo quando entra em cena a máscara que barra qualquer relação com o espelho. Sua falta é a única certeza real. Bovaristas na internet, temos o sonho in-teiro à nossa disposição, enquanto o real apodrece sem que o computador nos deixe sentir seu cheiro.

[email protected]

SÉRIEINTRODUÇÃO

DIFÍCIL ESCOLHER QUAL LER PRIMEIRO.

AINDA BEM QUE A DÚVIDA NUNCA FOI

PROBLEMA PARA QUEM GOSTA DE

FILOSOFIA.

Os maiores especialistas mundiais nos mestres da filosofia apresentam as ideias principais e as grandes contribuições de Kant, Descartes e Aristóteles. Você pode escolher um só, mas os pensadores concordariam: levar a série é uma sábia decisão.

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49 ENTRE O DESESPERO E A ESPERANÇA: COMO REENCANTAR O TRABALHO?

Para a psicologia social, o reconhecimento é o fator que permite transformar o sofrimento em prazer; resta saber como e por que as formas atuais de organização precisam ser alteradas para que isso ocorra

christophe dejours

DE VOLTA À CONDIÇÃO PROLETÁRIA57

Apesar de seu obscurecimento no espaço público,

a questão operária continua central para os es-

tudos sociológicos do trabalho

ruY braga e marco aurélio santana

UM OPERÁRIO NA ACADEMIA60

Michael Burawoy, sociólogo da Universidade

de Berkeley, conta sua experiência de 20 anos

como operário e mostra como ela permitiu sua

posterior revisão do marxismo

O TRABALHO NA BALANÇA DOS VALORES46

Desprezado e enaltecido no plano moral, o tra-balho passou por transformações conceituais cuja história, da Antiguidade ao mundo pós-industrial, ainda está longe de ter um fi m

suzana albornoz

OS DILEMAS DO TRABALHO NO LIMIAR DO SÉCULO 2154

Do subemprego à exploração infantil, a situação

contemporânea do trabalho exige uma refl exão

à altura daquela relacionada ao meio ambiente

ricardo antunes

DossiêC

reative Com

mons/Lew

is Hine

Page 19: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°139 45

Estamos habituados a compreender o conceito de trabalho humano sim-plesmente como atividade econômica. A centralidade desse conceito, to-mado nessa dimensão, é hoje tão debatida nas instituições empresariais,

sindicais, acadêmicas e governamentais que aquilo que poderíamos chamar de “essência do trabalho” acaba sendo deixado em segundo plano.

Para o filósofo alemão Herbert Marcuse, entretanto, a colonização da teoria econômica sobre a totalidade desse conceito nos faz perder o significado geral, mais abrangente, do que representa o trabalho no âmbito da existência huma-na. Pois, como Marcuse e muitos autores sustentam, existe uma definição de trabalho que é anterior à acepção comum, ligada à produtividade; uma defini-ção que não vê o trabalho apenas como atividade econômica, mas como cate-goria histórica de um “acontecer” fundamental à nossa presença no mundo.

A busca por essa definição nunca esteve tão atual. Por um lado, a recente crise financeira nos exorta a uma reavaliação das condições reais do trabalho, deterioradas nos últimos anos. Por outro, exige de nós a compreensão teórica dos rumos do trabalho no século 21.

O dossiê CULT procura apresentar sumariamente esses dois aspectos. Su-zana Albornoz resume, no primeiro ensaio, o desenvolvimento da ideia de trabalho na história da filosofia, chamando atenção para alguns momentos relevantes da trajetória desse conceito.

O psicanalista francês Christophe Dejours, hoje um dos maiores especia-listas em psicologia do trabalho no mundo, analisa os modos contemporâne-os da organização do trabalho e as doenças vinculadas a esses modos, encon-trando no reconhecimento a chave para a verdadeira satisfação psíquica.

Ricardo Antunes enumera os impasses do emprego no Brasil e no mundo, como a redução das garantias sociais e a degradação das condições de trabalho.

Ruy Braga e Marco Aurélio Santana apresentam a situação atual do sindi-calismo e apontam para formação de um novo proletariado, o infoproletariado, cuja imagem simbólica seria a do operador de telemarketing.

Por fim, Ruy Braga entrevista o sociólogo britânico Michael Burawoy, pro-fessor da Universidade de Berkeley (EUA), que fala de sua experiência como operário por mais de 20 anos em países como a Zâmbia, os EUA e a Rússia, e de como ela reorientou sua visão teórica sobre o trabalho.

Para onde vai o mundo do

trabalho?

Page 20: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°13946

Dossiê Qu a l é o s e n t i d o d o t r a b a l h o?

O trabalho na balança dos valoresDesprezado e enaltecido no plano moral, o trabalho passou por transformações conceituais decisivas cuja história, da Antiguidade ao mundo pós-industrial, ainda está longe de ter um fim

suzana albornoz

Seria ilusão imaginar que o conceito de tra-balho na história do pensamento ocidental evoluiu por uma linha coerente, apenas mo-

dificada neste ou naquele ponto da transformação socioeconômica, política ou religiosa. A experiência do trabalho como esforço para prover a sobrevivên-cia e enfrentar os desafios cotidianos tem acompa-nhado a humanidade desde seu aparecimento, e nas mais diversas culturas teceram-se modos de sentir e pensar sobre o trabalho. Na encruzilhada de cultu-ras que conviveram em torno do Mediterrâneo e do Atlântico, do século de ouro da Grécia até o começo do 21, o conceito apresentou um movimento que neste texto será indicado apenas de passagem.

Os preconceitos gregos encontraram alguma expressão no texto dos filósofos, como na teoria da atividade criadora de Aristóteles: o artesão é causa motriz da produção, sendo causa material a matéria sobre a qual opera, e causa formal e final o mode-lo ou finalidade que inspira a criação e aparece na obra acabada. Porém, embora na Antiguidade se encontrem pensamentos sobre a atividade criadora e o tema comece a tomar importância na moderni-dade entre reformadores e humanistas, o trabalho só se afirmaria como objeto da filosofia na época industrial, quando novas situações políticas, econô-micas e sociais mudam a relação com a tradição.

Da dialética senhor-escravo à condição humanaNo século 19, o trabalho estava subentendido nas especulações de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, como também nas imaginações dos primeiros socialistas. Tornou-se centro das aná-lises de Marx sobre a alienação do trabalho in-dustrial na economia capitalista. Continuou a se desenvolver no século 20 entre discípulos e inter-locutores do marxismo, como Marcuse, que com-plementou a análise do trabalho alienado com a do caráter alienante da produção e do consumo no capitalismo tardio, e Hannah Arendt, que, com suas reflexões sobre a vita activa face à vita con-templativa, remete o leitor à cultura clássica, para repensar a condição do homem moderno.

Em A condição humana, Arendt retoma a dis-tinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência, com o fim de manu-tenção e reprodução da vida. O modelo é o do camponês sobre o arado, o trabalho na terra. Res-salta a passividade dessa forma de atividade huma-na submissa aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie, às forças incontroláveis. O produto desse esforço é perecível, embora dele dependa a vida de quem trabalha, por isso não é um trabalho livre. A condição humana do labor é a vida.

Por outro lado, o trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis grega, significa fazer, fa-bricação, criação de um produto por técnica ou arte, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Poiesis é a obra da mão humana e dos ins-trumentos que a imitam. O modelo é o do escultor; por seu resultado concreto, o fazer do artista adqui-re a qualidade da permanência e torna-se presença no mundo, para além da vida de seu produtor. A mundanidade é a condição humana do trabalho.

Por sua vez, a ação ou práxis se exerce direta-mente entre os homens, sem a mediação das coi-sas nem da matéria. Não apresenta um produto concreto, portanto, não possui a permanência da fabricação. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra do homem. Corresponde à condição humana da plu-ralidade e realiza a liberdade.

Arendt também analisa a marca da cultura ju-daica e cristã na concepção ocidental da condição humana, em cujos entrelaçamentos se mantevive-ram a primazia da teoria sobre a atividade e o me-nosprezo do trabalho manual. Na tradição judaica, o trabalho se apresentava como castigo, meio de expiação do pecado original, labuta penosa à qual o homem foi condenado. Nos primeiros tempos do cristianismo, o trabalho continuou a ser visto como punição, embora servindo à saúde do corpo e da alma. Nos mosteiros medievais, devia ser al-ternado com a oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade.

Page 21: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°139 47

Weber e MarxCom a ampliação das fronteiras geográficas pelas navegações e a nova percepção do universo pelas descobertas científicas, no Renascimento começa-ria uma inversão de valores sobre a vida contem-plativa e a vida ativa. A inversão moderna tomou, de um lado, integrado ao ressurgimento da cultura antiga, um sentido humanista, em que o trabalho passou a ser visto como expressão da força do homem. De outro, tomou significação religiosa, situando-se no âmago da Reforma Protestante, na qual a moral do trabalho se constrói sobre a con-vicção de que a dedicação profissional dignifica o homem, dando assim uma nova iluminação à mo-ral cristã. Sobre a relação entre a ética protestante e a ideologia do trabalho no capitalismo, é preciosa a interpretação de Max Weber, oposta à de Marx quanto à relação entre economia e religião.

A análise crítica do trabalho no mundo indus-trial feita por Karl Marx, no entanto, permanece válida e definitiva como denúncia da exploração e da alienação do trabalho no século 19. Marx não só fez a análise exaustiva das relações de trabalho na sociedade capitalista, com acréscimo de conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo, mas em muitos textos deixa transparecer uma teoria antropológica do trabalho. Como para Hegel, em Marx o trabalho é o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. Os ho-mens definem-se pelo que fazem, e a natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. No processo

de trabalho, participam o homem e a natureza; nele o homem inicia, controla e regula as relações mate-riais entre si e a natureza; e pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza. O trabalho é “o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza” e assim, por meio de do trabalho, o homem se transforma a si mesmo.

Hannah Arendt criticou a forma de Marx encarar o trabalho, basicamente pelo fato de a análise marxista priorizar a produção em detri-mento da ação, o econômico antes do político, o que reforçaria a tendência do mundo industrial à transformação de toda atividade em labor e à diluição do político no social. A tensão perma-nente em toda a reflexão sobre o trabalho, que ainda aparece na polarização atual entre as in-terpretações de Marx e Arendt, é a da valoração relativa do trabalho e do ócio como ocasião de realização do homem, criador e livre.

Por um novo conceito de criatividadeA balança dos valores de ócio e trabalho, que as-sim como era na Antiguidade seria invertida entre os modernos, encontra um ponto de questiona-mento interessante no manifesto de Paul Lafargue – O direito à preguiça –, no qual, de acordo com as tradições da filosofia e do humanismo, o fun-dador do Partido Socialista francês faz a crítica da ideologia do trabalho predominante na sociedade burguesa mesmo entre os trabalhadores, instigan-do à luta pela diminuição da jornada de trabalho.

Quando a automação toma formas antes nunca

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Labor: segundo Hannah Arendt, o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico voltado à sobrevivência. Está submissa aos ritmos da natureza, por isso não é trabalho livre

Page 22: Revista CULT (parcial) - edição 139

n°13948

Dossiê Qu a l é o s e n t i d o d o t r a b a l h o?

Para Santo Agostinho, o trabalho era um

preceito religioso. Trabalhar e rezar deve-

riam ser as atividades gloriosas de todos

os cristãos. Ele considerava a agricultura a

principal atividade humana, verdadeiro ato

religioso. O labor era, portanto, uma forma de impedir que

o ócio conduzisse o homem aos vícios. No livro Sobre o trabalho dos monges, ele apresenta a doutrina do trabalho

manual, dissolvendo os argumentos que existiam na época

contra esse tipo de labor.

Na Política, Aristóteles afirma que o tra-

balho é incompatível com a vida livre e de-

fende o ócio, diferenciando-o da preguiça.

Segundo ele, “exaltar a inércia mais do que

a ação não corresponde à verdade, porque

a felicidade é atividade”. É no ócio que o homem encon-

tra a virtude, qualidade relacionada à prática. Para a An-

tiguidade Clássica, os cidadãos não deveriam ser artesãos,

mercantes ou camponeses, pois não restaria tempo para as

atividades política, filosófica e artística.

O trabalho como garantia de salvação eter-

na: essa é uma das ideias presentes da teo-

logia protestante. Para Max Weber, o enal-

tecimento do trabalho foi decisivo para o

desenvolvimento do capitalismo industrial.

O sociólogo explica que, para o protestantismo de João Calvino, as habilidades do trabalho devem ser incentivadas,

na medida em que são ofertas divinas. A teoria da predes-

tinação afirma que um dos sinais de salvação é justamente

a riqueza acumulada. Incerto seu destino, o fiel buscaria,

incessantemente, o trabalho e o lucro.

A ideia de Hegel, de que o trabalho é a me-

diação entre o ser humano e o mundo, está

presente no livro Lições de Jena (1803-

1804). Ele afirmava que o trabalho era uma

atividade espiritual e que o homem só po-

dia ser realmente homem se fosse capaz de satisfazer suas

necessidades por meio do trabalho. Segundo Hegel, que

formulou a primeira teoria filosófica do trabalho, a atividade

faz com que o egoísmo seja substituído pela realização das

necessidades de todos. A liberdade em sociedade também

seria fruto do trabalho.

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A crítica do trabalho no mundo industrial

feita por Karl Marx permanece definitiva co-

mo denúncia da exploração do trabalho no

século 19. Marx fez a análise das relações

de trabalho trazendo conceitos novos como

trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo.

Como para Hegel, em Marx o trabalho faz a mediação entre

homem e natureza. Os homens definem-se pelo que fazem,

e a natureza individual depende das condições materiais

que determinam sua atividade produtiva. Pelo trabalho se

altera a relação do homem com a natureza.

Em A condição humana, Hannah Arendt re-

toma a distinção grega das três atividades

fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor

corresponde ao processo biológico do corpo

do homem pela sobrevivência. O trabalho

propriamente dito, que corresponde à poiesis, significa fazer,

fabricação, criação de um produto por técnica ou arte; cor-

responde ao artificialismo da existência humana. A ação, por

sua vez, se exerce diretamente entre os homens, sem a me-

diação das coisas nem da matéria. É o domínio da atividade

em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra.

algumas concepções clássicas de trabalho

imaginadas, com a revolução cibernética e as no-vas tecnologias de comunicação, impõem-se hoje perguntas que a história do conceito não responde e estão dadas como tarefas para o futuro, ante os desafios do mundo do trabalho pós-industrial:

Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cida-dão e como pessoa de bem? Ou poderiam ser mais

valorizados a dedicação à família e aos amigos, a criatividade no âmbito do convívio e do lazer, a arte pela arte, o esporte, a participação em ati-vidades comunitárias, os serviços voluntários, a política, a vida do espírito? Quando se perceber que o homem trabalhador é mais do que seu tra-balho, será possível construir um novo conceito de criatividade humana apto a dar respostas para as novas situações deste tempo em que o fantasma do desemprego assombra a juventude.

Page 23: Revista CULT (parcial) - edição 139

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Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho?Para a psicologia social, reconhecimento é o fator que permite transformar o sofrimento em prazer; resta saber como e por que as formas atuais de organização precisam ser alteradas para que isso ocorra

christophe dejours

Nos dias de hoje, quando se fala do traba-lho, é de bom-tom considerá-lo a priori como uma fatalidade. Uma fatalidade so-

cialmente gerada. E, de fato, é preciso reconhecer que a evolução do mundo do trabalho é bastante preocupante para os médicos, para os trabalhado-res, para as pessoas comuns apreensivas com as condições que serão deixadas a seus filhos em um mundo de trabalho desencantado.

E, no entanto, no mesmo momento em que devemos denunciar os desgastes psíquicos causa-dos pelo trabalho contemporâneo, devemos dizer que ele também pode ser usado como instrumen-to terapêutico essencial para pessoas que sofrem de problemas psicopatológicos crônicos. No que concerne à visão negativa, é preciso distinguir o sofrimento que o trabalho impõe àqueles que têm um emprego do sofrimento daqueles homens e mulheres que foram demitidos ou que se encon-tram privados de qualquer possibilidade de um dia ter um emprego.

Há, portanto, situações de contraste. Surge inevitavelmente a questão de saber se é possível compreender as diversas contradições que se ob-servam na psicodinâmica e na psicopatologia do trabalho. Isso só é possível se defendermos a tese da “centralidade do trabalho”. Essa tese se desdo-bra em quatro domínios:

• no domínio individual, o trabalho é central para a formação da identidade e para a saúde mental,• no domínio das relações entre homens e mu-lheres, o trabalho permite superar a desigual-dade nas relações de “gênero”. Esclareço que aqui não se deve entender trabalho apenas como trabalho assalariado, mas também como trabalho doméstico, o que repercute na econo-mia do amor, inclusive na economia erótica,

• no domínio político, é possível mostrar que o trabalho desempenha um papel central no que concerne à totalidade da evolução política de uma sociedade,• no domínio da teoria do conhecimento, o tra-balho, afinal, possibilita a produção de novos conhecimentos. Isso não é óbvio. O estatuto do conhecimento, supostamente elevado aci-ma das contingências do mundo dos mortais, deve ser revisto profundamente quando se considera o processo de produção do conheci-mento e não apenas o conhecimento. É o que se chama de “centralidade epistemológica” do trabalho.Levando-se em conta o objetivo deste texto,

examinarei aqui somente a primeira dimensão, a da centralidade do trabalho no que concerne à formação da identidade e à saúde mental.

Formas de organização do trabalhoAs novas formas de patologia mental relacionadas ao trabalho (ver quadro na página 53) dão uma ideia inicial da importância dos problemas descobertos pela prática clínica, mas vale a pena apresentar as ra-zões e os processos que provocam degradações desse porte. Insisto, portanto, nos resultados recentes das pesquisas etiológicas sobre as novas patologias: a deterioração da saúde mental no trabalho está in-trinsecamente ligada à evolução da organização do trabalho e, em particular, à introdução de novas es-tratégias, entre as quais se destacam:

• a avaliação individualizada dos desempe-nhos;• a busca da “qualidade total”;• a terceirização em escala e o uso crescente de trabalhadores free-lancers em vez do trabalho assalariado.A evolução dos métodos de organização do