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Revista da Abordagem Gestáltica

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Instituto de Treinamento e Pesquisa emGestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Revista da Abordagem Gestáltica

Volume XVIII - N. 2

2012

Goiânia – Goiás

www.itgt.com.br

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Ficha Catalográfica

Revista da Aborda-gem Gestáltica/ Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia – Vol. 18, n. 2 (2012) – Goiânia: ITGT, 2012.

131p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.

CDD 616.891 43

Citação:REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 18, n. 1, 2012. xxxp

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Revista da aboRdagem gestáltica

Volume XVIII - N. 2 – Jul/Dez, 2012

Expediente

EditorAdriano Furtado Holanda

(Universidade Federal do Paraná)

Editores AssociadosCelana Cardoso Andrade

(Universidade Federal de Goiás)Danilo Suassuna Martins Costa

(Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Marta Carmo

(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)

Conselho EditorialAdelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)

Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)

Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)

Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)

Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão)

Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)

William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Suporte TécnicoJosiane AlmeidaMarcos Janzen

Norma Susana Romero Martinovich

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CapaFranco Jr.

Diagramação e Arte FinalFranco Jr.

BibliotecárioArnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

FinanciamentoInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

Encaminhamento de ManuscritosA remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência

de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereçada a:

EditorRevista da Abordagem Gestáltica

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT)Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130

Fone/Fax: (62) 3941-9798E-mail: [email protected]

Normas de Apresentação de ManuscritosTodas as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de

apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc.,podem ser encontradas no site http://pepsic.bvs-psi.org.br

Fontes de Indexação- Clase

- Latindex- Lilacs

- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)- ScopuS

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências bibliográficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.

A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.

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Sumário

vii Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012

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EDIToRIAl ...................................................................................................................................................ix

ARTIGoS

- Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda .......................................................................... 131

Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universidade Federal Fluminense) & Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal Fluminense)

- Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes .................................................................................................................................................. 136

Jéssica Paula Silva Mendes (Universidade Paranaense/Unipar); Sionara Karina Alves de Brito Gressler (Universidade Paranaense/Unipar) & Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maringá/Universidade Paranaense)

- os Sentidos do Sentido: Uma leitura Fenomenológica......................................................................... 144

Marta Helena de Freitas (Universidade Católica de Brasília); Rita de Cássia Araújo (Universidade Católica de Brasília); Filipe Starling Loureiro Franca (Universidade Católica de Brasília); Ondina Pena Pereira (Universidade Católica de Brasília) & Francisco Martins (Universidade Católica de Brasília)

- A Força da Palavra em Nicolau de Cusa ................................................................................................ 155

Sonia Lyra (Instituto Icthys de Psicologia e Religião, Paraná)

- Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade .................................................................................................. 161

Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie), Júlia Yoriko Hayakawa (Universidade Presbitariana Mackenzie), Suzan Emie Kuda (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisa Harumi Musha (Universidade Presbitariana Mackenzie), Tauane Cristina do Nascimento (Universidade Presbitariana Mackenzie), Bruna Bezerra Oliveira (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisabete Hara Garcia Rocha (Universidade Presbitariana Mackenzie), Daiany Aparecida Alves dos Santos (Universidade Presbitariana Mackenzie), Karen Ueki, (Universidade Presbitariana Mackenzie), Lucas Palhari Vasconcelos (Universidade Presbitariana Mackenzie)

- origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: o Caso da Abordagem Centrada na Pessoa .................................................................................................................................................. 168

Ana Maria Monte Coelho Frota (Universidade Federal do Ceará)

- “Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia .................................... 179

João Vitor Moreira Maia (Universidade Federal do Ceará), José Célio Freire (Universidade Federal do Ceará) & Mariana Alves de Oliveira (Universidade Federal do Ceará)

- Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo ..................................................................................... 188

Lauane Baroncelli (University College Cork)

- A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial .................... 197

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)

- Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração ........................................................................................................................206

Thiago Antonio Avellar de Aquino (Universidade Federal da Paraíba)

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Sumário

viii Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012

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- A linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard .................................................................................................................... 216

Rafael Auler de Almeida Prado (Universidade Católica de Pernambuco); Marcus Tulio Caldas (Universidade Católica de Pernambuco); Karl Heinz Efken (Universidade Católica de Pernambuco) & Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto (Universidade Católica de Pernambuco)

- As Psicopatologias como Distúrbios das Funções do Self: Uma Construção Teórica na Abordagem Gestáltica ............................................................................................................................. 224

Carlene Maria Dias Tenório (Centro Universitário de Brasília/UniCEUB)

TEXToS ClÁSSICoS

- Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940) ................................................................. 235

Marvin Farber (University of Buffalo, New York)

DISSERTAÇÕES E TESES

- Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010) ..... 249

Nayara Queiroz Mota de Sousa (Mestrado em Direito, Universidade Católica de Pernambuco)

- “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação (2011) ......................................................................................................................... 251

Erico de Lima Azevedo (Mestrado em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

NoRMAS

- Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica .............................................................. 255

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Editorial

ix Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): ix, jul-dez, 2012

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A Fenomenologia cada vez mais toma corpo no cenário nacional e internacional, seja no tradicional contexto fi-losófico, seja em suas múltiplas aplicações. Recentemente fomos brindados com novos estudos sobre seu pensamen-to, bem como a publicação – e algumas traduções, par-ticularmente para o inglês e o francês – de textos inédi-tos de Husserl, onde temas complexos, como “intersub-jetividade” ou “temporalidade” foram sendo desvelados. Igualmente os desdobramentos e revisões que o pensa-mento fenomenológico foi conhecendo ao longo dos anos desenvolvem-se a passos largos. Assim, questões exis-tenciais ou mesmo reflexões no terreno das filosofias da existência vem ganhando corpo igualmente.

A Revista da Abordagem Gestáltica, que desde o ano de 2006 se propôs a ser um veículo de divulgação desse conjunto de saberes – múltiplos, diversificados, abertos e profundos – vem se consolidando no cumprimento da sua missão, e vem cada vez mais se especializando no amplo espectro das reflexões fenomenológicas, associa-das às ciências humanas, sociais e da saúde.

Ao encerrarmos o ano de 2012 com este número, esta-mos não somente consolidando nossa posição de uma re-vista de qualidade – graças ao reconhecimento do Qualis-Capes – como também de acesso livre e gratuito, graças

ao apoio do PePSIC; e de um veículo aberto e multidisci-plinar (com a participação de variadas áreas de estudo e pesquisa). Ganhamos recentemente o reconhecimento da parte dos pesquisadores em História da Psicologia, por nosso esforço em trazer ao público brasileiro traduções de textos clássicos e fundamentais da Fenomenologia, como pode ser atestado no Blog da Rede Iberoamericana de Pesquisadores em História da Psicologia.

Nossa meta para o ano que se aproxima é agora a consolidação da “fenomenologia” como nosso caminho “natural”. E nada mais metafórico do que encerrar o ano com a tradução de um brilhante texto de Marvin Farber, de 1940, sobre os “fundamentos” da filosofia husserliana.

Ao todo, apresentamos ao leitor, um total de doze tra-balhos, nos quais se reflete essa diversidade e multiplici-dade, e onde se afirma o “lugar” da Fenomenologia como interlocução, com o pensamento psicológico – com textos de Gestalt Terapia, de Abordagem Centrada na Pessoa, de fenomenologia-existencial e sobre Viktor Frankl – e com outros campos do saber filosófico, social e psiquiátrico.

Boa leitura a todos

Adriano Furtado Holanda- Editor -

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Listamos abaixo todos aqueles que contribuíram com a revista, na qualidade de pareceristas, entre os anos de 2011 e 2012. Agradecemos a colaboração e esperamos contar novamente com sua participação.

Adão José Peixoto (Universidade Federal de Goiás)Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Ângela Schillings (Universidade Federal de Santa Catarina)

Beatriz Helena Paranhos Cardella (Instituto de Gestalt Terapia de São Paulo)Carlos Augusto Serbena (Universidade Federal do Paraná)

Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)

Cibele Mariano Vaz (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)

Danilo Suassuna (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)

Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Gustavo Gauer (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)

Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)Josiane Almeida (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)

Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie)Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)

Lúcia Cecília da Silva (Universidade Estadual de Maringá)Márcio Luiz Fernandes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)

Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)

Marta Carmo (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal Fluminense)Sandra Albernaz (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)

Selma Ciornai (Instituto de Gestalt de São Paulo)Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão)Sylvia Mara Pires de Freiras (Universidade Estadual de Maringá)

Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)

Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

NomiNata 2011-2012

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131 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012

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Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

ARTE E MUNDO: DIÁLOGOS ENTRE HEIDEGGER E CASTANEDA1

Art and World: Dialogues Between Heidegger and Castaneda

Arte y Mundo: Diálogos entre Heidegger y Castaneda

AnA GAbrielA rebelo dos sAntos

roberto novAes de sá

Resumo: Propomos pensar possibilidades de experiência de mundo a partir da articulação entre obra de arte, na concepção do filósofo Martin Heidegger em “A Origem da Obra de Arte”, e parar o mundo, idéia exposta pelo antropólogo Carlos Castaneda. Segundo Heidegger, ser obra de arte é instalar um mundo, deixar em aberto o aberto do mundo: abertura de sentido. Para o fi-lósofo, o homem é o ente cujo ser está sempre em jogo na sua existência. “Parar o mundo” é um ensinamento do índio Don Juan a Castaneda. Ele precisa parar o mundo, desmoronar seu conceito de mundo para conseguir ver o mundo desprendido do con-senso social. Os autores discorrem sobre realidades plásticas, mundos que existem a partir de experiências, formas de Ec-xistir e transitar entre mundos se mantendo na abertura do ser. Não objetivamos equivaler idéias, buscamos abrir um espaço para pensar acerca da existência do homem. Como recurso metodológico, destacamos passagens da obra de Castaneda e buscamos caminhos junto às idéias de Heidegger que nos auxiliem a elaborar um horizonte de diálogo.Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; Castaneda; Realidade; Arte.

Abstract: We propose to consider possibilities of world experience from the relationship between work of art, an idea developed by the philosopher Martin Heidegger in “The Origin of the Work of Art” and stop the world, an idea expounded by the anthro-pologist Carlos Castaneda. According to Heidegger, being a work of art is to install a world, leave open the opening of the world: opening of sense. For the philosopher, man is the being whose being is always at stake in its existence. “Stop the world,” is what speaks the Indian Don Juan to Castaneda. He needs to stop the world, collapsing his concept of world in order to see the world detached from social consensus. The authors discuss plastic realities, worlds that are based on experiences, forms of Existence and sometimes appearing to move between worlds and keeping the opening of Being. We do not aim to equate ideas, we open a space to think about the existence of man. As a methodological resource, we discusses highlighted passages of Castaneda’s work and seek ways to the ideas of Heidegger which help us to elaborate a common horizon of dialog.Keywords: Phenomenology; Heidegger; Castaneda; Reality; Art.

Resumen: Nos proponemos estudiar las posibilidades de experiencia de mundo. Partindo de la relación entre obra de arte, una idea desarrollada por el filósofo Martin Heidegger en “El origen de la obra de arte” y detener el mundo, una idea expuesta por el antropólogo Carlos Castaneda. Según Heidegger, ser obra es la instalación de un mundo, mantener abierto el abierto del mun-do: el sentido abierto. Para el filósofo, el hombre es el ser cuyo ser está siempre en juego en su existencia. “Detener el mundo,” es lo que propone el indio Don Juan a Castaneda. Él tiene que detener el mundo, deshaciendo su concepto del mundo para que pueda ver el mundo separado del consenso social. Los autores hablan de realidades plásticas, de mundos que se basan en las experiéncias, de formas del Existir y permaneciendo en la apertura del ser. La intención no es lo apunte a igualar las ideas, pero abrimos un espacio para pensar en la existencia del hombre. Como método, utilizamos fragmentos de la obra de Castaneda jun-to de las ideas de Heidegger.Palabras-clave: Fenomenología; Heidegger; Castaneda; Realidad; Arte.

Introdução

No verão de 1960, o até então estudante de antropo-logia Carlos Castaneda parte em viagem para o sudoeste dos Estados Unidos em busca de maiores informações sobre as plantas medicinais utilizadas pelos índios do local. E é no estado do Arizona que acontece o primeiro encontro com o índio yaqui Don Juan Matus. O primeiro de muitos encontros que aconteceriam por mais 13 anos.

1 A presente pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, pela primeira autora (Bolsista Capes), sob orientação do segundo autor.

A princípio, Castaneda pede que o índio lhe ensine sobre as plantas, principalmente sobre o peiote, e de alguma forma – que não sabe bem explicar –, se sente intrigado e atraído por Don Juan. Esse primeiro encontro é descri-to pelo autor como perturbador.

Depois disso, ainda sob o sentimento de inquietação, Castaneda descobre onde mora Don Juan e passa então a visitá-lo constantemente. Mas, nas longas horas que pas-savam juntos, durante um ano, não falaram sobre plantas. Os acontecimentos estavam dirigidos para longe de seu propósito original. Passado esse tempo, Don Juan diz a Castaneda ter certos conhecimentos que lhe foram pas-

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oAna G. R. Santos & Roberto N. Sá

sados por seu benfeitor; conhecimentos relacionados ao que ele chama de “caminho do guerreiro”. Por uma série de circunstâncias, que não se encerram no desejo de ne-nhum dos dois, Castaneda fora escolhido como aprendiz de Don Juan e, juntos, trilharam um caminho que abalou definitivamente o mundo daquele.

Os primeiros cinco anos de aprendizado são re-latados no seu livro mais famoso – A Erva do Diabo (Castaneda, 1968) –, que foi sua dissertação de mestrado pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Nele, o autor descreve principalmente suas experiências com plantas alucinógenas, o que foi bastante importante no seu percurso. Cabe aqui lembrar que a visão dos feiticei-ros sobre as plantas não se esgota em sua descrição bo-tânica e a experiência de encontro com cada uma delas deve ser vista como um fenômeno, de modo que a coisa com a qual lidamos, nesse caso a planta, nunca é uma coisa ideal e sim a coisa de que fazemos experiência. Dessa forma, é possível manter um olhar de abertura à experiência vivida e ao seu horizonte próprio de sentido.

Os feiticeiros podem se utilizar das plantas como aliados, mas não é necessário que se use. Em passagem de Porta para o infinito (Castaneda, 1974), podemos ver o momento em que Don Juan diz a Castaneda que no caso dele foi preciso fazer uso das plantas, porque ele era um homem muito duro e essas experiências foram necessá-rias para sacudir seu mundo. Além dessas experiências que incluíam o uso de determinadas plantas, o autor nos fala, ao longo de seus doze livros, de inumeráveis acon-tecimentos de outros tipos. Aquilo que a princípio lhe parecia mais improvável, foi o que mais lhe atormentou: tudo que ele tomava como o mundo real estava abala-do. Diz Castaneda (1972/2006): “O ponto crucial de meu dilema naquele momento era minha falta de vontade de aceitar o fato de que Dom Juan era bem capaz de demolir todas as minhas concepções prévias de mundo...” (p. 39).

Em fins de 1965, Castaneda se retira do aprendiza-do e decide não mais ver Don Juan. Porém, em 1968, já com seu primeiro livro em mãos, ele vai visitar o índio e a relação mestre-aprendiz é restabelecida. Ao que vem a se passar a partir de então, Castaneda chama de seu segundo ciclo de aprendizado. É nesse segundo ciclo que encontramos aquilo a que vamos dar maior relevân-cia no nosso trabalho: a difícil tarefa de parar o mundo. É preciso que Castaneda consiga “parar o mundo”. Mas o que seria “parar o mundo”? Essa pergunta é feita muitas e muitas vezes a seu mestre, que por sua vez, evita pala-vras e propõe de diversas formas que ele tenha – como Castaneda fala – uma “experiência mais direta do mun-do”. “Referia-me ao conhecimento acadêmico que trans-cende a experiência, enquanto ele falava do conhecimen-to direto do mundo”, diz Castaneda (1971/2009, p. 10).

Em outra passagem, quando perguntado sobre o que seria exatamente um ente a que chamam “aliado”, em Porta para o Infinito (Castaneda, 1974), Don Juan responde:

– Não há como dizer, precisamente, o que é um aliado, assim como não há meio de dizer exatamente o que é uma árvore.– Uma árvore é um organismo vivo – disse eu.– Isso não me diz muito – retrucou ele. Também posso dizer que o aliado é uma força, uma tensão. Mas isso não acrescenta muita coisa a respeito de um aliado. Assim como no caso de uma árvore, o único meio de saber o que é um aliado é experimentando-o (p. 78).

Essas e outras passagens nos fazem recordar os cami-nhos da fenomenologia, particularmente aqueles trilha-dos por Martin Heidegger. Propomos que, como o filósofo nos diz em A Questão da Técnica (Heidegger, 1953/1997), atentemos para o caminho sem permanecermos presos a proposições e títulos particulares, e, assim, possamos re-fletir a partir de uma livre relação de pensamento. Como diz Don Juan, em A Erva do Diabo (Castaneda, 1968), te-nhamos em vista que um caminho é apenas um caminho.

Quando Heidegger nos fala de mundo, ele não está falando de um objeto que está ante nós e que pode ser sensorialmente percebido; não se trata de um espaço pré--existente a nós onde as coisas também já ali se encon-tram dadas e onde somos simplesmente inseridos como bonecos numa caixa. Homem e mundo não pré-existem um ao outro, homem e mundo co-emergem na expe-riência. Mundo para Heidegger é abertura de sentido. Em A Origem da Obra de Arte, lemos:

Mundo nunca é um objeto, que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser (Heidegger, 1950/ 2007, p. 35).

Segundo Heidegger, o sentido está sempre em jogo na existência. Em seu relacionar-se com as coisas enquan-to coisas o homem habita o mundo, desvelando sentido. Em nosso modo de ser cotidiano mais comum, tomamos o mundo como algo simplesmente dado, e a nós mesmos como sujeitos empíricos, cuja existência fosse ontologi-camente separada do mundo. Quando Castaneda diz co-nhecer o mundo, ele se refere àquilo que sempre, desde que ele nasceu, as pessoas vem lhe dizendo que é mun-do. É importante destacar aquilo que Don Juan nos fala ao longo de toda a obra de Castaneda e que parece ecoar o que a fenomenologia sinaliza como fundamental: a di-mensão de abertura da experiência, abertura constituti-va de sentido, porque é na própria relação de sentido que as coisas vêm a ser. Parar o mundo significa desmoronar todo o conceito prévio que se tem de mundo e, assim, o guerreiro vê o mundo desprendido do que se convencio-na previamente como mundo. O ver aqui difere do olhar, diz respeito a uma apreensão que não se limita aos olhos, tampouco se determina por um suposto mundo verdadei-

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Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

ro. Quando se “vê”, tudo se torna igual e ao mesmo tempo tudo é novo. Tudo se torna igual no sentido do valor, nada é (em si mesmo) mais importante que nada, e ao mesmo tempo tudo é novo por percebermos as coisas despren-didas dos preconceitos cotidianos.

Pensar o mundo como verdadeiro ou falso não faz mais sentido, pois isso implicaria tomarmos como cri-tério um mundo simplesmente dado. Ao longo de seu aprendizado, Castaneda insiste diversas vezes que Don Juan lhe fale o que é ver e o que se vê quando se vê. A isso Don Juan responde:

– Você tem de aprender a ver para saber disso. Não posso lhe dizer.– É um segredo que não posso saber?– Não. Acontece que não posso descrevê-lo.– Por quê?– Não faria sentido pra você.– Experimente Don Juan. Talvez faça sentido para mim.– Não. Tem de fazê-lo por si. Uma vez que aprenda, poderá ver cada coisa no mundo de maneira diferente (Castaneda, 1971/2009, p. 48).

Além deste privilégio dado à experiência como modo de ser irredutível ao conhecimento representacional, é pertinente observarmos, ainda, outra ressonância em nossas leituras de Heidegger e Castaneda referente a essa dimensão existencial do conhecimento: trata-se das no-ções de fazer e não-fazer, apresentadas por Don Juan a Castaneda. Quando perguntamos, cotidianamente, o que é algo, estamos questionando, na maioria, para que serve a coisa em questão, qual sua função ou utilidade.

Em sua analítica da existência, Heidegger aponta que o nosso modo predominante de ser é o estar absorvido na ocupação com as coisas. Essa “ocupação” não é para ele a mera lida objetiva com coisas previamente dadas, mas uma relação intencional, no sentido fenomenológi-co, de constituição de sentido. Ocupar-se com as coisas é participar de modo irrefletido da dinâmica de reali-zação de um mundo. Nos deixamos absorver tão firme-mente a essa lida ocupacional que deixamos escapar o aberto do mundo. Em uma conferência muito posterior a Ser e Tempo, intitulada A Questão da Técnica, Heidegger (1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno e contemporâneo de acontecimento histórico do mundo. Na “era da técnica”, como é denominada, por ele, a época atual, o homem toma todos os entes como recursos para os seus afazeres, como se toda a realidade se reduzisse a mera reserva de energia disponível para sua exploração e consumo (Novaes de Sá & Rodrigues, 2007). A experi-ência do pensamento se reduz, por sua vez, às operações calculantes que visam à previsão e ao controle dos entes. Heidegger diz que o mundo atual é pobre de pensamento, querendo significar com isso que a presente era da téc-nica põe sob ameaça a possibilidade mais essencial do

homem: a meditação sobre o sentido das coisas, da exis-tência e do mundo. Para que essa possibilidade seja pre-servada em meio ao nivelamento calculante promovido pela técnica moderna, Heidegger (1966) propõe o exer-cício de uma disposição do espírito denominada como serenidade (Gelassenheit). Inspirado no místico alemão Mestre Eckhart, o filósofo entende essa disposição como uma equanimidade da alma, uma atitude de suspensão e desapego da vontade. A “serenidade” faz parte do pen-samento que medita. Ao contrário do pensamento calcu-lante, que reduz tudo à condição de disponibilidade, o pensamento meditante nos solicita uma atenção livre de qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identifi-cação a um aspecto exclusivo das coisas, preservando em sua abertura compreensiva a diferença irredutível entre as realidades que se apresentam e a dinâmica de realiza-ção dessas realidades. Em nossas leituras de Castaneda, não pudemos evitar a evocação do “deixar-ser” da “sere-nidade” heideggeriana quando nos deparamos com a es-tranha proposta do “não-fazer” de Don Juan.

Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos funda-mentais que Don Juan apresenta a Castaneda em Viagem a Ixtlan é o “não-fazer”. Segundo ele o guerreiro precisa não fazer a fim de experimentar outras possibilidades de ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a seguir, um trecho da referida obra:

– Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer – disse ele....não havia entendido o que ele queria dizer.– Aquilo é fazer! – exclamou.– Como?– Isso também é fazer.– De que é que está falando, Don Juan?– Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você, você e eu, eu.(...)– Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela é fazer, mas vê-la é não fazer.Tive de confessar que as palavras dele não estavam fazendo sentido para mim.– Ah, fazem, sim! – exclamou. – Mas você está conven-cido do contrário porque isso é você fazendo. É assim que você age em relação a mim e ao mundo...– O mundo é o mundo porque você conhece o fazer necessário para torná-lo mundo – disse ele. – Se você não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente (Castaneda, 1972/2006, p. 237).

A fim de não-fazer, Castaneda precisava conseguir parar seu diálogo interno, pois só de olhar uma pedra já estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso diálogo interno, a todo instante sustenta um mundo que nos é mais familiar. A questão que trazemos é: que mundo temos nós, ao longo dos últimos tempos, feito? Don Juan

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oAna G. R. Santos & Roberto N. Sá

nos fala que todos nós fomos ensinados a concordar sobre o fazer e que não temos idéia de como esse fazer é pode-roso, mas felizmente, o não-fazer é igualmente poderoso.

Quando tentamos co-responder à leitura desses pen-sadores, buscamos abrir um espaço para pensar em no-vos modos de estar no mundo. Modos que privilegiem as possibilidades de experiência do mundo enquanto mundo. Pensar já é em si uma prática, pois pensamento é uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento (Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para tradu-zir a palavra grega aletheia, indica que a verdade não é a correspondência adequada a uma realidade em si, mas a própria dinâmica de acontecimento/aparecimento das realidades.

A obra de arte, na concepção de Heidegger, tem uma articulação essencial com essas idéias, na medida em que ser obra é instalar um mundo, e para instalar mundo é preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra co-loca à luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura e transcendência no relacionar-se com elas. Na referi-da conferência do filósofo – A Origem da Obra de Arte (Heidegger, 1950/2007) –, ele toma como exemplo algumas telas do pintor holandês Vincent Van Gogh, onde ele pin-ta sapatos de camponeses. Pares de sapatos camponeses, o que há de especial para se ver aí? Todos nós sabemos de que matéria é feito um sapato, e também conhecemos a serventia do apetrecho sapato.

Na lida cotidiana da camponesa com seus sapatos o que vem ao encontro de modo mais imediato e irrefletido é o caráter instrumental do apetrecho sapato. Seria ilu-são pensar que foi a nossa descrição, enquanto atividade subjetiva, que tudo figurou assim para depois projetar no quadro. Essa seria mais uma forma de pensar homem e mundo separados e independentes, com isso acabaríamos fazendo uma gênese psicológica para a criação artística. A seguir, vemos um trecho de Heidegger (1950/2007):

Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do tra-balhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua--se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutivi-dade do campo no inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte (p. 25).

Este apetrecho sapato está abrigado no mundo da camponesa e é a partir mesmo desta abrigada pertença

que ele surge para o seu repousar-em-si-mesmo. Mas é quando os sapatos estão no quadro que os vemos como possibilidade disso tudo. A obra coloca à luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura e transcendência no relacionar-se com elas. É na relação da camponesa com os sapatos que o ser sapato acontece. E esse é o sapato dos longos caminhos pelo campo, do cansaço do traba-lho, das horas de frio... É o sapato do qual se tem experi-ência, são esses sapatos que Vincent abre em suas telas.

Quando Castaneda para o mundo pela primeira vez, ele conversa com um coiote que está andando pelo cam-po. Ademais, fala de uma série de experiências que diz não poder descrever com palavras. Ao contar o ocorrido ao índio Don Juan, este lhe diz que o coiote não falara da mesma maneira como os homens falam e que Castaneda não conseguiu reconhecer isso, mas seu corpo havia com-preendido pela primeira vez.

– Seu corpo compreendeu pela primeira vez. Mas você não conseguiu reconhecer que não era um coiote, para começar, e que certamente não estava falando da maneira que você ou eu falamos.– Mas o coiote falou mesmo, Don Juan!– Agora olhe quem está falando como um idiota. Depois de todos esses anos de aprendizado, já devia saber. Ontem você parou o mundo e podia até ter visto. Um ser mágico lhe disse uma coisa e seu corpo foi ca-paz de entender, porque o mundo tinha desmoronado.– O mundo estava como hoje, Don Juan.– Não estava, não. Hoje os coiotes não lhe dizem nada, e você não consegue ver as linhas do mundo. Ontem fez tudo isso simplesmente porque alguma coisa tinha parado dentro de você.– O que foi que parou em mim?– O que parou em você ontem foi aquilo que as pes-soas têm dito que é o mundo. Entenda, as pessoas nos dizem, desde o momento em que nascemos, que o mundo é assim e assado, naturalmente não temos outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pes-soas nos dizem que é (Castaneda, 1972/2006, p. 314).

Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas no-ções, os dois autores discorrem sobre realidades plásti-cas, sobre mundos que existem a partir de experiências, sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, man-tendo-se na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os sapatos, ele os traz à presença, e aqui entendemos pre-sença como proximidade, a intensidade própria de sua experiência. A arte não consiste em mera representação de um mundo; da mesma forma quando o guerreiro vê, ele faz uma experiência livre de suas idéias prévias de um mundo simplesmente dado. “Parar o mundo”, em Castaneda, e “ser obra de arte”, em Heidegger, podem ser relecionados pelo fato de apontarem para uma aber-tura de possibilidades de sentido para além do mundo que tomamos como dado.

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Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

Em Viagem a Ixtlan, após passar por uma determi-nada experiência, Castaneda se inquieta e diz não con-seguir entender o que tinha se passado. Don Juan diz a ele: “Insiste em explicar tudo como se o mundo intei-ro fosse composto de coisas que podem ser explicadas. (...) Já lhe ocorreu que há poucas coisas nesse mundo que podem ser explicadas do seu jeito?” (Castaneda, 1972/2006, p. 160).

Quando Castaneda explica o mundo, ele simples-mente reafirma sua representação prévia do mundo e assim o esgota enquanto abertura de possibilidades. Em vários momentos de sua trajetória de aprendizado, Castaneda se vê dividido entre dois mundos, o mundo cotidiano dos homens e o mundo dos feiticeiros: qual mundo seguir?

Certa vez ao ingerir uma das plantas de poder – botões de peiote – ele pergunta qual o caminho certo a seguir, qual o mundo certo. O espírito do peiote, Mescalito, o conduz em experiências distintas. A princípio, Castaneda tem visões e sensações agradáveis, que lhe trazem feli-cidade, mas logo depois ruídos começam a entrar nesse mundo pleno de felicidade e a experiência começa a se transformar de forma desagradável. Castaneda se vê em uma situação de luta e todo o conforto desaparece. Diante disso, ele não consegue interpretar sozinho o que foi que Mescalito veio lhe dizer; confuso pede ajuda de Don Juan que lhe diz que a lição de Mescalito foi lindamente clara. Ele disse que Castaneda acredita existirem dois mundos para ele, dois caminhos, enquanto na verdade só existe um: o mundo dos homens.

O único mundo possível para um homem é o mundo dos homens, porque somos homens e isso não podemos resolver largar. Na primeira experiência, onde tudo é fe-licidade não há diferença entre as coisas porque não há ninguém que indague pela diferença. Por isso Mescalito sacode Castaneda e o tira novamente de uma posição confortável, para lhe mostrar como o homem pensa e luta. Trata-se de um horizonte de mistério fundamental do ser homem: horizonte de abertura da própria exis-tência. Don Juan diz que presumir que se vive em dois mundos é vaidade, pois se sendo homem, se vive o mun-do dos homens.

Aproximemos este pensamento com o que desenvol-ve Heidegger sobre o modo de ser do homem, o “ser-aí”. O homem é o único ente cujo ser está sempre em jogo em sua existência. Para a fenomenologia, não há uma essên-cia a priori à própria experiência do existir. O homem é ser-no-mundo. Don Juan diz que é preciso, de certa for-ma, entender que, essencialmente, não somos nada para, assim, podermos ser tudo. Nenhum mundo é o mundo certo ou verdadeiro. Mais adiante, em Viagem a Ixtlan, Don Juan fala a Castaneda que após ver o mundo dos feiti-ceiros ele deverá perceber que a grande arte do guerreiro é saber transitar entre os mundos, sabendo que nenhum é mais verdadeiro que o outro, mas que todos são possi-bilidades de experiência.

Não devemos concluir desse esboço de um diálogo insólito, que o mundo que convencionamos em socie-dade não é importante. O que se põe em questão nesses pensamentos é a cristalização da experiência cotidiana de mundo como verdade absoluta, e, também, a crista-lização dos nossos modos de ser medianos como únicas possibilidades de estar no mundo. O nosso modo de ser mais comum é tão próprio ao nosso existir, quanto o fato de que ele não esgota nossas possibilidades existenciais enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experiências exóticas de mundos, o que buscamos lembrar, através da ressonância entre esses pensamentos tão distintos, seja através da arte ou por outros caminhos, é a “brecha”, a “abertura” que nos permite transitar entre mundos.

Referências

Castaneda, C. (1968). A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Record.

Castaneda, C. (1974). Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Record.

Castaneda, C. (2006). Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Nova Era (Original publicado em 1972).

Castaneda, C. (2009). Uma estranha realidade. Rio de Janeiro: Nova Era (Original publicado em 1971).

Heidegger, M. (1997). A Questão da técnica. Cadernos de Tradução, número 2. São Paulo: DF/USP (Original publi-cado em 1953).

Heidegger, M. (2007). A Origem da Obra de Arte. São Paulo: Edições 70 (Original publicado em 1950).

Heidegger, M. (1966) “Sérénité”. Em Questions III, p. 159-181. Paris: Gallimard.

Sá, R. N., de & Rodrigues, J. T. (2007). A questão do sujeito e do intimismo em uma perspectiva fenomenológico her-menêutica. Em A. M. L. C. de Feijoo & R. N. de Sá (Orgs). Interpretações fenomenológico-existenciais para o sofri-mento psíquico na atualidade [pp. 35-54]. Rio de Janeiro: GdN /IFEN.

Ana Gabriela Rebelo dos Santos - Graduada em Psicologia pela Uni-versidade Federal Fluminense, Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense / Bolsista REUNI (UFF) e Arteterapeuta integrante da equipe da Clí-nica Pomar no Rio de Janeiro. Email: [email protected]

Roberto Novaes de Sá - Professor Associado da Universidade Federal Fluminense, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. Endereço Institucional: Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Gerais, Departamento de Psicologia. Campus Gragoatá, bl. O, sala 218 (São Domingos). CEP 24210-350, Niterói (RJ). Email: [email protected]

Recebido em 01.06.2011Aceito em 21.07.2012

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Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

SER pSICOTERApEUTA: REfLExõES ExISTENCIAIS SObRE vIvêNCIAS DE ESTAGIÁRIOS-TERApEUTAS INICIANTES1

Be Psychotherapist: Existential Reflections on Experiences of Trainees-Therapists Beginners

Ser un Psicoterapeuta: Reflexiones Existenciales cerca de Vivéncias de Alumnos-Terapeutas Principiantes

JéssicA PAulA silvA Mendes

sionArA KArinA Alves de brito Gressler

sylviA MArA Pires de FreitAs

Resumo: Esta produção apresenta uma análise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealização do estagiá-rio-terapeuta iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexão teve como ponto de partida algumas vivências das autoras, bem como a observação das dos demais estagiários que se encontravam diante do início da prática da psicoterapia individual para adultos e terceira idade, desenvolvida por meio da disciplina de Estágio Específico I, da ênfase de Psicologia e Processos Clínicos, do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivências, propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes é colocado o psicoterapeuta, lugar esse construído por ideolo-gias que criaram o papel do profissional responsável pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar verdades que desconsideram a interdependência da relação terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagiário-terapeuta ini-ciante a criar expectativas frente suas atuações, as quais, ao abarcar toda a responsabilidade pela “cura” do Outro, nega-o como artífice de sua existência. Diante disso, consideramos que projetos idealizados não abarcam frustrações, impossibilitando o re-conhecimento dos limites do próprio projeto de Ser terapeuta.Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealização; Fenomenologia-existencial.

Abstract: This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the trainee-therapist Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the ob-servation of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, devel-oped through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing direc-tions that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibil-ity for the “cure” the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.

Resumen: Esta producción presenta un análisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealización del aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexión tiene como punto de partida algunas experiencias de los autores y la observación de los alumnos que estaban antes del inicio de la práctica de la psicoterapia individual para adultos y personas de edad avanzada, desarrollada a través de la disciplina de la Etapa I-específicas, el énfasis de la Psicología Clínica y Procesos, 4 º año de Psicología en la Universidad de Paraná, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias, deconstruir el lugar donde la soberanía es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologías que han creado el papel del profesional responsable de la curación, lo que valora en gran medida hasta el punto de toma el valor de las verdades que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando toda responsabilidad por la “cura” el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealiza-do, lo que hace imposible reconocer los límites del propio proyecto de ser un terapeuta.Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealización; La fenomenología existencial.

1 Comunicação oral apresentada no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, rea-lizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.

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Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes

Introdução

Ao pensar em psicoterapia, a idéia que instiga pri-meiramente é a de um tratamento cuja função principal é a cura. Tal concepção de livrar o paciente de determi-nados sintomas passa pelo senso comum, configurando--se inclusive como expectativa do próprio estudante de Psicologia frente à prática psicoterápica (Camon, 1999).

Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as expectativas do estudante, quando inicia os atendimen-tos psicoterapêuticos, influenciam a maneira como com-preendem as vivências de seus clientes e suas próprias. Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessaria-mente, a contextualizar algumas condições que levam a escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al. (1980) mencionam que, apesar de cada pessoa possuir seus próprios motivos, de acordo com seus projetos, geral-mente os estudantes de Psicologia tendem a compartilhar de alguns deles tais como a preocupação com o bem-estar das pessoas e o desejo em ajudá-las. Associada a isto está a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.

Chegamos, portanto, ao possível motivo para toda ansiedade e angústia do estagiário-terapeuta iniciante, que são vivenciadas antes mesmo do primeiro atendi-mento, ao imaginar sua atuação baseada no projeto de terapeuta ideal.

Durante a formação do psicoterapeuta, ele geralmen-te é também habilitado para realizar o psicodiagnóstico a partir do conhecimento de teorias que fundamentarão sua prática. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que ele leva para a prática, antes de qualquer coisa, é a si pró-prio como pessoa. Sua relação com o cliente também será construída de acordo com seu projeto de ser, podendo, a princípio e pela falta de prática do método que deverá embasar sua prática, analisar os sentimentos e compor-tamentos dos clientes com referência em suas próprias experiências, expectativas e valores morais.

Sobre a psicoterapia enquanto vivência de diferentes sensações experimentadas pelo estagiário-terapeuta ini-ciante, não se pode deixar de falar em como a supervisão, tanto do acadêmico em atividades curriculares, quanto dos recém formados, torna-se um recurso que viabiliza o conhecimento básico e a experiência mínima para atu-ação enquanto prática clínica (Boris, 2008).

É sobre as principais expectativas e sentimentos di-versos que acometem o estudante de Psicologia frente às atividades práticas em psicoterapia, ou seja, as possíveis vivências diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos de-bruçaremos reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos da filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais filó-sofos existencialista da modernidade, é que fundamen-taremos nosso olhar, uma vez que, a respectiva aborda-gem difunde a idéia de uma educação progressista, que coloca o estudante no centro de todo o processo, exórdio de toda discussão apresentada nesta produção científica.

A concepção da Psicologia voltada à prática enquan-to Clínica vem, ao longo do tempo, se adequando às de-mandas emergentes com exigências contemporâneas cada vez mais peculiares, onde problemas das mais variadas ordens se apresentam. Tal atuação que se difundiu no meio acadêmico e social como a mais nobre, revelou a figura do psicólogo que atua dentro de um contexto te-rapêutico tradicional.

Historicamente, a Psicologia Clínica dispõe de um sujeito idealizado, que surge para atender a uma deman-da de exaltação da subjetividade, característica do indi-vidualismo moderno. Há uma inversão na relação teoria e prática, que se deve, segundo Portela (2008), à tentati-va de encaixar os fenômenos em um conceito teórico que acaba por engessar a historicidade e facticidade desses eventos. Nesse sentido é que este autor cita o apego aos modelos científicos como fator limitante da compreen-são dos fenômenos, uma vez visto o método como forma de um (falso) controle para sua ocorrência.

Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abordagem Existencialista tem abarcado essa demanda da contem-poraneidade por meio de seus vários instrumentos em uma metodologia fundamentada historicamente, de for-ma concreta e atualizada, e segundo as relações que são estabelecidas. Busca-se então uma clínica ampliada, não limitada, desenvolvida nos mais diversos contextos nos quais a Psicologia se insere, seja na saúde pública, no meio organizacional, educação ou qualquer outra área, com uma prática pautada na visão global desse cliente.

Não nos debruçaremos na caracterização desses va-riados contextos por acreditarmos que as expectativas do estagiário-terapeuta iniciante se assemelham indepen-dente do local onde atue. Nosso foco se mantém então, em levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas, destacando aspectos que nos parecem fundamentais sob a perspectiva existencialista. Antes, porém, faz-se mister definirmos alguns conceitos básicos que fundamentam a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se no conceito de consciência intencional, para assim tam-bém podermos compreender em que Sartre transcende Husserl em suas reflexões. Posteriormente, a partir dessa breve contextualização, partiremos para a análise com-preensiva a temática que nos propomos.

1. A fenomenologia Husserliana

Fenomenologia nada mais é que um método que sur-ge dentre os movimentos do pensamento do século XX. Na concepção husserliana, essa definição restaura um “re-torno às coisas mesmas” (Galeffi, 2000, p. 19), provocando assim importantes mudanças no fazer filosófico deste sé-culo. Husserl se empenhou em diferenciar a consciência do eu empírico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) “o eu no seu sentido habitual é um objeto empírico”, ou seja, ele não pos-sui outra unidade senão aquela que lhe é dada pela própria

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Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

consciência. Contudo, esta concepção do eu sofrerá uma mudança radical a partir do momento em que Husserl enca-minha a fenomenologia na direção de uma filosofia trans-cendental. Uma vez que perceber o objeto é intencioná-lo, o ego transcendental passa a ser visto como a origem de toda significação e a fenomenologia vem a partir daí, expli-car esta constituição do ego transcendental (Santos, 2008).

Considerando o Eu transcendental, a individualidade da consciência e esta, por sua vez caracterizada enquanto intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como res-ponsável por todo conhecimento, constituindo e dando sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvol-ve com o objetivo principal de descrição de vivências, a partir das quais se constituem objetos intencionais da consciência (Brandão, 2009). Nesse sentido, para Husserl, o Eu Transcendental unifica as vivências. É ele que vai ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto).

A busca de Husserl então se fundamenta naquilo que podemos chamar de uma consciência absoluta, revelada pela redução fenomenológica. Seu caráter epistemológico é o que define o significado de mundo para cada indiví-duo, evidenciando o conteúdo concreto de vida de forma autêntica. Posta a ação do mundo suspensa, se permite a consciência tornar-se plenamente consciente de si mes-ma (Giles, 1989).

2. O Existencialismo Sartreano

Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende que o Eu não pode ser visto como estrutura constituinte da consciência. Desta maneira, a definição de uma consci-ência vazia seria aniquilada, contradizendo e comprome-tendo assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o Eu não pode estar presente na consciência irrefletida uma vez que o “Eu penso” só surge por meio do ato reflexivo. Ou seja, é a reflexão que constitui este objeto transcen-dente chamado Eu, que a partir deste momento passa a existir no mundo como um Em-si. Sartre postula então um Ego transcendido e não transcendental, haja vista ser este conhecido e não o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).

Apoiados no conceito de projeto da filosofia sartreana, encontramos a caracterização do homem enquanto expres-são de sua liberdade. Nesse sentido, o Existencialismo ba-seia-se em uma análise compreensiva da existência a par-tir do entendimento de uma liberdade de escolha situada, não obstante, sem obrigatoriamente garantia de obtenção, em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acor-do com sua valorização, que se respalda também em uma moral vigente de seu contexto. Sob essa óptica o homem passa a ser um existente separado de todos, uma vez que consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo que “transporta em mim os projetos do Outro e no Outro os meus próprios projetos” (Sartre, 1960/2002, p. 212).

Vê-se então a contradição fundamental entre ho-mem x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz

parte de uma totalidade, sendo o próprio todo, ele não é o todo à medida que se coloca contraditório a ele. Para Perdigão (1995), é o mundo que lhe dá o Ser ao afirmá-lo não só como sujeito, mas enquanto totalidade acabada. O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no âmbito de tal contradição. Enquanto tese, o homem se contrapõe ao mundo que é antítese, e é a existência desse não-ser em andamento entre a totalização constituinte e o todo constituído que estabelece a existência dialética de um nada ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).

Inerente à construção do mundo pelo homem está a constituição deste último enquanto produto desse mun-do feito por ele. Necessário se faz, neste caso, estabele-cer relações com outros homens para se tornar homem, já que se constitui enquanto tal pela mediação de uma realidade que ele próprio estabelece.

Assim, a cada escolha que transcende as contradi-ções inerentes a existência humana, constitui o enfoque daquilo que Sartre denominou de histórico-dialético. O sujeito deve ser compreendido a partir de sua história individual e, ainda, dos contextos social, cultural, eco-nômico e político ao qual está inserido.

Com foco nesta concepção histórico-dialética de Sartre (1960/2002), sua contribuição para a Psicologia diz respeito ao estudo de um homem em situação, e princi-palmente, dos fenômenos que permeiam as relações no decorrer de sua existência. Toda essa investigação pro-posta pela filosofia sartreana visa alcançar a compreen-são dos diversos aspectos da existência em todo seu mo-vimento e constituição do projeto de Ser.

Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece métodos para a prática clínica: do método fenomenológi-co, a partir da epoqué, abstraímos a base para uma atitude compreensiva e pelo método progressivo-regressivo pode-mos entender o projeto de Ser a partir das escolhas reali-zadas pelos clientes, que se dão num movimento dialético temporal. E é por este mesmo movimento que a Psicologia clínica foi e continua sendo construída historicamente.

3. A psicologia Clínica e o Sujeito Objetivado

Falar em atuação clínica nos remete inevitavelmen-te a uma discussão, mesmo que breve, do movimento da Psicologia enquanto construção de um saber científico, cuja prática foi moldada ao longo do tempo e influencia-da pelas questões sociais e antropológicas que conferem ao homem em suas variadas formas de ser, o objeto de estudo do fazer psicológico.

Para concretizar-se enquanto ciência, a Psicologia, no que diz respeito à prática clínica, é um campo mar-cado pela busca de um saber inquestionável. Propunha a confiabilidade de um método que fosse capaz de prever e controlar os fenômenos responsáveis pela construção de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma

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subjetividade marginalizada pelo processo científico, à medida que se opõe a objetividade proposta pela ciência, ao terapeuta foi concedida a capacidade de transformar a natureza de seu cliente, cujos fenômenos característicos foram reduzidos apenas a um objeto de estudo.

Nesse sentido é que Neubern (2001) aponta o grande dilema da Psicologia Clínica, pois à medida que se de-senvolvem novas formas de atuação, ainda assim, esbar-ramos na limitação epistemológica que tende a excluir a subjetividade.

Provavelmente o maior resultado dessa discrepância para as relações terapêuticas está relacionado à dificul-dade de aceitação das mais variadas formas possíveis de compreensão de mundo, reduzindo as experiências a con-ceitos universalizados, logo generalizantes.

Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a uma hierarquia, uma relação de poder, onde as pers-pectivas do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas, substituindo ou influenciando assim as peculiaridades do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando como função oferecer explicações confiáveis, principal-mente dos sujeitos que estavam à margem do conceito de normalidade. O foco no patológico veio reafirmar a condição desse homem enquanto dependente e submis-so do processo terapêutico, uma vez que a Psicologia lhe foi apresentada como uma, senão a única, capaz de pro-mover soluções eficazes.

A avaliação das múltiplas e complexas dimensões de um processo histórico é de fundamental importância no sentido de estabelecer a prática de um conhecimento vinculado, inclusive, às resistências impostas por ele en-quanto obstáculo epistemológico (Neubern, 2001).

Uma vez que partimos da dispersão dos organismos humanos, vamos considerar indivíduos inteiramente separados (pelas instituições, por sua condição social, pelos acasos de sua vida) e tentaremos descobrir nessa separação – isto é, em uma relação que tende para a exterioridade absoluta – seu vínculo histórico e concreto de interioridade (Sartre, 1960/2002, p. 213).

Por estarmos inseridos em uma estrutura social que fora organizada pela práxis de outros que nos precederam historicamente, torna a práxis individual uma reorganiza-ção de um setor de materialidade inerte, cuja função é aten-der as exigências de outro setor material, e não mais uma livre organização do campo prático. Matéria, em um senti-do mais amplo, seria não-consciência (Sartre, 1960/2002).

Entretanto, segundo Perdigão (1995), não somente as práxis de nossos antecedentes, mas também as nossas enquanto liberdade produzem o fenômeno da contra-fi-nalidade da matéria. Para este autor, o homem intervém na matéria influindo nela seu próprio projeto, disperso, resultando em um fenômeno alheio que foge ao contro-le, e a matéria pode responder contrariamente aos efei-tos que se buscava.

O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer a contra-finalidade aliena seus projetos livres e favorece o estabelecimento de relações de domínio, devendo rea-lizar projetos que não lhe são próprios, e sim determina-dos por outros (Perdigão, 1995). Assim, o homem também escolhe e produz seus próprios condicionamentos, logo a maneira de alienar-se.

Romagnoli (2006) define as relações contemporâneas como intrínsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvol-verem nesse cenário globalizado de uma sociedade pre-tensiosamente autoritária que envolve aquilo que a autora definiu como corpo social, por meio dos mais diversos mecanismos de dominação. A alienação faz com que as imposições dessa sociedade dominante sejam, ao mesmo tempo, também desejadas pela subjetividade, produzindo assim formas de vidas padronizadas.

Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prática clí-nica, a busca do psicólogo é pela compreensão do homem no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse homem em suas necessidades de acordo com os objeti-vos terapêuticos. Entretanto, é certo que o homem pode apresentar crescimentos e mudanças no que diz respeito ao desenvolvimento pessoal, a partir das mais diversas experiências vividas, sem que para isso seja necessária qualquer intervenção psicológica.

Nesse aspecto é que a prática da Psicologia Clínica imersa no contexto social, não visa uma política de aten-ção às camadas sociais mais favorecidas. Diz respeito a uma proposta para uma “clínica de qualquer lugar”, segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro, neste caso, seria a aniquilação de produções em massa, vinculada a uma apreensão da singularidade do cliente não submisso a um modelo de estudo. Isso vale também para o próprio terapeuta que não se atenha ao pensamento narcísico de detentor do poder de modelar seus clientes.

Tendo em vista a fundamental importância do mundo enquanto produto e produtor de subjetividades objetiva-das, cabe ressaltar o processo de sociabilidade, como se dá e o nível de influência que este exerce sobre a constituição do homem. Em meio a esse processo encontra-se também a construção do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro das expectativas da sociedade e as perspectivas dos estudan-tes que se dedicam a esta atuação profissional, como por exemplo, a conciliação indubitável entre naturalidade e critério, as quais serão foco de nossa reflexão mais adiante.

4. A Sociabilidade e o Social

Iniciaremos uma discussão a respeito da sociabili-dade a partir da conceituação de Qualidade de Vida. Ao pensar Qualidade de Vida há uma tendência a associar tal conceito à saúde. Segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde não diz respeito somente à ausência da doença, e sim a presença de um bem estar físico, mental e social (Fleck, 2000).

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Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre Qualidade de Vida, os autores trazem um tópico intitu-lado “Instrumentos de Medida de Qualidade de Vida” (p. 235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e comparar os diversos níveis que caracterizam e determi-nam o bem-estar social.

O tema é abordado como se o fenômeno do bem-estar fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permiti-ria uma avaliação cabal de toda e qualquer subjetividade. Nesse aspecto, ressaltamos a importante influência exer-cida pela ascensão do capitalismo no que diz respeito ao entendimento de bem-estar contemporâneo. Os padrões de beleza, padrões comportamentais, status social são alguns dos predicativos que diariamente são impostos pela mídia, por exemplo, e sobre os quais se fundamen-ta a condição de se ter ou não bem-estar. Podemos ob-servar também que para se atingir tais projetos impostos como necessários ao bem-estar, há a necessidade de se consumir produtos para esses fins. A valorização do ho-mem, então, diz respeito à capacidade de consumo que ele apresenta, e não daquilo que o constitui enquanto Ser.

Nesse contexto e no senso comum, o psicólogo se in-sere como alguém capaz de modificar os comportamen-tos vistos como “não saudáveis”, proporcionando assim o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, quiçá, por al-gumas pessoas, considerado como o único capaz de tal mudança, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao homem enquanto processo e suas diferentes formas de compreensão do mundo.

Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP 08) contemplou a edição n. 57 da revista Contato com a temática Qualidade de Vida, enfocando as contri-buições da Psicologia para se alcançar esse bem-estar tão almejado pelo homem. Uma das reportagens foi direciona-da à profissionais envolvidos com a prática da Psicologia em um contexto ambiental, que denunciaram os resulta-dos danosos das ações do homem sobre a natureza, que afetam sobremaneira sua qualidade de vida. Diante o que é construído por esta relação dialética homem-mundo, por meio da qual o homem sente a contra-finalidade da matéria, ou seja, o homem se vê controlado por sua cria-ção, cabe aqui uma análise.

A expressão ‘Em-si’ na teoria sartreana se refere ao Ser, ou seja, tudo aquilo que é, estanque, fechado. Dito de outra forma: encontra-se fora da pessoa, não mantém relação nem consigo nem com outro Ser, é o universo das coisas materiais. Em contrapartida o ‘Para-si’ é o pleno vazio, o nada. É a consciência (Para-si) que faz reconhe-cermo-nos como Ser (Em-si) (Perdigão, 1995).

A relação dialética ‘Para-si’ e ‘Em-si’ nada mais é que a relação entre a consciência e o mundo. Já disse Sartre (1943/1997, p. 131) que “o homem é um para-si-em-si”, uma vez que ontologicamente o homem é o nada, o vazio que será preenchido por algo, tornando-se momentaneamen-te um ‘Em-si’ na relação com o mundo (Para-si-Em-si).

O único fundamento concreto da dialética histórica é a estrutura dialética da ação individual. E, na medida em que podemos abstrair, por um instante, essa ação do meio social onde, de fato, está submersa, surpreen-demos nela um desenvolvimento completo da inteligi-bilidade dialética como lógica da totalização prática e da temporalização real (Sartre, 1960/2002, p. 328).

Portanto, a prática clínica nada mais é que um olhar desse homem na sociabilidade (relações), limitado por aquilo que é instituído por essas mesmas relações, ou seja, o social será o produto dessas relações, como, por exemplo, as normas, as leis, as teorias e as políticas. Sendo produto, o social é a antítese do individuo e seu projeto de Ser também será construído a partir desta relação, como interioriza esse social e como age sobre ele.

Por ser falta e por estar inserida no mundo, a relação com as coisas e com os outros se dá num movimento re-cíproco, que remete o homem ao reconhecimento de si próprio enquanto meio, tal como vê o outro, que se move em direção a um fim. Essa relação é, ao mesmo tempo, mediadora e mediada pela materialidade. Um conjunto de homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em meio a qual a práxis da individualidade atua para deter-minado fim a sobrevir sobre a realidade. A somatória das ações de vários sujeitos constitui um grupo que, mais tar-de, irá demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a individualidade expressa em prol dos objetivos coletivos.

Podemos dizer que enquanto a realidade coletiva se apresenta ao homem como algo imposto, esta é consti-tuída também a partir de sua individualidade. Sob esta lógica da dialética homem-mundo configura-se uma tota-lização-em-curso. Cabe então à consciência desvelar todo esse movimento dialético e retirá-lo da inércia, fazendo com que seja possível refletir sobre a trajetória das coisas (Bettoni & Andrade, 2001).

5. Ser Terapeuta Ideal

No eixo da Fenomenologia-existencial, a construção do projeto de Ser terapeuta é também produto dessa dia-lética ontológica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos da educação como sendo o de fundamentar uma identidade ao homem, a formação acadêmica em Psicologia, assim como em qualquer outra área do conhecimento, traria em seu bojo uma atitude de má-fé ao tentar impor um Ser psicólogo ao Não-ser, como resposta frente ao nada.

Segundo Danelon (2004), é como instituir uma essên-cia antes da existência, a qual se constituirá mais tarde como realidade interior do sujeito, servindo de referencial para que este elabore e concretize seus projetos, contra-pondo-se assim a premissa básica do Existencialismo de que a existência precede a essência.

O Ser ontológico do homem, ao pensar, pensa sem-pre em algo que, a partir daí, torna-se objeto captado por sua intencionalidade. Pensar em Ser psicoterapeuta im-

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plicaria então, em projetar um Ser terapeuta, primeira-mente idealizado.

Já impregnados com conceitos do senso comum sobre o papel do terapeuta, o estudante inicia a graduação po-dendo ter alguns desses conceitos reforçados por paradig-mas de uma formação que limitam a prática desse profis-sional somente ao contexto do consultório e que designam à figura do terapeuta características utópicas, como, por exemplo, a onipotência de detentor do poder de curar o outro. E é nesse aspecto que a educação pode assumir um caráter perverso ao propor um Ser para o homem que se projeta a partir do que foi instituído. Compromete-se as-sim, o princípio de intencionalidade também, que desse momento em diante impossibilita a abertura da consciên-cia para o mundo, já que será parte de uma subjetivida-de que lhe foi instituída anteriormente (Danelon, 2004).

A formação, porém, tem o poder de caracterizar o su-jeito. Concretizá-lo como um Ser-em-si, que poderia ser definido como subjetividade individual, não fosse o fato da consciência apresentar-se objetivada de conceitos que foram pré-determinados (Danelon, 2004).

A possibilidade de livrar o cliente do sofrimento e ser reconhecido como um bom profissional tende a inci-tar o terapeuta, pois esta possibilidade de ser lhe confe-re poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os padrões de saúde mental, qualidade de vida, bem-estar, e condições sociais, por exemplo, disseminados na so-ciedade capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a uma pretensão de enquadrar o cliente em conceitos pré--estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mudá-lo e reinseri-lo tal como o meio exige.

Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupa-ção do estagiário-terapeuta iniciante, com o desempenho nos primeiros atendimentos psicoterapêuticos. Certo ní-vel de ansiedade demonstra as incertezas do futuro com o cliente e da habilidade para estar realmente com ele. Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no outro, é possível aceitar tais ansiedades como normais, embora uma ansiedade demasiada talvez acabe com toda confiança que tenha em si próprio.

O estagiário-terapeuta iniciante se encontra imer-so em um mar de dúvidas em relação ao que deverá ser dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acre-dita não poder dizer, pode conformar-se com o silêncio em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequada-mente para livrar-se da angústia diante do vazio que se instaura na relação, que pensa poder se entendido pelo outro como uma impotência de sua parte. Nesse aspecto, a supervisão funciona como moderador dessa ansiedade e angústia por meio da orientação dada por profissional que tenha experiência.

A supervisão se dá com o uso de vivências, discus-sões, dramatização dos casos atendidos, estudo de mate-rial teórico e outras atividades com o objetivo de ajudar e avaliar o desenvolvimento do estagiário-terapeuta ini-ciante na sua prática. Isso se torna possível por meio da reflexão, neste instigada, sobre suas habilidades, assim

como suas limitações, que é levado a repensar a autoi-magem, relações dentro do grupo e, paralelamente, seu crescimento pessoal (Távora, 2002).

A prática idealizada da psicoterapia estaria vinculada a conciliação de uma metodologia científica aplicada em um contexto previsível, agindo de forma inquestionável sobre a motilidade que caracteriza a vida humana. Como se o estagiário-terapeuta iniciante fosse detentor de uma receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levan-do-o a crer que a “cura” seria algo ofertado pelo primeiro, ao invés de considerar o processo terapêutico como uma caminhada para a conscientização e apropriação do pro-jeto de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou não.

Estagiários-terapeutas iniciantes tendem a antever seu encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos am-bivalentes. Aplicar na prática os conceitos teóricos-meto-dológicos aprendidos configura-se como uma das maiores preocupações enquanto atuação. O anseio por intervir no momento que considera ser o certo, e de maneira que também acha ser a pertinente, acaba por vezes compro-metendo a vivência daquilo que o cliente fala, no exato momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um modelo ideal de atuação e perde a singularidade do pro-cesso, em seu âmbito vivencial da relação com o cliente.

E por falar de singularidade e de relação, dois outros aspectos podem também ser compreendidos de maneira errônea pelo estagiário-terapeuta iniciante: (1) a questão da individualidade do indivíduo ser compreendida de maneira descontextualizada do social e (2) a não conside-ração da relação dialética no próprio setting terapêutico.

Sendo aspectos que se imbricam, a individualidade, tanto do cliente quanto do terapeuta, não está dissociada dos seus respectivos contextos coletivos. As vivências de ambos vêm carregadas do que é instituído por um contexto maior por meio de suas relações extra setting. Sendo as-sim, a maneira como superam as contradições das relações fora do setting influenciará a relação que travarão dentro deste, bem como transcenderão todas as demais. Logo, ne-nhuma delas pode deixar de ser apreendida e trabalhada.

Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se às atitudes de silêncio do cliente que, por vezes, são signi-ficadas pelos estagiários-terapeutas iniciantes como uma barreira à intervenção psicoterápica. O silêncio do cliente é vivenciado pelo estagiário-terapeuta iniciante com um tempo interminável e não é incomum que este se sinta ameaçado a ponto de buscar algo contraproducente com o fim de quebrá-lo, livrando-se assim da angústia diante do vazio. Por remetê-los ao vazio, o silêncio passa a ser asso-ciado a uma impotência do estagiário-terapeuta iniciante que se sente na obrigatoriedade de interrompê-lo, dizendo coisas, por vezes desnecessárias, ou lançando mão de um inquérito com o único intuito de totalizar a lacuna que se estabelece no momento em que o cliente se cala, como já dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer outro comportamento, o silêncio, quando trabalhado em terapia, contribui para que o cliente obtenha consciência de si, servindo inclusive como recurso de intervenção

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para o próprio psicoterapeuta, uma vez que pode assina-lar ao cliente a maneira como escolhe lidar com o vazio.

No entanto, é mister identificar a intenção do clien-te por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que o silêncio produtivo tem caráter reflexivo (Erthal, 1994). Contudo, este tipo de silêncio é menos mobilizador de angústia no estagiário-terapeuta iniciante, pelo fato de o cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e não para o terapeuta. Diferente do silêncio estéril, que tem seu significado na evitação de algum assunto em especí-fico que tenha incomodado o cliente e/ou a dificuldade de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes ge-ralmente não-verbais, que informam ao estagiário-tera-peuta iniciante que este é quem deve quebrar o silêncio. Neste caso, suportar o silêncio passa a ser uma vivência um tanto ameaçadora, haja vista que, não responder ao apelo do cliente é intervir com uma negativa, e como se esta não fosse também uma intervenção.

Quase sempre as intervenções iniciais ocorrem de ma-neira intranquila para o estagiário-terapeuta iniciante. Há uma tendência a sentir-se intimidado e receoso, como se algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o clien-te de modo que ele nem retorne na sessão seguinte. Nesse sentido, evita-se falar sobre o que supõe ser desagradável para o cliente. Diante tal compreensão equivocada, a atu-ação fica restrita a uma prática amena, amigável, porém, a real intenção é a de manter o controle da liberdade do cliente. Esta tentativa de controle remete à expectativa do estagiário-terapeuta iniciante em estar de acordo com as expectativas que supõe que o cliente tenha. Em outras palavras, a atuação fica vinculada à uma tentativa de não frustrar o cliente para não frustrar a si próprio. Alienado em sua liberdade, e em busca de retoma-la, o estagiário--terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possível con-frontação com o cliente, tentando também transformar a liberdade deste último em algo alienável ao seu contro-le. Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente.

Outro contexto relacional em que o estagiário-tera-peuta iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeu-ta é na relação com seu orientador. Assim como receia que sua atuação não seja reconhecida pelo cliente pelo modelo idealizado, o olhar do orientador também poderá ser percebido como uma ameaça ao seu projeto. Em am-bas as relações que trava – com o cliente e com o orien-tador – o estagiário-terapeuta iniciante tenderá controlar a liberdade da consciência alheia. Contudo, na segunda relação, caberá ao orientador a ajudá-lo a conscientizar--se de seu projeto.

Nesta trama dialética das relações, para obter sucesso com a psicoterapia fenomenológico-existencial e com a orientação, todos – orientador, estagiário e cliente – devem se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a de ensinar ao estagiário-terapeuta iniciante a desenvolver habilidades e competências para a aplicação da teoria e do método em questão, bem como encorajá-lo a desistir de idealizações e assim a arriscar-se, com isso o orienta-

dor também precisa se expor-se na relação; o estagiário--terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abordagem e pelo tipo de prática, aprendendo na orientação pode transpor a experiência para com o seu cliente, mas deve arriscar-se em ambas as relações; e, finalmente, o cliente com a decisão de fazer terapia pode engajar-se com sua proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com possíveis transcendências ao seu modo de Ser. Tais en-gajamentos provocarão mudanças nas relações de todos.

Considerações finais

Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se enquadra em características tais como: o interesse pelas pessoas, a estabilidade emocional, a capacidade de inspi-rar confiança nos outros, e principalmente, tolerância às mais diversas formas e estilos de vida e crenças.

Na contemporaneidade, exige-se ainda que esse tera-peuta-iniciante desenvolva a condição de compreender e aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando vão à prática os estudantes de Psicologia são submetidos à prova da sua capacidade de integração e aplicação de tudo aquilo que aprenderam durante a formação acadê-mica. Mesmo estando cientes da influência que os do-centes exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se a singularidade do potencial individual ao tentar imitá--los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscan-do sempre caminhos que sejam peculiares a cada olhar.

Ao longo dessa discussão, onde alguns paradigmas foram abordados e discutidos, ressaltamos que a forma-ção científico-metodológica não é suficiente para garan-tir uma prática psicoterápica com êxito. A busca, não de ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no sentido de vir-a-ser um profissional cada vez mais pre-parado, é, entre outras, uma das qualidades mais impor-tantes para a experiência de tornar-se psicoterapeuta.

Esta experiência implica correr riscos, manifestar a co-ragem e a vontade de abandonar a segurança do conhecido para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir muitas possibilidades de Ser. Tais funções destinadas ao ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condição humana, pois se precaver à manutenção das expectativas de um pa-pel estereotipado superpõe o indivíduo enquanto pessoa.

Quando possível, deve-se questionar os conhecimen-tos adquiridos, uma vez que a vida acadêmica é cons-truída por pessoas e estas não detêm saberes absolutos. Teorias, métodos, instrumentos e recursos estão no mun-do, logo passíveis de serem transcendidos. Seja qual foi o grau de embasamento teórico acadêmico e prático, o estagiário-terapeuta iniciante não deve sobrecarregar-se da necessidade de ser perfeito. Os erros serão cometidos tanto por principiantes quanto pelos mais experientes, afinal, o cliente não é frágil a ponto de fadar vossas vi-das aos nossos erros.

Projetos idealizados não toleram frustrações, logo não abarcam limites, sendo assim, não colocar limites ao

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cliente, ajudando-o a se conscientizar sobre seu Projeto de Ser, é também não querer reconhecer os limites de seu próprio projeto de Ser terapeuta.

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Jéssica Paula Silva Mendes - Discente do curso de Psicologia da Uni-versidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

Sionara Karina Alves de Brito Gressler - Discente do curso de Psico-logia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro Universitários Celso Lisboa (CEUCEL/RJ). Formação em Psicoterapia Existencial pelo Núcleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e Orientadora de Estágio em Psicologia Clínica e de Grupo, na abordagem Fenomenológico-Existencial e Co-coordenadora do Curso de Especia-lização em Psicologia Fenomenológico-Existencial da Universidade Paranaense - UNIPAR/Umuarama - Paraná. Docente-orientadora de Estágio em Psicologia do Trabalho, na Universidade Estadual de Marin-gá (UEM/PR). Endereço Institucional: Av. Mascarenhas de Moraes, s/n. Universidade Paranaense, Campus sede Umuarama, Paraná - Colegiado do curso de Psicologia. E-mail: [email protected].

Recebido em 03.07.11Aceito em 12.03.12

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OS SENTIDOS DO SENTIDO: UMA LEITURA fENOMENOLÓGICA

Los Sentidos del Sentido: Una Lectura Fenomenologica

The Meanings of Meaning: A Phenomenological Reading

MArtA HelenA de FreitAs

ritA de cássiA ArAúJo

FiliPe stArlinG loureiro FrAncA

ondinA PenA PereirA

FrAncisco MArtins

Resumo: Neste artigo, procedemos a uma leitura fenomenológica da noção de sentido e suas múltiplas significações. Partindo de uma primeira visada às definições apresentadas ao termo nos verbetes dos dicionários comuns, tal multiplicidade de signi-ficações é discutida à luz do conceito husserliano de “intencionalidade” e compreendida a partir da proposta merleau-pontyana de “reabilitação do sensível”. Retomamos, então, o termo sentido desde suas acepções físicas e sensoriais até aquelas de cunho idealizado, relacional e teleológico, considerando-as como um conjunto expresso num único termo e que aponta para uma vida consciente baseada no campo da experiência corporal pré-predicativa desdobrando-se em experiência reflexiva, intersubjetiva e transcendental. Desta forma, o vocábulo sentido mostra-se como uma espécie de multiplicidade unificada e, por isso, consi-derado como que paradigmático: pura “mostração” do processo perceptivo, diante do qual se tem a contradição-continuidade da imanência (o dado imediatamente) e da transcendência (o que vai além do imediatamente dado). Discutimos as implicações desse entendimento para uma psicologia que se queira eficaz no seu processo de compreender a experiência humana funda-mental em sua inserção no mundo da vida.Palavras-chave: Sentido; Fenomenologia; Intencionalidade; Husserl; Merleau-Ponty.

Abstract: In this article we carried out a phenomenological reading of the notion of meaning and its multiple meanings. Starting from an initial target to the definitions provided in the dictionaries term, such a multiplicity of meanings is discussed in light of the Husserlian concept of “intentionality” and understood from the Merleau-Ponty propose about “rehabilitation of the sen-sible.” Getting back the term direction from its physical and sensory meanings to those of idealized nature, relational and teleo-logical, considering them as a whole expressed in a single term and points to a conscious life based in the field of body experi-ence prepredicative unfolding in reflective experience, intersubjective and transcendental. Thus, the word order shows up as a kind of multiplicity unified and, therefore, considered that paradigm: pure “showing” the perceptual process, before which one has the contradiction-continuity of immanence (the immediately data) and transcendence (what goes beyond the immediately given). We discuss the implications of this understanding to a psychology that is effective in the process of understanding the fundamental human experience inserted in the living world.Keywords: Meaning; Phenomenology; Intentionality; Husserl; Merleau-Ponty.

Resumen: En este texto, llevamos a cabo una lectura fenomenológica del concepto sentido y sus múltiples significados. Partiendo de un primero enfoque sobre las definiciones del término en los artículos de los diccionarios comunes, la multiplicidad de signi-ficados es examinada a la luz de la noción intencionalidad en Husserl y comprendida desde la propuesta de “rehabilitación de lo sensible” de Merleau-Ponty. Tomamos entonces el sentido del término desde sus significados sensoriales y físicos a los de na-turaleza idealizada, teleológico y relacional, considerándolos como un conjunto que se expresa en un solo término y que apunta a una vida consciente fundada en el terreno de la experiencia pre-predicativa del cuerpo, con desdoblamientos en los terrenos reflexivo, intersubjetivo y trascendental. De esta manera, el sentido de la palabra se muestra como una especie de multiplicidad unificado y por lo tanto, lo consideramos paradigmático: es una demonstración del proceso perceptual, en lo cual tenemos la contradicción-continuidad de la inmanencia (lo inmediatamente dado) y la trascendencia (que va más allá de lo que se da de modo inmediato). Analizaremos las implicaciones de este entendimiento para una psicología que quisiera ser eficaz en su pro-ceso de comprensión de la experiencia humana fundamental insertada en el mundo de la vida. Palabras-clave: Dirección; Fenomenología; Intencionalidad; Husserl; Merleau-Ponty.

“De tudo o que vivo, enquanto o vivo,tenho diante de mim o sentido,

sem o que não o viveria.”Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção

(1945/1999, p. 41)

“Porque o único sentido oculto das cousasé elas não terem sentido oculto.”

Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro.

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Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

Introdução

É no mínimo curioso como certas palavras nos soam como feixes de nomes, tal a multiplicidade de sentidos a que nos remetem. É este o caso do próprio vocábulo senti-do. Qualquer bom dicionário o confirma. Mas, é no mun-do da vida que o sentimos, cotidianamente. Falamos então dos órgãos do sentido, do sentido de um rio, do sentido desperto, do sentido tessitura, do sentido de uma pala-vra, frase ou texto, do olhar sentido, do amor sentido, da dor sentida, do coração sentido (ou ressentido), do sexto sentido, da fé sentida, do sentido da vida, do verbo sen-tir... E um novelo de sentidos se desfia.

Talvez sejam exatamente os sentidos intrínsecos à polissemia do termo “sentido” que o façam tão caro e es-pecial à psicologia, sobretudo quando esta toma como seu objeto a experiência humana em sua plena vitalida-de. Se tal vitalidade já foi muitas vezes evitada, negada e marginalizada na história desta mesma ciência, em nome de um certo tipo de rigor conceitual e metodoló-gico que preferiu empregar vocábulos menos sujeitos a tantas ambiguidades, ela tem sido frequentemente resga-tada ultimamente, e de várias maneiras. De fato, talvez o termo sentido nunca tenha estado tão em voga na psi-cologia, como em suas versões contemporâneas. Fala-se em “sentido do sintoma”, “resgate de sentido”, “busca de sentido”, “construção de sentido”, “núcleos de sentido”, “representações do sentido”, “sistema de sentidos”, “von-tade de sentido”, “necessidade de sentido”, “encontro (ou reencontro) de sentido”, “versão de sentido”, “fenomeno-logia do sentido”, para falar dos mais frequentes.

Neste ensaio, porém, não pretendemos simplesmente apresentar mais uma abordagem acerca do termo sentido. Ao contrário, em vez de apresentar mais uma concepção concorrente a tantas outras, nosso intuito é o de discutir justamente essa multiplicidade natural do termo e suas respectivas vinculações à riqueza da experiência fun-damental em causa. Evidentemente que seria tarefa her-cúlea e, sobretudo, pretensiosa, propormos uma aborda-gem integradora de todas as demais já desenvolvidas em torno da concepção de sentido. Entretanto, podemos, ao menos, dirigir um olhar mais integrador sobre a própria experiência humana, tal como nos ensina, por exemplo, a fenomenologia de Husserl (1859-1938) e de Merleau-Ponty (1908-1961). Esse, então, o propósito do qual bus-camos nos aproximar aqui: um exercício de apreensão fenomenológica dos sentidos do sentido e suas implica-ções para uma psicologia que se queira efetiva na abor-dagem ao mundo da vida.

1. Do Dicionário à Noção fenomenológica de Inten-cionalidade da Consciência

Um dicionário comum da Língua Portuguesa que apresenta, de modo exaustivo, a variedade de significa-

dos do termo sentido, pode relacionar até muito mais de vinte itens. O dicionário eletrônico Priberan da Língua Portuguesa (2010), por exemplo, apresenta 14 significa-dos para o termo “sentido”, no singular, número que se eleva para 18, quando o termo é empregado no plural – “sentidos”, e para 28 (!) quando se refere à conjugação do verbo “sentir”. Considerando-se nosso intuito de rea-lizar aqui uma espécie de “exegese” fenomenológica do termo, reproduziremos integralmente os três verbetes, conforme a seguir:

“Sentido: adj. 1. Ressentido; melindrado; magoado.2. Sensível; susceptível; que se ofende facilmente.3. Contristado; pesaroso; triste. 4. Lamentoso; plan-gente. s. m. 5. Faculdade que têm o homem e os ani-mais de receber as impressões dos objectos exterio-res. 6. Razão, bom senso. 7. Intento, mira, pensamento. 8. Atenção, cuidado. 9. Memória, cabeça. 10. Lado de uma coisa, direcção. 11. Significação. 12. Acepção. 13. Espírito, pensamento. 14. Modo, aspecto, ponto de vista, maneira de considerar ou de distinguir.Sentidos: s. m. pl. 15. Conjunto das faculdades para a percepção dos objectos exteriores. 16. Conjunto das faculdades intelectuais. = rAciocÍnio 17. Vo-luptuosidade, prazer, sensualidade, concupiscência. interj. 18. Expressão usada para pedir concentração ou cuidado em relação a algo. = AtenÇÃo, cuidAdo com os cinco sentidos: com todo o cuidado, como é devido. sentido proibido: sentido contrário ao sentido normal de uma faixa de rodagem. = contrAMÃo. Sexto sentido: intuição.Sentir - Conjugar (latim sentio, -ire, perceber pelos sentidos, perceber, pensar) v. tr. 1. Perceber por um dos sentidos; ter como sensação. 2. Perceber o que se passa em si; ter como sentimento. = eXPeriMentAr. 3. Ser sensível a; ser impressionado por. 4. Estar con-vencido ou persuadido de. = AcHAr, considerAr, JulGAr, PensAr. 5. Ter determinada opinião ou maneira de pensar sobre (algo ou alguém). = AcHAr, considerAr, JulGAr, rePutAr. 6. Conhecer, notar, reconhecer. 7. Supor com certos fundamentos. = conJecturAr =, Prever. 8. Aperceber-se de, dar fé ou notícia de. = Perceber. 9. Ter a consciência de. = Perceber. 10. Compreender, certificar-se de. 11. Adivinhar, pressagiar, pressentir. 12. Conhecer por certos indícios. = Pressentir 13. Ouvir indistinta-mente. = entreouvi. 14. Experimentar mudança ou alteração física ou moral por causa de. = res-sentir. 15. Sofrer as consequências de. 16. Sentir tristeza ou constrangimento em relação a; afligir-se por. = lAMentAr. 17. Ressentir-se, melindrar-se ou ofender-se com (algo). 18. [Belas-artes] Ter o sentimento estético. 19. [Belas-artes] Saber traduzir por meio da arte. v. intr. 20. Ter a faculdade de sentir. 21. Ter sensibilidade; ter alma sensível. 22. Sofrer. v. pron. 23. Experimentar um sentimento ou uma sensação.

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24. Ter a consciência de algum fenómeno ou do que se passa no interior de si mesmo. = reconHecer--se. 25. Apreciar o seu estado físico ou moral. = crer-se, iMAGinAr-se, JulGAr-se, rePutAr--se. 26. Tomar algo como ofensa. = MelindrAr-se, oFender-se, ressentir-se s. m. 27. Sentimento, sensibilidade. 28. Maneira de pensar ou de ver. = oPiniÃo, entender, PArecer”.

Essa variedade ainda não esgota todos os significa-dos possíveis do termo sentido, o que pode ser verificado quando se compara com outro verbete correspondente ao mesmo termo em outro dicionário, como por exemplo o Dicionário On Line Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (1998/2009), que convidamos o leitor a buscar, pois sua reprodução, como de tantos outros, to-maria muito espaço nos limites deste ensaio.

O que é interessante observar de saída é que, dentre as diferentes acepções do termo, existem aquelas que re-metem às funções biológicas, como os órgãos dos senti-dos, por exemplo, mas também muitas outras – a maio-ria, inclusive – que nos remetem às chamadas “funções psíquicas”, classicamente descritas pela psicologia em seus diferentes níveis. Assim, podemos identificar, den-tre os vários significados relacionados no verbete, des-de aqueles que remetem às chamadas “funções básicas”, mais diretamente vinculadas ao corpo – como a sensa-ção e a percepção, passando pelas relacionadas às cha-madas “funções intermediárias” – humor, afeto e sensi-bilidade, culminando nas que se associam às chamadas “funções superiores” – memória, consciência, sentimen-to, linguagem, pensamento e juízo. Por outro lado, se a maioria dos significados elencados nos verbetes podem ser relacionados a estes diferentes níveis do psiquismo, os quais, no seu conjunto, podemos chamar de “subjetivi-dade”, notemos também que alguns deles remetem a algo que a ultrapassa, seja por fazer referência à física (sen-tido enquanto lado de uma coisa, ou enquanto rumo ou direção de uma linha, força ou movimento) ou à cultura (sentido enquanto voz de comando e respectiva posição da tropa no contexto militar).

Ora, se as definições dos dicionários comuns buscam relacionar justamente os diferentes significados dos ter-mos conforme o seu emprego cotidiano, num dado con-texto linguístico e cultural, podemos compreender essa multiplicidade de aspectos relacionados ao termo senti-do como ilustrando justamente aquilo que ocorre com a nossa consciência no mundo da vida (Lebenswelt). Sendo assim, o termo sentido, no contexto das línguas latinas, parece-nos paradigmático por evidenciar aquilo que Husserl (1931/2001, p. 48), inspirado em Brentano (1838-1917), chamou de “intencionalidade” da consciência: “particularidade intrínseca e geral que a consciência tem de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em si próprio” (grifo nosso). Essa multiplicidade intrínseca ao termo sentido –

que remete, simultaneamente, a concepções da física, da fisiologia, do psiquismo e da cultura – confirma a já tão denunciada falsa dicotomia estabelecida pelo pensamen-to moderno através das distinções entre cogito e cogita-tum, entre mundo exterior e mundo interior, entre obje-tividade e subjetividade, entre natureza e sensibilidade.

Por outro lado, curiosamente, podemos verificar tam-bém que, em geral, os sentidos do termo sentido estão in-trinsicamente relacionados à própria noção fenomenoló-gica de intencionalidade. Senão, vejamos. Esta noção está presente no conhecimento desde o neoplatonismo árabe, passando por Santo Tomás e Ockhman, no mundo medie-val, tendo sido recuperada modernamente por Brentano (1838-1917), e posteriormente retomada por Husserl (1859-1938), justamente por reconhecerem que só tem sentido falar de consciência enquanto consciência de algo, ou seja: a intencionalidade representa justamente o direcio-namento da consciência em relação ao objeto, e vice-versa, o modo como tal objeto se apresenta à consciência. Como tal, a intencionalidade remonta a um contíguo mental em movimento ininterrupto em direção ao mundo. Por esse motivo, não faz sentido pensá-la como instância de con-teúdos mentais fechados e estagnados. Deste modo, toda vez que se tenta descrever as propriedades restritas ao objeto a que ela se dirige, às suas próprias propriedades enquanto instância, estamos diante de um estado vivido com certa duração, portanto como uma espécie de registro temporal de determinado ponto onde o seu movimento, constantemente pendular, se situa naquela ocasião. Nesta sua contínua relação com o objeto, a consciência se rea-liza em intuições originárias, ou seja, ao modo como os fenômenos lhe aparecem. Assim, embora os fenômenos possuam uma multiplicidade de aspectos, eles aparecem à consciência como uma unidade idêntica a ela mesma, pois esta mesma consciência “tem a capacidade de ligar os aspectos ou estados vividos a outros por meio da sín-tese” (Silva, 2009, p. 45). Poderíamos dizer, então, que as diferentes noções de sentido são o testemunho desse movimento, evidenciando que, no mundo da vida, o fe-nômeno só existe em ato: suas propriedades não são res-tritas ao objeto em si mesmo, mas só existem em função daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido.

Considerando-se o exposto, qualquer tentativa de en-contrar uma possível “essência” (Wesenshau) da noção de sentido só pode ser alcançada a partir e de dentro do próprio mundo da vida (Lebenswelt). Conforme nos ensi-na Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), “é no curso de uma história sedimentada que se dá uma “gênese de sentido” (Sinngenesis). No intuito de aprofundarmos essa compre-ensão de uma espécie de fio ontológico que ata a diversi-dade na unidade – o sentido dos sentidos – procuraremos explorar em mais detalhes, no próximo subitem deste ensaio, as suas diversas nuanças, desde sua concepção enquanto corporeidade, passando pela noção de sensi-bilidade e mentalidade, até sua concepção propriamente teleológica. E, para tanto, caminharemos nas trilhas da

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reabilitação do sensível, proposta por Merleau-Ponty, em especial em sua Fenomenologia da Percepção (Merleau-Ponty, 1945/1999).

2. Da Corporeidade à Transcendência

Se considerarmos a noção de sentido segundo sua acepção meramente fisiológica, em referência aos órgãos receptores que nos trazem impressões sobre os objetos externos, estes são “considerados responsáveis pelos di-ferentes tipos de sensação que percebemos” (Japiassu & Marcondes, 1996, p. 245). Desta perspectiva, o conceito de sentido relaciona-se, então, à função sensorial do cor-po humano e é considerado porta aos estímulos do mun-do externo: a sensação é considerada aqui a base para a percepção e para o conhecimento. Sentido, aqui, seria en-tão o fenômeno psicológico causado pela estimulação do nosso organismo. Segundo esta mesma acepção de sen-tido, as sensações podem ser classificadas em externas ou sensoriais (as que provêm dos órgãos dos sentidos) e internas ou orgânicas (que provêm do interior do nosso organismo e são conhecidas como sinestesia). Esta última, então, remete à consciência corporal das próprias funções orgânicas, ou consciência de corporeidade.

A fenomenologia de Merleau-Ponty veio demons-trar, entretanto, que a delimitação entre sentido ex-terno e sentido interno é grosseira. Como afirma o filósofo (Merleau-Ponty, 1945/1999), embora seja possí-vel identificar funcionalmente cada órgão do sentido de modo isolado, é impossível reduzir o corpo em partes in-dependentes e de modo desconectado. Deste modo, “os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de um intérprete”, como diz Sokolowski (2010, p. 137):

Os vários sentidos efetivam identidades através da sinestesia, do reconhecimento de um único objeto dado pelos vários sentidos distribuídos em toda parte de nosso corpo próprio. Essas variedades de partes sensíveis, noéticas e noemáticas, servem como uma multiplicidade através da qual objetos vêm a ser iden-tificados de mais e mais perspectivas: a árvore é vista, ouvida (no vento), tocada, cheirada; caminhamos em volta e subimos nela; podamos seus ramos e rompe-mos pedaços de casca morta; e em tudo isso uma e a mesma árvore é registrada em sua identidade e suas muitas características.

Assim, em relação ao sentido enquanto sensação, observa-se que ninguém diz que “sente” quando usa os sentidos fisiológicos. Em vez disso, há uma apropria-ção das qualidades aos seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de sua qualidade como parte integrante. E então, ao invés de dizermos que sentimos o frio, vemos o verde e engolimos o doce, dizemos que a água está fria, a mata é verde e que a fruta está doce.

Da mesma forma, todos os seres humanos têm os órgãos dos sentidos similares, mas o modo como suas capacida-des são usadas e desenvolvidas tornam-se únicas. Cada um de nós sentimos e percebemos o mundo de uma ma-neira peculiar, pois isso envolve a própria história, a pró-pria cultura e as crenças que advêm da nossa experiência subjetiva e intersubjetiva.

Por outro lado, é através do registro dos atos dos cin-co sentidos que podemos dizer que temos um corpo. Para Husserl (1935/2008, p. 42), “homens e bichos não são simples corpos”, mas o corpo é por excelência o meio de acesso ao mundo e de toda a experiência vivencial pos-sível. Ou, para falarmos nos termos de Merleau-Ponty (1945/1999), o corpo “dissolve-se” neste mundo: ele é re-conhecido como fundamento último de todos os proces-sos de vivência. E assim, quando, em fenomenologia, nos referimos a corpo, não queremos fazer referência apenas à matéria (Körper), mas ao corpo animado (Leib). Deste modo, não é preciso refletir sobre os limites do próprio corpo, a todo o momento, mas se tem consciência dele. O corpo sintetiza a ambiguidade (imanência/transcen-dência) do ser no mundo. Na visão de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 207-208), a imanência e a transcen-dência são dois elementos estruturais de qualquer ato perceptivo: “eu não estou diante de meu corpo, es-tou em meu corpo, ou antes, sou meu corpo”.

Ora, a concepção de uma corporeidade nos remete à noção de sentido também enquanto faculdade para a per-cepção dos objetos exteriores e interiores. No modelo da psicologia clássica, considera-se que a passagem do sen-tido-sensação para o sentido-percepção é realizada pela capacidade intelectual do sujeito do conhecimento que organiza e dá sentido às sensações. Mais uma vez, a fe-nomenologia leva à superação da dicotomia na concepção do mundo sensível: não se pode estabelecer diferenças entre sensação e percepção, pois nunca temos sensações em partes ou de modo pontual, sendo impossível identi-ficarmos sensações separadas de sua qualidade que, só depois, a mente uniria e organizaria como percepção de um objeto único. Na verdade, nós sentimos e percebemos formas como totalidades estruturadas e dotadas de sig-nificação e sentido (Chauí, 2003).

Para a fenomenologia, então, a percepção constitui-se uma fusão de sujeito-mundo, uma vivência verdadeira de uma experiência simultaneamente imediata e anterior a uma reflexão, num hipotético e espontâneo acordo sujei-to e mundo. A percepção é sempre a percepção de algo, e nesse ato tem-se não só o sujeito, mas também um objeto para ele. Assim, o sentido definido como capacidade per-ceptiva é uma função cerebral que confere significado a estímulos sensoriais a partir da experiência de vida ou da memória. E é, também, simultaneamente, atividade sensível, emotiva e cognitiva que organiza e interpreta as impressões sensoriais, de modo intrínseco à própria conexão cerebral de todas elas para formar a percepção, utilizando-se da sinestesia, associação espontânea entre

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sensações de natureza diferente, mas que se mostram in-timamente ligadas, variando segundo o sujeito da percep-ção. Deste modo, para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 68), “nenhuma análise da percepção poder ignorar a percep-ção como fenômeno original, sob pena de ignorar-se a si mesma enquanto análise”. Afinal, ela é a configuração e a organização de todos esses elementos que a mente in-tegrou nas experiências passadas, ligando e unificando--as, escolhendo-as por meio dos fatores de significação da linguagem e da cultura de cada um.

Nas definições de dicionários da Língua Portuguesa, o termo sentido é também empregado para se referir ao “sentir em ato” (feeling), ou ainda ao sentimento (feeling of), como uma reação afetiva ao que já ocorreu e como significado substantivado experimentado em relação a di-versos fenômenos na vida, objetos, pessoas ou situações intelectuais ou morais. Aqui o termo é geralmente em-pregado para referir-se ao sentimento que se viveu. Em psicologia, é também considerado um estado afetivo ge-ral, frequentemente relacionado por oposição ao conheci-mento (Durozol, 1996) e como resultante de percepções sensoriais ou representações mentais. Segundo ou-tra acepção, também comum em psicologia, sentido--sentimento constitui-se numa espécie de emoção mais delicada e de maior duração, representando formas afetivas mais estáveis, e distinguindo-se da emoção propriamente dita por ser revestido de um número maior de elementos intelectuais (Sousa, 2006). Como veremos a seguir, de novo a fenome-nologia vem mostrar ser artificial esta dicotomia.

Para Merleau-Ponty, os sentimentos constituem uma linguagem, pois as formas de expressão dos sentimentos não são naturalmente dadas. As manifestações dos sen-timentos são variadas e mas passam necessariamente pelo corpo. O próprio corpo é também o próprio ponto de vista sobre o mundo, o mediador entre a consciência e o mundo (Merleau-Ponty, 1945/1999). Portanto, todo ato físico terá um sentido interior. Todo sentimento terá sua contrapartida física e vice-versa: o homem conside-rado concretamente não é apenas um psiquismo unido a um organismo, mas uma constante oscilação da existên-cia que ora é corporal e ora se dirige aos atos pessoais. Enfim, o corpo próprio não pode ser observado como a um objeto, pois meu corpo existe comigo (Merleau-Ponty, 1945/1999). Sendo assim, o corpo próprio é, simultanea-mente, o sujeito da sensação, da percepção, do sentimen-to e do pensamento.

E aqui, então, nos deparamos com outra acepção de sentido comum nos dicionários: o sentido enquanto espí-rito, juízo e pensamento. Para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 241), sentido-pensamento não se dá de modo dissocia-do de sentido-percepção: “A visão é um pensamento sujeito a um certo campo e é isso que chamamos de um sentido” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 292). Dito de outro modo, este pensamento está para esta visão e “no final das contas, o cérebro e o olho talvez

tenham uma relação contratual na qual o cérebro con-corda em acreditar no que os olhos veem, mas, por sua vez, o olho concorda em ver aquilo que o cérebro quer.” (Gilbert, 2006, p. 154) Da mesma forma, o sentido, en-quanto pensamento, não se realiza separado do sentido-sentimento: “o sujeito pensante está ele próprio numa espécie de ignorância de seus pensamentos en-quanto não os formulou ainda para si, ou mesmo não os disse ou escreveu.” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 241). E não se pode separar o sujeito pensante do sujeito “sen-tinte”. O sujeito “sentinte” está também numa espécie de ignorância ou inoperância de seus sentimentos, enquan-to não os expressar. A expressão poderá ser pela fala e esta será uma fala primária quando falar o próprio senti-mento. Deste modo, ao sentido de felicidade que alguém experimenta ao ouvir uma música, considera-se como uma sensação, mas ao estado agradável e de prazer que permanece nesta sensação é o que se torna sentimento. A sensação que obtemos ao ouvir a música é passiva, pois não passa por um processo ativo de apreensão. Já o sen-timento depende da essência da música e da observação da pessoa. A percepção do sentimento é um processo ati-vo e empírico de compreensão objetiva. Nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 178): “Os sentidos, e em ge-ral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto que sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade, emite, para além de si mesmo, significações capazes de fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos e de experiências.”

Assim, para o filósofo, o corpo é forma de expres-são, pleno de intencionalidade e poder de significação. Cada movimento, cada gesto produzido é também pleno de sentidos, e o sentido dos gestos não é apenas dado, mas sobretudo, compreendido: “O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 273). O caminho proposto é partir do corpo como mediador à via do sentido, que é também o caminho da pessoa, do afeto, do pensamento, da linguagem e da comunicação.

A linguagem e a comunicação remetem-nos à acepção de sentido enquanto significado (meaning), termo tam-bém polissêmico, conforme se constata nos dicionários e no mundo da vida. Assim, ele pode referir-se a uma categoria linguística ou a uma interpretação específica, neste caso como significação, com uma intenção ou um fim determinado. É empregado também para se referir à expressividade de uma palavra, sua aceitação, sua inten-ção, sua significação, seu conteúdo semântico ou lexical. Refere-se, ainda, tanto ao objetivo subjacente ou destinado pela ação, pela fala ou outro modo de expressão, enfim, ao conteúdo válido, como também à interpretação interna, simbólica ou real, o valor ou a mensagem do significado de algo, como por exemplo, de um sonho. Por último, o significado pode ser ainda a definição, a explicação,

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a elucidação, a denotação discutindo sobre o signi-ficado exato da palavra, sua finalidade, seu objetivo final, a ideia, o projeto, o objeto, a intenção (Collins Thesaurus, 2003/2008). No campo específico da lexico-logia e da linguística, entretanto, entende-se por sentido, enquanto significado, “cada um dos significados de uma palavra ou locução; acepção” (Dicionário Houaiss). Aqui falamos do sentido como parte de um signo linguístico, como um significado bem definido, denotativo, ao modo de um conceito, já definido previamente, dicionarizado.

Se as definições anteriores parecem remeter a uma desvinculação entre sentido enquanto sensorialidade/per-cepção e sentido linguístico, dando a impressão de que a linguagem nos distancia do corpo próprio, ressalte-se que a fenomenologia compreende-a como sendo ainda uma extensão dele. Para Husserl (1901/2000), a intencio-nalidade linguística categorial simplesmente humaniza a percepção, a recordação, a imaginação e as eleva a um nível mais racional, no qual o objeto é desdobrado dian-te de nós. Como tal, ela está relacionada ao chamado ato perceptivo categorial, ou ideal, um nível terciário do pro-cesso contínuo de percepção, que se nos revela como uma fusão de atos parciais num único ato. Como esclarecem Castro, Castro e Castro (2009, p. 96)

(...) no ato perceptivo categorial desdobramos o objeto diante de nós, destacamos as partes, estabelecemos relações entre estas partes destacadas, sejam relações de uma com a outra, sejam relações das partes com o todo, e por meio dessa percepção, dessa nova manei-ra de apreensão, os membros ligados e relacionados ganham o caráter de “partes” ou, respectivamente, de “todos”.

Deste modo, a intencionalidade categorial é um tipo de identificação predicativa que vem suplementar e com-pletar a que foi alcançada na experiência pré-predicativa. Ela nos eleva a um nível humano de construção da ver-dade que envolve a linguagem e o raciocínio. O seu con-texto é, portanto, tão amplo e extenso como a gramática da linguagem humana. As categorias servem como prin-cípio para a classificação onde os assuntos são integrados numa estrutura que constitui o universo de conhecimen-to. Os objetos categoriais são modos nos quais as coisas se apresentam. Aqui se evidencia a linguagem como um instrumento usado para a concepção do mundo, mas sua função de projetar esse mundo não se exaure no que pode ser alcançado a partir de um exame dos significados de palavras lexicais. De fato, o processo de significação ex-trapola o significado denotativo das palavras, incluindo a intencionalidade de quem está atribuindo significação. Podemos pensar aqui em termos do significado que uma experiência tem para uma determinada pessoa. Por ser intencional, a consciência humana sempre “faz o mundo aparecer como significação” (Zilles, 2002, p. 30). Como explica Merleau-Ponty (1945/1999, p. 576), “o sentido de

uma frase é seu propósito ou sua intenção, o que supõe ainda um ponto de partida e um ponto de chegada, uma visada, um ponto de vista.” Para o filósofo, a fala surge como gesto do corpo que estabelece uma relação de sen-tido com o mundo, e “procurando descrever o fenômeno da fala e o ato expresso de significação poderemos ultra-passar definitivamente a dicotomia clássica entre sujeito e objeto” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 237).

Nessa compreensão de corporeidade, então, vê-se que a noção de sentido se desloca para além da própria subje-tividade, para incluir também a noção de espacialidade e temporalidade. E, por consequência, da intersubjetivi-dade. Ser corpo, então, é estar ligado ao mundo; e o cor-po não está no espaço primeiramente: “ele é no espaço” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 205). Sendo assim, a per-cepção, em seus diferentes níveis, nos leva ao movimen-to em direção intencional ao mundo segundo as normas vitais do organismo, manifestando a atitude de se orien-tar em direção ao mundo. Pelo movimento nos comuni-camos e nos relacionamos com tudo o que está ao nosso redor. Desde a mais tenra infância, é por meio da ativida-de motora que a criança se desenvolve e por adaptações contínuas vai adquirindo informações mais complexas, diversificadas e progressivamente mais elaboradas. A ca-pacidade de nos movimentar permite respostas apropria-das ao ambiente, o que implica que a nossa orientação de atenção se concentra mais nas ações que fazemos do que nos movimentos propriamente ditos.

O exposto acima nos remete a outro conjunto de sig-nificados mormente dado ao termo sentido, qual seja, o de direção. Mas, a palavra direção também é polissêmica. Assim, numa primeira visada, ela pode se referir ao mo-vimento físico – para frente, para trás, para o lado, para cima, para baixo, o qual se relaciona às direções bá-sicas de espaço: norte, sul, leste e oeste. O sentido como direção é uma linha que conduz a um lugar ou ponto. É o itinerário, a rota, o caminho – uma linha estabelecida de viagens ou acesso: a direção ou o caminho, a relação espacial, ao longo da qual algo se move ou ao longo do qual se situa a tendên-cia, as linhas gerais de orientação.

Por outro lado, no seu sentido ideativo, dire-ção pode ser também um curso geral, no tempo, ao longo do qual algo tem uma tendência a desen-volver. Refere-se, portanto, a uma inclinação, uma tendência, uma disposição, uma atitude da mente. Este sentido é também o que mostra se a pessoa tem um plano de vida traçado, se ela está pensando no seu futu-ro e o construindo no presente. Simultaneamente, di-reção é algo que fornece direcionamento ou conse-lho a respeito de uma decisão ou curso de ação de aconselhamento, orientação, conselhos, mapas de estradas, um plano detalhado ou uma explicação para orientá-lo no estabelecimento de normas ou determinar um curso de ação (Collins Thesaurus, 2003/2008).

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Todos esses sentidos do termo “direção” possi-bilitam o direcionamento de um ato, tal como na noção de intencionalidade: “A intencionalidade da consciên-cia é tal que alcança o mundo exterior todo o tempo, até quando tem por alvo coisas que não estão diante dela” (Sokolowski, 2010, p. 107). Assim, a intencionalidade do ato perceptivo, em seus diversos níveis, do orgâni-co ao ideativo, expressa-se através do corpo fenomenal e configura-se no meio existencial. É dessa forma que Merleau-Ponty (1945/1999) argumenta que espacialida-de e esquema corporal convergem para o princípio on-tológico do ser-no-mundo. E mais, o corpo como ser físico está presente, mas sem desconsiderar sua capacidade de transcendência. O corpo fenomenal é compreendido como o lugar existencial do ser-no-mun-do; seu ethos. Na fenomenologia, corporalidade é a rela-ção indissolúvel do corpo com o tempo, com o espaço e com o outro: a corporalidade não é apenas sinônima de um “eu”, é também sinônimo de maneiras de viver o tempo e o espaço.

O corpo é uma potência que nasce em conjunto com um meio e se sincroniza com ele. Por isto também o tem-po só existe como passado, presente e futuro na medi-da em que se relaciona com o ser. Para Merleau-Ponty, portanto, o tempo não é apenas uma linha, mas antes, uma rede de intencionalidades. No âmbito desta rede, a consciência se volta para o mundo num modo de rela-ção que não envolve uma compreensão racional a priori, mas um movimento próprio de si mesma em direção ao mundo, desde uma perspectiva pré-reflexiva. E é desta maneira que se pode compreender a noção de sentido também como intuição (Anschaunng), considerada em fenomenologia fonte de autoridade para o conhecimen-to (Martins & Bicudo, 1989). De fato, a fenomenologia de Husserl busca “uma intuição originária”, nos moldes em que a descreve Dartigues (1973, p. 21): “se é verdade que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sen-tidos, eles se dão sempre como dotados de um sentido ou de uma “essência”. Eis por que, para além dos dados dos sentidos, a intuição será uma intuição da essência ou do sentido.”

Deste modo, infere-se que a intuição da essência se distingue da percepção do fato. Ela é a própria visão do sentido ideal que se atribui ao fato materialmente dado e, ao mesmo tempo, o que se permite identificá-lo. Merleau-Ponty (1945/1999, p. 18) afirma que “porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido” e, assim, leva-nos a compreender o sentido também em termos de empatia, que se realiza na experiência intersubjetiva:

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é, portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade

pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.

Podemos então compreender que as significações do termo sentido – variando desde suas acepções físicas e sensoriais até aquelas de cunho idealizado e relacional – apontam para uma vida consciente baseada no cam-po da experiência corporal pré-predicativa e que se desdobra em experiência reflexiva e intersubjetiva. Deste modo, em toda percepção, tem-se também a contradição entre a imanência e a transcendência, que, na visão de Merleau-Ponty (1945/1999), são dois elementos estruturais de qualquer ato perceptivo, de modo que, sempre, objeto percebido é também conhecido ao sujeito que o percebe (imanência).

Por outro lado, toda percepção de algo tem uma não-percepção de alguma coisa que está para além do dado imediato, e que a transcende. Em outras palavras, toda vez que se tem consciência de algo, abre-se a possibilidade de não conhecer outros as-pectos relacionados ao objeto percebido. Deste modo, quando estudamos um fenômeno temos apenas uma per-cepção parcial porque a experiência acompanha uma mis-tura de presença e ausência. “A percepção, então, envolve camadas de sínteses, camadas de múltiplas presentações, que são de dois tipos, atual e potencial” (Sokolowski, 2010, p. 28). E a identidade de um objeto transcende suas múl-tiplas manifestações porque vai além delas.

Assim, o sentido como transcendência, na feno-menologia, é aquilo que ultrapassa a própria ativi-dade e alcance da consciência. As noções de noese e noema podem nos auxiliar aqui. Enquanto noese é termo empregado para se referir à própria atividade da consciência (sujeito intencionado), noema é usado em re-ferência ao objeto (intuído) constituído por essa ativida-de, entendendo que há um mesmo campo de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si em direção a seu objeto e o objeto como fazendo re-ferência aos atos da consciência (Dartigues, 1973). A no-ese e o noema ocorrem simultaneamente, em contínuo movimento, porque não há objeto em si, verdade em si, mas sempre em perspectivas e com sentido na esfera de compreensão do sujeito. A transcendência seria, então, o contínuo “pôr a descoberto” os diversos níveis que cons-tituem o mundo da vida na busca de sentido.

Pode-se dizer, enfim, que a fenomenologia é um método de transcendência em seu contínuo e pro-gressivo desvelamento do ser, do mundo e do ser--no-mundo. É um constante conhecer-se e este co-nhecimento passa pelo corpo, pois este não pode ser entendido como um simples organismo. Ele é também cultura, transcendendo o aspecto físico e, nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 257), “o uso que um homem fará de seu corpo é transcen-dente com respeito a este corpo como ser simples-

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mente biológico”. Então se o corpo não é somente biológico, os comportamentos derivados dele tam-bém não o podem ser. Para ele o corpo sintetiza a am-biguidade (imanência/transcendência) do ser no mundo. Ele não é, diretamente, a única forma de expressão, pois é também um ser de linguagem, como expressão que modi-fica e transcende o fenômeno dado na percepção, ou seja, transcende a si mesma, pois seu movimento vai sempre no sentido de ir além das relações entre um mundo e outro.

A atitude fenomenológica e a redução fenomeno-lógica são frequentemente denominadas transcen-dentais, tal como Husserl define o transcendental e Sokolowski a descreve (2010, p. 67):

A palavra significa ir além, baseada na sua raiz latina, transcendere, elevar-se sobre ou ir além, de trans e scando. A consciência, mesmo na atitude natural, é transcendental porque ela vai além de si mesma, até as identidades e coisas que lhe são dadas. O ego pode ser chamado transcendental à medida que é envolvido, em cognição, no alcance das coisas. O ego transcen-dental é o ego ou o si mesmo como o agente da verdade. A redução transcendental é o giro em direção ao ego como o agente da verdade, e a atitude transcendental é a instância que assumimos quando exercermos esse ego e suas intencionalidades temáticas.

Vê-se, assim, que a transcendência está também re-lacionada ao sujeito. Para Bicudo (1999, p. 20), a trans-cendência, na fenomenologia, é “uma percepção retros-pectiva do vivido, de modo que haja evidência dos fatos geradores do noema.” Já Zilles (2001, p. 515) diz que “a subjetividade realiza-se na medida em que se transcen-de a si mesma por opção da liberdade.” Este sujeito não é apenas psicológico, um ser que vive no mundo, mas um ser transcendente, aquele que vê o mun-do como um conjunto de unidades de sentidos. Poderíamos dizer, então, que a transcendência é o sentido do sentido.

E é este mesmo sujeito que, em vendo – e vivendo – o mundo como um conjunto de unidades de sentido, for-mula, a partir de sua experiência no mundo, os múltiplos significados de um mesmo termo, os quais identificamos, sob a forma de verbete, na composição dos dicionários comuns. Podemos compreender, então, suas múltiplas significações como um conjunto de modalidades expres-sivas que se configuram, no mundo da vida, da imanên-cia à transcendência, como que condensadas num único e mesmo termo: sentido.

3. Das Modalidades Expressivas ao Mundo da vida

No mundo da vida, água não é apenas H2O. Ela é muito mais: é agua que mata a sede, é agua refrescante, é água solvente, é água da maré baixa ou alta, é água que

apaga o fogo, é água que afoga, é água que rega a planta, é água purificadora, é água benta... Nenhum destes mo-dos de ser água é menos verdadeiro que outro, embora se saiba que, na ausência da água que mata a sede, a pessoa morre. Daí a proposta husserliana de retorno às coisas mesmas, tal como elas aparecem no mundo da vida, para as pessoas de carne e osso. O mundo da vida apresenta essa riqueza de possibilidades e a fenomenologia busca estar alerta para captá-la em todas as suas facetas, e mais ainda: entende que a ciência só tem valor se ela estiver reconhecidamente comprometida com o mundo da vida. Este, sim, é o que lhe oferece a fundamentação axiológica; é dele, por ele e para ele que a ciência foi desenvolvida. Nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 3): “Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apre-ciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é expressão segunda.”

Desta perspectiva, então, qualquer formulação teóri-co-conceitual acerca de um objeto ou termo deve voltar--se inicialmente para os homens enquanto pessoas, para suas vidas e realizações existenciais. E como o esclare-cera Husserl (1935/2008, p. 12), vida aqui não é tomada apenas no seu aspecto fisiológico, mas sim “vida ativa em vista de fins, realizadora de formações espirituais – no sentido mais lato, vida criadora de cultura na unidade de uma historicidade”. Tal perspectiva implica em supe-rar, pois, a dicotomia entre naturante e naturado, entre verdade objetiva e verdade subjetiva, entre o ser real das coisas e o seu parecer.

Ora, através do olhar fenomenológico, parece-nos que o termo sentido e sua multiplicidade de significações é uma ilustração de que a realidade não é única, estável ou universal, como o quer o princípio da não-contradição. Ao contrário, a realidade do mundo da vida é múltipla, variante e relativa, dependendo do olhar que lancemos sobre ela. E isso se dá não por uma falha conceitual ou metodológica, mas pela própria natureza do mundo da vida, que inclui tanto o ser como o parecer ser de qual-quer coisa em que nele se apresente. Ou seja, a realidade no mundo da vida se dá não apenas a partir do que dela se mostra, mas também do que dela própria se transcende.

Esse modo de compreensão poderia ser apontado como metafísico, no sentido mais tradicional do termo. Mas, tal como o poeta homônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, nos mostra que há metafísica bastan-te em não pensar em nada, a fenomenologia criada por Husserl vem mostrar que justamente a perspectiva posi-tivista, que exige objetividade em lugar da expressivida-de, é que se caracterizaria como verdadeira metafísica. Afinal, ela entende que podemos superar a suposta ilu-são dos sentidos a partir de determinados procedimen-tos metodológicos. Ora, ao fazer isso, ela se funda sobre um paradoxo: seria um determinado olhar, metodologi-camente controlado, que nos levaria à verdade das coisas

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mesmas. Ou seja, sem se dar conta, a perspectiva posi-tivista parte do princípio de que a objetividade não es-taria no objeto em si, mas no olhar que ela mesma lança para o objeto; a objetividade estaria no procedimento e não na realidade; seria o olhar do cientista que atribui-ria a objetividade à mesma. Ao qualificar o sentido, nas suas mais variadas expressões, a fenomenologia assume que a essência estaria na própria aparência das coisas, compreendendo que faz parte das coisas parecerem di-ferentes sob diferentes olhares. Ou seja, é da natureza do real mostrar-se e ocultar-se continuamente: as coisas se mostram sob um determinado olhar, mas elas também se escondem a esse mesmo olhar.

Do mesmo modo, se cada significado do termo sen-tido parece esconder o outro, ele também o mostra, não apenas pela sonoridade ou grafia de uma mesma palavra (sentido), mas pela dimensão de corporeidade e transcen-dência que se estendem desde sua concepção enquanto sensorialidade, passando pelos campos da sensibilidade – afeto e sentimento, da intersubjetividade – empatia e bom senso, da racionalidade – pensamento, conceito e juízo, mas realizando-se sempre no campo da espacialidade e da temporalidade – direção, destino – e culminando no campo da teleologia – propósito, finalidade.

4. O Sentido dos Sentidos: entre o buquê e o Jardim

Para compreendermos a noção de sentido em uma perspectiva fenomenológica, podemos fazer uma ana-logia com o buquê de flores, tal como na semiologia de Roland Barthes (1966/2008). Sabemos que o buquê é com-posto por várias flores individuais, mas o buquê é mais que isso. Podemos dizer, acompanhando a Psicologia da Gestalt, que o todo é maior que a soma de suas partes. O mesmo vale para a questão do sentido. O sentido total da experiência engloba todas as modalidades de sentido apontadas no verbete de um dicionário, mas de modo in-tegrado e interconectado. Assim, o que o corpo sente não é separado do significado e da sensação, isto é, a experi-ência corporal só pode ser entendida como uma realida-de subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os signifi-cados a que remetem se unem numa experiência única que vai além dos limites do corpo em si.

Se a ciência objetivista teve como consequência um empobrecimento da rica realidade do mundo da vida, a fenomenologia, ao resgatar a noção de sentido, vem propor a compreensão da realidade humana na sua proposta de retorno às coisas mesmas, de forma complexa, dinâmica, com múltiplas possibilidades de significação. Diríamos que o termo sentido é paradigmático em mostrar suas vá-rias nuanças e, ao mesmo tempo, em superar a fragmen-tação da realidade. De alguma forma, a própria lingua-gem humana, através da polissemia do vocábulo sentido, conseguiu apreender a polivalência e multiplicidade do mundo perceptivo que não é o mundo meramente men-

surável. A palavra sentido se mostra como um símbolo que contém múltiplos elementos, os quais, por sua vez, remetem a tantos outros elementos simbólicos, ilustran-do o modo como Amatuzzi (1996, p. 20), ao fundamentar teoricamente o uso da versão de sentido, define símbolo: aquilo “que em si mesmo “reúne”, põe junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e o faz intencio-nalmente”. Há, implícita nesta multiplicidade unificada por meio de um mesmo símbolo, uma qualificação do movimento perceptivo-intuitivo, nos moldes em que o descreve Merleau-Ponty (1945/1999, p. 63):

(...) perceber no sentido pleno da palavra, que se opõe a imaginar, não é julgar, é aprender com sen-tido imanente ao sensível antes de qualquer juízo. O fenômeno da percepção verdadeira oferece, portan-to, uma significação inerente aos signos, e do qual o juízo é apenas a expressão facultativa.

Pensemos no beijo por exemplo. O beijo envolve o sen-tido do tato, do paladar, do olfato, mas também envolve sentimento e um significado, que pode ser de paixão ou de indiferença. Envolve também uma noção de direção, podendo apontar para um desfecho da relação (um beijo frio, por exemplo) ou para um aprofundamento da mesma (um beijo apaixonado). E pode, ainda, conter elementos da ordem do ideal – romântico, sagrado ou religioso – quan-do se realiza também na metáfora do beijar o sapo, no ato de beijar a mão dos avós, ou no ritual de beijar o santo. Esses sentidos não são vividos pelas pessoas de maneira isolada, mas apreendidos como um todo. Portanto, um conceito que se quer fiel e completo ao sentido deste ver-bo – beijar – há que se referir a todas essas significações de modo intrinsecamente articulado.

Ao tentarmos descrever o buquê de sentidos, pode-mos falar dos diferentes aspectos separadamente, mas apenas para fins didáticos, como fazem os dicionários em cada item dos seus verbetes. Mas no mundo da vida eles são experimentados sempre como um todo integra-do. Não existe sensação pura quando se trata de experi-ência humana. O sentido enquanto percepção fisiológica não existe separado do todo. Toda sensação é já imedia-tamente interpretação, significação. Um calafrio não é só uma experiência fisiológica – contração involuntária de músculos somáticos – mas pode ser significado como medo ou quem sabe como a passagem de um espírito por perto, como assim o interpretam alguns. Esta última for-ma de interpretar o calafrio não é menos verdade para a fenomenologia do que aquela primeira, pois ela tam-bém emerge na interação dos humanos com as coisas. O mundo, na perspectiva fenomenológica, é uma trama de significação. O mundo é também o conjunto de signi-ficados que atribuímos a ele. Nós somos os agentes cria-dores da realidade e toda realidade só existe em função de uma consciência que a apreende como tal. Qualquer ponto de vista é apenas a vista de um ponto. Qualificar

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o sentido dos sentidos, portanto, marca uma diferença epistemológica, assim explicitada por Merleau-Ponty (1945/1999, p. 13-14):

(...) não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. (...) O mundo não é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.

Justamente por ser fugidio, o termo é paradigmático do quanto é relevante ater-se à sintaxe enquanto tecido conectivo dos juízes: todo significado é definido por re-lação. Um chapéu sobre a cabeça de um camponês é um simples utilitário de proteção contra o sol; sobre a cabe-ça de uma dama de cerimônia, é um adorno; na fronte de um cardeal, é um símbolo de poder; na mão esten-dida de um mendigo, significa um pedido de auxílio. Do mesmo modo, um cachimbo na poltrona do escritó-rio indica circunspecção e tranquilidade; no volante de um veículo, extravagância; no interior de um quadro de hospital, desrespeito e insensibilidade. (Fiorin & Platão, 1998). Ou seja, no mundo da vida, do mesmo modo como no mundo mágico da ficção, o contexto – dimensão de espaço e de tempo – interfere no significado das ações dos personagens. Deste modo, sem o princípio metódico da evidência no próprio mundo da vida, “a linguagem comum é fugidia, equívoca, muito pouco exigente quan-to à adequação dos termos”. É justamente por isso que, nas situações onde seus meios de expressão são empre-gados “será preciso conferir às significações um novo fundamento, orientá-los de modo original sobre esses significados fundamentados em nova forma” (Husserl, 1931/2001, p. 31): a descrição da estrutura total da ex-periência vivida e seus respectivos significados para os seres que a vivenciam.

Se cada item de um verbete de um dicionário comum, ao remeter às diversas significações possíveis para o ter-mo sentido, nos falam de rosas individuais, neste ensaio o que buscamos alcançar foi o buquê. A fenomenologia nos ajudou neste processo justamente por contrapor-se a um determinado modo de fazer ciência psicológica que privilegia os métodos meramente analíticos, de decom-posição da realidade em partes, como se as partes fossem mais importantes que o todo, ou como se apenas fosse possível compreender o todo a partir da soma das par-tes. Ora, quando enviamos ou recebemos um buquê, se o exame de cada rosa reduz-se à percepção da mesma como pedúnculo, receptáculo, sépalas, estames, carpelos, an-tera, gineceu, etc, tal como faria o biólogo ao fragmentar a flor em infinitas partes, o sentido do buquê, como um todo, desaparece. Cadê a poesia que estava alí? Ora, no mundo da vida, as rosas são vividas como beleza, como romance, como amor, enfim, como significação. Podemos

fatiar a rosa inteira, mas nunca vamos encontrar toda a beleza dela nas suas partes. E mesmo que as rosas não falem, sua poesia só é apreendida no todo, como bem sa-bem os poetas.

Com isso, no entanto, não estamos afirmando que o método analítico não sirva para nada e que deva, simples-mente, ser substituído. Propomos apenas a superação do equívoco de acreditarmos na soberania de sua perspec-tiva. Estamos, portanto, chamando a atenção para a im-portância de se olhar também para o todo, pois é assim que a realidade se apresenta em nossas vidas. A fragmen-tação da realidade obstrui a apreensão da multiplicidade na unidade e respectiva amplidão do sentido das coisas, posto que este só pode ser apreendido num movimento de síntese, integrativo.

Se olharmos para o verbete-buquê – os sentidos do sentido – apenas de modo analítico, estamos nos alienan-do do mundo da vida, justamente o jardim provedor de todas as flores que o constituem. E ao fazemos isso, es-tamos condenando toda uma civilização ao padecimento das duras consequências de uma perspectiva meramente tecnicista, alienada do próprio solo que a fertiliza. É ver-dade que, ao nos voltarmos para o jardim – o sentido dos sentidos, certamente que não encontramos aí apenas as flores. Nele há ainda, dentre outras tantas coisas, os ins-trumentos do jardineiro, assim como também o estrume que fertiliza o solo. Devemos reconhecer, no entanto, tal como nos recomenda o poético Wittgenstein (1980/1996) nos seus manuscritos, o que aí os distingue não é mera-mente o seu valor, mas – sobretudo – suas funções no jar-dim. Acreditamos que distinguir e reconhecer tais fun-ções se torna absolutamente imprescindível tanto para a ciência quanto para a prática psicológica que se queiram realmente efetivas no mundo da vida.

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Marta Helena de Freitas - Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), com Pós-Doutorado na University of Kent at Canterbury (Inglaterra). Atualmente é Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Endereço Institucional: Universidade Católica de Brasília, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Mestrado em Psi-cologia. SGAN 916, Módulo B, W5 Norte (Asa Norte). CEP 70790-160, Brasília, DF. Email: [email protected]

Rita de Cássia Araújo - Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta na CLIMAI (Brasília). Email: [email protected]

Filipe Starling loureiro Franca - Mestre em Psicologia pela Uni-versidade Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta em Brasília. Email: [email protected]

ondina Pena Pereira - Doutora em Filosofia pela Universidade de Bra-sília (UnB), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Email: [email protected]

Francisco Martins - Doutor em Psicologia pela Universidade de Louvain (Bélgica), Professor Titular da Universidade de Brasília, Psiquiatra, Psicanalista, Professor e Pesquisador do Programa de Pós--Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Email: [email protected]

Recebido em 25.04.2012Aceito em 26.09.2012

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A Força da Palavra em Nicolau de Cusa

A fORÇA DA pALAvRA EM NICOLAU DE CUSA

Power of the Word and According to Nicholas of Cusa

La Fuerza de la Palabra en Nicolás De Cusa

soniA lyrA

Resumo: A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da palavra devidamente potencializada o que vai poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de cada palavra. A força das palavras aparece, como uma contracção da força da mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendidas nesse jogo dinâmico que se es-tabelece entre as coisas do mundo externo e seu referente interno, isto é, a mente. O discernimento é passado inicialmente, como propõe Nicolau de Cusa, por imagens sensíveis, continuando a proposta de Jesus, que falou inicialmente por figuras, mas disse também que chegaria a hora em que já não falaria por figuras, mas claramente, pois as palavras que de Deus re-cebeu, ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat verbum), no qual subjaz o poder criador da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam as limitações da palavra e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, ultrapassa tudo.Palavras-chave: Nicolau de Cusa; Força da palavra; Dialética; Verbo.

Resumen: A partir del momento en que se transpone la dialéctica de los símbolos rumbo a la experiência mística, es la fuerza de la palabra debidamente potencializada, lo que hará hacer estremecer al oyente, una vez que hay una fuerza oculta detrás de cada palabra. La fuerza de las palabras aparece como una contracción de la fueza mental, que se ‘explica’ en las múltiples palabras que son en lo más fondo de las mismas, núcleos energéticos discursivos y que solo pueden ser compreendidas en ese juego dinámico, que se estabelece entre las cosas del mundo externo y su referente interno, esto es, la mente. El discernimiento es pasado inicialmente como lo propone Nicolás de Cusa, por imágenes sensibles, dándole continuidad a la propuesta de Jesús; que habla inicialmente por figuras, pero también disse que llegaría la hora en que no hablaría mas por médio de figuras, pero claramente, pues las palabras que de Dios recibió, él se las dio a los hombres cumpliendo la profecia: En el pincipio era el verbo (In principio erat verbum) en el cual subyace el poder crador de la palabra. La propuesta del Cusano es que en esta teoria de con-ocimiento sean reconocidas las de limitaciones de la palabra y del discurso, inscribiéndose en su propia dialéctica, en el cono-cimiento intelectual de la Trinidad, lo cual en la unidad lo ultra passa todo. Palabras-clave: Nicolás de Cusa; Fuerza de la palabra; Dialéctica; Verbo.

Abstract: From the moment in which the dialectics of symbols is transposed, toward the mystical experience, it is the power of the word duly potentialized that will move the listener, once there is a hidden force behind each word. The power of the words appears as a contraction of the strength of the mind that “explains” itself in multiple words that are, in their deeper sel-ves, discoursive energetic cores and that can only be understood in this dynamic game that is established between the things of the external world and its internal referent, that is, the mind. Discernment is passed initially, as Nicholas of Cusa proposed, by sensitive images, continuing Jesus’ proposal that spoke at the beginning through images, however He also said that the time would come when He would no longer speak through images, but clearly, for the words He received from God He[[he gave them to men, thus fulfilling the prophecy: in the beginning was the Word (In principio erat verbum), in which lies the creative power of the word. Nicholas of Cusa’s proposal is that in this theory of knowledge the limitations of the word and of the discourse are acknowledged, registering its dialectics in the intellectual knowledge of Trinity which, in the unity, exceeds all.Keywords: Nicholas of Cusa; Power of the Word; Dialectics; the Word.

Introdução

Um jornalista perguntou a Madre Tereza de Calcutá: “Quando você reza, o que você diz a Deus?” E ela respon-deu: “Não falo, escuto.” O jornalista então perguntou: “O que Deus diz a você?” Madre Tereza respondeu: “Ele não fala. Ele escuta. E se você não pode compreender isso, não posso lhe explicar.” A epígrafe de meu livro: Nicolau de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento (Lyra, 2012) aponta para essa “estranha” linguagem. Ela diz:

“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra pro-ferida pela boca de Deus.” Essa frase precisa ser enten-dida também no modo desse diálogo, assim como está exposto por Madre Tereza para que nela se possa intuir a força da palavra.

Sem a força da paixão presente na palavra, esta é ape-nas conceito, mas um conceito daquilo que já se conhe-ce, ou assim se pensa conhecer, como esquematização lógico-categorial ou conjectural que desemboca na assim chamada ciência positiva.

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Jesus Cristo é o logos que, segundo ele mesmo, é “o pão da vida” (Jo 6,35), o pão que, quem comer “viverá eterna-mente” (Jo 6,51). Este pão não é como aquele que os pais comeram e pereceram, mas o pão da palavra. O mesmo Cristo ainda disse: “Por que não reconheceis minha lin-guagem? É porque não podeis escutar minha palavra” (Jo 8,43), e completa dizendo que “quem é de Deus ouve as palavras de Deus” (Jo 8,47). Destas passagens, segue--se o porquê da vinda da palavra, pois disse ainda Jesus: “para um discernimento é que vim a este mundo” (Jo 9,39). O discernimento é passado inicialmente, como propõe Nicolau de Cusa por imagens sensíveis. Continuando a proposta de Jesus: “Disse-vos essas coisas por figuras. Chega a hora em que já não vos falarei em figuras, mas claramente vos falarei do Pai” (Jo 16,25). É quando Jesus diz aos discípulos que a vida eterna está em que conhe-çam “o único Deus verdadeiro” (Jo 17,3), pois as palavras que de Deus recebeu ele as deu aos homens cumprindo--se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat verbum) (André, 2006, p. 8), no qual subjaz o poder cria-dor da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam as limitações da pala-vra e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no co-nhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, ultrapassa tudo.

O Verbo divino, ao se plurificar nas suas expressões, que são o mundo das criaturas, em seus sinais e pala-vras sensíveis, é confirmado por Nicolau de Cusa quan-do ele afirma:

De acordo com esta comparação, o nosso princípio unitrino, pela sua bondade, criou o mundo sensível como matéria e uma espécie de voz, na qual fez resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim de que todas as coisas sensíveis sejam o discurso de várias elocuções do Deus Pai, explicadas através do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos universos, para que a doutrina do sumo magistério transborde, através dos sinais sensíveis, para as mentes humanas e as transforme perfeitamente num magistério semelhante, de modo a que todo o mundo sensível esteja em função do intelectual, o homem seja o fim das criaturas sensíveis e Deus glorioso seja o princípio, o meio e o fim de toda a sua actividade (André, 2006, p. 9).

Segundo André (2006), no De filiatione Dei, o Cardeal aponta o uno como o pai ou o gerador do Verbo, queren-do dizer com isto que “tudo aquilo que é dito em qual-quer palavra, significado em qualquer sinal e assim su-cessivamente” (André, 2006, p. 9), exprime em forma de palavra humana o verbo divino, sendo que na sua força se fundamentam a força da palavra do homem e, simul-taneamente, os seus limites. “A sua força, porque ela é a expressão do verbo divino, os seus limites, porque é sem-pre uma expressão contraída e limitada pela finitude hu-

mana que dista infinitamente de plenitude de sentido da infinitude divina” (André, 2006, p. 9).

Independente da possibilidade de morrer, devido à sua natureza mortal, pode o homem chegar à experiência da vida do espírito imortal em virtude do Verbo Encarnado no homem Jesus Cristo, “in virtute verbi dei” (André, 2006, p. 10). Nele a humanidade é o nexo de ligação entre a na-tureza inferior e a superior, isto é, da temporal e da eter-na, e que se experimenta, em semelhança, pela fé e pelo amor. É quando a sabedoria encarnada revela, com o seu exemplo, o caminho para a vida, pelo qual ainda que se morra se experimenta a ressurreição da vida, “que é tudo o que se busca” (Vescovini, 1998, p. 132).

Tudo o que se busca, filosoficamente, é considerar a força da palavra quase como se o nome fosse a represen-tação precisa da coisa. Mas, se os nomes foram impostos às coisas segundo a razão concebida pelo homem, então os nomes não são precisos, pois uma coisa pode ser de-nominada com outros nomes talvez mais precisos. É por isso que os desacordos não estão na razão que dá subs-tância às coisas, mas nos vocábulos que são atribuídos diferentemente às diversas razões das coisas. É em vir-tude da virtus ou força da palavra, cujo conceito coinci-de com sapientia, que se transfere o verbo divino para os verbos humanos, sendo estes então “explicationes da sapientia na sua unidade mais profunda e absoluta” (André, 2006, p. 10).

Nicolau de Cusa desenvolve essa “dinâmica expres-siva e manifestativa das palavras” (André, 2006, p. 13) em várias de suas obras, entre elas no De pace fidei; De principio; De mente e Compendium. O Cusano, da mesma forma que Agostinho, afirma que a palavra que soa exteriormente

é um sinal da palavra que brilha no interior, à qual melhor convém o nome de verbo. Na verdade, a palavra que os lábios pronunciam é a voz do verbo e chama--se também verbo porque aquele a assume para que apareça exteriormente (André, 2006, p. 12).

Como falar é manifestar, o Cardeal quer traduzir em teoria a palavra interior que, por si mesma, já é uma tra-dução no “nome preciso e indizível” (André, 2006, p. 13), do qual a linguagem humana é a explicatio.

Da mesma forma, Platão diz que “a verdade é anterior aos vocábulos, aos discursos, ou seja, às definições dos vocábulos e às imagens sensíveis, e ele traz como exem-plo, o desenho do círculo, do seu nome, da sua definição verbal e do seu conceito” (Vescovini, 1998, p. 133), ain-da que Dionísio Areopagita recomende que se dê “mais atenção à intenção que à força da palavra” (Vescovini, 1998, p. 134). De qualquer modo, para Nicolau de Cusa, tudo que pode ser dito é o verbo, é a manifestação de um verbo único, que se constitui na arte da fala, “uma arte infinita, não no seu resultado, mas no seu processo e no seu dinamismo” (André, 2006, p. 13), quando então

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a sua limitação a transforma na busca pela palavra infi-nita, que, oculta no silêncio de sua plenitude, é a fonte de todas as palavras. No entanto, no segundo capítulo do De docta ignorantia, o Cusano chama a atenção num es-clarecimento preliminar para o fato de que, aquele que quer atingir o sentido do que está para ser dito deve ele-var o intelecto “para lá da força das palavras, mais do que insistir nas propriedades dos vocábulos que não po-dem adaptar-se convenientemente a tão elevados misté-rios intelectuais” (Cusa, 2003). Os exemplos dados, ele os utilizará como guias para a elevação do plano das coisas sensíveis para o intelectual.

O uso das matemáticas, por exemplo, tem como fina-lidade confrontar as etapas metodológicas necessárias, partindo de uma lógica conjectural, edificada, segundo André, “sobre o princípio de não-contradição” (André, 2001, p. 321); seguindo para uma dialética coincidencial, edificada “sobre o princípio da coincidência dos opos-tos” (André, 2001, p. 321) e finalmente desembocando numa dialógica transsumptiva, edificada “sobre a cons-ciência da distância, mas também sobre a natureza dia-lógica do movimento pelo qual nos sentimos chamados a transpor essa distância” (André, 2001, p. 321), reflexão esta que conduz para a experiência do infinito em que já não há figuras.

Uma vez que se pode considerar a questão sobre a nomeação de Deus ou de se saber o que Deus é e como é possível experimentá-lo como o centro ou o princípio da coincidência, como o lugar a partir do qual se pode com-preender toda a filosofia de Nicolau de Cusa, pode-se tam-bém deduzir que essa teoria do conhecimento proposta pelo Cusano surge na introdução do De docta ignorantia como “uma hermenêutica dos nomes divinos, profunda-mente influenciada pela obra do Pseudo-Dionísio, como já foi referido, e que só terminará com a última obra, o De ápice theoriae” (Cusa, 2003, p. XXI).

No ápice da teoria, experiência (afeto, humor) e méto-do (compreensão da realidade), próprios da dinâmica de realização da realidade, co-incidem numa transsumptio cusana, que, para Fogel (2003), “se constitui num pôr-se no mesmo tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma ex-periência, na mesma origem; trata-se assim de um sinto-nizar-se, de um sincronizar-se com a “coisa” – assim se é co-originário e co-partícipe” (Fogel, 2003, p. 49). O co-nhecimento torna-se então simpatia, paixão. É a experi-ência do logos, o sentido e a força da palavra nela contida e por ela perpassada.

É o momento em que a força da palavra se torna co-nhecimento, em que o problema do conhecimento e da palavra é o mesmo que o problema do real. “É nessa hora, nesse contexto de intensidade máxima do pensa-mento, nessa hora de radical concretização da essência do homem, que é preciso ouvir aquela afirmação: viver, existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial possível, é conhecer” (Fogel, 2003, p. 52). É transpor-se para este ou aquele humor “o necessário da ocasião, da

‘hora’ – para então ajustar-se, ‘adequar-se’ com ele, isto é, com as coisas” (Fogel, 2003, p. 53). Vê-se então que ser simpático é ajustar-se, supondo-se que verdade seja mesmo a adequação, a correspondência, a consonância com as coisas.

No entanto, segundo Vescovini, na obra La Caccia della sapienza (1998), o Cusano afirma que ninguém es-teve mais atento a essa questão do que Aristóteles, para quem “aquele que forjou todos os nomes sabia perfeita-mente ter expresso isto que sabe nos seus nomes e, como desenvolver esta ciência, fosse encontrar a perfeição do saber” (Vescovini, 1998, p. 134). Mas, apesar de tudo isto, chega o momento em que o buscador da sabedoria pre-cisa negar todos os nomes que o homem impôs a Deus. Negar os nomes é diferente de interpretá-los. A interpre-tação requer alguns princípios; assim como fez Nicolau de Cusa em De genesi, ao partir da idéia de que todos os que falaram da Gênese fizeram-no de modos diversos. Usando o tema da Gênese como base a interpretação apon-ta inicialmente para “a necessidade de contextualizar o discurso bíblico na capacidade humana de compreensão e de apreensão” (Vescovini, 1998, p. 322); em seguida aponta para “a transformação do movimento interpreta-tivo num movimento de assimilação ao idem, ou seja, de confluência para o idem indizível, por um processo de re-lativização das formas contraídas da expressão humana” (Vescovini, 1998, p. 322), e finalmente entendendo que “a percepção de que as interpretações dos sábios e Padres da Igreja não são senão modos diversos de apreensão do idem absoluto” (Vescovini, 1998, p. 322), que cada qual procura representar de modo assimilativo.

É desse modo que a interpretação dos textos bíblicos, filosóficos, teológicos ou místicos, funciona igualmente para todos, segundo esses princípios. Mesmo as expres-sões religiosas, ainda que permeadas “pela força da sabe-doria inefável” (Vescovini, 1998, p. 325), não sejam senão conjecturas. Presente já no De intellectu et intelligibili de Alberto Magno1, está a afirmação de que “o intelecto é o ponto para o qual tendem todas as filosofias” (Vescovini, 1998, p. 134). É onde, para o teólogo Alberto, se articulam a natureza do pensar com a natureza da graça, apontan-do para uma visão beatífica do intelecto divino que é a partir de onde falam todos os filósofos, isto é, de uma te-ofania – manifestação ou revelação de Deus.

Na medida em que, para Alberto, as figuras do fi-lósofo e do profeta tendem a se sobrepor, esse homem pode se elevar pelo pensamento ao “intelectus divinus” (Vescovini, 1998, p. 308). Citando Avicena, Hermes e Homero, Alberto continua dizendo ousadamente que o fi-lósofo é nexus dei et mundi, tendo uma função na liturgia cósmica. Instrumento de uma espécie de palingenesia2,

1 Cf. A. Combes, Jean Gerson commentateur dionysien. Texte inédit. Démonstration de son authenticité. Appendices historiques, Paris, Vrin, 1940. [1973].

2 Renascimento, regeneração. Fil. Rel. O mesmo que metempsicose. Fil. Entre os estoicos, retorno periódico e incessante dos mesmos fenômenos; eterno retorno. Aulete Digital.

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o filósofo aparece em Scotus Erigena e Mestre Eckhart numa imensa lista de citações, operando como que uma fusão da “abstractio filosófica e da ablatio místico-teoló-gica” (Vescovini, 1998, p. 312). Naturalmente surgem crí-ticos, como Gerson, que preferem a visão de Agostinho, Dionísio e São Boaventura, que, a seus olhos, por não serem filósofos, têm mais direito de falar da ablatio por serem cristãos. O conteúdo de toda essa busca filosófico--teológica e mística é definido por al-Farabi como “a união do filósofo com o intelecto absoluto [séparés]” (Vescovini, 1998, p. 329), em outras palavras, como uma via que se adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja progres-sivo. Mestre Eckhart denominou esse homem da busca de “homem nobre”, “homem pobre” ou “homem desapegado” (Vescovini, 1998, p. 330). Discípulo de Alberto, Eckhart “continuou em teologia a obra compilada por seu mestre na filosofia” (Vescovini, 1998, p. 333).

O modelo do homem desprendido (l´home détaché) é Jesus Cristo, que na exegese de Lucas (19,12) aparece como um homem de nobre origem que parte para uma região distante a fim de ser investido da realeza e então voltar. Essa metáfora aponta para a necessidade de supe-ração, de “ultrapassamento do saber em direção ao Verbo” (Vescovini, 1998, p. 336), quando então o modelo da vida bem-aventurada é cristológico. Encontrar esse fundo sem imagens, onde a ética e a filosofia estão para lá de todos os nomes de Deus, é a verdadeira pobreza, é quando fi-losofar e contemplar

consiste em “reentrar” em seu próprio fundo e, es-tando lá, “agir” “sem porque”, “nem por Deus, nem por sua própria felicidade, nem por quem esteja fora de si, mas unicamente em consideração disto que é em si seu ser próprio e sua própria vida (Vescovini, 1998, p. 341).

No fundo, afirma De Libera, “Eckhart não diz nada além do que disse Orígenes: toda a filosofia já está na Escritura” (Vescovini, 1998, p. 350), especialmen-te no Novo Testamento, mais especialmente ainda, no Evangelho segundo São João.

A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da pa-lavra devidamente potencializada o que vai poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de cada palavra. A força das palavras aparece, diz André: “Assim como uma contracção da força da mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendidas nesse jogo dinâmico” (André, 2006, p. 18), que se estabelece entre as coisas do mundo exter-no e seu referente interno, isto é, a mente.

É assim que em seu desdobramento, o Verbo, Jesus Cristo, “não sendo cognoscível neste mundo onde, no âm-bito da razão, da opinião, da doutrina, somos conduzidos, através de símbolos, pelas coisas desconhecidas ao des-

conhecido, só é apreendido onde cessam as persuasões e começa a fé” (Cusa, 2003, p. 173). Uma vez que o conhe-cimento intelectual é dirigido pela fé, visto ser uma ex-plicatio da fé, onde a fé não for sã, aí também não é pos-sível um conhecimento intelectual verdadeiro, conduzin-do nesse caso à debilidade dos princípios e fundamentos. Esta fé é o próprio Jesus Cristo, uma vez que como diz São João, é a própria encarnação do Verbo, a douta ignorância. E o Cusano finaliza dizendo que, “quando nos esforça-mos por olhar com os olhos intelectuais, caímos na escu-ridão, sabendo que dentro dessa escuridão está o monte no qual só é permitido habitar àqueles que são dotados de intelecto” (Cusa, 2003, p. 173). São estes os capazes de compreender incompreensivelmente que “toda palavra corporal é sinal do verbo mental” (Cusa, 2003, p. 174) e que todas as coisas criadas são, da mesma forma, “sinais do Verbo de Deus” (Cusa, 2003, p. 174).

Esse conhecimento se manifesta gradualmente atra-vés da fé, pela qual se ascende a Cristo, isto é, Cristo é a causa de todo verbo mental corruptível, pois ele é a ra-zão, o verbo incorruptível. Cristo é a própria razão en-carnada de todas as razões, porque “o verbo se fez carne” (Cusa, 2003, p. 175).

1. A Definição que Tudo Define

De acordo com Nicolau de Cusa, todo conceito huma-no é “conceito de algo uno” (Cusa, 2008, p. 197), isto é, toda definição que tudo define é não outro que o definido. É a definição que, acima de tudo, nos faz saber. Em ou-tras palavras, “a razão é a definição” (Cusa, 2008, p. 29). O Cusano diz que, talvez, seja Dionísio quem mais se aproximou desse entendimento, quando, ao chegar ao fim da Teologia Mística, afirma que “o criador nem é algo que possa ter nome nem é algo outro” (Cusa, 2008, p. 35). Sendo Deus princípio de todos os nomes assim como das coisas, e ainda que o próprio princípio possa receber mui-tos nomes, nenhum nome lhe pode ser adequado. Não se podendo constatar que nenhum outro vocábulo dirige me-lhor a visão humana até o primeiro princípio, é denomi-nado, por isso, “li no-otro” (Cusa, 2008, p. 37). É quando se pode ver que “Deus é não-outro que Deus e que algo é não-outro que algo, e que nada é não-outro que nada, e que não-ente é não outro que não-ente” (Cusa, 2008, p. 39). É quando se vê então que não-outro é a definição que antecede toda definição, sendo, pois, o significado de li o que mais se aproxima do inominável nome de Deus.

Experimenta-se assim que o olhar sensível, sem a luz, nada pode ver, e que a cor não é senão a determina-ção ou a definição da luz sensível, sendo então que “a luz sensível é o princípio do ser e do conhecer o visível sensível” (Cusa, 2008, p. 43); da mesma forma, o som é o princípio do ser e do conhecer o audível. Suprimido o não-outro, segundo o Cardeal, nada resta da realidade nem do conhecimento.

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A Força da Palavra em Nicolau de Cusa

Tal conhecimento somente pode ser entendido por meio de si mesmo, não podendo ser expresso de outra maneira. Não pode ser afirmação nem negação, e só pode ser percebido pela coincidência dos opostos, sendo vis-to “antes de todo acréscimo e de toda supressão” (Cusa, 2008, p. 53), isto é, o não-outro de modo nenhum pode ser alterado ou mudado pelo que quer que seja.

Nessa teoria do conhecimento, que, por assim di-zer, desemboca no conceito de não-outro, o não-outro, ele mesmo,

é a razão mais adequada e o discernimento e a medida de tudo o que é, para que seja; e o que não é para que não seja; e o que pode ser para que possa ser; e o que é assim para que assim seja; e o que é movido, para que se mova; e o que está em pé, para que permaneça em pé; e o que vive, para que viva; e o que entende, para que entenda; e do mesmo modo, tudo (Cusa, 2008, p. 59).

É, pois, necessário que o não-outro defina a si mes-mo como, da mesma forma, conceituando e nomeando tudo aquilo que pode ser nomeado. Antes do conceito está portanto o não-outro, o que significa que o conceito é “não-outro que conceito” (Cusa, 2008, p. 197). Em con-sequência disso, o não-outro é denominado de conceito absoluto, o qual pode somente ser visto com a mente, ain-da que não possa ser conceituado. O não-outro, não con-ceituável, no entanto, ao definir-se a si mesmo, se mostra trino. Denominar a trindade como “unidade”, “igualdade” e “nexo” é um modo de aceder ao uno, pois são esses os termos nos quais “reluz o não-outro” (Cusa, 2008, p. 65) de modo mais claro. Tratando-se de definições, os termos “isto”, “isso” e “o mesmo”, segundo o Cusano, “imitam de modo mais brilhante e mais preciso o não-outro” (Cusa, 2008, p. 66, 67), embora sejam termos menos usados. É quando, ao definir-se a si mesmo, o primeiro princí-pio, significado por meio do não-outro, “nesse movimento definido a partir do não-outro, se origina do não-outro e também a partir do não-outro e é originado o não-outro, no não-outro termina a definição” (Cusa, 2008, p. 67). Qualquer apreensão somente poderá ser intuída para além da capacidade humana, através da contemplação, pois de outro modo não seria possível dizê-la.

Sendo, portanto, outro que o não-outro, Deus “é em tudo, ainda que nada de tudo” (Cusa, 2008, p. 71), o que significa um cessar de tudo que é e que não é, caso ces-se o não-outro. A proposta de Nicolau de Cusa é que se veja no inominável não a privação do nome, mas, antes, o “antes de todo nome” (Cusa, 2008, p. 73). É este o modo como o desconhecido reluz no conhecido cognoscitiva-mente, do mesmo modo que a claridade do sol reluz sen-sivelmente e que com a visão da mente se alcança por sobre ou fora de toda compreensão.

Tratando-se, porém, do fato de que não se pode ex-plicar nada sem a palavra e só podendo fazê-lo através do termo “ser”, deve-se assim proceder para que os que ouvem compreendam. Convém, diz o Cusano, que aque-le que especula opere

como o que vê a neve através de um vidro vermelho, o qual vê a neve e atribui a aparência do vermelho não à neve, mas ao vidro; da mesma maneira opera a mente; por meio da forma vê a não-forma (Cusa, 2008, p. 93).

O não-outro é, então, tanto princípio do ser, “atra-vés do qual a alma tem o ser, como princípio do conhe-cer, pelo qual conhece e, como princípio do desejar, pelo qual não somente tem o querer, senão que, especulando seu princípio unitrino naqueles princípios, ascende à sua glória” (Cusa, 2008, p. 95). Pode-se ver então que toda criatura é manifestação do mesmo criador, que se defi-ne a si mesmo, ou

da luz que é Deus, que se manifesta a si mesma; como se fosse a exibição da mente que se define a si mesma; que para os presentes se faz pela elocução viva e para os distantes por meio da mensagem ou da escrita (Cusa, 2008, p. 233).

Dialogar é a metáfora mais precisa para designar o projeto filosófico de Nicolau de Cusa. Os nomes impostos pela razão são sempre passíveis de um excedente, de um mais e de um menos, ou seja, de proporção e de compa-ração e, consequentemente, partem das oposições relati-vas entre os contrários.

A preferência de Nicolau de Cusa pela teologia ne-gativa ocorre para que possa negar a adequação de todo nome criatural para com Deus e com isso evitar a ido-latria, empurrando, por assim dizer, o intelecto no sen-tido de situá-lo para além da afirmação e da negação, tentando captar formulações “que expressem a capta-ção de Deus como coincidência dos opostos” (Cusa, 2008, p. 251). O Cusano propõe ainda, através da negação e pelo conceito de não-outro, a negação da disjunção compara-tiva, bem como a negação da própria conjunção. Nega não só que o primeiro princípio seja ou não seja, como se poderia fazer por meio da linguagem intelectual da coincidência, mas chega ao ponto de negar essa mesma linguagem que afirma que o primeiro princípio é e não é. Isso faz com que eleve o intelecto, que é a raiz da ra-zão, e dos termos intelectuais que são a raiz dos racio-nais, para a busca do primeiro princípio que é anterior à coincidência dos opostos.

Conclui que, nessa teoria do conhecimento, os nomes intelectuais onde os contrários coincidem, são menos inadequados, uma vez que uma linguagem divinal que supere tanto a razão quanto o intelecto pode ser apenas reconhecível, não, porém, praticável.

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Sonia Lyra

Referências

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André, J. M. (2006). Nicolau de Cusa e a força da palavra. Revista filosófica de Coimbra, n. 29, (pp. 03 a 31).

Cusa, N. de (2003). A douta ignorância. (J. M. André, Trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publi-cado em 1440).

Cusa, N. de. (2008). Acerca de lo no otro, o de la definición que todo define. Introducción, J. M. Machetta y K. Reinhardt, p. 197 (J. M. Machetta, Trad.). Buenos Aires: Editorial Biblos. (Edición bilíngüe)

Fogel, G. (2003). Conhecer é criar. Um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Editora UNIJUI, Discurso Editorial.

Lyra, S. R. (2012). Nicolau de Cusa: Visão de Deus e teoria do conhecimento. Curitiba: Biblioteca Ichthys.

Vescovini, G. F. (1998). Il pensiero di Nicolau Cusano. Turim: UTET.

Sonia Regina lyra é Psicóloga - Analista Junguiana, Mestre em Fi-losofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-Doutoranda em Humanidades e Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. É Diretora do Ichthys – Instituto de Psicologia e Religião (www.ichthysinstituto.com.br). Email: [email protected]

Recebido em 17.05.11Aceito em 25.03.12

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Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

TÉDIO E TRAbALHO NA pÓS-MODERNIDADE

Boredom and work in the post-modernity

Apatia existencial y trabajo en la pos modernidad

KArinA oKAJiMA FuKuMitsu

JúliA yoriKo HAyAKAwA, suzAn eMie KudA, elisA HAruMi MusHA, tAuAne cristinA do nAsciMento, brunA bezerrA oliveirA,

elisAbete HArA GArciA rocHA, dAiAny APArecidA Alves dos sAntos, KAren ueKi, lucAs PAlHAri vAsconcelos

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as relações entre tédio existencial, tempo e trabalho na pós-moderni-dade. O trabalho considera duas perspectivas: a primeira, o caráter que impede o trabalhador de se apropriar do tempo tornan-do-se entediado; a segunda, a dimensão facilitadora para o serviço que faz sentido ao trabalhador. Na sociedade pós-moderna, percebe-se um esvaziamento de significados devido à demanda de produção técnica que, associada ao tédio, resulta na perda de sentido para o trabalhador. Nesse contexto, o homem que busca preencher seu tempo por meio das inúmeras ocupações não se permite entrar em contato com seu projeto existencial. Entretanto, a vantagem da constatação do tédio existencial favorece a autenticidade e permite possibilidades de ressignificações para a compreensão do tempo vivido.Palavras-chave: Tédio existencial; Trabalho; Tempo.

Abstract: This present article there is how objective show the established relation between the existential boredom, time and work in the post-modernity. The work is seen from two perspectives: the first is about a one negative character; and the second, a positive dimension. In the post-modernity society, there is one emptying of your positive mean that associate with boredom can result in lose sense. In this context, the man to fill search your time through everyday occupations and as soon as the work to show like central factor in your life, can create to mount up activities that don´t permit enter in contact with your existential project. However, the existential boredom can open to way to new possibilities of the meet with future reframes.Keywords: Existential boredom; Work; Time.

Resumen: El siguiente artículo tiene como objetivo presentar las relaciones entre la existencia y el burrimiento, tiempo y tra-bajo en la pos modernidad. El trabajo considera dos perspectivas: la primera, el carácter que impide al trabajador de apropiar-se del tiempo volviéndose tedioso; la segunda, la dimensión facilitadora para el servicio que da sentido al trabajador. En la so-ciedad post-moderna, se percibe una carencia de significados debido a la demanda de producción técnica que, asociada a la monotonía, resulta en la perdida del sentido para el trabajador. En este contexto el hombre que busca satisfacer su tiempo por medio de las innumerables ocupaciones no se permite entrar en contacto con su proyecto esencial. Entretanto, la ventaja de la constancia de apatía existencial favorece a la autenticidad y permite posibilidades de re significación para la comprensión del tiempo vivido.Palabras-clave: Apatía existencial; Trabajo; Tiempo.

Introdução

A ação e ocupação humana estão intrinsicamente rela-cionadas ao tempo. Apesar de o trabalho ser reconhecido como uma atividade central, que ocupa quase totalmen-te o tempo e espaço do cotidiano humano, torna-se cres-cente o número de trabalhadores que não reconhecem o ambiente profissional como um espaço de realização e possibilidades.

No contexto pós-moderno, as informações sobre bens de consumo podem provocar no homem a falsa percep-ção de que ele é o que produz, tornando-o refém de um status quo e de uma exigência para produzir cada vez mais. Assim, o dilema entre ser, ter e parecer se instala.

O presente artigo tem o objetivo de estabelecer rela-ções entre tédio e trabalho na pós-modernidade, segun-

do a concepção fenomenológico-existencial que além de ser uma visão preocupada com as questões existenciais, está também comprometida com o modo de o ser huma-no apoderar-se de sua existência.

O mundo moderno é demarcado por dois tempos: o cronológico e o vivencial. Sendo assim, o trabalho é apre-sentado no estudo como uma ocupação do ser humano associada ao tempo.

Chauí (1995, p. 241) nos ensina que:

Somos seres temporais – nascemos e temos consciên-cia da morte. Somos seres intersubjetivos – vivemos na companhia dos outros. Somos seres culturais – cria-mos a linguagem, o trabalho, a sociedade, a religião, a política, a ética, as artes e as técnicas, a filosofia e as ciências.

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Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira; Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos

Reflete, portanto, sobre o tempo quando vivenciado pelo esvaziamento de significados e, concomitantemente, sobre a voracidade que impele o ser a buscar novidades para evitar a constatação do vazio existencial.

Considera-se também nesse estudo o tédio e a falta de sentido no trabalho, e a fuga do tédio por meio do traba-lho, contemplando a compreensão das pessoas que tra-balham demasiadamente, os workaholics.

O tempo permite tanto compreender o existente hu-mano em seu ser, quanto qualquer modo de ser possí-vel e, por esse motivo, nas duas modalidades de tempo supracitadas, o tédio emerge e pode ser compreendido como uma das manifestações da angústia do indivíduo moderno que projeta sua inautenticidade provocada pelo esquecimento do ser.

1. O Homem e o Tempo na pós-Modernidade

O homem é possibilidade de ser e se relaciona com o tempo não apenas objetiva e mensuravelmente, mas o experiencia de maneira singular e própria. Logo, o tem-po não é, mas se temporaliza, porque produz a si mesmo de diferentes modos: temporalidade originária, tempo do mundo e tempo comum (Reis, 2005).

O tempo comum tem origem na databilidade do tempo cronológico (kronos), o que resulta uma série de instantes idênticos e não relacionados entre si. Em geral, o ser hu-mano não se relaciona com o tempo de outro jeito a não ser aquele mensurável que remete ao tempo do relógio, ao aqui e agora, ao ontem e ao amanhã (Josgrilberg, 2007). Em contrapartida, apresentar o tempo somente como uma somatória de eventos do presente reduz outras possibi-lidades de compreensões. Desse modo, Kirchner (2007, p. 187) questiona: “Será que, quanto mais o tempo é ex-clusivamente mensurado e cronometrado, menos experi-ências as pessoas fazem com o tempo junto à ocupação do mundo e como tempo da temporalidade da presença?”

O autor se baseia na consideração de que responder a tal questão seria um equívoco e ainda reflete sobre o fato de que mensurar e cronometrar o tempo só se tor-na viável pela possibilidade de a contagem já ser sempre acessível ao próprio ser.

Josgrilberg (2007) aponta também para a interpretação ontológica de Heidegger sobre a experiência do tempo que constitui o próprio Dasein, o existente humano. Na mes-ma direção, Bilibio (2005, p. 78) tenta “(...) compreender a experiência do tempo de modo fenomenológico a par-tir da própria existência humana e de sua finitude (...)”.

De acordo com Minkowski (2011), tanto a ideia de tempo mensurável quanto a noção de desorientação no tempo não esgotariam o fenômeno do tempo vivido e, dessa forma, é possível desorientar-se no tempo em al-guns momentos. A monotonia gerada por essa desorien-tação leva ao tédio que, por sua vez, gera sofrimento nas pessoas que lutam contra esse fenômeno essencialmen-

te temporal. Para o autor, o tempo apresenta um excesso de imagens dinâmicas e artificiais que aparecem cons-tantemente e se relacionam a eventos do mundo exterior e/ou da vida íntima do ser. Sendo assim, a vida segue um curso violento, levando a uma sucessão de imagens e acontecimentos que não oferecem nenhum apoio à neces-sidade de refletir, tornando-a um turbilhão de episódios.

2. O Ser-no-Mundo na pós-Modernidade

É o homem que precisa se adequar ao lugar e ao tem-po? Ou deve-se pensar o contrário: é o lugar e o tempo que precisam ser adequados ao homem? Para elucidar tais questões, pode-se compreender o tempo e o espa-ço por meio da mitologia grega em torno dos mitos de Kronos e Kairós.

Kronos, de acordo com a mitologia, era um dos deuses que receava a realização da profecia de que seria destro-nado por um de seus filhos, motivo pelo qual os devora-va. Zeus, um desses filhos, foi poupado da morte e escon-dido por sua mãe, retornando para reivindicar o trono e exigindo que Kronos libertasse seus irmãos Ades, Hera, Possêidon, Héstia e Deméter. Zeus expulsou então Kronos do Olimpo e se tornou imortal, poder concedido também aos irmãos, enquanto seu pai foi jogado ao limbo. Kairós, segundo a lenda, demarca o tempo vivido.

A sociedade contemporânea, igualmente, pauta-se no tempo cronológico, ou seja, em Kronos, sendo este o útil, o sequencial, que se contrapõe ao tempo vivenciado e representado por Kairós. Nesse sentido, o trabalho pode se embasar nas concepções de Kronos e não permitem que o indivíduo se aproprie de seu projeto existencial. Em contrapartida, o apropriar-se do tempo relaciona-se à concepção pertencente ao tempo vivenciado, isto é, Kairós, que possibilita a reflexão sobre a ação e se apro-xima do vazio fértil.

Vazio e solidão fazem parte da condição de singulari-zação. Ao contrário, o anonimato é o esforço da evitação do contato com a angústia. É pela manutenção do ano-nimato que o ser humano encontra lugar para devolver a aparência de que tudo está bem e que nada precisa ser alterado. É pela constatação da angústia e vivência de acolhimento do vazio existencial que o homem desperta de sua condição de ser-no-mundo. Nesse sentido, a dife-rença entre estar-no-mundo dos homens e ser-no-mundo é apontada, pois estar-no-mundo dos homens significa seguir determinismos e a justificativa causal de que o homem é produto do meio, restando-lhe apenas o quie-tismo e o anonimato. Em contrapartida, o ser-no-mundo significa habitar, atuar sobre e no mundo de modo que possa interferir, modificar, inventar, criar e sobretudo, engajar-se e exercitar sua transcendência. E assim como Sartre (2010) ensina “O quietismo é a atitude daqueles que dizem: ‘Os outros podem fazer aquilo que eu nao posso’ (...) só existe realidade na ação.’” (pp. 41-42)

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Porém, a possibilidade de despertar do anonimato re-vela a possibilidade de refletir sobre a ampliação das pos-sibilidades existenciais, quer dizer, para ser visto é neces-sário ser preciso no tempo e no espaço. Para ser visto, o ser humano precisa se ver e se reconhecer, sem depender do reconhecimento externo do que faz, de quem é e do lu-gar a que pertence. No entanto, há de se considerar, nesse momento, os casos de pessoas que trabalham apenas pela necessidade financeira e que trocariam prontamente de atividade profissional se recebessem mais. Por isso faz-se importante a reflexão do tédio existencial no contexto do trabalho, pois “não somos mais capazes de nos situar no mundo porque nossa própria relação com ele [mundo] foi praticamente perdida” (Svendsen, 2006, p. 20).

3. A Satisfação é Encontrada no Ser, Ter ou no pa-recer?

O homem busca a satisfação das necessidades e a ex-pressão das próprias emoções. E, por muitas vezes, acre-dita que, se for considerado bem-sucedido profissional-mente ou se ganhar muito dinheiro, garantirá seu lugar de pertencimento. Adota então, várias estratégias para manter o status quo, tornando-se aprisionado pela ideia de que para ser visto e reconhecido, precisa dedicar seu tempo somente ao trabalho. Ou quando sua competên-cia é testada e a insegurança se instala, o olhar do outro é perseguido como um pedido de aprovação, e o ser hu-mano sente necessidade de ser visto e confirmado não por quem é, mas pelo que conquistou. Dessa maneira, o ter e o parecer se tornam mais importantes do que o ser.

Sabe-se que tudo depende do grau e, em caso de pes-soas que trabalham demasiadamente, o excesso causa a falta, pois ao mergulhar em seu trabalho, o workaholic não precisa se submeter ao olhar profundo do próprio vazio existencial e, em contrapartida, dar-se-á um luto de sig-nificados do tempo e do espaço que ocupa. O tédio será mantido. O vazio perdurará e a solidão se manifestará, independentemente do que fizer ou produzir.

Nesse ponto, o ocupar-se pode ser vivido própria ou impropriamente, mas “(...) tanto em um quanto o outro há a possibilidade de autenticidade” (Seibt, 2008, p. 501). Assim, a inautenticidade surge quando o ser não se apo-dera de seu projeto existencial, quando procura nos en-tes o significado de sua existência, quando não se cons-cientiza da finitude e quando enfatiza o ter e o parecer. O eu é dito pelo impessoal, que foge de si, e se percebe por meio de suas ocupações, ou seja, o ser se dilui nas ocupações diárias e desvela seu jeito inautêntico de ser, manifestando-se em três constituições fundamentais: a facticidade, a existencialidade e a ruína, que diz res-peito a se lançar na cotidianidade e no anonimato, isto é, “(...) ele [Dasein] vegeta na banalidade das ocupações corriqueiras, desviando-se de si mesmo e do projeto on-tológico” (Costa, 2010, p. 156).

Nesse caso, Costa (2010) aponta que a ocupação ocorre por uma aproximação de acordo com o Dasein, que ne-cessita de um sentido para sua vida, e a maneira como absorve ou não o tempo orienta também a forma de exis-tir no mundo. O autor ainda acrescenta que:

O homem contemporâneo é dominado pelo processo técnico, no sentido de enxergar nele o único meio de sobrevivência e consequentemente de se adequar no mundo moderno, se diluindo em meio aos outros entes, se deixando arrastar pela vida inautêntica em meio aos objetos que manipula (p. 155).

O trabalho não é um fim em si mesmo, mas unica-mente um meio para alcançar outra finalidade (Ribeiro & Leda, 2004). É no contexto em que o sentido é deposi-tado nos objetos e não na finalidade da vida que pode-mos compreender a perda de significação que Giovanetti (2002, p. 99) descreve como “(...) a ausência de rumo que dê significado ao ato”. Portanto, para o mesmo autor, o sentido é expresso na direção que se imprime ao vi-ver algo e, colocar sentido nas coisas é, então, falsear o problema. De acordo com Ribeiro e Leda (2004, p. 77): “Ao longo dos tempos, identificam-se duas visões contra-ditórias do trabalho que convivem nos mesmos espaços, e, por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos am-bíguos em relação a sua vida profissional.”

Por muito tempo o significado de trabalho foi asso-ciado ao fardo e sacrifício, e sua concepção como fonte de identidade e autorrealização humana foi constituída a partir do Renascimento. Então, “constata-se (...) que o trabalho apresenta duas perspectivas distintas. A primei-ra referente a um caráter negativo; e a segunda a uma di-mensão positiva” (Ribeiro & Leda, 2004, p. 77).

No entanto, na pós-modernidade, percebe-se a reti-rada do valor positivo do trabalho e vive-se um momen-to histórico de esvaziamento de seu significado, ou, nas palavras de Ribeiro e Leda (2004, p. 80): “há um descon-forto que, conforme as circunstâncias a serem vividas, vai desencadeando adoecimento psíquico e somático nos indivíduos”.

4. O Esvaziamento do Significado e o Tédio

O esvaziamento do significado de trabalho associa-se diretamente ao tédio, pois abrange tanto a perda de defi-nições pessoais quanto o esgotamento de sentido na vida e na relação com o mundo. Albom (1998, p. 48) aponta a lição de seu professor Morrie:

Tanta gente anda de um lado para outro levando vi-das sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo quando ocupadas em coisas que julgam importantes. Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-

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-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos empenhando na criação de alguma coisa que tenha alcance e sentido.

O tédio é compreendido como restrição da liberda-de existencial pela qual há evidência na dificuldade de ação, ou seja, torna-se subjacente à maioria das ações hu-manas corriqueiras, com um caráter positivo e negativo. Por conseguinte,

O tédio está associado a uma maneira de passar o tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consumido. [...] Não sabemos o que fazer com o tempo quando esta-mos entediados, pois é precisamente então que nossas capacidades ficam inertes e nenhuma oportunidade real se apresenta (Svendsen, 2006, p. 24).

Além disso, cabe salientar a diferença entre o tédio do senso comum – o situacional – e o tédio existencial. O primeiro é o estado de ficar entediado e responsabili-zar outrem pela dificuldade da ação. O segundo é ser en-tediado e relacionar-se ao vazio existencial. Em geral, o tédio situacional manifesta-se quando não se pode fazer o que se quer ou em situações em que o indivíduo pre-cisa fazer o que não quer e, consequentemente, surge a necessidade de passatempos. Para Kirchner (2007), pas-satempos têm o objetivo de aniquilar o tempo do mundo e são resultados de um tempo que não é pensado, sendo possível inferir que o homem não pode compensar o tem-po em suas ocupações.

Para Svendsen (2006), o tédio se caracteriza por uma condição de desorientação que se apresenta no estado de tédio profundo. O tédio se faz entediante, porque pa-rece algo infinito. É capaz também de revelar a própria finitude da existência. O tédio, em comparação à morte, assemelha-se a uma espécie de antecipação fúnebre, pois tédio tem relações com a finitude e com o nada. “É uma morte em vida, uma não vida” (p. 43).

Como dito anteriormente, reflete-se sobre indivíduos que procuram se ocupar, porque a ocupação se torna um jeito de evitar o vazio provocado pelo tédio. Desse modo, o que mais importa não é a atividade com a qual se ocu-pam, e, sim, como a ocupação em si acontece. Portanto, o passar o tempo pode ser considerado uma tentativa de se evitar o tédio, ao se procurar qualquer coisa com a qual se possa consumir o tempo. O ser humano preenche o tempo com a apropriação cotidiana e a prática dos entes, o que caracteriza o papel de cada pessoa na contemporaneidade (Costa, 2010), porém, confunde a ocupação com evitação e, nas palavras de Feijoo (2000, p. 113), “(...) o eu se perde quando se paralisa uma tentativa de resolver o inevitá-vel, isto é, a situação paradoxal da existência humana”.

No tédio, o Dasein é aprisionado no tempo, em um va-zio que parece ser impossível de ser preenchido. Svendsen (1970, p. 32) menciona que:

O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto, atacam-se os sintomas, em vez de atacar a própria doença, e procuramos todas as espécies de signifi-cados substitutos.

O ficar entediado ocorre porque falta um significado e um propósito, e a tarefa do tédio é atrair a atenção exa-tamente para essa situação. Portanto, o trabalho é perce-bido como a fonte de supressão temporária dos problemas do cotidiano, da existência inautêntica que se ocupa dos entes presentes no mundo, mas não reflete sobre a exis-tência destes. Assim, conforme nos afirma Costa (2010, p. 153): “A cotidianidade do ser-aí caracteriza em certo sentido a ocupação que se torna deficitária, ao passo que, o que está em jogo não é um intento ontológico, mas sim a manualidade do instrumento em si mesmo.”

Em casos daqueles que trabalham demasiadamente, os workaholics, pode-se inferir que, no discurso de “não ter tempo para nada”, privam-se de tempo para tudo o que não está relacionado ao trabalho e denunciam que suas escolhas direcionam-se à dedicação profissional em de-trimento a outros afazeres que poderiam agregar em seu projeto existencial.

Para Spanoudis (1976), a razão pela qual o modo de viver, hoje, vivencia e propaga o tédio pode ser compre-endida pela alienação com que a vida é levada. Dessa maneira, trabalhando demasiadamente ou abusando de passatempos é que o homem busca a libertação de sua vida monótona e estagnada – justamente para preencher seu vazio existencial. Esse vazio sem significado é cha-mado por Matos (2007) de tempo patológico, que consi-dera o estresse como ideal, uma vez que, na monotonia, o tempo não passa, pois o ser está alienado na perda do sentido das ações.

A ilusão de promoção da felicidade divulgada pelos meios de consumo, pela qual se percebe um consumo ili-mitado, impede a reflexão. Assim, a relação do ser com o trabalho deixa de ser de produtividade e ação e torna-se reprodução, uma inatividade na qual se observa a falta de sentido, gerando um mal-estar que conduz ao tédio, o que leva a uma desvalorização de si, das relações e do próprio trabalho (Matos, 2007). Falta tempo para se vi-venciar o tédio e nada pode preencher totalmente o vazio existencial que o ser humano deve assumir com respon-sabilidade. Falta tempo para ser.

De acordo com Giovanetti (2002), o contexto atual é marcado também pela transformação de uma consciência política a uma consciência narcísica, em que a centrali-dade sobre o eu passa a definir a orientação de todas as ações do indivíduo moderno, ao ponto de excluir o ou-tro de sua vida. Consequentemente, na pós-modernidade, as desordens neuróticas – tratadas pelos terapeutas do início até os meados do século XX – foram substituídas pelas desordens narcísicas, que se caracterizam por um

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mal-estar longo e indefinido e, naturalmente, o esvazia-mento dos significados da existência e da vida cotidiana. Ainda segundo o autor, o grande sintoma, na vida mo-derna, pode ser bem-representado pela dificuldade de se assumir o vazio existencial.

5. O valor do vazio fértil

Van Dusen (1977) apresenta comparações entre a cul-tura ocidental e oriental, afirmando que, no Oriente, o vazio é confortável e familiar, podendo ter um valor má-ximo em si mesmo e possibilitando a produtividade, ao contrário do mundo ocidental em que espaço vazio sig-nifica desperdício – a não ser que seja preenchido com ações, uma vez que é muito comum, na sociedade ociden-tal, preencherem-se esses espaços também com objetos ou até mesmo deixar que as ações dos objetos preencham os espaços dos indivíduos. E o autor continua: “O vazio é o centro, e o coração da mudança terapêutica” (p. 125).

Assim, trabalhar na sociedade pós-moderna parece algo indiscutível. A criança, desde pequena, é questiona-da sobre o que quer “ser” quando crescer, sendo que “ser” tem o sentido de executar uma tarefa que deve, necessa-riamente, contribuir para a sociedade – direta ou indi-retamente. Questionar uma criança sobre qual profissão executará no futuro também lhe mostra a importância de preparar o seu devir, no aqui e agora, com estudo, expe-riências, em prol dessa parte do tempo chamado futuro. Porém, na maioria das vezes, não é possível ser astronau-ta, jogador de futebol, atriz de novela, como aquela criança previa e, para sobreviver em uma sociedade capitalista, o adulto tem a necessidade de trabalhar em cargos que não são aquele em que de fato esperava trabalhar. Com isso, frustra-se e, obrigado a trabalhar para sobreviver, passa a enxergar o trabalho como uma ocupação e o tempo do aqui-e-agora como algo a ser consumido ao seu máximo, visando a um vivenciar projetado para um futuro previa-mente estabelecido.

Quando o trabalho é satisfatório, pode-se pensar na combinação entre diversos fatores, tais como valores, experiências e objetivos que variam de acordo com cada um e com cada etapa da vida. Isso não significa que, ne-cessariamente, a satisfação leve à estagnação, mas pode ser também um motivador para busca de novas experi-ências que gerem significados. Porém, para que isso re-almente se torne eficaz é necessário participar de todo o processo, entrar em contato com a angústia, reformular as questões existenciais e dar vida a novos significados ou ressignificá-los. Entretanto, não são muitos os que con-cluem o processo sem passar pela obscuridade do tédio.

A maioria dos indivíduos que se percebem entediados não se permite vivenciar e desfrutar o tempo de maneira mais prazerosa e consomem o tempo do mundo como se fosse o mesmo. O trabalho torna-se o mesmo, bem como a falta de sentido é a mesma. O significado do trabalho

é vazio, e o homem se automatiza sem encontrar sentido para suas ações. O trabalho é comumente associado a um meio de sobrevivência, no qual nem sempre é possível questionar as demandas. Dessa forma, aquele se conforma de que no futuro poderá mudar essa situação e acredita ou deseja acreditar que eliminará o tédio com o passar do tempo. Concebe como um dever continuar aceitando as coisas como estão, ainda que esteja insatisfeito.

6. O Homem e a Transcendência

Sentir-se angustiado e cansado são os primeiros si-nais para entrar em contato com o tédio existencial, e não se reconhecer naquilo que se faz automaticamente é essencial, pois, uma vez que o homem se questiona e reflete sobre o sentimento de esvaziamento e de existên-cia inautêntica no mundo e por meio da transcendência, encontra a possibilidade de refletir sobre sua existên-cia no aqui-e-agora. Isto é, o que está sendo feito dele e como está se apoderando de sua existência pode provocar transformações, bem como descobertas dentre inúmeras possibilidades de ser e estar no mundo. E como Perdigão (1995, p. 115) cita: “somos livres, resta-nos descobrir o que devemos fazer com essa assombrosa liberdade”.

Sabe-se que a tônica existencial é a crença de que o homem é angústia. Desse modo, faz-se necessário ficar atento à sua condição existencial para que encontre cada vez mais sentido nas atividades, a fim de ressignificá-las. E como aponta Kundtz (1999), é possível criar no cotidia-no alguns momentos especiais de pequenas pausas que permitam a ressignificação. Mas nem sempre a reflexão é possível diante das necessidades do dia a dia. No mundo pós-moderno, há uma grande exigência de que as pessoas estejam em constante atividade, ainda que para exercê-la se abra mão de muitas outras coisas. Mas será que seria necessário parar dias ou semanas para refletir? Às vezes, parar por apenas alguns minutos pode permitir que a re-flexão ocorra ou se apoderar do vazio existencial como Perls (1979, p. 231) preconiza: “Vazio fértil, fale através de mim. Em estado de graça quero ver. Benção e verdade sobre mim. Face a face com você”.

Para entender o vazio, faz-se necessário verificar dois componentes: o antropológico e o social. O componen-te antropológico é a perda de sentido, ou seja, as coisas que preenchiam o cotidiano dos indivíduos vão se esfa-celando, e a vida começa a desmoronar. O componente sociológico do problema do vazio da vida humana, por sua vez, é expresso pelo esvaziamento das relações in-terpessoais, o que provoca um desaparecimento de laços pessoais entre os homens. Esse esvaziamento provoca a exclusão do outro e exacerba mais o individualismo pre-gado pela sociedade contemporânea (Giovanetti, 2002).

Para Giovanetti (2002), pensar na superação do vazio é tentar ressignificar esses dois componentes que o ca-racterizam. No plano antropológico, torna-se necessário

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construir um projeto de vida; no plano sociológico, res-significar as relações interpessoais e buscar a sedimen-tação da intimidade. Por isso, para o autor, “(...) os rela-cionamentos pessoais estão na base de um redimensiona-mento da sociedade individualista para uma sociedade solidária” (p. 100).

Ao se sentir ameaçado pelo vazio, o Dasein tenta se abster, retirando-se do contexto ameaçador, ou busca preenchê-lo por meio do trabalho; o vazio então cresce e atenua a vontade. No entanto, quando o indivíduo aceita que o vazio é fértil, pode descobrir coisas surpreendente-mente novas dentro de si. Assim, o vazio emerge na psi-coterapia para que o indivíduo possa refletir sobre seu feitio de existir, já que “o vazio nem é nada, nem é algo. É o vazio fértil” (Van Dusen, 1977, p. 129).

O indivíduo que vive constantemente o enfadonho tédio e que não consegue refletir sobre como vivencia o tempo, ocupando-se sobremaneira com diversas tarefas, evita o encontro consigo e com o vazio existente.

No geral, o tédio representa a realidade subjetiva que desordena o mundo e coloca o homem frente a um tipo de morte, a morte da significação. Significação esta necessária à vida humana e à qual corremos em direção, na contramão do tempo, por meio das novi-dades da modernidade como via de solução (Pinheiro, 2007, p. 162).

O tédio existencial significa a morte de possibilida-des, pela qual surge a perda de significados na vida. Para transcendê-lo, o homem tem de ressignificar o sentido de sua vida e não estruturar sua vida somente na má-fé. Cabe enfatizar que é possível ser inautêntico e agir sem má-fé, pois a má-fé é a manifestação da coisificação. Sendo as-sim, como não há uma atitude humana sem intenciona-lidade, o grande problema é a usura e quando o homem age como se não soubesse da própria intenção. Quando o ser humano perde a ética, perde também o respeito por si e a discriminação de suas necessidades. Dessa manei-ra, torna-se imprescindível que compreenda que a ética é a própria condição humana que permite a dignidade de ser livre e de assumir suas escolhas.

A vida é uma série de puxões para a frente e para trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coi-sas como inquestionáveis, mesmo sabendo que não devemos aceitar nada como absoluto (Albom, 1998, pp. 44-5).

Além disso, em concordância com a proposta hei-deggeriana, faz-se necessário recuperar o sentido esque-cido do ser, reconhecendo-se o tédio como um paradoxo que contém tanto o problema quanto a solução para vida moderna, uma vez que o tédio é também um potencial

para futuras ressignificações. O tédio e a angústia do vazio fértil permitem a revisão do projeto existencial, pois o ser humano recebe o convite para que possa re-fletir sobre a necessidade de reconhecimento, aceitação e pertencimento. O significado é próprio; portanto, é preciso notar que não é o tempo que deve ser refém do trabalho; ao contrário, o trabalho existe somente por-que existe um tempo que deve ser vivido e vívido para que o ser não seja esquecido.

Referências

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Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

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Karina okajima Fukumitsu - Psicóloga, psicoterapeuta, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora convidada pelo departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade São Paulo-USP/SP). Mestre em Psicologia Clínica (Michigan School of Professional Psychology-Center for Humanis-tic Studies - EUA). Especialista em Psicopedagogia (PUC-SP) e em Gestalt-terapia (Sedes Sapientiae-SP). Endereço para correspondência: Avenida Fagundes Filho, 145 - sala 96 (Edifício Austin Office Center) Vila Monte Alegre. São Paulo-SP - Brasil - CEP: 04304-010. E-mail: [email protected]

Júlia Yoriko Hayakawa, Suzan Emie Kuda, Elisa Harumi Musha, Tauane Cristina do Nascimento, Bruna Bezerra oliveira, Elisabete Hara Garcia Rocha, Daiany Aparecida Alves dos Santos, Karen Ueki, lucas Palhari Vasconcelos - Alunos do 8º semestre de graduação do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.

Recebido em 23.05.2012Aceito em 19.11.2012

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Ana M. M. C. Frota

ORIGENS E DESTINOS DA AbORDAGEM CENTRADA NA pESSOA NO CENÁRIO bRASILEIRO CONTEMpORÃNEO:

REfLExõES pRELIMINARES

Origins and Destinations of the The Person-Centered Approach in the Brazilian Contemporary Scenario: Introductory reflections

Orígenes y Destinaciones de lo Enfoque Centrado en la Persona en escenario brasileño contemporáneo: Reflexiones Preliminares

AnA MAriA Monte coelHo FrotA

Resumo: Este artigo trata de reflexões introdutórias acerca das origens e dos destinos que vêm se delineando para a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). Para tanto, discute os paradigmas que sustentaram o surgimento da teoria rogeriana, a partir de um contexto histórico determinado pelo projeto modernista. Analisa o surgimento da Psicologia Humanista como a terceira força, contrapondo-a ao Behaviorismo e Psicanálise. A seguir, passeia sobre a teoria rogeriana, discutindo seus conceitos fundamen-tais, que atravessam pelas diferentes fases do trabalho de Rogers. Finalmente, faz um apanhado teórico das aproximações pos-síveis entre a ACP e alguns filósofos fenomenólogos, sendo escolhidos Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, tal como têm sido trabalhados por alguns estudiosos brasileiros. O artigo procura clarificar as possibilidades de continuação da ACP a partir des-tes encontros, colocando o problema de se estar construindo algo tão novo, que não se possa colocar alinhado com a Aborda-gem Centrada na Pessoa. Palavras-chave: Abordagem centrada na pessoa; Psicologia humanista; Fenomenologia.

Abstract: This article brings the introductory reflection on the origins and destinations that are being constructed for the Person Centered Approach (PCA) in the brazilian scenario. This paper discusses the paradigms that supported the emergence of the Rogerian theory from the historical context of the modernist project. It makes the analysis of the emergence of humanis-tic psychology as a third force as opposed to Behaviorism and Psychoanalysis. It presents Rogers’ theory and its fundamental concepts in the different stages of the work of Rogers. Finally, it presents some possible approaches between the Person Centered Study and some phenomenological philosophers, been chosen Husserl, Merleau-Ponty and Heidegger, as they have been pre-sented by some brazilian scholars. The work search to clarify the possibilities of continuing the Person Centered Approach by those relations, pointing to the direction of the construction of something so new that it cannot be aligned with the Person Centered Study. Keywords: Person centered approach; Humanistic psychology; Phenomenology.

Resumen: En este artículo se trata de reflexiones introductorias sobre los orígenes y destinos que han sido delineados para el Enfoque Centrado persona (PCA). Los paradigmas de discusión que apoyaron el surgimiento de la teoría de Rogers, a partir de un contexto histórico determinado por el proyecto modernista. Analiza el surgimiento de la psicología humanista como una tercera fuerza, oponiéndose al conductismo y el psicoanálisis. A continuación, dar un paseo en la teoría de Rogers, discutir los conceptos fundamentales que atraviesan las diferentes fases de la obra de Rogers. Por último, se ofrece una visión general de las similitudes teóricas posibles entre los países ACP y algunos filósofos fenomenólogos, siendo elegido Husserl, Merleau-Ponty y Heidegger, como se ha trabajado por algunos estudiosos brasileños. El artículo trata de aclarar las posibilidades de continua-ción de ACP a partir de estas reuniones, poner el asunto a la construcción de algo tan nuevo, que no se pueden poner de acuer-do con el Enfoque Centrado en Persona. Palabras-clave: Enfoque centrado en la persona; Psicología humanística; Fenomenología.

1. A Ciência Moderna e a psicologia

Os paradigmas clássicos do método científico in-fluenciam fortemente as idéias e práticas de uma época. Oferecem ao mundo uma certeza extremamente ansia-da de progresso, respostas objetivas, ordem, liberdade e justiça social. Segundo Dahlberg, Moss e Pence (2003), o projeto sustentado e defendido pela modernidade, ber-

ço do surgimento da ciência clássica, compreende o ser humano totalmente realizado, maduro, independente, autônomo, livre e racional. Ressaltam que: “(...) o projeto da modernidade tinha objetivos ambiciosos: progresso, li-near e contínuo; verdade, como a revelação de um mundo ‘conhecível’, emancipação e liberdade para o indivíduo – social, política e culturalmente” (p. 33).

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Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa

Nesta direção, a busca da razão constitui-se no cami-nho da busca da essência humana e das verdades da na-tureza. Assim, o progresso e a tecnologia caminham de mãos dadas em direção à prometida felicidade. A partir destas reflexões torna-se muito clara a grande aceitação e difusão do projeto da ciência moderna, uma vez que trazia embutida no seu paradigma, uma promessa de de-senvolvimento, ordem e progresso social.

Com a modernidade, incrementada que foi pela in-venção da imprensa, pelas conquistas das grandes na-vegações, pela revolução industrial, pela transformação social e familiar, pelas mudanças do sistema econômico mundial, dentre outras, ofereceu-se ao mundo a promes-sa da produção de um saber construído a partir de uma metodologia objetiva, quantificável, infalível. Ora, esta promessa encheu os olhos e aqueceu o coração de todos aqueles que desejavam respostas para suas questões.

A sociedade sonhava com o dia em que pudesse re-solver seus problemas mais urgentes como a cura de do-enças, a produção de alimentos suficiente para todos, a busca de uma justiça social e, principalmente, a supera-ção das crenças religiosas que, por muito tempo domina-ram as mentes humanas, impedindo-as ou dificultando na produção de um saber que se sustentasse em si mes-mo. A criação de um método científico foi extremamente bem-vindo na sociedade da época, sendo profundamen-te marcada pela filosofia de Descartes, pela metodologia científica de Bacon e pela teoria matemática de Newton (Feijoo, 2000).

A partir da análise de Feijoo (2000), para Descartes, o mundo material deveria ser estudado com absoluta ob-jetividade, constituindo, a partir de então, a necessida-de de neutralidade do pesquisador. Além disso, criou-se um método de busca de saber, ou seja, de produção de conhecimento, que seguisse uma metodologia objetiva, passível de ser repetida, testada e generalizada, crível e infalível. Como resultado, a ciência foi aceita como a única via de acesso a todo e qualquer conhecimento, passando a desvalorizar qualquer saber produzido por outros caminhos. A crença existente era a de que o mé-todo científico descrevia corretamente a realidade, sen-do adotada como modelo pelos saberes que se preten-dessem científicos.

Assim, a racionalidade deveria superar qualquer pai-xão na busca dos saberes científicos a partir dos paradig-mas clássicos da ciência moderna. Além disso, perseguin-do a herança newtoniana, o mundo deveria ser compre-endido como um grande complexo, formado por partes contínuas que, somadas, resultariam numa totalidade. Para atingir uma compreensão e posterior domínio do todo, seria necessário desmembrá-lo em partes, cognos-cíveis através de um método objetivo, seguido por cien-tistas neutros e racionais. Tal busca seria possível uma vez que as leis do universo seguiriam uma causalidade mecanicista, e seriam regidas por uma temporalidade linear – com presente, passado e futuro bem marcados

– autônoma e independente do observador; assim como por um espaço constante e em repouso. Uma figura me-tafórica seria “a imagem do universo (...) comparada a um grande relógio gigantesco, inteiramente determinístico” (Feijoo, 2000, p. 19).

A busca de verdades pela ciência moderna é marca-da pelo estatuto de cientificidade, sendo garantida pela construção de conceitos logicamente parametrados e pela ausência de intimidade entre homens e mundo. O modo técnico pelo qual o homem moderno habita o mundo tem estreita relação, denuncia Critelli (1996), com sua neces-sidade de superar a insegurança do seu ser ou, senão, esconder esta condição. Porém, não é porque os homens criaram métodos, técnicas e processos que nos permitem controlar alguns fenômenos e criar outros, que se alterou a condição ontológica de inospitalidade no mundo e de liberdade humana.

O modelo de pensamento e produção de conheci-mentos da ciência moderna marcou profundamente a sociedade ocidental desde o século XVIII até meados do século XX. A partir daí, o projeto da modernidade vem sofrendo grandes abalos na sua tão propagada pretensão da busca de verdades universais. Aos poucos, a huma-nidade foi se dando conta de que a ciência moderna não seria capaz de compreender e acomodar a diversidade e a complexidade da experiência humana concreta. Na ver-dade, “o projeto da modernidade de controle através do conhecimento, a avidez por certeza, implodiu” (Dahlberg et al., 2003, p. 36).

Chamou-se de saber pós-moderno aquele estado da cultura construído após as transformações que afeta-ram as regras do jogo da ciência, da literatura e das ar-tes a partir do século XIX (Lyotard, 1989). Seu saber não se propunha ser um instrumentalizador de poderes. Ele refina a sensibilidade para o diferente e para supor-tar o incomensurável. Sob uma perspectiva pós-moderna, não existe conhecimento absoluto, realidade cristalizada esperando pra ser conhecida e domada; um ensinamen-to universal, que se faça fora da história ou da sociedade (Frota, 2007). No lugar disso, seu projeto propõe que o mundo e o conhecimento sejam vistos como socialmente construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos engajados na construção de significados, em vez de enga-jados na descoberta de verdades. Torna-se possível afir-mar, deste modo, que não existe somente uma realidade, mas várias. O conhecimento não é único, e sim múltiplo, variável, fragmentado e mutável, inscrito nas relações de poder, que determinam o que deve ser considerado como verdade e falsidade (Lipovetsky, 2004; Goergen, 2005). A verdade é compreendida como uma correspondência da verdade, uma representação falseada, mas que, como tal deve ser tomada.

Na origem das psicologias existe uma tendência a atu-ar como se os saberes psicológicos fossem “grandes narra-tivas”, e, como tal, representassem o modelo essencialis-ta da natureza humana. As grandes teorias psicológicas,

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encarnadas por seus seguidores, assumem seus saberes como se eles fossem “os verdadeiros” e representassem “o modelo correto” da realidade. Contudo como alertam Dahlberg et al. (2003), “em vez de serem vistas como re-presentações socialmente construídas de uma realidade complexa, uma maneira selecionada de como descrever o mundo, essas teorias parecem se tornar o próprio terri-tório” (p. 54). O risco daí advindo é esquecermos a con-textualização histórica do saber ou, ainda, perdermos de vista a subjetividade concreta do humano. Perderíamos de vista o homem, ficando dele somente sua re-presentação, falseada, que é, via teoria. Além deste risco, não podemos esquecer que as grandes narrativas contam as histórias dos saberes como se fossem únicos e universais, já repu-diadas pelo estatuto pós-modernista, por representarem perspectivas teóricas descoladas da realidade e empeci-lhos para a compreensão dos sujeitos reais em situações históricas concretas.

Vivendo numa condição pós-moderna, o conheci-mento e os diversos saberes solicitam que abandonemos as grandes narrativas teóricas e nos contentemos com objetivos locais e mais práticos. Para Heywood (2004), isso significa abandonar as esperanças mais profundas do pensamento iluminista: que o que está para ser des-coberto seria, de fato, um mundo ordeiro e sistemático, idêntico para cada um de nós, sendo possível estabe-lecer um acordo universal com a natureza. O que fica, então, é a busca de conhecer verdades, multiplicidades de narrativas, saberes construídos na e pela realidade social concreta.

A partir destas reflexões, pensemos no que isso interfere nos nossos pensares e fazeres psicológicos, para nos achegarmos na nossa questão maior: origens e destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, no ce-nário do Brasil.

Também para a Psicologia foi importante o método científico, como possibilidade de se fazer aceita e rece-ber o estatuto de ciência, como afirma Capra (1983). Deste modo, a adaptação do objeto de estudo da psicologia, o psiquismo humano, aos princípios da mecânica clássi-ca de Newton fez-se no sentido de busca de cientificida-de. É assim que a Psicanálise de Freud e o Behaviorismo de Skinner se enquadram no mecanicismo da ciência positivista.

Capra (1983) tem razão ao dizer que a primeira tó-pica de Freud seguia um modelo mecanicista. Como o próprio Freud afirma no seu Projeto de uma psicologia científica, sua intenção era representar os processos psí-quicos como estados, quantitativamente determinados. Deste modo, pelo menos de princípio, é lícito afirmar que Freud parece respeitar e seguir os princípios apregoados pela ciência moderna, os quais, certamente, lhe garan-tiriam respeitabilidade e divulgação. Coelho Jr. (1995) também aponta a origem mecanicista dos trabalhos de Freud, frisando o contexto histórico deste início. Deixa clara a evolução histórica da metapsicologia e da psica-

nálise, e seu distanciamento, cada vez mais nítido, da herança cientificista.

Também o behaviorismo skinneriano segue o modelo científico. Aliás, para Skinner, seu objeto de estudo era o comportamento, aquele que poderia ser observado e quantificado. A mente existia somente enquanto expres-sa pelo comportamento. Na verdade, o behaviorismo de Skinner se adequa completamente ao método experimen-tal: a relação causa-efeito é inquestionável, as causas dos fenômenos psíquicos encontram-se no mundo externo, o tempo é linear, a força é sempre externa (Skinner, 1985). Para os behavioristas, a objetividade é imprescindível e deve ser garantida pelo controle das condições que regem as relações sujeito-objeto. Por sua vez, as técnicas com-portamentais clássicas “possuem um status físico para o qual as técnicas usuais da ciência são adequadas e per-mitem uma explicação dos comportamentos nos moldes da de outros objetos explicados pelas respectivas ciên-cias” (Skinner, 1985, p. 42).

A Psicanálise e o Behaviorismo formaram as duas primeiras forças dentro da psicologia. A terceira força – a Psicologia Humanista – surgiu como reação ao panora-ma da psicologia norte-americana, dominado pela leitura mecanicista e determinística dominantes (Boainain Jr, 1998). Maslow (2007) foi um dos principais responsáveis pela criação da Psicologia Humanista, que pretendia, de início, unir tendências que se opusessem ao behavioris-mo e psicanálise.

Deste modo, ao contrário do Behaviorismo e da Psicanálise, a Psicologia Humanista não se identificou com o pensamento de determinado autor ou escola, es-pecificamente. Consistia, na verdade, de um discurso congregado de diversas tendências, unidas especialmen-te pela oposição às abordagens citadas, assim como pela convergência em torno de algumas propostas comuns, tais como um compromisso inalienável com uma visão de homem orientada para a saúde e desenvolvimento pessoal.

A partir daí, torna-se clara a negação da perspectiva pessimista e psicopatologizante da metapsicologia freu-diana. Além disso, a terceira força assume a perspecti-va holística e organísmica do ser humano e adota uma visão fenomenológica e existencial para a compreensão do homem.

Assim, a volta ao humano como objeto de estudo é uma das bandeiras do movimento, importante a ponto de fornecer-lhe o título designativo. Qualidades, e ca-pacidades humanas por excelência, tais como valores, criatividade, sentimentos, identidade, vontade, cora-gem, liberdade, responsabilidade, auto-realização, etc., fornecem temas de estudo típicos das abordagens humanistas (Boainain Jr, 1998, p. 31).

A Psicologia Humanista defende uma visão globali-zante do ser humano, enfatizando a vivência das emo-

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ções, a subjetividade, a intuição e as potencialidades. Provavelmente como resultado da exacerbação do senti-mento, da vivência e da experienciação, adotadas como métodos de trabalho, ela foi duramente acusada de ir-responsável, de teoricamente vazia (Fonseca, 1998, 2011; Moreira, 2009b). Segundo Fonseca (1998), tais críticas acabaram sendo positivas, uma vez que geraram estudos dentro do movimento humanista brasileiro, buscando esclarecer e fortalecer sua fundamentação, assim como possíveis distorções.

O movimento humanista teve forte influência das fi-losofias existenciais e da fenomenologia. Assim, “assu-me e propõe a inevitabilidade da adoção de um modelo de homem, ou seja, uma concepção filosófica da natureza humana, como ponto de partida e princípio norteador de qualquer projeto de construção de psicologia” (Boainain Jr, 1998, p. 31). Além disso, prioriza o fenômeno, em de-trimento das técnicas e teorias, centrando-se na “rela-ção fenomenativa existencial atual entre seus agentes” (Fonseca, 1998, p. 12).

A prática humanista parece ter sido desvirtuada pelo laisser faire, pelo fetiche da vivência pura, caindo em des-crédito na academia. Embora não concorde de todo com a crítica que Figueiredo (1991) faz à Psicologia Humanista, assim como a generalização que faz da prática dos psico-terapeutas de base humanista, ele tem razão ao inserir a psicologia humanista na matriz vitalista e naturista. Sua crítica dirige-se à ausência de um construto teórico epistemológico, contrabalançando razão e sentimento. Como resposta a esta falta, muitos profissionais com for-mação humanista (Amatuzzi, 1989; Moreira, 1990, 2007, 2009a, 2009b; Advíncula, 1991; Holanda, 1998; Messias & Cury, 2006; Dutra, 2008) iniciaram um período muito fértil de produção teórica, capaz de dar suporte à prática psicoterápica, através de pesquisas com base fenomeno-lógica e existencial.

Tentando nos aproximar dos sentidos das psicolo-gias humanistas/fenomenológicas-existencias, passare-mos a discutir a Abordagem Centrada na Pessoa, uma das abordagens psicológicas que teve seu berço nas ori-gens humanistas.

2. Abordagem Centrada na pessoa: Da Noção de Homem planetário à de Homem Mundano – De Rogers a seus Discípulos Contemporâneos

A obra de um autor tem muito das influências que ele sofre durante sua formação pessoal e profissional. Rogers teve grande influência de uma tendência bioló-gica de saber, justificando um pouco o que ele chama de tendência formativa. Acaba, por esta vertente, enfati-zando mais a natureza do que a cultura e a história do homem. Já a influência religiosa, que recebeu de sua fa-mília protestante, pode ser percebida na crença otimista da natureza humana, que sempre acompanhou seu tra-

balho. Além da Teologia, também se dedicou ao estudo da Psicologia, fazendo atendimento clínico e orientação psicopedagógica.

Para Rogers e Kinget (1977), existe no homem uma tendência atualizante, que o concebe como naturalmen-te livre e bom, sendo essencialmente dotado de uma capacidade para desenvolver-se positivamente. Assim, para Rogers, são as condições externas desfavoráveis que corrompem e adoecem o homem. Por ser o que existe de mais importante na sua teoria e prática psicoterápica, pressupõe, fundamentalmente, um respeito maior ao ser humano, por concebê-lo como um “organismo digno de confiança” (Rogers, 1976, p. 16). Afirma ainda Rogers e Kinget (1977, p. 52):

Quando a tendência atualizante pode se exercer sob condições favoráveis, isto é, sem entraves psicológi-cos graves, o indivíduo se desenvolverá no sentido da maturidade. Sua percepção de si mesmo e de seu ambiente, e o comportamento que se articula de acordo com estas percepções, se modificarão cons-tantemente num sentido de uma diferenciação e de uma autonomia crescentes, típicas do progresso em direção à idade adulta. A personalidade representará, portanto, a atualização máxima das potencialidades do organismo.

A compreensão empática, congruência e considera-ção positiva incondicional também são princípios fun-dantes da ACP, assim como a tendência atualizante. A capacidade de o psicoterapeuta colocar-se no lugar do outro, sem deixar de ser quem é, facilita o encontro entre pessoas. Já a congruência, ela significa a capaci-dade do psicoterapeuta ser autêntico em relação a seus sentimentos, referindo-se à pessoa que busca ajuda. Ser congruente, é ser genuíno, é ser fluido. “Quando somos congruentes conosco mesmo, nossas necessidades, nossos desejos e nosso curso de ação são uma coisa só”, afirma Bowen (1987, p. 65). Finalmente, a consideração positi-va incondicional, é caracterizada como a capacidade de aceitar o outro como ele é, não significando concordar com ele. Deste modo, “quando o terapeuta estima o clien-te, de uma maneira total, em vez de uma maneira con-dicional, então o movimento para a frente pode ocorrer” (Rogers, 1987, p. 68).

A influência do contexto sócio-cultural para a origem da teoria rogeriana é claramente descrita por Fonseca (1983):

A Abordagem Centrada na Pessoa surgiu e cresceu no seio daqueles para cujas mesas, carros e casas vai muito do que é expropriado do corpo e do ser, da casa e dos pratos daqueles em cujo seio nasceu a Pedagogia do Oprimido (p. 46).

A teoria de Rogers constrói-se a partir de uma di-mensão individual da pessoa, deixando-se perceber

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através da noção de “desenvolvimento do eu” (Rogers, 1961), enfatizando a polaridade individual em detri-mento da social. Também em seu livro Um Jeito de Ser, Rogers (1983) enfatiza a dimensão individual e subjeti-va da pessoa. Para Rogers (1961) a natureza humana é moralmente positiva. Segue acreditando que a pessoa plena seria aquela que conseguisse se deixar guiar pelo organismo, já que ele é mais sábio que a razão. Valoriza a influência social, enxergando, no entanto, uma oposi-ção entre indivíduo–sociedade, interior-exterior, objeti-vidade-subjetividade, deixando claro seu limite episte-mológico de compreender a indissociabilidade entre os pólos. Resumidamente, podemos afirmar que a noção de pessoa rogeriana pressupõe uma pessoa centrada, autô-noma, livre, individualizada.

O trabalho de Rogers vem sendo dividido em fases, a partir de características centrais, criando vertentes tam-bém distintas. Assim, múltiplas teorizações contemporâ-neas vêm sendo tecidas e novos caminhos sendo trilha-dos (Boris, 1987; Boainain Jr. 1998; Belém, 2004; Moreira, 2010). Deste modo, a partir do delineamento de seus pres-supostos, Rogers divulgou uma terapia que tinha a pessoa como centro do processo terapêutico, caracterizando sua primeira fase de trabalho, a fase não diretiva (1940-1950). Desde sempre enfatizou o respeito pelo outro, a impor-tância da relação com o cliente para além de sua sinto-matologia, a expressão emocional através, não somente do conteúdo verbal, mas do próprio corpo. O terapeuta deveria buscar uma relação genuína, empática, isenta de interpretações e julgamentos e, principalmente, adotan-do uma postura de consideração positiva incondicional dirigida ao cliente. A fase seguinte, reflexiva (1950-1957), ainda se centrava no cliente, colocando como única pos-sibilidade expressiva do terapeuta, respostas de apoio e compreensão ao que fosse apresentado.

Com o tempo, a postura do terapeuta rogeriano deixa de enfatizar a pessoa, como centro da relação, estabele-cendo um campo interativo entre a dupla. Esta postura caracteriza a posição experiencial da terapia rogeriana (1957-1970). Nesta nova postura, terapeuta e cliente fazem parte do processo. Como afirma Boainain Jr (1998): “Este novo centrar-se, focalizando a experiência do terapeuta, alternativo à anterior unilateralidade do centrar-se no cliente, descortinou toda uma ampla gama de possibili-dades expressivas para o terapeuta e veio tornar a terapia rogeriana muito mais bicentrada” (p. 85). Finalmente, na quarta fase da terapia rogeriana, o movimento dos gran-des grupos, fase coletiva (1970-1985), revelou um Rogers profundamente envolvido na formação de novos terapeu-tas e enriquecendo a prática da abordagem humanista.

Para Carrenho, Tassinari e Pinto (2010), o percurso da ACP no Brasil passou por fases: Pré-história (1945-1976), caracterizada pela pouca presença de trabalhos nesta abordagem; Fertilização (1977-1986), marcada pela presença de Rogers e sua equipe no Brasil, assim como a formação de profissionais, tais como Rachel Rosenberg,

que se dedicaram a promover eventos de treinamento profissional e workshops; Declínio (1978-1989), atraves-sado pelo luto trazido pela morte de Rogers e Rosenberg; Renascimento (90 até hoje), trazendo consigo um aumento significativo de profissionais que têm contribuído criati-vamente para a construção da ACP.

Conforme estudos de Carrenho et al. (2010), é visí-vel um movimento de expansão da ACP no Brasil. Cada um desses movimentos traz uma sustentação filosófica que caminha ao lado dos princípios básicos rogerianos. Porém, alguns estudos trazem também contribuições que, ao invés de caminharem bem ao lado da teoria da aborda-gem centrada na pessoa, introduzem novas teorias e me-todologias de prática psicoterápica e de pesquisa clínica. Encontramos seguidores de Rogers que têm ampliado sua perspectiva, criando uma nova metodologia de trabalho e pesquisa a partir de Husserl, Merleau Ponty e Heidegger, dentre outros. Nossas reflexões conduzem-nos, então, a pensar o limite existente entre uma aliança da ACP e esses filósofos referidos e uma necessária ruptura entre ambos, por um distanciamento de paradigmas.

Sabemos que Rogers leu Kiekegaard, adotando dele sua crença na experiência pessoal. De Buber, adotou a filosofia do diálogo. Porém, de acordo com a história da psicologia rogeriana – contada por autores contemporâ-neos brasileiros, como Belém (2000), Cury (1987), Fonseca (1998), Moreira (1990, 1997, 2009a, 2009b) –, não se pode afirmar que o pensamento de Rogers tenha sido fenome-nológico. Rogers sempre valorizou a relação cliente-tera-peuta, contudo sua visão de homem era a de um homem individual. Moreira (2009b) é clara ao afirmar:

Parece possível buscar afinidades entre as bases filosóficas fenomenológicas e/ou existenciais e o pensamento rogeriano como é desenvolvido na atualidade, mas não devemos nos iludir de que tais filósofos tenham influenciado a teoria rogeriana original. Afirmar que a fenomenologia influenciou a Abordagem Centrada na Pessoa (...) é um engano. No entanto, é possível considerar que as fenomeno-logias existenciais passaram a ter um papel funda-mental em muitas das vertentes atuais da Abordagem Centrada na Pessoa (p. 10).

Aqui começa um novo capítulo nos estudos e deri-vações da ACP: os movimentos dos seus discípulos nas suas aproximações com a fenomenologia. Mas não exis-te somente uma fenomenologia, ela também é múltipla.

3. A Abordagem Centrada na pessoa Marca Encontro com a fenomenologia – um processo em processo

A Fenomenologia surgiu no final do século XIX, rom-pendo com o modelo cartesiano e a perspectiva metafísi-ca, que afirmava a existência de uma verdade universal,

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pura e imutável, possível de ser alcançada pelo homem através da razão. Segundo Frota (1997), a fenomenologia aponta a “impossibilidade de se produzir um conhecimento científico universal, uma vez que a universalidade se re-duz a generalidades abstratas e a necessidade à freqüên-cia e repetição dos eventos observados” (p. 28).

A Fenomenologia surge em oposição ao Positivismo, em que o conhecimento é considerado válido apenas quando os conceitos são construídos a partir de parâme-tros lógicos e com a garantia de privação da intimidade entre os homens e o mundo. A Fenomenologia acredi-ta que o conhecimento é possibilitado, exatamente, por meio da aceitação desta intimidade e envolvimento entre homem e mundo. Pensar, para a Fenomenologia, signi-fica indagar, questionar, tentar compreender. Algo pro-cessual, parcial, relativo. Muito diferente do conhecer metafísico, que pretende “dominar” o conteúdo de uma matéria ou disciplina.

Para a metafísica, há a distinção entre o ser das coi-sas e a aparência destas. Sendo a aparência, para tal corrente, falaciosa, como se escondesse a verdadeira es-sência dos fenômenos. Já para a Fenomenologia, o que se mostra, ou seja, a aparência é o próprio fenômeno sujeito à produção de sentidos dados pelo telespecta-dor. Na sua aparição, o fenômeno mostra-se carregado de todos os sentidos a ele atribuído, que se interliga à história, cultura, sociedade, da qual faz parte. Em re-sumo, Fenomenologia refere-se ao estudo do fenômeno. Fenômeno, por sua vez, segundo Karwowski (2005), pode ser entendido no seu sentido estrito, como aparecer, ou aquilo que se mostra por si mesmo, partindo do grego phainestai. Deste modo, não existe um fenômeno puro, visto que a forma como o apreendo está diretamente li-gado aos meus valores, à minha história, o que colabora com a negação da neutralidade.

Segundo Critelli (1996), o pensar fenomenológico não é privilégio somente dos filósofos. A partir dos anos 50 do século passado, houve um grande desenvolvimento do enfoque fenomenológico para a Psicologia. O método feno-menológico passou a fazer parte do campo da Psicologia tendo como objetivo capturar o sentido ou mesmo o sig-nificado da vivência da pessoa, tal qual experimentadas na sua existência concreta. Contrária à idéia de verdade como veritas, a fenomenologia existencial busca conhe-cer a verdade como aletheia, como desvelamento. Desse modo, acredita que a verdade é sempre precária, incom-pleta, parcial. Seu método também não é o mesmo da ciência positivista, constituindo-se num interrogar-se constante. Na verdade, a fenomenologia surge como um contraponto à ciência mecanicista, acenando para um novo modo de se produzir conhecimento e, principal-mente, de ver o mundo.

Esta perspectiva surge rompendo com o modelo de ciência cartesiana e metafísica, que afirmava, conforme já dissemos, que a verdade é universal e imutável, que o conhecimento científico poderia ser apreendido sem fa-

lhas através de um método racional e objetivo. O méto-do fenomenológico vai buscar o sentido do ser do modo como este se dá. Deste modo, abandonando-se o método positivista, assim como a noção de causalidade, adota-se o método fenomenológico, que tem como objetivo alcançar o fenômeno em sua totalidade, tentando compreendê-lo a partir de um olhar específico.

Porém, ao se falar de um método fenomenológico de compreensão de um fenômeno, vemos que não existe uma única forma de se investigar. Como afirma Holanda (2001):

Não podemos falar simplesmente de pesquisa feno-menológica como se esta fosse um conjunto único de modos de ação. Há de se destacar que existem tantas diferenças em termos de ação metodológica na feno-menologia quantas compreensões existem da própria fenomenologia (p. 42).

Para Fonseca (2011), existiu no Brasil, e em toda a América Latina, um grande movimento de reconstrução da ACP após a morte de Rogers, provavelmente facilita-do pela ocorrência dos grandes fóruns de debates e en-contros Latinos e Brasileiros. Nestes encontros firmou-se uma crítica vigorosa à concepção de pessoa “planetária”, evidenciando a indissociabilidade indivíduo-mundo. Afirma: “assumir esta concepção de pessoa na América Latina é alienar das possibilidades da abordagem amplos segmentos da população, e colaborar com o processo de sua aniquilação já a um nível conceitual” (Fonseca, 2011, p. 15). Tal crítica tem proporcionado estudos e pesquisas que tentam uma aproximação da ACP com as fenomeno-logias, por acreditarem que tanto enquanto epistemolo-gia, método e filosofia, ela pode potencializar uma psi-cologia que integre o homem ao seu mundo.

No Brasil, o movimento de discípulos de Rogers que constroem uma interlocução teórica entre os fundamentos da Abordagem Centrada na Pessoa e as Fenomenologias tem se revelado um terreno fértil e produtivo. Neste per-curso, alguns se aliam a Husserl e sua ontologia trans-cendental (Holanda, 2001, 2009; Amatuzzi, 2009, 2010); enquanto outros caminham ao lado de Heidegger, ten-tando uma hermêutica ontológica (Frota, 1997; Feijoo, 2000; Barreto & Morato, 2009); outros ainda buscam Merleau-Ponty, e a possibilidade de uma fenomenologia encarnada (Moreira, 2007, 2009a). Vejamos alguns des-tes percursos, ainda em construção, numa visada super-ficial e panorâmica.

Amatuzzi (2010) compreende que o percurso que Husserl faz, ao aprofundar a redução no contexto da fi-losofia, foi semelhante ao de Rogers, no contexto da psi-coterapia. Para ele, Husserl parte de uma colocação en-tre parênteses da realidade do mundo e de uma concen-tração no próprio ato de conhecimento. Enquanto isso, Rogers fala de deixar de lado tanto as teorias da pessoa que fala, quanto às do próprio sujeito. Assim, caminha

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em direção ao puro vivido. Nesta perspectiva, assumida por Amatuzzi (2010),

Rogers e Husserl se aproximam muito: eles usam o mesmo método da redução, embora com finalidades diferentes. Um para clarear o problema do conheci-mento e outro para abrir caminho para a experiência vivida numa relação facilitadora de crescimento. Hus-serl chega na necessidade de um eu transcendental, e Rogers formula as reduções necessárias para um contato humano profundo e criativo. Husserl acredita que a redução desvenda uma face do humano que tinha ficado escondida (o eu como sujeito) e cria a necessidade de um novo conceito (o eu transcenden-tal, que é afinal o eu sujeito). Rogers, um americano pragmático, acredita que essa tríplice redução é que abre o caminho para os dinamismos da pessoa em pleno funcionamento e é isso que lhe interessa (p. 9).

Além disso, para Amatuzzi (2009), a atitude empáti-ca de Rogers leva a entrar em contato não somente com o sentimento puro, mas com seu significado, captando o movimento intencional da experiência, que, nesta pers-pectiva, seria muito mais verdadeiro.

Defendendo a perspectiva de que “toda Psicologia é e deve ser fenomenológica”, Holanda (2009, p. 1) afirma que para Husserl o fenômeno subjetivo é, antes de qual-quer outra coisa, um fenômeno intersubjetivo, o que sig-nifica afirmar que o mundo não existe sem meu olhar. Assim, não existe um mundo a ser visto e sim um inter-mundo. Evidencia-se aqui o conceito de mundo vivido: mundo que nos é dado antes de elaborarmos conceitos sobre ele. Deste modo,

Não se trata da natureza enquanto realidade objetiva (estudada pela ciência positivista), mas do mundo que se dá na relação, que se mostra como fenômeno pri-meiro e que pode ser depois elaborado no pensamento. Conhecer este mundo é, então, conhecer nosso estar nele, conhecer nossas relações (Amatuzzi, 2009, p. 5).

Contudo, apesar da compreensão de que a Psicologia não pode deixar de ver o fenômeno como uma fusão de mundos, Rogers não parece ter se dedicado a esta premis-sa, é o que denunciam alguns seguidores da ACP. Senão como compreender as críticas que se seguem?

A partir da perspectiva de Moreira (2007) o objetivo maior da proposta rogeriana é dar importância à pessoa, referindo-se a qualquer pessoa. Como consequência, per-de de vista a estrutura social que constitui o indivíduo. Na verdade, parece que Rogers segue

(...) falando de um homem subjetivo, que não se insere na realidade concreta, objetiva. Fala de um homem planetário, um homem do planeta Terra, ignorando todas as diferenças existentes entre homens que vivem

em contextos tão diversos e ignorando a realidade concreta em função de uma visão subjetiva (Moreira, 2007 p. 57).

Para a autora, Rogers não consegue ultrapassar o in-dividualismo, centrando-se no homem abstrato, descon-textualizado sócio-historicamente, o que dificulta a emer-gência dos diferentes sentidos dos fenômenos. Moreira (1990) afirma, que no primeiro momento do trabalho de Rogers, não existia nem mesmo a tentativa da busca de articulações de sentidos emergentes na relação terapeu-ta-cliente, uma vez que o cliente era mantido como cen-tro. O mesmo acontecia na fase reflexiva, já que as in-terferências do terapeuta costumavam se dar a partir do que era trazido pelo cliente e pelo que surgia na relação terapeuta-cliente. As fases posteriores iniciam a explo-ração dos mundos fenomenais da dupla terapêutica, via-bilizando uma fenomenologia da relação intersubjetiva e não mais somente do cliente. Porém, ainda se mantém numa concepção de “centrado na pessoa”, mesmo que seja bi-centrado, como afirma Cury (1987). Isso acaba por inviabilizar o processo terapêutico experienciado como inter-subjetivo, uma vez que continua existindo amarras de uma concepção centrada na pessoa.

Para Moreira (2009a), é a crítica à visão antropocêntri-ca de homem que se constitui no principal fundamento epistemológico da psicologia humanista-fenomenológica, no qual ela vem trabalhando. O postulado que Rogers tinha da pessoa humana, considerando-a como centro, com um externo e um interno, como uma dicotomia en-tre subjetivo e objetivo, impede que ele tenha uma prática efetivamente fenomenológica. Assim: “Rogers desenvol-veu uma teoria da psicoterapia centrada na pessoa e não uma teoria psicoterapêutica fenomenológica mundana” (Moreira, 2009a, p. 38). Como consequência, Moreira vem desenvolvendo um trabalho de assimilação psicológica da teoria filosófica, ou seja, da fenomenologia de Merleau-Ponty, adotando-a como suporte para a construção de uma psicoterapia humanista fenomenológica.

Husserl foi duramente criticado por ser considerado idealista, buscando uma filosofia transcendental, acre-ditando que nada mais existe que o pensamento, e que a realidade estaria nele. A crítica à intencionalidade e à re-dução fenomenológica também foi grande (Critelli, 1996; Frota, 1997). Contudo, Merleau-Ponty não aceitou estas críticas a seu mestre, assegura Amatuzzi (2010). Para ele, Husserl não era um idealista, pois o mundo já está dado como pressuposto do próprio pensamento. Afirma:

Se nos instalarmos no interior do pensamento e tentarmos deduzir daí o mundo como realidade externa, jamais o conseguiremos. Se nos fecharmos no pensamento, nada nos fará sair dele. Só há um meio: compreender que o mundo já está dado como um pressuposto, algo que podemos ver no próprio pensamento, ou na consciência, desde que tenhamos

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uma atitude fenomenológica. É a intencionalidade que nos restitui o mundo. Através dela percebemos que ele sempre esteve lá (Amatuzzi, 2010, p. 6).

Para os profissionais que tentam um caminho merle-au-pontyano, a proposta da visão de homem antropocên-trica de Rogers é substituída pela visão de homem mun-dano, criando condições de se construir uma psicoterapia humanista fenomenológica. Deste modo, partindo de um novo fundamento epistemológico e filosófico, a fenome-nologia antropológica de Merleau-Ponty apresenta a no-ção de homem como encarnado no mundo, um homem enquanto um ser-no-mundo, um fenômeno em constante interação com o mundo.

Resta-nos indagar, até que ponto não se vem criando algo novo, tão novo, que rompe com a abordagem centra-da, por caminhar por paradigmas outros que Rogers se apoiou na construção de sua teoria? Será possível ainda falarmos de uma aproximação com a ACP, ou falamos de uma construção que trilha outras veredas des-encontra-das das de Rogers?

Já na perspectiva da fenomenologia heideggeriana, da fenomenologia ontológica de Heidegger como método e base epistemológica para fazer uma articulação com a psicoterapia, temos que a noção que se oferece como base para a prática psicoterápica é a noção de homem como dasein, como ser-aí. Nesta perspectiva, o que importa é o ontológico e não o ôntico, embora saibamos que somen-te pela via do ôntico chegamos ao ontológico. Para saber do ser do homem é necessário voltar-se a uma reflexão ontológica, perguntar pelo ser do ente. Neste caminho, o método hermenêutico é a via por meio da qual se pode acessar ao sentido do existir em uma existência particu-lar, única, e, ao mesmo tempo, tão imprópria.

Para Heidegger, o homem é um ser de cuidado e per-guntar pelo ser, remete ao ente e seu modo de cuidar de si. Como o ser não se mostra como é, e sim como repre-sentação ôntica, deve-se partir do que se mostra para chegar ao que se é. Ou seja, do impróprio para o próprio, do inautêntico para o autêntico.

O método hermenêutico é o modo de acesso à com-preensão do ser, via fala. Para Heidegger, os seres huma-nos falam enquanto escutam e a escuta já é uma fala. Assim, a fala é a casa do homem. Diz também que uma visita de casa em casa é quase impossível. É no quase que transitamos, na psicoterapia, para compreender o ser, já que abre uma possibilidade de diálogo, de visita à casa do outro. Visito a casa do outro a partir da minha casa (Feijoo, 2000).

Heidegger e sua perspectiva de fenomenologia suge-rem uma possibilidade de pensar a questão do ser. Está completamente entranhada na sua filosofia ontológica. O homem, dasein, é um ser lançado no mundo, cuja pré--sença é a abertura de possibilidades completa e total de existência. É um ser incompleto, somente se completan-do com a morte. Assim, quando o Dasein é, não é mais.

A angústia e o temor são os modos de abertura do ser. Do mesmo modo, a propriedade e a impropriedade tam-bém são características constitutivas do ente, que tem seu ser em jogo. No modo próprio, o ser flui mais facilmente, relacionando-se melhor com o ente. No impróprio, o ente vive convenções, falatórios, regras sociais.

Enfim, a fenomenologia ontológica de Heidegger abre uma possibilidade de, através da hermenêutica, chegar a um sentido do ser.

Neste aspecto, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a inautenticidade, a impessoalidade e o esquecimento das possibilidades do cliente, como também seu po-der ser mais próprio e pessoal na revelação de suas experiências para que, então, possa atuar como tal no espaço psicoterapêutico do outro (Feijoo, 2000, p. 16).

Feijoo (2000) analisa a possibilidade de se fazer uma clínica fenomenológico-existencial partindo de Heidegger e de sua hermenêutica. Porém, não faz nenhuma aproxi-mação com Rogers e a ACP. Para Lessa (2009), a clínica existencialista, inspirada nas idéias de Heidegger, tem características bem específicas:

(...) problematiza a vida enquanto processo de expe-rimentação e não como uma representação daquilo que foi experimentado. Nosso objetivo principal é pensar o modo como o clínico lida com as diferentes concepções do ato de pensar que atravessam o plano da clínica existencial, visando dar visibilidade tanto a sua concepção teórica quanto ao exercício efetivo de sua prática. Especificamente pretendemos identificar em que a clínica existencial se diferencia da clínica que se restringe à representação, destacando, assim, os elementos que propriamente constituem o modo existencial de pensar a clínica (p. 15).

Barreto e Morato (2009) são categóricas ao negar a possibilidade da ACP se constituir numa abordagem fe-nomenológico-existencial. Afirmam: “a abordagem feno-menológica existencial, tão acriteriosamente confundida com a Psicologia Humanista, com a Abordagem Centrada na Pessoa e a Gestalt-Terapia (...)” (p. 41-42). Nesta pers-pectiva, os saberes e práticas baseadas na compreensão do sujeito separado do mundo, o sujeito em si, não dá conta de compreender o homem, Dasein e, muito me-nos, de “proporcionar ao sujeito a compreensão do seu modo de ser no mundo, abrindo-lhe possibilidades para novas formas de existir, e devolver-lhe a capacidade de dispor das possibilidades próprias e mais autênticas” (p. 45), que seria o objetivo da psicoterapia fenomenoló-gica existencial.

A partir de uma visada crítica, Barreto (2006) acredi-ta que Rogers desenvolveu a “teoria da Terapia Centrada no Cliente, na qual manteve a idéia de desenvolvimento autocentrado, hipervalorizando a pessoa-indivíduo e as-

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Ana M. M. C. Frota

sumindo a perspectiva do humanismo romântico presente no pensamento moderno” (p. 117). Acredita que Rogers concebe sua teoria numa “estrita ideologia individualis-ta, centrada na possibilidade inesgotável do potencial humano que se realiza a si mesmo, transformando o res-to do mundo em meros intermediários, os quais funcio-nam como forças facilitadoras ou dificultadoras” (p. 117). A autora desacredita que a Abordagem Centrada na Pessoa, tal como postulou Rogers, reconheça a possibili-dade do acontecer humano em um mundo adverso, uma vez que assume a intenção de expurgar a dimensão do trá-gico da existência humana. Desse modo, afirma, “Rogers não estaria apontando para possibilidades de compreen-der a existência humana como ser-no-mundo-com-outros, porque ainda se baseava em uma compreensão de ação clínica fundamentada na liberação da força vital de au-to-realização do indivíduo” (p. 123). Assim, parece cla-ro que declara uma cisão entre a ACP e a Hermenêutica heidegeriana.

Para uma aproximação de uma clínica fenomenoló-gica existencial, na compreensão de Barreto e Morato (2009), a ação deve ser

(...) repensada como um espaço aberto, condição de possibilidade para a emergência de uma transfor-mação não produzida, mas emergente em forma de reflexão, aqui compreendida como quebra do estabele-cido e condição necessária para um novo olhar poder emergir. Esse novo olhar, ao desalojar o homem da sua habitual relação com o mundo e a consciência, abre um espaço que só aparece quando o habitual é des-construído e o homem (Dasein) se descobre entregue à tarefa inexorável de ter-que-ser (p. 50).

Há, no entanto, pensamentos divergentes. Para Bezerra (2007), por exemplo, é possível uma articulação entre a ACP e Heidegger. Apresentando alguns conceitos utilizados por psicólogos que adotam o modelo fenome-nológico-existencial, Bezerra (2007) destaca o conceito de angústia como possibilidade de revelação de um projeto existencial inserido em um contexto situacional, e não como um sintoma psicopatológico a ser extinto. Acredita a autora que

(...) na psicoterapia centrada na pessoa, a articulação entre as perspectivas rogeriana e heideggeriana apon-ta para a necessidade de se abrir espaço, na teoria e método da ACP, ao estranho, à falta, como condição de possibilidade da existência. Esta perspectiva des-centrada consiste em um olhar que vá além da pessoa-indivíduo (Bezerra, 2007, p. 115).

Resta indagar: será oportuno se pensar em diálogos entre a ACP e a filosofia heideggeriana que se tornem ca-pazes de possibilitar a construção de algo novo, que se afi-ne à Abordagem Centrada na Pessoa proposta por Rogers?

Concluindo... se é que se pode concluir algo

Apesar da crítica ao trabalho de Rogers – talvez até um pouco imerecida, já que ele nunca se disse fenome-nólogo – muito das contribuições da ACP fazem parte da prática clínica da psicoterapia humanista fenomenológi-ca. A consideração positiva incondicional, por exemplo, quando compreendida como respeito ao outro, respeito à alteridade, à particularidade, permite reconhecê-la como a confirmação do outro como um outro que mantém um diálogo comigo. Tomando a mesma linha de pensamento, a relação empática deixa de ser criticada por seu romantis-mo, para ser valorizada como a inauguração de uma par-ceria da dupla cliente-terapeuta, pressupondo uma com-preensão e aceitação efetiva do outro, enquanto diferente.

Muitos caminhos vêm sendo desvendados. Muitas tri-lhas ainda a serem abertas. Rogers vem sendo discutido, re-inventado, por muitos de seus seguidores que, ávidos por ampliar seus campos de compreensão, perscrutam diferentes possibilidades. Fica o desejo de conhecer no-vos horizontes investigados, sem preconceito, com a men-te aberta para o novo e o diferente. Atentos, no entanto, para o cuidado de não nos perdermos numa construção na qual a tessitura se esgarce, se rompa, se parta em pe-daços frankensteinianos, por total falta de coerência pa-radigmática e prática.

Rogers não se voltou a construir uma teoria fenome-nológica. Tal movimento é mais uma característica con-temporânea, feita por pesquisadores que têm se voltado a estudar filosofia fenomenológica. Assim, a busca por aproximar Rogers de Husserl, Heidegger e Merleau Ponty, por exemplo, é muito mais uma preocupação atual, do que a que foi assumida por Rogers.

Os destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, como Terapia Humanista Existencial estão se deixando desco-brir/construir. A obra de Rogers está viva e, como tal, em processo. Talvez nesta fase pós-rogeriana, tal como refe-rendada por Segrera (2002), se construa algo não novo que ganhe nomes e existência própria. Estaremos falan-do ainda da Abordagem Centrada na Pessoa?

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Ana Maria Monte Coelho Frota - Graduada em Psicologia, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Ceará (UFC). Endereço Institucional: Universidade Federal do Ceará, Centro de Ciências Agrárias (Departamento de Economia Doméstica) - Campus do Pici, s/n, CEP 60455-760 (Fortaleza/CE). E-mail: [email protected]

Recebido em 12.02.2012Primeira Decisão Editorial em 03.07.2012Segunda Decisão Editorial em 11.09.2012

Aceito em 30.11.12

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“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

“vERSANDO SENTIDOS” SObRE O pROCESSO DE ApRENDIZAGEM EM GESTALT-TERApIA

“Traversing Meanings” About the Learning Process in Gestalt Therapy

“Ejercitando Sentidos “ Sobre el Proceso de Aprendizaje en Terapia Gestalt

JoÃo vitor MoreirA MAiA

José célio Freire

MAriAnA Alves de oliveirA

Resumo: Propomo-nos, a partir de um estudo exploratório, questionar: como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? Fez-se necessário compreender como a Gestalt-terapia, em seus referenciais teóricos, entende o processo de facilitação da aprendizagem. Nesse sentido, nos detivemos em estudos sobre Gestaltpedagogia, e sobre a formação do psicoterapeuta na Abordagem Gestáltica. Ampliamos nossos referenciais a partir das ideias de Martin Buber sobre Educação e sobre a Filosofia Dialógica, estabelecendo também o diálogo com a Filosofia da Alteridade de Emmanuel Lévinas, especificamente no que diz respeito ao conceito de ensino. Partindo do pressuposto que tais referenciais teóricos orientam nos-sa prática docente, intencionamos ilustrar nosso entendimento e vivência sobre a temática utilizando-nos das versões de sentido realizadas por uma aluna que participou do Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, oferecido aos estudantes de gra-duação do Curso de Psicologia na Universidade Federal do Ceará. Propomos uma prática docente que possibilite afetação, em que se experiencie o abandono das referências, das seguranças do conhecido, e que proponha um conhecimento a partir desta afetação provocada pela exposição ao outro do professor, dos livros e pelas experiências vividas a partir da experiência concre-ta em sala de aula.Palavras-chave: Processo de aprendizagem; Gestalt-Terapia; Dialogicidade; Alteridade; Versão de sentido.

Abstract: Starting from an exploratory study, we are questioning How the process of learning facilitation in Gestalt therapy works in the academic environment? It was necessary to understand how Gestalt Therapy views the process of learning facilita-tion in its theoretical references. Accordingly, we focus our readings in the Gestaltpedagogy studies, and on the training of psy-chotherapists in the Gestalt approach. We expanded our references from the ideas of Martin Buber on Education and Dialogical Philosophy as well, thus establishing a dialogue with Emmanuel Levinas’s Otherness Philosophy, specifically regarding the concept of Teaching. Assuming that such theoretical references guide our teaching practice, we intend to illustrate our under-standing and experience on the subject using the versions of meanings performed by a student who participated in the Training Course in the Gestalt Approach, offered to Psychology Course graduating students at the Federal University Federal of Ceará. We propose a teaching practice that enables affectation, the experiences of references abandonment, the security of the known. We are proposing a knowledge from this affectation caused by exposure to the otherness of the teacher, of the books and the ex-periences from the concrete experience in the classroom.Keywords: Learning process; Gestalt Therapy; Dialogicality; Otherness; Versions of meanings.

Resumen: Se propone como un estudio exploratorio interrogar: ¿cómo es el proceso de facilitar el aprendizaje en la terapia Gestalt en el ámbito académico? Se hizo necesario entender cómo la terapia Gestalt en sus referencias teóricas entiende el pro-ceso de facilitar el aprendizaje. Con ello, nos detuvimos en estudios sobre Gestaltpedagogía, y sobre la formación del psico-terapeuta el Abordaje Gestáltica. Hemos ampliado nuestras referencias a partir de las ideas de Martin Buber sobre Educación y sobre Filosofía Dialógica, estableciendo asimismo el diálogo con la Filosofía de la Alteridad de Emmanuel Levinas, en par-ticular con respecto al concepto de la enseñanza. Suponiendo que tales referenciales teóricos orientan nuestra práctica do-cente, tenemos la intención de ilustrar nuestro conocimiento y la experiencia sobre el tema utilizándonos de las versiones de sentido realizadas por una estudiante que participó del Curso de Capacitación en el enfoque de la Gestalt, que se ofrece a los estudiantes del Curso de Psicología de la Universidad Federal de Ceará. Proponemos una práctica docente que permite la afec-tación, como lo experimenta el abandono de los referenciales, la seguridad del conocido, y proponer un conocimiento desde esta afectación causada por la exposición al otro del profesor, de los libros y de las experiencias vividas en la experiencia con-creta en las clases.Palabras-clave: Proceso de aprendizaje; La terapia gestalt; Dialogicidad; Alteridad; Versión de sentidos.

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João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

Introdução

Este trabalho tem por objetivo apresentar os relatos iniciais das experiências vividas e as reflexões cons-truídas a partir do Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, oferecido aos alunos de graduação do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, como projeto específico do PROPAG/UFC, no qual propomos uma atividade essencialmente relaciona-da ao processo de ensino/aprendizagem da Gestalt-terapia como abordagem psicológica e atuação clínica. Buscou-se ao longo do curso proporcionar uma melhor fundamen-tação epistemológica e teórica, colaborando com a forma-ção do psicoterapeuta iniciante, no sentido também de proporcionar um maior embasamento teórico-vivencial na Abordagem Gestáltica.

Ao longo do curso referido, intencionamos examinar as temáticas relativas às bases históricas e epistemoló-gicas da Gestalt-terapia, em sua implicação na teoria e nos fundamentos da prática clínica nesta abordagem. Destaca-se que, por compreender as psicologias como construções sócio-históricas, propomos uma reflexão crítica acerca dos conhecimentos e práticas produzidas pelas Psicologias, e mais especificamente pela Gestalt-terapia, buscando entender as circunstâncias históricas, sociais, econômicas e políticas em que as abordagens psi-cológicas foram construídas e legitimadas socialmente, sabendo que este processo de construção persiste e se renova constantemente.

Observamos que, na condição de abordagem psico-lógica, a Gestalt-terapia vem, em sua história recente, se aproximando do espaço acadêmico, com gestalt-te-rapeutas ocupando cada vez mais o lugar na docência e na elaboração de trabalhos acadêmicos – trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutoramento – que trazem como temáticas questões te-óricas e práticas relacionadas à Abordagem Gestáltica. Contudo, ainda nos parecem escassos os trabalhos que se propõem a versar sobre o processo de ensino/aprendi-zagem na Gestalt-terapia no âmbito acadêmico, que em nosso entendimento traz desafios diferentes dos normal-mente encontrados nos cursos de formação/especialização nesta abordagem. Intencionamos, ao longo do presente trabalho, apresentar e discutir os desafios encontrados em nossa experiência, fazendo também provocações sobre a pertinência desta temática e a necessidade de estudos que venham a alargar tais questionamentos, entendendo que os temas aqui refletidos necessitam de um esforço mais árduo do que o espaço de um artigo nos possibilita.

Destacamos a importância de discutirmos o processo de aprendizagem da Gestalt-terapia no campo acadêmi-co, também pela forma que historicamente as abordagens humanistas são apresentadas e discutidas nos cursos de graduação. Neste sentido, Moreira (2007) nos fala que as abordagens psicológicas humanistas, muitas vezes a par-tir da preocupação prioritária com a experiência, teriam

colocado a teorização em segundo plano, o que viria a possibilitar a concepção de que “a formação do psicote-rapeuta humanista é mais fácil e que o aluno teria que estudar menos, uma vez que o que vale é a vivência das emoções” (p. 97). Moreira (2007) ressalta a necessidade da fundamentação teórico-filosófica dos enfoques psico-terápicos humanistas, enfatizando a importância da pes-quisa fenomenológica mundana, na elaboração de uma “prática clínica competente, comprometida com o homem e com o mundo” (p. 108).

Ao analisarmos a história da Gestalt-terapia como abordagem psicoterápica, nos deparamos com o fato de que ela “(...) esteve tradicionalmente avessa à teorização e aos ‘sobreísmos’, intencionando com isso jamais despren-der-se da realidade última e insuperável que é a vivên-cia” (Karwowski, 2005, pp. 9-10). Tal compreensão gerou um distanciamento de seus teóricos, em suas primeiras décadas de história, do desafio e disciplina na constru-ção de uma fundamentação teórico-epistemológica con-sistente e coerente, ressaltando que, desde a década de oitenta, percebe-se um esforço por parte dos maiores ex-poentes da comunidade gestáltica na construção desse alicerce teórico.

Neste sentido, Holanda (2005) ressalta que “a teoria e a prática de uma abordagem não podem estar dissocia-das de uma construção coerente e de uma fundamentação sólida, bem como devem estar situadas num determinado contexto” (p. 24). Assim, tomamos como compromisso em nossa prática docente o ensino da Gestalt-terapia pauta-do em um rigor teórico-epistemológico, no entanto, sem esquecermos do aspecto vivencial, tão enfatizado pelas abordagens fenomenológico-existenciais.

Na medida em que as abordagens psicológicas, “devem estar situadas num determinado contexto”, como aponta Holanda (2005, p. 24), tomamos também como desafio as colocações de Figueiredo (2009), quando afirma sobre a urgência em estabelecermos em nossas teorizações “(...) uma discussão histórica, sociológica e filosófica acerca do mundo em que vivemos, das formas dominantes de exis-tir neste mundo e de como as psicologias contemporâneas são modos de tomar partido em relação aos problemas da contemporaneidade” (p. 30).

Assim, a partir desta proposta de atividade docente e das experiências vivenciadas ao longo do processo, surgiu a necessidade de questionar: como se dá o processo de fa-cilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? Na tentativa de responder esta interrogação, primeiramente, fez-se necessário compreender como a Gestalt-terapia em seus referenciais teóricos entende o processo de ensino/aprendizagem. Neste sentido, recor-remos aos trabalhos de Burow e Scherpp (1985) sobre a Gestaltpedagogia, e de Cardella (2002) sobre a formação do psicoterapeuta. Ampliamos nossos referenciais para os trabalhos de Martin Buber sobre Educação e sobre a filosofia dialógica, e propomo-nos também o diálogo com a filosofia da alteridade radical de Emmanuel Lévinas.

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1. A Influência da Gestaltpedagogia

Burow e Scherpp (1985) entendem a Gestaltpedagogia como um termo abrangente para conceitos pedagógicos que se orientam pelas ideias teóricas e práticas da Gestalt-terapia e da Psicologia da Gestalt. Ressaltam que antes que se inicie qualquer prática pedagógica faz-se necessá-rio que se tenham claros os objetivos, antes mesmo que se busquem os métodos e conteúdos com os quais eles possam ser melhor alcançados. Toma-se também como premissa que os objetivos, os meios e conteúdos de ensi-no se encontram em dependência recíproca, afirmando--se assim, a necessidade de harmonizá-los.

Burow e Scherpp (1985) ao retratar o trabalho de Besems, um gestaltpedagogo que formula explicitamente seus objetivos a partir de uma perspectiva político-social – em sua concepção de um ensino intersubjetivo – citam quatro objetivos amplos:

(1) A autoconscientização e a ampliação das próprias possibilidades, dos modelos de comunicação e do comportamento frente aos outros e às coisas, e das possibilidades de mudança direta do meio social [...] (2) Proporcionar discernimento sobre o próprio fun-cionamento e sobre as relações históricas e sociais desse funcionamento nos contextos interpessoal e so-cial [...] (3) A ampliação das possibilidades de escolha do indivíduo quanto a si próprio, quanto aos outros e em relação ao mundo [...] (4) Criar premissas a fim de racionalizar o discernimento da interdependência de funções e, assim, possibilitar a representação ativa de interesses (pp. 109-110).

Podemos entender que, em uma prática orientada ges-taltpedagogicamente, o objetivo central é o de possibilitar ao indivíduo o desenvolvimento de suas potencialidades e de uma consciência sócio-política. Para tanto, segun-do a visão da gestaltpedagogia, é preciso apenas que se criem as condições necessárias.

Outro objetivo central da gestaltpedagogia é do levar em conta, de forma adequada, o aspecto emocional no processo de aprendizagem. Compreende-se que tomar o aspecto emocional também como um objetivo central é de fundamental importância para o processo de aprendi-zagem de uma abordagem psicológica, proposta em um espaço universitário, haja vista que, tradicionalmente, o ambiente acadêmico privilegia os conhecimentos cogni-tivos, em detrimento das outras formas de conhecimento.

Burow e Scherpp (1985) nos esclarecem que a modi-ficação da relação interpessoal entre aluno e professor é de fundamental importância para a gestaltpedagogia. Pretende-se que o professor veja e aceite o aluno em sua existência como ser humano, como premissa para o de-senvolvimento de um clima de confiança mútua, fran-queza e autenticidade de comunicação na sala de aula. A relação intersubjetiva entre aluno e professor significa

que este compreende e trata aquele como ser humano to-tal, não sendo percebido somente em sua função de aluno.

Entende-se que na concretização da influência da ges-taltpedagogia em práticas educacionais, dá-se ênfase aos aspectos experienciais dos afetos e emoções, de auto-co-nhecimento e das relações interpessoais da situação de aprendizagem. Sobre isso, parece-nos interessante e ca-bível estabelecermos um paralelo da proposta da gestal-tpedagogia com algumas das críticas que Moreira (2007) tece à proposta educacional defendida por Carl Rogers.

Dentre outras críticas que Moreira (2007) formula sobre a abordagem centrada no aluno, proposta por Carl Rogers, destacamos uma que nos parece particularmen-te importante para revermos a influência da gestaltpe-dagogia nas práticas educacionais. Para Moreira (2007), Rogers na medida em que privilegia a experiência vivida pelo aluno enquanto pessoa desvaloriza a transmissão de conhecimentos no ensino, e nos adverte:

O ensino não somente inclui elementos que se rela-cionam com aspectos pessoais e sociais (objetivos da psicoterapia), mas também incorpora matérias mais específicas, relacionadas com a transmissão do saber. Uma sala de aula é o lugar onde se relacionam dialeticamente ser e saber, inseridos numa realidade institucional e, por conseguinte, social (p. 75).

Friedman (2002) quando nos fala sobre a perspecti-va educacional em Martin Buber, refere-se a esta ques-tão suscitada por Moreira (2007), apontando um conflito entre as perspectivas filosóficas modernas da educação, sugerindo que este segue até os dias atuais. De um lado, temos aqueles que enfatizam a importância de os objeti-vos educacionais serem obtidos a partir dos grandes li-vros, da tradição clássica, ou do conhecimento técnico. Do outro lado, estão aqueles que enfatizam o aspecto sub-jetivo do conhecimento e olham para a educação como o desenvolvimento do poder criativo ou como a assimi-lação das experiências pedagógicas a partir dos interes-ses e necessidades subjetivas do aluno. Friedman (2002) nos adverte que, dentro das reflexões de Buber sobre o processo educacional, estas duas propostas teóricas re-presentam aspectos parciais de um todo, e afirma que a educação se dá quando:

(...) o aluno cresce através do encontro com a pessoa do professor e o Tu do escritor. Neste encontro, a realidade que o professor e o escritor lhe apresentam se torna viva para o aluno: ela é transformada de po-tencial, abstrata, e sem relação para uma forma atual, concreta, e como presença imediata da pessoa e ainda, em certo sentido, como uma relação de reciprocidade. Isso significa que, nenhuma verdadeira aprendizagem ocorre a menos que o aluno participe, mas também significa que o aluno deve encontrar algo realmente “outro” do que ele antes que possa aprender (p. 209).

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Tomamos como fundamento de nossa prática do-cente esta perspectiva, de que o processo educacional se dá pelo encontro do estudante com a pessoa do pro-fessor e com livro, na medida em que o aluno se vê im-plicado por este encontro com algo que lhe é diferente, outro. Temos aqui uma primeira sinalização do apren-dizado pela alteridade, dos outros e dos livros, sem que possamos em nossas práticas de ensino prescindir dos aspectos pessoais e sociais, bem como dos objeti-vos mais específicos relacionados com a transmissão/construção do saber.

2. A filosofia Dialógica de Martin buber e suas Con-tribuições à Educação

Outro referencial teórico que tomamos, e a partir do qual estabelecemos relações com o processo de ensino/aprendizagem da Gestalt-terapia, é o pensamento filo-sófico de Martin Buber, a partir da antropologia filosó-fica. Dentre as contribuições de Buber para a reflexão sobre Educação, destacamos neste estudo as ideias de Inclusão e de Vereda Estreita, e suas reflexões sobre os modos como se dá o conhecimento, que nos possibili-tam pensar o processo educacional menos pela via da construção metodológica, e mais por meio de uma pers-pectiva filosófica.

Por Inclusão, podemos entender a capacidade de o in-divíduo, engajado no encontro dialógico, manter duplo sentimento, tendo consciência de si próprio e, ao mes-mo tempo, percebendo o outro na sua alteridade singu-lar. Para Buber (conforme citado por Hycner, 1997), a atitude de inclusão é fundamental para que se estabele-ça uma relação dialógica genuína, traduzindo o concei-to de inclusão como “(...) um salto audacioso – exigindo a mais intensa mobilização do próprio ser – na vida do outro” (p. 42).

Na perspectiva buberiana sobre educação, o mais importante no encontro do professor com o estudante é que ele experiencie o aluno do outro lado, sendo que se este processo é vivido de maneira real e concreta é remo-vido o perigo de que o ensino se dê de maneira arbitrá-ria, e se dê a partir do reconhecimento das necessidades dos alunos na relação destes com o mundo (Friedman, 2002). Outro conceito que pretendemos trabalhar neste estudo é o de Vereda Estreita. Por ele, Buber (1942/1963) desejava expressar que, como humanidade, não estamos situados sobre

(...) o amplo planalto de um sistema que compreende uma série de proposições seguras sobre o Absoluto, mas que me sustentava em uma vereda estreita que se erguía sobre o abismo, sem ter segurança alguma de um saber expressável em proposições, mas sim, tendo a certeza do encontro com o que permanece oculto (p. 126).

Essa metáfora, da Vereda Estreita, rejeita uma solução tranquila para as questões humanas, afirmando ainda a existência de paradoxos e contradições, presentes em cada situação da condição humana. Buber (1942/1963) formula esta perspectiva, se contrapondo às perspectivas filosófi-cas que buscam estabelecer uma condição de segurança a experiência humana, destacando dentre elas o pensa-mento hegeliano. Para Buber (1942/1963),

Hegel tenta dotar o homem com uma nova se-gurança (...) O sistema de Hegel representa, no pensamento ocidental, a terceira grande tentativa de segurança: depois da cosmologia de Aristóteles e a teologia de São Tomás, temos a logológica de Hegel. Ela subjuga qualquer insegurança, toda inquietude sobre o sentido, todo o medo pela deci-são, toda problemática abissal (p. 48).

Buber (1942/1963) entende que Hegel exerceu uma influência decisiva tanto sobre a maneira de pensar de uma época, como também nas atitudes sociais e políti-cas. Influência que teria favorecido o distanciamento da pessoa humana concreta e da sociedade humana concre-ta em favor de uma experiência racionalizada do mundo, de processos dialéticos e formações objetivas. Criticando esta perspectiva racionalizada da experiência humana e do mundo, ele nos fala:

se o homem é o lugar e o meio onde a razão do mundo se conhece a si mesma, então não há limite algum para o que o homem pode saber. De acordo com a ideia, ele realiza tudo, tudo o que há na razão (p. 48).

Buber, em toda sua antropologia filosófica, contrapõe--se a esta perspectiva de segurança na experiência hu-mana, e afirma que “a grandeza do homem surge de sua miséria”, da “da atitude da pessoa que se encontra, sem morada, na intempérie do infinito” (Buber, 1942/1963, p. 35). Sobre o homem, Buber (1942/1963) entende que,

(...) este se encontra no mundo como um estrangeiro e um solitário. Quando se dissipa uma imagem de mundo, prontamente surge uma nova pergunta por parte deste homem que se sente inseguro, sem-teto, que se questiona sobre si mesmo (...) Uma vez que se tenha levado a sério o conceito de infinito, não é possível transformar o mundo em uma mansão para o homem (p. 36-37).

Podemos entender que, no que diz respeito ao mun-do humano, delimitado pelo problema do homem, não existe nenhuma segurança sobre o futuro, sobre o des-conhecido. A partir destas concepções e entendendo o processo educacional como uma experiência do mundo humano, caminhar pela Vereda Estreita nos sinaliza que não temos nenhuma garantia; há suporte, mas nenhum

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substituto para o envolvimento na experiência imediata. Lança-se assim o desafio: como utilizar a segurança das teorias e, ainda assim, não utilizá-las como uma defesa contra o desconhecido?

Outra reflexão que intencionamos estabelecer tem re-lação com as formas como Buber entende que se dá o co-nhecimento do homem. Devido à especificidade do pro-cesso educacional ao qual nos propomos, o de facilitar a formação de futuros terapeutas, entendemos que o conhe-cimento de que tratamos não se dá simplesmente por uma via cognitiva ou racional, mas trata-se de um conhecimen-to sobre o humano, conhecimento por parte do aluno de sua condição humana e da forma como ele percebe e se relaciona com os outros humanos. Neste sentido, Buber (1982/2009) nos fala de três maneiras pelas quais podemos perceber um homem que vive diante dos nossos olhos.

Uma destas formas se dá pela observação, quando se está:

(...) inteiramente concentrado em gravar na sua mente o homem que observa, em ‘anotá-lo’. Ele o perscruta e o desenha. E na verdade ele se empenha em desenhar tantos ‘traços’ quanto possível. Ele os vigia para que nenhum lhe escape (Buber, 1982/2009, p. 41).

Para Buber (1982/2009), outra forma se dá a partir da contemplação, quando não se está absolutamente concen-trado, e é possível para o contemplador se colocar numa atitude que lhe permita ver o objeto livremente e esperar despreocupado aquilo que a ele se apresentará. Destaca que a atitude do contemplador só de início pode ser go-vernada pela intenção, sendo que logo em seguida tudo que se segue é involuntário.

Apesar das atitudes de observação e de contempla-ção se caracterizarem por uma diferença significativa, Buber nos esclarece que o observador e o contemplador estão na mesma posição, justamente o desejo de perceber o homem, tomando este homem como objeto, que assim não lhes exige “nenhuma ação e nem lhes impõe destino algum; pelo contrário, tudo se passa nos campos distan-tes da estesia” (Buber, 1982/2009, p. 42).

Para Buber (1982/2009), existe uma percepção que é de uma espécie decididamente diferente, a qual chama de tomada de conhecimento íntimo, na qual em um dado momento receptivo de nossa vida pessoal, encontra-nos um homem em que há alguma coisa, que não consegui-mos captar de uma forma objetiva, que nos ‘diz algo’, não significando que isto que nos foi dito fale como este ho-mem é ou o que se passa nele, não sendo possível retra-tar nem descrever o homem no qual, pelo qual, algo nos foi dito, nada podemos contar sobre ele; se tentássemos fazê-lo, já seria o fim do dizer. Buber (1982/2009) ressalta que este homem não é nosso objeto, e na verdade, “o que importa agora é unicamente que eu me encarregue des-te responder. Mas em cada instância aconteceu-me uma palavra que exige uma resposta” (p. 43).

Diante da exigência desta forma de tomada de conhe-cimento, que se mostra na necessidade de abertura para entrar em contato com a palavra que me é dirigida e da exigência de uma resposta, nos questionamos sobre a forma de podermos facilitar em nossos alunos a consci-ência destes três modos de conhecer, e facilitar com que nas relações com os outros em psicoterapia, seja possível uma atitude que lhes permita também uma tomada de conhecimento íntimo.

3. A Alteridade nas Abordagens psicológicas e na Aprendizagem das Mesmas

Neste momento, recorremos ao trabalho de Freire (2002), onde o autor nos provoca ao questionamento so-bre de que forma as abordagens psicológicas possibilitam o encontro do sujeito com a alteridade do outro e de si, com o desconhecido, o diferente, o desafiante; usando as teorias como dispositivos de “descentramento”, possibi-litando a dissolução das ilusões de unidade e identida-de do sujeito moderno, reconhecendo a fragmentação e a multiplicidade do indivíduo. A partir destas provoca-ções, propomo-nos a refletir sobre a necessidade de es-tabelecermos algumas proposições para o ensino destas psicologias, que para Freire devem possibilitar o encontro do sujeito com a alteridade do outro e de si. Parece-nos que as formas tradicionais de ensino e aprendizagem não dão conta de facilitar nos alunos a construção e a prática destas psicologias, às quais estamos sendo convocados.

Na direção das ideias de Freire (2002), Cardella (2002) no livro A construção do psicoterapeuta refere-se ao “tra-balho do psicoterapeuta como confronto com a alterida-de” (p. 87). A autora compreende como condição para o trabalho do psicólogo uma atitude de abertura para que a alteridade do outro ressoe em sua própria alteridade. Seria, assim, “no confronto com as alteridades do outro e de nós mesmos que este trabalho se realiza” (Cardella, 2002, p. 89).

Na tentativa de compreender e construir uma proposta de ensino que possibilite ao professor de psicologia e psi-coterapia o aprendizado do aluno nesta abertura à alteri-dade, Cardella (2002) apoiando-se na filosofia mestiça de Michel Serres, entende o processo de aprendizagem como exposição e estranhamento. Nesta perspectiva, o processo de aprendizagem “se dá quando ocorre o ‘estranhamento’, a experiência de olhar de diversos ângulos ou perspecti-vas, de sair do lugar conhecido e familiar, de partir para o desconhecido, de desbravar” (Cardella, 2002, p. 92).

A mesma autora (2002) afirma ainda que se faz ne-cessário que o processo de aprendizagem possibilite ao aprendiz passar pela experiência de abandono das refe-rências, no qual se experimenta a exposição, a solidão, a errância, sendo função do educador facilitar o proces-so pelo qual o aluno possa viver o risco de conhecer, deslocando-o de sua estabilidade, ou seja, provocá-lo e

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facilitar sua exposição ao outro, provocando estranha-mentos, o que possibilitaria que todos os sentidos pos-sam ser vertidos.

Educar é, portanto, levar o aprendiz a compreender que é outro para si mesmo e, assim, reconhecer a exis-tência do diferente em si e no outro. Isso possibilita um deslocamento, e a experiência da complexidade que possibilita o aprender. O aprendiz deve experi-mentar o conhecido e o enigmático, o esperado e a sur-presa, o estranho e o familiar (Cardella, 2002, p. 93).

A partir desta perspectiva de Educação, Cardella (2002) afirma que o professor de psicoterapeutas deve pro-mover a experiência de perda de referências, de errância, de suspensão, para que o aluno possa se deparar com o outro em si mesmo. A autora destaca ainda:

Na formação de psicoterapeutas é importante que haja oportunidade para que o aluno seja mobilizado, perturbado, sob pena de deixar a universidade sem aprender, num nível básico, a fazer uso de sua própria experiência, o instrumento terapêutico por excelên-cia, e colocá-la a serviço do outro (p. 94).

Cardella (2002) sintetiza que a tarefa da formação de psicoterapeutas seria a de contribuir para que o alu-no desenvolva alguma familiaridade e, talvez, muita es-tranheza, perante si mesmo: suas crenças, seus valores, seus afetos, suas emoções, suas concepções, seus desejos, suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades.

A partir destas colocações acerca do familiar e da alte-ridade, recorremos ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Propomo-nos, assim, o diálogo com a filosofia da alteri-dade de Lévinas, especificamente no que diz respeito ao conceito de ensino que se dá pela epifania do rosto.

Destacamos que o pensamento de Lévinas parte de uma crítica à filosofia tradicional, em especial a ontolo-gia, que em seu entendimento estabelece o primado do Mesmo, usurpando de suas teorizações o lugar do Outro, para Lévinas anterior a questão do Eu. Assim, Lévinas constrói seu pensamento ético-filosófico rompendo com as tradições filosóficas ocidentais, que se caracterizam pelo pensamento totalizador e pela primazia do Mesmo.

Com relação à primazia do Mesmo, para Lévinas (1980/1988) a Teoria, a Razão, e a Representação – con-ceitos tradicionalmente privilegiados nos processos edu-cacionais – se traduzem como uma redução do Outro ao Mesmo, buscando assegurar a “inteligência – logos do ser – ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conheci-do que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se desvanece” (p. 30). Lévinas (1980/1988) estabelece uma crítica ao método socrático – a maiêutica – e afirma que o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: “nada rece-ber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem

de fora” (p. 31). Para Lévinas a perspectiva maiêutica, em seu sentido último, tem a ver com a permanência no Mesmo. Nestes termos, “conhecer equivale a captar o ser a partir de nada ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a sua alteridade” (Lévinas, 1980/1988, p. 31).

Neste momento, aproximamos a concepção de Buber de tomada de conhecimento íntimo, que se dá pela condi-ção de abertura para entrar em contato com a palavra que me é dirigida e da exigência de uma resposta, com a pers-pectiva levinasiana de Discurso, que se dá pela condição de abertura e resposta ao outro, logo ética. Permitimo-nos utilizar uma extensa citação de Lévinas (1980/1988) que nos esclarece as questões aqui discutidas:

O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de facto, rosto. Esta maneira não em figurar como tema sob meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum – a ideia adequada [...] Exprime-se. O rosto, contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de verdade que não é o desvendar de um Neutro impes-soal, mas uma expressão [...] Abordar Outrem no dis-curso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento. É, pois, receber de Outrem para além da capacidade do Eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito. Mas isso significa também ser ensinado. A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica, uma relação ética, mas o discurso acolhido é um ensinamento. O ensinamento não se reduz, porém, à maiêutica. Vem do exterior e traz-me mais do que eu contenho. Na sua transitividade não-violenta, produz--se a própria epifania do rosto (p. 37-38).

Dentro desta perspectiva ética de ensinamento, como acolhimento ao discurso, o saber significa “(...) uma rela-ção tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhe-cido manifestar-se, respeitando a sua alteridade e sem o marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento” (Lévinas, 1980/1988, p. 29). Sabedoria ensinada pelo ros-to do outro homem, na medida em que abrimos mão dos saberes totalizantes que se dão pela primazia do Mesmo. Ensinamento ético a partir do qual “(...) o Mesmo só pode juntar-se ao Outro nas vicissitudes e nos riscos da procu-ra da verdade, em vez de descansar em si em toda a se-gurança” (Lévinas, 1980/1988, p. 48).

Por fim, para Lévinas (1980/1988) “afirmar a verdade como modalidade da relação entre o Mesmo e o Outro não equivale a opor-se ao intelectualismo, mas a assegurar a sua aspiração fundamental, o respeito do ser que ilumi-na o intelecto” (p. 51), mas destaca que “a experiência do Outro a partir de um Eu separado continua a ser uma fonte de sentido para a compreensão das totalidades, tal

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como a percepção concreta continua a ser determinante para a significação dos universos científicos” (p. 45). Se tomarmos a afirmação de Lévinas no âmbito dos discur-sos e práticas psicológicas, ressalta-se a necessidade de um processo de aprendizagem que possibilite o encontro e o acolhimento do Outro, da diferença, do estranho, em oposição aos discursos teóricos e práticas de ensino to-talizantes, que se fundamentam em verdades absolutas e redutoras de toda alteridade ao primado do Mesmo, do Saber, da Teoria, haja vista que são muitas as escolas e abordagens psicológicas que se propõem em seus projetos epistemológicos uma aproximação com o quadro das ci-ências naturais, gozando assim, de um status de verdade.

4. Versando Sentidos sobre a Aprendizagem em Gestalt-Terapia

Retomando neste momento nosso questionamento inicial – Como se dá o processo de facilitação da apren-dizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? – e na tentativa de respondê-lo não mais apenas a partir dos referenciais teóricos da Gestalt-terapia, mas também a partir das experiências vividas no Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, propomos a utilização do re-curso metodológico da Versão de Sentido proposta por Mauro Martins Amattuzi, e que vem sendo utilizada em pesquisas fenomenológicas e nos processos de supervi-são clínica na formação de psicoterapeutas.

Amatuzzi (2002) entende por Versão de Sentido (VS) um relato livre, escrito ou falado, que não tem a pretensão de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de ser uma reação viva a isso, como uma palavra primeira. Consiste numa fala expressiva da experiência imediata de seu autor, face a um encontro recém-terminado.

Entendemos a pertinência desta proposta metodoló-gica aos objetivos deste estudo exploratório, por enten-der que o mesmo nos possibilita compreender os sentidos das experiências vividas no processo de aprendizagem da Gestalt-terapia, bem como de ilustrar nossa propos-ta de ensino/aprendizagem ao longo da experiência aqui retratada. Propomos assim, apresentar e discutir alguns recortes das Versões de Sentido realizadas por uma alu-na do referido curso, que foram realizadas ao término de quatro encontros, com duração média de três horas cada um, e que se deram por volta do meio do curso.

Tomamos como proposta didática norteadora de nos-so trabalho docente uma metodologia teórico-vivencial, que privilegiasse a leitura e discussão de textos filosófi-cos e teóricos que fundamentam epistemologicamente a Gestalt-terapia. A partir da leitura dos textos era solici-tado aos alunos que entrassem em contato com a forma como aqueles os tocavam. Tal proposta pode ser ilustrada a partir da fala da aluna: “O João Vitor sempre faz pergun-tas pra saber qual a relação que estabelecemos entre o que estudamos e o que fazemos da nossa vida, e a maioria de-

las são bem inquietantes”. Tal fala nos sinaliza a riqueza desta proposta de explicitar o diálogo entre o aluno e o texto no processo de aprendizagem, promovendo também ao longo das discussões questionamentos sobre a forma como as temáticas trazidas pelo texto os afetaram e que respostas são formuladas a partir dos questionamentos, interpelações, exigências que as obras nos trazem.

Entendemos que ao tomarmos a discussão a partir do campo existencial dos alunos, diminuindo assim o dis-tanciamento entre a teoria e suas experiências concretas, possibilitamos que os mesmos entrem em contato com os fundamentos da Abordagem Gestáltica a partir de suas referências existenciais, o que possibilita também que estas possam ser confrontadas com as concepções éti-cas e estéticas da Abordagem Gestáltica. Neste sentido a aluna nos fala:

Achei a dinâmica do dia bem interessante, pois refle-timos e conversamos sobre categorias como desespero, sofrimento, solidão, impotência, segurança, liberda-de... Mais uma vez o facilitador solicitou que o grupo se colocasse diante dessas categorias de forma pessoal e compartilhassem o modo como somos afetados e o significado daquilo na vida de cada um, de forma a perceber quais crenças nos guiam e como isso pode se refletir na nossa atitude como psicoterapeuta.

Entendemos que o diálogo entre a teoria e as experi-ências concretas dos alunos possibilita-os darem-se conta de suas crenças, seus valores, seus afetos, suas emoções, suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades, processo de conscientização tão importante para a forma-ção do psicoterapeuta. Permite ainda aos alunos darem--se conta do que muitas vezes é vivenciado de maneira conflitiva e angustiante, o que pode ser percebido a par-tir da seguinte fala: “Em vários momentos me questionei sobre como eu serei psicoterapeuta se eu tenho tanta di-ficuldade em acolher algumas falas de algumas pessoas”. Entendemos que este processo de conscientização de si e do outro, possibilita aos alunos entrarem em contato com a diferença em si e no outro, consciência da alteridade. Assim o processo do grupo, mesmo em se tratando de um grupo didático-vivencial, como em nossa experiên-cia no curso de capacitação, nos possibilita a experiência de olhar de diversos ângulos ou perspectivas, de sair do lugar conhecido e familiar. A partir da experiência ime-diata grupal se dá a facilitação de uma vivência compre-ensiva sobre a experiência de si e do outro, o que refor-ça a herança fenomenológica da Abordagem Gestáltica.

O desafio desta vivência grupal compreensiva no con-texto do curso nos sinaliza a importância do processo de construção de um clima de acolhimento das experiên-cias e das alteridades percebidas no grupo, o que ultra-passa a perspectiva de estabelecimento de um clima de confiança mútua, franqueza e autenticidade na relação inter-humana professor-aluno, e instaura o desafio des-

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João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

te clima nas relações grupais como um todo, que passa a ser entendido e vivido como um dos principais aspectos na mediação do processo de aprendizagem em Gestalt-terapia. “Ainda é difícil para o grupo se expor e realmente se implicar nas vivências propostas, mas acho que nesse encontro caminhamos para uma maior cumplicidade e intimidade”.

Interessante percebermos o que nos é revelado pela aluna quando fala do grupo, que apesar de não se con-figurar como uma proposta de grupo terapêutico, pos-sui intencionalmente elementos deste1. Sobre o grupo nos é dito:

É engraçado que pra mim o curso às vezes parece um grupo terapêutico, em que eu vou ampliando minha consciência e minha percepção sobre o fazer do psicoterapeuta. Acho que isso também se dá prin-cipalmente devido as pontuação e interrogações que o João Victor faz, que são geralmente bem pessoais e profundas. Como o grupo não é terapêutico e ainda não há tanta cumplicidade, algumas questões não podem ser aprofundadas e por isso ficam em aberto e continuam ressoando depois.

O trabalho com o grupo e o compartilhar de experi-ências em nosso entendimento possibilitam o questio-namento e o possível abandono das teorias totalizantes, na medida em que é permitido aos alunos expressarem as mais diversas experiências sobre os temas suscitados pelos textos e discussões, afirmando os diversos senti-dos possíveis para a experiência humana. A forma como os alunos são afetados e respondem a cada experiência concreta em sala de aula atestam a impossibilidade de esgotar os sentidos da experiência humana, apontando assim para além do Mesmo.

Compreendemos assim, que o espaço didático-viven-cial do grupo nos permite acessar aquilo que Buber de-nomina de tomada de conhecimento íntimo, ou a pers-pectiva de ensino proposta por Lévinas, na medida em que possibilita a partir de uma condição de abertura ao outro a experiência de ser provocado, afetação que exige uma resposta. Afetação esta que nos damos conta pela in-quietação, desconforto e sensação de sair mexido expres-sa pelos alunos, como descrita na fala anterior da aluna.

Na intenção de promover um espaço mais fértil pos-sível para esta condição de afetação e resposta, propomo--nos também a utilização de outros recursos tais como contos, poesias e filmes que buscam permitir no processo educacional o conhecimento não apenas pela via da racio-nalidade, mas também pela sensibilidade. Em um dado encontro, propomos o filme O Escafandro e a Borboleta dirigido por Julian Schnalbe, novamente solicitando aos alunos que buscassem darem-se conta de como eram afe-tados pelo filme. Neste sentido, a aluna nos fala

1 Enquanto facilitadores têm-se consciência dos limites éticos e das possibilidades terapêuticas do espaço proposto.

[...] fiquei observando como cada cena me afetava e quais partes me chamavam mais atenção [...] Fiquei emocionada com a cena em que o pai liga pra ele, e não sei explicar porque, mas acho que ali mostra mais uma vez a sensação de impotência dos dois diante da vida.

A fala da aluna nos remete ao conceito de Inclusão, que trabalhamos anteriormente, e que se faz presente como um dos conceitos básicos da clínica gestáltica, entendi-do como a condição de entrar em contato, tanto quanto possível, com a experiência vivida pelo outro.

Uma última fala da aluna nos parece bastante inte-ressante para evidenciarmos nosso esforço para a supe-ração da histórica dicotomização teoria e vivência nos processos de formação dos gestalt-terapeutas:

Fiquei muito feliz por conseguir enxergar distúrbios de contato como a confluência e a retroflexão em casos reais que eu conheço, o que me transmitiu momen-taneamente uma sensação de segurança em relação a minha atuação na clínica no próximo semestre [...] Já aconteceu, mais de uma vez, de eu ‘fechar algumas gestalten’ teóricas no grupo [...].

Propomo-nos assim, uma perspectiva integrativa des-tes aspectos do processo de aprendizagem, da experiên-cia humana, o que intencionamos evidenciar em nossa proposta de diálogo dos alunos com os textos a partir de suas experiências concretas. Uma proposta didática que enfatiza os aspectos experienciais dos afetos e emoções, de autoconhecimento e das relações interpessoais da si-tuação de aprendizagem sem, no entanto, desvalorizar a transmissão de conhecimentos no ensino.

Considerações finais

Intencionamos, a partir deste estudo exploratório, compreender como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico, e, neste intento, caminhamos pelos referenciais teóricos da abordagem, bem como pelas experiências vividas no Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, a partir das Versões de Sentido.

Ao entendermos a Gestalt-terapia como construção sócio-histórica, temos consciência de seu próprio contí-nuo processo de (re)construção, da mesma forma, das res-postas que a abordagem dá a sociedade contemporânea, afirmando a importância do sentido ético dos discursos e práticas psicológicas. Compreendemos também que na tentativa de melhor se organizar em seus fundamentos epistemológicos e teóricos, a Gestalt-terapia se apresenta hoje de maneira cada vez mais presente no âmbito aca-dêmico, o que afirma a necessidade de pensarmos como se dá o processo de aprendizagem da Gestalt-terapia nes-tes espaços.

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“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

Destaca-se que na tentativa de superação de anti-gas dicotomias presentes nos primeiros momentos do desenvolvimento da Abordagem Gestáltica, propomos uma prática docente compromissada e pautada no ri-gor teórico-epistemológico, no entanto, sem esquecer o aspecto vivencial, tão enfatizado pelas abordagens fenomenológico-existenciais.

Ao entendermos a Gestalt-terapia como uma aborda-gem que propõe uma perspectiva compreensiva do outro, em que se toma como fundamento de sua prática clínica a abertura à consciência, o diálogo e o confronto com a alteridade, defendemos uma prática docente que possi-bilite aos alunos a consciência da alteridade em si e do outro. Prática docente que possibilite afetação, em que se experiencie momentaneamente o abandono das referên-cias, das seguranças do conhecido, e que proponha um conhecimento a partir desta afetação provocada pela ex-posição ao outro do professor, dos livros e das experiên-cias vividas a partir da experiência concreta em sala de aula. Experiência que promova estranhamento e uma cer-ta familiaridade, mas que tenha como intenção provocar respostas por parte dos alunos e do professor, respostas às exigências de cada situação vivida, cada texto, cada face que se apresente e que exija esta implicação responsiva.

Entendemos a necessidade de investimento em estu-dos mais profundos que tomem esta temática, haja vista que ainda nos parecem reduzidos os trabalhos que se pro-põem a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem no âmbito acadêmico. Esperamos que a partir do conta-to dos leitores com a presente obra novas inquietações possam ser vivenciadas; questionamentos, divergências, mobilização que sinalizem afetação e que possibilitem o responder. Que os leitores, alunos e mestres, se conscien-tizem desta palavra que lhes é dirigida como texto, e que nos digam: “e o que me importa agora é unicamente que eu me encarregue deste responder. Mas em cada instân-cia aconteceu-me uma palavra que exige uma resposta” (Buber, 1982/2009, p. 43).

Referências

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Buber, M. (1963). ¿Qué es el hombre?. México, DF: Fondo de Cultura Económica (Original publicado em 1942).

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Hycner, R. (1997). Relação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.

Lévinas, E. (1988). Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70 (Original publicado em 1980).

Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa mundana em psicoterapia. São Paulo: Annablume.

João Vitor Moreira Maia - Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (Bolsista Capes/Propag); Gestalt-terapeuta e Coordenador Pedagógico do Instituto Gestalt do Ceará. Endereço Institucional: Instituto Gestalt do Ceará, Rua João Regino, 474 (Parque Manibura). CEP 60821-780, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: [email protected].

José Célio Freire - Professor Associado do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço Institucional: Departamento de Psicologia. Av. da Universidade, 2762 (Campus do Benfica), CEP 60020-180, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: [email protected].

Mariana Alves de oliveira - Graduanda em Psicologia pela Universi-dade Federal do Ceará e Aluna do Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica. E-mail: [email protected].

Recebido em 10.05.2012Primeira Decisão Editorial em 25.09.2012

Aceito em 12.12.2012

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Lauane Baroncelli

ADOLESCêNCIA: fENÔMENO SINGULAR E DE CAMpO

Adolescence: a singular and field-related phenomena

La adolescencia: un fenómeno único y producidos en el campo

lAuAne bAroncelli

Resumo: O período do desenvolvimento humano denominado adolescência vem sendo frequentemente concebido, tanto na lite-ratura científica sobre o tema, quanto no imaginário do homem comum, de forma estereotipada e generalizante. Condições de caráter histórico e concreto são, nesta ótica, naturalizadas, e a adolescência é tomada como uma série previsível de característi-cas comuns a todos aqueles que vivenciam o período. Neste artigo, analiso como e por que a Abordagem Gestáltica questiona e refuta tal perspectiva. Na literatura sobre adolescência, tais questões vêm sendo tradicionalmente discutidas na perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica. Por isso, e considerando também a afinidade teórica desta perspectiva com a Gestalt-terapia no que tange à relação indivíduo/contexto, o artigo inicia com uma breve discussão sobre a ótica sócio-histórica acerca da adolescência. Em seguida, analisa-se como a Gestalt-terapia, por meio de seus pressupostos teóricos mais elementares – destacando-se, entre eles, a Teoria de Campo de Kurt Lewin – ressoa e oferece novas nuances à crítica sócio-histórica, concebendo a adolescência como um fenômeno singular e de campo.Palavras-chave: Adolescência; Gestalt-Terapia; Psicologia sócio-histórica; Teoria de campo.

Abstract: The developmental period called adolescence has been often conceived, both in the scientific literature about the subject as well as in common sense, from a stereotyped and generalizing point of view. Historical and concrete conditions are, in this perspective, conceived as natural features of adolescence and the period is taken as a set of predictable characteristics common to all adolescents. In this paper, I analyze why and how the Gestalt Approach refutes this perspective. In the literature on adolescence, these issues have been analyzed on the perspective of the Socio-historical Psychology. As such, and also be-cause of the affinities between this perspective with Gestalt-therapy in regard to the relationship between individual and con-text, the paper begins with a brief discussion about the socio-historical outlook on adolescence. Following, it is analyzed how Gestalt-therapy, according to its most elementary theoretical premises – foremost among them, the Kurt Lewin’s Field theory – resonates and, at the same time, provides new nuances to the socio-historical critique, conceiving adolescence as a singular and field-related phenomenon. Keywords: Adolescence; Gestalt-Therapy; Socio-historical psychology; Field theory.

Resumen: El período de desarrollo llamado adolescencia a menudo se ha concebido, tanto en la literatura científica sobre el tema, así como en el sentido común, desde un punto de vista estereotipado y generalizado. Condiciones generales de uso histó-rico y concreto son, en este punto de vista, naturalizada, y en la adolescencia se toma como una serie predecible de caracterís-ticas comunes a todos los que experimentan el período. En este artículo se analiza cómo y porqué el enfoque Gestáltico refuta esta perspectiva. en las teorias sobre la adolescencia, estas cuestiones han sido analizadas desde la perspectiva de la Psicología socio-histórica. Como tal, y también debido a las afinidades entre esta perspectiva con la Gestalt-terapia en cuanto a la relación entre el individuo y el contexto, el artículo comienza con una breve discusión sobre el panorama socio-histórico en la adoles-cencia. A continuación, se analiza cómo la Gestalt-terapia, de acuerdo con sus supuestos teóricos más básicos – entre los que destaca la Teoría del Campo de Kurt lewin – resuena y, al mismo tiempo, ofrece nuevos matices a la crítica histórico-social, con-cibiendo la adolescencia como un fenómeno singular y de campo.Palabras-clave: Adolescencia; Gestalt-Terapia; Psicología socio-histórica; Teoría de campo.

Introdução

O presente artigo pretende discutir a adolescência sob a perspectiva da Gestalt-terapia, entendendo-a como um fenômeno singular e de campo. Nesta direção, questio-namos a concepção naturalizante presente em diversos estudos sobre a adolescência em que características de caráter supostamente universal são tomadas como con-dição natural deste período.

Para desenvolver tal argumento, o artigo estabelece uma articulação entre algumas leituras sobre a adoles-

cência na ótica da psicologia sócio-histórica e o emba-samento teórico da Gestalt-terapia. A escolha de tal rota teórica se justifica pela coerência entre tais abordagens no que tange à relação indivíduo-contexto.

A Psicologia Histórico-Cultural ou Sócio-Histórica fundada por Liev S. Vygotski na década de 1920 e de-senvolvida por autores como Luria e Leontiev entende o indivíduo como um ser constituído nas condições con-cretas de sua existência. Sob inspiração do materialismo histórico dialético de Karl Marx, o indivíduo é concebido nesta abordagem como um ser ativo e histórico. Em outras

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Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo

palavras, como determinado e determinante da própria condição no interior de um dado contexto.

Similarmente, a Gestalt-terapia – refletindo dentre ou-tros aspectos teóricos, a assimilação de certos pressupos-tos-chave da Teoria de Campo fundada por Kurt Lewin – vê o ser humano como um existente impossível de ser compreendido fora do contexto de suas relações, desde as mais elementares, com as pessoas de seu convívio, até as mais amplas, com a sociedade, a história, e o universo.

Em um artigo esclarecedor acerca das fontes epistemo-lógicas do pensamento vigotskiano, Toassa e Souza (2010) sublinham algumas importantes afinidades teóricas entre Vigotski e Kurt Lewin. Dentre tais afinidades, as autoras destacam os conceitos de espaço vital e campo psicológico de Lewin de um lado, e o conceito vigotskiano de vivên-cia, de outro. Segundo elas, a imersão do indivíduo em seu meio é destacada em ambos, superando concepções dualistas de outras psicologias nas quais uma cisão ar-tificial entre meio e indivíduo é estabelecida.

Desde Lewin e Vigotski, portanto, pode-se dizer que a abordagem sócio-histórica e a Abordagem Gestáltica convergem no que tange a consideração dos fenômenos em sua totalidade, superando dualidades como interno/externo, biológico/social, ontogênese/filogênese, psíqui-co/orgânico, homem/sociedade, dentre outras.

Reconhecendo tais ressonâncias, é necessário ressal-tar, entretanto, que o presente estudo não almeja desen-volver uma articulação da ótica Sócio-Historica sobre a adolescência com a visão da Gestalt-terapia. Além de não ser o foco do artigo, tal proposta ultrapassaria em muito o espaço disponível.

É importante esclarecer ainda que acreditar na pos-sibilidade de diálogo entre tais abordagens não implica sugerir que estas são congruentes em todos os seus as-pectos teóricos e filosóficos. A própria afinidade teó-rica entre Lewin e Vigotski, por exemplo, não exclui a existência de diferenças importantes entre as suas te-orias, o que se revela, por exemplo, na forte inspiração histórico-cultural, marxista, presente no pensamento de Vigotski e ausente nas idéias do primeiro. A inspira-ção marxista dota a ótica sócio-histórica de uma ênfase particular na idéia de dominação econômico-ideológica e política no interior da sociedade capitalista e de crí-tica a este sistema, ênfase esta que não faz sentido na Gestalt-terapia.

Além disso, embora afirmem o homem como multi-dimensional, determinado e determinante de sua con-dição, em algumas análises, a dimensão de determina-ção se sobrepõe ao reconhecimento e devida valoriza-ção da liberdade e singularidade humanas como enten-de a Gestalt-terapia. Ainda, o caráter fenomenológico da Gestalt-terapia a diferencia da perspectiva sócio-histórica que, numa inspiração vigotskiana, postula que a compre-ensão dos fenômenos só é possível a partir de uma expli-cação (e não “meramente” uma descrição) das relações que o determinam.

Muitas outras diferenças poderiam ser discutidas, mas como dito, não é este o espaço para tal. Nosso obje-tivo é, portanto, e tão somente, explorar e desenvolver a compreensão da adolescência na Abordagem Gestáltica como um fenômeno singular e de campo partindo de um diálogo com algumas leituras da abordagem sócio-histó-rica acerca do tema.

A afinidade de posicionamento teórico no que con-cerne, como mencionado anteriormente, à relação indi-víduo-contexto torna tal articulação teórica não só pos-sível como também bastante inspiradora para o entendi-mento do fenômeno da adolescência numa ótica gestál-tica. Assim, se por um lado, a ênfase nas determinações sócio-históricas é rejeitada pela Gestalt-terapia, por outro lado, a ênfase oposta, nos aspectos biográficos do ser em contraposição aos aspectos mais amplos da pertença ao mundo social, cultural e econômico é outra maneira de também negligenciar partes e, portanto, de perder a visão de todo tão valorizada nesta abordagem. Como psicólo-gos e psicoterapeutas, sabemos que, na prática, o risco na direção de uma compreensão psicologizante do huma-no é sempre presente, embora também acreditemos que a fundamentação teórica da Gestalt-terapia nos protege disso. Assim, não só no sentido teórico, mas também no sentido pragmático, o diálogo com uma abordagem que sublinha o olhar sócio-histórico parece relevante.

1. A Leitura Sócio-Histórica da Adolescência

Conforme os estudos de Aguiar, Bock e Ozella (2001) a idéia hoje hegemônica sobre a adolescência é contem-porânea ao surgimento da sociedade moderna industrial. Segundo os autores, é por meio da maior permanência dos jovens nas escolas e do correlato retardamento da profissionalização dos mesmos no interior de um de-terminado sistema sócio-cultural e econômico que se conforma a adolescência com as características que co-nhecemos hoje.

Discutindo a adolescência sob o ponto de vista da Psicologia Sócio-histórica, Facci e Tomio (2009) sugerem que uma indicação clara da conformação histórica da adolescência se revela no discurso das gerações anterio-res. As autoras observam que pessoas nascidas por volta da década de 1940 e anteriormente, costumam declarar que “no seu tempo não havia adolescência”, no sentido de um período intermediário entre a infância e a idade adulta. Tais discursos sugerem que há cerca de 80 anos, as pessoas passavam da condição de criança diretamen-te para a de adulto, processo este fortemente vinculado à presença do trabalho, principalmente no caso dos ho-mens. No caso das mulheres, apontam as autoras, uma vez que estas eram chamadas a cuidar da casa ou mes-mo de uma nova família (na medida em que se casavam bem mais cedo), este “período de latência” entre infância e vida adulta também não fazia sentido. Somente a partir

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da necessidade de prolongar o tempo de formação dos jo-vens – a fim de prepará-los para as novas as demandas de trabalho geradas pela industrialização emergente – que a idéia, os discursos e, em muitos sentidos, a própria expe-riência da adolescência começa a se constituir.

Um estudo de Clímaco (1991, conforme citado por Bock, 2007) ressalta que outro aspecto relevante na cons-trução histórica da adolescência foi o impacto gerado pelo desenvolvimento científico sobre a prolongação da vida e o consequente aumento de adultos jovens em idade de trabalho. A partir disso, mais uma razão se colocava para aumentar o tempo de permanência nas escolas, pois, além da já citada demanda de formação mais sofistica-da, a escolarização prolongada ajudaria a regular a alta taxa de desemprego dos estágios iniciais do desenvolvi-mento industrial.

Neste processo, os filhos passam a viver mais tempo sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de traba-lho, ao mesmo tempo em que surgem as oportunidades para que encontrem, na escola, os chamados “grupos de iguais”. Com isso, apesar de ser possível assumir um pa-pel diverso na sociedade (como acontecia no passado), o jovem se distancia do mundo do trabalho e das possibili-dades de obter autonomia e condições de sustento. Estão lançadas, assim, as condições sociais que “convidam” os jovens a desenvolver uma série de características que, nos dias de hoje, são frequentemente concebidas como naturais (Bock, 2007).

Segundo a crítica sócio-histórica, com a qual con-cordamos, os discursos de caráter naturalizado so-bre a adolescência devem ser revisitados. No domí-nio da Psicologia, sob influência da Psicanálise e da Epistemologia genética principalmente, uma visão na-turalizante da adolescência é desenvolvida e se propa-ga por todo o ambiente cultural. Nesta ótica, a adoles-cência é decorrente, sobretudo, de um acelerado pro-cesso de mudanças biológicas e ‘pulsionais’ (por meio do despertar da sexualidade no nível da maturidade genital) que, por si só, acarretam as mudanças suposta-mente inerentes ao desenvolvimento adolescente (Facci & Tomio, 2009).

Ao alienar a participação da cultura na conforma-ção das visões e experiências da adolescência, tal pers-pectiva naturalizante subestima não apenas as raízes históricas do período como também os interesses subja-centes de mercado que se beneficiam de uma delimita-ção precisa de características, hábitos e interesses nesta época da vida.

Num artigo que trata da historicidade dos conceitos de infância e de adolescência, Frota (2007) cita diversos autores que analisam a interrelação entre adolescência e mercado. Abramo (1994, conforme citado por Frota, 2007), por exemplo, analisa que por volta da década de 1960, período em que os chamados movimentos estudan-tis e, portanto, os jovens, ganham grande projeção cul-tural, surge uma grande variedade de signos associados

à cultura juvenil. Estes, sendo incorporados pelo mer-cado (em rápida evolução na época) e espetacularizados na lógica própria do marketing e dos meios de comuni-cação, ajudam a produzir novos traços para a identida-de juvenil. Marcadas por imagens produzidas de “ser jovem” – muitas vezes associadas à rebeldia, contesta-ção de regras e à busca do prazer – e pelo consumo de determinados bens e serviços, as identidades adolescen-tes vão então se constituindo. Nesse processo, em alguns níveis, a adolescência se torna um discurso de mercado que simultaneamente revela e produz visões e experi-ências de ser adolescente.

Tais raízes históricas são raramente levadas em con-sideração nos estudos clássicos sobre o tema. Ao invés disso, a adolescência tem sido tradicionalmente descrita como um período inerentemente problemático em que a irresponsabilidade, a rebeldia gratuita e as identifica-ções massificadas com grupos e tribos predominam não como conseqüência de tais forças, mas como um efeito previsível numa adolescência dita normal.

Aguiar et al. (2001) sublinham o papel central da Psicanálise na construção desta perspectiva, em que a adolescência é tomada como uma fase inerentemente pro-blemática a ser ultrapassada em direção à maturidade. Particularmente, afirmam os autores, diante da influên-cia exercida pelo psicólogo Stanley Hall (introdutor da psicanálise nos Estados Unidos) a adolescência passa a ser concebida como uma etapa marcada por conturbações vinculadas à emergência da sexualidade.

Mais recentemente, Aberastury e Knobel (1992) repro-duzem e disseminam tal concepção naturalizante. Na lei-tura dos autores, após tornar-se biologicamente capaz de exercer a sua genitalidade para a procriação, e vivenciar mudanças “incontroláveis” em seu corpo, instauram-se conflito referentes à diferença entre o corpo real e o corpo ideal e ainda quanto à própria definição da sexualidade, que não ocorre de imediato. Tal conflito fomenta reações de instabilidade afetiva, crises, conduta turbulenta ou de indiferença, angústias e ansiedades, configurando uma espécie de “patologia normal da adolescência”.

Outro aspecto problemático das visões sobre a ado-lescência que vem sendo denunciadas pela perspectiva sócio-histórica diz respeito à postulação de caracterís-ticas supostamente universais do período baseadas, na realidade, nas condições de adolescentes oriundos das classes médias e altas da sociedade.

Tais características e experiências, tomadas em análi-ses pouco cuidadosas como generalizáveis, são, entretan-to, plenamente situadas. Neste sentido, a singularidade das contradições e incertezas de adolescentes oriundos das classes populares, que pra começar, experimenta-ram infâncias bastante diversas, raramente é levada em consideração. Eles são adolescentes e isso parece dizer tudo. Será?

As pesquisas de Aguiar e Ozella (2008) sugerem que a resposta a esta pergunta deve ser um sonoro “não”.

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Segundo os autores, muitos adolescentes das classes mais pobres da sociedade, contrariando a cartilha dos manuais de psicologia, não sofrem tanto com os tradicionalmente mencionados conflitos familiares na luta pela diferen-ciação e construção de si ou com as dúvidas quanto à escolha da carreira. Frequentemente, observam as auto-ras, suas dores se revelam, principalmente, em sua falta de perspectivas, no medo de ficarem desempregados e, mais do que pensar em escolher uma profissão, duvidam se poderão conseguir um trabalho.

Desse modo, se o adolescente vivencia um lugar social em que projetos de vida e até mesmo de sobrevivência estão em cheque, definir ‘quem eu sou’ pode ser mais do que uma manobra de discriminação em relação aos pais e outros adultos significativos. Em alguns casos, o campo em que se constituem impõe a necessidade de discrimi-nar-se de um não-lugar na sociedade a fim de que outro lugar, possível, possa ser projetado.

2. perspectivas Gestálticas: Adolescência-no-Campo

Ao investigar tais circunstâncias sobre o ponto de vis-ta da Gestalt-terapia, constata-se, em primeiro lugar, que o questionamento acerca dos condicionantes contextuais da adolescência realizado pelos autores da abordagem sócio-histórica é bastante coerente com a perspectiva de relacional abraçada pela abordagem.

Como desenvolveremos a seguir, a Gestalt-terapia en-tende ser a concretude da existência do ser-no-mundo que se manifesta em cada adolescente. Tal concretude inclui, mas não se limita, nem se organiza a partir do aspecto fisiológico das mudanças corporais, como diversas abor-dagens teóricas pressupõem. Ser adolescente é, portanto, sê-lo num determinado corpo, mas também numa deter-minada sociedade, etnia, classe social, cultura, família e para determinada pessoa que vai significar todos estes aspectos de formas sempre únicas.

Desta maneira, a perspectiva evolucionista em que o desenvolvimento psicológico ocorre de maneira progres-siva por meio de estágios fixos e invariáveis – adotada pelas teorias tradicionais sobre adolescência – deve ser contestada. Ao conceberem seres abstratos que atraves-sam os mesmos estágios, na mesma sequência, em dire-ção à maturidade, tais teorias alienam pelo menos dois aspectos fundamentais da Abordagem Gestáltica: a con-cretude existencial dos existentes e sua singularidade. Concordamos então com as idéias de Antony (2006) e Soares (2005) quando sustentam que a compreensão do desenvolvimento segundo a Gestalt-terapia supera a visão reducionista e determinista do existir humano que com-partimenta, fixa e normaliza as fases da vida

Na Gestalt-terapia, a idéia de seres concretos e situados é revelada desde a noção de campo-organismo-ambiente apresentada por Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) no livro inaugural da Gestalt-terapia:

Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação organismo--ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um animal que respirar sem considerar o ar e o oxigênio como parte da definição deste, ou falar de comer sem mencionar a comida (...). Não há uma única função, de animal algum, que se complete sem objetos e ambiente (...). Denominemos esse interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/ambiente’ e lembremo-nos de que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instin-tos, etc., estamos nos referindo sempre a este campo interacional e não a um animal isolado (p. 42-43).

A Teoria de Campo de Kurt Lewin, embutida na de-finição gestáltica de campo-organismo-ambiente, intro-duz a idéia de que, psicologicamente, diversas forças e influências agem umas sobre as outras produzindo um resultado que é sempre único dentro de um tempo igual-mente específico.

Em “Principles of Topological Psychology” (1936), Kurt Lewin explicita sua perspectiva acerca do papel do ambiente na vida individual, esclarecendo que este não deve ser tomado como uma força exterior que ser-ve meramente para facilitar ou para inibir tendências prévias e definitivamente estabelecidas na natureza da pessoa.

Ora, é justamente essa a perspectiva tradicionalmente assumida pelas teorias psicológicas do desenvolvimento ao abordarem a adolescência. De acordo com tais teorias, o homem é dotado de uma natureza e suas relações com o meio apenas permitem (ou dificultam) a atualização de tais traços naturalmente dados.

Segundo o estudo de Muuss (1996), Kurt Lewin apre-senta sua teoria da adolescência em trabalho intitulado “Teoria de campo e experimento na psicologia social” (Lewin, 1939, citado por Muuss, 1996), fornecendo al-guns elementos importantes para pensar a adolescência na perspectiva gestáltica.

Um aspecto fundamental do pensamento lewiniano nesta área é sua crítica de conceitos psicológicos base-ados na frequência com que ocorrem numa população dada. Segundo Lewin (1939, conforme citado por Muuss, 1996) na medida em que leis psicológicas são abstraídas a partir do comportamento de muitos s, elas só podem ser verdadeiras em termos de probabilidade. A análise de Kurt Lewin sobre adolescência se propõe, portanto, a explicar e a descrever a dinâmica de comportamento de quem vivencia o período sem apostar numa generalização possível para a adolescência enquanto grupo.

Tal observação é muito oportuna e bastante congruen-te com a perspectiva teórica e filosófica da Abordagem Gestáltica bem como com o argumento principal do pre-sente artigo. Assim, embora as teorias psicológicas se re-firam a comportamentos e sentimentos possíveis e por vezes freqüentes, estes são equivocadamente transfor-

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mados em leis psicológicas gerais e, portanto, naturais e intrínsecas ao desenvolvimento humano.

Lewin chama atenção para a dificuldade de nomear a interação indivíduo-ambiente sem isolar cada elemento do par. Para dar conta deste problema, o autor introduz o termo “espaço de vida psicológico” que indica, segun-do ele, a totalidade dos fatos que afeta o comportamento de uma pessoa num certo momento (Lewin, 1936). Essa totalidade dos fatos cria um campo dinâmico, o que sig-nifica que uma mudança numa das partes afeta todas as demais partes e o campo como um todo.

Embora na visão de Kurt Lewin a adolescência seja vista como um fenômeno sempre diferenciado para cada pessoa, algumas regularidades são apontadas por ele no que concerne às transformações que ocorrem no espaço de vida do jovem. No período da adolescência, observa Lewin (1939, citado por Muuss, 1996), este se torna mais extenso e mais diferenciado em comparação ao espaço de vida mais restrito e pouco diferenciado da criança. O adolescente conhece mais pessoas, torna-se familiar com mais áreas geográficas, informações, ou seja, têm maiores recursos cognitivos, sociais, físicos e de linguagem para contatar o ambiente e a si mesmo. Muuss (1996) ressalta, entretanto, que na proposta lewiniana, uma compreensão acurada de tais novidades precisa levar em consideração o caráter dinâmico e sempre particular do ambiente no qual as mudanças ocorrem e, ainda, as diferentes formas de sensibilidade e modos de ação.

Isso significa que pra Lewin o ambiente não é somen-te a totalidade dos fatos presentes, mas inclui, também, o ambiente tal como é percebido e interpretado pela pessoa, de acordo com suas próprias necessidades do momento. Como analisa Evangelista (2010), o “meio” na Teoria de Campo é o “meio fenomenológico”, isto é, o ambiente tal como a pessoa o experimenta e não como uma presença objetiva. Neste sentido, verifica-se que a concepção ges-táltica de indivíduo relacional e singular ressoa desde as idéias lewinianas, perspectiva esta que reconhecidamen-te influenciou a constituição da Gestalt-terapia.

Vale sublinhar, ainda, que a idéia de campo na Gestalt-terapia vai além das definições propostas por Lewin. Como colocado acima, a Teoria de Campo é ape-nas uma das fontes na qual a Gestalt-terapia foi “be-ber” para construir a formulação própria desta abor-dagem. Deste modo, além de elementos da Teoria do Campo, esta integra (e transforma) elementos da Teoria Organísmica, da Psicologia da Gestalt e das concep-ções filosóficas do Humanismo, Existencialismo e da Fenomenologia.

Inclusive, algumas análises (por exemplo, Evangelista, 2010) sugerem que ao recorrer ao modelo da física, a Teoria de Campo tende a objetificar o ser humano en-tendendo-o a partir das mesmas leis que regem objetos físicos. Tal concepção, segundo o autor, se choca com a ótica fenomenológica, baseada na idéia de que as pessoas devem aparecer para a compreensão do psicólogo a partir

de sua humanidade e não a partir de leis objetivas mecâ-nicas como postula a teoria de Lewin.

Embora não caiba aqui uma análise mais amiúde de tal posicionamento critico, vale destacar que não apenas a teoria lewiniana, mas diversos outros elementos – filoso-fias ou teorias que fundamentam a Abordagem Gestáltica – compõem a visão gestáltica da noção de campo. Deste modo, uma compreensão “de campo” que supera as men-cionadas dicotomias entre indivíduo/sociedade e outras marca a Gestalt-terapia para além da influência de Lewin, pautando-se na própria natureza holística da abordagem. É isso que leva Antony e Ribeiro (2005) a afirmarem que de acordo com as suas teorias de base, “a Gestalt-terapia fundou uma visão holística calcada no conceito todo--parte, onde somente a totalidade contém o significado a partir das múltiplas interações existentes entre as partes e os campos (...)” (p. 193).

Isso sugere uma visão de adolescência como um fe-nômeno global que integra “num todo singular” as diver-sas forças do ser-no-campo e não como mera latência em direção à maturidade. Como resume Almeida (2010, p. 19), “estamos, a todo instante, imersos em uma comple-xidade infindável de estímulos, vivências, experiências que não podem ser restritas a uma linha do tempo” do-tando a visão de desenvolvimento na Gestalt-terapia de uma perspectiva oposta à idéia de amadurecimento tão comumente adotada pelas abordagens de desenvolvimen-to. Aguiar (2005) também aborda a questão, destacando que ao conceber o homem como um todo singular em constante transformação na busca de equilíbrio (equi-líbrio este ora perturbado, ora recuperado numa articu-lação entre necessidades e possibilidades no campo) a Gestalt-terapia não pode pensar o ser – na lógica da uni-versalidade – como um projeto inacabado ou imperfeito que viria a se concretizar na fase adulta.

Neste ponto, alguém poderia argumentar que um aspecto universalmente presente na adolescência são as transformações físicas sofridas pelo corpo neste pe-ríodo da vida. De fato, as mudanças físicas são marcas concretas desta fase. No entanto, o corpo não é entendi-do, na Gestalt-terapia, em relação de exterioridade em relação aos domínios subjetivos e relacionais. Assim sendo, embora as mudanças físicas sofridas pelo ado-lescente tenham um caráter objetivo enquanto “marcas” no corpo, estas são necessariamente significadas pelo ser-no-campo.

Nesta direção, Perls (1988) observa que a partir da perspectiva de campo que marca a Gestalt-terapia, não faz qualquer sentido entender as ações mentais e físicas de forma cindida. Portanto, a tentativa de en-contrar um padrão geral nos supostos “fatos objetivos” do corpo (o que contrariaria a concepção de adoles-cência como fenômeno sempre singular e de campo) não se sustenta.

O Gestalt-terapeuta norte-americano McConville (2001), apoiando-se nos estudos de Kurt Lewin, conce-

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be a adolescência como uma desestruturação da unida-de da infância por meio da expansão do espaço de vida e da transformação dos processos de contato que orga-nizam o campo.

Para entender esta afirmação, é necessário fazer, nes-te ponto, uma breve introdução ao conceito de contato na Gestalt-terapia. Contato envolve tanto a noção de self quanto a de campo, referidas anteriormente. Segundo Perls et al. (1951/1997): “Primordialmente o contato é a awareness da novidade assimilável e o comportamento em relação a esta e rejeição da novidade inassimilável. O que é difuso, sempre o mesmo, ou indiferente, não é objeto de contato” (p. 44). Mais adiante, continuam os autores: “Todo contato é ajustamento criativo do orga-nismo e ambiente. Resposta consciente no campo (como orientação e como manipulação) é o instrumento de cres-cimento no campo” (p. 45).

A presença da novidade na adolescência é, em mui-tos aspectos, notável. Neste período, o adolescente co-meça a se defrontar com a necessidade de definir a sua vida diante das novas questões existenciais como as que se depara – concernentes a sua sexualidade, os seus estudos, relacionamentos de amizade, escolha da car-reira e tantas outras, que demandam decisões íntimas (McConville,1995). Por consequência, este é um período do desenvolvimento no qual a capacidade de contato, que se desenvolve durante toda a vida, é vivida de maneira intensa e significativa.

Neste sentido, conforme McConville (1995), a fronteira de contato do adolescente – limite que contém e protege o organismo ao mesmo tempo em que contata o ambien-te (Perls et al., 1951/1957) – está se constituindo, ama-durecendo e sendo burilada diante dos novos desafios.

Em termos concretos, ainda segundo McConville (1995), quando criança, vivencia-se uma relação de de-pendência vinculante com os adultos no qual boa parte de seu espaço de vida é indiferenciado do espaço de vida adulto. Cabe aos adultos, por exemplo, a maior parte – senão todas – as decisões a respeito de suas atividades, como por exemplo, a escolha de sua escola, métodos pe-dagógicos, aceitação de professores, tipo de alimentação, de diversão e programas culturais, atividades educativas extra-escolares etc. O padrão relacional estabelecido na infância é, fundamentalmente, jogar, obedecer, aprender e depender enquanto na adolescência, o caminho é em direção à independência.

Problematizando a descrição de McConville e, ao mesmo tempo, ressaltando a dimensão de campo des-te processo, é interessante observar que sua análise faz sentido no interior de um contexto cultural dado – o das sociedades ocidentais contemporâneas1 – e, de forma pri-vilegiada, melhor se ajustam a determinados segmentos

1 Ressaltamos que o próprio contorno do termo “sociedades ocidentais contemporâneas” como uma unidade evidente e indiferenciada é bastante contestável, o que se revela, no campo sociológico, por meio da noção de “múltiplas modernidades” (Eisenstadt, 2000).

sócio-culturais no interior dessa. De fato, na tentativa de aplicar tal descrição à realidade de crianças oriundas de segmentos pobres de nossa sociedade, contradições sig-nificativas emergem. Assim, embora uma criança não vá, por exemplo, escolher uma escola discernindo sobre os métodos pedagógicos, muitas crianças, assumindo a tarefa de cuidarem dos irmãos mais novos precisam se responsabilizar e tomar decisões desde muito cedo. Desse modo, sua experiência de depender, embora não seja nula, é certamente diferenciada para este público.

Além disso, embora seja possível dizer que, na infân-cia, a criança está mais disposta a receber informações de maneira passiva ela definitivamente não é um mero receptor de princípios adultos. A depender das condições gerais do campo (incluindo aspectos familiares, culturais, históricos, educacionais e outros) e da singularidade de cada criança, o questionamento e a escolha farão parte de suas interações na vida. Nesta linha de argumenta-ção, Aguiar (2005) ressalta o surgimento da capacidade de diferenciação ainda na infância, quando a criança é capaz de rejeitar ou digerir determinada introjeção fami-liar, iniciando o processo de constituição de sua fronteira de contato, processo esse que continuará a se aperfeiçoar ao longo do tempo.

Ainda, levando em conta o campo sócio-cultural que caracteriza as sociedades contemporâneas – em que as antigas autoridades tradicionais têm seu poder diluído e, dentre outros aspectos, o antigo abismo de poder entre as gerações é questionado – as crianças dos dias de hoje também “são outras”. Cada vez mais, elas perguntam, questionam e por vezes “colocam os pais em cheque”, apontando-lhes contradições e até mesmo questionando seus valores (comportamento anteriormente tipicamente esperado apenas com a chegada da adolescência). Assim, diante das complexidades do mundo contemporâneo, em que a antiga força e rigidez da palavra dos pais são di-luídas diante da coexistência de múltiplos referenciais de sentido (Berger & Luckmann, 1995) é cada vez mais freqüente que os pais / responsáveis se sintam perdidos e fragilizados diante da necessidade de impor limites e mesmo diante da necessidade de se diferenciar, em ter-mos de papel, das crianças.

Quanto à adolescência, jovens das classes populares se depararam com questões por vezes bastante diversas das de um jovem típico da classe média.

Isso não significa, entretanto, que a condição sócio--econômica determina a adolescência de uma forma to-talizante estabelecendo uma espécie de “classificação” de características da adolescência de acordo com as con-dições materiais. Na ótica gestáltica, o que muda são as forças presentes no campo, o que certamente afeta, mas de modo algum determina o comportamento e as expe-riências dos jovens.

No que diz respeito à dimensão tempo, (que precisa ser sempre levada em consideração numa abordagem “de campo” como a Gestalt-terapia) a época contemporânea

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introduz diversas transformações na experiência de ser adolescente.

Como diversas análises têm ressaltado (ver por ex.: Lira, 2010; Garcia & Rocha, 2008; Calligaris, 2000), o an-tigo anseio de se tornar adulto, escolher uma profissão, assumir responsabilidades, constituir família etc. vêm sendo permeado por aspectos contraditórios.

Se por um lado é provável que tais anseios ainda existam, por outro, eles convivem com a valorização da adolescência como ideal cultural (Garcia & Rocha, 2008). Isso se revela em circunstâncias nas quais a antiga e tra-dicional versão cultural em que adolescentes querem pa-recer e ter os direitos e liberdades dos adultos aparece de forma invertida. Atualmente, numa cultura em que a liberdade, o prazer e a juventude (de corpo e espírito) são propagados como instrumentos de valor pessoal ou até mesmo como imperativos sociais é cada vez mais co-mum encontramos adultos querendo ter direitos e liber-dades de adolescentes.

Deste modo, falar em conflitos de gerações, ou mes-mo descrever a adolescência como uma transição para o mundo adulto, pode significar cair no vazio. O vazio é gerado pela falta de sensitividade para os elementos de--um-campo que como analisamos anteriormente, é sem-pre mutante no tempo e no espaço.

3. “Liberdade” e “Campo”: facetas Inextrincáveis no Conceito de Ajustamento Criativo

O conceito gestáltico de ajustamento criativo, abso-lutamente conectado ao conceito de contato e de campo referidos anteriormente, constitui um elemento central da visão gestáltica sobre processos de saúde e doença, sendo, portanto, fundamental para a compreensão do desenvolvimento humano nesta abordagem.

Por meio da capacidade humana de ajustar-se criati-vamente ao meio, ao mesmo tempo em que o ser se cons-titui nas facticidades do desenvolvimento biológico, da cultura, da classe social e da época em que vivemos, pode lidar criativamente com isso, escolhendo e criando a si mesmo continuamente.

O ajustamento criativo pode ser definido como o pro-cesso pelo qual o existente se relaciona com o meio cria-tivamente na busca de equilíbrio através dos recursos disponíveis no campo (Ribeiro, 2006). Ou ainda, como define Moreira (2010, p. 24): “Ajustamento criativo sig-nifica auto-regulação, abertura ao novo, contato vivo e vitalizante, referindo-se à formação de novas configura-ções pessoais (ou gestalten) a partir da entrada de novos elementos através da experiência de contato”. Portanto, tal processo configura-se como uma expressão do ser--no-campo, no qual as facetas humanas de liberdade (revelado na palavra criativo) e contextualidade (sen-tido presente na palavra ajustamento) atualizam-se de maneira integrada.

No caso particular do adolescente, este fará então o possível para equilibrar-se diante da circunstância em que se encontra num balanço entre possibilidades pre-sentes de si mesmo e do contexto. Alguns ajustamentos podem, portanto, revelar respostas fluidas e espontâneas às suas novas necessidades. Por outro lado, alguns ajusta-mentos podem indicar um modo rígido e pouco respon-dente às mudanças enfrentadas.

Assim, se o trânsito entre a vivência do “campo in-fantil” para o “campo adolescente” pode, por um lado, constituir uma experiência de crise, por outro, a busca pelo projeto de si mesmo pode assemelhar-se mais a uma progressiva exploração de papéis e potenciais escolhas (que pode inclusive ter começado paulatinamente desde a infância) do que uma repentina busca sofrida e angus-tiada por si mesmo.

Tradicionalmente, enquanto o aspecto de regularida-de das tormentas emocionais e crises adolescentes é, re-petidamente, objeto de análise em diversas teorias sobre o desenvolvimento, outros aspectos, como a visão crítica, a amizade, a sinceridade e até a lucidez adolescente que a chamada maturidade frequentemente amortece são ra-ramente mencionados. Sendo a Gestalt-terapia uma abor-dagem que concebe o indivíduo como um ser relacional, transformador e único, a generalização ou universali-zação de supostas características da adolescência, bem como a exclusão de outras formas possíveis de se ajustar criativamente devem ser evitadas.

Para finalizar, vale destacar um elemento fundamen-tal do contexto do adolescente que afetará de modo im-portante seu processo de ajustamento criativo: seu rela-cionamento com os “outros significativos” (pais, respon-sáveis, professores, familiares, amigos etc.).

Se na criança o relacionamento com os familiares e adultos se caracteriza, predominantemente, por uma de-pendência vinculante, a partir das diversas mudanças no espaço de vida dos jovens, estes tendem a sentir a neces-sidade de serem tratados como indivíduos separados e independentes. Consequentemente, se perceberem ser ne-cessário, podem se ajustar criativamente à nova situação materializando um jogo de oposições com seus responsá-veis, contrariando opiniões, idéias e valores dos mesmos a fim de construir sua própria forma de ser.

Em algumas experiências, é possível que os respon-sáveis e familiares rivalizem com os adolescentes, ou si-gam tratando-os como crianças para, desta forma, negar a passagem do tempo e a finitude de seu poder e prima-zia sobre eles. Nestes casos, o campo como um todo está impregnado de elementos de conflito, e não apenas o ado-lescente, como se este existisse isolado em uma suposta interioridade conflituosa.

Por outro lado, tais padrões de relacionamento com a família também não devem ser naturalizados. Relações conflituosas com pais e responsáveis têm sido tão ampla-mente generalizadas nas leituras acadêmicas e no ima-ginário social sobre adolescência que algumas famílias

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desconfiam que algo possa estar errado caso o adolescente mantenha-se responsável, lúcido e uma companhia agra-dável. No entanto, a diferença humana ainda resiste às generalizações teóricas e alguns adolescentes efetivam ajustamentos criativos num campo em que a proximida-de e o diálogo com a família podem se desenvolver sem afetar sua necessidade de discriminação.

De qualquer modo, o comportamento do adolescente revela o que vive na escola, na família, na sociedade e na cultura. Em vários níveis, insistimos, ele não é ado-lescente sozinho. Na perspectiva de campo adotada pela Gestalt-terapia, cada existente co-existe numa realidade compartilhada em que todos estão implicados (Parlett, 2005). Entretanto, se é verdade que o adolescente não vivencia seus possíveis conflitos de modo interno, mas num campo, por outro lado, a família, a escola ou a so-ciedade também não são as causadoras por excelência de problemas na adolescência.

O existente (e, consequentemente, o adolescente) é para a Gestalt-terapia, produto e produtor de sua condi-ção. Revelando a noção de causalidade circular da Gestalt-terapia, a escola, a família, o mundo e o adolescente livre se influenciam mutuamente de modo a se tornar basicamente impossível detectar relações mecânicas de causa e efeito em suas interações (Brafman, citado por Toman e Bauer, 2005).

Considerações finais

Como pretendemos ter deixado claro ao longo do artigo, a Gestalt-terapia compartilha o questionamento – que vem sendo explorado na literatura sobre o tema, sobretudo, pela perspectiva sócio-histórica – acerca da naturalização da adolescência como um fenômeno abs-trato e universal.

Tal naturalização entra em choque com elementos fundamentais da concepção gestáltica de indivíduo, no-tadamente a consideração deste como um ser contextu-alizado (ser-no-campo) e singular e, portanto, como um existente que só pode ser compreendido no interior de suas relações sempre complexas e únicas com o mundo.

Sendo assim, podemos resumir dizendo que a leitura sobre a adolescência na ótica da Gestalt-terapia precisa ser flexível e complexa o suficiente para evitar os seguintes “engodos” teóricos: a naturalização do desenvolvimento adolescente, alienando aspectos históricos e contextuais inerentes a este; a correlata generalização e universali-zação de características que alienam a singularidade de cada experiência no mundo concreto; e, finalmente (as-pecto esse que inclui os dois últimos), faz-se fundamental evitar a cegueira conceitual que reproduz entendimentos teóricos sobre a adolescência que se tornaram hegemô-nicos tanto na academia como no imaginário social, ig-norando os aspectos reducionistas e estáticos embutidos em tais entendimentos que contrariam os pressupostos elementares da Gestalt-terapia.

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lauane Baroncelli - Psicóloga; Mestre em Psicossociologia de Co-munidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Doutoranda em Sociologia pela University College Cork e Membro do corpo docente do Dialógico Núcleo de Gestalt--terapia (Rio de Janeiro). Endereço Institucional: O’Donovan’s Road, Department of Sociology, University College Cork, Cork, Ireland. Email: [email protected]

Recebido em 14.03.12Primeira Decisão Editorial em 26.09.12

Aceito em 10.11.12

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A ESpACIALIDADE NA COMpREENSÃO DO TRANSTORNO DO pÂNICO: UMA ANÁLISE ExISTENCIAL

The spaciality in the understanding of the panic disorder: an existential analysis

La Espacialidad en la compreensión del transtorno de panico: una análisis existencial

GustAvo AlvArenGA oliveirA sAntos

Resumo: O texto apresenta um caso clínico sob a luz da análise existencial de Ludwig Binswanger. Elege-se a espacialidade como categoria central na compreensão clínica aqui apresentada. Em um primeiro momento, será apresentado ao leitor o conceito de espacialidade segundo a ontologia fundamental de Heidegger, em Ser e Tempo. Feito isso, o artigo traz à luz o conceito de pâ-nico, de acordo com a análise existencial. O relato do caso clínico, bem como sua análise, conforme os conceitos apresentados, desvelará de que forma o pânico pode ser entendido como um transtorno no modo de espacializar. Essa compreensão nos dará subsídios para um entendimento existencial do transtorno do pânico, bem como nos possibilita pensar em formas de condução do tratamento, diferente das tradicionais. Palavras-chave: Transtorno do pânico; Análise existencial; Espacialidade; Binswanger.

Abstract: This text presents a clinical case under the light of the existential analysis of Ludwig Binswanger. It is chosen spa-ciality as central category in the clinical understanding presented here. At a first moment, basic on the essential ontology of Heidegger in Being and Time, will be presented to the reader the concept of spaciality. Made this, the article brings to the light the concept of panic, in accordance with the existential analysis. The story of the clinical case, as well as its analysis, will re-veal of that it forms the panic can be understood as a disorder in the way of to space of the individual. This understanding in will give us subsidies for an existential agreement of the panic disorder, as well as in makes possible to think about forms of conduction of the treatment, differently of the traditional ones.Keywords: Panic disorder; Existential analysis; Spaciality; Binswanger.

Resumen: Este trabajo presenta un estudio de caso a la luz del análises existencial de Ludwig Binswanger. Elige a la espacia-lidad como uma categoria central en la comprensión del caso. En un primer momento, el lector se introducirá el concepto de espacialidad de acuerdo a la ontología fundamental de Heidegger, en Ser y Tiempo. A continuación, el artículo saca a la luz el concepto de pánico, de acuerdo con el análisis existencial. El caso clínico y su análisis dará a conocer como el pánico se puede compreender como un transtorno en el modo de espacializar. Esa comprensión subsidiará para un entendimento existencial del transtorno de pânico, mientras possibilitará piensar en modos de conducción del trataimiento, diferente de los tradicionales.Palabras-clave: Transtorno de pánico; Analísis existencial; Espacialidad; Binswanger.

Introdução

Este texto se propõe a discutir um tema recorrente na clínica psicológica e psiquiátrica: o transtorno do pâni-co. Para tanto, utilizaremos a categoria da espacialidade, tal como entendida pela Antropologia Fenomenológica de Ludwig Binswanger, na análise de um caso clínico. Em um primeiro momento, será esclarecido o signifi-cado do termo alemão Da-sein, em acordo com a onto-logia fundamental de Martin Heidegger, presente em Ser e Tempo. Esse conceito é base, e é a partir dele que entenderemos a categoria da espacialidade conforme a Analítica do Dasein.

O médico suíço Ludwig Binswanger foi um dos psi-quiatras inspirados pela nova perspectiva em que o ser do homem era concebido por Heidegger. A compreensão do homem como Dasein permitia possibilidades de compre-ensão das patologias mentais, embasados nos modos de

relação homem-mundo. Destacaremos nesse texto aspec-tos do ser do homem como Dasein, no sentido de elucidar um caso clínico, em especial no que tange à questão da espacialidade, já abordada por Heidegger e aplicada por Binswanger em sua psicopatologia.

Binswanger elucida essa relação da compreensão do homem como Dasein nos casos clínicos reunidos no livro Schizophrenie, publicado em 1957 (e inédi-to em português), onde aparecem os casos: Ellen West (1944-1945), Use (1945), Jürg Zund (1946-1947), Lola Voss (1949) e Suzan Urban (1952-1953). Nessa mes-ma época é também publicada a obra: Três Formas de Existência Malograda: Extravagância, Excentricidade, Amaneiramento (Binswanger, 1956/1972)1 em que são evidenciadas a partir da compreensão do Dasein, al-

1 Título original: Drei Formen missglückten Daseins. Verstiegenheit, Verschrobenheit, Manieriertheit.

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guns modos de ser que aparecem na esquizofrenia. Após essa fase, segundo Giovanetti (1990), o autor se utilizará da fenomenología transcendental de Edmund Husserl na análise de algumas patologias. Essa nova fase do pensamento de Binswanger se expressa, por exem-plo, em Melancolia e Mania. Estudos Fenomenológicos2 (Binswanger, 1960/1987), publicado em 1960, aparecerá nas considerações finais quando justificaremos por que o caso relatado não se trata de uma psicose.

Descreveremos brevemente o caso “Suzanne Urban”, último estudo clínico do autor, em uma perspectiva Daseinsanalítica, onde nos interessa a noção do Terror, que na aproximação de Pereira (1997), serve-nos para a compreensão do hoje chamado Transtorno do Pânico. Alguns apontamentos teóricos, relevantes da análise exis-tencial, empreendida por Binswanger nesse caso, servi-rão como subsídio para a discussão de um caso clínico de transtorno do pânico atendido pelo autor deste texto.

A descrição desse caso e sua análise, sob um ponto de vista analítico-existencial, alicerçado à categoria da espacialidade, contribui para um entendimento desse transtorno, tanto do ponto de vista teórico, como do pon-to de vista da condução do tratamento.

1. O Modo de Ser-em Espaço: A Espacialidade do Da-sein como Dis-tanciamento

Devemos esclarecer de antemão a que nos referimos quando nos utilizamos do termo Da-sein. Traduzido co-mumente por pre-sença, graças à edição atual de Ser e Tempo em português, o conceito tem gerado uma série de equívocos e mal entendidos quando utilizado à reve-lia da genuinidade que ele traz na concepção de homem atual. Preferimos neste texto, assim como tem sido uti-lizado por estudiosos da analítica existencial, utilizar o termo em alemão: Da-sein, para preservarmos o seu sen-tido original e nos livrarmos das ambiguidades presen-tes na tradução latina, alvo de muitas discussões entre os especialistas da área.

Longe de querermos alongar muito no tema e nos de-batermos em questões filosóficas de ordem ontológica, cabe-nos, para o que nos interessa neste artigo, demons-trar o pano de fundo sobre o qual foi concebido o concei-to, de forma que se torne claro a espacialidade implícita na sua própria concepção.

Da-sein foi o termo utilizado por Heidegger em Ser e Tempo, na busca de um ente em que poderia se colocar a questão sobre o Ser3. O Ser, segundo o autor, havia ca-ído no esquecimento em um mundo cada vez mais do-minado pelo tecnicismo científico que o transformou em

2 Título original: Melancholie und Manie. Phänomenologische Studien (inédito em português).

3 Para distinguirmos o Ser (Sein) em geral e o ser em particular, utili-zaremos o primeiro com maiúscula e o segundo com minúscula. O Ser em geral é ontológico, pois se refere à questão sobre aquilo que é, já o ser do Da-sein é particular, pois se singulariza no ente Da-sein.

um ente. A palavra Da- é pronome demonstrativo, signi-fica “Aí”; sein, “ser”; logo Ser-aí, é sua tradução literal. Da-sein é o ente através do qual o Ser é em relação, tornando assim possível a pergunta sobre ele mesmo.Da-sein é o homem enquanto existente, ou seja, imbuí-do da tarefa primordial de ter que constituir seu próprio ser, e nesse processo ser o ente através do qual é possível uma pergunta sobre o Ser em geral.

Interessa-nos, para este trabalho, apreendermos no Da-sein seu caráter eminentemente espacial. Destaca-se, que o modo pelo qual esse aparece, pressupõe de ante-mão uma relação intrinsecamente espacial já denotada em sua nomeação. O “Aí” é uma relação direta com o es-paço: sendo em relação, o homem não é aqui, junto com as coisas, mas tem que existir orientado para elas.

Enquanto um existente, que se orienta para algo, o homem tem entre si e o mundo um distanciamento, se-gundo Heidegger (1927/1997, p. 157): “(...) o que se acha à mão no mundo circundante, pode vir ao encontro em sua espacialidade”. Desse modo o Da-sein estabelece o seu ser-no-mundo, espacializando, e seu espacializar desvela que a relação com as coisas não é dada de ante-mão, mas se dá enquanto ultrapassa o distanciamento inerente à sua condição.

O modo como um indivíduo particular espacializa, é, para Binswanger, uma categoria importante na com-preensão das patologias mentais. O autor destaca no en-tendimento nos casos clínicos “Lola Voss” e “Suzanne Urban” essa categoria como elemento central para o en-tendimento das consequências da experiência que ele denomina como Terror.

O Terror se dá na vivência direta do abismo, no dis-tanciamento que há entre o Si e as coisas. A existência4 é uma condição abissal, pois no seu espacializar, ela se faz sobre o nada. Ela não é fundamentada, não é com o mundo, mas no mundo, ou seja, em relação a ele. O Terror é uma forma de Angústia, e essa última é o sentimento privilegiado que revela ao Da-sein seu modo de ser sobre o nada. No domínio da inautenticidade, o Da-sein se crê fundamentado no próprio solo que ele criou para habi-tar, alienando-se. Quando esse solo se revela inautênti-co através da vivência da angústia, o existente se vê sob o domínio de “ter-que-ser-si-mesmo” – que é a expressão utilizada por Binswanger na análise do caso Suzanne Urban, e que se refere à dimensão própria do existir que se caracteriza em ser irremediavelmente responsável por seu próprio ser-no-mundo – e o solo aparece como abis-sal. Chamond (2011) ao propor um estudo sobre a psico-patologia do espaço vivido de acordo com Binswanger destaca que para o autor:

A imagem da queda expressa uma possibilidade con-creta da espacialidade vivida, do corpo habitando o espaço: ela é uma estrutura antropológica do mundo,

4 Ex-sistere significa ebulência, emergência, salto além de si. Segundo Heidegger é a tradução latina mais próxima ao conceito de Da-sein.

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uma forma de habitá-lo, aquela da perda do apoio e da harmonia, da ruptura em uma corporeidade tranqüila. Mas além do corpo que cai realmente, a imagem da queda traduz a essência mesma da perda do escora-mento e do vivido de terror que lhe é consubstancial. A queda descreve uma possibilidade fundamental de ser no mundo: a perda do equilíbrio, o colapso, o terror (p. 5).

O “ter-que-ser-si-mesmo”, dá-se, no entendimento heideggeriano, como projeto (Entwurf). Entendendo o ser como projeto em acordo com a categoria da espacialida-de, podemos dizer que o primeiro é como um elo que nos conecta às coisas que nos circundam. Quando esses elos que construímos com o mundo perdem seu fundamen-to, o nada sobre o qual eles foram construídos torna-se evidente, e a angústia torna-se o sentimento prevalente. Ou seja, se os projetos de determinado sujeito quedam ameaçados, é a existência mesma que perde seu funda-mento, como se já não tivesse laços que a una às coisas do mundo; em termos binswangerianos, essa existência torna-se malograda.

Boss (1977) relata o caso de um paciente esquizofrê-nico que percebia da janela um mundo próximo, bidi-mensional e ameaçador que o comprimia. Esse paciente também apresentava os chamados sintomas negativos da esquizofrenia: embotamento afetivo, lentificação do pensamento e autismo. Ou seja, o modo como se compri-mia e se limitava na forma de Ser aí, também era o modo como espacializava, trazendo para a proximidade os entes enquanto algo que o comprimia. Da mesma forma, um outro paciente pode perceber o espaço como profundo e desafiador, luminoso e amplificado, nesse estado ele aparece como que tomado por uma sensação de êxtase, como se o mundo fosse dotado de infinitas possibilida-des de existência.

Cabe-nos nesse artigo demonstrar em um caso clínico específico a forma como se dá a espacialização no chama-mos, atualmente, de “Transtorno do Pânico”. Antes disso, porém, veremos como Binswanger (1957/1988) evidencia o pânico no caso “Suzanne Urban”. Esse se revelará para ela como experiência do Terror, que a paciente vivenciará como evidência não mediada do abismo, o que ameaça sua existência como um todo.

2. O Caso Suzanne Urban: Terror e pânico como perturbação da Dimensão Espacial

Sobre a experiência da angústia do abismo, Bins-wanger (1957/1988) propõe a noção de Terror. O Terror é a constatação do Da-sein de sua facticidade5. Enquanto

5 A facticidade (Geworfenheit) refere-se à condição do Da-sein enquan-to ser lançado no mundo, “num abandono no meio do ente que o põe frente à única possibilidade de constituir-se ele mesmo o seu ser” (Pereira, 1997, p. 37).

vivência, ele vem como algo que lhe toma de fora e que aparece como que estando o Da-sein presa de uma po-tência superior.

O abismo traz-lhe a possibilidade sempre presente de não ser ele mesmo e, paradoxalmente, o mantém à vista as múltiplas possibilidades de ser como projeto. Essa ex-periência, segundo Binswanger (1957/1988), é típica da psicose em que o próprio modo de constituição do ser--aí se perde na noção mesma de se orientar no espaço.

Binswanger (1956/1972) estabelece três formas de “existência malograda” como modos de ser típicos da es-quizofrenia, são elas: o maneirismo, a excentricidade e a extravagância. Na extravagância, o abismo é encarado pelo Da-sein como algo a ser transposto, o salto que se dá para o seu atravessamento, porém, queda despropor-cional com a possibilidade mesma do projeto, ficando o indivíduo preso em sua própria forma de espacialização. Sem referências para as quais se orientar, o extravagante torna-se como um alpinista que, ao escalar uma monta-nha, perde a noção de fundo que lhe abriria a possibili-dade do próximo passo ou do possível retorno. O terror é vivenciado diretamente, pois ele paira sobre o abismo e o nada lhe aparece evidente.

Já no caso Suzanne Urban, a experiência do abismo se dá de outro modo e o aterrorizante vem como algo de fora. Suzanne é descrita por Binswanger (1957/1988) como uma mulher extremamente cuidadosa com relação aos seus cuidados pessoais e os dos outros, principalmen-te nos aspectos ligados à saúde dos seus entes queridos. O seu processo psicopatológico começa quando acompa-nha seu marido em uma consulta rotineira a um urolo-gista para tratar de um possível problema urinário. Qual não foi a surpresa quando o médico diagnostica nele um câncer de vesícula praticamente inoperável.

A cena do médico proferindo o diagnóstico retém--se na memória de Suzanne. Ela passa a se ocupar do tema, o que repercute no sentido de sua orientação es-pacial, onde irá prevalecer o mundo enquanto perigo. A cena do diagnóstico de câncer é deslocada para todas as suas formas de relação com o mundo e, em seu modo de espacialização, passa a predominar o que Binswanger (1957/1988) chama de “atmosferização do tema”. Assim a ameaça não se refere ao medo pela morte do marido, como poderia se supor, mas toma toda a forma de mun-do no espaço que a paciente habita. Temos aqui então a “atmosfera do terror”.

Na “atmosfera do terror”, o modo como Suzanne es-pacializa não se ancora mais nas relações possíveis que lhe são dadas; pelo contrário, ela cerceia seus modos de relação e as coisas trazem a sempre iminente possibilida-de de seu aniquilamento. Daqui podemos deduzir o pâ-nico, como modo de experiência de um terror atmosféri-co que ameaça o ser de fora, sem se mostrar em nenhum ente específico, mas no espaço como um todo. Daí que as crises de pânico quando muito recorrentes podem de-senvolver o que em psiquiatria chama-se agorafobia, ou

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seja, em um pavor inespecífico a espaços amplos e vagos, como apontado por Pereira (1997).

No caso Suzanne Urban, ao lidar com a experiên-cia do Terror, ela passa a criar o que denomina “teatro do horror”: imagina forças demoníacas que lhe estão à espreita, fantasia perigos imaginários e sente-se cons-tantemente ameaçada pelos outros. Ou seja, do pâni-co geral que ameaça seu ser como um todo e é ines-pecífico, passa a eleger os objetos do perigo, de onde Binswanger (1957/1988) conclui ser a base de evolução de seu delírio.

Na experiência do Terror de Suzanne, não há pos-sibilidade que se elabore qualquer discurso ou enten-dimento verbal sobre o que a atormenta. Ao criar o “Teatro do Horror”, ela já se familiariza com seus per-seguidores, e na personificação do Terror fabula um mundo fantástico onde o perigo se personifica nas pes-soas ao seu redor.

Pereira (1997) considera o relato do caso Suzanne Urban como uma possibilidade de entendimento para a experiência do pânico; com a diferença de que no Transtorno do Pânico, o Dasein elege o corpo como lu-gar de anteparo ao terrífico da experiência do abismo. Segundo Pereira (1997, p. 239): “(...) no pânico, o terrível ancora-se de forma hipocondríaca no real do corpo. Dessa forma, o pânico não pode ser considerado como um ino-minável inteiramente experimentado como tal”. O corpo, assim como no “Teatro do Horror” de Suzanne Urban, ser-ve frente ao abismo do inominável e do nada. Enquanto ainda se é possível uma querela sobre um modo de rela-ção real, o indivíduo se mantém em algum chão, mesmo que à beira do precipício.

Os sintomas do transtorno do pânico aparecem, em geral, como um pavor inespecífico, acompanhados ou não de uma sensação iminente de morte. O pavor, como dito, manifesta-se no corpo por alguns sintomas, segun-do o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1995): “1 - palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; 2 - sudo-rese; 3 - tremores ou abalos; 4 - sensações de falta de ar ou sufocamento; 5 - desconforto torácico; 6 - náusea ou desconforto abdominal” (p. 193). Os ataques se dão, em geral, quando o indivíduo encontra-se só ou em aglo-merações, como congestionamentos e lugares públicos. A ocorrência de um ou dois ataques esparsos não sig-nifica, no entanto, que a pessoa desenvolveu o chama-do transtorno do pânico. Para que esse se caracterize enquanto tal é necessário, segundo o DSM-IV, que o in-divíduo apresente uma preocupação acerca das conse-quências dos ataques de pânico: ideias de morte, medo de perder o controle, ficar louco ou morrer por parada cardíaca são comuns.

O transtorno surge como uma tentativa do indiví-duo defender-se contra o abismo do nada, no corpo ou nas ideações que podem vir a se tornar delírio, como no caso Suzanne Urban. Assim compreendemos o mo-tivo por que as ideações de morte, o medo de perder o

controle e ficar louco são comuns; o transtorno desve-la um modo de espacializar que se rompeu, deixando vaga a distância que separa o ser de seu mundo, daí as idéias de aniquilamento, ou seja, da perda de sua di-mensão existencial.

Vejamos como isso se deu em um caso clínico.

3. Das Crises de pânico às passarelas da vida: o Caso Lucas

O atendimento que será relatado ocorreu em um Serviço de Psicologia vinculado a uma Faculdade de Psicologia. O contrato de atendimento, estipulado em um termo de consentimento assinado pelo paciente e seu res-ponsável legal, previa que, por se tratar de um serviço de psicologia universitário, os casos ali atendidos poderiam ser utilizados para pesquisas, bem como material didá-tico para o ensino de psicologia, garantindo o sigilo das informações (em caso de relato), por meio de omissão de elementos que identifiquem o paciente e uso de nomes fictícios. O autor do artigo atendeu o caso, na qualidade de docente e pesquisador da referida faculdade, interes-sado por questões relativas aos transtornos de ansiedade.

Chega-me para atendimento clínico um adolescente de 14 anos, encaminhado pela mãe e indicado por um cardiologista. A queixa principal, relatada pela respon-sável, era que Lucas (nome fictício) estava sofrendo, nos últimos meses, recorrentes crises de arritmia cardíaca, que, segundo o médico da família eram de fundo psico-lógico, não tendo sido encontrado nenhum problema or-gânico que as justificasse.

A mãe foi recebida em particular antes de Lucas ser convidado a ser atendido individualmente. Foi pergun-tado se ele consentia em participar de um processo psi-coterápico. Ele consentiu, mas disse que necessitava do atendimento não pelo motivo exposto pela mãe, qual seja, a arritmia cardíaca. Desse sintoma, ele daria conta, já não o sentia tanto quanto antes, mas o verdadeiro motivo se-ria conseguir se concentrar melhor nos estudos, dada a necessidade em ser aprovado em um concurso para estu-dar em uma importante escola técnica federal.

Assim começaram as entrevistas, e Lucas, a princí-pio, mostrava-se em uma postura distante, desconfiado, ora gaguejando, ora falando muito baixo. Indagava sem-pre por onde começar e, sentindo no terapeuta, alguém disposto a escutar o que tinha a dizer, foi aos poucos dis-correndo sobre suas preocupações cotidianas, bastante típicas para um garoto de sua idade. Vídeo games, com-putadores, patins, bicicleta, o futebol que praticava, eram temas recorrentes nas entrevistas iniciais. Aos poucos fui me aproximando dele, de seu linguajar próprio, de seus interesses, mostrei-me como parceiro e como quem co-mungava, na sua idade, dos mesmos interesses.

Lucas era o filho mais velho, tinha mais um irmão de 13 anos, de uma pequena família de classe média. Seu

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pai havia-se aposentado do serviço público, ficando boa parte do seu tempo livre, em casa, a mãe tinha o ensino médio e era dona de casa. Do pai se referia como um ho-mem a quem devia muito sua formação e boa educação. Afinal, estudava em um bom colégio e tinha privilégios como aulas de informática e futebol. Devia também a ele sua possível aprovação no concurso da escola técnica, coisa pela qual era sempre cobrado. O pai dizia que já na idade de Lucas, ele trabalhava e nem podia se dar ao luxo de só estudar, assim ser aprovado no concurso era nada mais que uma obrigação para o filho.

O discurso do pai dominava as sessões. Lucas falava comumente sobre suas queixas: dizia que o pai o chamava de “vagabundo”, que ele não daria em nada na vida, que nenhuma mulher o desejaria. Lucas demonstrava certa ambiguidade em relação a isso. Ora considerava essas co-branças pertinentes, o que o inferiorizava diante do pai; ora já se enfastiava de tantas obrigações por ele exigidas, queixando a mim sobre a falta de tempo suficiente para o seu lazer e para ficar à toa como gostaria. Lucas via a mãe como quem apaziguava as cobranças paternas em relação a ele, tentando desviar sua atenção do fato dos adolescentes da casa não estarem atendendo às suas ex-pectativas. O paciente, no entanto, insistia em ter seus momentos de lazer, o que irritava ainda mais o pai, tor-nando suas reclamações recorrentes.

Com o quadro de sua situação já apresentado e os re-latos se voltando a esses temas, ora ao lazer e aos jogos de futebol, ora aos estudos e a cobrança excessiva do pai, Lucas começou a dizer sobre sua preocupação com a morte. Quando indagado se já tivera alguma perda sig-nificativa em sua vida, de pronto se lembrou da morte repentina de seu avô, com quem tinha um vínculo mui-to significativo.

Lucas descreve o avô em contraposição ao pai, como sendo mais relaxado e menos exigente, e que desbanca-va, sempre que tinha oportunidade, a postura parcial e autoritária do seu genitor. O avô, segundo ele, dizia que seu pai não era nada disso que ele tentava se mostrar e que havia tido condições para estudar, fazer seu curso superior e depois poder exercê-lo como funcionário pú-blico, sendo que suas exigências não faziam sentido, não era um exemplo sobre aquilo que ele próprio dizia. O avô também era alguém com quem se podia jogar sinuca, totó, xadrez; pessoa festiva e tranqüila, Lucas se assustou com sua morte. Ao falar desse fato, ocorrido há aproximados três anos, ele fez questão de salientar que não tinha rela-ção com seus sintomas; aliás, os sintomas há muito não lhe incomodavam, mas foram reaparecendo logo após a sessão em que se falou sobre essa morte.

Os “sintomas”, como o próprio Lucas a eles se referia, apareciam como pontadas no peito que sentia quando jo-gava bola, dormia ou devido a esforço físico razoável; sen-tia uma palpitação diferente no coração. Em algumas situ-ações, chegou a pedir à família que contatasse o Serviço de Atendimento Municipal de Urgência (SAMU) que lhe

atendeu em pelo menos três ocasiões, em que sendo leva-do para o serviço de cardiologia do pronto-socorro, nada se constatou de anormal.

Fora os “sintomas”, eram recorrentes as ideias de mor-te e de ameaça constante. O prédio onde estudava, por exemplo, podia desabar a qualquer momento. Segundo seu relato a engenharia ainda não atingira seu grau de perfeição, assim todas as construções guardavam uma ameaça latente de desabamento. As escadas também guardavam a morte em potencial, um deslize, um degrau a menos ou a mais no cambiar das pernas, poderia lhe provocar uma queda súbita. A morte de um humorista famoso na televisão, repentina por um ataque cardíaco, foi um dos desencadeadores de um ataque: ora se era as-sim, como acontece a qualquer um, isso poderia ocorrer com ele também. Sabia da irracionalidade de seus medos, confiava em parte no diagnóstico dos médicos, mas não conseguia se livrar, segundo ele, dessa sensação iminen-te de morrer que lhe rondava.

Aos poucos foi se recolhendo mais em casa, e, embora as pressões do pai lhe incomodassem, sabia que ali, pelo menos, era um lugar razoavelmente seguro, sentindo-se um tanto livre das ameaças constantes da rua. Nesse tempo largou o futebol e reduziu ao máximo suas ativi-dades, inclusive faltou a várias sessões de psicoterapia. Ia à escola sempre acompanhado do irmão e sentia sem-pre as palpitações ao atravessar a rua, ou subir as escadas.

As queixas do pai se atenuaram e os recorrentes ata-ques passaram a ser tematizados em nossos encontros. Nesse tempo Lucas já estava há seis meses em psicotera-pia, interrompidos por vinte dias de férias, quando outras crises mais severas haviam lhe acometido.

Retornado das férias apressou-se em dar seu diagnós-tico: síndrome do pânico. E pedia incessantemente um encaminhamento a um psiquiatra ou que lhe propusesse uma técnica que o livrasse logo daquilo. Respondi que na nossa proposta deveríamos nos atentar ao significado que “os sintomas” tinham para ele, e não em simplesmente expulsá-lo da sua vida; que era algo que deveríamos des-cobrir juntos e que, com certeza fazia parte da totalidade de sua existência. Confiou. As sessões pareceram mais produtivas, principalmente em verbalizações e as crises foram-se reduzindo até o momento em que ele tratou do tema das passarelas. As passarelas segundo ele, traziam um desafio ainda maior, pois se tratavam de construções, vulneráveis como quaisquer outras, mas que pairam nos abismos, rios e avenidas movimentadas da cidade.

Citou os diversos tipos de passarelas existentes, das estreitas às mais largas, das precárias de estrutura me-tálica construídas às pressas sob interesses políticos, às antigas de cimento, já velhas e com pouca ou nenhuma inspeção de engenheiros. Sempre se debatera com elas, lembrou. Isso desde sua infância, seu pai uma vez o for-çou a atravessar uma, puxando-o violentamente pelas mãos até ele ser arrastado, chorando e se debatendo, pa-voroso. Na medida em que os sintomas se acalmavam e

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ele se interessava cada vez mais pelas construções arqui-tetônicas, contou-me sobre um feito recente.

Uma passarela suspeita, estreita, dessas antigas, ha-via o desafiado a uma travessia. Ele precisava atravessá--la para verificar um possível estágio numa empresa es-pecializada em recrutamento. O desafio o emocionou, a ponto de chorar; sentia, paradoxalmente, uma ânsia em chegar e certa vontade de ficar, enfim resolveu que iria enfrentar seu medo e atravessar a passarela. Essa era es-treita, e para ele, das mais temíveis, pois se angustiava mais com as estreitas e menos com as largas e ocupadas por corrimões. Segundo imaginava, alguém em direção contrária poderia lhe empurrar para o fundo do rio sobre o qual a passarela passava. Fez-se de destemido (segundo suas próprias palavras). Passou tremendo e sentindo as mesmas palpitações, mas resolveu, no entanto, não pres-tar atenção a elas; seria um estado normal, mais fruto de seu psicológico do que de um real problema cardíaco.

Quando findou a travessia, sentiu-se tomado de uma intensa alegria, como se houvesse reconciliado algo den-tro de si que não suspeitava. Respondi que a sensação po-deria ser análoga a ele ter passado no concurso, ele disse que sim. Constatou que suas dificuldades remeteram às passarelas que ele tinha que enfrentar e aos desafios que tinha ainda pela frente.

Nos encontros seguintes Lucas passou a questionar a viabilidade do projeto do pai para que ele aprovasse no concurso. Justificava esse projeto como algo que po-deria lhe garantir um emprego mais seguro já em sua idade, podendo se tornar independente do pai e de suas frequentes cobranças. Indiquei-lhe outras possibilida-des, investigando seus interesses na escola. Era bom alu-no, obtinha as melhores notas, sobretudo em matemáti-ca, discutimos juntos outros projetos possíveis para sua vida profissional.

Pensou em estudar Mecatrônica na universidade e viu na escola técnica como uma via para o cumprimento dessa meta. A elaboração de outros possíveis foi-se dan-do sem muita angústia, mas já numa relação segura com o terapeuta. Várias possibilidades para seu futuro foram elaboradas e projetadas. Nesse tempo – que durou apro-ximadamente um mês e meio –, as crises não voltaram e ele percebeu que as alterações em seus batimentos car-díacos eram devidas às suas atividades físicas; não vol-tou mais ao futebol, mas lhe apetecia ainda a prática de alguns exercícios. Começou a vir às sessões de bicicleta, e relatava um certo cansaço quando chegava, além de apontar alguns traços da arquitetura da cidade que an-tes lhe passava despercebido, como o topo dos prédios e a elevação das construções.

As crises não voltaram, viu-se reconciliado com seus projetos e por decisão própria quis encerrar o tratamen-to. Sentia-se agora mais dono de si, segundo suas pala-vras, e gostaria de exercer uma independência maior em relação às suas próprias escolhas, o que o fazia se sentir, de alguma forma, preso às nossas sessões. Alertei-lhe

sobre a necessidade em avaliarmos juntos alguns aspec-tos determinantes das crises que sofrera e as vantagens de um tratamento que não se finda apenas com o alívio dos sintomas.

Disse-lhe que os sintomas eram apenas uma “ponta de um iceberg” que indicava que deveríamos aprofundar mais em direção a seus problemas. No entanto, Lucas estava decidido; findas as crises e tendo-se reconcilia-do com o seu corpo, segundo o que disse, poderia cami-nhar sozinho. Nada valeu minha insistência e o pacien-te deu por encerrado o processo, agradecendo-me muito pela ajuda e se dizendo totalmente curado do transtorno que sofria. Após três meses do fim de nossas consultas liguei-lhe para ter notícias; disse que se curara de vez dos sintomas e que havia sido aprovado no concurso e se preparava para o curso técnico; o que fosse fazer depois decidiria mais tarde.

4. O Caso Lucas à vista da fenomenologia Existencial

Lucas revela desde o primeiro encontro, uma postura distante, tímida. Falava por gaguejos e se corrigia cons-tantemente. Os sintomas não são, a princípio, o que o abriria ao processo psicoterápico, antes fazem um apelo àquilo que o mantém enlaçado ao mundo: a necessidade em atravessar a ponte que o ligaria a uma vida profissio-nal digna, tal qual fora a de seu pai. Aproximar-se das palpitações, do descontrole, do medo iminente da morte é também se aproximar das experiências advindas disso, é estar com aquilo que é o núcleo de seu adoecimento. Prefere de início se relatar como de “fora” do processo, apresenta-se como quem cabe suplantar a dura missão de lidar com um estudo focado, concentrado, tal qual se apresentava no projeto do pai.

O mundo exigente do pai apareceu-lhe como pré-de-terminado e ameaçador à sua existência. A solicitação de que era dele a responsabilidade por seu futuro e que esse estava atrelado à aprovação no concurso, cerceava suas possibilidades de ser, o que de certa forma o sufoca-va, ao mesmo tempo em que, ao não se posicionar sobre isso, não conseguia empreender-se nos estudos necessá-rios à sua aprovação.

O Terror do pânico se lhe revela quando as possibi-lidades de espacialização vão se reduzindo a ponto dele vislumbrar a possibilidade terrífica do abismo lhe inva-dir. Por um lado, temos que o núcleo do terror vivencia-do por Lucas bem poderia se encontrar na morte do avô. O fato da sintomatologia do pânico ocorrer logo após o falar sobre essa morte, não garante que os ataques este-jam simplesmente associados a essa. O que vale destacar na forma como Lucas compreende essa morte é que ela inaugura um abismo de continuidade, interferindo em seu modo de espacializar.

O concurso aparece sempre como um inatingível idealizado, sua posição perante a ele, confunde-se como

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uma posição diante ao pai. Posicionar-se, nesse sentido, requereria confrontar o seu projeto com o do Pai o do dele e se estabelecer em uma relação em que ele pudesse compor seu próprio futuro e seu modo de espacialização, mas isso não se deu.

Lucas se retrai frente à ameaça paterna e o descon-solo do avô morto. O abismo o ameaça, pois lhe aponta a possibilidade iminente de fracasso no concurso que ele mesmo passa a traçar na atitude relapsa para o seu pre-paro. Passar ou não passar no concurso seria a afirmação do seu próprio ser, desafio esse que ele prefere não ter que suportar. Como fuga a esse possível aniquilamento, Lucas reduz seu modo de espacialização, a ponto de re-duzir seu espaço a seu quarto e às pequenas caminhadas que fazia no trajeto entre sua casa e a escola. No entanto, o mundo de fora parecia invadi-lo, a ponto de o aniquilar. A sensação de morte iminente, comum nos ataques de pânico, desvela que o nada aparece como algo que vem de encontro ao mundo do indivíduo. Algo de fora, incon-trolável, ameaça sua existência como um todo.

As crises de pânico vão se tornando severas na me-dida em que a data do concurso vai se aproximando e Lucas vai se sentindo engalfinhado. Sua atenção, voltada às construções, mostra-nos o caráter plenamente reificado do mundo que ele estava a habitar, sem se construir, elas o chamam ao desabamento, já que como elas, ele é ape-nas facticidade e a queda é iminente. Nesse se desmon-tar Lucas não se apropria do seu modo próprio e se per-cebe como um “ente-intramundano” no meio dos outros.

Interessante notar que a vivência do terror da morte vai aos poucos se atenuando após a experiência com a passarela; passarela esta que ele atravessou destemida-mente à procura de um estágio que lhe traria maior in-dependência financeira em relação ao pai. Atravessar a passarela significa recuperar um modo de espacializa-ção que fora rompido desde a morte do avô. Ao desafiá--la, novas formas de relações existenciais lhe abriram. Lucas pode vislumbrar possibilidades que antes não lhe apareciam, posto que se afundavam no abismo do ter-ror da morte.

A possibilidade de não passar no concurso foi a pri-meira menção que ele fez, já como posição frente ao proje-to do pai sobre ele. A possibilidade de continuar estudan-do no ensino médio sem a especialização técnica visando um melhor preparo para o vestibular foi outra. Existia ainda uma terceira forma de se posicionar como projeto, aprovar-se no concurso federal como meio de se realizar mais à frente um curso universitário de Mecatrônica, o que reuniria seus interesses aos do pai. Essa aproximação paulatina com seu projeto e seu modo de espacialização coincide com o fim das sintomatologias e alívio para o seu sofrimento. O espaço de Lucas amplia-se de tal for-ma que ele passa a vir às sessões de bicicleta, e sempre me trazendo detalhes novos sobre as edificações entre as ruas que ele ainda não havia notado, pois estava cego às construções e suas possibilidades.

A arquitetura já não vista como um desabamento, mas como elos que se ligam em travessias possíveis por bicicleta. Os blocos dos prédios, as pontes, os viadutos que atravessava, denotavam já a possibilidade de ser aí como projeto para alguma coisa.

Considerações finais

Para o que nos interessa em uma análise existencial, o caso nos apresenta um exemplo de como uma catego-ria própria ao Dasein – a espacialidade – aparece como elemento a ser compreendido dentro do quadro de uma sintomatologia específica. Não se trata aqui de símbolo ou metáfora de algo mais profundo que se encontraria no pano de fundo da visão e significação do paciente, mas do próprio modo como ele configura um mundo especí-fico em seu modo de espacialização.

As passarelas diziam de suas possibilidades de ser diante ao mundo, pois traziam à sua presença os desa-fios que lhe apareciam em sua existência. Algo que une um solo a outro, mas que paira no abismo faz relação de sentido com aquilo que Lucas vivenciava na dimensão profissional e afetiva. O Terror é esse elemento que o in-vadia no “entre os solos”, guardando uma potência ani-quiladora, pois o confrontava diretamente com a morte. Interessante notar que a morte aqui diz da possibilida-de de Lucas não existir como projeto em relação a algo. A morte no humano não é simples ausência de vida, mas falta de sentido em relação a que se direcionar.

Nesse trabalho, ao falarmos sobre o terror, resgata-mos uma experiência comum nos quadros de psicoses e a entendemos no contexto específico do transtorno do pânico. A diferença diagnóstica entre essas patologias – devemos ter claro –, não está propriamente na experiên-cia em si, mas na biografia do indivíduo e na história da evolução de sua patologia.

Lucas não desenvolve um processo psicótico por ter em sua biografia alguma base sobre a qual pudesse ain-da se manter. Essa base é chamada por Laing (1961/1972) de “segurança ontológica” e se dá na medida em que o indivíduo sente, desde a infância, a confirmação de sua existência por parte de um outro significativo, podendo ser o pai, a mãe ou alguém com quem o indivíduo man-tenha um vínculo especial e contínuo no processo de seu desenvolvimento.

Na fase em que Binswanger (1960/1987) se dedi-ca à obra de Husserl, utilizando-se da Fenomenologia Transcendental, o autor se refere à psicose como uma descontinuidade no plano da experiência. O sujeito per-deria a possibilidade de se atualizar diante do fluxo de suas experiências existenciais. Assim, há por parte do psicótico, diante de determinada experiência, a predo-minância de um tema único em sua existência, do qual ele não pode escapar por sua própria vontade.

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Assim, o fato de Lucas vivenciar a angústia, significá--la em seu contexto existencial, e se abrir às novas possi-bilidades existenciais – graças, em parte, a um encontro significativo com seu terapeuta – demonstra que em seu caso o transtorno do pânico não foi prenúncio de uma experiência da qual ele se tornaria refém, como é o surto psicótico6. A relação de parceiro existencial vivenciada no processo psicoterápico permitiu a Lucas uma abertura para o seu ser além do mundo, em termos binswangeria-nos, ou seja, a possibilidade de se projetar para além da-quela situação imediata e desesperadora que vivenciara.

A relação do desenvolvimento do transtorno associado à morte do avô e às pressões paternas para que ele fosse aprovado no concurso, desvela como a perda de um outro significativo repercutiu de forma drástica em sua exis-tência como um todo. Ainda assim, a figura reparadora do terapeuta como alguém a quem pudesse confiar suas angústias e temores, bem como a participação dedicada da mãe a quem confiava dava a ele algum subsídio para a realização de seus projetos. A perda de uma relação sig-nificativa como a que tinha com o avô, não significou a perda de sua própria existência, como no caso Suzanne Urban na relação com o diagnóstico do esposo, mas uma angústia intensa que lhe desvelou o nada de sua condição existencial e que possibilitou, concomitantemente, uma abertura a novas possibilidades e revisão de seu projeto.

Binswanger (1960/1987) diz ainda que, na psicose, o binômio “angústia e confiança”, como modo de abertura do Da-sein, se desfaz. Assim, na neurose, angústia e con-fiança, embora possam estar comprometidas em algum aspecto, aparecem interconectadas na relação que o in-divíduo tece com seu mundo. O mesmo não se dá na psi-cose, em que uma das dimensões sobrepõe à outra. Ora o sujeito confia sem se angustiar, como nos casos da mania, ora se angustia sem exercer nenhuma confiança, como nos delírios persecutórios presentes na esquizofrenia.

No caso Suzanne Urban, o nada se sobrepôs às suas possibilidades e sua existência se paralisou em um úni-co tema, o mundo não lhe apareceu digno de confiança, haja vista que todos eram vistos por ela, como potências aniquiladoras de sua própria existência. Lucas foi capaz de confiar, mesmo que ainda angustiado, em uma rela-ção significativa com seu terapeuta e nas suas próprias capacidades e possibilidades de realização.

O transtorno do pânico tem sido alvo de intensos de-bates entre psiquiatras, psicoterapeutas e psicanalistas, tanto do ponto de vista explicativo quanto nos modelos de tratamento. Este trabalho teve como intuito demons-trar como uma relação que se estabeleceu entre psicote-rapeuta e cliente pode elucidar alguns pontos presentes na patologia e promover alívio para os sintomas em um caso específico, pelo menos por um período de seis meses.

Faltam-nos elementos para saber se os chamados “sintomas”, nos dizeres do paciente, reaparecerão ul-

6 Cabe lembrar que os estados de pânico, tal como os vivenciados por Lucas, costumam prenunciar um surto psicótico.

teriormente em uma nova situação, desencadeados por novos impasses nas relações interpessoais. A idade com que eles apareceram e foram tratados, podem nos deixar otimistas quanto a isso; antes de Lucas se solidificar em um modo de fuga da angústia essa foi por ele enfrenta-da em uma situação específica, permitindo a abertura a possíveis dentro de sua estrutura existencial.

A adolescência já é por si só um abismo a se transpor e essa ponte, muitas das vezes, dá-se como um projeto profissional, algo com que Lucas se debateu prematu-ramente graças às exigências do pai. Não é comum que adolescentes de 15 anos sejam postos dessa forma dian-te da uma escolha de um futuro tão relevante para sua vida, o que ameaçou, sem sombra de dúvida, sua frágil estrutura existencial, ainda imatura para se posicionar diante de projetos desse tipo.

O pai não foi chamado para as sessões, justamente pelo terapeuta prever que o mesmo poderia ameaçar o tra-tamento. A mãe confirmava a aversão que o mesmo tinha por psicólogos e “frescuras” do tipo. As exigências dele acabariam por reforçar a sintomatologia de Lucas que, quando em ataques agudos, assustava o pai que recuava diante das exigências. Paradoxalmente, foram as próprias crises que o sensibilizaram, atenuando suas cobranças e possibilitando a Lucas um novo posicionamento.

O caso se encerra por própria iniciativa do paciente, que se sentia agora mais seguro em relação a seus pró-prios caminhos e que via no terapeuta um apoio fútil para esse momento. A extravagância do ato pode tam-bém nos apontar de que modo Lucas traçava para si um modo de ser sobre o abismo que depois poderia não su-portar. O seu retraimento em relação a seus sentimentos e anseios, desvelado na primeira sessão, aponta-nos para a possibilidade do paciente ter-se comprometido com os projetos do pai, como meio de respondê-lo sem, no en-tanto, estar consciente de sua própria base existencial para a realização desses.

O cliente sai esperançoso na construção de um pro-jeto próprio que lhe fosse viável e autônomo. E o texto aqui se cumpre ao mostrar, de uma perspectiva analítico--existencial, de que forma podemos compreender e tratar o transtorno do pânico tendo como existenciário básico a espacialidade.

Referências

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Binswanger, L. (1972) Tres formas de la existencia frustra-da: exaltación, excentricidad, manerismo. Buenos Aires: Amorrortu Editores (Original publicado em 1956).

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Binswanger, L. (1987). Melancolie et manie. Études phénoméno-logiques. Paris: Presses Universitaires de France (Original publicado em 1960).

Boss, M. (1977). O modo-de-ser esquizofrênico à luz de uma fenomenologia daseinsanalítica. Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, 3, 5-28.

Chamond, J. (2011). Fenomenologia e psicopatologia do espaço vivido em Ludwig Binswanger: uma introdução. Revista da Abordagem Gestáltica, 17(1), 3-7.

Giovanetti, J. (1990). O existir humano na obra de Ludwig Binswanger. Síntese (Nova Fase), 50, p. 87-99.

Heidegger, M. (1997). Ser e Tempo I. Petrópolis: Vozes (Original publicado em 1927).

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Pereira, M. E. C. (1997). Pânico: contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos Editorial.

Gustavo Alvarenga oliveira Santos - Psicólogo, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Docente na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Endereço Institucional: Rua Getúlio Guaritá, 159 (Bairro Nossa Senhora da Abadia). CEP 38025-440. Uberaba/MG. Email: [email protected]

Recebido em 06.07.2012Primeira Decisão Editorial em 15.10.2012

Aceito em 14.12.12

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ANÁLISE DA NARRATIvA DE vIkTOR fRANkL ACERCA DA ExpERIêNCIA DOS pRISIONEIROS NOS

CAMpOS DE CONCENTRAÇÃO

Analysis of Viktor Frankl’s Narrative on the Experience of Prisoners in Concentration Camps

Análisis de la Narrativa de Viktor Frankl sobre la Experiencia de los Presos en Campos de Concentración

tHiAGo Antonio AvellAr de Aquino

Resumo: O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura lexical mais significativa na obra de Viktor Frankl Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. O corpus do texto foi analisado por meio do software ALCESTE (Análise Lexi-cal Contextual de um Conjunto de Segmentos de Texto), um método computacional que se propõe a decompor um texto a fim de obter as estruturas mais significativas. Os significados encontrados foram divididos em três classes subdivididas em dois eixos: Facticidade e Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Por meio dessa análise foi possível identificar as palavras mais características utilizadas por Frankl na sua narrativa acerca da vivência do prisioneiro no campo de concentração. Os resulta-dos foram discutidos com base nos direitos humanos e na logoterapia e análise existencial.Palavras-chave: Existencialismo; Prisioneiros; Historicidade; Léxico.

Abstract: The aim of this paper was to identify the lexical structure more significant in the work of Viktor Frankl’s Man’s Search for Meaning. The text corpus was analyzed by the software ALCESTE (Lexical analysis by context of a set of text segments), a computational method that aims to decompose a text in order to obtain the most significant structures. The meanings found were divided into three classes subdivided into two axes: Facticity and Psycho-existential Positioning of Prisoners. By this anal-ysis it was possible to identify the most typical words used by Frankl in his narrative about the experience of the prisoner in a concentration camp. The results were discussed based on human rights and logotherapy and existential analysis.Keywords: Existentialism; Prisoners; Historicity; Lexicon.

Resumen: El objetivo de este trabajo fue identificar la estructura léxica más importante en la labor de búsqueda de Viktor Frankl en busca de sentido: un psicólogo en el campo de concentración. La recopilación del texto fue analizado por el software ALCESTE (Análisis léxico por el contexto de un conjunto de segmentos de texto), un método computacional que tiene como ob-jetivo descomponer un texto con el fin de obtener las estructuras más importantes. Los significados que se encuentran dividi-dos en tres categorías, subdivididas en dos ejes: facticidad y posicionamiento psico-existencial de los reclusos. Mediante este análisis se pudo identificar las palabras más típicas utilizadas por Frankl en su relato sobre la experiencia de los prisioneros en un campo de concentración. Los resultados fueron discutidos con base en los derechos humanos y en la logoterapia y aná-lisis existencial.Palabras-clave: Existencialismo; Reclusos; Historicidad; Lexico.

“Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que

inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai Nosso ou o Shemá Yisrael”

(Frankl, 2010)

Introdução

Viktor Frankl (1905-1997) é considerado como o fun-dador da Logoterapia e Análise Existencial, aborda-gem psicoterápica desenvolvida em Viena, posterior à Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler

(Lukas, 1989). Por um lado, trata da busca de significado para a vida como motivador primário do ser humano; por outro, as possibilidades de decaimento psíquico por oca-sião da frustração existencial. Sua teoria foi constituída na primeira metade do século XX, com sólidas bases filo-sóficas e mediante as experiências clínicas com jovem em situação de risco (Frankl, 2006). Mas, inequivocamente, suas ideias foram corroboradas com suas vivências como prisioneiro comum em quatro campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Após a sua soltura, Frankl ditou em nove dias o livro Ein Psycholog erlebt das Konzentrationslage (“Um psicólo-go no campo de concentração”), que trata da sua vivência como prisioneiro comum, sob o número 119.104, e da des-

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Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

a consciência intuitiva (Gewissen) seria o órgão que ras-treia as possibilidades de sentido.

A outra característica da teoria de Frankl (1989a, 1990) é a análise existencial, que se constitui como um método antropológico de pesquisa. Segundo o autor, não há ne-nhuma explicação ou síntese da existência, já que “(...) a pessoa também se explica a si mesma: se explica, se des-dobra se desenvolve no transcurso da vida” (Frankl, 1990, p. 63). Dessa maneira, o próprio ser humano em última instância lê na vida, ou seja, explica-se a si mesmo, sendo o papel da análise existencial compreender a existência em suas possibilidades de ser no mundo bem como em seus desdobramentos.

Destarte, a logoterapia como uma modalidade de análise existencial pode ser classificada como uma Geisteswissenschaft, ou seja, uma ciência do espírito (Dilthey, 1989), por esse motivo preocupa-se com os fenô-menos especificamente humanos. Nesse sentido, em sua ontologia dimensional, atém-se em compreender quem é o homem, advogando que o ser humano é muito mais do que a sua dimensão psicofísica, constituído também por uma dimensão dos fenômenos especificamente humanos, denominada de noológica. Essa dimensão define a sua verdadeira humanidade, correspondendo à preocupação com valores (a ética e a estética), os atos intencionais, a criatividade, o humor, o senso religioso, a preocupação com o sentido e todos os atos que diferenciam os homens dos animais (Lukas, 1989).

Frankl (1989a) compreende que o principal fenôme-no humano é a vontade de configurar um sentido para a vida, que se constitui como um desejo de realizar valo-res durante a sua existência finita e limitada no tempo e no espaço, tornando-se responsável por algo ou alguém. Destarte, esse autor apregoa que o ser humano quando frustrado na sua busca de sentido, pode ocorrer uma sen-sação de vazio existencial, resultante da carência de va-lores existenciais. Essa sensação constitui-se como uma neurose coletiva nas sociedades industriais, por esse motivo, o homem atual necessita extrair sentido na sua relação com o mundo, posto que não receberia mais os valores por meio da tradição.

Para a logoterapia o homem comum, por meio de sua “autocompreensão ontológica pré-reflexiva”, concebe três vias de encontro de sentido na vida: os valores vivenciais, criativos e atitudinais. O primeiro é caracterizado como as vivências com a natureza e/ou com um tu, o segun-do é a qualidade de criar algo para o mundo, como uma obra artística ou científica e está, em geral, relacionado com a capacidade de trabalhar. O terceiro vincula-se à postura perante uma situação imutável, ou seja, aquela característica humana de transformar um sofrimento em uma realização ou conquista, que geralmente está asso-ciada com a capacidade de suportar o sofrimento inevi-tável (Frankl, 1989a).

Para esse autor o mundo é constituído por valores, sendo esses considerados como objetos dignos de inten-

crição dos aspectos psicológicos e existenciais dos demais encarcerados. Esse livro foi considerado por Karl Jaspers como “um dos poucos grandes livros da humanidade” (Garcia Pintos, 2007). Gordon Allport, por ocasião do pre-fácio da edição americana do referido livro, concebe que “(...) é uma obra-prima de narrativa dramática focalizada nos mais profundos problemas humanos” (Frankl, 2010).

Já Caldas e Calheiros (2012), tecendo comentários so-bre esse autor, afirmam que:

sua experiência como prisioneiro de campos de concentração serviria, assim, para comprovar que o ser humano é portador – além das dimensões física e psíquica –, de uma dimensão mais abrangente que pode dotá-lo de uma surpreendente força de resis-tência (p. 93).

Dessa forma, considerando a relevância desse livro no âmbito da psicologia humanista-existencial, o objeti-vo do presente artigo foi o de realizar uma análise lexi-cal com o intuito de identificar as estruturas mais sig-nificativas desse texto. Antes de apresentar o material, que foi objeto de análise, torna-se relevante tecer alguns comentários acerca de alguns aspectos teóricos desen-volvidos pelo autor em foco, o que será apresentado no tópico que se segue.

1. Logoterapia e Análise Existencial

A Logoterapia é definida como uma psicoterapia cen-trada no sentido da existência, já que a palavra grega lo-gos corresponde a sentido e direção e therapeía deriva--se do verbo therapeúo, prestar cuidados médicos, tratar (Liddell & Scott, 1983). Dessa forma, constitui-se em uma forma de tratar por meio do sentido. Essa primeira acep-ção refere-se a um sistema de cura, mas de forma geral sua fundamentação constitui-se de três eixos básicos: a liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida (Lukas, 1989). A liberdade da vontade constitui o eixo antropológico, que pressupõe uma liberdade de es-colha apesar dos condicionamentos externos e internos. Dessa maneira, o ser humano não seria livre dos condicio-namentos, mas em última instância poderia decidir o que irá ser no próximo instante (Frankl, 1978, 1989a, 1989b).

O segundo eixo corresponde à vontade de sentido. Segundo essa concepção teórica, o ser humano seria mo-tivado por um desejo de configurar sentidos e valores em sua existência, isto é, em todas as suas experiências no mundo. Para Frankl (1989a, 2010), essa motivação se constitui como um fenômeno primário e como o princi-pal fator de proteção da saúde mental. Por fim, o tercei-ro eixo é aquele que corresponde ao sentido da vida, ou seja, a visão filosófica do mundo. Para essa perspectiva, ao contrário da visão niilista, na vida há sempre um sen-tido a ser desvelado, latente nas situações, e nessa busca

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cionalidade, ou seja, os valores transcendem a própria esfera do ser humano. Por esse motivo, “a logoterapia se baseia em afirmações sobre valores tomados como fatos, não em julgamentos sobre fatos tomados como valores” (Frankl, 2011, p. 92). Nessa perspectiva, a realização dos valores decorre da concepção de que a pessoa é um ente aberto para o mundo, que é sempre um ser em re-lação a algo. A essa capacidade de sair de sua própria esfera para se lançar para o mundo, Frankl denomi-nou de autotranscendência, ou seja, aquela capacida-de de voltar-se para algo ou alguém além de si mesmo (Frankl, 1989a, 1978).

Outra característica antropológica é o autodistancia-mento que se constitui como uma capacidade humana de se afastar dos condicionamentos internos ou exter-nos. Segundo o próprio autor, “as autênticas faculdades humanas ancestrais da autotranscendência e do autodis-tânciamento, tal como afirmo nos últimos anos, foram ve-rificadas e convalidadas de forma existencial no campo de concentração” (Frankl, 2006, p. 86).

Frankl (2010) considera que suas concepções foram validadas de forma vivencial durante a Segunda Guerra Mundial. Para tanto, utiliza-se da perspectiva fenomeno-lógica a qual define da seguinte maneira:

a fenomenologia é uma tentativa de descrição do modo como o ser humano entende a si próprio, do modo como ele próprio interpreta a própria existência, longe de padrões preconcebidos de explicação, tais como os forjados no seio das hipóteses psicodinâmicas ou socioeconômicas (Frankl, 2011, p. 16).

Destarte, o relato sobre suas vivências como prisio-neiro nos campos de concentração constitui uma forma de validação existencial das suas próprias concepções acerca do ser humano. Torna-se pertinente nesse mo-mento apresentar, de forma sucinta, o conteúdo do seu manuscrito autobiográfico, o que será descrito a seguir.

2. O Campo de Concentração

Viktor Frankl, por ser de origem judaica, foi deporta-do para o gueto de Theresienstadt junto com a sua família (os pais e sua esposa). Esse local era considerado a porta de entrada para os campos de extermínio e nele perma-neceu durante vinte e cinco meses até ser transferido, em outubro de 1944, para Auschwitz-Birkenau na Polônia onde recebeu o número 119.104. O lema desse campo era: Arbeit macht frei, o trabalho liberta (Herrera, 2007), o que não se constituía apenas como uma medida disciplinar, mas como uma tortura psicológica. Outros campos nos quais esse autor esteve interno foram as dependências de Dachau: Kaufering e Turkhein, onde permaneceu até o dia 27 de abril de 1945, quando foi libertado por ocasião do término da guerra (Garcia Pintos, 2007).

Pode-se constatar que a narrativa de Viktor Frankl (2010) decorre da sua vivência nos campos de Auschwitz, Dachau e Theresienstadt como prisioneiro comum, já que o mesmo foi torturado e sobreviveu à custa do trabalho forçado em escavações e construções de ferrovias. O au-tor, em sua narrativa, propõe-se a responder à seguinte questão: “de que modo se refletia na mente do prisioneiro a vida cotidiana no campo de concentração?” (Frankl, 2010, p. 15). Dessa forma, objetivou compreender as ati-tudes dos cárceres mediante os fatos que causaram uma experiência psicológica (Frankl, 2010).

Por ocasião da sua reclusão e por meio de uma auto-observação e da observação dos seus companheiros de reclusão, pôde identificar três fases distintas pelas quais os internos estruturaram suas experiências: Choque de entrada, fase de adaptação e fase da soltura (Frankl, 1990, 2010). A primeira fase, o choque da entrada, se caracte-riza pelo contato intersubjetivo dos prisioneiros novatos com os antigos bem como com os guardas e os coman-dantes do campo. A recepção não é amistosa e logo os prisioneiros abandonam possíveis ilusões, que no caso de Frankl seria o de conservar um manuscrito científico. Decorre daí que o prisioneiro muda de sua situação exis-tencial pregressa para se deparar com uma perspectiva caracterizada como “sem saída”, próximo da sua morte e da morte de outros companheiros. Entretanto, nesse es-tágio o prisioneiro não teme a morte e a câmara de gás, tornando o suicídio um ato desnecessário.

Enquanto a primeira fase é caracterizada pelo pâ-nico, a segunda é marcada pela indiferença. Na fase de adaptação, o prisioneiro se torna apático, os sentimentos tornam-se embutidos, como um mecanismo de defesa daquela situação de extremo sofrimento. Por essa razão, não chegam a manifestar emoções tais como amarguras, indignações e desesperanças.

Nesta fase de adaptação, a vida afetiva vai se reduzin-do e a aspiração primordial é a sobrevivência, regredindo à vida instintiva mais primitiva. Além da apatia, o pri-sioneiro é acometido por uma irritabilidade expressa por certo nível de agressão, o que Frankl (2010) atribui não apenas a uma origem psicológica, mas também à ausên-cia de cafeína e nicotina. Mediante a situação sociológica em que se encontravam, não era incomum o sentimento de inferioridade nos prisioneiros comuns, aqueles que não tinham privilégios.

Embora tenham regredido ao estágio da luta pela so-brevivência, duas áreas de interesse se sobressaíam: a política e a religião. A primeira temática está vinculada à esperança do fim da guerra, que nem sempre era veros-símil; já a segunda surpreendia os prisioneiros recém-chegados pela vitalidade das preces e orações em luga-res improvisados.

Gradativamente os internos progrediam para um tipo de experiência da existência provisória, pois “o fato de que não exista um término da forma de existir no campo de concentração conduz à experiência de um futuro ine-

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xistente” (Frankl, 1990, p. 207). Ocorre, portanto, uma perda da estrutura temporal, levando o prisioneiro a uma experiência de um futuro inexistente, o que, por conse-guinte, o conduz a viver no imediatismo.

Herrera (2007), ao comentar o relato de Frankl, resume em três aspectos a vida anímica do prisioneiro:

1. A vida onírica, como expressão das aspirações e desejos dos presos; 2. O silêncio do impulso e desejo sexual; 3. A depreciação de tudo aquilo que não serve para conservar a vida, que se expressou na falta, quase absoluta, de sentimentalidade ou falta de reação emotiva (p. 43).

Para o recluso que perde a noção dos fins e de uma meta em sua existência, sucumbe à própria apatia, ou seja, não se preocupam mais com a higiene e com a ali-mentação, recusando-se a encarar o trabalho forçado e suportando com indiferença o castigo imposto. Sobre isso Frankl (1990) observa que:

(...) A orientação a um ‘fim’ e a uma meta posta no futuro representa aquele apoio espiritual que tanto necessita o detento no campo de concentração, porque apenas esse apoio espiritual é capaz de preservar o homem para que não caia em mãos dos poderes do entorno social que imprimem caráter e que formam tipos, ou seja, para que não se deixe cair (p. 208).

Frankl (2010) observa que em última instância o pri-sioneiro decidia que tipo de pessoa gostaria de se tor-nar, um recluso típico ou tomar uma postura alternativa. A essa atitude espiritual denominou de força de obstina-ção do espírito. O autor narra exemplos de prisioneiros que conseguiram, apesar da irritabilidade e apatia, uma superação das condições internas e externas e passavam pelos barracões proferindo algumas palavras de conforto e oferecendo um pedaço de pão. Nesses casos, pode-se afirmar que alguns dos prisioneiros ainda permanece-ram humanos apesar das condições desumanas, embo-ra esse fato tenha ocorrido de forma escassa. Entretanto, para aqueles que conseguiram se posicionar com uma atitude livre, os campos lhes proporcionaram uma pro-gressão moral e religiosa (Frankl, 1990). Para esse tipo de prisioneiro “nunca tinha considerado a vida no campo de concentração como um mero episódio – para eles era mais, e se converteu, no auge de sua existência” (Frankl, 1990, pp. 211-212).

Por fim a terceira fase foi o da soltura, nela os prisio-neiros ainda estão tomados pelo sentimento de desperso-nalização e tudo lhes parece um sonho, um simulacro de liberdade. Eles passam de um estado de tensão elevada para o de distensão, ou seja, ocorre uma descompressão repentina, o que seria prejudicial para a saúde mental (Frankl, 2010). Dois sentimentos atormentam os recém-

libertos: a amargura e a decepção. Quando retornam para os antigos ambientes, as pessoas, de forma geral, reagem de maneira vaga ou superficial com relação ao sofrimen-to que tinham vivenciado, o que leva o sobrevivente ao seguinte questionamento: “para que serviu tanto sofri-mento?”. Já a decepção estava relacionada à sensação de desamparo quando não mais encontra o ente querido que tanto esperava reencontrar quando estava nos campos de concentração e que lhe dava esperanças, como expressou o ex-recluso: “Ai daquele em quem não existe mais a razão de suas forças no campo de concentração” (Frankl, 2010, p. 118). Torna-se fundamental um acompanhamento psi-coterápico para os ex-detentos.

Tendo em vista a narrativa do prisioneiro 119.104, torna-se relevante analisar essa obra de uma forma mais detalhada, tanto para a compreensão da experiência dos prisioneiros do campo de concentração, como para a com-preensão dos aspectos teóricos da logoterapia e análise existencial. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho foi identificar os campos lexicais ou contextos semânti-cos que organizam a narrativa de Viktor Frankl acerca de suas vivências e análises do prisioneiro nos Campos de Concentração Nazistas.

2. Método

2.1 Material

O corpus analisado foi a primeira parte do livroEm busca de sentido: um psicólogo no campo de concen-tração, extraído da vigésima nona edição da versão em português editado pela Sinodal e Vozes. Esse manuscrito foi produzido por Viktor Frankl após a guerra, além de se constituir como uma narrativa autobiográfica que descre-ve a psicologia do prisioneiro nos campos de concentra-ção por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Para efetu-ar a análise do corpus, este foi transcrito para um docu-mento do Word for windows e salvo no formato texto-txt.

2.2 Procedimentos

Com o objetivo de realizar uma análise de dados tex-tuais do corpus escolhido, foi utilizado o programa com-putacional ALCESTE (Analyse de lexémes coocurrent dans les ennoncés simples d’un texte), versão 4.7, que se cons-titui como uma via para uma análise textual, identifi-cando as classes de palavras emergentes de um discurso (Reinert, 1990). Dentre outras finalidades, esse progra-ma se presta também a analisar obras literárias em seus contextos semânticos. Para tanto, parte-se do princípio de que as pessoas se expressam por meio de um universo lexical que representa suas estruturas mentais.

De forma específica, o programa agrupa as palavras por radicais calculando a sua frequência no corpus do texto para, em seguida, prover as unidades de contex-

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to elementares (UCE). Dessa forma, “é a partir do per-tencimento das palavras de um texto a uma UCE, que o programa ALCESTE vai estabelecer as matrizes a par-tir das quais será efetuado o trabalho de classificação” (Reinert, 1998, p. 17). Para tanto, o programa utiliza-se do cálculo do qui-quadrado para identificar tanto os vo-cábulos mais característicos que compõem uma classe com a força de associação entre as palavras e a classe. Nesse sentido, foi realizada uma classificação hierár-quica descendente.

2.3 Resultados

Segundo Kronberger e Wagner (2002), a análise com ALCESTE tem por objetivo distinguir classes de palavras que representam diferentes formas de pensar acerca de uma temática específica. No caso da presente pesquisa, a temática foi a narrativa de Viktor Frankl acerca da ex-periência dos prisioneiros nos campos de concentração. A análise dos resultados foi obtida por meio do corpus

de uma unidade de contexto inicial (UCI), constituí-da pela vivência de Frankl descrita no livro Em busca de sentido. Quando processado pelo software ALCESTE apresentou uma divisão do corpus em 2101 unidades de contexto elementar (UCE) contendo 8989 palavras, formas ou vocábulos distintos e 74% das UCE foram analisadas, o que se considera satisfatório visto que a solução aceitável requer no mínimo 70% (Kronberguer & Wagner, 2002). O ALCESTE organizou as ideias mais relevantes da obra analisada em três classes, dispostas em dois eixos principais.

A Figura 1 apresenta o Dendograma que represen-ta as classes que emergiram após a análise lexical. Ele proporciona a visualização, de forma decrescente, das palavras mais significativas em função das classes, que são concebidas como contextos semânticos. Tendo em vista que a força de associação entre o vocábulo e a clas-se é representada por meio do cálculo do qui-quadrado, consideraram-se apenas as palavras que apresentaram χ2 ≥ 3,84 (p = 0,05).

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Como se pode observar, o primeiro eixo é composto por 64,4 % do conteúdo analisado e está relacionado com a facticidade dos prisioneiros no campo de concentração, ou seja, as condições em que os prisioneiros se encontra-vam imersos e sem a participação da vontade dos mesmos. A classe 1, que compõe esse eixo, foi composta por pala-vras e radicais no intervalo de χ2 = 27 [barrac+(barraca, barracão, barracas, barracões)] a χ2 = 7,7 [pão; fri+(fria, frieza, frio)]. Pode-se atribuir a essa classe a denominação de destino, o que se constitui por condições externas e internas as quais não são passíveis de escolha por parte do prisioneiro. A seguir são apresentadas algumas UCE representativas dessa classe:

(...) cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um companheiro correndo (...) aconteceu? A passos lentos os companheiros se arrastam em direção ao (...) repente saio do barracão rumo à enfermaria para avisar o meu colega (...) frente ao pequeno fogão do barracão, cuidando do fogo naquelas horas (...) parar meu colega e amigo P. ele foi mandado para o outro lado? Sim (...) dia seguinte o capo me contrabandeou para outro comando de trabalho (...) fui acordado pelo companheiro que dormia ao meu lado a gemer e (...) amontoavam cerca de cinquenta companheiros com febre alta, delirantes (...) galpão a me mandar para a enfermaria central a fim de receber (...) enfermos. Os destinados para o transporte, aqueles corpos con-sumidos (...) tentaria arranjar algum pedaço de pão para comermos nos dias seguintes (...) dois doentes de tifo exantemático, dois enfermeiros, um medico. E já (...) pedaço de pão no bolso da capa, com os dedos desprovidos de luvas e (...) no chão, enquanto os demais eram forçados a ficar de pá horas a fio (...) uma voz de comando: grupo de trabalho weingut, marchar! es-querda, 2 (...) gola da capa o companheiro que marcha ao meu lado murmura de repente (...) quem trabalhei lado a lado, por semanas a fio, no local da construção (...) solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e horas a fio (...) campos menores, sentados, acocorados ou de pé, no chão de terra (...)

Já o segundo eixo foi composto por duas classes, que concentraram 35,3% do conteúdo, referindo-se ao posicio-namento psico-existencial dos prisioneiros. Na classe 2 predomina a referência às reações e posicionamentos dos prisioneiros e abarcou palavras no intervalo de χ2 = 96,5 [sofri+(sofrimento, sofrimentos)] a χ2 =18,5 [fat+(fatais, fatal, fato, fator)]; já a classe 3 agrupa ideias sobre as re-ações psíquicas dos mesmos. Essa última abrange os vo-cábulos de χ2 = 169,7 [psicolog+(psicologia, psicológica, psicológicas, psicológico, psicológicos, psicólogo)] a χ2 = 22,9 [higien+ (higiene, higiênicas); condic+(condição, condições)]. Para ilustrar o contexto do discurso referen-te à classe 2, são apresentados os seguintes fragmentos do texto analisado:

(...) justamente uma situação exterior extremamente difícil que da à pessoa (...) somente uma vida ativa tem sentido, em dando a pessoa a oportunidade (...) uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência (...) falando em termos filosóficos, se poderia dizer que se trata de fazer (...) uma única res-posta correta à pergunta contida na situação concreta (...) gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do que (...) caracteriza cada pessoa humana e dá sentido à existência do individuo (...) entorpece em semelhante situação interior e exterior? para não falar (...) espiritual dotado de liberdade in-terior e valor pessoal. Ela (...) concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade não se pode perder. Sem duvida, elas poderiam dizer que foram dignas (...) e belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido (...) como testemunho para o fato de que a pessoa interiormente pode ser (...) existência também não consegue viver em função de um alvo. ela também (...) esquecidas as possibi-lidades de influência criativa sobre a realidade (...) que ele somente pode existir propriamente com uma perspectiva futura (...) exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para (...) cumprir uma tarefa. Havia muito sofrimento esperando ser resgatado por (...) concentração foram de natureza individual e coletiva. As tentativas (...)

Por sua vez a classe 3, Reações Psicológicas, pode ser ilustrada por meio dos seguintes extratos do texto de Viktor Frankl:

(...) importa na medida em que tem um número de prisioneiro, representando (...) novo a alegrar-se. Sob o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de (...) segunda fase dentro das reações anímicas do recluso no (...) terceira fase de reações anímicas do recluso, ou seja, a psicologia de (...) natural e, conforme ainda se mostrara, típica naquelas circunstancias (...) necessi-dades mais primitivas fá-lo experimentar a satisfação das (...) campo de concentração naturalmente apresen-tava muitos aspectos (...) seja, de enfrentar decisões. A apatia tem ainda outras causas e não (...) psicológica e explicação psicopatológica dos traços típicos com que a (...) sobre a capacidade de resistência dos prisioneiros se manifestou (...) apatia dos outros, e mais ainda dian-te do perigo em que ela coloca a (...) queremos detalhar a seguir. A observação psicológica dos reclusos, no (...) ex-prisioneiro 119104 tenta descrever agora o que vivenciou como (...) nós, prisioneiros, já atingíramos este ponto no curso dos eventos (...) segundo estágio de suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a (...) quantidades de calorias. O alivio psíquico e produzido por ilusões que (...) preponderância dos instintos pri-mitivos e a peremptória necessidade de (...) aquilo que não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica

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a (...) das circunstâncias e a despeito de sua delicada sensibilidade (...)

Em síntese, da análise da estrutura lexical da narra-tiva de Frankl emergiram dois polos: por um lado, a con-dição cotidiana que se configurou como o destino, e, por outro, as reações psíquicas e a mobilização da dimensão noológica dos prisioneiros.

3. Discussão

Viktor Frankl reconhece que a sua descrição como um observador participante poderia ter o viés subjetivo por se tratar de uma experiência pessoal (Frankl, 2010). Por esse motivo, faz a seguinte consideração: “(...) deixarei que outros destilem mais uma vez o que está sendo apre-sentado, tirando do estrato dessas experiências subjetivas suas conclusões impessoais em forma de teorias objetivas” (Frankl, 2010, p. 21). Seguindo essa recomendação, reali-zou-se uma análise textual do seu relato autobiográfico. Considerou-se que o objetivo foi atingido tendo em vista que, por meio de uma análise lexical, encontrou-se uma estrutura da narrativa desse autor.

Diferentemente de outros autores como Levi (1990), que se preocuparam em descrever os horrores dos cam-pos de concentração, Frankl coloca os acontecimentos nos campos como o pano de fundo para compreender o vivido dos cárceres, posto que o seu foco foi a experi-ência psicológica dos prisioneiros comuns. Para tanto, o autor utiliza-se de um método que supera a dualida-de sujeito-objeto, ou seja, é o de um observador partici-pante utilizando-se de uma postura fenomenológica ao analisar o vivido de sua própria consciência. Cabe agora analisar os eixos e as classes que emergiram; o que será desenvolvido a seguir.

Eixo I - facticidade dos prisioneiros O eixo I foi composto por uma classe, a qual se cons-

tituiu como o maior poder explicativo desse dendograma (64,7% do total). As palavras de maior associação dessa classe referem-se ao destino sociológico dos prisionei-ros, ou seja, o contexto ambiental que não é passível de mudança. A estrutura revela-se de forma coerente com a proposta do narrador do texto, em suas próprias pala-vras ele faz a seguinte consideração: “apresentaremos os fatos apenas na medida em que eles desencadeavam uma experiência na própria pessoa (...)” (Frankl, 2010, p. 19). Os “fatos” representam no dendograma o primeiro eixo, ou seja, o cotidiano, que se associou com o segundo eixo Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Frankl (1989a) considerou que em última instância a liberdade seria a escolha das potencialidades do vir-a-ser, como por exemplo, uma atitude pessoal perante a conjuntura de condicionamentos. Assim, haveria duas possibilida-des de posicionar-se perante a facticidade do campo de

concentração, uma é a de ser um prisioneiro típico e a outra é a de tomar uma atitude livre perante as condi-ções impostas.

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) tenha sido proclamada posterior à Segunda Guerra, considera-se pertinente analisar o primeiro eixo da estrutura léxica, Facticidade dos Prisioneiros, a ótica dos artigos mais violados durante a permanência dos re-clusos nos campos de concentração. Por exemplo, o Artigo I reza que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. O direito à liberdade foi cerceado tendo em vista que os prisioneiros se encontravam destituídos de escolha e se consideravam joguetes do próprio destino.

Já o Artigo II prescreve que

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

No campo de concentração as pessoas eram julgadas de acordo com a sua raça. A esse respeito Frankl (2010) concebeu que existem apenas duas raças, a das pessoas decentes e a das indecentes, independente do grupo em que as pessoas se encontrem. Apesar da perseguição ét-nico-religiosa os prisioneiros puderam expressar o sen-timento religioso em lugares improvisados:

O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em que surgia, era o mais ardente que se possa imagi-nar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros recém-chegados se surpreendiam pela vitalidade e profundidade do sentimento religioso. O mais impres-sionante neste sentido devem ter sido as reações aos cultos improvisados, no canto de algum barracão ou num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais distante, cansados, famintos e passando frio em nos-sos trapos molhados (Frankl, 2010, p. 51).

No Artigo III reza que “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Os prisioneiros que não serviam mais para o trabalho não tiveram direito a uma vida digna, sendo encaminhados para a câmara de gás aqueles que não estavam aptos ao trabalho. Frankl (1989a) apregoa a dignidade e o valor incondicional da pessoa humana e não os condicionam a sua capacidade de produzir para a sociedade. O próprio Frankl (2006), por ocasião da autorização da eutanásia em pacientes psicóticos, alterou os laudos médicos com a intenção de salvar seus pacientes quando ainda podia atuar no Hospital Judeu.

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No que se refere ao Artigo IV, “Ninguém será man-tido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”, os prisioneiros foram tratados como escravos, já que eram obrigados a trabalhos forçados a fim de sobreviverem, restritos a uma alimentação com poucas calorias. Por fim, no Artigo V encontra-se escrito que “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Segundo o relato de Frankl (2010), ao chegar ao campo os prisioneiros tinham todos os pertences subtraídos, raspado todo pelo do corpo e chicoteados sem nenhuma razão.

Frankl (1990) compreendeu em sua análise existen-cial que o ser humano não é livre de condições. O autor em foco considera que o ser humano não está no vácuo, mas se encontra sempre em relação a algo que o condi-ciona. De fato, o homem como ser-no-mundo está enrai-zado na existência, sempre está em relação a algo ou al-guém. Entretanto, a forma de se relacionar com o mun-do no campo de concentração foi desumanizante, pois os prisioneiros eram tratados como coisas. O Eixo I, de forma geral, enfatiza a vivência cotidiana do prisioneiro comum ao ser inserido em um processo de despersonali-zação. Apesar da perda da sensibilidade, os prisioneiros ainda se indignavam com as injustiças acometidas sem nenhuma razão, o que remete ao segundo eixo.

Eixo II - posicionamento psicoexistencialEsse eixo é composto por duas classes: atitude singu-

lar dos prisioneiros e reações psicológicas. Enquanto a segunda classe explicou 23,7% do total, a terceira apre-sentou o menor poder explicativo do dendograma (11,6% do total). Percebe-se que na classe 2 predominaram con-teúdos concernentes à dimensão noológica, enquanto na classe 3 prevaleceram as palavras que referenciam o es-tado anímico dos prisioneiros. Frankl (2010) destaca, por um lado, algumas características psíquicas, tais como a perda da sensibilidade (embotamento afetivo), a irritabili-dade e o sentimento de inferioridade do prisioneiro. Além da apatia, foi observado também o temor em tomar deci-sões, pois as consequências poderiam ser imprevisíveis.

Por outro lado, o referido autor concebeu que há uma estranha relação dialética entre existência e facticidade, advogando que são “(...) dois momentos que se interdepen-dem e se exigem reciprocamente. Estão sempre incrusta-dos um no outro, razão pela qual só a força é que se pode separá-los” (Frankl, 1990, p. 96). Essa perspectiva corro-borada por meio do significado do termo Ex-sistir, ou seja, sair de si mesmo e confrontar-se (Frankl, 1990).

Para comprender a narrativa de Frankl, torna-se ne-cessário compreendê-la no conjunto de sua obra cientí-fica. Destarte, pode-se considerar que esse manuscrito seja complementar ao livro que Frankl publica em 1946: Ärztliche Seelsorge, cura médica de almas, o qual es-tava escrevendo antes da sua internação nos campos e tentou reconstruí-lo no final da guerra quando contraiu

tifo exantemático. Nesse livro, o autor trata das grandes temáticas de sua análise existencial, dentre elas a do so-frimento humano e as possíveis posturas perante a sua facticidade.

A narrativa de Frankl sobre os campos de concentra-ção torna-se uma validação dos pressupostos filosóficos da logoterapia onde demonstra a capacidade do espírito humano em resistir ao sofrimento quando se depara com uma situação limite. Nessa perspectiva, Frankl (1989a) conclui que sofrimento destituído de sentido pode levar ao desespero. Destarte, o papel do médico e também do psicoterapeuta seria aquele de consolar o homo patiens, ou seja, seguir o imperativo colocado no portal do Hospital Geral de Viena por seu fundador, o imperador José II: “sa-lus et solatio aegrorum”, ou seja, “não só a cura, mas tam-bém a consolação dos doentes” (Frankl, 1990).

Nesse sentido, o projeto fundante da análise existen-cial desse autor foi o de reumanizar a medicina e a psico-terapia, pois quando o profissional tornar-se um técnico, perde de vista o caráter especificamente humano do seu paciente. Dessa maneira, o psicólogo deveria confrontar a capacidade do paciente de se posicionar perante o seu psicofísico (facticidade), instância na qual a pessoa não pode eleger ou realizar escolhas. Isso significa que quan-do o ser humano se encontra com um sofrimento inevi-tável, pode escolher uma atitude perante a sua própria dor, encontrando um sentido por meio dos “valores ati-tudinais” (Frankl, 1990).

Para tanto, o autor em foco acentua a capacidade prospectiva do ser humano no campo de concentração, pois a experiência de três anos em Auschwitz e Dachau lhe ensinou que o mais relevante para a sobrevivência naquela situação era estar orientado para o futuro, para uma pessoa a ser encontrada ou um sentido a realizar após a guerra (Frankl, 1989b). Nessa perspectiva, o se-gundo eixo da análise apresentou uma associação entre as reações psíquicas e a atitude singular do prisioneiro.

Frankl (1989b) apresenta o seguinte exemplo do que ocorrera no gueto de Theresienstadt:

Foi publicada uma lista de com o nome dos cerca de mil jovens que na manhã seguinte seriam retirados do gueto. Quando amanheceu o dia, era do conhecimento geral que a livraria do gueto fora esvaziada. Cada um daqueles rapazes – que estavam condenados a morrer no campo de concentração de Auschwitz – pegara um par de livros do poeta, do romancista ou pensador preferido e o escondera na mochila (p. 27).

Nesse sentido, demonstra a capacidade dos prisio-neiros de se posicionarem perante as suas últimas áre-as de liberdade até o encontro com a morte. Em outros momentos, os prisioneiros expressaram os valores vi-venciais quando contemplam o pôr do sol ou uma mú-sica do violino (Frankl, 2010). Nessa perspectiva, a análise semântica das palavras que se associaram em

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torno da classe 2 sugere as posturas e atitudes singu-lares dos prisioneiros, o que se torna possível median-te a força de resistência do espírito humano. Sobre isso comenta Frankl (1989b): “as pessoas acentuavam suas diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal do homem, mas acontecia o mesmo para a santidade. A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes” (p. 42). Herrera (2007) salienta que essa liberdade inte-rior do prisioneiro não era uma liberdade-de (livre dos condicionamentos), mas uma liberdade-para (tomada de posição apesar dos condicionamentos). Destarte, ao descrever a existência desnuda dos prisioneiros, se-gundo a narrativa do autor, pôde-se contatar que eles não eram apenas um joguete do próprio destino, mas que foi possível naquela situação tomar uma postura pessoal perante o psicofísico do prisioneiro, o que na análise se constituiu como a classe 2.

Considerações finais

O objetivo do presente artigo foi identificar a estru-tura lexical mais significativa do livro Em busca de sen-tido: um psicólogo no campo de concentração, o que foi considerado plenamente alcançado. No entanto, faz-se necessário nesse momento elencar algumas limitações do estudo. Inicialmente considera-se que a análise foi feita por meio de uma tradução do alemão para o português. Assim, questiona-se se o significado semântico pode ter sido modificado ou mesmo que a tradução tenha sido um viés no presente estudo. Dessa forma, recomenda-se fortemente que outros estudos, ao utilizarem dessa mes-ma metodologia, possam se ater ao texto original em sua versão germânica.

Outra questão a ser ressaltada é que o autor da narra-tiva tanto foi observador quanto objeto de observação, já que o mesmo não poderia se distanciar do contexto em que estava inserido. Considera-se que ele foi um obser-vador participante, narrando também as próprias vivên-cias no campo. Entretanto, sabe-se que ele já vinha de-senvolvendo a sua perspectiva teórica antes de ingressar como recluso nos campos de concentração. Dessa forma, a sua visão de homem e de mundo poderia ter facilitado na constatação dos fenômenos especificamente huma-nos. Embora tenha feito uma análise fenomenológica da vivência do prisioneiro, não é possível saber até que pon-to ele suspendeu o seu olhar teórico para realizar tal ob-servação. Nesse caso, sugere-se que outros manuscritos, de outros autores que passaram por essa mesma experi-ência, possam ser analisados para efeito de comparação com a descrição de Viktor Frankl.

Sobre a intenção de escrever o seu relato sobre a sua vivência nos campos, o próprio autor esclarece que “ha-via querido simplesmente transmitir ao leitor, através de um exemplo concreto, que a vida tem um sentido potencial sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis”

(Frankl, 2010, p. 10). Nesse sentido a obra poderia ter um efeito terapêutico ou biblioterapêutico sobre o leitor, en-tretanto não se conhecia até então a estrutura lexical que estaria latente ao manuscrito que pudesse mobilizar os recursos internos da pessoa humana.

Outro ponto relevante da sua narrativa refere-se a questões éticas acerca das posturas das pessoas que so-frem injustiça. Apesar dos relatos dos pequenos atos he-róicos dos prisioneiros, Frankl (1989b) considera que os ‘homens humanos’ se constituem como minoria. Para esse autor, o prisioneiro que tomou uma postura ética ou humana, diante dos condicionamentos impostos nos campos, o fez de forma facultativa. A esse respeito ele tece o seguinte argumento: “contudo é exatamente esse fato que deve estimular a cada um de nós a unir-se à mi-noria: as coisas vão mal, mas se não fizermos o melhor que pudermos para fazê-las progredir, tudo será ainda pior” (Frankl, 1989b, p. 24). Nessa perspectiva, torna-se compreensível que ao sair da reclusão, Frankl (2010) apregoa que quem sofreu injustiça não teria o direito de cometer injustiça.

Considera-se que tanto a vivência de Frankl (1989a) quanto a sua visão teórica são complementares, ou seja, constituem dois momentos distintos que resultam na visão de homem e de mundo. A Logoterapia e Análise Existencial se opõe a concepção reducionista, aquela em que o ser humano é completamente condicionado e sem qualquer possibilidade de escolha (pandeterminismo), pois não considera a pessoa como um joguete do desti-no. Como pode ser constatado por meio da análise da narrativa de Frankl, a pessoa é compreendida como um ser que responde às demandas do mundo. Na totalidade da obra de Frankl, o autor substitui a expressão “nada mais que”, típica do reducionismo, por “mais que”, o que resulta em uma compreensão de homem como um ser que é sempre “mais que” as suas condições inter-nas e externas.

A estada de Frankl nos campos de concentração pro-porcionou a validação vivencial dos princípios que esse autor adota em sua visão antropológica, ressaltando, so-bretudo, a “liberdade da vontade” e a “vontade de sen-tido”. De forma geral, a técnica estatística textual aqui aplicada permitiu o mapeamento do mundo lexical da primeira parte da obra Em busca de Sentido, o que per-mitiu revelar a estrutura da sua narrativa. Essa análise, realizada por meio do ALCESTE, identificou três classes: por um lado, a classe 1, Facticidade dos prisioneiros, por outro as classes 2 e 3, Posicionamento psicoexistencial, corroborando a concepção desse autor segundo a qual o ser humano poderia se posicionar perante as condições psicossociais, escolhendo sua forma de ser-no-mundo por meio de sua dimensão noológica. Assim, considerou--se relevante analisar esse corpus tendo em vista que o mesmo desvela a essência do pensamento originário do autor em tela, tornando tangíveis os conceitos teóricos e filosóficos dessa abordagem.

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Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

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Thiago Antonio Avellar de Aquino é Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba no Departamento de Ciências das Religiões; Professor credenciado do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões; é líder do grupo Nous: Espiritualidade & Sen-tido (CNPq). Endereço Institucional: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Educação - Campus I. Cidade Universitária. 58059-900 - João Pessoa, PB – Brasil. Email: [email protected]

Recebido em 15.10.12Primeira Decisão Editorial em 21.11.12

Aceito em 21.12.12

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LINGUAGEM pOÉTICA E CLÍNICA fENOMENOLÓGICA ExISTENCIAL: ApROxIMAÇõES A pARTIR DE GASTON bACHELARD*

Poetic Language and Existential Phenomenological Clinic: Rapprochements with Gaston Bachelard

El Lenguaje Poético y la Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximaciones a Partir de Gaston Bachelard

rAFAel Auler de AlMeidA PrAdo

MArcus tulio cAldAs

KArl Heinz eFKen

cArMeM lúciA brito tAvAres bArreto

Resumo: A clínica fenomenológica existencial posiciona-se criticamente a uma modalidade de linguagem concebida por crité-rios, categorias ou conceitos. Este artigo consiste numa reflexão teórica, com o objetivo de apresentar a imaginação poética como via de linguagem articulada com a dimensão compreensiva, própria desta abordagem psicológica. Compreendemos a linguagem como gesto significador, de acordo com Merleau-Ponty e em oposição às concepções intelectualistas ou empiristas. A “imagina-ção criadora” de Bachelard distingue-se da referência usual de imaginação como subproduto da memória. A imaginação poéti-ca, segundo a concepção de Bachelard é uma possibilidade de linguagem por meio da qual se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem res-peito ao mundo que está ao nosso redor. Palavras-chave: Linguagem; Significação; Imaginação poética; Clínica fenomenológica existencial.

Resumen: La clínica fenomenológica existencial toma de modo crítico a una modalidad de lenguaje concebido por criterios, categorías o conceptos. Este artículo se propone una investigación teórica, con el objetivo de presentar la imaginación poética como una posibilidad de lenguaje articulado con la dimensión comprensiva, típico de este enfoque psicológico. Comprendemos el lenguaje como gesto significante de acuerdo con Merleau-Ponty y en oposición a los conceptos empiristas o intelectualistas. La “imaginación creativa” de Bachelard se distingue de la referencia corriente que considera a la imaginación como un sub-producto de la memoria. La imaginación poética de acuerdo con la concepción de Bachelard es una posibilidad del lenguaje por el cual es posible vivir en plenitud el sentido de nuestra existencia con las cosas del mundo. En resumen la experiencia de la imaginación poética nos permite apoderarse de significados muy profundos que se relacionan con el mundo que nos rodea.Palabras-clave: Lenguaje; Significado; Imaginación poética; Clínica fenomenológica existencial.

Abstract: Existential phenomenological psychology criticizes a conception of language defined by criterions, categories or con-cepts. This article consists of theoretical reflection, with the aim of presenting poetic imagination as a conception of language articulated to comprehension. We understand language as a signifier gesture, according to Merleau-Ponty and in opposition to empiricist or intellectualist conceptions. Bachelard s “creative imagination” distinguishes itself from the imagination s usual reference – memory s byproduct. The poetic imagination, according to Bachelard’s conception, consists of a type of language by which we can fully experience the sense of something. This experience allows us to take hold of multiple meanings that relate to the world that surrounds us.Keywords: Language; Meaning; Poetic imagination; Phenomenological existential psychology.

O presente artigo procura realizar uma aproximação entre a imaginação poética, entendida como modalidade de “imaginação criadora”, e expressão do sonhar, segundo o pensamento de Gaston Bachelard e a clínica fenomeno-lógica existencial. Esta aproximação tentará mostrar que a reflexão filosófica sobre a imaginação poética feita por Bachelard pode abrir novas modalidades de compreensão para uma prática clínica fenomenológica e existencial. A poética se apresenta como possibilidade para o ser hu-mano estabelecer uma relação viva consigo e com os ou-tros, a partir de sua linguagem própria, e de seu peculiar modo de se expressar. Merleau-Ponty (1945/1999) toma a

linguagem de modo igualmente fundamental, como gesto criador e significador de um mundo. Este tipo de relação, também almejado pela clínica fenomenológica existen-cial, só pode ser estabelecida quando a linguagem deixa de ser “usada” como meio de expressão ou “instrumento” e passa a manifestar e revelar nosso modo de ser situado no mundo com os outros. É nesse sentido de manifesta-ção e revelação daquilo que mais propriamente nos diz respeito que a poética é compreendida por Bachelard, o que justifica nosso interesse pelo tema em questão.

A clínica fenomenológica existencial não se restringe a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem

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categorial, mas se apresenta vinculada a modalidades de compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prá-tica clínica. Como prática, pode ser fecundada por uma determinada concepção filosófica. O psicólogo é o pro-fissional cuja fala e escuta se prestam a uma compreen-são. Em sua formação acadêmica, procura desenvolver e aperfeiçoar sua capacidade de compreensão. É para aten-der essa necessidade de qualificar seu compreender que fundamenta sua prática em uma teoria. O suporte teórico vigente fundamenta-se no método científico, concebido a partir de premissas filosóficas. Em consonância com tal fato, teorias psicológicas se desenvolveram a partir da preocupação de fornecer ao psicólogo uma melhor capacidade de compreensão. É inquestionável que, com o desenvolvimento de teorias psicológicas, como a psica-nálise, a psicologia comportamental e a psicossociologia, a prática do psicólogo tem se tornado mais qualificada.

Seria por isso uma exclusividade do método cientí-fico a possibilidade de fornecer referenciais que possam servir de guia para o psicólogo compreender o outro? Por que haveriam de ser menos válidas para uma prá-tica clínica as referências sobre o humano fornecidas pela poética e pela filosofia? Seriam desprezíveis? Não se pretende defender a fundação de uma nova proposta psicoterápica, muito menos desvalorizar aquelas funda-mentadas por métodos científicos, mas somente refletir sobre a possibilidade da poética ser uma modalidade de linguagem útil para a prática psicoterápica fenomeno-lógica existencial.

Sá (2009) nos lembra que sempre haverá uma condi-ção histórica fundada em uma comunidade humana que a partir de uma linguagem que pareceria natural, nos permite uma experiência do mundo cotidiano. Portanto, os procedimentos técnicos e científicos, ou mesmo qual-quer teorização, por mais que alcance uma linguagem técnica altamente especializada, depende desta determi-nação histórica. Esta reflexão nos indica o cuidado que devemos ter ao tomar a verdade em seu caráter absoluto. A partir daí, acreditamos que a verdade sempre será uma construção, não por isso menos verdadeira que qualquer verdade técnico-científica.

Para cumprir seus propósitos, este artigo iniciará com uma reflexão sobre o pensamento de Descartes, sua influência para a fundamentação das ciências psicológi-cas e para uma determinada concepção de linguagem. Mostraremos como o método de conhecimento propos-to por este filósofo foi, por um lado, de fundamental im-portância para o desenvolvimento das ciências; porém, por outro lado, caso utilizado como única forma de se atingir “a verdade”, limita a compreensão do ser huma-no, que é fundamental para a proposição de uma prática psicológica adequada.

Em seguida, apresentaremos a linguagem compreen-dida como gesto que significa e cria um mundo no pen-samento de Merleau-Ponty; com o intuito de explicitar

essa importante noção. Escolhemos essa concepção por ela não entender a linguagem como um processo asso-ciativo ou representacional, mas como gesto significador. Esta compreensão de linguagem norteia nossa reflexão sobre a imaginação poética.

Num terceiro momento, falaremos sobre a especifici-dade da imaginação poética, aproximando considerações de Merleau-Ponty e de Bachelard. Procuraremos mostrar o que de específico tem a imaginação poética a partir da concepção de linguagem adotada. A imaginação poética não é, para Bachelard, um processo de representação ou expressão de uma idéia. A poética é uma modalidade de linguagem pela qual significamos e criamos nosso mun-do a partir de nossa capacidade de sonhar.

Dando continuidade às reflexões anteriores, apresen-tamos e discutimos algumas imagens poéticas trabalha-das por Bachelard. Concluímos o artigo pensando sobre possíveis contribuições da imaginação poética para a psicologia fenomenológica existencial.

1. O pensamento de Descartes, Ciências psicológicas e Linguagem

Partimos da ideia de que há uma limitação quanto à adoção metodológica de inspiração cartesiana, no que diz respeito à fundamentação das ciências humanas, in-clusive a psicologia. Embora o pensamento de Descartes seja de inestimável importância para a história da filoso-fia e tenha contribuído para o desenvolvimento das cha-madas ciências naturais, a crítica aqui é dirigida ao uso dogmático e acrítico do método cartesiano no campo do conhecimento sobre o ser humano.

As concepções filosóficas que orientam as práticas psicológicas existentes são fundamentadas numa tradi-ção de conhecimento predominante, em que há uma di-visão epistemológica fundamental entre sujeito e objeto, que se desdobra nas dicotomias entre homem e mundo, e corpo e mente – ou psique – entre outras. Medard Boss ressalta que o termo psique deriva do grego antigo e tem o significado original de “(...) uma determinada maneira de existir, ou seja, aquele modo-de-ser que distingue os seres vivos” (Boss, 1972/1981, p. 53).

Psique foi assumindo, no entanto, no pensamento eu-ropeu, o significado de “(...) uma coisa substancial, a qual se encontra em algum lugar no espaço” (Boss, 1972/1981, p. 53), colocando-se dessa forma em oposição à corpo-reidade. No pensamento de Descartes, psique assume o significado de Res Cogitans, entendida como o espírito humano, o sub-iectum que “(...) quer dizer aquilo no que algo se baseia, que está como fundamento de todo o res-tante.” (Boss, 1972/1981, p. 53). Por sub-iectum também se entende a base para que as realidades do mundo exis-tam, sendo tomadas por objetos. A psicologia assimilou o conceito de Res Cogitans como “aparelho psíquico” na teoria freudiana.

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No campo da psicoterapia, Boss considera indispen-sável ao terapeuta ter conhecimento da origem de sua fundamentação filosófica. Como a maioria das ciências atualmente se fundamentam na filosofia de Descartes, inclusive as ciências humanas, ele alerta para a impor-tância do psicólogo refletir sobre seus pressupostos te-óricos examinando criticamente a filosofia cartesiana: “[É] (...) indispensável ao atual psicoterapeuta que – caso ele queira saber o que faz – que ele reflita, pelo menos um pouco, sobre o que aprontou a seu tempo, este matemáti-co-filósofo, com o nosso mundo e com o mundo dos pos-teriores psicoterapeutas” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor chama a atenção para o fato de que, na filosofia cartesia-na, verdade e realidade são entendidas como o aquilo que é mensurável, calculável e exato. Essas características, por serem controláveis, foram eleitas para estabelecer o que é verdade, permitindo que o homem exerça controle sobre a natureza.

Nossa sociedade contemporânea é capitalista e con-sumista. O capitalismo, por um lado, se estrutura no controle de condições e no processo de produção indus-trial, o que estimula, por exemplo, pesquisas científicas para fabricação de novos produtos ou criação de novas máquinas que aceleram e intensificam a produção. Por outro lado, no controle de condições também se oferece a possibilidade de se manipular e de se ter poder.

Nietzsche afirma (conforme citado por Boss, 1972/1981, p. 54) que o “(...) século XIX não trouxe a vitó-ria da ciência, mas a vitória do método (método de pen-sar científico) sobre a ciência”. Para Boss, a colocação de Nietzsche é válida ainda hoje. O método científico, que é um método de controle sobre o mundo, tornou-se o modo de pensar e de ser de uma sociedade. Com isso, as qua-lidades de mensurabilidade, calculabilidade e exatidão, exigidos para que a ciência estabeleça controle sobre o mundo, tornaram-se sinônimos de verdade e realidade no plano das ideias.

As práticas psicológicas, portanto, fundamentam-se numa filosofia que tem como objetivo o controle da na-tureza e apresenta caráter possessivo. Boss (1972/1981) ressalta o risco que as psicoterapias correm de “(...) ser-vir para um aumento de poder do sujeito em relação a todos os objetos do mundo externo – inclusive de seus se-melhantes” (Boss, 1972/1981, p. 55). Segundo o autor, as psicoterapias atuais “(...) correm este perigo de serem elas também como todas as ciências naturais que tentam obter o domínio sobre a natureza inanimada, filhas desta men-talidade extremamente possessiva, subjetivista da filoso-fia cartesiana” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor aponta ainda para a necessidade de a proposta psicoterápica fe-nomenológica existencial estabelecer novos referenciais humanos não-conceituais ou categoriais, mas que possam servir para expressar melhor o domínio da compreensão.

Merleau-Ponty (1945/1999), ao formular sua concepção de corpo, tenta superar a dicotomia entre sujeito e objeto proposta por Descartes. Para o autor, não existe a sepa-

ração entre um corpo físico e uma alma ou mente, e nem o corpo é compreendido como ideia ou objeto. O “corpo--próprio” para Merleau-Ponty é um “corpo sujeito”, um modo paradoxal desse sujeito “estar” no mundo, posto que o mundo o permeia de modo que o corpo é visível e se vê, é sensível e se sente, é tocável e se toca. O ser humano é seu próprio corpo e nada além, ou fora dele.

O pensamento de Merleau-Ponty caracteriza-se por uma alternativa às limitações colocadas pelo pensamen-to cartesiano e busca ir além dele, fazendo uma releitu-ra da condição do ser humano, de modo que mundo e homem não são mais compreendidos como separados, mas o homem, através de sua corporeidade, é um ser no mundo, sendo o mundo o que o cerca e lhe diz respeito. Esta concepção devolve o homem ao seu pertencimento ao mundo, e permite que os fenômenos humanos sejam reinterpretados. A linguagem, a partir da corporeidade proposta por Merleau-Ponty é, desse modo, compreendi-da de uma outra forma.

2. Linguagem como Gesto que Significa e Cria um Mundo

A dicotomia sujeito-objeto, proposta pelo modelo car-tesiano, deu origem a duas correntes de pensamento: o intelectualismo, que privilegia o subjetivismo, e o me-canicismo, que privilegia o objetivismo. No âmbito da concepção da linguagem, ambas as correntes consideram uma separação entre pensamento e fala em que ou um é causa do outro, ou um representa o que outro expressa. Para Merleau-Ponty (1945/1999), a fala e o pensamento são dois momentos de um mesmo gesto, um gesto que só pode se dar através do corpo. É por isso que o autor afir-ma que “(...) para poder exprimi-lo em última análise o corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala.” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 267).

A linguagem – fenômeno do corpo – é uma modali-dade de gesto. Como todo gesto, a fala só acontece a par-tir das possibilidades expressivas do corpo como vocife-rar e soltar ar silibante, e, ao mesmo tempo constitui um mundo de significados que expressam suas intenções e sua disposição emocional. Este mundo de significados é constituído pela fala e se refere a uma rede significativa “intersubjetiva” já adquirida, a qual permite que a fala seja compreendida pelo outro. No entanto, a fala não se relaciona a esta rede “intersubjetiva” a partir de um pro-cesso causal, nem por um acesso intelectual a represen-tações mentais pré-existentes. A fala do outro habita meu corpo, há uma reciprocidade entre minhas intenções e desejos e a fala do outro e vice e versa e, só por isso, há fala. A rede intersubjetiva é apenas o meio (linguístico) possibilitador da fala.

A fala não pressupõe o pensamento. Falar não é unir--se ao objeto através de uma representação nem por uma

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intenção de conhecimento. A denominação dos objetos é seu próprio reconhecimento, e não anterior a ele.

(...) a fala não é o signo do pensamento, se entendemos por isso um fenômeno que anuncia outro, como a fuma-ça anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se um e outro fossem tematicamen-te dados; na realidade, eles estão envolvidos um no ou-tro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência exterior do sentido (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 247).

Compreendemos para além do que pensamos esponta-neamente. Isso mostra que o pensamento não se relacio-na com a fala a partir de um processo associativo, como é defendido pelo intelectualismo. O sentido de uma obra literária, por exemplo, mais contribui para modificar o sentido comum das palavras do que é por ele constituído. Há um “pensamento que fala” (Merleau-Ponty, 1945/1999) tanto no escutar e ler, como no falar e escrever. Isso é des-considerado pelo intelectualismo.

Pronunciar uma palavra é o único modo de repre-sentá-la para mim. Assim como outras modalidades da consciência corporal, a imagem verbal é uma das moda-lidades de gesticulação fonética. Fala e pensamento estão arraigados um ao outro e não são dados separadamen-te. A fala é a “essência exterior do sentido” que, por sua vez, está fundado na fala. A duplicação e a vociferação que revestem o pensamento trazem e contêm em si o seu sentido. A fala tem uma “potência de significação” que lhe é própria. A operação expressiva realiza a significa-ção da fala, ela não a traduz. A fala é um gesto, e como (todo) gesto contém seu sentido, o que permite a comu-nicação. A comunicação acontece de mim para um outro “sujeito falante”, que tem um determinado modo de ser e com “um mundo que ele visa”. Não nos comunicamos com pensamentos nem com representações, assim como é proposto pelo intelectualismo.

A fala é um gesto cuja origem é o “silêncio primor-dial”. Ela é o gesto que rompe este silêncio. A significa-ção da fala é um mundo. A comunicação acontece não através da apreensão de um sentido dado, mas pela com-preensão do gesto do outro. A compreensão só é possível porque existe uma reciprocidade entre minhas intenções e os gestos dos outros. Assim, minhas intenções podem habitar o corpo do outro, assim como as intenções do ou-tro podem habitar meu corpo.

Tanto a compreensão do outro como a percepção das coisas se dão pelo corpo. O sentido do gesto está na sua expressão e não é dado separada ou anteriormente a ele numa representação. O sentido do gesto estrutura um mundo de significações. A gesticulação verbal se serve de significações já disponíveis, estabelecidas por expressões anteriores, que são comuns aos falantes. O sentido da fala é o modo como ela articula essas significações adquiridas.

A fala é uma das possibilidades da “potência irracio-nal” humana que cria significações e as comunica. Sua

singularidade entre as operações expressivas é a possibi-lidade de criar um “saber intersubjetivo” a partir de sua sedimentação. Por isso, só a metalinguagem – ou falar so-bre a fala – é possível, e algo semelhante não é possível em outras modalidades expressivas, como pintar sobre a pintura e cantar sobre a música. A “atividade categorial” ou nossa possibilidade de estabelecer categorias é ape-nas um modo de nos relacionarmos com, ou de estarmos no mundo, ou mesmo um modo de configurarmos nossa experiência. O pensamento cartesiano e as ciências que nele se fundamentam elegem esta possibilidade como a mais verdadeira ou confiável e invalidam as outras.

3. A Especificidade da Linguagem poética - Apro-ximando Considerações de Merleau-ponty e de bachelard

Em 1938, Gaston Bachelard, a convite do poeta Jean Lescure, escreve um artigo sobre poesia chamado “O instante poético e o instante metafísico”. Este tex-to marca profundamente o rumo de suas reflexões filo-sóficas, antes mais preocupadas com a epistemologia. Segundo Pessanha (1994),

(...) o que Bachelard conquista a partir desta época para ele e para nós – são os fundamentos da legiti-midade do devaneio, os motivos que tornam o sonho imprescindível à arte e à vida. Conquista o direito de sonhar. E, aqui também pedagogo, ensina as riquezas e benefícios do devaneio (pp. 10-11).

O devaneio é compreendido por Bachelard como uma função de um sonhar ativo, vivificador e não pelo seu sentido divagativo. A imaginação poética é uma moda-lidade de devaneio que diz respeito à expressão poética sobre o que se sonha e vive.

As concepções de imaginação e de devaneio poéticos estão fundamentadas numa concepção de linguagem. Para compreender como Bachelard nos apresenta estes fenômenos humanos, vamos adotar como referência a concepção de linguagem de Merleau-Ponty. Ela nos ofe-rece uma compreensão sobre este fenômeno que difere das concepções tradicionais e que tem compatibilidade com as proposições bachelardianas. Merleau-Ponty de-fende que a linguagem é um gesto do corpo, que na sua expressão revela seu sentido. Não existe uma cisão entre um pensamento, em que as ideias estariam representadas, e a fala que apenas expressaria ideias previamente da-das, disponíveis para uma expressão. Ele acredita numa unidade “ambígua” entre pensamento e fala, na qual a fala é o próprio pensamento consumado, dando-se junto com este e não de forma exterior. Isso rompe com noções mecanicistas e idealistas da linguagem que a veem como efeito de uma causa exterior ou como expressão de uma representação mental prévia.

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Bachelard (1957/2000) afirma que para estudar os pro-blemas propostos pela imaginação poética, um filósofo que costuma fundamentar seus estudos no racionalis-mo ativo deve romper com suas linhas de pensamento e seus hábitos de pesquisa. Essa posição converge para a de Merleau-Ponty, no sentido de não se limitar às noções causais e dicotômicas que configuram as correntes idea-listas ou empiristas para se estudar um fenômeno da or-dem da linguagem como a imaginação poética.

A proposição de Bachelard é convergente à concep-ção de linguagem para Merleau-Ponty. Quando o primei-ro afirma que é: “(...) necessário estar presente, presente à imagem: se há uma filosofia da poesia ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão to-tal a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem” (Bachelard, 1957/2000, p. 1), o autor encontra um modo específico possível de fa-lar que, de certa forma, contempla a posição de Merleau-Ponty sobre linguagem. Este afirma que: “O elo entre a palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de asso-ciação; o sentido habita a palavra, e a linguagem ‘não é um acompanhamento exterior dos processos intelectuais’” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).

A imaginação e o devaneio poético são modos pri-vilegiados de conhecer uma dimensão humana ainda pouco explorada pela psicologia: o potencial do imagi-nário compreendido como “imaginação criadora”, nossa capacidade de sonhar com olhos abertos (que difere do sonhar noturno). Segundo o autor, a psicologia vem tra-dicionalmente tratando a imaginação como subproduto da memória, não lhe dando grande importância.

Bachelard elege a imaginação poética como forma de estudar a imaginação. Esta modalidade se encontra no domínio da linguagem escrita, o que facilita a reflexão e permite ao leitor, através da leitura de imagens poéticas, servir-se de referenciais humanos sempre novos, con-tribuindo para ampliar seu mundo e suas significações. Estas, segundo Merleau-Ponty, são o meio pelo qual a lin-guagem humana se dá.

Ela [a linguagem] apresenta, ou antes ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo ‘mundo’ não é aqui uma maneira de falar: ele significa que a vida ‘mental’ ou cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encar-nado (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).

Para Merleau-Ponty, a linguagem categorial é ape-nas uma das possibilidades da linguagem, mas segundo uma perspectiva idealista é a única forma de se conse-guir conhecimento verdadeiro ou absoluto. “Mas, se nos reportamos às descrições concretas, percebemos que a atividade categorial, antes de ser um pensamento ou um conhecimento, é uma certa maneira de relacionar-se ao mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configura-

ção da experiência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 259). Para o autor, se a fala é autêntica, “faz nascer algo novo” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 263). O estudo sobre a ima-ginação poética, realizado por Bachelard, visa justamente ao nascer desta novidade, deste mundo de significações e sentidos singulares e únicos que as imagens nos trazem.

A linguagem poética, segundo Bachelard (1957/2000), é a linguagem pela qual o ser humano expressa mais di-reta e nitidamente o modo como é tocado pelo mundo. O mundo, constructo permanente e mutável da plurali-dade do ser humano, são as redes de significações que se estabelecem nas relações dos homens com as coisas. A poética é uma possibilidade do homem se reconhecer na sua singularidade e de dar sentido à sua vida.

Na perspectiva colocada por Bachelard, o imaginá-rio, estudado pelo autor, na forma de imaginação poética, tem um lugar central na existência humana no que diz respeito à relação do ser humano consigo mesmo, com os outros e na significação de seu mundo. Essa posição é consonante com a posição de Merleau-Ponty (1945/1999) sobre linguagem:

A partir do momento que o homem faz uso da lingua-gem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifes-tação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 266) (Grifos do autor).

A própria elaboração que a pessoa faz sobre si mes-ma é poética, no sentido de que é única e que fala dela, e porque busca o sentido do que se vive e não causas e ex-plicações. Na prática psicoterápica podemos propor que o terapeuta promove, através de uma escuta cuidadosa e interessada, o aprofundamento da elaboração poética que a própria pessoa faz a respeito de suas experiências vividas. O psicólogo, também, assume uma atitude poé-tica em relação ao que o paciente lhe conta, quando ele se coloca em sua posição e encontra palavras que escla-recem o sentido que se apresenta na fala do paciente. Isso difere de uma postura em que o terapeuta atribui expli-cações e causas para as vivências relatadas pelo pacien-te, o que é próprio das abordagens teóricas psicológicas fundamentadas no pensamento cartesiano.

4. Algumas Imagens poéticas Trabalhadas por Gaston bachelard

A título de ilustração, apresentaremos neste item a análise de três imagens poéticas trabalhadas por Bachelard, para que possamos ter uma ideia do tipo de contribuição que estas podem oferecer para a psicologia clínica fenomenológica existencial e foram escolhidas com o propósito de mostrar um pouco da variabilidade

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dos temas e dimensões humanas que podem ser expres-sas através dessa modalidade de linguagem. A elabora-ção poética é linguística e, portanto, tem a função de dar sentido ao mundo. A primeira imagem apresentada aqui é do domínio dos sentimentos; a segunda diz respeito a um devaneio em que o elemento terra é mais fortemente pre-sente; e a terceira é uma imagem da “imensidão íntima”.

Jules Supervielle (conforme citado por Bachelard, 1957/2000, p. 206), na seguinte imagem poética, nos traz uma nuance do sentimento de tristeza que encontrou seu lugar, e de alguém que se permite triste pela própria necessidade que a tristeza apresenta e não tenta evitá-la, não a sente de forma insuportável: “Conheço uma triste-za que tem cheiro de abacaxi. Sou menos triste, sou mais docemente triste”.

A leitura de uma imagem poética, quando repercute no íntimo de uma pessoa, ‘empresta’ ao sentimento dela um meio de se expressar. Ele é, assim, reconhecido, não é mais estranho, mas familiar e pode ser incorporado. Sobre a imagem poética, acima citada, o autor afirma: “Qualquer que seja a afetividade que matize um espa-ço, mesmo que seja triste ou pesada, assim que é expres-sa, a tristeza se modera, o peso se alivia” (Bachelard, 1957/2000, p. 206). As imagens poéticas não encerram o significado de uma vivência humana, mas detalham-no ao máximo, permitindo que na especificidade de sua sig-nificação, falem algo genuíno e vivo, capaz de sensibili-zar o leitor, que se reconhece na imagem.

Bachelard dedica-se, num primeiro momento de suas obras a tratar das imagens materiais. Ele escreve cinco obras, sendo cada uma inspirada em um elemento da natureza ou matiz material (fogo, ar, água e duas obras destinadas aos devaneios da terra). O autor diferencia a imaginação formal da imaginação material, situando no universo da segunda suas obras sobre a poética e o de-vaneio. A primeira modalidade de imaginação, forma-dora de conceitos, é própria da ocularidade, própria de um filósofo “que vê o trabalhador trabalhar” (Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 14). A imagina-ção material já é fruto da mão que trabalha a matéria, de uma experiência corporal de criação. Como exemplo do tipo de imaginação que Bachelard chama de imaginação “da mão feliz”, apresentamos a seguinte imagem: “’A ma-téria estava vencida, a natureza não era tão forte como ele’” (Phillipe conforme citado por Bachelard, 1948/2001, p. 49). Por meio do seu trabalho o trabalhador vence a matéria, unindo o seu devaneio à sua vontade de poder.

Esta imagem se refere a um operário que termina um tamanco, mas fala de “(...) um sentimento de vitória con-sumada proporcionada pela matéria domada no traba-lho” (Bachelard, 1948/2001, p. 49). Ela também mostra que o devaneio está subjacente a qualquer atividade hu-mana. Neste trabalho de fabricação manual do tamanco, o orgulho de realização acontece através do devaneio da luta; a vitória da realização acontece através da vitória contra a adversidade da matéria. Esta é a forma de traba-

lho que inspira a imagem poética. Não se trata nem de um trabalho sob sua contextualização capitalista, nem de um trabalho num cenário de luta de classes. É um trabalho corporal na sua corporeidade mais radical; um trabalho braçal que pouco inspiraria, à primeira vista, nossas forças devaneadoras. Mas o trabalho, nesta ima-gem, é apresentado como luta que nos fortalece como se-res humanos felizes.

A terceira imagem, de Bachelard, nos convida para o interior da nossa floresta interna. Encaramo-nos com os mistérios de nossa origem. A floresta como um “antes--de-nós” parece-nos testemunhar silenciosamente nossa ancestralidade.

A floresta é um antes-de-nós (...). Quando se abranda a dialética do eu e do não-eu, sinto as pradarias e os campos comigo, no comigo, no conosco. Mas a flo-resta reina no antecedente. Em determinado bosque que conheço meu avô se perdeu. Contaram-me isso, não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia. Minhas lembranças mais antigas têm cem anos ou pouco mais. Essa é a minha floresta ancestral. Tudo o mais é literatura (Bachelard, 1957/2000, p. 194).

Esta imagem expressa “nosso estarmos” limitados em relação à compreensão de nós mesmos e de nossa origem. Por meio dela, nos sentimos assistidos por um mundo que nos conhece mais que a nós mesmos. A floresta ancestral, ambiguamente, também mobiliza em nós um sentimento de familiaridade com o mundo.

A imagem poética, conforme queremos sugerir, é uma forma de linguagem como significação de mundo, e como forma de estabelecer uma relação viva conosco mesmos e com o outro. Ela é direta na sua singularidade. Ela é as-sim, o que há de mais sincero, de mais espontâneo. Ela é pura imediaticidade. A confiança passa aqui do que está mais atrás (como na adoção de causalidade como referên-cia explicativa de um fenômeno), para o que vem mais à frente, o que se mostra, mais nítido, mais visível. Segundo Bachelard: “(...) a imagem em sua simplicidade, não pre-cisa de um saber. É dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta na novidade de suas imagens é sempre origem de linguagem” (Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 28).

5. Aproximações entre Clínica fenomenológica e Imaginação poética

Que contribuições a noção de imaginação poética – apresentada através desta reflexão – pode trazer para a psicologia? A busca pela imaginação poética, da qual o devaneio é expressão, como fonte de referenciais huma-nos para a psicologia é uma busca por um modo alterna-tivo aos estabelecidos segundo concepções cartesianas. O devaneio poético é uma possibilidade humana em que

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se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem respeito ao mundo que está ao nosso redor. Por imaginação, neste estudo, entende-se “imaginação criadora” no sentido do termo atribuído por Bachelard, e não pelo que se costu-ma chamar de imaginação, segundo a referência usual que a considera um subproduto da memória.

A imaginação e o devaneio poéticos permitem uma ampliação de novas considerações sobre a imaginação e o sonhar de forma geral. Grafado na forma de imagem poé-tica, o devaneio é preservado e pode assim ser comparti-lhado por outras pessoas. A imagem poética tem sentido ontológico e é apreendida pelo leitor acompanhada pelo sentimento de pertencimento. “Essa imagem que a leitura do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraíza-se em nós mesmos. Nós a recebemos, mas sentimos a im-pressão de que teríamos podido criá-la, de que deveríamos tê-la criado” (Bachelard, 1957/2000, p. 7).

A leitura de um poema se dá pelas dinâmicas de re-percussão, entendidas pelo modo como somos sensibili-zados pela imagem poética e de ressonância, elaboração intelectual posterior que dá sentido ao poema. A resso-nância é uma vivência superficial que contextualiza o po-ema. Na repercussão, o indivíduo se apropria do poema, sentindo que seus significados lhe dizem respeito. A re-percussão serve para o leitor como desvelamento de sen-tido de sua própria existência, enquanto as ressonâncias, como próprias da intelectualidade “(...) dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo” (Bachelard, 1957/2000, p. 7) e produzem documentos psicológicos.

Se considerarmos a fala escrita – na forma de imagem poética – como gesto do outro, poderemos aproximar o fenômeno da repercussão e da ressonância na compreen-são de uma imagem poética da noção de Merleau-Ponty, o qual considera que a compreensão do gesto do outro acontece a partir da reciprocidade entre as intenções dos outros e as minhas. Segundo Merleau-Ponty:

Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou se minhas intenções habitassem o seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado um objeto intencional. Esse objeto torna-se atual e é plenamente compreendido quando os poderes de meu corpo se ajustam a ele e o recobrem (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 251).

Bachelard ressalta que a psicologia limita-se a estu-dar a ressonância poética, buscando contextualizar o po-ema socioculturalmente e a partir da história de vida do poeta. O autor defende que falta à psicologia um estudo sobre a repercussão poética e volta parte de sua obra às imagens poéticas que repercutem no leitor. Um estudo fenomenológico sobre a imaginação e sobre o devaneio poético é importante, pois o devaneio, através da vivência de repercussão de uma imagem, pode devolver o indiví-

duo para si mesmo e fazer com que este se aproprie de seu próprio mundo, libertando-o do que não lhe diz respeito.

De um modo mais geral, compreende-se também todo o interesse que há, acreditamos nós, em determinar uma fenomenologia do imaginário onde a imaginação é colocada no seu lugar, como princípio de excitação direta do devir psíquico. A imaginação tenta um fu-turo. A princípio ela é um fator de imprudência que nos afasta das pesadas estabilidades. Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vida que alargam nossa vida dando confiança no universo (...). Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento de nosso ser nesse universo que é o nosso. (Bachelard, 1960/1996, p. 8).

Um estudo sobre a imaginação e o devaneio poéticos poderá contribuir para o modo de estar na relação com o cliente, acompanhando-o na apropriação de si mes-mo, através da apropriação da sua capacidade de sonhar. O interesse em refletir sobre a imaginação poética como referência para o sonhar e a imaginação criadora se deu também pelo fato de a poética ser uma linguagem possí-vel na psicoterapia fenomenológica existencial, segundo Pompéia e Sapienza (2004). A reflexão sobre a imagina-ção poética apresentada por Gaston Bachelard possibili-ta a compreensão teórica sobre a imaginação e o sonhar, e pode contribuir para ampliar a comunicação do psi-cólogo que, ao se familiarizar com a linguagem poética, familiariza-se com uma linguagem compreensiva, pró-pria da psicoterapia.

Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente da-quelas coisas que já nos foram caras, que já foram coisas do coração, mas que perderam esse vínculo em função de dificuldades de comunicação, tornando-se desgas-tadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura através da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando isto acontece, encontramos uma verdade (Pom-péia & Sapienza, 2004, p. 161) (Grifo do autor).

Segundo apontamento de Pompéia e Sapienza (2004), a linguagem poética conduz o paciente a se encontrar con-sigo mesmo, a conseguir significar, validando e dando sentido à sua vida. Boss ressalta que os pacientes libertos para si mesmos têm suas possibilidades de ser e sua liber-dade recuperadas através do conhecimento de si mesmo, possibilitado e alimentado pela psicoterapia. As verdades encontradas durante a procura psicoterapêutica, que se dá através da linguagem poética, são compreensões liber-tadoras. O paciente esclarece e conta com novas possibi-lidades de ser e pode, a partir delas, fazer suas escolhas de modo mais apropriado. A libertação do paciente para suas próprias possibilidades de ser é a que a psicotera-pia fenomenológica existencial se propõe, segundo Boss:

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Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes para si mesmos (...). Por isso, com a libertação psicoterápica, queremos levar nossos pacientes ‘apenas’ a aceitar suas possibilidades de vida como próprias e a dispor delas livremente e com responsabilidade. Isto quer dizer também, que nós queremos que eles criem coragem de levar a termo suas possibilidades de relacionamento co-humanos e sociais de acordo com sua consciência intrínseca e não como uma pseudo-consciência imposta por qualquer um (Boss, 1972/1981, p. 61).

A imaginação poética pode contribuir para a prática psicológica por oferecer imagens de rico significado hu-mano para o psicólogo, e por deixá-lo mais sensível para compreender e legitimar os devaneios de seus pacientes. Estes, embora não escrevam sobre seus devaneios tornan-do-os poemas escritos, devaneiam, por exemplo, ao lem-brar de sua infância e revivê-la, ou mesmo ao se entrega-rem a um momento contemplativo ou terem um insight.

No plano de contribuições para pensar uma clínica numa perspectiva fenomenológica existencial, as ima-gens poéticas podem ampliar as possibilidades compre-ensivas do discurso do cliente. A poética é a linguagem que mais possibilita e amplia a capacidade de compreen-são, e por isso, é uma modalidade de linguagem possível na clínica fenomenológica existencial. Boss (1972/1981) defende que as contribuições verdadeiramente impor-tantes da abordagem existencial para a prática clínica fundamentam-se na compreensão mais aprofundada da existência humana e não em técnicas psicoterápicas. As imagens poéticas, por serem do âmbito da compreen-são, diferentemente dos conceitos que são do âmbito da explicação, podem ser referências importantes para um terapeuta existencial.

O gesto humano de se comunicar, de buscar signifi-cados de criar e alimentar seu mundo está plenamente contemplado pela leitura de uma imagem poética. Este modo de se relacionar com a linguagem – a imaginação poética – nos volta para o sentido fundamental da lin-guagem, que é criar e significar o mundo, estabelecendo uma relação viva consigo e com os outros. É prestando a esta finalidade que a linguagem deixa de ser objeto reve-lar-se como um modo de estar no mundo com os outros.

Um estudo sobre a imagem poética nos provoca, no entanto, uma sensação de insegurança que atribuímos ao seu caráter de não encerrar questões em conceitos, não permitindo, por exemplo, o estabelecimento de sa-beres fundamentais. Mas são os saberes infinitos sobre o ser humano e sua condição que são ditos pela imagem poética. É preciso aceitar a inesgotável possibilidade de saberes como condição humana de inconclusividade. O tipo de estudo que a imagem poética exige, apresenta contribuições para pensar uma clínica fenomenológica existencial que não se apoia em conceitos estabelecidos ou em categorias.

* Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e à Tecnologia do Esta-do de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de Doutorado que nos permitiu a realização do presente artigo.

Referências

Bachelard, G. (1996). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1960).

Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1957).

Bachelard, G. (2001). A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1948).

Boss, M. (1981). Angústia, culpa e libertação (ensaios de psi-canálise existencial). São Paulo: Livraria Duas Cidades (Original publicado em 1972).

Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).

Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução à coletânea póstuma de artigos de Gaston Bachelard. Em G. Bachelard, O Direito de Sonhar (pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na Presença do Sentido. São Paulo: Paulus.

Sá, R. N. (2009). Psicoterapia, cientificidade e interdisciplina-ridade: a propósito de uma discussão sobre a suposta ne-cessidade de uma regulamentação das práticas psicológi-cas clínicas, Portal do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [online]. Disponível na World Wide Web: http://www.crpsp.org.br/psicoterapia/textos_6.aspx

Rafael Auler de Almeida Prado - Mestre e Doutorando em Psico-logia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: [email protected]

Marcus Tulio Caldas - Doutor em Psicologia pela Universidade de Deusto-Espanha; Professor da Graduação e Pós-Graduação do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: [email protected]

Karl Heinz Efken - Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor e Coordenador do Curso de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: [email protected]

Carmem lúcia Brito Tavares Barreto - Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Coordenadora do Laboratório em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. Endereço Institucional: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Ciên-cias Biológicas e Saúde. Rua do Príncipe, 526 - Bloco B (Boa Vista). CEP 50050-410 - Recife/PE. Email: [email protected]

Recebido em 16.10.12Primeira Decisão Editorial em 07.12.12

Aceito em 26.12.12

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AS pSICOpATOLOGIAS COMO DISTÚRbIOS DAS fUNÇõES DO SELf: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICA

NA AbORDAGEM GESTÁLTICA

Psychopathologies as Disorders of the Self Functions: A Theoretical Construction in Gestalt Approach

Las Psicopatologías como Disturbios de las Funciones del Self: Una Construcción Teorética en el Abordaje Gestáltica

cArlene MAriA diAs tenório

Resumo: Com o objetivo de compreender as psicopatologias com base no DSM-IV e na teoria de F. Perls, o processo de estrutu-ração dos padrões neuróticos, psicóticos e antissociais é descrito a partir dos impasses existenciais, introjeções tóxicas e con-flito interno dominador-dominado, que favorecem os distúrbios das fronteiras e funções do self responsáveis pelas dificuldades do sujeito para se diferenciar dos outros, fazer contato pleno com estes, discriminar as demandas internas e externas e agir de modo adequado ao atendimento das mesmas. Nesta perspectiva, supõe-se que, enquanto as psicoses são produzidas pela falên-cia total das fronteiras e funções do self, as neuroses são geradas pelo distúrbio dessas fronteiras e funções, caracterizado pela repetição crônica de interrupções do contato e comportamentos mal adaptativos, que constituem os transtornos de personalida-de descritos pelo DSM-IV. Como resultado da articulação entre conceitos, pressupostos, critérios diagnósticos e evidências clí-nicas são construídas proposições teóricas nas quais os transtornos de personalidade, com exceção do transtorno antissocial, são entendidos como padrões neuróticos de funcionamento desencadeados por distorções primárias e secundárias, negativas e positivas da percepção de “si mesmo” e do “outro”, podendo evoluir para transtornos psicóticos em situações de extremo estres-se e vulnerabilidade das fronteiras e funções do self. Palavras-chave: Psicopatologia; Distúrbio; Self; Abordagem gestáltica.

Abstract: In order to understand the psychopathology based on DSM-IV and the theory of F. Perls, the process of structuring neurotic, psychotic and antisocial patterns is described from the existential dilemmas, toxic introjections and a dominator/dominated internal conflict that favors boundaries disturbances and the functions of the “self” responsible for the difficulties of the subject to differentiate itself from others; making full contact with them; discriminating between internal and external demands and acting appropriately to meet them. From this perspective, it is assumed that, while psychoses are produced by the total failure of boundaries and functions of the “self’, the neuroses are generated by the disturbance of these boundaries and “self” functions, characterized by the chronic repetition of interruptions of contact and maladaptive behaviors, which consti-tute personality disorders described by DSM-IV. As a result of the articulation between concepts, premises, diagnostic criteria and clinical evidence, theoretical propositions are constructed in which personality disorders, except for the antisocial disor-der, are perceived as neurotic patterns of functioning triggered by primary and secondary distortions, negative and positive of perception of the “self” and the “other”, sometimes progressing to psychotic disorders in situations of extreme stress and vul-nerability of boundaries and functions of the “self”.Keywords: Psychopathology; Disorder; Self; Gestalt approach.

Resumen: Con el objetivo de comprender las psicopatologías con base en el DSM-IV y en la teoría de F. Perls, el proceso de es-tructuración de los padrones neuróticos, psicóticos y antisociales es descrito a partir de los impasses existenciales, introyec-ciones tóxicas y conflicto interno dominador/dominado, que favorecen los disturbios de las fronteras y funciones del self res-ponsables por las dificultades del sujeto para diferenciarse de otros; hacer contacto pleno con estos; discriminar las demandas internas y externas y actuar de modo adecuado al atendimiento de las mismas. En esta perspectiva, se supone que, mientras las psicosis son producidas por la falencia total de las fronteras y funciones del self, las neurosis son generadas por el distur-bio de esas fronteras y funciones, caracterizado por la repetición crónica de interrupciones del contacto y comportamientos mal adaptativos, que constituyen los trastornos de personalidad descritos por el DSM-IV. Como resultado de la articulación entre conceptos, presupuestos, criterios diagnósticos y evidencias clínicas son construidas proposiciones teóricas en las cua-les los trastornos de personalidad, con excepción del trastorno antisocial, son entendidos como padrones neuróticos de fun-cionamiento desencadenados por distorsiones primarias y secundarias, negativas y positivas de la percepción de “sí mismo” y del “otro”, pudiendo evolucionar para trastornos psicóticos en situaciones de extremo estrés y vulnerabilidad de las fronteras y funciones del self.Palabras-claves: Psicopatología; Disturbio; Self; Abordaje gestáltica.

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A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

Introdução

Para Perls (1973/1981), todas as neuroses surgem da incapacidade do indivíduo para encontrar e manter o equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo, e todas têm em comum o sentimento de que os limites do meio se estendem demais sobre si mesmo. O neurótico é o in-divíduo sobre quem a sociedade influi demasiadamente e suas interrupções de contato são manobras defensivas para protegê-lo contra a ameaça de ser barrado por um mundo esmagador; são estratégias criadas para manter seu equilíbrio em situações nas quais se vê impotente e dominado pelo “outro”, acreditando que as probabilida-des estão todas contra ele.

De acordo com o DSM-IV, os transtornos de persona-lidade se caracterizam por traços de personalidade in-flexíveis e mal adaptativos, que causam sofrimento sub-jetivo e prejuízo funcional significativo para o sujeito. O transtorno de personalidade antissocial é marcado pelo desrespeito e violação das normas sociais e dos di-reitos alheios, sem sentimento de culpa ou remorso por parte do sujeito, por acreditar que não deve submeter--se a ninguém, para não correr o risco de ser dominado. Nos transtornos psicóticos, os pacientes evidenciam con-fusão mental, pensamento e comportamento desorgani-zados, com prejuízo no teste de realidade, manifestando delírios e alucinações.

A hipótese que se defende neste trabalho é de que os sintomas neuróticos ou psicóticos referentes aos Transtornos Clínicos classificados no Eixo I do DSM-IV emergem como figura de um fundo constituído pelos transtornos de personalidade apresentados no Eixo II, caracterizados por padrões rígidos de comportamento mantidos pelos distúrbios das funções do self.

1. Conceituação e Constituição do Self e da perso-nalidade

Com base nas elaborações de Perls sobre self e per-sonalidade, compreende-se que o desenvolvimento e o funcionamento saudável dos referidos sistemas depen-dem, essencialmente, da qualidade da relação, do conta-to que se estabelece com o “outro”, desde os primórdios da existência do indivíduo, uma vez que, para esse teó-rico, self e personalidade se constituem na fronteira en-tre organismo e meio.

Sobre isto, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) esclarecem que self é o sistema de contatos e de respostas em qualquer momento, diminuindo com o sono, quando há menos necessidade de reagir. Sua atividade é formar figuras e fundos e fazer ajustamentos criativos. Sendo assim, onde há mais conflito, contato e figura/fundo, há mais self; onde há mais confluência, isolamento ou equi-líbrio, há um self diminuído. Desse modo, o self não tem consciência de si próprio abstratamente, mas quando está

em contato com alguma coisa, uma vez que o mesmo é considerado como sendo a fronteira de contato organis-mo-meio em funcionamento.

Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o self se constitui na proporção em que existem diferenciação e interação de limites organismo-meio, sendo, portanto, o “si mesmo”, cuja vivência e manifestação se dão na fron-teira de contato. Por isso, quanto maior e mais clara for a diferenciação e a delimitação de fronteiras entre o “eu” e o “outro”, que normalmente acontece em situações de tensão e conflito, mais claramente o self se fará presen-te, atuando no meio de forma mais consciente, determi-nada e agressiva, no sentido de recuperar seu equilíbrio. Em síntese, na abordagem de Perls, o self é o “si mes-mo”, tal como é vivido e percebido pelo sujeito no con-tato com o “outro” e consigo mesmo, sendo, portanto, um “eu” relacional, processual e consciente, que se for-ma e se transforma por meio de ajustamentos criativos, enquanto pensa, sente e age na busca pela satisfação de suas necessidades e atualização de suas potencialidades no campo organismo–meio.

O ajustamento criativo como função essencial do self, pode ser definido como sendo o processo pelo qual o self promove sua autorregulação, criando formas de satisfazer suas necessidades de acordo com as condições do meio, ou transformando essas condições para adequá-las às próprias demandas e capacidades. “Dada a novidade e a variedade indefinida do ambiente, nenhum ajustamento seria possível somente por meio da autorregulação herda-da e conservativa; o contato tem de ser uma transforma-ção criativa” (Perls et al., 1951/1997, p. 211).

Considerando que a transformação criativa do cam-po só acontece se o contato entre organismo e meio for pleno, o ajustamento, quando é feito através de contatos interrompidos, deixa de ser criativo para se tornar con-servativo, uma vez que, na interrupção do contato, as necessidades do organismo não são plenamente satis-feitas, as condições do meio não são transformadas, di-ficultando, assim, a autorrealização e o crescimento do self, embora a preservação de sua estrutura seja garan-tida. Desse modo, o ajustamento conservativo acontece sempre que o self, na impossibilidade de transformar as circunstâncias do meio, no sentido de promover sua au-torrealização, atua basicamente com o objetivo de garan-tir sua sobrevivência e manter seu equilíbrio no nível em que o ambiente permite, o que implica em abrir mão de seus verdadeiros objetivos e interesses, para adequar-se às exigências externas.

Perls et al. (1951/1997) definem personalidade co--mo sendo o sistema de atitudes adotado nas relações interpessoais:

(...) é a admissão do que somos, que serve de funda-mento pelo qual poderíamos explicar nosso com-portamento, caso nos fosse pedida uma explicação. Quando o comportamento interpessoal é neurótico, a

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personalidade consiste em alguns conceitos errôneos a respeito de nós próprios, introjetos, ideais de ego, máscaras, etc. (...) a Personalidade é uma espécie de estrutura de atitudes por nós compreendidas, que po-dem ser empregadas em todo tipo de comportamento interpessoal (pp. 187-188).

Sendo um sistema de atitudes adotado pelo sujeito, que fundamenta a explicação deste sobre o próprio com-portamento, a personalidade corresponde à maneira par-ticular de cada um ser no mundo, influenciando e sendo influenciada pela percepção que se tem de “si mesmo”, que é construída pela “função personalidade” do self, através da seleção e integração de experiências que se harmonizam com o autoconceito até então assumido pelo sujeito, fazendo com que as demais experiências sejam distorcidas, excluídas da consciência, ou colocadas fora das fronteiras do self.

Além da “função personalidade”, Perls et al. (1951/ 1997) afirmam que o self possui outras duas funções, “id” e “ego” que, juntamente com a “personalidade”, corres-pondem às etapas do processo de ajustamento criativo: pré-contato, contato e pós-contato.

Enquanto “id” e “ego” são funções de autorregulação, nas quais o self interage com o meio, em busca da satis-fação de suas necessidades, possibilitando uma cons-ciência vivenciada de “si mesmo”, a “personalidade” é uma função de seleção, integração, organização e sínte-se de experiências vivenciadas na fronteira de contato, propiciando o desenvolvimento de uma consciência re-presentada de self. É como se cada experiência de con-tato – vivenciada em determinadas circunstâncias, nas quais o sujeito assume atitudes, enquanto desempenha um papel (pai, filho, chefe, subordinado, salvador, víti-ma, vilão, etc.) – fosse gerada e, ao mesmo tempo, gerasse uma representação de “si mesmo”, ou seja, um “eu par-cial”, que após ser integrado aos demais, irá fazer parte de um “Eu total”, resultante da organização e síntese de vários “eus parciais”. É o “Eu total” que vai permanecer no fundo, influenciando e sendo influenciado pelas ati-tudes do sujeito em cada situação e pelas representações parciais de “si mesmo”.

Enquanto no funcionamento saudável, o “Eu total” está constantemente se reorganizando, a partir da inte-gração de novos “eus parciais” referentes às novas ex-periências vivenciadas em circunstâncias diferentes, no funcionamento neurótico, onde acontece o distúrbio da “função personalidade”, o “Eu total” tende a perma-necer da mesma forma, pois, muitas experiências, que não se harmonizam com sua configuração atual, são negadas ou distorcidas, para que a integridade de sua estrutura seja preservada. Além disso, as representa-ções parciais de self são construídas, principalmente, a partir de mensagens bionegativas introjetadas, como por exemplo: sou covarde e deveria ser mais corajoso; sou acomodado e deveria ser mais esforçado, sou de-

sastrado e deveria ser mais cuidadoso, etc. (Tenório, 2003a; 2005).

Nestas condições, a personalidade se caracteriza por padrões rígidos de comportamento determinados por dois tipos de autoconceito, ambos introjetados e distorcidos, um deles referente a um “eu” vivenciado como real (co-varde, acomodado e desastrado) e o outro vinculado a um “eu” encarado como ideal (corajoso, esforçado e cui-dadoso). Por terem sido originados pela internalização do “outro dominador”, tanto o “eu real” quanto o “eu ideal” introjetados irão dominar e sabotar o “eu real” e o “eu ideal” não introjetados construídos a partir de experiên-cias, cujas significações e representações se basearam em avaliações organísmicas. (Tenório, 2003b; 2005)

A “função id”, mesmo em sua plena atividade, é ca-racterizada por uma percepção vaga do meio ambiente, prevalecendo as sensações proprioceptivas, que emergem como figura e produzem reações instantâneas, descom-prometidas com as demandas externas. No pré-contato, onde o self funciona através do “id”, suas fronteiras ain-da não foram totalmente reconstruídas, após serem dis-solvidas na experiência recente de pleno envolvimento e troca com o “outro”, na fase final do contato com este. Nestas circunstâncias, o self assume características de um “eu” frágil e incipiente, que se comporta de modo ir-racional e irresponsável, incapaz de fazer ajustamentos criativos, dada a impossibilidade de perceber com clare-za, avaliar, enfrentar e transformar deliberadamente seu campo existencial, semelhante ao que acontece no dis-túrbio da “função ego”.

Com base nesse pressuposto, supõe-se que, nas neu-roses, o “id” seja a função mais preservada, garantindo a satisfação mínima das necessidades indispensáveis à sobrevivência do self, uma vez que, nessa função, a prio-ridade do self é garantir seu equilíbrio e sua integridade, através de uma autorregulação herdada e conservativa, mantida por comportamentos reativos, automáticos e im-pulsivos, nos quais é empregado o menor esforço possível, no sentido de reduzir as tensões vivenciadas no campo organismo-meio. No entanto, nas psicoses, a “função id”, como as demais funções do self, encontra-se totalmente anulada, pois, devido ao rompimento das fronteiras, de-sintegração e fragmentação do “Eu total” em seus diver-sos “eus parciais”, fica impossível manter o equilíbrio mínimo no mundo interno e externo, como também mi-nimizar o sofrimento causado pela desorganização, con-tradição e incoerência dos pensamentos, sentimentos e comportamentos.

No exercício pleno da “função ego”, o self é vivenciado e se manifesta como um “eu” racional, ativo, determina-do e consciente, com capacidade para fazer ajustamen-tos criativos, na medida em que estabelece claramente suas fronteiras, percebe as demandas do campo, escolhe comportamentos mais apropriados para atendê-las, dis-criminando o que pertence a “si” e ao “outro”, o que é tó-xico e nutritivo ao seu organismo, para, em seguida, abrir

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ou fechar suas fronteiras, aceitar (identificar) ou recusar (alienar) o que vem de fora, com o objetivo de promover seu equilíbrio, sua autorrealização e seu crescimento. Esse é o funcionamento saudável, caracterizado pelo for-talecimento das fronteiras e da “função ego” do self, pelo ajustamento criativo, pelo contato não interrompido com o “outro” e consigo mesmo.

Apesar da afirmação de Perls et al. (1951/1997) de que as neuroses resultam da perda da “função ego” do self, o que se pretende mostrar aqui é que tal perda gera as psi-coses, enquanto o enfraquecimento ou o distúrbio dessa função gera as neuroses, embora estas, em determina-dos casos e circunstâncias, possam evoluir para as psi-coses. Nesta perspectiva, supõe-se que os sintomas psi-cóticos podem ser desencadeados por intensos conflitos responsáveis pela completa falência das fronteiras e das funções do self, que já se encontravam debilitadas pelas introjeções tóxicas e consequente luta entre “eu domina-dor” e “eu dominado”. Sendo assim, todo psicótico seria, no fundo, um neurótico, mas nem todo neurótico seria um psicótico, uma vez que a passagem do primeiro para o segundo tipo de transtorno iria depender do nível de vulnerabilidade das funções e das fronteiras do self, bem como da intensidade dos conflitos vivenciados tanto no mundo interno quanto externo.

No distúrbio da “função ego”, que acontece nas neu-roses, e na perda dessa função, que se dá nas psicoses, as fronteiras do “eu” estão enfraquecidas (neurose), ou rompidas (psicose), desse modo, a consciência das dife-renças e a capacidade para discriminar figura e fundo, “eu” e “outro” ficam diminuídas (neurose) ou ausentes (psicose), dificultando (neurose) ou impossibilitando (psi-cose) a formação e destruição de novas figuras. Com isto, nas neuroses e nas psicoses, a mobilização do organis-mo é bloqueada ou desfocada, a ação e a interação com o meio são inadequadas ou obsoletas, e o contato final é abortado, impossibilitando a satisfação da necessidade, o fechamento da figura e a recuperação do equilíbrio no campo organismo-meio.

Desse modo, as figuras que ficam em aberto contami-nam o campo perceptivo e fazem com que a situação do momento seja avaliada de modo incoerente com a reali-dade, uma vez que a significação da experiência vivida no aqui e agora é influenciada pelos impasses existen-ciais do passado, que permanecem mal resolvidos como “microcampos” introjetados. Essa é a explicação para a percepção da realidade parcialmente distorcida nas neu-roses, que favorece a repetição de mecanismos de inter-rupção do contato, a fixação das fronteiras na abertura ou no fechamento e a manutenção de padrões rígidos de comportamentos, que caracterizam os Transtornos da Personalidade. Também é a explicação para a percepção da realidade totalmente distorcida nas psicoses, respon-sável pela formação dos delírios e alucinações, através da projeção no meio e nos outros dos introjetos tóxicos e dos aspectos alienados do self.

Com relação ao processo de desenvolvimento da per-sonalidade, Perls (1947/2002) entende que suas bases se formam ao longo dos dois primeiros anos de vida, atra-vés de estágios que se correlacionam com as etapas de nascimento dos dentes, uma vez que, para esse teórico, o desenvolvimento da capacidade para morder, mastigar e digerir o alimento, ou seja, para desestruturar, transfor-mar e assimilar o que é oferecido pelo meio, é de funda-mental importância para a constituição saudável do self e da personalidade.

Quero dizer que o alimento psicológico que nos ofe-rece o mundo externo – o alimento de fatos e atitudes sobre o qual se constroem as personalidades – tem que ser assimilado exatamente da mesma forma que nosso alimento real. Tem que ser desestruturado, analisado, separado e, de novo, reunido sob a forma que nos será mais valiosa. Se for meramente engolido inteiro não contribui para o desenvolvimento de nossas persona-lidades (Perls, 1973/1981, p. 47)

Neste sentido, o self e a personalidade se desenvolvem no contato com o “outro”, através de processos de ajus-tamentos criativos, nos quais a criança assume, gradati-vamente, uma postura mais consciente, ativa e indepen-dente, na busca pela satisfação de suas necessidades e recuperação de seu equilíbrio no campo organismo-meio. No entanto, para que isto aconteça, é imprescindível que os contatos mantidos com a criança sejam suficien-temente saudáveis, para que ela possa se diferenciar do “outro”, percebendo-se como ser único, que tem caracte-rísticas, necessidades e limites próprios, com capacidade para autorrealizar-se, transformando ou adaptando-se às condições do ambiente que lhe cerca.

O contato saudável é compreendido aqui como um contato pleno e dialógico, que proporciona ao sujeito a experiência de ser respeitado e valorizado pelo “outro” em sua singularidade, semelhante ao que é descrito por Hycner (1995) como “diálogo genuíno” inspirado na filo-sofia de Buber. Do ponto de vista dialógico, todo “eu” é posterior à relação, pois é no diálogo com o “tu”, diferente e separado do “eu”, que se constrói a noção de “si mesmo” e do “outro”. Nesta perspectiva, a psicopatologia acontece quando o sujeito, em seus relacionamentos interpessoais, não vivenciou, de modo suficiente, a experiência de ser confirmado pelo “outro” em sua alteridade.

Na descrição de Perls (1947/2002) sobre o desenvol-vimento da personalidade, fica implícita a necessidade de se estabelecer contatos satisfatórios com a criança, para que as fronteiras e as funções do self se constituam de forma plena. Isto não quer dizer que a criança, para se desenvolver de forma saudável, deva crescer em um ambiente totalmente permissivo, no entanto, é neces-sário que, na relação com o “outro” mais significativo, prevaleça o contato pleno e dialógico, onde ambos se coloquem de forma inteira e espontânea, respeitando-se

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mutuamente em suas diferenças, o que torna impossível uma relação sem renúncias, desafios, conflitos e ajusta-mentos criativos. Por outro lado, todo contato pressupõe diferenciação e troca entre “eu” e “não eu”, que implica numa consciência ampla de “si mesmo” e do “outro”, mobilização em busca da satisfação mútua, através da criação de estratégias, pelas quais ambos se modificam, adequando-se um ao outro.

(...) quando duas pessoas se encontram, inicia-se o jogo do encontro (...). Assim, elas estão à procura de um interesse comum, ou de um mundo em comum, onde passam repentinamente do eu e você para o nós. Desta forma, surge um novo fenômeno, o nós, que é diferente do eu e você. (...) E quando nos encontramos, então eu mudo e você muda, através do processo de um encontro mútuo (Perls, 1969/1977, p. 21).

Se a criança vivenciar, com frequência, a experiên-cia de ser aceita e confirmada pelo “outro”, mais tar-de ela poderá estabelecer um diálogo consigo mesma, mantendo contato com todos os aspectos do self, inclu-sive com aqueles que, aparentemente, são ameaçado-res, favorecendo, assim, seu funcionamento saudável. Se ela tiver que ser como os “outros” desejam que ela seja, tendo que negar suas diferenças, para não entrar em conflito com eles, ao invés de uma diferenciação, haverá uma confluência com os mesmos, comprome-tendo a constituição plena das fronteiras e das funções do self. “Todo indivíduo, toda planta, todo animal tem apenas um objetivo inato – realizar-se naquilo que é” (Perls, 1969/1977, p. 52).

2. Constituição e Caracterização das psicopatologias

O contato interrompido e não dialógico, ao contrário do contato pleno e dialógico, se caracteriza por um tipo de relação dominador-dominado, onde as pessoas assumem atitudes impositivas ou subservientes diante da outra. Nesse contexto, existe uma grande diferenciação e sepa-ração mantidas por fronteiras impermeáveis ou fechadas do lado impositivo e dominante, e uma indiferenciação e confluência mantidas por fronteiras muito permeáveis ou abertas do lado subserviente e dominado, dificultan-do o encontro e a troca entre os dois e favorecendo o de-senvolvimento das psicopatologias.

Na relação entre pais e filhos é comum acontecer contatos interrompidos e não dialógicos, principalmen-te quando os pais são demasiadamente rígidos e autori-tários. Nesses casos, os pais não conseguem perceber as reais capacidades e necessidades dos filhos, assumin-do atitudes extremamente dominadoras, caracterizadas pela imposição arbitrária de regras e limites, motivados pela necessidade de criarem indivíduos perfeitos, como eles mesmos gostariam, mas não conseguiram ser. Isto

faz com que os filhos sejam excessivamente cobrados, controlados e tolhidos completamente em sua liberdade e individualidade.

No entanto, esses contatos interrompidos e não dia-lógicos também acontecem quando os pais são extre-mamente permissivos e indulgentes, com dificuldades para impor limites, submetendo-se aos filhos, por medo de frustrá-los e magoá-los. Nesse contexto, os filhos não conseguem crescer emocionalmente, permanecendo com baixa tolerância às frustrações e com medo de enfrentar as adversidades do dia a dia. Esses pais, por serem ex-tremamente imaturos ou problemáticos, não conseguem desempenhar suas funções adequadamente, tornando-se reféns dos próprios filhos. A fragilidade e a submissão dos pais em relação aos filhos faz com que estes tenham uma visão deturpada da realidade, interrompendo o con-tato com aspectos do self e do ambiente que entram em contradição com suas fantasias e idealizações a respeito de si e do mundo.

No processo de crescimento existem duas escolhas. A criança pode crescer e aprender a superar frustra-ções, ou pode ser mimada de forma a receber tudo o que quiser, porque a criança deve ter tudo o que o papai nunca teve, ou porque os pais não sabem como frustrar os filhos. (...) Sem frustração não existe ne-cessidade, não existe razão para mobilizar os próprios recursos, para descobrir a própria capacidade para fazer alguma coisa e, a fim de não se frustrar, que é uma experiência muito dolorosa, a criança aprende a manipular o ambiente. (Perls, 1969/1977, pp. 54-55)

Nos relacionamentos em que os pais frustram, repri-mem e controlam excessivamente os filhos, a vulnera-bilidade das fronteiras da criança, que ainda estão em formação, favorece a introjeção de mensagens nocivas e irrealistas a respeito de “si mesma”, responsável por uma distorção “negativa” da autoimagem, na qual ela passa a se perceber como culpada, má e inadequada. Essa distor-ção “negativa” também acontece quando a criança é ex-tremamente protegida. A superproteção dos pais reforça a fragilidade e a inferioridade do filho, fazendo com que ele, apesar do avanço de sua idade, continue se perceben-do como incapaz de conduzir a própria vida. É essa dis-torção “negativa” da autoimagem que vai gerar os senti-mentos crônicos de impotência e menos valia típicos do funcionamento neurótico.

No contexto familiar em que os filhos são superva-lorizados, a imaturidade das fronteiras do self favorece a introjeção de mensagens de engrandecimento irreal, responsável por uma distorção “positiva” da autoima-gem, na qual a criança passa a se perceber como alguém especial, dificultando suas relações interpessoais, uma vez que, como defesa, procura se manter fechada, por medo de ser desmascarada pelo “outro” e confrontada com as próprias limitações, ou por não ter interesse em

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aprofundar a relação com esse “outro”, por considerá-lo desagradável, insignificante ou inferior.

Diante das reflexões feitas até o momento, percebe--se que, enquanto o funcionamento saudável é promovi-do pela vivência de contatos plenos e dialógicos com o “outro”, o adoecimento psicológico tem como base a ex-periência intensa e frequente de contatos interrompidos e não dialógicos, nos quais são introjetados conceitos, va-lores, normas e exigências impostas arbitrariamente pelo “outro” de grande significação afetiva para o indivíduo, propiciando a internalização do conflito “dominador-do-minado”, como explica Perls (1975/1977):

O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens não apropriadas da sociedade, como pelo conflito interno. A parábola de Freud sobre as duas serventes brigando, resultando em ineficiência é, na minha opinião, novamente uma meia verdade. Realmente são os patrões que brigam. (...) Na minha linguagem, eu chamo os patrões que brigam de dominador (topdog) e dominado (underdog). A batalha entre os dois é tanto interna quanto externa. O dominador pode ser descrito como exigente, punitivo, autoritário e primi-tivo. (...) Integração e cura só podem ser conseguidas quando a necessidade de controle entre dominador e dominado cessa (pp. 24-25).

Conforme foi abordado anteriormente, é no contexto familiar autoritário e controlador, que a criança viven-cia o conflito “dominador–dominado”, que ao ser inter-nalizado, irá produzir as neuroses. Esse conflito é, para criança, um verdadeiro impasse existencial, no qual ela vivencia uma situação que é, ao mesmo tempo, intolerável e inevitável. Sentindo-se totalmente dependente e impo-tente diante de seu “dominador”, a criança se vê obrigada a fazer o que é exigido por este, embora seja incompatível com seus interesses, para evitar a possibilidade de ser pu-nida, ou abandonada por ele. Nesta situação, ela não en-contra outra saída a não ser submeter-se completamente às vontades do “dominador”, abrindo mão daquilo que é essencial à sua autorrealização, o que favorece a intro-jeção de mensagens bionegativas, tais como: eu não sou boa o suficiente; eu faço tudo errado; eu sou culpada (real introjetado); “eu tenho que ser melhor, mais obediente, controlada e cuidadosa” (ideal introjetado), que irão fa-vorecer o desenvolvimento das neuroses caracterizadas por comportamentos dependentes, tímidos, retraídos, exigentes, perfeccionistas e ansiosos.

No contexto indulgente e permissivo, o conflito e o impasse existencial é vivenciado pela criança, na medi-da em que ela precisa ser protegida, orientada e contida pelo “outro”, mas percebe que esse “outro” não é forte, seguro, ou maduro o suficiente para lhe dar proteção e orientação, deixando de colocar os limites indispensáveis à sua segurança e crescimento. Ao se sentir totalmente insegura e desamparada, a criança introjeta as mensa-

gens induzidas pela fragilidade e impotência do adulto: eu tenho que ser forte; eu tenho que me controlar; eu não posso falhar; eu tenho que me virar sozinha (ideal intro-jetado, que vai funcionar como dominador no neurótico com traços obsessivo-compulsivos). Ela também pode in-trojetar mensagens como essas: eu sou especial; eu sou melhor que os outros; eu mereço ter tudo que quero (real introjetado, que vai atuar como dominador no neurótico com traços narcisistas).

São esses “eus introjetados” (real e ideal) que irão funcionar como “eu dominador”. Na tentativa de mini-mizar o conflito interno gerado pelas incoerências en-tre as experiências vividas (“eu dominado”) e as repre-sentações deturpadas de si mesmo (“eu dominador”), o neurótico interrompe o contato com o “outro” e consi-go mesmo de forma crônica e obsoleta. Ao interromper o contato como o “outro”, ele perde a oportunidade de assimilar o novo e transformar o campo, bloqueando, assim, sua autorrealização e seu crescimento. Na inter-rupção do contato consigo mesmo, o neurótico desco-nhece, nega ou distorce algumas de suas experiências e características que, embora sejam inerentes a “si mes-mo” (eu dominado), são incompatíveis com os introjetos tóxicos (eu dominador).

O “eu dominador” é um tirano implacável e exigente, cujas imposições, quase sempre, emergem como figura, sobrepondo-se às demandas do “eu dominado”, as quais permanecem no fundo. No entanto, podem existir mo-mentos de extrema tensão, em que as necessidades do “eu dominado” se tornam urgentes e atingem o primei-ro plano da consciência fazendo com que este se rebele contra seu “dominador” e, apesar de sua timidez e fragi-lidade, consiga assumir o poder, satisfazendo seus dese-jos, através de atitudes ousadas, impulsivas e inconse-quentes, que são, muitas vezes, incoerentes com os valo-res e normas da sociedade, como acontece com algumas pessoas que manifestam comportamentos extremamen-te descontrolados, imaturos, ou caracteristicamente an-tissociais. É assim que, no processo de autorregulação organísmica, a “função ego” enfraquecida pelo conflito “dominador-dominado”, perde sua capacidade de fazer ajustamentos criativos, cedendo espaço para a “função id”, que em casos de emergência assume, naturalmente, o controle da situação.

No processo de constituição das psicoses, como foi explicado antes, a extrema fragilidade das fronteiras e da “função ego” do self, causada pelo intenso conflito dominador-dominado vivenciado no mundo tanto exter-no, quanto interno, faz com que o “Eu total” perca sua unidade, fragmentando-se em vários “eus” desconecta-dos um do outro e em constante luta entre si, produzin-do pensamentos e sentimentos opostos, que se alternam e mudam rapidamente. Isto faz com que as figuras, re-ferentes às prioridades do self, não se destaquem intei-ramente do fundo, nem permaneçam o tempo suficiente para que sejam completadas. Sendo o fundo constituído

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por figuras inacabadas, conflitos mal resolvidos e intro-jetos tóxicos desintegrados da totalidade do self, as novas figuras são contaminadas pelas experiências vivencia-das anteriormente e pelas polaridades alienadas de “si mesmo”, fazendo com que a percepção do campo atual seja completamente distorcida, desencadeando delírios e alucinações.

Quanto ao processo de constituição das neuroses, é importante enfatizar que o enfraquecimento das frontei-ras e da função “ego” do self faz com que as interrupções do contato se tornem padrões rígidos de funcionamen-to, ou ajustamentos conservativos, caracterizados pelas tendências para fixação das fronteiras na abertura ou no fechamento. Nessas duas formas de fixação, os sentimen-tos de “menos valia” e impotência, sejam como figura ou fundo, favorecem a aproximação, confiança e aceitação do “outro”, ou o afastamento, desconfiança e rejeição deste. Sendo assim, enquanto no funcionamento fixado na abertura o “outro” é visto como sendo essencialmente bom e confiável, representando a possibilidade de equi-líbrio, satisfação, vantagem e bem estar, no fechamento crônico das fronteiras do self, o “outro” é encarado como sendo essencialmente mau e traiçoeiro, com grande pro-babilidade de lhe proporcionar desequilíbrio, frustração, desvantagem e mal estar.

Os neuróticos com fixação de suas fronteiras na aber-tura, portanto, acreditam que podem ter uma vida mais tranquila e prazerosa, na medida em que conseguirem conquistar a confiança, o respeito e o apoio dos outros, procurando, compulsivamente, atender às expectativas destes. Devido ao sentimento de menos valia, fragilida-de e impotência em relação à maioria das pessoas, esse tipo de neurótico costuma desenvolver estratégias de sedução e manipulação, desempenhando papéis (bon-zinho, coitadinho, certinho, etc.), que facilitem o reco-nhecimento e o acolhimento por parte daqueles com os quais convive diariamente. Essas características neuró-ticas correspondem à descrição feita pelo DSM-IV dos Transtornos da Personalidade Dependente, Borderline e Histriônica.

A característica essencial do Transtorno da Perso-nalidade Dependente é uma necessidade invasiva de ser cuidado, que leva a um comportamento submisso e aderente e ao medo da separação. (...) Os compor-tamentos dependentes e submissos visam a obter atenção e cuidados e surgem de uma percepção de si mesmo como incapaz de funcionar adequadamente sem o auxílio de outras pessoas. (...) Como temem perder o apoio ou aprovação, muitas vezes têm difi-culdade em expressar discordância de outras pessoas, especialmente aquelas das quais dependem. (...) Eles não ficam zangados, quando seria adequado, com as pessoas cujo apoio e atenção necessitam, por medo de afastá-las (American Psychiatric Association, 1995, p. 627).

Conforme descrição do DSM-IV, no Transtorno da Personalidade Borderline também é marcante o senti-mento de vazio crônico e de dependência em relação ao “outro”, produzido por uma percepção de “si mesmo” como alguém sem valor e incapaz de sobreviver por con-ta própria. A diferença é que no Borderline existe uma grande instabilidade e impulsividade emocional, na qual o sujeito valoriza e ama intensamente o “outro”, mas, de uma hora para outra, o despreza e o odeia com a mesma intensidade. Essa instabilidade está relacionada à alter-nância de fortes sentimentos de satisfação e frustração, acolhimento e abandono, vivenciados na relação com o “outro”, com quem mantém ligação afetiva. Outro aspec-to desse tipo de transtorno é a automutilação recorrente, utilizada como forma de manipulação, e a fragilidade acentuada do sentimento de self.

Tanto no Transtorno Borderline quanto no Transtorno Dependente, o indivíduo manifesta medo do abandono, mas o “borderline” reage a esse abandono com raiva e exi-gências, ao passo que o “dependente” reage com crescen-te humildade e submissão, buscando urgentemente um novo relacionamento que lhe dê a segurança e o apoio que ele tanto necessita. Os indivíduos com Transtorno da Personalidade Histriônica, como no Transtorno da Personalidade Dependente têm uma forte necessidade de amparo e aprovação, podendo parecer infantis e demasia-damente apegados. Entretanto, enquanto o “dependente” se caracteriza por uma autoanulação e comportamento dócil, o “histriônico” se caracteriza pela exuberância, com exigência ativa de atenção.

Com relação aos padrões fixados no fechamento das fronteiras do self, é necessário esclarecer que eles se ca-racterizam por três tipos de funcionamento gerados por três formas de distorção da autoimagem: negativa, posi-tiva primária e positiva secundária, associadas à percep-ção do “outro” como alguém que é potencialmente mau e traiçoeiro, ou essencialmente insignificante e culpado, por isso, merece sofrer.

O primeiro tipo de fixação no fechamento se correla-ciona com o Transtorno de Personalidade Esquiva e tem como base uma distorção “negativa” da autoimagem, na qual a pessoa se sente frágil, inferior e impotente em re-lação aos outros, os quais são percebidos como ameaçado-res, precisando, portanto, se proteger ou evitar o contato com eles. O segundo tipo de fixação no fechamento das fronteiras do self se desenvolve a partir de uma distorção “positiva primária” da autoimagem, correspondendo ao “padrão egotista” de comportamento, tal como é defini-do e descrito pela abordagem gestáltica, que se correla-ciona com os Transtornos da Personalidade Narcisista e Antissocial nos aspectos referentes à tendência do indiví-duo para ser egocêntrico, volúvel, superficial, explorador, arrogante, prepotente, insensível e destituído de empatia.

Segundo Dias (1994), o “egotista” tem uma autocons-ciência exacerbada, isto é, ele costuma vigiar excessiva-mente suas fronteiras, selecionando criteriosamente tudo

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que entra e sai de seu sistema, com medo de se entregar afetivamente ao “outro” e ser dominado ou sufocado por este. Nestas circunstâncias, como forma de defesa, ele mantém suas fronteiras fixadas no fechamento, inter-rompendo seus contatos, através de mecanismos como a retroflexão e a projeção, permanecendo emocionalmente isolado em relação à maioria das pessoas, uma vez que sempre conta com a possibilidade de ser traído, invadi-do ou abusado em seus relacionamentos. Além disso, o “egotista” constrói e se mantém fixado a uma imagem idealizada de “si mesmo”, alimentando um falso despre-zo pelo “outro”, enquanto o “eu” é ilusoriamente enalte-cido pela aquisição de características irreais de extremo valor, capacidade e poder.

Dessa maneira, tanto os “narcisistas”, quanto os “an-tissociais” podem ser considerados pessoas “egotistas”, na medida em que funcionam como crianças egocêntricas, mimadas e sem limites, que só se preocupam com a sa-tisfação de seus próprios desejos, sem levar em considera-ção as condições e as demandas do meio. No Transtorno Narcisista da Personalidade, embora o sujeito dependa do “outro” para ter a confirmação de seu próprio valor, promovendo, assim, sua satisfação e seu equilíbrio, essa dependência é frequentemente negada. O narcisista, como todo neurótico, no fundo, se sente menor e menos capaz que o “outro”, mas, por conta da desconfiança, medo ou desprezo em relação a este, ele controla a aproximação e o envolvimento com a maioria das pessoas, para não cor-rer o risco de revelar e encarar suas próprias limitações, ameaçando seu “eu idealizado” construído por uma dis-torção “positiva primária” da autoimagem.

No terceiro tipo de fixação no fechamento, desenvol-vido através de uma distorção “positiva secundária” da autoimagem, o indivíduo “egotista”, além de manifestar os traços que caracterizam o segundo tipo, que é essen-cialmente narcisista, sua personalidade também eviden-cia aspectos que, provavelmente, foram desencadeados pelas experiências de abuso e vitimização vivenciadas na infância ou adolescência, os quais correspondem aos critérios para o diagnóstico diferencial do Transtorno da Personalidade Antissocial em relação ao Transtorno Narcisista: dificuldade para adequar-se às normas so-ciais, propensão para enganar ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais, impulsividade, agressividade, irresponsabilidade consistente e ausência de remorso.

Como se pode perceber, a personalidade antissocial, psicopata ou perversa, embora compartilhe alguns as-pectos com a personalidade “narcisista”, o indivíduo “antissocial” se diferencia basicamente pela autoestima fortalecida, pela raiva e agressividade, com necessidade de controlar e dominar os outros, para não correr o risco de ser controlado e dominado por eles.

Os indivíduos com este transtorno não se conformam às normas pertinentes (...) (...) desrespeitam os desejos, direitos ou sentimentos alheios. (...) As decisões são

tomadas ao sabor do momento, de maneira impensada, sem considerar as consequências para si mesmos ou para outros. (...) tendem a ser irritáveis ou agressivos e podem repetidamente entrar em lutas corporais ou cometer atos de agressão física (...) tendem a ser consis-tente e extremamente irresponsáveis. (...) demonstram pouco remorso pela consequência de seus atos. (...) podem acreditar que todo mundo está aí para “ajudar o número um” e que não se deve respeitar nada nem ninguém para não ser dominado (American Psychia-tric Association, 1995, pp. 656-657).

O medo de ser dominado confirma a hipótese de que o Transtorno Antissocial se constitui em um contexto familiar autoritário, controlador e frustrador, propi-ciando a distorção “positiva secundária” da autoima-gem como forma de defesa contra os sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade e impotência produzi-dos por situações de impasses existenciais e de confli-to “dominador-dominado”, que favorecem a introjeção de mensagens bionegativas e a fixação das fronteiras do self na abertura.

Embora em alguns casos, o “antissocial”, ou o “per-verso”, no fundo, possa se sentir inferior, vulnerável e impotente, o que emerge como figura são sentimentos de superioridade, força e poder gerados pela identificação com seu “dominador”. A suposição é de que, apesar des-se indivíduo, durante uma parte de sua infância, ter ali-mentado a ilusão de que sua segurança e seu bem-estar poderiam ser alcançados através do contato afetivo com o “outro dominador”, a partir de uma determinada fase de sua vida, devido às várias experiências de abuso e vi-timização produzidas por esse “outro”, ele desiste dessa ideia e começa a lutar pelo completo afastamento emo-cional em relação aos “outros” em geral, para não correr o risco de ser abusado novamente.

Por esse motivo, é coerente dizer que o “antissocial” pode ser, no fundo, um neurótico que encontrou um jei-to de não permanecer no papel humilhante e sofrido de “dominado”, identificando-se com seu “dominador” e reproduzindo o comportamento deste em suas relações interpessoais. Por outro lado, certos neuróticos, podem ser encarados como “perversos” disfarçados de “coitadi-nhos”, “bonzinhos” ou “certinhos”, pois, embora, muitas vezes, sinta inveja e raiva dos outros, não têm coragem suficiente para enfrentá-los, desenvolvendo formas indi-retas e camufladas de obter vantagens sobre eles.

A distorção “positiva secundária” da autoimagem, no entanto, também pode ser responsável pelo desenvolvi-mento de outros padrões de funcionamento fixados no fe-chamento, como aqueles que evidenciam um sentimento de desconfiança e suspeita em relação aos outros, aponta-do como um dos critérios diagnósticos para o Transtorno da Personalidade Paranóide e aqueles que se caracterizam pela extrema necessidade de controle e perfeição encon-trada no Transtorno Obsessivo-compulsivo.

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Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto

Considerações finais

Neste trabalho foi descrito o processo de formação das psicopatologias numa perspectiva gestáltica, concluindo--se que os funcionamentos neurótico, psicótico e antis-social se desenvolvem a partir da vulnerabilidade ou de-sintegração do “eu”, favorecida pela vivência de impasses existenciais e pela internalização de mensagens bionega-tivas, que propiciam a distorção da percepção interna e externa, a utilização crônica de interrupções do contato e a fixação das fronteiras na abertura ou no fechamento, como forma de ajustamento conservativo.

Em síntese, nas psicoses, a grande tensão gerada pelo conflito “dominador-dominado” gera a desintegração do self, como consequência da falência total de suas fron-teiras e funções, impossibilitando a diferenciação entre figura e fundo, fantasia e realidade, “eu” e “tu”. No neu-rótico, essa tensão acontece em grau menor, produzindo o enfraquecimento das fronteiras e o distúrbio das fun-ções do self, responsável pela criação e cristalização de interrupções de contato, na tentativa de minimizar o so-frimento imposto pelo “dominador” nos mundos interno e externo. No antissocial, a mesma tensão gera a explo-são, ou a revanche do “dominado” contra seu “domina-dor”, na qual ele, enquanto vítima, se identifica com seu agressor, tornando os outros reféns de seu egoísmo, frie-za, arrogância, prepotência e raiva.

Referências

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Dias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de contato: Um estudo teórico em Gestalt-Terapia. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília.

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Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em Gestalt-Terapia. Revista Universitas Ciências da Saúde, 1(2), 239-251.

Tenório, C. M. D. (2005). O Self eu o Eu nos Transtornos Histriônico e Obsessivo-Compulsivo da Personalidade. Anais do XI Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, pp. 187-199.

Carlene Maria Dias Tenório - Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Especialista em Gestalt-Terapia, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB), Professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e membro efetivo do corpo docente do Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília (IGTB). Endereço Institucional: SEPN 707/907, Campus do UniCEUB, 70790-075, Brasília-DF - Fone: (61) 3340.1046 E-mail: [email protected]

Recebido em 18.09.11Primeira Decisão Editorial em 03.01.12Segunda Decisão Editorial em 14.12.12

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Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

EDMUND HUSSERL E OS fUNDAMENTOS DE SUA fILOSOfIA1

Marvin farber

(1940)

Nenhum assunto na filosofia recente alcança a con-fiança suprema com a qual Husserl anunciou o começo triunfante de uma nova ciência da filosofia, uma discipli-na “absoluta” alcançada através de um método cuidadosa-mente elaborado. Essa ciência era muito avançada, assim como os resultados realmente positivos dos esforços filo-sóficos da época. De fato, os filósofos que o antecederam foram classificados por Husserl como não corresponden-tes aos ideais da fenomenologia. Reside aí algo de admi-rável e heroico sobre o tom de Husserl e sua opinião não precipitadamente avançada. Mais de cinquenta anos de reflexões consecutivas e trabalho incessante, que resul-taram em numerosos exemplos de análises descritivas, justificam a necessidade de saudar suas reivindicações, ouvindo com atenção seus argumentos. O pensamento e as contribuições de um dos mais argutos e completos filósofos do último século merecem uma atenção bem maior do que a que tem recebido. Considerar seu trabalho é necessário em razão da insistência de Husserl de que sua filosofia ainda é desconhecida2 e de seus repetidos protestos por ser mal interpretado. O fato de que Husserl raramente responde seus críticos tem dificultado ainda mais a compreensão do público filosófico em geral sobre a relevância de seu trabalho. Para muitos ele era firme demais, não importando críticas a favor ou contra, o que acabou gerando interpretações errôneas. Publicações im-portantes feitas nos últimos anos de sua vida incluíram duas respostas a esses críticos, sendo que foram as únicas mais elaboradas desde sua resposta a Palagyi em 1903. Agora é possível analisar e apreciar a filosofia fenome-nológica mesmo que muitos manuscritos nunca tenham sido publicados3. Estes textos contêm um material mui-

1 Título original: “Edmund Husserl and the Background of his Phi-losophy”, publicado na revista Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 1, Nr.1, p. 1-20 (1940), editada pela International Phenomenological Society. As notas do autor foram aqui mantidas, na mesma ordem e numeração do texto original. As notas explica-tivas acrescidas pelo Editor estão em formato alfabético, para não interferir no texto original.

2 Cf. E. Fink. “Was will die Phanomenologie Edmund Husserls?” Die Tatwelt, 1934, p. 15.

3 É importante assinalar que, desde a publicação original desse tex-to, muitos manuscritos husserlianos foram publicados na coleção conhecida como Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte Werke

to valioso que, sem dúvida, enriquecerá e modificará o entendimento sobre o método fenomenológico. Assim, a recente publicação de Husserl, Erfahrung und Urteil4 tor-nou-se reveladora, acrescentando muito ao entendimento sobre a sua filosofia da lógica. Por essa razão, é correto afirmar que Husserl publicou o suficiente para favorecer uma justa apreciação de sua filosofia, estabelecendo um ponto de partida para trabalhos futuros bastante frutífe-ros em conjunto com linhas fenomenológicas.

Para tanto, é necessário analisar sua filosofia de ma-neira objetiva, sem um pensamento restrito ou vínculos teóricos pessoais. Isso significa que é preciso estar prepa-rado para reconhecer avanços positivos feitos por Husserl na filosofia e em ciências distantes como a psicologia, além de empenhar-se para apurar se todos os elementos do seu pensamento são coerentes com seus preceitos de-clarados. Um interesse especial é a forma final do idea-lismo representado pelo último sistema de fenomenolo-gia transcendental, o qual revela os limites, bem como os méritos, do modo subjetivo do procedimento filosófico. A atenção renovada ao método na filosofia torna a aná-lise da fenomenologia bastante pertinente; sendo assim o grande desenvolvimento da teoria lógica é necessária para colocar a fenomenologia em conexão com esta, pre-vendo possíveis reações mútuas. Atenção especial deve ser dada às contribuições lógicas de Husserl, por serem muito significativas considerando-se as dúvidas e difi-culdades análogas aos problemas existentes na época das Investigações Lógicas5.

ou simplesmente Husserliana, que contém a série principal de suas obras, manuscritos e inéditos, constantes na Husserl-Archives Leuven. Atualmente, a coleção conta com 41 volumes já editados (N. do. E.).

4 Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik, ou Experiência e Juízo. Estudos sobre a Genealogia da Lógica, inédita em português. A primeira impressão desse texto se deu logo após a morte de Husserl, em 1938, tendo sido editada em Praga. Contudo, com a anexação da Tchecoslováquia à Alemanha Nazista, houve significativo prejuízo na divulgação dessa obra. Foi organizada finalmente em 1948, por Ludwig Landgrebe (Nota do Editor).

5 Logische Untersuchungen. Zweite Teil: Untersuchungen zur Phäno-menologie und Theorie der Erkenntnis, publicado originalmente em 1901 (Primeiro Volume.). O segundo volume foi publicado poste-riormente (Ver Nota 8 desse texto). No Brasil, a primeira tradução desse texto se deu em 1976, na forma da “Sexta Investigação”, e

TExTOS CLÁSSICOS

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Marvin Farber

Assim como o enigma proposto pelo pensamento de Husserl, e que pode ser melhor solucionado aproximan-do-se do seu desenvolvimento, este artigo enfatiza algu-mas das influências que antecederam seu pensamento e pontua as fases de seu trabalho. Não será possível fa-zer jus a todas essas influências: Husserl deriva de uma história inteira da filosofia e, sem dúvida, deve muito e indiretamente a todos os pensadores que nunca foram mencionados explicitamente em suas obras. Portanto, é suficiente para os nossos propósitos, chamar atenção para a controvérsia da qual Husserl é famoso – a questão da relação entre psicologia e filosofia (em especial a ló-gica) e indicar, mesmo que apenas mencionando nomes, as influências mais importantes sobre o seu pensamento conforme admitido pelo próprio Husserl.

1. psicologismo e filosofia na Década de 1880

Proeminente na filosofia do final do século XIX era um ponto de vista conhecido por “psicologismo”. A filo-sofia de uma época é sempre condicionada e influenciada pelas concepções científicas mais destacadas, especial-mente as novas; exemplo disso é o racionalismo, na filo-sofia moderna, que refletiu os avanços da matemática e da física. No período em questão a ciência emergente era a psicologia que detinha dupla importância para a filo-sofia alemã: sugeria um caminho seguro para a solução de problemas difíceis da lógica e da teoria do conheci-mento, além de oferecer um substituto e um acréscimo para a perspectiva idealista em filosofia. O psicologismo já era relevante na filosofia inglesa, cujo representante maior foi J.S.Mill. Na Alemanha, Wundt e Lipps servem de exemplos. Natorp, Brentano, Stumpf e posteriormen-te Frege são de particular importância, por fornecerem significativa influência para Husserl. A reação contra o psicologismo foi claramente ilustrada nos primeiros escri-tos de Natorp; e Schuppe e Volkelt antecederam Husserl na teoria do conhecimento, embora não tenham exerci-do influência direta sobre ele. Isso, porém, não afeta a originalidade de Husserl, visto que o uso sistemático im-posto por ele às mesmas causas, resultaram na sua radi-cal reformulação.

O Psicologismo foi uma perspectiva extremada, e uma reação a isto era inevitável. A revisão de Natorp, do livro de Theodor Lipps Basic Facts of Mental Life6 é uma indica-ção precoce de tal reação. Lipps considerava a psicologia como constitutiva da base filosófica, mas Natorp duvidava da possibilidade de a psicologia “fundamentar” a lógica e a teoria do conhecimento. Lipps, por outro lado, consi-derava esses temas como a base psicológica do princípio

publicada na coleção Os Pensadores. Atualmente contamos com uma tradução portuguesa dos dois volumes (Universidade de Lisboa) e uma brasileira do primeiro volume e do II Tomo (N.do E.)

6 Cf. Paul Natorp, revisão da obra da obra de Lipps Grundthatsachen des Seelenlebens, Bonn, 1883, publicado no Göttingische gelehrte Anzeigen, 1885, pp. 190-232.

da contradição e função geral das concepções sobre o co-nhecimento. De acordo com Lipps, a derivação genética das leis básicas do conhecimento depreendida dos fatos originais da vida física eram idênticas às suas fundações “epistemológicas”, em outras palavras, a teoria do conhe-cimento seria uma ramificação da psicologia. Há que se reconhecer, assinala Natorp, que fatos psíquicos são re-presentados nas leis do conhecimento, e esses fatos, por serem psíquicos, constituem também objeto de investi-gação para a psicologia; porém, não é uma questão de in-diferença se são fatos psíquicos ou se a psicologia uma pressuposição da teoria do conhecimento. Conhecimento é admitido como sendo um processo psíquico apenas na forma de conceitos e teorias, ou de modo geral, como cons-ciência. Mesmo a verdade sobre o conhecimento, assim como a lei que rege essa verdade como algo objetivamen-te válido, devem ser investigadas através da consciência que seres pensantes possam ter sobre ela.

Nesse sentido, conceitos e verdades sobre a geome-tria seriam fatos psíquicos, e mesmo assim, os axiomas de Euclides não são considerados como sendo leis psi-cológicas por ninguém, nem se supõe que seu objetivo depende do entendimento psicológico de apresentações geométricas. Natorp, portanto, apenas ressaltou o fato de que a consciência da verdade independe de toda explica-ção genética por meio de conexões psicológicas e chamou atenção para a independência da base objetiva dos prin-cípios do conhecimento. Assim, para Natorp, a crítica e a psicologia do conhecimento se exigem e se condicio-nam uma a outra. Um indicativo de seu ponto de vista é dado por sua asserção que uma lei de conhecimento é a priori, assim como toda lei é a priori para aquilo que é sujeito à lei.

As primeiras reações de Natorp contra o psicologismo estão expressas também num artigo sobre os fundamentos objetivos e subjetivos do conhecimento7, no qual o autor argumenta que não existiria nenhuma lógica, ou ela deve-ria ser inteiramente construída sobre suas próprias bases, sem a necessidade de se fundamentar em qualquer outra ciência. Aqueles que fazem da lógica uma ramificação da psicologia afirmam que esta é a ciência de base e que a lógica é, na melhor das hipóteses, apenas uma aplicação da psicologia. Natorp afirmou que não apenas o signifi-cado da lógica, mas também o significado de toda ciên-cia objetiva é ignorado e quase pervertido em seu opos-to, quando a verdade objetiva do conhecimento se torna dependente de uma experiência subjetiva. Fundamentar a lógica sobre bases subjetivas seria anulá-la como teo-ria independente da validade objetiva do conhecimento. Por essa razão, Natorp não estava somente defendendo os direitos da lógica no sentido comum do termo, mas tam-bém chamando atenção para a validade objetiva da qual

7 P. Natorp, “Uber objektive und subjektive Begründung der Erkenn-tnis” (Erster Aufsatz), Philosophische Monatshefte, vol. XXIII, 1887, pp. 257-286. Husserl refere-se à página 265 f. desse artigo nas Inves-tigações Lógicas como reforço para seu debate sobre o psicologismo.

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é feita toda ciência, ao sustentar que a validade objetiva deve ser também sustentada objetivamente. Como pres-suposição da ciência objetiva, Natorp formulou o precei-to de que o verdadeiro conhecimento científico somen-te pode depender de leis que gerem a certeza no âmago da ciência e que sejam desenvolvidas de maneira lógica, independente de quaisquer pressuposições que possam ser vinculadas a elas. Assim, todo recurso ao sujeito cog-noscente e sua capacidade de ciência objetiva é marcado como algo estranho.

Natorp foi muito claro ao afirmar que a objetividade da ciência requer a superação da subjetividade. Nesse sentido, sua concepção sobre a verdade científica é com-patível com o ideal posterior de Husserl de uma ciência rigorosa para a filosofia, mas não a ponto de sugerir a ideia de uma ciência universal ou de uma filosofia “cien-tificamente enraizada”. O objeto da crítica de Natorp era, de fato, o psicologismo e ele foi bem-sucedido ao formu-lar claramente essa questão. Natorp afirmou que a ver-dade científica, conforme ilustrada na ciência natural matemática, torna-se uma certeza quando fundamen-tada em pressuposições objetivas, ressaltando sua auto-nomia como ciência. Logo, o matemático e o físico não deveriam buscar na psicologia a essência da verdade de seus conhecimentos.

A expressão “validade objetiva” foi, assim, utilizada para indicar a independência do aspecto subjetivo do sa-ber. Seu significado positivo era bem menos claro para Natorp. A ideia de que existem objetos fora e indepen-dentes de toda subjetividade seria uma possível resposta, mas Natorp acreditava que o “ser em si mesmo” do objeto já era em si um enigma, em razão do seu kantismo não resolvido. Natorp argumentava que a independência do objeto da subjetividade do saber somente poderia ser en-tendida por meio da abstração, visto que os objetos nos são dados somente através do conhecimento de que temos deles. Sendo assim, seria necessário abstraí-los a partir do conteúdo da experiência subjetiva. De acordo com Natorp os verdadeiros princípios e bases do conhecimento são as unidades objetivas finais. Na matemática, não são os fenômenos que são básicos, mas sim as abstrações funda-mentais que são expressões da unidade de determinação de possíveis fenômenos tais como ponto, linha, retidão e igualdade de magnitude. Tudo isto envolve a função fun-damental de objetivação e a “unidade da multiplicação” de Kant e Platão. Somente assim os “fenômenos” únicos da ciência se tornam possíveis. Natorp argumentou que deve haver uma função determinante e “firme”, a fim de tornar essa positividade uma realidade possível. Numa discussão posterior8 Natorp buscou verificar como o tipo de argumentação que tinha usado era objetivo, ou seja,

8 Cf. P. Natorp, “Quantität und Qualität in Begriff, Urteil und gegens-tändlicher Erkenntnis”, Philosophiache Monatshefte, vol. XXVII, 1891, pp. 1-32, 129-160. No seu Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (Freiburg f. B., 1888), Natorp se colocou a tarefa de tornar seguras as bases da psicologia através de uma investigação preliminar do seu objeto de estudo e método.

buscou compreender qual procedimento matemático é objetivo, além de mostrar que a lógica formal deve ser fundamentada na lógica do conhecimento objetivo ou na lógica transcendental.

Outra ideia importante na época foi o ideal da ausên-cia de pressuposições no procedimento filosófico. Esse ideal foi tomado por Husserl nas Investigações Lógicas como uma exigência óbvia a ser imposta sobre toda in-vestigação epistemológica.

Assim, é possível apontar as influências diretas so-bre Husserl no início do seu percurso, derivadas de al-gumas poucas fontes embora, posteriormente, abordasse filósofos que, num primeiro momento, tinham sido ne-gados ou rejeitados. Natorp, Volkelt, Schuppe e Rehmke podem ser considerados representantes únicos de uma geração emergente de idealistas, cujos trabalhos seriam relevantes na literatura filosófica das décadas subsequen-tes. Suas publicações foram lidas, caso de Natorp, e tam-bém consideradas como trabalhos paralelos por Husserl.

A orientação à filosofia de Kant, sempre proeminen-te na Alemanha viria a ser de grande significância para Husserl. Brentano, que não é facilmente classificado, combinou o escolasticismo e a filosofia de Aristóteles com o empirismo, inaugurando um período frutífero de desenvolvimento da psicologia, tendo Stumpf como um dos seus primeiros discípulos mais produtivos. O desen-volvimento moderno da lógica simbólica, que teve seu início na Inglaterra através de Boole, foi conduzido na Alemanha por Schröder e Frege. Esses estudiosos podem ser citados como constituindo a cena filosófica em que Husserl entrou quando ele se juntou ao corpo docente da Universidade de Halle em 1887. Todos representam uma fase especial do contexto da filosofia Alemã na época.

2. O Discípulo de brentano

“Brentano, meu professor” era uma expressão fre-quentemente ouvida nas aulas de Husserl. Sua dívida intelectual com Brentano era considerável no início de seus estudos, mas foi o elemento moral e o exemplo pes-soal de Brentano que o levou a escolher a filosofia como objetivo de vida e que constitui sua última influência. Husserl foi um aluno agradecido a Brentano acompanhan-do-o, juntamente com Stumpf, durante viagens de férias. Entretanto, Husserl não estava preparado na época para aproveitar esse contato. A eficácia de Brentano como pro-fessor é justificada pelo número de teóricos notáveis que devem o começo de seus estudos a ele, tais como Stumpf, Husserl, Meinong, Höfler e Marty.

Husserl deixou um tributo revelador a Brentano de-dicando uma obra inteira ao mestre9. Husserl participou

9 Cf. Husserl “Erinnerungen an Franz Brentano”, Supplement II, pp. 153-167, no livro de Oskar Kraus, Franz Brentano, Zur Kenntnis seines Lebens und seiner Lehre (O Supplement I é de autoria de Carl Stumpf), München, 1919.

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de seus cursos durante dois anos, de 1884 a 1886, depois de ter completado formalmente seus estudos universitá-rios, nos quais a filosofia era um objeto menor. Brentano proferia conferências sobre a filosofia prática, lógica ele-mentar e suas reformas necessárias e também falava so-bre questões psicológicas e estéticas específicas. Husserl estava em dúvida, então, se deveria dedicar-se à filosofia ou à matemática e foram as conferências de Brentano que o ajudaram a tecer sua escolha. Embora tenha sido cons-tantemente advertido por seu amigo Masaryk a estudar com Brentano, Husserl comenta que participou das con-ferências apenas por curiosidade, pois na época Brentano era muito discutido em Viena, sendo admirado por muitos e insultado por outros que o comparavam a um jesuíta disfarçado. Husserl ficara impressionado desde o início por seus gestos leves e seu rosto expressivo, com rugas que evidenciavam não apenas um mero trabalho mental, mas profundas batalhas intelectuais. Brentano o impres-sionou como alguém que estava sempre consciente de ter uma grande missão. A linguagem de suas conferências era livre de toda artificialidade, revelando sua perspicá-cia, uma inteligência viva através de um tom de voz bas-tante peculiar, velado, suave, acompanhado de gestos quase sacerdotais que faziam-no parecer um profeta de verdades eternas e um locutor de outro mundo. Husserl comentou mais tarde que sucumbiu à força daquela per-sonalidade, apesar de todos os seus preconceitos. E, foi a partir dessas conferências que ganhou convicção de que a filosofia é um campo de trabalho intenso, vigoroso e que pode ser tratado no âmago da ciência mais rigorosa, e isso o levou a tomar a filosofia como um projeto de vida.

Brentano era mais eficiente nos seus seminários, nos quais estudou os seguintes textos: Enquiry Concerning Human Understanding e Principles of Morals, de Hume; a fala de Helmholtz sobre “The Facts of Perception”, e de Du Bois-Reymond, “Limits of Natural Logic”. Na época, Brentano estava particularmente interessado em ques-tões de psicologia descritiva, que discutiu com Husserl. Nas conferências sobre lógica elementar Brentano tra-tou a psicologia descritiva considerando o trabalho de Bolzano “Paradoxos do Infinito” além das diferenças en-tre as ideias de “intuitivo e não-intuitivo”; “claro e obscu-ro”; “distinto e não distinto”; “real e irreal” e “concreto e abstrato”. Outros temas incluíram a investigação do jul-gamento e também problemas descritivos da fantasia. O alcance da influência de Brentano é demonstrado nos pri-meiros escritos de Husserl, bem como nas investigações subsequentes sobre a lógica e a teoria do conhecimento. Sua dívida com Brentano foi reconhecida explicitamen-te e de bom grado por Husserl. É interessante notar que Brentano sentiu-se como o criador de uma philosophia pereniss, embora não tenha se fixado em suas perspecti-vas nem ficado parado no tempo. Brentano exigia clareza e a distinção de conceitos fundamentais, considerando as ciências naturais exatas como representantes do ideal de uma ciência exata da filosofia. Este ideal se opunha à

tradição do idealismo alemão que, na sua opinião, dege-neravam a filosofia.

Husserl trocou poucas correspondências com Brentano. Em resposta a uma carta, solicitando que aceitasse uma dedicatória feita a ele na obra Filosofia da Aritmética10, Brentano expressou cordiais agradeci-mentos, posicionando-se contra, temendo que Husserl angariasse a animosidade de seus inimigos. Husserl, en-tretanto, não recebeu nenhuma resposta quando enviou a Brentano uma cópia dessa obra com sua dedicatória. Brentano só foi notar que o trabalho de Husserl tinha sido dedicado a ele quatorze anos depois tendo, então expres-so calorosos agradecimentos. Husserl aceitou os agrade-cimentos e compreendeu seu mestre o suficiente para se sensibilizar com este incidente. O desenvolvimento in-dependente desses dois teóricos deve-se a essa pequena quantidade de cartas trocadas entre eles.

Husserl viu Brentano em 1908 em Florença, quando o último estava quase cego. Novamente sentiu-se como um iniciante tímido, mais propenso a ouvir do que falar. Uma vez foi chamado a se manifestar e foi ouvido por Brentano sem interrupção. Seu relato acerca do signifi-cado do método fenomenológico de investigação, bem como do seu conflito anterior com o psicologismo, não os levaram a nenhum acordo. Husserl afirmou que tal-vez a culpa fosse parcialmente sua. Ele tinha ficado ini-bido pela sua íntima convicção de que Brentano, em ra-zão de sua firme postura de conceitos e argumentos, já não era mais suficientemente adaptável para entender a necessidade de transformação de suas ideias fundamen-tais, o que Husserl acreditava que ele estava compelido a fazer. Brentano vivia continuamente no seu mundo de ideias e na completude de sua filosofia que dizia tinha sido submetida a um grande desenvolvimento ao longo de décadas. Pairava sobre ele uma aura de transfiguração, embora ele não pertencesse mais a este mundo e vivesse metade de sua vida naquele mundo maior no qual acre-ditava tão firmemente. Esta última imagem calou fundo na mente de Husserl.

Este tributo de um grande pensador a outro revela o grau de influência exercido por Brentano sobre Husserl. A semelhança entre os dois é notável. O reconhecimento de que Brentano foi uma influência determinante para Husserl deve ser entendido literalmente, pois Husserl compartilhou no mais alto grau a seriedade dos modos suaves de Brentano, e também o desdém do humor e ou-tras estratégias utilizadas pelo mestre em suas conferên-cias que tanto o impressionaram. Outra grande caracte-rística entre ambos era a crença declarada de Husserl de que tinha fundado a única filosofia válida. Ele também nunca ficou parado e acreditava que seus avanços, mes-mo nos últimos anos de sua vida, foram notáveis e pro-fundos. O espírito de “escola”, no qual os discípulos do mestre seriam treinados mais tarde, foi ilustrado também

10 No original, Philosophie der Arithmetik. Psychologische und logische Untersuchungen, publicado em 1891 (N.do E.).

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no movimento fenomenológico, embora, para ser sincero, o método cuidadosamente elaborado por Husserl colocou--o acima dos confinamentos de uma escola no sentido co-mum do termo. O retrato de Brentano é estranhamente familiar àqueles que conheceram Husserl pessoalmen-te; ao descrever seu professor, Husserl se auto revelou.

3. O Julgamento final de brentano, por Husserl

Brentanto é mais conhecido por sua obra Psychologie vom empirischen Standpunkt11 (1874). As publicações re-centes de seus trabalhos, feitas por Kraus e Kastil12, tem esclarecido melhor as razões da influência extraordiná-ria exercida sobre Husserl por Brentano. Husserl estava em débito com Brentano, pelo seu interesse no concei-to de intencionalidade e pela investigação descritiva da percepção interna, e sem dúvida, aprendeu a se tornar um investigador filosófico ao ser exposto a exemplos con-cretos de análise descritiva e a como reconhecer proble-mas. Era inevitável que seu desenvolvimento aconteces-se de forma paralela e se sobrepusesse a alguns esforços de Brentano. Embora também fosse fácil para Husserl se livrar da quantidade de dívidas com Brentano, deve ser dito que o estudo dos principais elementos do pensamen-to do mestre é indispensável para a compreensão genéti-ca da fenomenologia.

A crítica de Brentano sobre o trabalho de Husserl al-guns anos depois da publicação das Investigações Lógicas foi disponibilizada através da publicação de duas car-tas escritas para Husserl em 190513, nas quais expressou suas objeções e receios em relação ao trabalho de Husserl. Brentano concordava com as críticas ao psicologismo, o qual considerava essencialmente Protagoreano, isto é, perspectiva na qual o homem é a medida de todas as coi-sas. Enquanto admitia que o empreendimento de Husserl com a lógica pura não era suficientemente claro para ele [Brentano], julgava impossível congregar todas as verda-des, caminhando intuitivamente do nível dos conceitos para uma ciência teórica da lógica; e ele não estava dis-posto a aprovar os esforços para delimitar uma ciência teórica das verdades que excluísse quaisquer dados empí-ricos. Os comentários de Brentano, embora interessantes em si mesmos, indicavam uma interpretação completa-mente equivocada do objetivo e do trabalho de Husserl.

Na opinião do editor, professor O. Kraus, Husserl falhou ao responder os “argumentos conclusivos” de Brentano, enquanto a esperança do mestre de afastá-lo dos erros era completamente ilusória. Kraus estava par-ticularmente interessado em enfraquecer a reivindicação

11 Psicologia do Ponto de Vista Empírico, inédita em português (N. do E.).12 Brentanos Gesammelte Philosophiche Schriften, editada por O. Kraus

e A. Kastil, Leipzig, 1922-1980, 10 volumes.13 Cf. Brentano, Wahrheit und Evidenz, editado por O. Kraus, Leipzig,

1930. As cartas encontram-se no apêndice sob o título de: “Sobre a Generalização da Verdade e o Erro Fundamental da então chamada Fenomenologia”.

de Husserl pela originalidade de seu trabalho. Desafiando a crença de que a refutação do psicologismo foi devido às Investigações Lógicas, Kraus referiu-se a evidências no artigo de Brentano, que teria incorporado no texto do vo-lume sobre Verdade e Evidência14. Brentano também se opôs à concepção de evidência como sentimento, um as-pecto antipsicologista que tinha sido creditado a Husserl. Através de alguns trechos da obra de Brentano, The Origin of the Knowledge of Right and Wrong (Ursprung sittlicher Erkenntnis, 1889), Kraus tentou estabelecer a prioridade deste na oposição ao psicologismo. Os objetos ideais de Husserl e os “objetivos” de Meinong foram rastreados por ele na introdução de Brentano sobre as pressuposições dos “fatos” irreais (Sachverhalte, existentes e não existentes).

Tudo isso prova que Brentano fora um pensador esti-mulante, que deu início a diversas ideias desenvolvidas posteriormente por alunos muito talentosos. É possível rastrear numerosas ideias da fenomenologia inspiradas nas sugestões dadas pelo pensamento de Brentano, mas seria um absurdo superestimar esse débito ao ponto de exigir a reivindicação de prioridade. Partindo da perspec-tiva de Kraus, a ideia de fatos irreais dificilmente é cre-ditada a Brentano, visto que este afirmava que somente as coisas concretas, realia, ou as essências reais podem ser pensadas, enquanto as irrealia como o ser, o não-ser, fato e verdade são meras ficções.

Nas Investigações Lógicas, Husserl chamou atenção para os defeitos na teoria do conhecimento de Brentano enfatizando a ambiguidade de expressões como “em cons-ciência” e “imanente na consciência”15. Não há dúvidas sobre seu débito para com Brentano pelo conceito de in-tencionalidade e pelo campo da análise descritiva que se desvelou a partir disso, mas era de Husserl a crença de que, apesar disso, Brentano falhou ao buscar sua real na-tureza e colocá-la para uso filosófico. Como Husserl fez essa afirmação somente nos seus últimos anos de vida, já era tarde para que pudesse caracterizar corretamente, e de forma cuidadosa, a radicalidade dos novos tipos de problemas que advinham da intencionalidade, descober-tos nas Investigações Lógicas, no seu significado universal para uma psicologia genuína e uma filosofia transcenden-tal. Husserl tinha finalmente alcançado a compreensão do que Brentano buscava: uma psicologia dos fenômenos da consciência (experiências intencionais) da qual não tinha noção sobre o significado real, nem tampouco do método que deveria utilizar para sua realização.

As críticas de Kraus não impressionaram e nem de-tiveram Husserl. Voltando o olhar para o início de seus estudos, a partir da perspectiva de sua maturidade, e em meio a um profundo sentimento de decepção difí-cil de entender, Husserl vangloriou-se de seu vínculo com Brentano por anos, acreditando ser um colaborador

14 Aqui refere-se o autor à obra brentaniana Wahrheit und Evidenz, Hamburg, Felix Meiner, 1930 (N. do E.).

15 Logische Untersuchungen, vol. II, parte 1, p. 375. Cf. L.Landgrebe, “Husserls Phänomenologie und die Motive zu ihrer Umbildung”, Revue Internationale de Philosophie, I, 2 (1939), pp. 280 ff.

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de sua filosofia, especialmente de sua psicologia. Mas, como Husserl observou em seu primeiro trabalho (a tese de 1887, parte dela desenvolvida em sua Filosofia da Aritmética), todo o seu modo de pensar era inteiramen-te diferente daquele de Brentano. Formalmente falando, Brentano buscava uma psicologia cujo tema fossem “os fenômenos psíquicos” os quais, entre outras coisas, eram definidos como consciência “de” alguma coisa. Mesmo assim, sua psicologia não era nada além de uma ciência da intencionalidade; os problemas reais da intenciona-lidade nunca foram revelados para ele; Brentano sequer notou que nenhuma experiência dada de consciência deve ser descrita sem a afirmação do objeto intencional pertinente “como tal” (ex.: a percepção dessa mesa so-mente deve ser descrita, de modo exato, se eu a descre-ver como tal e tal como é percebida). Ademais ele não fazia ideia sobre implicação intencional, modificações intencionais, problemas de evidência ou de constitui-ção, etc. Embora Brentano tenha se empenhado para ir além do Neo-escolasticismo, ele não foi bem sucedido; seus escritos de idade avançada foram tidos por Husserl como um “escolasticismo destilado”. Não era possível que Husserl pudesse “emprestar” ideias de uma fonte na qual não estavam presentes. Numa resposta simples a um Brentanista radical como Kraus, é possível aceitar como verdadeira cada reivindicação significativa às prio-ridades de Brentano sem diminuir a estatura de Husserl. Uma controvérsia infeliz seria assim reduzida a sua pró-pria insignificância.

4. O Desenvolvimento de Husserl

A preparação inicial de Husserl incluiu as matemáti-cas e a psicologia. Sua tese de doutorado foi em matemáti-ca e seus estudos sob a tutela de Weierstrass conferiram--lhe uma base sólida para seus trabalhos posteriores com a lógica. Em psicologia, interessou-se preliminarmente por uma investigação puramente descritiva ou “empírica” no sentido de Brentano. A fusão dessas duas áreas aparen-temente diversas determinou o cenário de sua carreira. As principais mudanças no seu percurso são explicadas, em grande parte, pelas dificuldades encontradas na ten-tativa de integrar esses dois elementos. Seus sentimen-tos mais íntimos de incerteza, muitas vezes de propor-ções lastimosas, refletiram o conflito existente entre um ponto de vista formal, “realista”, segundo o qual todas as proposições lógicas são determinadas em si mesmas, e o método psicologista, que considerava formas lógicas e princípios por meio do processo da experiência. Pouco tempo antes de sua morte, Husserl comentou ter passado por um período de abatimento, semelhante às experiên-cias vividas periodicamente nos primeiros anos de sua vida, durante os quais foi incapaz de desenvolver qual-quer estudo. Tais períodos foram seguidos por pesquisas e produtividade intensas.

É possível distinguir diferentes períodos no desen-volvimento do pensamento de Husserl no que diz res-peito a determinar elementos nos primeiros estágios do seu treinamento. De modo geral, referem-se ao período do psicologismo, da simples fenomenologia descritiva (fenomenologia num sentido estrito) e a fenomenolo-gia transcendental16. Do ponto de vista desta última, a fenomenologia transcendental, os dois primeiros são simplesmente estágios do processo em direção a um reino da filosofia, acessível somente através da re-dução fenomenológica. Sendo assim, as Investigações Lógicas foram caracterizadas como um trabalho de “Durchbruch”17 por Husserl. Por essa razão, pode-se dizer que os dois maiores períodos de sua carreira se-riam o pré-transcendental e a filosofia transcendental. O grande progresso registrado nas Investigações Lógicas foi reconhecido logo após a publicação daquele traba-lho, quando Husserl afirmou ser a fenomenologia uma disciplina autônoma. Estando plenamente consciente do progresso significativo que tinha feito, Husserl es-tava apto para conceber o passo seguinte a ser dado – a redução fenomenológica – que, sozinha, podia oferecer técnica apropriada para uma análise descritiva reflexi-va exigida para fins de uma teoria do conhecimento e da filosofia de um modo geral.

O próprio Husserl acreditava que o seu desenvol-vimento mostrava uma consistência interna apesar da ocorrência de mudanças provocadas pelas épocas, o que gerou muita dificuldade para seus seguidores em vários momentos. Aqueles que falharam ao alcançar ou endossar essas mudanças falharam ao participar desse “desenvol-vimento”. As mudanças ocorridas relembram a filosofia de Schelling. A diferença entre os estágios iniciais e fi-nais é surpreendente, mas mesmo assim Husserl ressal-tou a unidade fundamental na sua carreira. O período inicial viu o talento e experiência de um jovem teórico com uma predileção para os problemas mais elementa-res. A extensão do seu psicologismo pode ser questiona-da, embora tenha de fato defendido a tese psicologista em relação aos conceitos fundamentais da matemática e da lógica. Mas em lógica Husserl sabia muito bem como aplicar o método formal, como se observa no artigo so-bre “Calculus of Inference” (1891). Embora tenha reagido contra sua posição inicial e mudado contínua e periodi-camente, os resultados importantes de cada estágio fo-

16 E.Fink, na sua introdução à obra, até agora, não publicada de Hus-serl, “Entwurf einer ‘Vorrede’ zu den ‘Logischen Untersuchungen’” (1913), Uit Tijdschrift Voor Philosophie, I, 1 (1939), p. 107. Fink divide o desenvolvimento da fenomenologia de Husserl – tomada exter-namente – em três fases, correspondendo aproximadamente aos períodos em que Husserl lecionou em Halle, Göttingen, e Freiburg. De acordo com Fink, as Investigações Lógicas e as Ideias são os trabalhos centrais dos dois primeiros períodos. Essa classificação é útil para ressaltar as tendências de cada período em direção às conquistas de um nível de análise mais geral e profundo. Olhando para trás, é possível discernir a unidade interna de cada fase.

17 Durchbruch é “rompimento”, “ruptura”, referindo-se ao momento no qual se coloca sua publicação (Nota do Editor).

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ram sempre retomados nos trabalhos subsequentes. Pode até ser que a perspectiva do seu desenvolvimento seja distorcida, de alguma maneira, pela ênfase dada sobre a questão do psicologismo ao ponto em que se subestime o elemento da continuidade. Deve-se notar, por exemplo, que as Investigações Lógicas utilizaram os “Psychological Studies of Elementary Logic”, pertencentes ao seu perí-odo inicial. Além disso, embora Frege tenha recebido os créditos pela derrocada da Filosofia da Aritmética e pelo fato de afastar Husserl de sua posição inicial, esse vínculo não pode ser sustentado pelos fatos. Frege foi de fato bem sucedido ao apontar as inadequações naquele trabalho, mas ele não provocou o seu descrédito; e o fato de a confiança de Husserl em seu trabalho não ter sido necessariamente abalada, pode ser comprovada pelas referências constantes a ele em escritos posteriores. De fato, um estudo pontual sobre a Filosofia da Aritmética ressalta alguns dos interesses descritivos fundamentais de Husserl e apresenta, de maneira simples, tipos de pro-blemas, revelados por algumas das suas últimas técnicas descritivas mais desenvolvidas, nas suas próprias com-plexidades. Quando se lê toda a obra de Husserl conse-cutivamente, fica-se impressionado pela continuidade do seu desenvolvimento. Mas seria absurdo negligenciar as grandes mudanças na sua perspectiva (assim, por exem-plo, a “redução fenomenológica” foi apresentada somente em 1913, na obra Ideias18, embora tenha sido elaborada e formulada alguns anos antes), ou rebaixar suas repeti-das afirmações referentes às importantes mudanças nas suas opiniões.

Husserl teceu os seguintes comentários sobre seu pe-ríodo inicial: “Com respeito à conexão interna de todos os meus escritos, e consequentemente em relação ao meu desenvolvimento interno, a nova edição do Philosophen Lexikon trará a explicação correta, sob o meu nome, no caso do material preparado pelo Dr. Fink ser aceito sem alterações. ‘Influências’ externas não têm relevância. Como um teórico iniciante eu naturalmente leio muito, incluindo clássicos e literatura contemporânea das dé-cadas de 1870 a 1890. Gostei muito do ponto de vista cé-tico-crítico, visto que eu mesmo não vislumbrei nenhu-ma base sólida em momento algum. Sempre me vi longe do idealismo Alemão e Kantiano. Somente Natorp me interessou, mais por razões pessoais, por isso li toda a primeira edição da sua obra Introduction to Psychology19, mas não fiz o mesmo com a segunda edição. Li com entu-siasmo (especialmente como aluno) a obra de Stuart Mill, Logic, e posteriormente a obra filosófica de Hamilton. Tenho continuamente estudado os empiristas ingleses e as principais obras de Leibniz (ed. por J. E. Erdmann), es-

18 Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, publicado em 1913, no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, Halle. A primeira parte desta obra possui traduções para o português (N. do E.).

19 Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à Psicologia de acordo com o Método Crítico”), publicado em Freiburg, 1888 (N. do E.).

pecialmente seus escritos matemático-filosóficos. Vim a conhecer Schuppe somente após as Investigações Lógicas (1900-1901), quando ele já não podia me oferecer nada de novo. Nunca estudei Rehmke seriamente. De fato, meu curso foi pontuado pela Filosofia da Aritmética (1891) e não pude fazer nada a não ser continuar a avançar”. Esta declaração não é de forma alguma completa, entretan-to. Husserl frequentemente falava de James, cuja obra Principles of Psychology tinha um valor inestimável para ele. Lotze e Bolzano também tiveram grande importância para Husserl. Sua gratidão para Lotze foi por sua inter-pretação da teoria das ideias de Platão, a qual determi-nou todos os seus estudos posteriores. Também foi grato a Bolzano pela obra Wissenschaftslehre, que lhe rendeu o primeiro rascunho da “lógica pura” num momento bas-tante crítico do seu desenvolvimento. Além disso, ne-nhuma explicação sobre suas relações intelectuais deve omitir Twardowski, Marty e outros Brentanistas, além de Avenarius e Dilthey.

Olhando para seu desenvolvimento próximo de seus últimos dias de vida20, Husserl enfatizou a importân-cia do “modo de procedimento correlativo” ilustrado nas Investigações Lógicas. Isso ele rastreou na Filosofia da Aritmética, com sua “duplicidade peculiar de análi-ses psicológicas e lógicas”, que agora eram vistas como tendo íntima relação. A unidade dos Prolegomena e das seis investigações, esquecidas pelos críticos contempo-râneos, resultou da realização da natureza correlativa da análise descritiva. Primeiramente, foi necessário de-fender a objetividade das estruturas lógicas contra to-dos os esforços subjetivistas, antes de proceder à prepa-ração epistemológica da ciência da lógica pura. Embora grandes avanços sobre a Filosofia da Aritmética tenham sido alcançados, a análise da consciência foi principal-mente “noética”, o que significa que estava muito mais preocupada com a vivência do que com os estratos de sentidos “noemáticos” pertencentes a cada experiência. A necessidade e técnica para uma análise profunda dos dois lados da consciência foi feita, pela primeira vez de forma clara, nas Idéias.

A “fenomenologia” representada nas Investigações Lógicas utiliza somente a intuição imanente, sem ir além da esfera da auto-doação intuitiva. Este é o significado do preceito “voltar às coisas mesmas”; em outras pala-vras, um apelo à própria doação intuitiva. O segundo volume da obra ilustra esse princípio metodológico por meio de uma extensa análise concreta. Todos os insights dessa obra são insigths apodíticos por essência. O reino das ideias que é assim revelado é finalmente referido de volta à subjetividade da consciência, entendida como “o campo primeiro de todo a priori”. De importância de-terminante na investigação universal da consciência é a percepção de que a esfera imanente é governado por leis essenciais.

20 Cf. Philosophen Lexikon, by E. Hauer, W. Ziegenfuss, and G. Jung, Berlin, 1937, pp. 447ff.

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Até pode ser que nenhuma posição anteriormente sustentada estivesse completamente errada, tanto que os resultados “corretos” de suas investigações sempre encontraram seu lugar em cada período sucessivo. A ex-plicação genética do pensamento de Husserl é, portanto, o melhor caminho para explicar o papel das várias di-visões e aspectos de sua filosofia. Durante toda sua vida intelectual, os principais estímulos de sua filosofia po-dem ser verificados, até sua última fase, quando foi sus-tentado que somente o meio “difícil” da redução feno-menológica, agora intrinsecamente elaborado, poderia revelar as bases “desmotivadas” e não condicionadas de toda filosofia e ciência.

Tendo em mente o elemento da continuidade, é útil distinguir diversos grupos de escritos, que irão descrever de modo mais exato os três maiores períodos já mencio-nados. A organização não é inteiramente cronológica, a fim de distinguir os escritos psicológico-epistemológi-cos do formal. O conteúdo e o método desses trabalhos estão em questão nesta classificação. Assim, embora Erfahrung und Urteil resulte de um período anterior, con-forme mencionado por Landgrebe, também deriva de um período posterior, em questão. Por essa razão, pertence aos últimos escritos lógicos. (1) Temos a obra resultante do primeiro período de seu treinamento matemático, a dissertação sobre o cálculo das variações, “Beiträge zur Variationsrechnung”21. (2) O esforço de estabelecer uma fundação psicológica para a lógica e a matemática podem ser entendidas como estágios distintos no início da dé-cada de 1890, embora sejam paralelas às investigações de natureza estritamente lógica. Os estudos de Husserl, de 1886 a 1895, focaram preliminarmente no campo da matemática e da lógica formal. Este foi o período dedi-cado ao psicologismo como uma posição metodológica. Husserl acreditava que a filosofia da matemática estava relacionada com a origem psicológica dos conceitos fun-damentais da matemática. Ao longo da obra Filosofia da Aritmética, Husserl dedicou atenção ao que chamou de fatores “quase-qualitativos” ou “figurativos” chamados de “qualidades da Gestalt” por von Ehrenfels22. (3) As Investigações Lógicas consistem nos resultados mais sig-nificativos dos esforços intelectuais de Husserl nos anos 1890. Suas várias partes foram escritas em épocas dife-rentes e, portanto, tiveram que ser revisadas por inteiro

21 Cp. Illemann, Husserls vor-phänomenologische Philosophie, p. 70. Illemann está correto ao ressaltar os três períodos em matemática pura, pré-fenomenologia e pura ou “fenomenologia da epoche” [“epochistic” phenomenology], embora fizesse mais sentido manter a própria terminologia de Husserl ao falar de fenomenologia em dois sentidos – o descritivo simples e o transcendental. Illemann comete o erro de apresentar o criticismo, do ponto de vista da escola de Driesch-Schingnitz, enquanto ao mesmo tempo reconhece a incompletude dos períodos anteriores. Cf. revisão de Becker sobre o livro de Illemann na Deutsche Literaturzeitung, Feb. 4, 1934, no qual Becker sugere o título de “fenomenologia perspectivista” para o quarto período.

22 Refere-se à Gestaltquälitat ou “qualidade da forma”, proposta por Christian von Ehrenfels (N. do E.).

a fim de dar a elas uma certa coerência. A parte críti-ca do primeiro volume, que tem sido mais amplamente lida, consiste de uma crítica e repúdio ao psicologismo, já apresentada em seus cursos no ano de 1895. O últi-mo capítulo deste volume, sobre “A Ideia de uma Lógica Pura” foi adicionado posteriormente; este resultou dos estudos matemático-lógicos precedentes conduzidos por Husserl, interrompidos depois de 1894, mas que avan-çaram na ideia de uma ontologia formal. É importante observar que as Investigações Lógicas registram um dis-tintivo avanço na compreensão da ciência formal, bem como um marco no desenvolvimento de uma teoria do conhecimento, assunto que predomina em seu trabalho. Nesta, a fenomenologia é caracterizada como uma psi-cologia descritiva estruturada para oferecer os esclare-cimentos das ideias de base do pensamento formal. Isto foi especialmente infeliz na medida em que foi um fator impeditivo para o correto entendimento das investiga-ções. Entretanto, ficou evidente ao leitor cuidadoso que tais esclarecimentos apresentavam análises essenciais. Na correção subsequente a esse erro, Husserl enfatizou o fato de que toda apercepção psicológica é excluída, de que experiências pertencentes a seres pensantes reais não estão em questão. Em outras palavras, a “psicologia descritiva” não foi feita para ser entendida no seu sentido comum, mas como foi claramente apontado na primeira edição da sua obra, o método de investigação foi conce-bido para ser livre de todos os pressupostos da psicolo-gia e da metafísica. (4) Os escritos publicados após a pri-meira edição das Investigações Lógicas e até a publicação das Ideias em 1913 podem ser incluídos em um grupo, abrangendo todos os escritos conhecidos até a primeira formulação publicada sobre a redução fenomenológica. A segunda obra “Logical Survey” (uma discussão crítica das publicações alemãs sobre lógica no final do século) continha um grande material pertencente ao período precedente, além da correção da concepção de fenome-nologia como uma psicologia descritiva. As Lectures on the Consciousness of Inner Time (1905-1910)23 e o ensaio publicado na revista Logos, “Philosophy as a Rigorous Science” (1910)24 ilustram, respectivamente, a natureza da descrição fenomenológica e o ideal programático da fenomenologia como a mais rigorosa de todas as ciências. Nesse período, a função esclarecedora da fenomenologia é atribuída a uma disciplina autônoma que serve de pre-lúdio para todo o tipo de conhecimento. Embora a análise

23 Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins, ou as “Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo”, cursos proferidos por Husserl entre 1905-1907, e compilados inicial-mente por Edith Stein. Foram publicadas pela primeira vez em 1928, sob organização de Martin Heidegger, no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, 9. Halle a.d.S: Max Niemeyer, 1928, 367-498. Em 1966, tem nova edição, por Rudolf Boehm, e sua publicação em 1969, nas Husserliana 10. A edição para o português foi traduzida por Pedro Alves, da Universidade de Lisboa (N. do E.).

24 Philosophie als strenge Wissenschaft, publicado na revista Logos 1. Tübingen. (1910-11), 289-341. A tradução portuguesa data de 1965, como A Filosofia como Ciência de Rigor (N. do. E.).

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descritiva da consciência do tempo inclua elementos de um caráter genético e constitutivo, e expanda o campo de análise, a redução de todo o conhecimento à consci-ência pura não é definida sistematicamente tanto na obra quanto no ensaio de Logos. A fenomenologia é agora, em resumo, uma região autônoma de investigação livre de toda pressuposição da psicologia, mantendo a exigência de uma filosofia livre de pressuposições. (5) As Ideias inauguram o período da fenomenologia transcendental, e o método da redução fenomenológica se torna o cami-nho para a filosofia. Este trabalho fornece a apresenta-ção sistemática da nova fenomenologia. Neste contexto, o fenomenológico é distinguido da “atitude” natural. Esta pressupõe a existência do mundo, em conjunto com ou-tras pressuposições normalmente feitas. A atitude feno-menológica exige a suspensão de todas as pressuposições. A existência do mundo e de tudo que é “posto”, é colocada “entre parênteses”. Os fenômenos que permanecem são o assunto principal da fenomenologia, definida como a ciência da consciência pura transcendental. A discussão sobre noesis e noema é particularmente importante para trazer à luz algumas estruturas fundamentais da expe-riência e também por indicar um campo frutífero para pesquisas. A “redução” abre um campo universal para a investigação filosófica livre de quaisquer prejulgamentos e pressuposições, em razão da sua importância metodoló-gica crucial. Husserl é cuidadoso ao distinguir a redução eidética (procedente do fato para a essência) da redução transcendental, de acordo com a qual os fenômenos são caracterizados como sendo “irreais” e não são ordenados no “mundo atual”. O método da redução fenomenológica é aplicado a fim de alcançar o campo filosófico livre de pressuposições na consciência de um ego individual para começar, que envolve a suspensão de todas as crenças nas realidades transcendentes. A fenomenologia tornava-se agora a ciência mais fundamental e a base absoluta de todo o conhecimento. O objetivo de Husserl ao trazer as Investigações Lógicas até o nível das Ideias numa edição revisada (1913-1921) não foi concretizada plenamente, embora algumas partes dela tenham sido radicalmen-te alteradas em conformidade com uma clareza maior que ele tinha desenvolvido. O termo “epoché”25 nomeia apropriadamente esse período. Não existe necessidade de ambiguidade no uso desse termo. Outros significa-dos de “epoché” além daqueles das Idéias devem ser co-locados explicitamente. Isso significa o caminho para a esfera transcendental e sua elaboração mais detalhada é oferecida pelas Meditações Cartesianas26. Este trabalho

25 No orginal, “epochistic”. Optamos por manter a palavra original epoche, utilizada na fenomenologia, para não criar outro neologismo (N.d. E.).

26 Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, publicados nas Husserliana 1, sob edição de S.Strasser. Referem-se às conferências de Husserl em Paris (entre 23 e 24 de fevereiro de 1929), a convite do “Institut d’Études Germaniques” e da “Societé Française de Philosphie”, na Sorbonne. Em português esses textos foram tradu-zidos em dois volumes distintos: Conferências de Paris e Meditações Cartesianas (N. do E.).

trata do problema da vivência de outras mentes através da empatia e introduz o conceito de intersubjetividade transcendental, necessária para uma completa fenome-nologia constitutiva. (6) Embora venham sob o título apropriado de fenomenologia transcendental, é desejável listar os últimos escritos lógicos separadamente. A obra Formal and Transcendental Logic (1929)27 é importante não somente em vista de sua notável excelência como um clássico da lógica, mas também porque é o ponto culmi-nante das linhas de desenvolvimento da fenomenologia lógica e transcendental. O termo “perspectivista” chama atenção para o esforço de uma síntese dos dois campos de interesse tradicionalmente divergentes com os quais a atividade filosófica de Husserl começou, ou seja, sua proposição-problema original, a qual envolvia a psico-logia e a epistemologia bem como o pensamento formal. A análise detalhada desse trabalho permite ao leitor jul-gar o sucesso daquela síntese. Incluso nisto está uma rein-terpretação e avaliação das Investigações Lógicas como um nível avançado da fenomenologia transcendental. A preparação e a publicação dos últimos estudos lógi-cos de Husserl, chamados de Experience and Judgment (1939)28, finalmente permite a compreensão da base fe-nomenológica da lógica. Husserl apresenta grande par-te do material necessário para a análise da experiência, acrescentando mais argumentos para suas investigações e resultados já alcançados. Isso se aplica particularmente à análise da “experiência pré-predicativa” e à “análise de origens” dos conceitos e lógicas da forma29. Assim como a Formal and Transcendental Logic, este é um trabalho de grande importância para a lógica, para a teoria do conhecimento e para a psicologia. É importante lembrar que a oposição de Husserl ao psicologismo jamais impli-

27 No original, Formale and transzendentale Logik: Versuch einer Kritik der logischen Vernunft (N. do Ed.).

28 No original, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik, organizado por Ludwig Landgrebe e publicado logo após o falecimento de Husserl. Permanece inédito em português (N. do E.).

29 Cf. Erfahrung und Urteil, §§ 5, 11, e 12 para o significado do conceito de “origem” ou de “gênese” como concebido pelo método fenome-nológico. A afirmação “genética” de Husserl sobre os problemas da origem, como relacionados à lógica, não é psicológica no sentido comum. O termo “genético” refere-se à produção pelo qual surge o conhecimento na sua “forma originária” de auto-doação, um pro-cesso que repetidamente requer uma mesma forma de cognição. O processo factual, histórico, dos significados que surgem a partir de uma subjetividade definidamente histórica não está em questão. Nosso mundo se torna um exemplo para nós por meio dos quais estudamos a estrutura e a origem de um mundo possível em geral. O esclarecimento da origem do julgamento predicativo é uma tarefa fundamental para a genealogia da lógica num sentido transcenden-tal. O objetivo é investigar as contribuições do conhecimento para a construção do mundo. A fim de se ater às experiências últimas e originais, é necessário voltar às unidades simples e considerar o mundo como um mundo puramente perceptivo, de abstrações de tudo o que é existente. Desse modo, o reino da natureza como percebido por mim é alcançado primeiramente. Assim, podemos chegar à construção das pedras mais primitivas da contribuição lógica, da qual o nosso mundo é construído. A linha sistemática das interrogações “transcendentais” desses estudos lógicos ilustra tais “análises de origem”.

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cou uma oposição à psicologia. Ao contrário, não menos importantes de suas contribuições foram feitas no cam-po da psicologia. (7) As últimas publicações a aparecer, uma antes de sua morte e outra póstuma, revelam seu interesse em expandir o método fenomenológico para um escopo ainda maior do que tinha sido alcançado, para incluir referência à história da ciência e da filosofia, e para dar conta do problema da história confrontando esse método por meios do conceito de “história intencional”.

Os sete grupos listados acima abrangem as seguin-tes publicações: (1) Matemática. Tese de doutorado, “Beiträge zur Variationsrechnung” que não foi publi-cada. (2) Psicologismo. Filosofia da Aritmética (1891), somente o volume I foi publicado; “Psychologische Studien zur elementaren Logik” (1894). A tese de ha-bilitação submetida à Universidade de Halle para fins de qualificação docente, “Ueber den Begriff der Zahl” (1887) foi impressa, mas não colocada à venda. Foi in-corporada na Filosofia da Aritmética. (3) Formal Logic and Phenomenology as Descriptive Psychology. Revisão do trabalho de Schröder intitulado “Vorlesungen über die Algebra der Logik” (1891); “Der Folgerungscalcül und die Inhaltslogik” (1891); controvérsia com Voigt (1893); a primeira pesquisa lógica, “Bericht über deuts-che Schriften zur Logik aus dem Jahre 1894” (1897); Logische Untersuchungen, primeira edição (1900-1901). (4) Fenomenologia Pré-Transcendental. Segunda pesquisa lógica, “Bericht über deutsche Schriften zur Logik in den Jahren 1895-99” (1903-1904); revisão da obra de Palagyi Der Streit der Psychologisten und Formalisten in der mo-dernen Logik (1903); conferências sobre consciência do tempo, Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (publicadas em 1928, mas escritas entre 1905-1910); o ensaio publicado na revista Logos sobre a filosofia como ciência rigorosa, “Philosophie als strenge Wissenschaft” (1910). (5) Fenomenologia Transcendental. A edição revisada das Logische Untersuchungen, jun-tamente com o prefácio recentemente publicado de 1913, no qual Husserl responde aos críticos (1913-1921); Ideen zu einer reinen Phänomenologie (1913); o prefácio do autor à tradução para o inglês das “Ideen” (1931); o artigo sobre fenomenologia na Encyclopaedia Britannica, 14ª edição (1929); Méditations Cartésiennes (1931); o ensaio de Fink nos Kant-Studien, “Die phä-nomenologische Philosophie Edmund Husserls in der gegenwärtigen Kritik”, no qual Husserl endossava ao expressar suas próprias opiniões (1933). (6) Síntese da Logica Formal e da Fenomenologia Transcendental. Formale und Transzendentale Logik (1929); Erfahrung und Urteil (1939). Husserl afirmou que ele mesmo se deparou com dificuldades antigas, mas que esse foi sem dúvida seu trabalho mais maduro, à parte a quinta edição das Meditações Cartesianas. (7) Fenomenologia e História. Na época de seu falecimento ele estava tra-balhando em seu último livro, “A Crise das Ciências Européias e a Filosofia: Uma Introdução à Fenomenologia

Transcendental”; a parte introdutória desse texto foi publicada no primeiro volume de Philosophia (1936)30. Este trabalho foi estruturado para apresentar ao aluno as “dimensões radicalmente novas do conhecimento” da fenomenologia transcendental. O manuscrito sobre a origem da geometria, “Die Frage nach dem Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem”, foi pu-blicado por Fink na Revue Internationale de Philosophie (1939). Os vestígios literários de Husserl incluem uma grande quantidade de material descritivo sobre fenome-nologia constitutiva e revela seus muitos interesses no campo da filosofia como um todo.

5. Rumo ao futuro

Husserl acreditava que estivesse fazendo grandes pro-gressos até o final, e que tinha finalmente alcançado a clareza completa sobre a compreensão. Rebaixado pela Alemanha oficial e ignorado por muitos dos renomados teóricos “Arianos” na Alemanha, os quais tinha influen-ciado, Husserl encarou o futuro com um apelo para o jul-gamento da eternidade, com a percepção serena de quem tinha alcançado muito do que é permanente. Ele escre-veu: “E nós, velhas pessoas, permanecemos aqui. Uma virada singular dos tempos: isso dá aos filósofos – se não nos tirar o fôlego – muito para pensar. Mas agora: cogito ergo sum, ou seja, submeto sub specie aeterni meu direi-to de viver. E isso, as aeternitas em geral, não podem ser tocadas por nenhuma força terrestre”.

Para ser sincero, Husserl teve poucos “seguidores” no final de sua vida, do ponto de vista da aceitação sem reservas dos seus últimos esforços filosóficos. Mas seria um erro restringir o número de representantes sinceros da filosofia fenomenológica a uns poucos seguidores. A alma do trabalho de Husserl era uma completude úni-ca; seus problemas tinham um horizonte sempre aberto. Se alguns poucos estudantes de filosofia podiam man-ter seu progresso atualizado, isso era devido à escassez de suas publicações em relação a sua produção comple-ta. Mas não era só isso; deve-se se admitir que muitos alunos de filosofia não dedicaram o tempo necessário ao estudo da fenomenologia. Esta era plenamente com-preendida por alguns poucos, embora fosse discutida por muitos. Husserl não poderia se sentir sozinho nes-sas circunstâncias e isto foi acentuado pelo seu status na nova Alemanha.

O período do alcance internacional de Husserl em larga escala agora que começou, consoante o interesse sistematicamente organizado de estudiosos do mundo todo sobre o entendimento e desenvolvimento da sua fi-losofia. Husserl está destinado a ser objeto de discussão por um bom tempo. Esta é a intenção dos membros da International Phenomenological Society, de fazer feno-

30 “Die Krisis der europäischen Wissenchaften und die transzendentale Phanomenologie”.

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menologia efetivamente para progressos fenomenológi-cos futuros.

O método fenomenológico proíbe quaisquer prejul-gamentos e dogmas. Seu ideal é a elaboração de uma filosofia descritiva através de um método radical, pro-cedendo com a maior liberdade possível das pressupo-sições. Essa é uma tendência científica na filosofia e seu programa construtivo prevê resultados muito posi-tivos. Assim, o método fenomenológico tem se mostra-do de aplicabilidade, através de muitas pesquisas, em diversas áreas do conhecimento como arte, matemáti-cas, direito, ciências sociais, psicologia e psiquiatria. É certo que apenas o início foi feito. Por outro lado, a adoção nominal e o uso inadequado do método fenome-nológico já ilustraram os perigos de um misticismo, de uma descrição unilateral e distorcida, do dogmatismo e do agnosticismo. Um domínio crítico e competente deveria manter o método livre de tais erros, oferecen-do uma base para todos os estudiosos interessados no programa construtivo da filosofia como ciência rigoro-sa. O novo periódico, Philosophy and Phenomenological Research, está dedicado à promoção desse ideal. O tra-balho de Edmund Husserl constitui seu ponto de parti-da. Olhando para o futuro, ele convida a uma participa-ção ativa de todos os estudiosos capazes de contribuir para a compreensão e desenvolvimento da fenomeno-logia no seu sentido clássico e com o futuro progresso

da filosofia em si mesma e em sua relação com outras áreas de aprendizagem.

Marvin Farber (University of Buffalo)

Nota Biográfica

Marvin Farber (1901-1980) foi um filósofo americano (nascido em Buffalo, New York). Graduado summa cum laude em Filosofia pela Harvard University, estudou em Berlim, Freiburg e Heidelberg, entre 1922-1924, período em que entrou em contato com Husserl. Em 1925, obteve seu Doutorado em Harvard com a tese Phenomenology as a Method and as a Philosophical Discipline. Ao lado de Dorion Cairns foi um dos pioneiros na introdução da Fenomenologia nos Estados Unidos. Professor Emérito na Universidade de Buffalo, entre 1937-1961, fundou – em 1940 – a revista Philosophy and Phenomenological Research, um dos mais respeitados journals de sua área, sendo seu Editor até 1980. Anteriormente, em 1939, fundou a International Phenomenological Society. Publicou Phenomenology as a Method (1928), The Foundation of Phenomenology (1940), Naturalism and Subjectivism (1959) e The Search for an Alternative: Philosophical Perspectives of Subjectivism and Marxism (1984, póstuma).

Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)

Revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)

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Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)

Título: Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista

Autor: Nayara Queiroz Mota de Sousa

Instituição: Universidade Católica de Pernambuco

Programa: Mestrado em Direito

Banca: Sergio Torres Teixeira (Orientador) Sandra Souza da Silva Chaves (UFPB) (Co-Orientadora) Virginia Colares Soares Figueiredo Alves (Unicap) Marcelo Labanca Correia de Araújo (Unicap) Luciana Grassano de Gouveia Melo (UFPE)

Defesa: 17 de fevereiro de 2010

Resumo: O Poder Judiciário exerceu uma grande influência na formação do Estado brasileiro, o que ressaltou o papel da classe jurídica dentro da sociedade. Como juristas, os magistrados tiveram uma grande influência na elaboração da estrutura e organização estatal o que lhes renderam um enorme prestígio e poder dentro do meio social. Esta característica associada à luta pela independência e profissionalização da categoria gerou um distanciamento dos juízes com os cidadãos, sendo que a formação da magistratura baseada no método cartesiano de fazer ciência, que não acompanhou as transformações sociais trazidas pela modernidade, aprofundou ainda mais este afastamento, gerando uma insatisfação com a atuação do Poder Judiciário, inclusive no ramo trabalhista. O aumento da conflituosidade provocado pelas modificações implantadas no mundo moderno exige respostas rápidas e efetivas do Poder Judiciário, como pacificador social. Neste panorama, os meios de solução de conflitos devem ser privilegiados, que além de desafogarem a máquina judiciária, resolvem a contenda no seio social. A conciliação vem sendo estimulada como melhor e mais rápida solução para as ações judiciais, portanto precisa ser aprimorada. A humanização da atuação jurisdicional se apresenta como alternativa para aproximar o Poder Judiciário do cidadão e auxiliar na missão de pacificação dos conflitos, pois promete o aperfeiçoamento da pessoa para melhor conviver em sociedade, em um momento em que o isolamento e as contradições parecem atingir o homem moderno. O presente trabalho objetivou identificar o sentido da relação estabelecida em audiência entre o magistrado e as partes, através de uma pesquisa fenomenológica existencial, utilizando como instrumento metodológico, a versão de sentido, para a coleta de dados. Os resultados e discussão demonstram que das falas dos magistrados e dos jurisdicionados emergiram eixos de significados que revelam o sentimento de cada pesquisado, inclusive com tematizações específicas dos Juízes; eixos que se comunicavam nas vivências dos reclamantes e dos reclamados e outros que são peculiares a cada parte em específico. Analisando estas unidades de significações se podem traçar conexões com a revisão da literatura que evidenciaram a necessidade de aperfeiçoar a atividade jurisdicional e promoveram uma reflexão sobre as posturas adotadas na atuação do Poder Judiciário Trabalhista da Paraíba. Conclui-se com a sugestão de uma nova perspectiva para humanizar a tentativa conciliatória, adotando os fundamentos da Abordagem Centrada na Pessoa para qualificar este ato jurisdicional e implantar dentro da Justiça do Trabalho uma conciliação humanista.

Palavras-chave: Conciliação Humanista. Justiça do Trabalho. Pesquisa Fenomenológica. Versão de Sentido. Abordagem Centrada na Pessoa.

Abstract: The Judiciary has exercised a great influence on the formation of the Brazilian state, which emphasized the role of the judicial profession in society. As jurists, the judges

DISSERTAÇõES E TESES

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Nayara Q. M. Sousa

had a great influence in developing the structure and the state organization that earned them enormous prestige and power within the social environment. This feature associated with the struggle for independence and professionalism of the category generated a distance of judges with the public, and training for the judges based on the Cartesian method of doing science, which not accompanied the social changes brought by modernity, has enlarged this distance, generating a dissatisfaction with the performance of the Judiciary, including the labor sector. The increased conflictuality that caused by the changes implemented in the modern world requires rapid and effective responses of the judiciary, social as peacemaker. In this scenario, the means of conflict resolution should be privileged, that beyond the Judiciary of relief, resolve the dispute within society. Reconciliation has been promoted as the best and quickest solution to the lawsuits, so they need to be improved. Humanizing is an alternative approach to the judiciary of the citizen and helping in the mission of pacifying the conflict, for it promises the improvement of the person to cope better in society, in a time when the isolation and the contradictions seem to reach the modern man. This study aimed to identify the direction of the relationship between the judge and the parties, through an existential phenomenological research, using as a methodological tool, the version of meaning, to collect data. Results and discussion show that the speech of judges and parties of the axes of meanings emerged that reveal the feelings of each search, including specific thematizations Judges; axes that are communicated in the experiences of the parties and others axes which are peculiar to each part in particular. Analyzing these units of meaning they can trace connections to the literature review, highlighting the need to improve the judicial activity and promote a reflection on the postures adopted in the Judiciary of the Paraiba. This Search concluded by suggesting a new perspective to humanize the conciliatory attempt, taking the fundamentals of the Person Centered Approach to qualify and deploy the conciliation within the Judiciary proposing the conciliation a humanist.

Keywords: Reconciliation Humanist. Judiciary. Phenomenological Research. Version of Sense. Person Centered-Approach.

Texto completo: http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/4/TDE-2011-06-07T155431Z-395/Publico/dissertacao_nayara_queiroz.pdf

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“A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação (2011)

Título: “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação

Autor: Erico de Lima Azevedo

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa: Mestrado em Filosofia

Banca: Mário Ariel González Porta (Orientador)

Defesa: 20 de maio de 2011

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma das mais importantes e intricadas obras do filósofo alemão Edmund Husserl: “A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental”, de 1936. Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento de Husserl por causa da elaboração do conceito de “mundo-da-vida” (Lebenswelt), mas, além disso, o texto contém uma dimensão adicional, igualmente inovadora: é a primeira publicação na qual Husserl toma expressamente uma posição sobre a história e na qual trata o problema da historicidade da filosofia, empreendendo longas análises “histórico-teleológicas”. Porém, antes de compreender porque é possível falar de uma crise das ciências, porque, para Husserl, a lógica, a matemática e a física ainda precisassem de um fundamento último, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia seja a ciência capaz de prover este fundamento, o primeiro passo é compreender a sua noção de “ciência”. As análises histórico-teleológicas ocupam uma posição de destaque na última grande obra de Husserl, correspondendo ao próximo passo “lógico”: demonstrar “como”, historicamente, tenham-se construído os equívocos da filosofia e da ciência. Husserl analisa a teleologia ínsita no percurso histórico da filosofia na busca de um fundamento definitivo, o qual, não fora corretamente capturado pelas duas principais posições da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo transcendental. Tal percurso conduz a filosofia à necessidade de uma tarefa específica, que é a fenomenologia. Esta é chamada a realizar o empreendimento de uma análise intencional da consciência constitutiva do mundo, a qual desvelará pela primeira vez como tema filosófico o “mundo-davida”, o qual surge como fundamento de todas as ciências: filosofia, lógica, matemática, ciências naturais etc. O trabalho faz então uma revisão de parte da vasta literatura acerca da noção de “mundo-da-vida”, seguindo as minuciosas considerações de alguns autores: segundo a perspectiva da evolução da idéia de “mundo” na obra de Husserl, segundo a constituição intersubjetiva do mundo e o relativismo histórico, mas também segundo a consideração do problema filosófico do “mundo-da-vida” enquanto um universo de ser e de verdade, apresentando, por fim, uma análise segundo a perspectiva da totalidade da vida intencional. No que se refere ao problema das “vias” para a redução fenomenológica transcendental, que ocupa a terceira parte da obra, analisamos apenas a via por meio da reconsideração do “mundo-da-vida” já dado, deixando a via da “psicologia” para uma investigação futura.

Palavras-chave: Husserl. Mundo da Vida. Crise das Ciências. Fenomenologia Transcendental.

Abstract: The present study aims to present one of the most important and difficult works of the German philosopher Edmund Husserl “The crisis of European sciences and transcendental phenomenology”, 1936. It is a significant work in Husserl’s development because he evolves the concept of “life-world” (Lebenswelt), but, besides, the text also reveals another novelty dimension: this is the first work in which Husserl takes expressly a position about history and deals with the problem of historicity of philosophy, doing long “historical-teleological” analysis. However, before understanding why it

DISSERTAÇõES E TESES

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Erico L. Azevedo

is possible to declare a “crisis of sciences”, why, for Husserl, logic, mathematics and physics were still in need of a last grounding and, finally, why philosophy is the science capable of providing such grounding, it is necessary to pay special attention to his notion of science. The historical-teleological analysis play, indeed, an outstanding role in the last great work of Husserl, corresponding to the next logic step: to show “how”, historically, the mistakes of philosophy and science have been possible. Husserl analyses the intrinsic teleology of the history of philosophy in the search for its own grounding, which was not correctly captured by both of main positions of modern philosophy: physicalistic objectivism and transcendental subjectivism. Such path leads philosophy to the need of a specific task, which is phenomenology. This is called to accomplish an authentic and consistent intentional analysis of the consciousness that constitutes the world, revealing for the first time as a philosophical theme the “life-world”, which appears then as the grounding soil for all sciences: philosophy, logic, mathematics, natural sciences etc. The study then performs a revision of part of the literature regarding the concept of “life-world”, following detailed considerations of a few important critics: in the perspective of the evolution of the idea of “world” in Husserl’s texts, in the perspective of intersubjective constitution of the world and historical relativism, but also in the perspective of a “universum of being and truth”, and finally, in the perspective of the totality of intentional life. Regarding the problems of the “ways” into transcendental philosophy, corresponding to the third part of the text, we have analysed in this study only the way by inquiring back from the pregiven life-world, while the way from psychology was left for a future investigation

Keywords: Husserl. Life-world. Crisis of sciences. Transcendental Phenomenology.

Texto completo: http://www.ontopsicologia.org.br//arquivos/download/a_crise_das_ciencias_eurpeias_ e_a_fenomenologia_transcendental_de_edmund_husserl__uma_apresentacao.pdf

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NORMAS DE pUbLICAÇÃO DA REvISTA DA AbORDAGEM GESTÁLTICA

A REVISTA DA ABoRDAGEM GESTÁlTICA, edita-da pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT), foi criada com o objetivo de ser um veículo de publicação preferencialmente da Abordagem Gestáltica, bem como daquelas abordagens que se fundamentam em bases teórico-científicas e filosó-ficas dentro das perspectivas humanistas e existenciais, além das pautadas na Fenomenologia. As suas diretrizes são definidas pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos quais participam psicólogos, filósofos e profissionais das áreas da saúde e educação.

Assim, sua linha editorial procura privilegiar refle-xões – numa perspectiva multiprofissional e interdisci-plinar – em torno dos seguintes temas: a) Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica; b) Psicologia Humanista e Existencial; c) Psicologias e Psicoterapias de orientação Fenomenológica e Existencial; d) Fenomenologia pura e aplicada; e) Pesquisa Qualitativa e Fenomenológica.

Serão aceitos para apreciação artigos centrados na pesquisa e na produção do conhecimento relativos às abordagens citadas, que remetam à reflexão crítica da atuação do psicólogo ou de outros profissionais que as utilizam no seu exercício profissional. Poderão ser arti-gos teóricos ou empíricos, que envolvam temáticas rela-cionadas à saúde, educação, humanidades, filosofia ou ciências sócio-antropológicas, refletindo assim a pers-pectiva holística da abordagem gestáltica.

1. Informações Gerais

Os manuscritos serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial para realização de parecer técnico (em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou mais, quando necessário). A editoria da revista lançará mão (caso necessário) de especialistas convidados – na qualidade de consultores ad hoc – que poderão sugerir modificações antes de sua publicação.

A editoração da Revista da Abordagem Gestáltica as-segura o anonimato dos autores e dos consultores durante o processo de avaliação. Serão consideradas a atualidade e a relevância do tema, bem como a originalidade, a con-sistência científica e o atendimento às normas éticas.

Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à psicologia, filosofia, educação, ciências da saúde e só-cio-antropológicas, e se enquadrarem nas categorias que se seguem:

Relato de pesquisa – relato de investigação concluída ou em andamento, com uso de dados empíricos, meto-

dologia, resultados e discussão dos dados. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Estudo teórico – análise de fatos e idéias publicados so-bre um determinado tema. Busca achados controvertidos para crítica e apresenta sua própria interpretação das in-formações. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Relato de experiência – estudo de caso, contendo análise de implicações conceituais ou descrição de proce-dimentos ou estratégias de intervenção, incluindo evidên-cia metodologicamente apropriada de avaliação de eficá-cia, de interesse para a atuação de psicólogos em diferen-tes áreas. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.

Estudo monográfico – apresenta trabalho desenvolvi-do em atividade acadêmica pelo autor, como especializa-ção, mestrado ou doutorado. Limitado a 10 laudas.

Ensaio – interpretação original de algum tema que contribua criticamente para o aprofundamento do conhe-cimento. Limitado a 5 laudas.

Resenha – análise de obra recentemente publicada (no máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.

Resenha (textos clássicos) – análise de obra conside-rada relevante para a abordagem, publicada há mais de dez anos. Limitada a 5 laudas.

Ressonância – comentários e/ou réplicas de publi-cações de números anteriores deste periódico. Limitada a 5 laudas.

Perfil – breve biografia de pessoa que tenha contri-buído para o desenvolvimento da abordagem gestáltica, humanista, existencial ou fenomenológica. Limitado a 5 laudas.

Notícias – registro de fatos ou eventos relacionados à comunidade gestáltica. Limitada a 3 laudas.

Resumo de tese e dissertação – conforme apre-sentado na tese/dissertação defendida. Limitado a uma lauda.

2. Instruções para publicação

Os manuscritos submetidos à publicação devem ser inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista, não sendo permitida a sua apresentação simultânea em outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceris-tas, pares especialistas na temática proposta.

Os manuscritos deverão ser enviados via e-mail ([email protected]), conforme especificações disponíveis no site da revista (www.revistagestalt.com.br). Deverá ser encaminhado também um mini-currículo contendo as se-guintes informações: nome completo do(s) autor(es), afi-

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liação institucional, títulos e/ou cargos atuais, endereço eletrônico e endereço para correspondência.

Não serão admitidos acréscimos ou alterações após o envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo os sugeridos por este.

As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exa-tidão e adequação das Referências Bibliográficas são de exclusiva responsabilidade dos autores.

A publicação dos trabalhos dependerá da observân-cia das normas da Revista da Abordagem Gestáltica e da apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de ple-na autoridade para decidir sobre a conveniência da sua aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos autores para as alterações necessárias.

Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma de-claração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado (Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cum-primento de tais exigências não serão publicados.

Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a re-cusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem aproveitados, não serão devolvidos.

3. formas de apresentação dos manuscritos

A Revista da Abordagem Gestáltica adota normas de publicação baseadas no Publication Manual of the American Psychological Association (APA) – 5ª edição, 2001.

Os manuscritos deverão ser preferencialmente redi-gidos em português. A critério do Conselho Editorial, também serão aceitos manuscritos redigidos em inglês, francês ou espanhol.

Os trabalhos deverão ser digitados em Programa Word for Windows, em letra Times New Roman, tama-nho 12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de 2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máxi-mo de laudas, de acordo com o tipo de publicação dese-jada (ver Informações gerais), observadas as seguintes especificações:

a) Cabeçalho - é recomendado que o título do artigo seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em ne-grito. A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.

b) Os nomes completos dos autores deverão apa-recer abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com alinhamento à direita, indicando, após as Referências Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos auto-res, local de atividade e e-mail (se houver).

c) Epígrafe - deverá ser apresentada em letra normal, em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali-

nhamento à direita. O nome do autor da epígrafe deverá aparecer em itálico, seguido da referência da obra.

d) Resumo e Palavras-chave - deverão ser redigidos em português, inglês e espanhol, em parágrafo único, espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200 palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun-damental do trabalho. Para a sua determinação, consultar a lista de Descritores em Ciências da Saúde – elaborada pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehen-sive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula. Incluir também descritores em inglês (keywords) e espa-nhol (Palabras-clave).

e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referen-tes a pesquisas e relatos de experiência deverão conter introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclu-são. O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor deverão vir em itálico.

f) Adotar a seguinte padronização de palavras - Gestalt-terapia ou Gestalt-terapia, gestalt-terapeu-ta, Abordagem Gestáltica, Psicologia da Gestalt ou Gestalt-Psychologie. Verificar excesso de espaço entre as palavras.

g) Subtítulos - deverão ser colocados sempre no ali-nhamento da margem esquerda do manuscrito, em ne-grito, apenas com as letras iniciais de cada palavra em maiúsculas.

h) Ilustrações - figuras, quadros, tabelas, desenhos e gráficos deverão ser indicados em números arábicos, com legenda em letras maiúsculas, título em minúscu-las, sem grifo.

i) Nomenclaturas e Abreviaturas - usar somente as oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indica-ção entre parênteses na primeira vez em que aparecem no manuscrito, precedida da forma por extenso.

j) Notas de rodapé - deverão ser numeradas em or-dem crescente e restritas ao mínimo indispensável.

l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as nor-mas da APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição in-tegral de um texto com número inferior a quarenta pala-vras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre aspas duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do autor e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser destacada em bloco próprio, começando em nova linha, sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo ali-nhado com a primeira linha do parágrafo normal. O ta-manho da fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear 1,5, como no restante do manuscrito. A citação destacada deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e outra abaixo da mesma

m) Referências Bibliográficas - denominação a ser utilizada. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências

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Bibliográficas deverá estar alinhado à esquerda. As refe-rências deverão seguir normas da APA (5ª edição, 2001). A fonte deverá ser formatada em tamanho 12, espaçamen-to interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o re-cuo “deslocamento”. Verificar se todas as citações feitas no corpo do manuscrito e nas notas de rodapé aparecem nas Referências Bibliográficas e se o ano da citação no corpo do manuscrito confere com o indicado na lista final.

n) Anexos - usados somente quando indispensáveis à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo de páginas (serão computadas como parte do manuscri-to) e localizados após Referências Bibliográficas.

4. Tipos comuns de citação no manuscrito

Citação de artigo de autoria múltipla

a) dois autoresO sobrenome dos autores é explicitado em todas as

citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi inicialmente proposto para o estudo da visão (Siqueland & Delucia, 1969)”

b) de três a cinco autoresO sobrenome de todos os autores é explicitado na pri-

meira citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994) verificaram que”. Da segunda citação em diante, só o so-brenome do primeiro autor é explicitado, seguido de “et al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita o ano: “Spielberg et al. verificaram”

Caso as Referências e a forma abreviada produzam aparente identidade de dois trabalhos em que os co-auto-res diferem, esses são explicitados até que a ambigüidade seja eliminada. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein, A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C., Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z. (1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al. (1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986).

Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de todos os autores devem ser relacionados.

c) de seis ou mais autoresDesde a primeira citação, só o sobrenome do primei-

ro autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse formato gerar ambiguidade, caso em que a mesma solução indicada no item anterior deve ser utilizada: “Rodrigues et al. (1988).”

Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas todos os nomes são relacionados.

Citações de trabalho discutido em uma fonte secun-dária

Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exem-plo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”

Na seção de Referências Bibliográficas, informar ape-nas a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o for-mato apropriado.

Citações de obras antigas reeditadas

a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou mui-to antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”: “Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).

b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do au-tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou (Aristóteles, versão 1931).

c) Quando a data original e a consultada são diferen-tes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)” ou (Pavlov, 1904/1980).

Citação de comunicação pessoal

Este tipo de citação deve ser evitada, por não ofere-cer informação recuperável por meios convencionais. Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na se-ção de Referências Bibliográficas, com a indicação de “comunicação pessoal”, seguida de dia, mês e ano. Ex.: “C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de 1994).”

5. Seção de Referências bibliográficas

Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do mesmo autor, organize pela data de publicação, em ordem cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recen-te. Referências com o mesmo primeiro autor, mas com di-ferentes segundos ou terceiros autores, devem ser organi-zadas por ordem alfabética dos segundos ou terceiros au-tores (ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxi-liam na organização do manuscrito, mas certamente não esgotam as possibilidades de citação. Utilize o Publication Manual of the American Psychological Association (2001, 5ª edição) para suprir possíveis lacunas.

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Exemplos de tipos comuns de referência

Relatório técnico

Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of chil-dren with written language disabilities (relatório n. 81-1502). Washington, DC: National Education Association.

Trabalho apresentado em congresso, mas não publicado

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disre-spect and culture: moral judgement of victimless violations in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião Anual (Annual Meeting) da Society for Cross-Cultural Research, Isla Verde, Puerto Rico.

Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em publicação seriada regular

Tratar como publicação em periódico, acrescen-tando logo após o título a indicação de que se trata de resumo.

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um curso para melhorar a capacidade de julgamentos corre-tos de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.

Trabalho apresentado em congresso com resumo publicado em número especial

Tratar como publicação em livro, informando sobre o evento de acordo com as informações disponíveis em capa.

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e deci-são: A teoria da maximização momentânea [Resumo]. Em Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de co-municações científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia (p. 66). Ribeirão Preto: SBP.

Teses ou dissertações não-publicadas

Costa, L. (1989). A família descasada: interação, competên-cia e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília.

Livros

a) primeira edição:

Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Zahar.

b) obra reeditada:

Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos. Rio de Janeiro: Agir (originalmente publicado em 1790).

Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis: uma contribuição da Análise do Comportamento para o de-senvolvimento de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André: ESETec.

Capítulo de livro

Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W. K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behav-ior (p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.

Livro traduzido em língua portuguesa

Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em outra língua é usada como fonte, citar a tradução em por-tuguês e indicar ano de publicação do trabalho original.

Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de co-nhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas (Trabalho original publicado em 1990).

No texto, citar o ano da publicação original e o ano da tradução: (Salvador, 1990/1994).

Artigo em periódico científico

Informar volume do periódico, em seguida, o número entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reini-ciada a cada número.

Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differ-ences in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3), 201-210.

Obra no prelo

Não deverão ser indicados ano, volume ou número de páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a ordem de nomes, é a ultima referência do autor.

Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira de Sexualidade Humana.

Autoria institucional

American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a ed. revisada). Washington, DC: Autor.

Artigos consultados na mídia eletrônica

Sanches, M. & Jorge, M.R. (2004). Transtorno Afetivo Bipolar: Um enfoque transcultural, Revista Brasileira de Psiquiat r ia [on l ine]. Vol. 26, supl.3, p. 54-56. Acesso em 05 de julho de 2006, em http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462004000700013&lng=pt&nrm=iso.

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6. Direitos autorais

Artigos publicados na Revista da Abordagem Gestál-tica

Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à Revista da Abordagem Gestáltica. A reprodução total dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para quaisquer outros fins, está condicionada à autorização escrita do Editor da Revista da Abordagem Gestáltica. Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os ar-tigos por ela publicados (partes do texto que excederem 500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deve-rão obter permissão escrita dos autores.

Reprodução parcial de outras publicações

Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações deverão obedecer aos limites especificados para garantir a origi-nalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações.

O manuscrito que contiver reprodução de uma ou mais figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações só será encaminhado para análise, se vier

acompanhado de permissão escrita do detentor do direi-to autoral do trabalho original, para reprodução especi-ficada na Revista da Abordagem Gestáltica. Tal permis-são deve ser endereçada ao autor do trabalho submetido à apreciação.

Em nenhuma circunstância, a Revista da Abordagem Gestáltica e os autores dos trabalhos publicados poderão repassar a outrem os direitos assim obtidos.

7. Endereço para encaminhamento

Toda correspondência para a revista deve ser ende-reçada para:

Editor

Revista da Abordagem GestálticaInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT)

Rua 1.128 nº 165 - St. MaristaGoiânia-GO CEP: 74.175-130

Comunicações rápidas podem também ser efetuadas por telefone (62) 3941.9798 ou fax (62) 3942.9798 – ou pelo endereço eletrônico: [email protected]. Outras informa-ções podem ser obtidas no site: www.itgt.com.br