revista da procuradoria-geral do município de porto...
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Revista da Procuradoria-Geral
do Município de Porto Alegre
Revista da
Procuradoria-Geral
do Município
de Porto Alegre
Nº 24 - Porto Alegre - Dezembro 2010
Centro de Estudos de Direito Municipal
Maren Guimarães Taborda (Org.)
Jessica Buchmann
Comissão Editorial
Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira
Cristiane da Costa Nery
Carmen Lúcia Barros Petersen
Laura Antunes de Mattos
Maren Guimarães Taborda
Vanêsca Buzelato Prestes
Colaboradores
Agueda Reny M. G. Pahim
Jessica Buchmann
Lea Marilda Dornelles Viero
Maria Teresa Zatti
Ronaldo Osmar Bellini
Rafael Puntel de Castro
Sônia Mara Rosa de Castilhos
Sônia Teresinha Rodrigues Rosa
Conselho Editorial da Revista (Nacional)
Alexandra Giacomet Pezzi
Almiro do Couto e Silva
Araken de Assis
Celso Antonio Bandeira de Mello
Cézar Saldanha Souza Júnior
Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira
Eros Roberto Grau
João Batista Linck Figueira
Judith Hoffmeister Martins Costa
Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Maren Guimarães Taborda
Conselho Editorial da Revista (Internacional)
Gabriel Ferrer (Espanha)
Joaquín-Garcia Huidobro (Chile)
Vasco Manuel Pereira da Silva (Portugal)
P454 Revista da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre/Prefeitura
Municipal de Porto Alegre - Porto Alegre CEDIM, nº 24 dezembro 2010, 266 p.
1. Direito: Rio Grande do Sul: Periódicos 2.Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Procuradoria Geral do
Município. Centro de Estudos de Direito Municipal.
CDD 340.581651
Catalogação na publicação: Carmem Lucia Menezes Thober CRB 10/630
Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães
Prefeito
José Fortunati
Procurador-Geral
João Batista Linck Figueira
Procurador-Geral Adjunto de Pessoal,
Contratos e Serviços Públicos
Marcelo Kruel Milano do Canto
Procurador-Geral Adjunto de Domínio Público,
Urbanismo e Meio-Ambiente
Simone Somensi
Procurador-Geral Adjunto de Assuntos Fiscais
Cristiane Nery
Corregedoria-Geral
Vanêsca Buzelato Prestes
Gamaliel Valdovino Borges
Agueda Reny Pahim
Sônia Teresinha Rodrigues Rosa Martins
Chefe de Gabinete
Maria Elizabeth Rosa Pereira
Coordenadora Administrativo-Financeira
Sônia Mara Rosa de Castilhos
Assessoria Especial de Assuntos
Legislativos e Institucionais
Carlos Eduardo da Silveira
Cauê Vieira da Silva
Assessoria Técnica Especial
Luís Maximiliano Leal Telesca Mota
Edson Duarte do Nascimento
Rafael Puntel de Castro
Prefeitura de Porto Alegre
Procuradoria-Geral do Município
Procuradoria de Licitações e Contratos
Carmem Lúcia de Barros Petersen
Carin Simone Prediger
Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira
Fernanda Biachi
Jorge Augusto Garcia Pacheco
Leila Maria Reschke
Inês Terezinha Voges Prevê
Jeremias Soares de Mello
Procuradoria de Pessoal Celetista
Rogério Scotti do Canto
Marcia Moura Lameira
Nelson Nemo Franchini Marisco
Pedro Luis Martins
Felipe Ferraz Merino
Luis Henrique Denaui de Almeida
Adriana do Socorro Peralta dos Santos
Daniela Dornelles Balreira
Procuradoria de Pessoal Estatutário
Edmilson Todeschini
Alexandre Molenda
Carmem Regina Vilar Dugacsek
Heron Nunes Estrella
Clarissa Cortes Fernandes Bohrer
Márcia Leipnitz Rauber
Jacqueline Brum Bohrer
Gabriela Reinisch
Sérgio Júnior da Cunha Farias
Procuradoria de Serviços Públicos
Cláudia Padaratz
Alexandra Cristina Giacomet Pezzi
Caren Vasata
Rogério Quijano Gomes Ferreira
Carlos Roberto da Costa Aquines
Luis Fernando Pinheiro
Procuradoria de Patrimônio e Domínio Público
Mauro de Almeida Canabarro
André Santos Chaves
José Luiz Alimena
Eduardo Silva de Oliveira
Jacqueline Maria de Oliveira do Couto e Silva
Joicineli Fagundes de Oliveira Becker
Rafael Jostmeier Vallandro
Comissão Permanente de Inquérito
Leila Maria Reschke
Paulo Ricardo Rama
Agueda Reny Pahim
Luciano Saldanha Varella
Procuradoria de Urbanismo, Meio-ambiente e Regularização
Fundiária
Giovani Carminatti,
Ana Luísa Soares de Carvalho
Andrea Teichmann Vizzotto
Eleonora Braz Serralta
Laura Antunes de Mattos
Rosana Vieira Kuhn
Procuradoria da Dívida Ativa
Bethânia Regina Pederneiras Flach
André Kaminski
Armando José da Costa Domingues
Cibele Aline Volkmann
Janine Giongo
Luis Antonio dos Reis Vizeu
Marcelo Dias Ferreira
Ricardo Hoffmann Muñoz
Caroline Lengler
Giovani Kerber Jardim
Fátima Rejane Kluge Correa
Cesar Emílio Sulzbach
Sidnei Borges Silva
Ismael Silva Correa de Oliveira
Carolina Dalenogare Vaz
Luiz Carlos Niemczewski Júnior
Luis Fernando Oliveira dos Santos
Priscila de Oliveira Machado
Rachel Abramson Schostack
Lea Marilda D. Viero
Nádia Munhos de Campos
Sandra Maria Barbosa Damas
Marcelo Santos da Silva
Ronaldo O. Bellini
Procuradoria Tributária
Andrea Maria da Silva Correa
André George Freire da Silva
Fernando Vicenzi
Cláudio Hiran Alves Duarte
Laerte Marta de Oliveira
Napoleão Correa de Barros Neto
Sylvio Roberto Correa de Borba
Simone dos Santos Nunes
Rosa Maria Godoy Martins
Cândida Castro
Eduardo Woltmann
Procuradoria de Assistência e Regularização Fundiária
Cândida Silveira Saibert
Simone Santos Moretto
Márcia Lima
Maria Etelvina Bergamaschi Guimaraens
Paulo de Tarso Vernet Not
Tami Teixeira Aso
Carlos Antonio Chemello
Luciano Saldanha Varela
Maria Salette Cademartori de Moura Jardim
Guilherme Alfredo Kleinschmitt
Jaqueline Correa da Silva
Mariluci Zancan
Gerência de Aquisições Especiais
Cláudia de Aguiar Barcellos
Ariza Trindade Tavares
Gerência de Precatórios e Contencioso Administrativo
Eduardo Gomes Tedesco
Coordenação Administrativo-Financeira
Alexandre Oliveira Casagrande
André Luiz Elias
Tatiana Porto Ramos
Voltaire Cerqueira Michele
Gerência de Apoio Administrativo
André Sarmento
Cíntia Duarte Nascimento
Karin Aline Coelho dos Santos
Inês Maria Francisco de Araújo
Lauri Antonio Gnatta
Luciana Regina Molinetti
Manoel Jerônimo Fraga da Rosa
Recursos Humanos
Igor da Rocha Dimer
Hadassa Ribeiro Manna
Gerência de Serviços Gerais
Nádia Terezinha Soares da Rosa
Hélio Argimir Gonçalves de Oliveira
Biblioteca
Ercilda Bernadete Baguinski
Gerência de Cadastro e Distribuição
Greice Carin do Canto Atkinson
Sumário
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................... ......................... 9
ARTIGOS E ESTUDOS ............................................................................................................................... .............. 11
O postulado da imparcialidade e a independência do magistrado no Civil Law ............................ 13
Ana Paula Oliveira Ávila
O paradigma jurídico aplicável ao adimplemento das obrigações no novo Código Civil .................. 35
Arthur M. Ferreira Neto
Paisagem Urbana e Dano Ambiental Estético:
As cidades feias que desculpem, mas a beleza é direito fundamental ............................................... 59
Flávia de Sousa Marchezini
O código civil argentino e a determinação do conceito de estatuto pessoal:
Da contraposição entre Actio e Vindicatio aos direitos sujetivos ...................................................... 83
Maren Guimarães Taborda
Los derechos de reunión y asociación en el convenio europeo de derechos humanos ..................... 97
Miguel Ángel Presno Linera
O direito natural aplicado ao homem do futuro:
Uma (re)formulação dos direitos de personalidade no código civil,
suas implicações frente às nanotecnologias ........................................................................................ 113
Nelson Nemo Franchini Marisco
Formas não tributáveis de financiamento das cidades ....................................................................... 129
Vanêsca Buzelato Prestes1
PARECERES E INFORMAÇÕES ............................................................................................................................... . 147
Valor da FG de servidor cedido ao Legislativo Municipal ................................................................... 149
Edmilson Todeschini
Concurso Público nº 333 - Biólogo .............................................................................................. .......... 157
Alexandra Cristina Giacomet Pezzi
Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/2000 e Decreto Nº 5.296/2004 ...................... 163
Vanêsca Buzelato Prestes
Exigência de multa prévia para fins de admissibilidade de recurso administrativo ...................... 171
Eleonora Braz Serralta
Regularização urbanística do projeto de assentamento da área destinada aos Kaigangues .......... 185
Vanêsca Buzelato Prestes
MUNICÍPIO EM JUÍZO ............................................................................................................................... ............ 191
Ação civil pública. Contratação de cooperativa. Contrato de prestação de serviços.
Relação entre associado e cooperativa. Terceirização ........................................................................... 193
Rogério Scotti do Canto
Honorários advocatícios na fase de execução de sentença ante a nova
sistemática do CPC – Definição do STJ ................................................................................................... 235
Cristiane da Costa Nery
Transporte escolar – Competência e discricionariedade do gestor municipal .................................... 243
Cristiane da Costa Nery
V Congresso de Procuradores das Capitais Brasileiras .......................................................................... 259
Apresentação
A Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre apresenta mais uma edição de sua
revista cientifica, com as tradicionais seções de Artigos e Estudos, Pareceres, Município em Juízo
e Enunciados do Congresso de Procuradores das Capitais Brasileiras.
Na presente edição, refletem-se os resultados alcançados, no ano de 2010, tanto na política
de qualificação técnica dos servidores da PGM, quanto na orientação da atuação da Administração
Municipal, uma vez que a missão institucional da Casa é não só garantir a legalidade da
Administração Municipal, mas também a legitimidade democrática, pois é nosso trabalho
diuturno o estreitamento da relação entre governantes e governados, tendo como paradigma a
busca do que é melhor para a nossa população – razão última da existência do Estado e da
Administração comprometida com o serviço público.
Daí, a tradicional seção “Artigos e Estudos” conta com produção científica “da Casa” e
de colaboradores externos, pessoas que têm ajudado a PGM a pensar a cidade não só como o
ambiente urbano que demanda a intervenção organizada e planejada, mas como um conjunto de
relações, como o locus próprio de exercício da cidadania e da proteção da dignidade da Pessoa
Humana, enfim, da “luta por reconhecimento”. É no reconhecimento jurídico que um homem é
respeitado em virtude da propriedade que faz dele uma pessoa de direito, capaz de participar do
processo democrático da formação da vontade. A própria ampliação sucessiva de direitos
fundamentais, obtida pela luta social por igualdade, ampliou o status objetivo de uma pessoa,
dotando-a de novas atribuições e estendendo tais atribuições a um número sempre crescente de
membros da sociedade. Com isso, o Direito ganhou novos e as relações jurídicas foram universalizadas,
sendo paulatinamente adjudicadas àqueles grupos que até então estavam excluídos ou desfavorecidos.
Daí, dos confrontos práticos surgidos por conta da experiência do reconhecimento denegado ou do
desrespeito, amplia-se tanto o conteúdo material quanto o alcance social do status de uma pessoa
de direito. Na experiência do reconhecimento jurídico, uma pessoa será capaz de se considerar
digna de respeito e de auto-respeito, se, e tão somente ela partilhar com todos os outros membros
da comunidade as propriedades que a capacitam a participar na formação da vontade política.
Assim, no primeiro artigo, a colega, professora titular de Direito Constitucional da
UNIRITTER, Ana Paula Oliveira Ávila, trata da imparcialidade e independência do juiz como
elementos essenciais do que se compreende por Estado Democrático de Direito. No segundo
texto, Arthur M. Ferreira Neto, professor de Filosofia do Direito na PUCRS e advogado, trata do
tema das obrigações no Novo Código Civil, discutindo, precisamente, a mudança do paradigma
jurídico que a nova codificação adota, qual seja o de que a experiência jurídica é fenômeno humano
historicamente relevante e axiologicamente orientado.Por conseguinte, encerra o Código Civil a
noção de pessoa concretizada e circunstancializada e de relação jurídica como a convergência de
interesses integrados e harmonizáveis em busca de uma finalidade comum a ser atingido mediante
cooperação e lealdade. Por sua vez, a colega, Procuradora do Município de Vitória, Flávia de
Sousa Marchezini, também professora de Direito Administrativo e de Direito Ambiental, nos
brinda com um trabalho que trata, especificamente, da paisagem urbana e do dano ambiental
estético, pugnando pela correta identificação das funções ambientais da paisagem urbana, da
delimitação de seus atributos estéticos e das graves consequências advindas da sua deterioração.
Afirma que as lesões a esse importante bem jurídico caracterizam-se como dano extrapatrimonial
ambiental, aferível tanto em seus aspectos individuais quanto difusos, passível, portanto, de
reparação. A Procuradora Maren Guimarães Taborda nos apresenta o texto integral de
comunicação feita em congresso científico, tratando da contribuição de Teixeira de Freitas à
codificação do direito civil argentino, uma vez que a mesma recepcionou, integralmente, a tese
segundo a qual a distinção entre direitos pessoais e direitos reais, chave de todas as relações civis,
é a organização externa do sistema imanente ao Direito. Em continuidade à tradição de intercâmbio
com outras instituições, trazemos à luz a preciosa colaboração do Professor Miguel Ángel Presno
Linera, titular da disciplina de Direito Constitucional na Universidade de Oviedo, que aborda os
direitos fundamentais de reunião e associação no marco do Convênio Europeu de Direitos
Humanos. Seguindo a linha de “pensar” o Direito no marco crítico-filosófico, o colega, Procurador
Nelson Nemo Franchini Marisco, Professor da UNISINOS, faz uma reflexão importante sobre a
(re)formulação dos direitos de personalidade no Código Civil de 2002 suas implicações frente às
nanotecnologias. Finalizando a seção, a Procuradora Vanêsca Buzelato Prestes trata das formas
não tributárias de financiamento das cidades, trabalho apresentado em diversos encontros
científicos, no qual afirma a possibilidade de utilização de instrumentos jurídicos que possam
angariar direta e indiretamente recursos para as cidades, com o fim de dar cumprimento às
competências constitucionais, demonstrando que os mesmos precisam ser utilizados na
perspectiva da gestão e não fragmentadamente, pois, a cidade é um todo.
Os Pareceres e informações, como de costume, foram selecionados seguindo-se critérios
das edições anteriores (temas que apresentam grande importância prática e/ou fazem discussão
teórica consistente). Daí que integram esta edição, pela ordem, pareceres sobre o valor da Função
Gratificada devida a servidor cedido ao Legislativo Municipal; o prazo de validade dos concursos;
as normas de acessibilidade como conteúdo da ordem urbanística; a exigência de multa prévia
para fins de admissibilidade de recurso administrativo e Regularização urbanística do projeto de
assentamento da área destinada aos índios Kaigangues.
Na seção Município em Juízo, apresentam-se casos exemplares da Procuradoria de Pessoal
Celetista e da Procuradoria de Serviços Públicos (ação civil pública que discutiu a contratação de
cooperativas; pagamento de honorários advocatícios na fase de execução de sentença; competência
e discricionariedade do gestor municipal no que tange ao serviço de transporte escolar).
Por fim, publicamos os Enunciados aprovados no VII Congresso de Procuradores das
Capitais Brasileiras, em razão da sempre destacada atuação dos procuradores de Porto Alegre.
A publicação é, portanto, a contribuição da Procuradoria-Geral do Município de Porto
Alegre para o debate nacional sobre o Direito Municipal, bem como sobre a discussão sobre o que
é “Direito” no País.
João Batista Linck Figueira
Procurador-Geral
Maren Guimarães Taborda
Coordenadora do CEDIM
Revista da
Procuradoria-Geral
do Município de Porto Alegre
Artigos e Estudos
O postulado da imparcialidade e a
independência do magistrado no Civil Law
Ana Paula Oliveira Ávila1
1
Mestre e Doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professora Titular de Direito Constitucional da Uniritter. Advogada em Porto Alegre.
14 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 15
Introdução
Os temas ora tratados, a imparcialidade e a independência do juiz, são questões
relevantes quando se busca compreender a natureza da função jurisdicional. Mais relevantes
ainda elas se tornam quando são analisadas através do filtro constitucional e, mais especificamente,
dos direitos fundamentais. Uma tal análise revelará, de modo incontrastável, que a imparcialidade
e a independência do magistrado atuam, de forma indissociável, na própria composição do que
se entende por Estado Democrático de Direito. Imparcialidade e independência são proposições
que estão na base do sistema de proteção efetiva dos direitos e garantias fundamentais, a ponto
de concluir-se que, no afastamento de uma delas, rompe-se a esfera de direitos juridicamente
reconhecida pelo Estado ao cidadão.
A análise que se pretende empreender da imparcialidade e da independência do
magistrado nesta ocasião está esteada nesta concepção: são proposições que se refletem na própria
realização do Estado de Direito, considerando-se duplo aspecto, o primeiro, relacionado à atividade
jurisdicional enquanto função estatal, e o segundo, relacionado ao próprio papel que a ordem jurídica
desempenha como instrumento de pacificação social, servindo de meio para a realização da justiça.
De qualquer sorte, esta forma de enfocar o problema se insere naquele espírito proposto pelos
estudos acerca das relações entre processo e Constituição, que parte do pressuposto de que o processo
não é uma mera técnica, mas sim, “instrumento de realização de valores e especialmente de
valores constitucionais”, impondo-se considerá-lo como “direito constitucional aplicado.”2
A
análise que aqui se intenta fazer da imparcialidade é justamente no sentido de não
“apenas conformar o processo às normas constitucionais, mas
de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional,
com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido
pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele
conduzido”.3
A presente análise divide-se em duas partes. Na primeira parte, analisa-se o conteúdo e a
natureza jurídica da imparcialidade, e, num amplo espectro, quais os princípios, direitos e garantias
constitucionais têm sua realização assegurada pela imparcialidade. Também neste primeiro capítulo
situa-se a garantia da independência do magistrado, ao lado de outras garantias, como o pressuposto
para o exercício imparcial da função jurisdicional. Na segunda parte, analisam-se as implicações
do reconhecimento da imparcialidade na relação processual, demonstrando-se como a
imparcialidade deve ser pressuposta para a efetividade das demais garantias processuais e dos
direitos fundamentais, cuja proteção constitui a tônica do Estado dos nossos dias.
2
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49),
nesta passagem fazendo referência a KONRAD HESSE.
3
Idem, ibidem.
16 Revista da PGM
I. O Conceito de Imparcialidade:
Imparcial é a qualidade de quem não é parte. A concepção jurídica de parte está
intimamente ligada a quem tem um interesse próprio. Imparcialidade implica a ausência de
interesse pessoal em determinada questão. Uma compreensão ampla de imparcialidade judicial
pressupõe que se reconheça na jurisdição uma função do Estado, que em CHIOVENDA vem definida
como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da
substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos
públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva.4
“Função” há de ser bem compreendida: “função é o exercício, no interesse de terceiro, de um
poder de que se dispõe exclusivamente para os efeitos de cumprir o dever de atender
determinada finalidade legalmente estabelecida. Isso é função. Ela não se confunde com Direito
ou com Poder, porque nestes alguém desfruta de uma situação subjetiva ativa que lhe permite
mobilizar uma potencialidade jurídica em vista de seu próprio interesse, ao passo que, na
função o exercício dessa potencialidade se efetua no interesse alheio e como instrumento
necessário ao cumprimento de um dever. Aí e só aí teremos função.”5
A imparcialidade desenvolveu-se como dever funcional dos magistrados e decorre
de duas regras essenciais: nemo iudex in causa propria e audi et altera parte. Lançando-
se mão da primeira regra, proíbe-se o exercício de poderes funcionais por quem tenha algum
interesse pessoal, direto ou indireto, na questão controvertida, dando margem à adoção de
hipóteses de impedimento e suspeição; com base na segunda, impõe-se o contraditório e a
participação de todos os interessados no processo. Levando-se em conta estas perspectivas,
resultam, para o magistrado, os deveres de oferecer oportunidade às manifestações a quem
sua decisão venha afetar, e de ponderar todos os interesses juridicamente relevantes no
processo. Isso porque somente se tiver conhecimento da totalidade dos interesses dignos de
proteção jurídica é que o magistrado estará em condições de ser imparcial.
A imparcialidade implica a certeza prévia da não-vinculação da atividade instrutória
e decisória em favor de qualquer uma das partes envolvidas no processo judicial e
independência quanto ao conteúdo das decisões.6
Trata-se de uma exigência intrínseca ao
processo judicial: sem imparcialidade, todas as garantias que nele incidem ficam inócuas. A
própria idéia de “fair procedure” está fundada nas noções de participação dos interessados
e de imparcialidade nas decisões que lhes concernem.
A imparcialidade abrange, ainda, o sentido de objetividade, exigindo que qualquer
decisão seja tomada sempre com base em razões legítimas, assim entendidas aquelas que
encontram amparo no ordenamento jurídico e que dizem respeito às circunstâncias
efetivamente presentes nas questões que se põem no âmbito decisório do juiz.
A imparcialidade, em suma, determina ao magistrado o dever de proporcionar a
participação das partes no processo de formação da decisão judicial, e proíbe ao juiz permitir
4
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, vol. II. São Paulo, Saraiva, 1965. p.3.
5
SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento administrativo. In RDP 84(64-74), p. 66.
6
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p 93.
Nº 24 - Dezembro 2010 17
que perseguições, simpatias, antipatias, caprichos, paixões ou interesses de ordem pessoal
interfiram no trato com as partes da relação processual. Na medida em que esses interesses
de ordem pessoal interfiram na avaliação das questões submetidas ao magistrado, estará ele
agindo com base em razões impróprias e, por isso mesmo, incidindo no vício de parcialidade.
E não há tratamento parcial que faça justiça ao jurisdicionado.7
A imparcialidade exige, assim, uma apreciação desinteressada, isenta e objetivamente
orientada dos elementos postos em causa. Trata-se de postura intrínseca à posição do magistrado
que, sendo o órgão estatal encarregado de fazer atuar concretamente o ordenamento jurídico,
é a contrapartida que o Estado oferece aos indivíduos no momento em que deles retira a
autonomia para decidirem as questões nas quais tenham interesse.8
Contudo a imparcialidade
não é devida exclusivamente em razão da posição ocupada pelo magistrado, de terceiro imparcial
em face da relação posta em causa. A atividade que ele desempenha é que é determinante para
a exigência de imparcialidade: a imparcialidade é condição imanente à própria aplicação do
ordenamento jurídico. É o que veremos mais adiante.
1. Pressupostos da Imparcialidade:
Não basta a exigência de conduta imparcial do magistrado. O ordenamento deve
proporcionar condições que propiciem a conduta imparcial. A técnica utilizada em nosso
ordenamento foi a atribuição de garantias à função de magistrado, das quais destacamos as
seguintes como pressupostos da conduta imparcial:
a) Garantia da Independência: pela garantia da independência, que na doutrina
vem por muitos autores qualificada de princípio9
, protege-se a jurisdição contra a interferência de
fatores externos a ela. A independência traduz um relevante aspecto da teoria da divisão dos poderes
(CF, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário - grifei), indicando uma separação orgânica entre a função jurisdicional e as demais
funções estatais e que a administração da justiça confiada ao Judiciário não se subordina à ingerência
dos outros Poderes da República. Além disso, traduz também um sentido mais amplo, de que
“o Judiciário como um todo e cada juiz em particular é
independente não só em relação aos outros poderes, como diante
do próprio poder e da opinião pública. É direito do cidadão que
a jurisdição seja isenta de pressões externas, e como tal a parte
deve exigir do julgador que exerça esta independência”.10
7
GALLIGAN, Denis J. Due Process and Fair Procedure — A Study of Administrative Procedures. Oxford: Clarendon Press, 1996. pp.
441 e 443.
8
PORTANOVA, Rui: Princípios do Processo Civil. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 79: “Quando o Estado tirou do
cidadão o direito à justiça privada e ao desforço pessoal, deu-lhe um terceiro imparcial e independente para resolver seu conflito:
o juiz. Assim, é direito fundamental do cidadão um juiz imparcial e independente.”
10
Neste sentido: CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA, Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 79. RUI
PORTANOVA. Princípios do Processo Civil, 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 72.
11
PORTANOVA, Rui. Op. cit., p. 73.
18 Revista da PGM
Evidentemente, não se pode presumir que, a pretexto de uma atuação independente,
possa o magistrado alhear-se ou desvincular-se do ordenamento jurídico e da realidade
subjacente. A tônica desta garantia está, justamente, na autonomia do Judiciário em face dos
demais poderes do Estado, cujos atos, diga-se de passagem, incumbe principalmente ao
Judiciário controlar. Daí, ressalta CHIOVENDA,
“a conveniência de que se confie a órgãos autônomos a função
jurisdicional, de modo que quem atua a lei não se deixe guiar
senão do que se lhe afigure ser a vontade da lei, segundo a
ciência e a sua consciência. É mister ainda que esses órgãos
sejam independentes, para impedir a intromissão da
administração na justiça (justiça de gabinete).”11
A garantia da independência deve manter-se circunscrita a este clássico aspecto: “quem
atua a lei não se deixe guiar senão do que se lhe afigure ser a vontade da lei”. A independência não
se presta para fundamentar uma suposta liberdade do magistrado para julgar em detrimento do
ordenamento jurídico. Num sistema como o nosso, de direito positivo —o civil law—, a norma
positivada é o ponto de partida da interpretação jurídica, processo que implica o cotejo com
outras normas de caráter complementar ou hierarquicamente superiores (e.g., normas
constitucionais), de onde resultará uma síntese que transformará as normas gerais e abstratas na
norma individual para o caso concreto. Qualquer outra premissa que seja adotada como ponto de
partida, tais como a pré-concepção do magistrado, seu sentimento subjetivo de justiça ou seus
interesses próprios ou de terceiros, será incompatível com o sentido de imparcialidade que
apresentado neste trabalho.
Vive-se hoje certa descrença em relação às normas jurídicas, e muito se diz que ao
magistrado, a pretexto de encontrar a solução “justa” para os casos concretos, compete criar
normas quando aquela preexistente não se coadune com aquele sentimento (subjetivo) de
justiça. A independência, então, levada a extremo, serviria de fundamento para que o magistrado
se afaste da ordem jurídica posta e “crie” a “sua” norma individual para o caso. Num tal
sentido, a independência seria incompatível com a imparcialidade, na medida em que a inclusão
de elementos subjetivos no processo de aplicação da norma exclui a objetividade necessária
aos juízos imparciais. Seria incompatível, também, com diversas normas constitucionais a
saber: (a) a separação de poderes constitucionalmente engendrada; (b) a legalidade, que
determina que os estados de sujeição do cidadão e as restrições de sua liberdade decorram das
fontes formais do Direto; (c) o princípio democrático, exigindo que essas mesmas restrições
das liberdades individuais sejam manifestações da soberania popular; (d) a igualdade,
formalmente consagrada pela generalidade e abstração das normas; (e) e, também, é
incompatível com a segurança jurídica, na medida em que o magistrado, ao inovar na ordem
jurídica, retira as condições de certeza e previsibilidade das partes, exigidas por aquele princípio,
ao editar uma norma ex post factum.
11
CHIOVENDA, Instituições... Tomo II, op. cit., p. 7.
Nº 24 - Dezembro 2010 19
Deste modo, independência não significa liberdade ou desprendimento do magistrado
em relação ao ordenamento jurídico. A independência é, pois, funcional, indicando a separação
orgânica entre a função jurisdicional e as demais funções estatais, de modo que o magistrado, no
exercício do seu mister, não se subordine à ingerência de outros agentes ou aos outros Poderes da
República. Nesse sentido, é uma garantia para o seu desempenho imparcial.
b) Garantia da vitaliciedade: prevista no art. 95, inc. I, da Constituição Federal,
consiste em uma garantia adquirida pelos magistrados concursados após dois anos de efetivo
exercício do cargo. Em razão dela, o magistrado somente perderá o cargo em virtude de
sentença judicial transitada em julgado, se juiz de primeiro grau, ou de deliberação do tribunal
a que estiver vinculado, se de segundo grau.
Esta garantia da permanência no cargo público constitui um aspecto fundamental
relacionado à exigência de imparcialidade do magistrado. A estabilidade funciona como
uma garant ia para que o agente possa tomar decisões com imparcia l idade e
independência. Na mesma trilha segue a garantia da inamovibilidade, prevista no art.
95, inc. II, da Constituição Federal.
c) Aposentadoria com proventos integrais ou proporcionais: Poderíamos
ainda ir mais longe nas condições que propiciam o exercício imparcial da função, para
argumentar que a própria aposentaria com proventos integrais ou proporcionais ao tempo
de permanência do magistrado no cargo é condição que suporta a imparcialidade. É que a
Constituição, ao impor vedações ao magistrado, tolhe o desempenho de outra atividade
econômica ou outro cargo ou função, salvo uma de magistério. Não pudesse contar o
magistrado com seus proventos durante a aposentadoria, não seria de se esperar uma atuação
independente, isenta e imparcial por quem atua, no presente, preocupado com a situação
financeira incerta e escassa, do futuro. A incerteza e escassez tornam, certamente, o
magistrado vulnerável às possibilidades de favorecimento e pressões dos mais diversos setores
que possam repercutir na decisão de questões postas sob sua apreciação.
2. Assento constitucional:
A imparcialidade é norma universal prevista no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e reafirmada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (Paris, 1948), verbis:
“Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade,
de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal
independente e imparcial, para a determinação de seus
direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação
contra ela em matéria penal.”
Na Constituição Federal da República não há previsão expressa da imparcialidade. Talvez,
porque uma previsão expressa seja mesmo dispensável, uma vez que diversos dispositivos
constitucionais implicam, naturalmente, a imparcialidade. Se analisarmos a Constituição de forma
unitária e pelo filtro dos direitos fundamentais, será possível perceber que a imparcialidade
20 Revista da PGM
instrumentaliza uma série de princípios e garantias fundamentais. O processo, assim, passa a ser
o terreno onde afloram princípios, direitos e garantias, e as regras processuais é que viabilizam a
concreta efetivação desses mesmos princípios, direitos e garantias. Senão, vejamos:
a) O Estado de Direito, que passou a ter existência teórica nos fins do século XVIII,
significou a superação de uma forma parcial de comando estatal. Durantes as monarquias
absolutistas, o Estado chegava a confundir-se com a pessoa do monarca, que comandava a
nação segundo seus interesses, ditados por razões que a ninguém cabia questionar. Aí, bem
presente a parcialidade, qualidade de quem ostenta interesse próprio na condução das
atividades a serem desempenhadas.
A passagem para o Estado de Direito muda este quadro, buscando limitar o poder, e
sobretudo despersonalizá-lo, abraçando princípios fundamentais como os da soberania
popular, da democracia, da divisão de poderes, da legalidade, da segurança jurídica e da
igualdade. Em decorrência da institucionalização do Estado de Direito e dos seus princípios
fundamentais (CF, art. 1º e art. 5º), surgem importantes conseqüências. Pelo reconhecimento
da soberania popular, o único poder legítimo é o decorrente da vontade do povo, sendo esta
vontade representada pelo Parlamento e afirmada pela idéia de separação dos poderes. Pelos
princípios da legalidade e da divisão dos poderes, ficam limitadas e discriminadas pela lei as
atividades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, surgindo também formas de controle
dos atos do poder público e uma esfera de direitos individuais que deve contar com ampla e
efetiva proteção estatal. O ordenamento jurídico assume a posição central na estrutura estatal,
substituindo-se à vontade e aos interesses pessoais de quem quer que atue em nome do
Estado. Precisamente aí a implicação da imparcialidade dos agentes estatais.
b) Pela exigência de legalidade e segurança jurídica (CF, art. 5º, caput e inc.
XXXVI; art. 150, I e III), o Estado passa a se comunicar com o indivíduo por meio do direito
objetivo: a norma geral, abstrata, democrática e prévia. A atividade estatal há de ter um
embasamento legal, sendo que a generalidade da lei dá também conta de, em tese, preservar
a igualdade dos indivíduos. Afora isso, importante sublinhar que, no reconhecimento da
força normativa dos princípios, há implícita uma certa mobilidade para que o intérprete
conforme a norma jurídica segundo o caso concreto, e, mais grave, “mesmo a regra jurídica
clara e aparentemente unívoca pode ser transformada em certa medida, de acordo com
as particularidades do caso concreto, por valorações e idéias do próprio juiz”.12
São
realidades que, no âmbito do processo judicial, podem ser traduzidas como a “outorga de
competência para a livre investigação jurisdicional do direito”13
.
Se assim mesmo ocorre, maior relevo é de se conferir à imparcialidade como
elemento legitimador do processo de interpretação e aplicação do direito, pois uma motivação
psicológica e não-objetiva no exercício de poderes públicos seria uma fonte de risco para a
aplicação justa do Direito.14
O titular de funções decisórias deve-se afastar de motivações
12
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49).
13
Idem.
14
Sobre os riscos do consequencialismo/pragmatismo na aplicação do Direito, v. AVILA, A modulação dos efeitos temporais pelo STF no
controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a Constituição do artigo 27
da Lei no 9.868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
Nº 24 - Dezembro 2010 21
não-objetivas e deve examinar somente aqueles elementos congruentes com o que preceitua
o ordenamento jurídico.15
A conduta imparcial é que confere o traço de legitimidade ou
arbitrariedade à atividade jurisdicional.
c) Por força do princípio democrático, assentado na soberania popular, o poder emana
do povo e ao povo retorna sob a forma de normas iguais para todos, as quais representam uma
decisão tomada direta ou indiretamente pelo próprio povo (CF, art. 1º, parágrafo único). Dessarte,
a opção pelo Estado Democrático de Direito —como faz a nossa Constituição no caput do artigo
1º— e, portanto, pelo governo das leis, traduz justamente um dos primeiros fundamentos para a
adoção da imparcialidade. A vontade que se deve fazer atuar é a do Direito, e não a do aplicador.
O princípio democrático, além do mais, exige uma ação responsável relativamente
ao bem comum e pressupõe, com isso, no âmbito decisório do Estado, que as decisões
sejam tomadas com base em critérios supraindividuais.16
d) Deve-se registrar, ainda, que numa perspectiva material o Estado de Direito prima,
também, pela exigência de justiça material (CF, art. 3º, inc. I), cuja distribuição seja
realizada com base em circunstâncias objetivas. Assim sendo, é necessário que as decisões
sejam produto não do imaginário do decisor, mas de elementos concretos efetivamente
presentes no objeto de sua cognição.
e) Ainda em face da perspectiva material de Estado de Direito, assume relevância o dever
de proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, inc. XXXV). Para
que os direitos fundamentais preencham sua função na realidade social, são necessárias
normas procedimentais organizatórias e regras procedimentais adequadas. Nas palavras de
CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA:
“os direitos fundamentais, para poderem desempenhar sua
função na realidade social, precisam não só de
normatização intrinsecamente densificadora como
também de formas de organização e de regulamentação
procedimentais apropriadas. Daí a necessidade de estarem
assegurados constitucionalmente por normas, principiais
ou não, garantindo-se ao mesmo tempo seu exercício e
restauração, em caso de violação por meio de órgãos
imparciais com efetividade e eficácia”.17
A proteção material dos direitos fundamentais, pois, consubstancia a garantia do
direito à ampla defesa de interesses num processo devido (“fair procedure”), sustentado na
participação dos interessados e na avaliação por um decisor imparcial (CF, art. 5º, inc. LV).
A própria preservação da dignidade humana exige que não haja dúvidas sobre a
objetividade e a imparcialidade no âmbito decisório da ação estatal. Faz parte do respeito à
15
KAZELE, Norbert. Interessenkollisionen und Befangenheit im Verwaltungsrecht. Berlim: Duncker & Humblot, 1990, p. 46.
16
KAZELE, op. cit., p. 48.
17
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In AJURIS nº 87 tomo I (37-49),
nesta passagem fazendo referência a KONRAD HESSE.
22 Revista da PGM
dignidade humana a efetiva consideração dos direitos e interesses individuais pelo Estado,
que, além de protegê-los, está incumbido de propiciar condições para que eles se realizem.
E, tanto na proteção quanto nas possibilidades de realização desses interesses, a atividade
do Estado é permeada pelas exigências de impessoalidade, objetividade e imparcialidade.
No tocante à proteção dos direitos fundamentais há que considerar também a
relação recíproca entre os direitos de liberdade e as garantias do devido
processo (CF, art. 5º, inc. LIV). A vida em sociedade não é mais possível sem a participação
do Estado, que chamou para si, entre tantas atividades, o monopólio da jurisdição.
Conseqüência disso é a modificação das condições de realização da liberdade individual.18
Com efeito, o Estado passa a condicionar de diversas formas a liberdade individual, e tais
condicionamentos somente são legitimados pelo atendimento às condições de imparcialidade.
f) O Princípio da Igualdade é uma importante interface da imparcialidade. Nas suas
relações com os indivíduos, considerados perante o Estado, é decisivo que as decisões estatais
sejam tomadas sem a consideração da pessoa, e sim com a consideração objetiva dos pontos
de vista estabelecidos em lei.19
Tal consideração passa, obviamente, por mecanismos que
tornem o sistema impermeável a simpatias ou antipatias pessoais, a motivações político-
partidárias, ou a preferências ditadas pela afinidade com determinados grupos ou segmentos
na sociedade. Entre tais mecanismos, a imparcialidade e neutralidade aparecem para tornar
o sistema infenso a tais perigos.
3. Natureza Jurídica: princípio, regra ou postulado normativo aplicativo?
Essa busca de um assento constitucional para a imparcialidade somente se faz
relevante para demonstrar como a imparcialidade se afigura como condição indispensável
para o exercício legítimo do poder estatal. Não tivéssemos também esta intenção, esta
análise seria supérflua, pois não é de hoje que se sabe que a previsão expressa de uma
norma não é condição sine qua non para o reconhecimento de sua existência. No caso da
imparcialidade, isso é revelado especialmente se se tiver em vista a natureza da
imparcialidade enquanto postulado normativo, portanto, uma condição indispensável
para a aplicação das normas jurídicas, atividade que consiste precisa e principalmente
na atividade do magistrado. Se a imparcialidade for considerada um princípio, o mesmo
se pode dizer quanto ao seu reconhecimento dispensar a previsão normativa expressa,
tendo em vista o seu caráter fundante do ordenamento. Vejamos, pois, qual a natureza
jurídica da imparcialidade.
HUMBERTO ÁVILA propôs, na sua Teoria dos Princípios, o reconhecimento de
três espécies distintas de normas: as regras, os princípios e os postulados normativos
aplicativos. As regras seriam normas que prescrevem, imediatamente, a adoção da conduta
que descrevem com maior ou menor precisão. Os princípios, a seu turno, não descrevem
imediatamente condutas, mas enunciam a promoção de um fim, este considerado como
18
Idem, p. 52
19
Idem, p. 51
Nº 24 - Dezembro 2010 23
um estado ideal de coisas. Os fins, nas regras, são implícitos, da mesma forma que as
condutas necessárias à promoção dos f ins descritos nos princípios estão neles
implicitamente previstas.20
Ladeando as regras e os princípios, inclui-se a categoria dos postulados normativos
aplicativos, que seriam espécies de meta-normas, pois não estabelecem deveres de conduta,
como as regras, e nem o dever de promoção de um certo estado de coisas, como os princípios,
estabelecendo, sim, o modo como esses deveres devem ser aplicados.21
Segundo ÁVILA,
“os postulados, de um lado, não impõem a promoção de
um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever
de promover o fim; de outro, não prescrevem indiretamente
comportamentos, mas modos de raciocínio e de
argumentação relativamente a normas que indiretamente
prescrevem comportamentos”.22
Vale sublinhar que referido autor admite a coexistência dessas espécies normativas
em face de uma mesma proposição jurídica. Assim, uma norma pode ser regra, princípio ou
postulado, tudo dependendo do enfoque sob o qual seja analisada.23
E, de fato, a
imparcialidade admite ser analisada sob diferentes ângulos.
A imparcialidade pode ser um princípio. Neste caso, vislumbra-se o dever de
promoção de um estado ideal de coisas, qual seja, o de julgamentos isentos de interesses
pessoais ou razões impróprias consideradas pelo julgador. Não há regra de conduta expressa
determinando positivamente a conduta que leve a este estado, ou seja, o que se deve fazer
para agir com imparcialidade. Contudo no CPC estão previstas, negativamente, as hipóteses
de suspeição ou impedimento, que determinam ao magistrado o que não fazer, sob pena de
violar-se o estado de coisas subjacente (imparcialidade) que as regras dos arts. 134 e 135
destinam-se a promover.
Ao se considerar a imparcialidade um princípio, afigura-se fundamental a
contribuição de CANOTILHO no sentido de que “os princípios se beneficiam de uma
objetividade e presencialidade que os dispensam de estarem consagrados expressamente
em qualquer preceito particular”.24
Vistos por este prisma, os princípios jurídicos, enquanto
“idéias jurídicas materiais que lograram uma consciência jurídica geral, podem tanto estar
escritos no texto legal, como podem estar implícitos”.25
20
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo:Malheiros Editores
08/2004, p. 70
21
Idem, p. 87-88.
22
Idem, p. 89.
23
Idem, p. 60.
24
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, 3ª ed., Coimbra, 1999,
p. 1089.
25
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., Lisboa, 1989, p.
577. Ainda: Larenz qualifica os princípios jurídicos como “pautas diretivas de normação jurídica que, em virtude de sua
própria força de convicção, podem justificar resoluções jurídicas”.
24 Revista da PGM
Além disso, um mandamento considerado um princípio jurídico, “compreende a
bipartição, característica da proposição de direito em previsão e consequência jurídica”26
,
de modo que, uma vez reconhecido, vincula imperativamente o destinatário. Disso tudo
resulta que, nada obstante a falta de assento expresso na Constituição, a imparcialidade
impõe-se enquanto princípio.
No entanto, a imparcialidade deve também ser vista enquanto postulado e já não
com as características de princípio ou regra.27
Há, nitidamente, um caráter metodológico —
ou formal, ou procedimental—, na imparcialidade. Este diz respeito à forma como o
magistrado vislumbra o ordenamento que lhe incumbe aplicar concretamente em face das
partes que se submetem à sua esfera de decisão. Diz respeito à condução do processo judicial
e do processo de aplicação do direito: esses processos devem ser conduzidos de forma isenta
de interesses pessoais ou razões impróprias. Quando o juiz analisa uma lei, bem como os
fatos e demais elementos que as partes apresentam à causa, deve fazê-lo com imparcialidade.
Não há negar, por este ângulo, o caráter metodológico que assume a imparcialidade.
Por este prisma, sendo o caso de inseri-la em alguma categoria analítico-normativa,
impõe-se a opção pela categoria dos postulados normativos, enquanto “condições de
possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico”, os quais, embora não ofereçam substrato
material para fundamentar uma decisão, explicam como (sob que condições) pode-se conhecer
o Direito.28
Não seria propriamente princípio, na concepção que lhe atribui a doutrina dominante
(DWORKIN, ALEXY), porque a imparcialidade não admitirá flexibilização e nem comporta uma
gradação na sua aplicação, i.e., não incide em graus. Por sinal, quanto à aplicação, assemelha-
se mais à regra: incide ou não, por completo (nas palavras de DWORKIN, “all or nothing
fashion”). EGON MOREIRA, apesar de chamar a imparcialidade de princípio, nitidamente
apercebeu-se desta circunstância quando averbou: “inexiste imparcialidade enfraquecida, ou
que eventualmente incida em alguns casos e noutros não. Trata-se de valor absoluto.”29
Trata-se, indubitavelmente, de exigência para que as normas jurídicas sejam aplicadas.
Veja-se que a imparcialidade, aqui, não contém um fim em si mesmo, e, sim, determina um
meio para que se atinjam fins previstos em outros princípios (instrumentaliza a
implementação da igualdade, do Estado de Direito, da proteção dos direitos e garantias
fundamentais, do contraditório, da ampla defesa, etc.). Não mais se enquadra, nesta segunda
hipótese, no conceito atribuído por ÁVILA aos princípios, enquanto normas imediatamente
finalísticas30
. Assim sendo, este dever é implicado por dedução lógica da necessidade de dar-
se cumprimento aos preceitos fundamentais que permeiam o ordenamento jurídico,
dispensando previsão normativa expressa.
26
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Tradução de António Menezes
Cordeiro. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989, p. 86.
27
Sobre os aspectos comuns aos princípios jurídicos e sua distinção relativamente às regras jurídicas: ALEXY, Robert. Derecho y
Razón Practica. Biblioteca de Etica, Filosofia del Derecho y Politica. México, Premià Editora, 1993. CANOTILHO, Direito
Constitucional..., p. 1086 e ss.
28
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidadde. in RDA
215:151-179, p. 165.
29
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p 94.
30
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras..., p.167.
Nº 24 - Dezembro 2010 25
Parte II - Ruptura da Imparcialidade
1. O vício de parcialidade
O vício de parcialidade ocorre quando o magistrado é parcial. Assim será sempre
que, na tomada de decisões ou na simples condução processual, surgir o risco de que possa
o juiz agir influenciado por fatores que sejam impertinentes aos elementos postos em causa
pelas partes e ao ordenamento jurídico. Nessa situação, o juiz aparece subjetivamente — e
não mais objetivamente como se deveria supor — relacionado às questões que lhe forem
submetidas.
Não se concebe o magistrado como um ser despido de vontade própria. No entanto,
no sistema do civil law, as “vontades” possíveis ao magistrado são somente aquelas
amparadas pelo ordenamento jurídico. Afinal, a atividade jurisdicional reside na atuação
concreta da lei (entendida como Direito). Se o magistrado faz intervir uma vontade que
pouco ou nada tem a ver com o processo de aplicação da lei e com os atos que esta exige,
adquire este uma vontade que não lhe foi permitida pelo ordenamento: ele se apropria da
vontade que deve ser do ordenamento. Aí, então, a parcialidade: o risco de que decida uma
questão quem nela tenha interesse próprio atenta contra o mandamento da imparcialidade
e torna indiscutivelmente viciada a decisão tomada.
O vício de parcialidade foi profundamente estudado por DENIS GALLIGAN, defensor
de que a imparcialidade é a necessidade mais elementar para quem pretende dispensar, a
quem quer que seja, um tratamento justo e eqüitativo.31
Procurando analisar o porquê de se
considerar a parcialidade algo tão degradante, distinguiu o autor dois aspectos deste vício: a
predisposição de decidir em favor de alguém face a outrem (violação da igualdade) e o
descontrole em relação às pré-concepções, visto que “ser parcial é, de alguma forma, ter
decidido a questão de antemão ou tê-la decidido por razões que não são as razões corretas”32
.
GALLIGAN atribuiu à parcialidade diferentes naturezas, classificando-a em três espécies:
parcialidade pessoal (personal bias), parcialidade sistêmica (sistemic bias) e parcialidade
cognitiva (cognitive bias).
Parcialidade pessoal abrange a ampla esfera dos interesses pessoais, sentimentais
ou financeiros, inclusive em benefício de terceiros. Presente o interesse pessoal, o magistrado
é considerado incapaz de decidir adequadamente qualquer questão.
A parcialidade sistêmica diz com as predisposições do indivíduo, que resultam do
fato de ele pertencer a uma determinada classe social, ou ter tido determinada vida pregressa,
ou trabalhar em determinado segmento. Tudo isso gera uma natural afinidade entre indivíduos
31
GALLIGAN, Denis J. Due Process and “fair procedure” — A Study of Administrative Procedures. Oxford: Clarendon Press,
1996, p. 437 e ss. Acrescenta o autor: “The rule against bias stands with the hearing rule as one of the twin pillars of the
common law concept of precedural fairness. (...) the repugnance felt towards biased decision-makers is widely reflected in
constitutions, international conventions, and administrative law codes.”
32
GALLIGAN, Denis J. Due Process... p. 438 (traduziu-se)
26 Revista da PGM
do mesmo segmento ou que tenham tido experiências semelhantes. Essas afinidades poderão
determinar influências nas ações e pontos de vista de qualquer pessoa. O autor reconhece que
essa “sistemic bias” é, por natureza, tão “entranhada” na compreensão que as pessoas têm
dos fatos, que dificilmente poderia ser eliminada ou reduzida, a não ser por uma modificação
do próprio sistema.33
No entanto, assevera o autor que admitir que esta forma de parcialidade
esteja tão arraigada na sociedade não significa dizer que ela seja inevitável ou tolerável. Mesmo
porque, ela pode ser tão prejudicial quanto as outras formas de parcialidade, ao provocar
distorções no processo judicial a partir da introdução de razões ilegítimas.
Em certa medida, o sistema do civil law, optando pela positivação do direito, possui meca-
nismos que atuam como freios a esta forma sistêmica de parcialidade. Assim, o simples respeito ao
Direito e à vontade geral positivada, ao mesmo tempo que atende às exigências de democracia,
legalidade, segurança jurídica, devido processo e dever de respeito à igualdade e dignidade do
cidadão, atende também ao dever de imparcialidade.
A parcialidade cognitiva compreende a idéia de que, no processo de formação da
decisão, muitas vezes assumem-se certas premissas que são injustificáveis à luz dos fatos e
que levam a conclusões falsas.34
Segundo GALLIGAN, a má apreciação das razões de decidir
já configura a parcialidade. Sem a observância dos parâmetros legais corretos para a decisão
—inclusive, e especialmente, no uso de poderes exercitáveis ex officio pelo juiz—, fica
inviabilizada uma tomada de decisão apoiada em padrões de conduta que, segundo o
ordenamento, seriam condizentes com a proteção dos direitos individuais e com o “fair
procedure”. Como conseqüência, a pessoa afetada pela decisão não é tratada segundo os
standards legais e, portanto, não é tratada com justiça (“is treated unfairly”).35
Bem de se ver que a averiguação da parcialidade remete ao subjetivismo das pessoas.
Por tal razão, a maior dificuldade com relação ao vício de parcialidade diz respeito à prova
desse subjetivismo. Justamente por isso é que, no Brasil, através da previsão de impedimentos
e suspeições, a imparcialidade é assegurada por um sistema em que o risco de avaliação
imprópria dos casos concretos justifica a invalidação da decisão. Ou seja, sinais exteriores
de que possa haver um posicionamento parcial do decisor são suficientes para que o
ordenamento lhe interdite a prática do ato ou a tomada de decisão, prescindindo-se da
prova de ter havido efetiva parcialidade. Basta, portanto, que o decisor possa ter interesse de
ordem pessoal ou pecuniária no caso, mesmo que ele tenha discernimento para não permitir
que tais interesses afetem sua avaliação. 36
33
“The alleged preferences of judges for men over women, the deep-seated racism of some police officers, or the moralistic
stereotyping of welfare claimants is each likely to be alleviated only by fundamental reforms in the education and training
of those making the judgements.” Idem, p. 439.
34
“...we tend to conclude rather too readily that our own view of an issue is widely shared; and when we believe variables to
be related to each other, we will hold them to be related even when they are not.” Idem, p. 440.
35
Idem, pp. 441 e 443. O que está em jogo, segundo o autor, são as normas jurídicas segundo as quais cada caso há de ser decidido. O
legislador já fixou as condutas possíveis à Administração, com maior determinação no caso das regras, ou menor determinação no caso dos
princípios. Mesmo nos princípios, porque impõem finalidades, reconhecem-se verdadeiros vetores de conduta, na medida em que tornam
intoleráveis condutas incompatíveis com os fins almejados pelo ordenamento jurídico.
36
Idem, p. 446: “A personal interest, whether financial, proprietary, or based on a special human association, automatically
criates a powerful risk of bias which is likely to have an insidious influence on the decision-maker, no matter how hard he
strives to overcome it.”
Nº 24 - Dezembro 2010 27
São sistematizadas, assim, hipóteses de impedimento e suspeição que prevêem a
presunção, devido a razões de ordem subjetiva e que dizem respeito à pessoa do magistrado,
de que não haverá a imparcialidade, necessária em face dos princípios e garantias previstas
no sistema constitucional vigente. Por conseguinte, uma vez verificado o risco de parcialidade
por interesse pessoal do julgador da questão ou por incapacidade de avaliar a questão com
isenção, simplesmente demonstrar o risco deve ser suficiente para argüir-se a invalidade do
processo que deu origem à decisão.
Nesses casos, a valoração que o ordenamento dá à simples suspeita de que possa
haver parcialidade (daí falar-se em “risco”) é a seguinte: a mera suspeita já obscurece o
processo e ameaça o interesse público na necessidade de um juízo independente, que mereça
o respeito e a confiança dos jurisdicionados.37
O que ocorre nas hipóteses de impedimento e suspeição é que, ao invés de se presumir
o exercício impessoal, imparcial, objetivo e isento da jurisdição, presume-se exatamente o
contrário, e precisamente em face disso é que se impõe o afastamento do magistrado daquelas
situações em que seu desempenho seja comprometido por alguma questão subjetiva que
lhe diga respeito. Não importa se o magistrado se deixa ou não influenciar. Basta que esteja
em situação influenciável. As hipóteses de impedimento e suspeição servem justamente
para proteger o juiz dessas influências e também da repercussão negativa da condução do
processo por juiz presumivelmente interessado, tivesse ele realmente interesse ou não. Daí
porque, deve o magistrado ter à sua disposição a faculdade de exigir seu afastamento de
determinado caso por considerar-se impedido ou suspeito, bem como devem as partes
prejudicadas dispor de mecanismos para argüírem a parcialidade do juiz, para fins de afastá-
lo do caso em questão. Essas hipóteses estão contempladas no CPC no capítulo dos
impedimentos e suspeições.
2. Exceções de impedimento e suspeição
Entre as garantias típicas do processo judicial se situam a imparcialidade e as
hipóteses de impedimento e suspeição que dela decorrem. Isso porque é pacífica a
necessidade de que o juiz realmente julgue sem ser influenciado por quaisquer fatores que
não os direitos dos litigantes que ao seu juízo se submetem.38
PONTES DE MIRANDA afirmou que “quem está sob suspeição está em situação de
dúvida quanto ao seu bom procedimento. Quem está impedido está fora de dúvida, pela
enorme probabilidade de ter influência maléfica para a sua função.”39
O Código de Processo
Civil fixou, nos arts. 134 e 135, casos de impedimento e suspeição que, uma vez comprovados,
contêm verdadeira presunção juris et de jure de parcialidade, absoluta, portanto, ensejando
o afastamento do juiz naquelas situações em relação à causa.
37
Nesse sentido, GALLIGAN. Idem, p. 442.
38
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume I. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 333.
39
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense,
1973, p.399.
28 Revista da PGM
a) Hipóteses de Impedimento:
O Código de Processo Civil brasileiro, em seu artigo 134, arrola uma série de casos
de impedimento. Em ocorrendo uma dessas hipóteses e não se verificando o devido
afastamento do juiz impedido, fica o processo viciado por defeito insanável, que persiste até
depois do seu desfecho (nos termos do artigo 485, inciso II, do Código de Processo Civil
brasileiro, a sentença proferida por juiz impedido poderá ser objeto de ação rescisória).
Assim prevê o dispositivo (verbis):
“É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:
I - de que for parte;
II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou
como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;
III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou
decisão;
IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou
qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral
até o segundo grau;
V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha
reta ou na colateral, até o terceiro grau;
VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na
causa.”
b) Hipóteses de Suspeição:
Como casos de suspeição estão contempladas, no artigo 135, as situações em que o
juiz tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os
respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau. Dispõe o referido
dispositivo que, nesses casos, poderá ser argüída a suspeição do juiz pelas partes interessadas.
Interessante notar que, em se tratando de suspeição, embora se verifique, também nesta
situação, uma presunção absoluta de parcialidade40
, não exige a lei a abstenção de atuação
do magistrado, dependendo o afastamento do requerimento pelos interessados. Ainda,
diversamente dos impedimentos, os casos de suspeição não constituem defeitos insanáveis,
de modo que, se o magistrado não se abstiver e nem a parte impugnar, o defeito
desaparecerá.41
Segundo o artigo 135 do Código de Processo Civil, “reputa-se fundada a
suspeição de parcialidade do juiz, quando:
I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes
destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;
III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
40
BARBI, Celso Agrícola. Comentários... p.341.
41
Idem, ibidem.
Nº 24 - Dezembro 2010 29
IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das
partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas
do litígio;
V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.
Parágrafo único: Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.”
Segundo PONTES DE MIRANDA, “íntima diz-se a amizade quando há laços afetivos,
notórios ou não, mas verificáveis por fatos de estreita solidariedade, que possam influir no
julgamento pela determinação psicológica, consciente ou não. Também a inimizade capital
supõe o elemento afetivo de hostilidade a ponto de perturbar o julgamento.”42
Ressalta o
autor que a apreciação de tais causas de suspeição independe de auto-exame do agente,
podendo as partes interessadas prová-las com fatos e testemunhas.
Parte III – Imparcialidade e Processo:
1. Elementos do fair procedure: pode-se falar em contraditório, ampla defesa e juiz
natural sem imparcialidade?
A imparcialidade, considerada nos termos retro-expostos, apresenta-se como um
elemento intrínseco à noção de “fair procedure”, surgida no direito inglês para designar a
necessidade de que os atos estatais resultassem de um procedimento justo.
A idéia geral de “fair procedure” é de que um procedimento, para ser justo, deve
satisfazer todas as condições necessárias para preservar a imparcialidade (“unbiased
decision-making”) e o contraditório, consubstanciado na participação dos interessados para
efeitos de conhecerem a questão, oferecer defesa, argumentos e suas próprias razões. Esta é
a fórmula elementar para uma adequada avaliação dos interesses em jogo e para evitar
decisões baseadas em interesses impróprios (“sinister interests”).43
Nesse sentido, a imparcialidade constitui um elemento que pertence à própria noção
de processo, e sua ausência esvazia o sentido das principais garantias processuais – justo
aquelas que dão fundamento a toda estrutura do Processo Civil.
2. Imparcialidade e a garantia do contraditório:
Uma das mais importantes garantias jurídicas existentes no âmbito da função
jurisdicional é o contraditório. O contraditório é garantia constitucional insculpida no capítulo
dos direitos e garantias fundamentais, artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988,
assegurada a todos os que participam de processo judicial e administrativo. Ora, como já se
viu, uma das máximas do princípio da imparcialidade é justamente o direito de ser ouvido,
42
Comentários..., p. 403.
43
GALLIGAN, Denis J. Discretionary Powers — A Legal Study of Official Discretion. Oxford: Clarendon, 1986, P. 333.
30 Revista da PGM
o que equivale à garantia do contraditório. Por conseqüência lógica, se o contraditório é
uma garantia inseparável do processo, a imparcialidade também o é.
A participação dos interessados é uma condição para que o procedimento seja
considerado justo. A imparcialidade visa a assegurar que a garantia mais eficaz do processo,
que é a possibilidade de participação das pessoas presentes na relação processual, não se
reduza a uma mera formalidade para legitimar decisões arbitrariamente levadas a efeito.
Devido à participação dos interessados, que consubstancia a garantia do contraditório, uma
sentença resulta não mais da vontade pessoal e subjetiva, do magistrado, mas de um
contraditório entre os interessados e o cotejo com os elementos que se apresentam para a
formação de sua convicção, tornando visível o confronto de todos os interesses presentes na
situação. Precisamente aí surge o dever de ponderação imparcial desses elementos pelo
juiz: não fosse ele exigido, sequer seria necessária a participação dos interessados e a
exposição de suas razões.
3. Imparcialidade e ampla defesa:
A ampla defesa está expressamente prevista no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal,
ao lado da garantia do contraditório. Da forma como foi prevista, não há mais dúvidas de
que a ampla defesa não se aplica apenas no âmbito penal, como concebera a Constituição
Imperial de 1824, tendo plena aplicabilidade nas instâncias processuais judiciais e
administrativas.
A garantia da ampla defesa exige o cumprimento de algumas regras de conduta para
tornar-se efetiva. A primeira delas é a instauração do contraditório, pois, em qualquer processo
do qual decorra decisão que influencie a esfera jurídica de alguém, é preciso dar a este
alguém conhecimento das informações que pesem contra ele – sob pena de ter-se instaurado
um encadeamento de atos como aquele concebido por KAFKA no seu conhecido “O Processo”.
E, por razão lógica, decorre a necessidade de que a defesa seja prévia, isto é, anterior à
decisão, para que possa ser conhecida e efetivamente considerada por quem tem competência
para decidir.44
Falta de contraditório e defesa posterior frustrariam o próprio propósito da
garantia da ampla defesa.
Além disso, a satisfação da ampla defesa compreende o acesso aos autos, a
possibilidade de apresentar razões e documentos, de produzir provas testemunhais ou
periciais e oferecer defesa técnica quando a natureza da situação assim o exigir, e ainda, faz-
se imprescindível a necessidade de motivação dos atos em geral e especialmente da decisão,
pois só isso permite que seja formulada defesa adequada.
A ampla defesa implica, portanto, a objetividade e a imparcialidade. Ou seja,
somente mediante a ampla participação do interessado, com a faculdade de oferecer provas
e argumentos, é que se tem condições de oferecer à autoridade elementos de convicção que
conduzam a “uma decisão racional, imparcial, ajustada aos fatos e à lei”.45
1
FERRAZ, Sérgio, e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 71.
1
SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento... Op. cit, p. 106.
Nº 24 - Dezembro 2010 31
Interessante notar que, mesmo presentes no feito todas as oportunidades possíveis
de defesa, de nada valerão, se se admitir que a decisão seja tomada com parcialidade. É
evidente: perante julgador parcial, por mais que se argumente e se ofereçam razões, jamais
haverá a “garantia” de que os argumentos e razões influenciaram no convencimento —
situação inadmissível para a “garantia” da ampla defesa. O dever de imparcialidade aparece,
portanto, como uma necessidade lógica para que a garantia da ampla defesa seja exercida na
sua plenitude.
4. Imparcialidade e juiz natural:
“Juiz natural” é outra garantia fundamental, prevista nos incisos XXXVII e LIII do art.
5º da Constituição Federal, e a própria essência desta exige imparcialidade: a garantia se constitui
na exigência de julgamento por pessoa que ostente posição exclusivamente objetiva em relação
ao feito, ou, em outras palavras, que um juiz não possa decidir caso em que tenha uma classe
de interesse capaz de constituir verdadeiro motivo de parcialidade. Exigem-se, pois, basicamente
dois elementos: autoridade imparcial e pré-constituída em relação ao feito.46
Juiz natural não deixa de ser um corolário das garantias anteriormente analisadas,
sob pena de, mesmo que se admita o contraditório e a ampla defesa, escolher-se a dedo um
julgador predeterminado a condenar ou absolver, transformando o processo judicial em
verdadeiro faz-de-conta: o julgador parece levar em consideração a participação das partes,
tendo tomado de antemão sua decisão.47
Com a garantia do juiz natural incide, naturalmente,
o dever de imparcialidade, pois seria inútil disciplinar previamente um sistema de distribuição
de competências, caso fosse permitido à autoridade legalmente constituída atuar com
parcialidade.
CONCLUSÕES:
Conforme verificado, a imparcialidade e a independência do juiz são questões que
trazem em si grande relevância para melhor compreender a natureza da função jurisdicional.
Ainda mais, quando analisadas sob o prisma constitucional e, especialmente, dos direitos
fundamentais. A concepção jurídica de imparcialidade implica a ausência de interesse pessoal
em determinada questão, ou seja, é imparcial aquele que não é parte. Ainda que não haja previsão
expressa da imparcialidade na Constituição Federal, não há maior problema quanto a isso. Isso
porque vários dispositivos constitucionais implicam, logicamente, a imparcialidade.
Para que a conduta do magistrado possa ser imparcial é necessário que o ordenamento
proporcione condições que a favoreçam. Em vista disso, o nosso ordenamento atribuiu garantias
à função de magistrado, algumas constituindo verdadeiros pressupostos da conduta imparcial: a
46
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad,
1998. p. 271.
47
Idem, p. 301.
32 Revista da PGM
garantia da independência, a vitaliciedade e a aposentadoria com proventos integrais ou
proporcionais. A ausência dessas garantias, sem prejuízo das demais existentes no
ordenamento jurídico brasileiro, torna, certamente, o magistrado vulnerável às possibilidades
de favorecimento e pressões dos mais diversos setores que possam ter interesse na decisão
de questões postas sob seu julgamento.
Cumpre esclarecer que a independência do magistrado não se confunde com
liberdade. A independência decorre do exercício de função jurisdicional, protegendo a
jurisdição contra a interferência de fatores externos a ela. Significa, basicamente que a
administração da justiça confiada ao Judiciário não se subordina à ingerência dos outros Poderes
da República e nem da opinião pública.
Não se pode presumir que, a pretexto de uma atuação independente, possa o magistrado
alhear-se ou desvincular-se do ordenamento jurídico e da realidade subjacente. A tônica da
independência está, justamente, na autonomia do Judiciário em face dos demais agentes do Estado.
Ainda, quando se fala, na doutrina processual, no chamado “princípio do livre
convencimento do juiz”, deve-se contextualizar este princípio na apreciação da prova apresentada
pelas partes perante o magistrado. A análise da prova é, precisamente, o âmbito do livre
convencimento, eis que é o magistrado quem, pela posição de imediatidade em relação aos fatos,
tem melhor condição de avaliá-los. Atribuir a este princípio do livre convencimento uma concepção
exacerbada (e isso se tem visto com uma freqüência lamentável), que permita ao julgador abrir
mão do ordenamento para aplicar ao caso os seus critérios pessoais e subjetivos é postura contrária
aos ditames da imparcialidade. Assim, independência e livre convencimento não se confundem
com liberdade para decidir à revelia do ordenamento.
No que diz respeito à natureza jurídica da imparcialidade, embora muitos
denominem-na como princípio, ela pode (e deve) também ser vista como postulado. Na
verdade, a categoria que mais se amolda as características da imparcialidade é justamente a
dos postulados. É esse o melhor entendimento, uma vez que a imparcialidade não admite
flexibilização e nem comporta uma gradação na sua aplicação, isto é, não incide em graus,
características normalmente atribuídas aos princípios. Ademais, quanto à aplicação,
assemelha-se mais à regra, ou seja, incide ou não, por completo.
Contudo, por vezes, o dever de imparcialidade está sujeito a violações, quando o
magistrado torna-se parcial. Isso ocorrerá sempre que, na tomada de decisões ou na simples
condução processual, surgir o risco de que possa o juiz influenciar-se por fatores externos e
inoportunos aos elementos postos em causa pelas partes e ao ordenamento jurídico. São esses os
casos de impedimento e suspeição do juiz, colacionados nos arts. 134 e 135 do Código Civil
Brasileiro, respectivamente.
Não se pode falar em contraditório, ampla defesa e juiz natural sem falar em
imparcialidade. Estes conceitos estão intimamente ligados ao postulado da imparcialidade. A
imparcialidade, conforme verificado, tem por objetivo assegurar que a garantia mais eficaz
do processo, que é a possibilidade de participação dos interessados, não se restrinja a uma
simples formalidade que legitime decisões arbitrariamente levadas a efeito. Igualmente ocorre
com a ampla defesa e o juiz natural, colocados na Constituição oportunamente próximos ao
Nº 24 - Dezembro 2010 33
contraditório. A ampla defesa implica a imparcialidade. Significa dizer, portanto, que somente
mediante a ampla participação do interessado (através de provas e argumentos) é que se
têm condições de apresentar ao julgador elementos de convicção que conduzam a uma
decisão imparcial, amoldando os fatos à lei. A garantia fundamental do “juiz natural”, por
seu turno, essencialmente impõe a imparcialidade, uma vez que se constitui na exigência de
que um juiz não possa resolver um caso em que tenha uma classe de interesse capaz de
estabelecer verdadeiro motivo de parcialidade.
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Nº 24 - Dezembro 2010 35
O paradigma jurídico aplicável ao
adimplemento das obrigações no novo Código Civil
Arthur M. Ferreira Neto*
*
Mestre em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutorando em Filosofia pela PUCRS, Professor de Direito da PUCRS, Advogado em
Porto Alegre.
36 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 37
Introdução
Paradigma científico em Thomas Kuhn
Thomas Kuhn, em seu clássico “The Stucture of Scientific Revolutions”2
, afirma que o
surgimento de um paradigma científico é sinal de maturidade no desenvolvimento em qualquer
ramo do conhecimento. Por paradigma entende determinado padrão ou modelo reconhecido
universalmente como um avanço científico, adotado, durante certo momento histórico, por
determinado segmento da comunidade acadêmica como parâmetro para a resolução de
problemas e desenvolvimento de pesquisas. Não obstante existam aqueles que neguem a
possibilidade de evoluções paradigmáticas no campo da ciência do direito, inegável a utilidade
de se pensar nas diferentes posturas adotadas pelo aplicador do direito diante do ordenamento
jurídico no transcurso da história.
Influência do culturalismo de Miguel Reale
na elaboração do novo Código
Assim pensando, não temos como deixar de vislumbrar o advento do novo Código
Civil como um símbolo que, entre outros, marca a modificação do paradigma jurídico. A
feitura do novo Diploma parte da inegável influência do culturalismo de Miguel Reale3
.
Criticando o formalismo de Kant, bem como o sentimento individualista que se instaurou
em nossa realidade a partir do Século XVIII, Reale propõe a apreensão do fenômeno jurídico
como sendo fruto pleno da experiência humana, fenômeno este historicamente relevante e
axiologicamente orientado. Com isso, a realidade deixa de ser mera projeção idealizada da
pura razão, passando a ser definida sempre de acordo com determinado contexto histórico,
dotado de sentido valorativo próprio. O ser numênico representado na figura estanque do
sujeito de direito move-se, agora, para a concepção de pessoa concretizada e
circunstancializada, assim como, a própria relação jurídica não mais pode ser entendida
como mera conexão estática de vontades livres, mas como convergência de interesses
integrados e harmonizáveis em busca de uma finalidade comum a ser atingido mediante
cooperação e lealdade.
2
KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Estados Unidos da América: University Of Chicago Press, 2ª edição, 1970.
3
“O mérito do Culturalismo Jurídico, o que o torna preferível a todas as doutrinas sobre a natureza e fundamento do Direito, é
exatamente a apreciação integral da vida jurídica, que não é só norma, nem só fato social. O Direito é uma realidade tridimensional,
que apresenta um substratum ‘fático’ (dado de natureza, circunstância histórica etc.) no qual se concretizam valores de cultura,
e, ao mesmo tempo, é norma que integra em unidade superior o processo incessante de atualização de valores.” (Horizontes do
Direito e da História. São Paulo: Editora Saraiva, 3ª edição, 2000, p. 296)
38 Revista da PGM
Dois paradigmas jurídicos – Código Civil de 1916 e
Código Civil de 2002
A falta de compreensão do novo paradigma que se instaura, hoje, com o advento do novo
Código provoca a insatisfação em duas classes de juristas: naqueles que pretendem ler os
enunciados do novo Código ainda inspirados na ideologia oitocentista, puramente racional e
individualista, bem como naqueles denominados por Judith Martins-Costa4
de neotéricos, que se
regozijam com a novidade, pela exclusiva razão desta ser sem precedente.
Ora, não pode o aplicador do Código atentar-se apenas ao plano perfunctório dos
enunciados normativos nem pode ele ter como espírito a vanglorização de novidades que podem
ser facilmente abarcadas pelo novo paradigma proposto, desde que realizada sua compreensão
estrutural em termos de cláusulas gerais e de modelos jurídicos. Deve, na verdade, captar o
evolucionismo proposto por Miguel Reale, através do qual se pretende preservar o texto do Código
anterior naqueles pontos concordantes com o novo paradigma, inovando-se apenas nas searas
em que a prudência assim determina.
Por estas razões, clarear a modificação paradigmática que se iniciou com a vigência do
Código de 2002 é tarefa que se impõe e a primeira delas é a demonstração da mudança
metodológica que se introduziu.
Quadro comparativo
A introdução do Diploma Civil de 2002 provoca tamanha mudança na postura que o
aplicador do direito deve ter ao manejá-lo que se torna possível estruturar o seguinte quadro,
com função de permitir a comparação entre o paradigma que inspirou o código passado e aquele
que hoje impera:
4
Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. XI.
Nº 24 - Dezembro 2010 39
Neste trabalho, portanto, propõe-se a analisar o paradigma jurídico que influenciou Clóvis
Bevilaqua na elaboração do Código Civil de 1916, especificamente no que tange ao adimplemento
das obrigações, bem como os motivos que levaram ao declínio deste mesmo paradigma. Em
seguida, será exposto o surgimento de um novo paradigma, que resgata, em certa medida, o
espírito da filosofia clássica, localizando tal influência na estruturação de uma nova concepção de
adimplemento da obrigação. Por fim, buscar-se-á apresentar uma nova leitura do modelo jurídico
da boa-fé, partindo-se da aplicação a esse instituto jurídico da nova teoria dos princípios proposta
por Humberto Ávila.
1. O ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – A
INSPIRAÇÃO DO INDIVIDUALISMO E DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL
a) Kant – Ruptura de Paradigma Clássico e influência no pensamento
jurídico moderno
Mesmo já existindo, no Direito Romano, a concepção da obrigação como sendo um vínculo
jurídico que constrangia o devedor a realizar determinada tarefa em benefício exclusivo do credor,
representada na famosa definição de Justiniano (“obligatio est iuris vinculum, quo necessitatis
adstringimur aliucus solvendae rei, secundum nostrae civitas iura”), foi somente que com o
racionalismo e o idealismo transcendental de Immanuel Kant que o relacionar entre pessoas
dentro do mundo jurídico atingiu grau máximo de abstração, tornando-se, com isso, altamente
estático e formal.
Nos anos de 1797 e 1798, Kant lança sua Metafísica dos Costumes, sua obra de maior
reflexo no campo do direito, através da qual busca estruturar todas as regras apriorísticas e extraídas
da pura razão, que guiariam o homem em sua ação prática. Divide, assim, sua obra em duas
partes: os princípios metafísicos da doutrina do direito e princípios metafísicos da doutrina da
virtude. Interessa ao presente estudo a primeira parte do trabalho desenvolvido por Kant, que,
por sua vez, divide-se em doutrina do Direito Privado e doutrina do Direito Público.
Em sua Doutrina Transcendental, Kant parte da confiança que deposita na estrutura
formal do seu imperativo categórico, o qual pode ser entendido como o instrumento suficiente e
necessário, dado pela pura razão, que impõe ao ser racional o dever de preencher determinado
comportamento, visto como objetivamente bom. Não é à toa que, para Kant, a obrigação é vista
“como la necessidad de uma acción libre bajo un impetrativo categórico de la razón”5
, enquanto
o dever é simplesmente “la acción a la que alguien está obligado”6
.
Já na Doutrina do Direito, o fenômeno jurídico é visto apenas como o conjunto de condições
nas quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outro, sob leis universais da liberdade.
Desta concepção de direito surge a noção do indivíduo portador de uma liberdade a priori e
ilimitada, sendo restringida apenas externamente, em um segundo momento, pelo âmbito de
5
KANT, Immanuel. ORTS, Adela Cortina (trad.). La Metafísica de los Costumbres. Espanha: Editorial Tecnos, 3ª edição, 2001, p. 28.
6
Op. cit., p. 29.
40 Revista da PGM
projeção da liberdade individual de seu vizinho. A partir do momento em que o direito passa a ser
visto, não mais como uma coordenação harmônica de interesses direcionados, mesmo que
indiretamente, para um fim comum, mas como uma convivência de esferas individuais de poder,
autônomas e auto-interessadas, inicia-se a instauração de um novo paradigma científico, naqueles
termos em que definidos por Thomas Kuhn.
A adoção do novo paradigma introduzido por Kant acarretou duas mudanças na perspectiva
do fenômeno jurídico. Primeiramente, o conjunto de condições que permite o convívio dos arbítrios,
agora chamado de direito, somente adquire sentido enquanto visto como modo coação daqueles
que injustamente adentram na esfera de liberdade de outro indivíduo. Não é por outra razão que
Kant afirma que “...derecho y facultad de coaccionar significan, pues, una y la misma cosa”7
.
A segunda alteração marcante está na descrença absoluta quanto à possibilidade de se aplicar um
juízo eqüitativo na composição dos conflitos jurídicos. O Mestre de Königsberg introduz a eqüidade
dentro de seção da sua obra que denominada “Direito Equívoco”, já que se mostra como a
situação em que o indivíduo possui direito, mas este não tem o direito de coação correspondente.
Assim, nestes casos, jamais poderá haver reparação de qualquer dano mediante a invocação da
eqüidade, pois “ésta sólo pertence al tribunal de la conciencia (forum poli), mientras que toda
cuestión jurídica ha de llevarse ante el derecho civil (forum soli).”8
Envolto em toda esta ideologia é que se encontra estruturada a relação jurídica na esfera
privada. Kant teoriza acerca dos vínculos jurídicos formados entre os indivíduos em seção de sua
obra denominada como “Modo de adquirir algo exterior.”9
Neste contexto, uma relação jurídica
obrigacional é definida como sendo a faculdade de o meu arbítrio, sob leis universais da
liberdade, adquirir o arbítrio de outrem, iniciando, assim, uma relação de causalidade, em
que o arbítrio adquirido se compromete a realizar determinado ato em meu favor. Vejamos as
palavras próprias de Kant:
“Pero que es lo exterior que adquiero por contrato? Puesto que sólo se trata de la
causalidad del arbitrio del otro con respecto a la prestacion que me ha prometido, no adquiero
inmediatamente una cosa exterior, sino un acto de este último, por el que aquella cosa pasa
a mi poder, para que yo la haga mía. Asi pues, mediante el contrato adquiero la promessa de
otro (no lo prometido)... Pero este derecho mío es sólo personal, es decir, un derecho frente a
una determinada persona física, o sea, el de actuar sobre su causalidad (su arbitrio) para
que produzca algo para mí...”10
Temos nesta passagem a marca de nascença do voluntarismo que impregnou, não
apenas o modo de pensar os vínculos obrigacionais, mas toda a mentalidade jurídica dos
últimos séculos.
7
Op. cit., p. 42.
8
Op. cit., p. 44/45.
9
Op. cit., p. 72.
10
Op. cit., p. 93.
Nº 24 - Dezembro 2010 41
b) Autonomia da vontade como princípio norteador no Direito das
Obrigações
O voluntarismo inaugurado pelo idealismo transcendental de Kant, juntamente com as
concepções liberais do século XIX, marcaram o direito obrigacional e os sistemas contratuais durante
longo período. Inspirados nos ideais da revolução francesa, os indivíduos são vistos e tratados com
igualdade absoluta – em um sentido meramente formal –, até porque todos, da mesma forma,
qualificados como seres racionais e dotados de plena liberdade para dispor acerca de seus destinos,
de acordo com aquilo que fosse ditado pela vontade. Neste momento histórico, a vontade aparece
como valor superior e o ato volitivo com evento de maior relevância no trânsito jurídico.
Além disto, desta matriz surge, para o direito obrigacional, o primado supremo da
autonomia da vontade, o qual, por um lado, impõe a obrigatoriedade dos compromisso assumidos
pelas partes e, por outro, a imutabilidade da avença firmada, independentemente das modificações
fáticas surgidas no mundo dos fenômenos. Esta última característica é reflexo claro de
superestimação do primado da vontade, bem como conseqüência da máxima abstração com que
os vínculos jurídicos são vistos pelo aplicador do direito neste período. Ora, dentro destas relações
ideais e abstratas, os seus partícipes são considerados apenas como seres numênicos – puramente
racionais e despedidos de qualquer qualificação empírica -, motivo pelo qual se torna extremamente
fácil tratá-los em pé de “igualdade”. Sendo também igualmente livres, dentro desta realidade
abstrata, os contratantes numênicos não estão autorizados a insurgir-se contra as regras ditadas
por eles mesmos neste ambiente de liberdade plena.
Assim, a absolutização de uma denominada autonomia da “vontade” impede que se
busque, dentro do direito obrigacional, uma igualdade material entre as partes contratantes,
afastando, ainda, a possibilidade de se alcançar a solução adequada em cada caso particular, qual
seja, o justo concreto.
Clóvis do Couto e Silva, em seu clássico artigo11
, relembra que, quando das Codificações
do Direito Civil do século XIX, o primado da autonomia da vontade sustentava-se em uma realidade
na qual havia um mercado eficiente, com uma economia estável, e com um Estado que não
promovia intervenções exageradas. Em contrapartida, as crises econômicas que marcaram a
primeira metade do século passado impuseram a utilização da cláusula “rebus sic stantibus”, a
fim de apaziguar o grande número de conflitos surgidos no período. Não obstante o respeito que
se impõe ao renomado civilista gaúcho, mostra-se necessário remarcar que, entre nós, não vemos
a falta de estabilidade econômica e financeira como sendo o critério suficiente ou necessário para
a adoção de uma postura relativizadora do primado da autonomia da vontade. A necessidade de
conjugarmos o elemento vontade com outros valores protegidos no Direito Obrigacional não
surge somente quando se está diante de realidades econômicas inseguras e instáveis. Isso significa
qualificar ainda mais o tom de relativização que necessita ser empenhado na compreensão da
autonomia da “vontade”, pois, mesmo em Estados com economia extremamente saudável, este
primado poderá ter que ceder diante das peculiaridades da situação particular.
11
A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro.
42 Revista da PGM
c) Estrutura do Direito das Obrigações no Código de Beviláqua
Clóvis Beviláqua concretizou no Código Civil de 1916 projeto dotado de qualidades
invejáveis, já que de elaboração escorada na genialidade deste mestre. Conforme afirmado por
Renan Lotufo, “é considerado um monumento legislativo de tal porte que é citado nos grandes
autores internacionais...”12
. Tais considerações são necessárias para mantermos aceso o respeito
que a obra legislativa indubitavelmente merece. Como é inerente à própria experiência humana,
nem o maior dos pensadores consegue captar, de modo pleno, o espírito que irá coordenar, no
futuro, a ordem das coisas. Por isso, torna-se necessário analisar a estrutura do Código de 1916
para, diferenciando, compará-lo com o Diploma Civil atualmente em vigor.
Por outro lado, não devemos obliterar qual era a postura ideológica que veio a guiar
Bevilaqua na produção de seu projeto. É marcante a inspiração da filosofia deontológica no seguinte
trecho do seu livro “Direitos das Obrigações”:
“Em todas essas faces da existência, o conceito de obrigação é, fundamentalmente, o
mesmo, porque é sempre a submissão a um regra de conduta, cuja autoridade é reconhecida
ou forçosamente se impõe ...”13
Assim como Kant, Bevilaqua vê na obrigação um compromisso indeclinável de se dar
observância a uma regra de conduta que, postada acima de nós, nos oprimi. Tanto é verdade
que, modificando singelamente conceito antes desenhado por Savigny, define a obrigação jurídica
como sendo:
“a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma
coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém que por ato nosso ou de
alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei adquiriu o direito de exigir
de nós essa ação ou omissão.”14
O Código de Beviláqua dispunha sobre o Direito das Obrigações no Livro III da sua Parte
Geral. A sistematização científica do seu projeto codificador apresentou, em primeiro lugar, as
modalidades de obrigações (Título I), classificadas de acordo com o seu conteúdo, para, em
seguida, estabelecer genericamente os efeitos regulares destas (Título II) e, depois, dispor, de
modo mais detalhado, acerca dos contratos e suas espécies (Título IV e V). O Código de 1916 não
continha nenhum título ou capítulo próprio para o trato do adimplemento obrigacional. Na verdade,
os dispositivos que tratavam especificamente do adimplemento encontravam-se, de modo esparso,
no Título II do Livro III, o qual assumia a denominação ampla “Dos efeitos das Obrigações”. Além
disso, o inadimplemento vinha regrado genericamente dentro do Capítulo XIII do mesmo Livro
III, com o nome “Das conseqüências da inexecução das obrigações.
12
Da oportunidade de Codificação Civil e a Constituição, in SARLET, Ingo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto
Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003.
13
Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Francisco Alves, 8ª edição, 1954, p. 14.
14
Op. cit., p. 14.
Nº 24 - Dezembro 2010 43
O fato de tanto o adimplemento da obrigação, quanto a falha no seu cumprir, estarem
ambos previstos no título genérico dos efeitos regulares das obrigações é por demais simbólico e
marca o espírito que rendia a postura do jurista na época de elaboração do Código, atualmente
revogado. Este simbolismo será analisado no item que segue.
d) Adimplemento como mero efeito dos vínculos obrigacionais.
Conforme já antecipado no item anterior, sob a égide do Código de Beviláqua, o
adimplemento, juntamente com a regra geral do inadimplemento (Art. 1.056. Não
cumprindo a obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde
o devedor por perdas e danos.), encontravam-se regrados, de forma esparsa, dentro do
título dedicado aos efeitos das obrigações. Esta constatação não é feita de modo
descompromissado, exatamente porque não se vislumbra como irrelevante ou aleatória a
presença do adimplemento debaixo do campo dos amplos e genéricos efeitos obrigacionais.
Na verdade, a constatação serve para demonstrar, mais uma vez, o plexo ideológico que
embriagava os juristas da época.
Ora, tendo já ressaltado que, sob o domínio da mentalidade voluntarista e idealista
inaugurada no século XIII, os vínculos obrigacionais eram vistos como meras conexões
estáticas entre dois centros de poder, formalmente iguais, e sempre antagônicos, nos quais
o arbítrio de um contratante captura o de outro, para seu interesse próprio, por óbvio que o
adimplemento da obrigação não teria como não assumir outro papel senão secundário. Neste
contexto, o adimplemento não é a finalidade de uma obrigação, mas mero efeito natural de
uma relação de causalidade que se inaugurou com a apreensão do arbítrio daquele que
sofre a imposição do dever jurídico. Sendo o adimplemento um efeito natural desta cadeia
de causalidade, aparece ele quase como carente de juridicidade – um simples evento social,
que, inclusive, poderia dispensar regramento jurídico próprio –, pois, lembrando-se de Kant,
nas hipóteses de sua configuração nenhuma necessidade de coação surgiria e, portanto,
desnecessário seria o Direito.
Como se pretende apresentar na segunda parte deste trabalho, o novo paradigma jurídico
instaurado pelo Código de 2002 resinstaura a ideia do adimplemento como telos de todo vínculo
obrigacional, assumindo, com isso, posição de destaque no Direito das Obrigações.
2. O ADIMPLEMENTO OBRIGACIONAL NO NOVO CÓDIGO CIVIL –
MUDANÇA PARADIGMÁTICA E A BUSCA PELA ETICIDADE DA SITUAÇÃO
a) Declínio do Idealismo transcendental kantiano (crise paradigmática)
Em seu estudo histórico sobre o padrão das evoluções científicas, Thomas Kuhn atesta
que o surgimento de um novo paradigma científico pressupõe o surgimento de casos anômalos
em relação aos quais o paradigma vigente não mais fornece respostas, provocando, com isso,
crises paradigmáticas. A conseqüência direta da instauração desta crise é a descoberta de novas
44 Revista da PGM
teorias científicas que moldam padrões pré-paradigmáticos, que, ao final, formam um novo
paradigma a ser observado e seguido pela comunidade acadêmica15
.
No caso da ciência do Direito, mesmo sendo de grande utilidade a terminologia de Kuhn,
não se pode dizer que o paradigma jurídico que atualmente está sendo difundido corresponda à
descoberta de uma nova teoria que emergiu do desenvolvimento científico. Na verdade, é de ser
compreendido como um redescobrimento dos pensadores clássicos.
De qualquer modo, a descrição de Kuhn sobre o aparecimento e o desenvolvimento da
crise paradigmática nos é bastante pertinente.
Na primeira parte deste trabalho, foram apresentados os fundamentos da postura filosófica
que inspirou as mentes dos juristas daquele período. As premissas do Iluminismo fizeram com
que o homem fosse visto como um ente puramente racional (ser numênico), despedido de todas
as suas características e qualidades, as quais precisamente o diferenciam de seus pares. Tal postura,
como já visto, veio a autorizar um tratamento a todos uniforme, baseado em uma igualdade
meramente formal. A influência do liberalismo clássico também deixou outras marcas, ao colocar
o homem como ser plenamente livre e guiado pela sua vontade, possibilitando que, baseado
exclusivamente em um ato volitivo, viesse ele a formar vínculos jurídicos e contrair obrigações, as
quais, assumidas livremente, deveriam ser atendidas e preenchidas independentemente das
modificações fáticas posteriores. Dentro destas relações intersubjetivas, um contratante numênico
encontrava-se munido de um direito subjetivo. Este era visto, nesta época, como um verdadeiro
poder que emanava de sua personalidade, quase que dotado de vida própria, nascido em meio a
uma penumbra mística, ilimitado, sofrendo apenas restrições externas, naqueles estritos pontos
previstos pelo ordenamento jurídico. Do outro lado desta mesma relação jurídica abstrata,
encontrava-se o outro contratante numênico, que, estando pechado por um dever jurídico que
lhe intimidava e lhe oprimia, ficava acuado no outro extremo da conexão, sem nada por fazer que
não absolutamente satisfazer o interesse daquele que portava o direito subjetivo, o qual, inclusive,
podia coagi-lo a dar cumprimento à prestação, caso desatento.
Mesmo sendo um tanto exagerada tal descrição, os seus fundamentos indubitavelmente
inspiraram os juristas de tempos passados.
Ocorre que modificações na forma do pensamento humano e na própria estruturação
social fizeram surgir realidades para as quais o paradigma idealista não dava conta, deslanchando-
se a já referida crise paradigmática. O rompimento com a postura da modernidade inicia-se
quando o homem não admite mais ser tratado pelo Estado como apenas uma abstração, não se
contentando com a igualdade formal e exigindo a instauração e a concretização de políticas que
visam a uma igualdade substancial, de acordo com a necessidade de cada indivíduo,
circunstancialmente qualificado. Trata-se da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, a
qual, porém, é matéria que indubitavelmente refoge ao tema proposto.
Este contexto, de qualquer modo, marca forte modificação no âmbito do direito civil,
instaurando a necessidade de as partes integrantes da relação serem compreendidas não
abstratamente, mas conforme suas particularidades concretas, as quais deverão ser levadas em
15
KUHN, op. cit., pp. 17/20.
Nº 24 - Dezembro 2010 45
consideração ao atribuírem-se as posição jurídicas respectivas. Com isso, deixa-se de analisar a
obrigação apenas pela sua perspectiva externa, passando-se a averiguar os aspectos internos da
relação obrigacional.
Para Judith Martins-Costa dois fatos levaram à ruptura do paradigma oitocentista. O
primeiro deles é a necessidade de, atualmente, ver o homem como ocupante de inúmeros papéis
dentro da sociedade, que o qualificam, não mais como mero sujeito de direito, mas como uma
pessoa concretizada e circunstancializada. Mais do que isso, a pessoa passa a ser vista como o
valor-fonte de todo o ordenamento jurídico, em relação ao qual todos os demais valores são
estruturados16
.
Em segundo lugar, impõe-se considerar que a própria racionalidade das relações
econômica emergentes na sociedade hodierna alterou-se. Isso porque vivenciamos hoje, o que
Bell denomina, de sociedade pós-industrial, na qual grande parte dos trabalhadores ocupa seus
postos no terceiro setor (serviços) e os contratos não servem mais apenas para a circulação de
bens, mas para englobar tratativas antes jamais imaginadas (meras criações de produtos
financeiros)17
.
b) Empirismo de Alf Ross como instrumento desmistificador do Direito
Subjetivo (função propedêutica do tû-tû)
Não obstante a inegável modificação na realidade social e econômica provocada pelos
fatos acima descritos, a reflexa alteração no paradigma jurídico não é algo facilmente apreendida
pelo jurista. Os conceitos e modelos defendidos no paradigma anterior estão de tal modo
impregnados em nosso intelecto que a adoção de um novo padrão de pensar mostra-se uma
tarefa árdua. O direito subjetivo e o dever jurídico são definições fortemente marcadas no
aprendizado do aplicador do direito e este ferrete provoca dificuldades no aceitar a estrutura
trabalhada no novo Código Civil. Por esta razão, antes de se passar ao estudo do novo paradigma
que agora se instala, é imperativo adotarmos algumas providências propedêuticas.
Para tanto, nos valeremos de precioso estudo apresentado por Alf Ross. Desenvolvendo
pensamento qualificável como empirismo jurídico, Ross elabora excelente texto que pode ser
visto como um instrumento desmistificador da noção se tem de direito subjetivo, conforme
entendido na concepção oitocentista antes traçada. O texto, assim, mostra-se propedêutico, pois
é leitura necessária para nos desapegarmos gradualmente do idealismo transcendental que assolou
e talvez ainda assole o pensamento jurídico.
Publicado no ano de 1957, o artigo assumiu o curioso e sugestivo nome de “Tû-tû”18
. Tal
título encontra esclarecimento já no relato inicial feito por Alf Ross. Relata o jusfilósofo escandinavo
que, em 1950, o antropologista Ydobon publicou estudo sobre a tribo Noît-cif, que habitava ilha
do Pacífico Sul, denominada Noîsulli, povo este considerado como o mais primitivo daquela época.
Ao analisar o povo noît-cif, o Sr. Ydobon veio a constatar que, entre os integrantes da tribo, tinha-
16
Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, pp. 04.
17
Op. cit., p. 05.
18
ROSS, Alf. Tû-Tû. Harvard Law Review, vol. 70. Cambriedge: The Harvard Law Review Association, 1956-7.
46 Revista da PGM
se o costume de se reconhecer o surgimento de algo por eles denominado de tû-tû, sempre que
um de seus tabus locais tivesse sido violado. Da mesma forma, aquele que agisse em contradição
com o tabu imposto na tribo também receberia a pecha de tû-tû. Não obstante a dificuldade de se
transpor a amplitude desta expressão não-civilizada para a linguagem científica, Ydobon explica
que tû-tû era visto como uma força perigosa ou uma infecção que acometia a pessoa do infrator
e colocava em risco integridade de toda a comunidade, razão pela qual o aparecimento de tû-tû
sempre exigia um ritual de purificação. Por isso, relata, exemplificativamente, que o fato de um
noît-cif comer a comida do chefe da tribo ou matar animal considerado sagrado demonstrava
como efeito correlato e imediato o surgimento do tû-tû, o qual, ainda em uma relação de
causalidade, exigia, para fins de sua resolução e apaziguação, a realização da cerimônia solene de
purificação19
. Assim, concluiu Ydobon que tû-tû não possuía qualquer significação semântica ou
utilidade prática, pois tinha como função apenas concatenar a descrição de fato violador de regra
costumeira com a prescrição da conseqüente sanção a ser aplicada nestes casos de violação, no
caso a cerimônia de purificação. Portanto, para ele o tû-tû apenas representava uma superstição
da tribo que ainda vivia em estado de incivilidade, o qual deveria, por óbvio, ser abandonado20
.
Neste ponto, Ross rompe sua narrativa para confessar que jamais existiu a ilha de Noîsulli,
o povo de Noît-cif nem o Sr. Ydobon21
. Da mesma forma, o tû-tû seria pura criação, fruto de sua
inventividade, servindo de crítica ao modo como, muitas vezes, o próprio aplicador do direito
visualiza o surgimento de uma relação jurídica, bem como entende a natureza do direito subjetivo
e do dever jurídico. Mesmo que não tenha conteúdo semântico próprio, Ross defende que seria
exagerado o abandono, proposto por Ydobon, de expressões como o tû-tû. Isso porque elas ganham
uma importante função no uso diário da linguagem, especialmente no campo jurídico, já que sua
aparição não é aleatória e sempre vem a representar um conector entre uma asserção descritiva
e uma asserção prescritiva.
O tû-tû deve ser compreendido, pois, como um instrumento necessário ao operador do
direito, isso quando vislumbrado como sendo um termo intermediário entre dois estado de coisas
(states of affairs), um descritivo, que qualifica a ocorrência de determinada situação jurídica tida
por relevante, e outro prescritivo, que indica as conseqüências que devem ser, por ele, aplicador
do direito, esperadas e almejadas.22
É por esta razão que a expressão tû-tû, mesmo não tendo
qualquer significado semântico, encontra forte função prática23
. Seria caótico o sistema jurídico
que pretendesse abstrair por completo de sua linguagem expressões tû-tû e passasse simplesmente
a elencar uma série desencadeada de fatos relacionados com conseqüências isoladas. Tal postura
19
Esquematicamente, a relação poderia ser apresentada da seguinte forma:
(1) Se alguém comer a comida do chefe da tribo, ele estará tû-tû;
(2) Se alguém estiver tû-tû, ele deverá ser submetido a uma cerimônia de purificação.
20
Por isso, a relação antes apresentada poderia ser simplesmente relatada através de uma única assertiva:
(3) Se alguém comer a comida do chefe da tribo, ele deverá ser submetido a uma cerimônia de purificação.
21
A leitura invertida dos termos corresponderia a Illusion, Fiction e Nobody.
22
“The tû-tû pronouncements seem able to fulfill the two main functions of all language: to prescribe and to describe; or to be more
explicit, to express commands or rules, and to make assertions about facts.” (op. cit., p. 813)
23
“Although the word “tû-tû” in itself has no meaning whatever, yet the pronouncements in which this occurs are not made in a
haphazard fashion. Like other pronouncements of assertion they are stimulated in conformity with prevailing linguistic customs by
quite definite states of affairs. This explains why tû-tû pronouncements have semantic reference although the word is meaningless.”
(op. cit., p. 814)
Nº 24 - Dezembro 2010 47
24
Tomando-se o exemplo da propriedade, explicitado por Alf Ross: “(Ownership) merely stands for the systematic connection that F1,
as well as F2, F3 ... Fp entail the totality of legal consequences C1, C2, C3 ... Cn. As a tecnique of presentation this is expressed then
by stating in one series of rules the fact that ‘create ownership’ and in another serires the legal consequences that ‘ownership’
entails.” (op. cit., p. 820)
25
Op. cit., p. 818.
26
Op. cit., p. 825.
27
CASTRO, Torquato. Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional. São Paulo, Editora Saraiva, 1985, p. VIII.
acarretaria um sistema infinito de regras jurídicas. Por isso, uma expressão ao estilo tû-tû tem a
precípua função de compilar e unificar um conjunto definido de realidades fáticas, relacionando-
o com uma séria, também ordenada, de conseqüências desejadas24
.
O excesso na compreensão do termo tû-tû estaria precisamente em entendê-lo como
sendo um ente dotado de autonomia e força própria, que poderia ser compreendido
independentemente da situação jurídica na qual surgiu. Tal postura é típica na noção oitocentista
de direito subjetivo, em que este seria visto como “a power of an incorporeal nature, a kind of
inner, and invisible dominion over the object of the right, a power manifested in, but
nevertheless different form, the exercise of the force (judgement and execution) by which the
factual and apparent use and enjoyment of the right is effectuated.”25
A alegoria do tû-tû, portanto, está direcionada a nós operadores do direito, sendo que,
por um lado, busca expurgar a falsa noção de direito subjetivo como poder autônomo emanado
de seu titular, no mesmo estilo místico e fantasioso em que era compreendido na fictícia tribo de
Noît-cif, e, por outro, pretende demonstrar sua inerente função sistemática na linguagem jurídica,
a qual possibilita unificar situações jurídicas de relevo com o seu conjunto de conseqüências
desejadas. Serve, portanto, como “ferramentas de presentação”26
ou como uma ligação causal
entre determinada situação fática descrita com determinada conseqüência jurídica desejada.
c) Introdução à Teoria da Situação Jurídica e a busca pela Eticidade
Afastada a natureza mística e esotérica que envolvia a noção de direito subjetivo, pode-se
apresentar a estrutura que molda o paradigma que hoje é reintroduzido na prática jurídica. Fala-
se em reintrodução, pois, na verdade, corresponde ele, até certo ponto, em um resgate do
pensamento clássico. A relação jurídica já não pode mais ser apreendida em sua visão estática, de
pólos antagônicos, em que direito subjetivo e dever jurídicos podem ser analisados de modo
apartado, pois estritamente opostos. A postura estática diante da relação jurídica poderia ser
representada da seguinte forma:
A > B
Direito Dever
Subjetivo Jurídico
Uma vez assimilados os ensinos propedêuticos apresentados no item antecedente, impõe-
se abandonar a “filosofia que reduziu o direito a uma simples manifestação de liberdade
individual.”27
A visão do fenômeno jurídico que não se contenta com a estrutura formalizada e
estática da relação jurídica é aquela que resgata a necessidade de se buscar o justo do caso concreto,
48 Revista da PGM
ou seja, a solução adequada para cada situação circunstancializada. O direito, portanto, nesta realidade,
não será um a priori da razão humana, tal como o imperativo categórico kantiano, mas um fenômeno
que tome em conta a problematicidade e a circunstancialidade das inúmeras situações fáticas
relevantes para o mundo jurídico28
. Tais situações fáticas, uma vez qualificadas pelo sistema jurídico
como relevantes, isto é, como fato jurídico29
, passam a estruturar situações jurídicas.
Os sujeitos de direito inseridos na situação jurídica necessitam ser qualificados de acordo
com as circunstâncias fáticas em que o vínculo obrigacional surgiu. Isso faz com que eles venham
a assumir posições jurídicas determinadas dentro da relação. Sobre a qualificação das posições
jurídicas, cabem os esclarecimentos de Torquato Castro:
“As posições dos sujeitos de direito, enquanto inseridos na situação jurídica, são
estruturadas pela norma e assim relativizadas as posições de fato de onde se geram. (...) Por
essa razão não cabe mais hoje considerar essas posições como categorias consistentes em aptidões
psicofísicas do indivíduo, nem como ‘manifestações’ ou ‘emanações’ da ‘capacidade’ humana...”30
A qualificação destas posições jurídicas serve ainda de medida para determinar como os
sujeitos concretizados participarão e interagirão diante do objeto que serviu, desde o início, de
motivo para o surgimento da obrigação. O estabelecimento deste parâmetro de medida estabelecido
entre os sujeitos devidamente posicionados e o correspondente objeto (res) é o que possibilitará
a justificação da solução adequada para o caso. Ora, sem a qualificação circunstancializada dos
sujeitos nem a atribuição de medida relativamente a coisa pela qual se vincula a busca pelo justo
concreto estará inviabilizada.
Assim, o pensar no direito em termos de situação jurídica traz nova dinâmica para o
fenômeno, pois exige que a posição de cada sujeito de direito relacionado seja justificada de
acordo com os elementos fáticos da situação particular, bem como seja estruturado critério de
medida entre os posicionados e o objeto da relação. Dito isso, podemos apresentar a conceituação
definitiva de situação jurídica, elaborada por Torquato Castro:
“(situação jurídica)...é a situação que de direito se instaura em razão de uma
determinada situação de fato, revelada como fato jurídico, e que se traduz na disposição
normativa de sujeitos concretos posicionados perante certo objeto; isto é, posicionados em
certa medida de participação de uma res, que se define como seu objeto.” 31
28
“Essencial à deliberação é a vontade que põe o ato em existência imediata. Mas não há arbítrio puro na decisão sobre as coisas
que podem ser por diversos modo. (...) Na ação prática, como projeção para um resultado, há a ponderação da escolha do
resultado, a das suas conseqüências previsíveis e a dos meios para alcançá-lo. (...) O direito, sendo solução existencial, vale-se da
razão que não é formal, e, sim, tópica, enquanto envolve com o problema. (...) A filosofia clássica cita, entre os primeiros, a
formação no jurista, de um hábito prático-experimental, que é a prudência... A prudência nas soluções jurídicas é chamada,
desde os romanos, de jurisprudência. O direito é, em parte essencial, organização de interesses em que se fundam as necessidades
vitais do homem.” (op. cit., pp. 2/5)
29
“Fato jurídico é todo evento apto a produzir conseqüências no mundo jurídico. ... O fato é juridicizado em função de um
problema cuja solução é dada com os efeitos de direito. A norma é, assim, igualmente constitutiva da juridicização do fato e da
juridicização da conseqüência que dele emana.” (op. cit, p. 27)
30
Op. cit., p. 46.
31
Op. cit., p. 50.
Nº 24 - Dezembro 2010 49
Considerando, assim, os elementos constitutivos da situação jurídica o sujeito, o objeto e
as posições dos sujeitos poderíamos, ainda, estruturar o seguinte modelo esquemático:
A < > B
O
Vejamos, pois, no tópico seguinte, quais as conseqüências obtidas na assunção desse
novo paradigma jurídico.
d) Estrutura do Direito das Obrigações no Novo Código Civil
O modo como o Direito das Obrigações foi estruturado no novo Código Civil lhe é aspecto
bastante marcante, sendo de grande valia a análise desta estrutura para a sua completa
compreensão. O Direito das Obrigações inaugura a Parte Especial do novo Diploma, apresentando-
se no seu Livro I. Diferentemente do ocorrido no Código de 1916, este estabelece uma estrutura
que prioriza a visualização das fases pelas quais o vínculo obrigacional normalmente passa. Por
isso, iniciou o novo Código dispondo acerca das normas aplicáveis à formação dos vínculos
obrigacionias, no título denominado “Das Modalidades das Obrigações” (Título I), para, em seguida,
tratar das diferentes formas de movimentação pelas quais as obrigações assumidas podem passar
(Título II). Mais adiante, veio a estabelecer as regras pertinentes ao adimplemento e extinção das
obrigações (Título III), bem separando-as daquelas aplicáveis ao seu inadimplemento (Título IV).
O espírito do novo Código, portanto, secciona as regras pertinentes ao Direito Obrigacional
de acordo com as diferentes fases em que o vínculo poderá se encontrar. Temos, assim,
primeiramente, os dispositivos pertinentes à formação do vínculo, seu desenvolvimento e sua
eventual transformação. Em um segundo momento, são apresentadas as regras aplicáveis ao
adimplemento e às demais formas de extinção regular (dentro da normalidade) da obrigação,
para, em seguida, serem tratadas a forma patológica e anômala de findar-se o vínculo obrigacional.
Aliás, a separação das obrigações em duas fases – a do nascimento e desenvolvimento dos deveres
e a do adimplemento – já havia sido destacada por Clóvis do Couto e Silva32
.
Marcante, ainda, no novo Código é a distinção promovida no Título III do Livro I da
Parte Especial entre o adimplemento da obrigação e sua extinção. O adimplemento, aqui
entendido como sinônimo de pagamento e de cumprimento, corresponde à satisfação da
prestação devida, de modo voluntário, com exatidão, de acordo com as condutas determinadas
pelo princípio da boa-fé objetivo e mediante a satisfação do interesse do credor. Já a mera
extinção da obrigação deve ser vista como o término do vínculo jurídico que não observou os
quatro requisitos necessários para a configuração do adimplemento em sentido estrito, tal
32
COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como Processo. São Paulo, Ed. Bushatsky, 1976;
50 Revista da PGM
como ocorre na remissão, na prescrição, na impossibilidade superveniente e na impossibilidade
por onerosidade excessiva33
.
Por esta razão, o adimplemento, dentro da estrutura do Código, pode ser compreendido
como uma espécie do gênero extinção da obrigação.
e) Obrigação como processo – pioneirismo de Clóvis do Couto e Silva
A seminal obra “Obrigação como Processo” de Clóvis do Couto e Silva é sem dúvida um
marco no desenvolvimento do Direito Civil pátrio. Continha ela ideias e conceitos extremamente
inovadores para o ano de 197634
, quando publicada, da mesma forma como ainda mantêm
atualidade e relevância nos dias de hoje. Esses ensinamentos indubitavelmente trilham a mesma
matriz ideológica que serve de suporte à Teoria da Situação Jurídica antes analisada e, por este
mesmo motivo, estão fortemente presentes nas diretrizes que formaram o segmento pertinente
ao Direito das Obrigações do novo Código.
Não é à toa que o clássico livro, já na sua primeira página, dá destaque máximo ao
adimplemento, ao dizer que este “atrai e polariza a obrigação”. Em seguida arremata, “É o seu
fim. O tratamento teleológico permeia toda a sua obra, e lhe dá unidade.”35
Coincidentemente ou não, Aristóteles, em sua Ética a Nicômacos, também inicia sua doutrina
com a seguinte sentença: “Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito,
visam a algum bem; por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas
visam.”36
Portanto, a constatação do civilista gaúcho relativamente ao direito das obrigações e ao
adimplemento, já havia sido bem destacada pelo Estagirita em relação a todas as ações humanas.
Com estas palavras, Clóvis do Couto e Silva inaugura a concepção da obrigação como
sendo uma realidade processualizada, complexa e dinâmica, que somente se justifica porque a
ela é destinado um fim. Este fim, o seu telos, é obrigatoriamente o adimplemento. Ao se colocar
o adimplemento como finalidade de toda e qualquer obrigação, modifica-se a própria forma de
compreensão do vínculo obrigacional. Este passa a ser visto como totalidade, uma “cadeia de
processos”, que se desenvolve e se direciona exclusivamente para o seu fim, que é o adimplemento.
A complexidade pela qual passa a ser compreendida a obrigação vem a alterar também a
postura daqueles integrantes da relação jurídica. Sendo o adimplemento a direção obrigatória
para qual se deve dirigir o vínculo obrigacional, as partes que dele são integrantes não mais
podem ser vistas como localizadas em posições antagônicas e contraditórias. A obrigação, enquanto
processo dinâmico que é, impõe a ambos os participantes deveres que devem ser atendtidos para
atingir-se o almejado adimplemento.
Portanto, a relação obrigacional, agora vista com a complexidade que lhe é inerente,
passa a ser entendida como um foco de cooperação e colaboração, impondo aos seus integrantes,
33
Vide, ainda, MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003,
pp.84/92.
34
Sua versão datilografada remontava a 1964, conforme MARTINS-COSTA, Judith (Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo
I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003).
35
Op. cit., p. 05.
36
ARISTÓTELES. KURY, Mário da Gama (trad.). Ética a Nicômacos. Brasília: Editora da UNB, 3ª edição, 2001, p. 17.
Nº 24 - Dezembro 2010 51
além da necessidade de cumprir os deveres de prestação, a de dar atendimento a deveres
instrumentais. Somente assim será plenamente atingido o adimplemento e garantida a proteção
aos interesses regrados pelo vínculo jurídico que se formou.
Estes deveres instrumentais, necessários para se alcançar o pleno adimplemento
obrigacional, são estruturados através da compreensão do modelo jurídico boa-fé, o qual será
analisado, em seguida, de acordo com as três formas possíveis em que pode vir manifestado no
ordenamento jurídico.
3. O MODELO JURÍDICO DA BOA-FÉ E SUA
TRIDIMENSIONALIDADE NORMATIVA.
a) A Teoria dos Princípios de Humberto Ávila
Em período mais recente, Humberto Ávila publicou instigante livro, no qual apresenta
projeto inovador acerca da distinção entre regras e princípios37
. Ávila inicia sua exposição com
crítica ao trabalho de Ronald Dworkin, que inaugurou no mundo jurídico a discussão sobre regra
e princípio, bem como à adapatação destes conceitos elaborada por Robert Alexy, apontando as
insuficiências dos critérios adotados por estes juristas e a conseqüente dificuldade de identificação
e aplicação das espécies com base nestes métodos. O trabalho de Ávila, na verdade, deve ser visto
como uma complementação e evolução das pesquisas jurídicas realizadas por grandes jusfilósofos
que lhe antecederam.
Ávila toma, ainda, como ponto de partida para seu projeto, a distinção entre texto e norma38
,
além da natureza constitutiva da interpretação (como atividade verdadeiramente reconstrutiva)39
.
Ao que interessa para o presente estudo, pode-se dizer, sucintamente, que as regras,
segundo Humberto Àvila, estariam distanciadas dos princípios em razão de três critérios, quais
sejam natureza do comportamento descrito; a natureza da justificação exigida; a medida de
contribuição para a decisão. Por isso, as regras seriam “normas imediatamente descritivas,
primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência”40
, enquanto
que os princípios seriam “normas imediatamente finalística, primariamente prospectiva e
com pretensão de complementariedade e de parcialidade.”41
Além de regras e princípios, o ordenamento jurídico também seria composto de postulados
normativos. Estes não indicariam nem um comportamento imediato, nem uma finalidade a ser
37
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
38
“Normas não são textos nem conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos.
Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não
existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dipositivo haverá uma norma, ou
sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.” (op. cit., p. 22)
39
“... interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir; a uma porque utiliza como ponto de partida os textos
normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados
núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual.” (op. cit.,
25).
40
Op. cit., p. 119.
41
Op. cit., p. 129.
52 Revista da PGM
buscada pelo operador do direito, mas apenas os critérios que deveriam orientar a interpretação
e aplicação das outras duas espécies normativas. Por isto, os postulados “situam-se num plano
distinto daquele das normas cuja aplicação estruturam.”42
São, portanto, metanormas que
apenas indicam o método a ser seguido na invocação e aplicação das outras normas
comportamentais e normas finalísticas.
Dessa forma, com base na inovadora tese de Humberto Àvila, o ordenamento jurídico
deveria ser analisado de acordo com uma perspectiva que tomasse em conta as três dimensões –
regra, princípio e postulado – em que uma norma poderia ser estruturada, a qual não
necessariamente corresponderia a um enunciado específico e determinado. Inaugura, assim, a
tarefa de pensarmos o sistema jurídico de acordo com uma tridimensionalidade normativa.
b) Modelo jurídico da boa-fé como regra, princípio e postulado
Os deveres secundários, cujo cumprimento se impõe a fim de que seja alcançado o
adimplemento da obrigação, devem ser extraídos do modelo jurídico da boa-fé, razão pela qual a
sua compreensão deve ser ampla e completa. Por esta razão, importa aplicarmos os ensinamentos
de Humberto Ávila na tentativa de visualizarmos as três dimensões possíveis que o modelo jurídico43
da boa-fé pode se revestir.
Tentaremos, portanto, apontar a boa-fé, em nosso ordenamento jurídico, com regra,
como princípio e como postulado, lembrando que um único enunciado jurídico pode, por uma
via, não corresponder exclusivamente a uma norma, mas, por outra, pode vir a demonstrar mais
de uma dimensão normativa.
c) Indicação da tridimensionalidade normativa da boa-fé no Novo Código Civil
A ausência de uma referência legislativa expressa no período anterior à entrada em vigor
do novo Código não impediu que o princípio da boa-fé objetiva fosse gradualmente estruturado
pela doutrina e aplicado pelos Tribunais em decisões mais avançadas. Atualmente, a boa-fé objetiva
encontra-se estruturadas em inúmeros dispositivos do novo Diploma Civil, merecendo, porém,
especial destaque as duas cláusulas gerais contidas nos art. 187 e 422, in verbis:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
42
Op. cit., p. 80.
43
Toma-se o conceito de modelo jurídico elaborado por Miguel Reale, que é apresentado como sendo uma “estrutura normativa de
atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos
valores que lhes são próprios.” (REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:
Saraiva, 3ª edição, 2002, p. 48)
Nº 24 - Dezembro 2010 53
O próprio compreender da obrigação como um processo dinâmico e complexo impõe
que se veja a boa-fé objetiva como um instrumento norteador tanto para definir as atitudes
consideradas como admissíveis dos integrantes do vínculos como para apontar o modo adequado
para que a relação obrigacional alcance seu fim necessário, qual seja, o adimplemento. Portanto,
a boa-fé objetiva impõe deveres instrumentais que devem ser obedecidos pelos integrantes da
relação para garantir tanto a sua correta postura, como o substancial adimplemento da obrigação.
Estes deveres instrumentais oriundos da boa-fé objetiva não encontram destinatário apenas
na pessoa qualificada na relação como “devedor”, conforme seria de se esperar no modelo obrigacional
estruturado no paradigma oitocentista. No modelo atual, que assume a obrigação como processo, os
interesses das partes envolvidas, que se encontram regrados através do vínculo jurídico, são vistos
como uma força convergente, de sentido único, a qual culmina obrigatoriamente no adimplemento.
Com isso, a boa-fé impõe deveres exclusivos ao “devedor”, além de deveres próprios do “credor”,
assim como deveres atribuídos igualmente a ambos os partícipes da relação. Em primeiro lugar, é
dever exclusivo do devedor realizar um “comportamento útil” e “economicamente significativa”
para satisfazer o interesse do credor. Ao credor, por sua vez, cabe adotar atitudes que demonstrem
lealdade e confiança para com a sua contraparte na relação, assumindo assim deveres de não agravar
a situação do devedor, otimizar os meios para o pagamento, bem como devidamente esclarecer e
informar aquele que deve realizar a prestação devida.
Conforme havia sido apontado no item anterior, o modelo jurídico da boa-fé deve ser
visualizado de acordo com as três dimensões que uma espécie normativa pode adotar, quais
sejam regras princípios e postulados. Cabe, portanto, indicar no próprio texto do novo Código
Civil a tridimensionalidade normativa que a boa-fé pode assumir.
Inicialmente, devemos diferenciar da boa-fé objetiva o sentido normalmente atribuído à
denominada boa-fé subjetiva. Enquanto aquela se apresenta como um padrão de conduta
objetivamente determinado, que guia o homem probo em sua ação através de um sentimento de
lealdade, confiança e honestidade, esta se configura como um estado psicológico ou de consciência
da pessoa, qualificada na norma como necessária para a configuração de uma situação jurídica
determinada. Poder-se-ia dizer, melhor esclarecendo, que a boa-fé subjetiva “denota estado de
consciência, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito
(sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria
possessória.”44
O enunciado legal do qual pode ser extraída a norma representativa da boa-fé subjetiva
está localizado no art. 1.201 do CC/02, in verbis:
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que
impede a aquisição da coisa.
Nesta situação específica, pode-se afirmar, com convicção, que a boa-fé, em sua perspectiva
subjetiva, assume contornos de regra, já que vem a ser um dos elementos essenciais do suporte
44
A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 411.
54 Revista da PGM
fático, necessário para que haja a subsunção da norma. Melhor dizendo, no caso da boa-fé subjetiva,
a conduta necessária para o atingimento da conseqüência jurídica desejada já se encontra,
imediatamente, descrita na norma.
Dizer que a boa-fé subjetiva adota contornos de regra, não significa afastar da boa-fé
objetiva a possibilidade de receber a mesma dimensão normativa. Podemos apontar a boa-fé
objetiva como norma imediatamente comportamental, ou seja, qualificada como regra, nas
situações previstas no § 2º, do art. 16745
, bem como no art. 11346
, ambos do novo Código Civil.
Ora, tanto o ressalvar do terceiro de boa-fé no caso de contratos simulados, quanto a obrigatoriedade
de se interpretar os negócios jurídicos com base na boa-fé e nos usos, exigirão apenas “uma
avaliação da correspondência entre a construção conceitual da norma e a finalidade que lhe
dá suporte”47
, dispensando, ainda, uma justificação de maior calibre para sua aplicação, pois
preliminarmente decisivas e abarcantes. Isso significa dizer que a invocação da boa-fé na
interpretação dos contratos ou no resguardar de direito de terceiro não exigirá uma exposição
argumentativa de maior fôlego, exatamente por adota uma dimensão de regra.
A boa-fé objetiva, porém, ganha maior relevância nas situações em que adquire sua
natureza principiológica, ou seja, quando adota contornos de norma imediatamente finalística,
que aponta para um estado ideal de coisas, o qual somente é alcançado através da adoção de
determinados comportamentos não indicados expressamente no dispositivo legal. Por isso, do
princípio da boa-fé devemos extrair os padrões de conduta que são necessários para o pleno
adimplemento da obrigação, condutas estas sempre entendidas como denotadores da confiança
e lealdade entre os integrantes da relação jurídica. Além disso, do princípio da boa-fé objetiva
também pode ser retirados os demais deveres instrumentais que são devidos às partes vinculadas
pela obrigação, tais como os deveres de proteção, de cooperação e de informação. Em ambas as
situações, os comportamentos específicos devidos em cada situação jurídica não são sabidos de
antemão, o que demonstra o caráter prospectivo da boa-fé, enquanto princípio, bem como a
necessidade de se melhor justificar a sua invocação e aplicação no caso concreto.
A estruturação normativa do princípio da boa-fé objetiva parte obrigatoriamente da
apreensão de sentido dos arts. 187 e 422, antes transcritos. Por óbvio, o princípio da boa-fé
objetiva não encontra seu local de suporte e apenas nestes dois enunciados, mas, na verdade,
busca sua força de justificação em outros dispositivos que indiretamente apontam para o mesmo
estado ideal de coisas (o de confiança e lealdade entre as partes vinculadas).
Por fim, podemos vislumbrar a boa-fé em sua dimensão de postulado normativo, o que
significa dizer que ela assume forma de norma imediatamente metódica, que estrutura a interpretação
e aplicação dos demais princípios e regras, com base em critérios definidos.48
Para nós, a dimensão
metodológica da boa-fé é explicitamente trabalhada no novo Código Civil naquelas situações em que
o legislador buscou normatizar o enriquecimento sem causa, visando a garantir o equilíbrio material
das relações jurídicas. Por isso, entendemos que este equilíbrio, de manutenção obrigatória nas
45
“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. (...)
§ 2o
Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.”
46
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
47
ÁVILA, op. cit., p. 120.
48
ÁVILA, op. cit., p. 120.
Nº 24 - Dezembro 2010 55
relações obrigacionais, assume, além de sua típica natureza principiológica, contornos de postulado
normativo que podem ser vinculados diretamente à boa-fé. Assim, a interpretação das situações de
excessiva onerosidade retratadas pelo Código Civil49
Citamos, exemplificativamente, os arts. 317, 478
e parágrafo único do art. 944, todos do CC/02, que seguem transcritos:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre
o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o Juiz corrigi-lo, a
pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma
das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude
de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do
contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
deverá ser guiada obrigatoriamente pelo postulado normativo da boa-fé, o qual deverá
indicar os critérios para solução de conflito no caso concreto.
CONCLUSÃO
Uma leitura comparativa dos textos dos diplomas civis de 1916 e 2002, que seja realizada
de forma perfunctória e desatenta, pode vir a indicar que muito pouco mudou-se no regramento
do Direito Civil e do Direito das Obrigações. Entretanto, tomando-se em relevância o paradigma
jurídico que inspirou a feitura da legislação civil hoje já revogada e comparando-o com a nova
postura que o aplicador do direito necessita ter ao manejar o novo Código, o entendimento daqueles
que não vêem qualquer mudança mostra-se míope e de todo equivocado.
Assim, para atingir a adequada compreensão do Código Civil atualmente vigente não
basta, por óbvio, apenas atentar-se aos seus enunciados. É imperativo seu estudo estrutural e
sistemático.
O individualismo e o idealismo transcendental que marcaram a experiência jurídica
na Modernidade não encontram mais resguardo nos parâmetros praticados na sociedade
pós-industrial hoje sendo vivenciada. Por esta razão, a estrutura do Novo Código demonstra
uma preocupação do legislador em permitir a busca pela solução adequada em cada caso
concreto, mediante um juízo de relevância das particularidades projetadas em cada situação.
Assim, a necessidade da concreção e da busca pela eticidade na situação particular marcam
o tom do Novo Código.
49
Citamos, exemplificativamente, os arts. 317, 478 e parágrafo único do art. 944, todos do CC/02, que seguem transcritos:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento
de sua execução, poderá o Juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,
com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a
resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a
indenização.”
56 Revista da PGM
De acordo com o novo paradigma, a obrigação passa a ser vista como processo, um vínculo
formado através do espírito de cooperação mútua existente entre aqueles que entenderam por bem
regrar seus interesses. Por esta razão, o vínculo obrigacional somente encontra sua justificação
quando visualizado de acordo com o fim para o qual surgiu, qual seja, o seu pleno adimplemento.
Este pleno adimplemento não é mais atingido pela simples entrega do bem pretendido por
aquele denominado de credor na obrigação. Além do cumprimento da prestação devida, as partes
vinculadas pela obrigação necessitam, agora, dar atenção a deveres de uma ordem diferenciada,
deveres estes demonstradores efetivos da relação de lealdade e confiança que havia se instalado.
Estes deveres secundários são estruturados através da compreensão do modelo jurídico
da boa-fé, o qual, conforme se pretendeu demonstrar através de uma leitura do próprio Código
Civil de 2002, pode ser analisado de acordo com a sua tridimensionalidade normativa.
Portanto, pode-se dizer que o foco principal deste pequeno estudo foi analisar os dois
paradigmas jurídicos que inspiraram a elaboração dos Códigos de 1916 e de 2002, diferenciando-
os, e, ainda, demonstrar a possibilidade de se analisar o modelo jurídico da boa-fé como regra,
como princípio e como postulado.
OBRAS CONSULTADAS
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do Devedor. Rio de
Janeiro: Aide Editora, 1991;
ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das Obrigações. Portugal: Almedina, 9ª edição, 2001;
ARISTÓTELES. KURY, Mário da Gama (trad.). Ética a Nicômacos. Brasília: Editora da UNB, 3ª
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____________________. The Nicomachean ethics. Grã–Bretanha: Wordsworth Classics of
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ASSIS, Araken de. Resolução do Contrato por Inadimplemento. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva
comparatista. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, vol. 09, 1993, pp. 60-70;
BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Francisco Alves, 8ª edição, 1954.
COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como Processo. São Paulo, Ed. Bushatsky, 1976;
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FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Princípios de direito das Obrigações no Novo Código Civil.
In: SARLET, Ingo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Editora Livraria
do Advogado, 2003;
FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Função Social do Contrato no novo Código Civil e sua conexão
dom a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição.
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003;
FONTES, André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002;
KANT, Immanuel. ORTS, Adela Cortina (trad.). La Metafísica de los Costumbres. Espanha: Editorial
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KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Estados Unidos da América: University
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MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999;
____________________. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial:
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____________________. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código
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____________________. Comentários ao Novo Código Civil. Volume V. Tomo I. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2003;
MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português - I Parte Geral, Tomo I.
Portugal: 2ª edição;
PERLINGIERI, Pietro. CICCO, Maria Cristina De (trad.) Perfis do Direito Civil – Introdução ao
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ROSS, Alf. Tû-Tû. Harvard Law Review, vol. 70. Cambriedge: The Harvard Law Review Association,
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SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. Editora Revista
dos Tribunais, 2ª edição, 1997.
58 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 59
Paisagem Urbana e Dano Ambiental Estético:
As cidades feias que desculpem, mas a
beleza é direito fundamental1
Flávia de Sousa Marchezini2
1
MARCHEZINI, Flávia de Sousa. Paisagem urbana e dano ambiental estético: as cidades feias que me desculpem, mas beleza é direito fundamental.
Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte – RPGMBH, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, jan./jun. 2010.
2
Procuradora do Município de Vitória-ES, Professora de Direito Administrativo e Direito Ambiental , Mestre em História Social das
Relações Políticas pela UFE.
3
BENJAMIN, Antonio Herman. Paisagem, natureza e direito: uma homenagem a Alexandre Kiss. In: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos
e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2. Não paginado.
“A proteção da paisagem é um longo e inacabado processo histórico. (...) todos
hoje se sentem, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, vinculados
aos destinos da terra e, a partir dela, às belezas que ela oferece. Eis a importância
da paisagem no discurso político, cultural, ético e jurídico da proteção ao meio
ambiente.” 3
60 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 61
Introdução
O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de
urbanização, especialmente na segunda metade do século XX. Em 1940, a população urbana era
de 26,3% do total. Em 2000, passou para 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante
ainda se lembrarmos os números absolutos: em 1940, a população que residia nas cidades era de
18,8 milhões de habitantes, e em 2000, ela era de aproximadamente 138 milhões4
. Constatamos,
portanto, que em 60 anos os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais
de 125 milhões de pessoas.
Trata-se de um gigantesco movimento de construção urbana necessário para o
assentamento residencial dessa população, bem como para a satisfação de suas necessidades de
trabalho, abastecimento, transporte, saúde, energia, água, lazer, etc5
.
Esse intenso processo de urbanização, gerado a partir de um modelo funcionalista, com
a predominância dos interesses econômicos, fez surgirem novas demandas no que tange à proteção
do meio ambiente, ampliando-se o campo de atuação do Direito Ambiental.
Diante desse quadro, inevitável foi a preocupação com a degradação do espaço urbano,
passando-se a falar, mais recentemente, na existência de um direito urbano-ambiental6
.
Em uma homenagem ao Professor Alexandre Kiss, Antônio Hermam Benjamim7
reflete
sobre o surgimento de novos focos no Direito Ambiental, com destaque para a proteção da
paisagem:
“Realmente, quando imaginávamos que o Direito ambiental
já havia se consolidado em um espaço mais ou menos
definido, eis que, recentemente (re)surge a paisagem como
um dos seus temas centrais, tanto no Direito Internacional
(e aí está a convenção européia da Paisagem), como no
Direito Interno. Apropriadas aqui as palavras de Lewis
Mumford, em sua obra clássica, quando lembra que
“felizmente a vida tem um atributo previsível: é cheia de
surpresas.A paisagem é uma delas.”
4
ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 13
5
MARCHEZINI, Flávia de Sousa. Cidade e cidadania no Brasil: uma análise historiográfica da participação popular construída num ambiente
urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 8, n. 45, p. 12-25, maio/jun. 2009. Disponível em www.anpm.com.br
6
Dentre os defensores da existência de um Direito Urbano-ambiental no Brasil, mencionamos Toshio Mukai , Vanesca Buzelato Prestes, Maria
Etelvina Bergamaschi Guimaraens, dentre outros.
7
BENJAMIN, 2005. Não Paginado.
62 Revista da PGM
A preocupação com a paisagem, em especial com a paisagem urbana emerge da
necessidade de se ajustar o território e as ocupações urbanas de modo que propiciem qualidade
de vida aos seus habitantes, e de preservar os espaços verdes e demais áreas de interesse ambiental
que sobreviveram ao processo de ocupação. Amplia-se o foco, mas é mantido o viés funcionalista
e antropocêntrico no tratamento da questão.
A paisagem da cidade, então, passa a ser percebida como um bem ambiental de extrema
importância e que já conta com algum regramento jurídico no plano internacional, nacional e
local, mas que ainda padece com pré-conceitos relacionados à concepção de beleza e com a
ausência de ações mais efetivas de prevenção e reparação.
O cenário urbano é um bem jurídico diretamente relacionado com qualidade de vida dos
habitantes das cidades e de todos aqueles que por elas circulam, razão pela qual, nos propusemos,
através do presente, buscar uma melhor compreensão das suas funções ambientais, com vistas a
estimular os operadores do direito a atentar para as constantes violações a esse bem jurídico, e
para as graves consequências sócio-ambientais não só das ações lesivas, mas também da “timidez”
em se buscar a responsabilização patrimonial e extrapatrimonial dos causadores dos danos.
1. A PAISAGEM URBANA COMO MICROBEM AMBIENTAL E
SUAS FUNÇÕES
A Constituição da República dispõe, em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as
presentes e futuras gerações”.
Com o escopo de dar a máxima proteção ao meio ambiente, a nossa matriz constitucional
traz a concepção de meio ambiente enquanto macrobem, em sua visão mais geral e abstrata.
Como macrobem abstratamente caracterizado, o meio ambiente pode ser compreendido
como o conjunto de interações físicas, químicas e biológicas que permite, abriga e rege a vida em
todas as suas formas8
. Paralelamente, têm-se os bens ambientais, caracterizados em especificidade
e concretude. São os elementos ambientais (microbens) bióticos (fauna e flora), abióticos (água,
solo, ar), culturais (bens materiais e imateriais de valor histórico, artístico ou estético) e artificiais
(conjunto de edificações, ruas, praças, jardins e espaços livres e equipamentos urbanos em geral).
O Meio Ambiente como macrobem, contudo, não se confunde com o somatório dos
microbens ambientais. Ele é universalmente considerado, ao passo que os bens ambientais
são específicos e individualmente examinados, não obstante haja permanente inter-relação
entre os mesmos.
Nessa ótica, a paisagem urbana é um bem, um valor ambiental. Sua proteção decorre da
necessidade humana de conviver com elementos sensoriais que lhes proporcionem bem estar
físico e psíquico, intimamente relacionados com a proteção à qualidade de vida à que alude o
texto constitucional.
8
CAMPOS, Ibrahim Camilo Ede. Especificidade do dano ambiental e biodiversidade na esfera da reparação civil ambiental. Tese apresentada
no 3º Congresso de Estudantes de Direito Ambiental. Tema do evento: mudanças climáticas, biodiversidade e uso sustentável de energia. São
Paulo, JUN/2008. Disponível em http://www.direito.ufmg.br/neda/arquivos/texto-congresso-jun.pdf
Nº 24 - Dezembro 2010 63
No nosso mundo sensorial, a visão domina todos os outros sentidos.
Nós somos profundamente marcados pelas associações visuais e
sensoriais. Seres visuais, muito mais informação nos alcança pelos
olhos do que pelos outros sentidos9
.
RODRIGUES10
divide as funções dos microbens ambientais em função ecológica e funções
artificiais:
É que, como se disse, em razão do fato de os microbens ambientais
(recursos ambientais) terem, ao lado de uma função ecológica, outras
funções – que chamamos de artificiais (econômica, social e cultural)
–, é claro que a ofensa à função ecológica destes bens, normalmente,
acarretará, por via reflexa, uma agressão às suas funções
antropocêntricas. É o que acontece, por exemplo, quando a emissão
de poluição no mar, além de degradar o meio ambiente, cause danos
à atividade econômica dos pescadores que dependem do mar para
exercer o seu trabalho.
No léxico, paisagem é a extensão de território que se abrange com o lance de uma vista11
.
Abrange, portanto, na maioria dos casos, elementos naturais e culturais, sendo cada vez mais
rara, em nosso planeta, a existência de paisagens absolutamente livres de quaisquer interferências
humanas.
Quando se fala em paisagem urbana, a indissociabilidade entre cultura e natureza se
torna regra absoluta:
O fato é que a paisagem é a materialização por excelência da
indissociável união entre cultura e natureza. Como afirmam Morin e
Kern, somos orientados por um duplo estatuto composto por cultura e
natureza. A interação do homem com o meio natural se dá a partir de
sua bagagem cultural. Para atingir o ideal da qualidade de vida, com
o qual nosso ordenamento jurídico está comprometido por força da
inserção da dignidade da pessoa humana dentre os fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, da CF) e como uma
das finalidades da ordem econômica (art. 170, “caput”) e
expressamente salvaguardado pelo “caput” do art. 22512, o ser
humano necessita de uma configuração espacial que propicie o bem-
estar físico e psíquico13
.
9
BENJAMIM, 2005. Não Paginado.
10
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Reflexos do direito material do ambiente sobre o instituto da coisa julgada (in utilibus, limitação territorial,
eficácia preclusiva da coisa julgada e coisa julgada rebus sic stantibus).Disponível em www.marceloabelha.com.br . Acesso em 29 out 2009.
11
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em http://www.priberam.pt
13
MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela jurídica da paisagem no espaço urbano. Revista de direito ambiental. São Paulo, v. 11, n. 43, p. 07-
34, jul. /set. 2006. Disponível em www.iedc.org.br. Acesso em 10 OUT 2009.
64 Revista da PGM
Sendo um mecanismo visual de interação entre o Homem e a natureza, a paisagem
urbana afigura-se como “a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e
visitantes14
” e, conforme já exposto, é por vezes tratada no campo do direito urbanístico, e outras
na seara do direito ambiental.
Poder-se-ia dizer, por conseguinte, que a paisagem é o conjunto de elementos visuais que
dão testemunho das relações entre o homem e a natureza. A sua proteção, embora possa se
identificar de modo individual diante de algum caso concreto em especial, encerra inegável interesse
difuso por relacionar-se diretamente com a qualidade de vida e com o bem-estar da população.
É de toda a população, portanto, o interesse de morar em uma cidade
ornamentada, plasticamente agradável e, por que não dizer, bela. “.15
Destaca RODRIGUES16
, que “o ser humano ainda não conseguiu dominar e nem entender
todos os papeis desenvolvidos pelos bens ambientais. É o que poderíamos chamar de
desconhecimento científico pela coletividade, das funções exercidas pelos bens ambientais”. A
partir da compreensão da paisagem como um microbem ambiental, procuraremos no presente
item, com fulcro em estudos já realizados e doutrina já produzida, destacar algumas funções da
paisagem urbana com vistas a facilitar a identificação dos danos a ela causados.
SILVA17
destaca uma função estética da paisagem urbana, que sobressai da variedade de
formas, do traçado urbano e dos contrastes das construções com elementos naturais, da limpeza
das fachadas e logradouros e uma função psicológica que remete aos efeitos da harmonia ou
desarmonia entre os componentes dessa paisagem sobre o equilíbrio pisíquico de seus habitantes,
visitantes e transeuntes.
Para MARCHEZAN18
, como bem jurídico tutelado, a paisagem seria dinâmica, sensitivo-
espiritual, transdisciplinar, conectiva e heterogênea.
Por ser dinâmica, não-estagnada, a paisagem teria por função a renovação e, com isso, a
quebra na monotonia visual. Carregada de valor estético, a paisagem urbana exterioriza ambiências
que permitem ao ser humano um conforto emocional, o apreço pelo belo, harmonia, paz de
espírito. A beleza das paisagens é, nessa linha, fonte de inspiração para o indivíduo e interfere
positivamente em seu processo produtivo e nas relações inter-pessoais, com reflexos sociais
imediatos.
A paisagem é transdisciplinar por ser objeto de estudo de várias disciplinas. Acrescentamos
que, por essa razão, à ela se impõe um tratamento também integrado, não se admitindo uma
tutela setorializada ou fragmentada.
A paisagem tem, ainda, uma função conectiva, de relacionar o homem à natureza,
integrando fatores de tempo e espaço:
14
SILVA, JOSÉ AFONSO. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores – 5° edição rev.atual., 2008, p. 307.
15
MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser
belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.
16
RODRIGUES, 2009, p. 4.
17
SILVA, 2008, P. 308.
18
MARCHEZAN, 2006, p.15.
Nº 24 - Dezembro 2010 65
Estabelece conexões intra e intergeracionais, através das
identificações entre os diversos membros contemporâneos de com
os diversos lugares por onde transitam e habitam, além de permitir
diálogos entre as gerações pretéritas e presentes e construção de
um berçário para as futuras gerações.
Propicia a integração plena entre os fatores espaço e tempo, essenciais
à vida humana, influenciando na qualidade do espaço transformado
pelo homem e na adequada fruição do tempo. Por fim, apresenta-se
como vasos comunicantes de informações, onde passado, presente e
futuro acabam se fundindo numa síntese materializada e percebida,
mas que carrega em si todo um conjunto de informações anacrônicas19
.
Referindo-se a essa função conectiva, metaforicamente expressa na “memória das cidades”
Morand-Deviller20
destaca:
Se a cidade é feita para durar, é porque ela é um “local de memória”
repleta de marcas ofertadas às gerações presentes e futuras. Ela se
conjuga em todos os tempos, enquanto que uma localidade e uma
paisagem se conjugam principalmente no presente, já que encontram
sua existência nos olhares que o contemplam. O construído oferece
sinais de reconhecimento do passado mais evidentes do que aqueles
que são fornecidos pela natureza que está em constante renovação.
É, por fim, heterogênea. Acrescentamos a partir dessa característica, uma função
democrática às paisagens urbanas: A paisagem é heterogênea como é heterogêneo o meio
ambiente, tanto em seus elementos naturais como culturais. É heterogênea como é heterogênea
a Sociedade. Por isso, a paisagem urbana tem a função de expressar a IDENTIDADE tanto da
natureza que a circunda quando dos diversos rostos da sociedade que nela se expressam. A
beleza da paisagem não pode, portanto, ser elemento de segregação como ocorreu longo da
trajetória da urbanização brasileira. O feio (muitas vezes entendido como pobre) não pode ser
afastado, marginalizado para a periferia dos centros urbanos. As belezas peculiares devem ser
harmonizadas por ações de políticas públicas, a fim de que todas as “personas” sejam expressas
em harmonia no cenário urbano.
2. O REGRAMENTO JURÍDICO DA PAISAGEM URBANA: Direito supérfluo?
2.1 O Direito internacional
A Preocupação com a paisagem no Direito Comparado se fez presente muito antes do que
ocorreu no Direito Brasileiro. Dentre as Convenções Regionais que tratam da proteção da paisagem,
19
MARCHEZAN,2006,P.16.
20
MORAND-DEVILLER, Jacqueline. A cidade sustentável. Sujeito de Direitos e deveres. In: Políticas Públicas ambientais: estudos em homenagem
ao professor Michel Prieur/coordenação Clarissa Ferreira Macedo D’Isep, Nelson Nery Junior, Odete Medauar – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais,2009, p. 349/350.
66 Revista da PGM
destacam-se a Convenção de Washington, de 1940; a Convenção de Argel, de 1968; a Convenção
de Bruxelas, de 1982 e a Convenção de Salzburgo, de 1991.
Não obstante a existência de Legislações específicas e de Convenções Regionais, a relevância
que a paisagem conquistou como bem ambiental nos últimos anos, levou o Conselho Europeu à
elaboração de uma Convenção Européia da Paisagem.21
Concluída em 29/10/2000, na cidade de
Florença – Itália, a Convenção passou a ter vigência na ordem internacional em 01/03/2004, e,
não obstante só vincule os países signatários, tornando-se a principal referência internacional em
matéria de proteção paisagística, inclusive no que tange a aspectos conceituais que merecem
destaque:
Art. 1º - Para os efeitos da presente Convenção:
a) Paisagem designa uma parte do território, tal como é apreendida
pelas populações, cujo carácter resulta da acção e da interacção de
factores naturais e ou humanos;
b) Política da paisagem designa a formulação pelas autoridades
públicas competentes de princípios gerais, estratégias e linhas
orientadoras que permitam a adopção de medidas específicas tendo
em vista a protecção, a gestão e o ordenamento da paisagem;
c) Objectivo de qualidade paisagística designa a formulação pelas
autoridades públicas competentes, para uma paisagem específica, das
aspirações das populações relativamente às características
paisagísticas do seu quadro de vida;
d) Protecção da paisagem designa as acções de conservação ou
manutenção dos traços significativos ou característicos de uma
paisagem, justificadas pelo seu valor patrimonial resultante da
sua configuração natural e ou da intervenção humana;
e)Gestão da paisagem designa a acção visando assegurar a
manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de desenvolvimento
sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações
resultantes dos processos sociais, económicos e ambientais;
f) Ordenamento da paisagem designa as acções com forte carácter
prospectivo visando a valorização, a recuperação ou a criação de
paisagens.
Outro dispositivo que merece destaque na Convenção Européia refere-se à Educação
Ambiental, componente que tem ficado fora da agenda no cenário Brasileiro:
Artigo 6.º
Medidas específicas
21
Disponível em http://conventions.coe.int/Treaty/en/Reports/Html/176.htm.
Nº 24 - Dezembro 2010 67
A) Sensibilização
Cada uma das Partes compromete-se a incrementar a sensibilização
da sociedade civil, das organizações privadas e das autoridades
públicas para o valor da paisagem, o seu papel e as suas
transformações.
B) Formação e educação
Cada uma das Partes compromete-se a promover:
a) A formação de especialistas nos domínios do conhecimento e da
intervenção na paisagem;
b) Programas de formação pluridisciplinar em política, protecção,
gestão e ordenamento da paisagem, destinados a profissionais dos
sectores público e privado e a associações interessadas;
c) Cursos escolares e universitários que, nas áreas temáticas
relevantes, abordem os valores ligados às paisagens e as questões
relativas à sua protecção, gestão e ordenamento. (n.n.)
Para os membros da Comunidade Comum Européia, a paisagem foi tomada como
patrimônio comum, sendo considerada “fundamental, para alcançar o desenvolvimento
sustentável, o estabelecimento de uma relação equilibrada e harmoniosa entre as necessidades
sociais, as atividades econômicas e o ambiente22
”.
Na visão dos países signatários, a paisagem desempenha importantes funções de interesse
público nos campos cultural, ecológico, ambiental e social e que constitui um recurso favorável à
atividade econômica, cuja proteção, gestão e ordenamento adequados podem contribuir, inclusive,
para a criação de empregos e geração de renda23
.
Por fim, insta ressaltar que, embora a Convenção Européia da paisagem tenha eficácia
apenas no continente europeu, produzindo efeitos entre seus signatários, ela vem se transformando
em referência mundial no campo das legislações de proteção, tanto que é referida pela grande
maioria dos doutrinadores que abordam o tema, tendo influenciado até mesmo alguns julgados
no Brasil24
.
2.2 O ordenamento jurídico brasileiro
2.2.1 Regramento Constitucional
O artigo 225 da Constituição Federal assegura o Direito Fundamental ao Meio Ambiente
equilibrado como condição essencial à qualidade de vida, sendo um dos direitos humanos de
terceira geração25
.
22
Preâmbulo do Decreto Português nº 04 de 2005, que ratificou a Convenção Européria da Paisagem.
23
Idem.
24
A exemplo mencionamos a Ação Popular nº 950209270-8 – 2ª Vara Federal de Santos-SP. Disponível em http://jus2.uol.com.br/pecas/
texto.asp?id=549
25
Bobbio, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Campus, 1992.
68 Revista da PGM
Essencial à sadia qualidade de vida de seus habitantes, a paisagem urbana se insere tanto
na noção unitária e sistêmica de meio ambiente (macrobem), quanto na concepção de bem
ambiental suscetível de lesão determinada (microbem).
Nesse contexto, uma interpretação sistemática do Texto Constitucional nos remete a uma
tutela constitucional da paisagem que se põe como fundamento para uma série de diplomas
infraconstitucionais que tratam da matéria.
A Constituição Federal, a partir da exegese combinada dos arts.
182, “caput”, 216 e 225, reconhece a necessidade de proteção desse
bem jurídico, além de atribuir competência material concorrente
à União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o
meio ambiente e combater a poluição “em qualquer de suas
formas” (art. 23, inc. VI)26
.
Para os antropocentristas, toda essa proteção tem por princípio basilar a Dignidade da
pessoa Humana, e eventual lesão à paisagem urbana se insere na gama de proteções desse supra
princípio constitucional.
O uso dos bens ambientais está condicionado a uma perfeita
integração dos fundamentos constitucionais indicados no art. 1º da
Carta Magna, no sentido de compatibilizar a ordem econômica do
capitalismo aos interesses de brasileiros e estrangeiros residentes no
País portadores do direito ao piso vital mínimo (arts. 1º, III, e 6º da
Constituição Federal) considerando claramente as especificidades da
República Federativa do Brasil (art. 3º da Carta da República)27
Uma das conseqüências de se considerar a paisagem urbana como microbem ambiental,
é o tratamento que lhe deve ser dado à luz dos princípios do Direito Ambiental, especialmente no
que tange ao princípio da ubiquidade. Assim, é a tutela jurídica da paisagem urbana que deverá
regrar a atividade econômica de publicidade externa, por exemplo, e o “direito de informar” será
necessariamente limitado pelas normas de ordenação do território.
Considerando, ainda, que a paisagem urbana pode exercer uma função turística a depender
se seus atributos, estado de conservação e da harmonia de seus elementos, têm-se, ainda, o
incentivo ao turismo como fator de desenvolvimento econômico e social, previsto no artigo 180
da Carta Magna, como dispositivo que lhe guarda proteção.
A partir desse elenco constitucional, pode-se inferir que qualquer conduta ou atividade
lesiva à paisagem urbana sujeita os infratores, ao sistema de responsabilidade previsto no § 3º do
artigo 225 da CRFB.
26
MARCHEZAN,2006, p. 28
27
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Paisagem urbana e sua tutela em face do direito ambiental. Disponível em http://www.saraivajur.com.br/
menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=837. Acesso em 24 out 2009.
Nº 24 - Dezembro 2010 69
2.2.2 O Regramento Infraconstitucional
No regime constitucional de Competências, embora o Município ocupe um papel
privilegiado, dada sua competência para legislar sobre assuntos de interesse local e sobre a
ordenação territorial do solo urbano, o artigo 24 estabelece que a competência é concorrente
para legislar sobre proteção do patrimônio histórico, turístico e paisagístico.
Por tal razão, tem-se um ordenamento jurídico vasto, composto por Legislações Federais,
Estaduais e Municipais discorrendo sobre a proteção da paisagem.
A lei 6.938/1981, que dispõe sobre a política Nacional do Meio Ambiente, define em seu
artigo 3º, III, poluição como sendo a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades
que direta ou indiretamente:
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio
ambiente. (g.n.)
No que tange à propaganda eleitoral, relevante fonte poluidora, tanto a Lei 4.737/65 (Código
Eleitoral), quanto a Lei 9.504/97, que dispõe sobre a propaganda eleitoral vedam a propaganda
que prejudique a estética urbana.
A Lei 9.605/98, que trata dos crimes ambientais, em seus artigos 63 a 65, tipifica como
criminosas condutas que se caracterizem como poluição contra o ordenamento urbano e o
patrimônio cultural.
É vedada ainda a utilização de iluminação e elementos publicitários que possam gerar
confusão ou interferir na visibilidade de sinalização ou comprometa a segurança do trânsito, bem
como promover qualquer alteração na sinalização já existente, a teor do que preceitua os artigos
81 e 82 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).
Merece destaque, ainda, na Legislação Federal, o Decreto-lei 25/37 (Lei de Proteção ao
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que protege os imóveis tombados dos anúncios ou
cartazes que possam eventualmente prejudicar a sua visibilidade.
A Função Social da Cidade esculpida no artigo 182 da CR possibilitou ainda que o seu
regulamento, Lei nº 10.257/2001, conhecida como “Estatuto da Cidade”, trouxesse uma proteção
adicional à paisagem urbana, vez que determina, em seu art. 2º, que a política urbana tenha por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
tendo como uma das diretrizes gerais a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente
natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, de
acordo com o inciso XII do art. 2º da Lei nº 10257/01.
Por fim, temos a recentíssima Lei 11.934, de 06 de maio de 2009, que, sem excluir a
competência municipal, dispõe sobre limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos
e eletromagnéticos e, dentre outros aspectos do tema, delimita alguns conceitos atinentes à
instalação das chamadas Estações Radio-Base de Telefonia, que se apresentam como uma das
causas mais recentes de poluição visual e motivo de preocupação, dado o desconhecimento
científico sobre os níveis e riscos da radiação emitida.
70 Revista da PGM
No que tange às Leis Municipais, os Planos Diretores Urbanos, os Códigos de Posturas e a
Legislação Ambiental local sempre foram referência. Mais recentemente, e em razão do o
agravamento da poluição visual em nossas cidades, muitos municípios brasileiros já editaram
leis específicas, como é o caso da “Lei Cidade limpa” – Lei nº 14.223/2006 de São Paulo que deu
origem à “operação cidade limpa28
”, conhecida pela retirada de centenas de painéis publicitários
que se encontravam em situação irregular, não sem antes enfrentar uma série de questionamentos
judiciais, uma verdadeira “guerra de liminares”.
Merece destaque ainda a Lei 14.223/2006 do Município do Rio de Janeiro, que
regulamenta os elementos que compõem a paisagem urbana. A exemplo das legislações de
outros municípios, foi alvo de grande celeuma judicial, tendo sua efetividade minimizada
em muitos momentos.
Em Vitória, a Lei 5954/2003, que regula a instalação de elementos de publicidade externa
na cidade, acabou sendo drasticamente alterada pela Lei 7.095/2007, com ampliação de prazos e
flexibilização de normas importantes para a proteção paisagística por força de determinação
judicial29
, que “revogou liminarmente (sic)” alguns dispositivos da norma, repristinando (sic) o
antigo Código de Posturas que não regulava a matéria, deixando o Município à mercê das
irregularidades perpetradas pelos empresários-especuladores.
No campo das garantias, sendo um microbem ambiental, e, em consequência, patrimônio
público, a paisagem merece a mais ampla proteção, sendo a Ação popular e a Ação Civil Pública,
os instrumentos mais utilizados. Defendemos, ainda, a utilização do Mandado de Segurança,
tanto individual quanto coletivo, quando o ato lesivo se caracterizar como ato de autoridade e não
houver necessidade de dilação probatória, vez que o direito à paisagem urbana configura-se como
direito líquido e certo.
Destarte, como se pode perceber, não é exagero se falar na existência de um estatuto
jurídico da paisagem urbana, sendo vasto o rol dos diplomas legais que apregoam a sua proteção.
O problema ainda se afigura no campo da efetivação desses direitos, seja por ausência de
um projeto adequado de educação ambiental, ou como dispõe a Convenção Européia da Paisagem,
um projeto de “sensibilização” da população, seja pela postura de parte dos Tribunais Pátrios,
que ainda veem a proteção à paisagem como uma espécie de “direito supérfluo”, facilmente
preterido diante de um simples argumento de geração de empregos ou de desenvolvimento
econômico.
Olvidam os julgadores que estamos diante de um Direito Fundamental de Terceira
Geração, que pode ser enfrentado tanto pelo viés coletivo, como um direito difuso à estética
urbana, quanto pelo viés individual, corolário desse direito difuso: o direito do cidadão à fruição
da paisagem urbana, sem qualquer interferência ou mensagem, que não as relativas à orientação
e ao bem comum30.
28
Sobre a “Operação cidade limpa” ver http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=14513
29
Ref. Processo nº 024.040.035.180 – Vara dos feitos da fazenda pública Municipal de Vitória.
30
MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser
belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.
Nº 24 - Dezembro 2010 71
3. A VULNERABILIDADE DA PAISAGEM URBANA E
AS CONSEQUÊNCIAS DANOSAS DA POLUIÇÃO VISUAL.
A paisagem urbana sofreu, ao longo da trajetória da urbanização, influência de diversos
fatores históricos, em especial, dos valores advindos da revolução industrial. O modelo arquitetônico
moderno, o avanço tecnológico, os processos de migração e imigração são apenas alguns exemplos.
Essa diversidade de influências, associadas ao padrão capitalista-desenvolvimentista, trouxe para
as cidades um quadro bastante frágil sob a ótica paisagística, tendo em vista que, ou foram pensadas
apenas do ponto de vista da sua funcionalidade relativa à produção, ou foram fruto de
assentamentos “espontâneos” e desordenados.
O quadro atual de grande parte dos municípios brasileiros é o seguinte: áreas nobres e/
ou centrais planejadas convivendo com favelas e outros espaços cuja ocupação foi “irregular”.
Temos a cidade legal e a cidade ilegal, como bradam os discursos partidários.
Mesmo após o surgimento do direito ambiental, o foco das preocupações, inicialmente,
eram os elementos naturais (bióticos e abióticos), sendo muito recente a preocupação com os
elementos culturais/estéticos, que só ingressaram na “agenda” da tutela ambiental quando o
contexto fático já era caótico31
A problemática da poluição visual não é, contudo, “privilégio” do processo de
urbanização brasileiro. Ao discorrer sobre os problemas das cidades européias, Morand-
Deviller32
salienta:
As ameaças de vandalismo são constantes e ocorrem por conta de
motivos ruins como a ignorância, a cobiça, o fanatismo religioso, o
arbítrio dos príncipes e as razões estéticas em nome de um “bom
gosto” cujos campeões são tão temidos quanto aqueles da virtude.
Aprofundaremos a análise desse processo histórico e sua influência no tratamento jurídico
da paisagem urbana no tópico seguinte, mas por ora, impõe-se destacar que, em razão dos fatores
apontados, associados à ausência de uma política adequada de educação cívica e ambiental, as
nossas cidades padecem com o problema da poluição visual que se apresenta com diversas facetas,
a exemplo: anúncios publicitários, painéis, cartazes; elementos de sinalização urbana; elementos
aparentes da infra-estrutura urbana (postes de energia elétrica, de iluminação pública, antenas
de telefonia, hidrantes, extintores de incêndio); serviços de comodidade pública (cabines
telefônicas, cestos de lixo, abrigos e pontos de ônibus, etc.)33
Em razão da necessidade pública dos demais elementos e da possibilidade de, sob o viés
arquitetônico, integrá-los à paisagem de forma harmônica, a grande preocupação volta-se para o
problema da publicidade externa, ou seja, o abuso da utilização de equipamentos publicitários, o
excesso de mensagens.
31
MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.
32
MORAND-DEVILLER, 2009, p. 350.
33
SILVA, 2008, p. 322.
72 Revista da PGM
A cidade é palco de grande concentração de informações e mensagens
que “são percebidas e ‘lidas’, porém nem sempre compreendidas pelos
cidadãos”. (...) as cidades têm sido reduzidas ao jogo da “pura
imagem”, com íntima vinculação à lógica do consumo e à venda de
estilos de vida. “Ver a cidade hoje não pode escapar de ver um enorme,
pulsante e atraente espaço de venda34
”.
A Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/1981, define:
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de
atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio
ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões
ambientais estabelecidos;
IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado,
responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de
degradação ambiental; (n.n.)
Para Fiorillo35
, a poluição visual se caracteriza como ofensa à integridade psíquica das
pessoas que residem, circulam ou transitam numa cidade, ou simplesmente a visitam, posto que
afeta o direito à qualidade de vida.
Para fins do presente trabalho, mais do que uma discussão conceitual, pretende-se dar
destaque para a análise das consequências danosas da poluição visual, tendo em vista que é o
conhecimento científico das funções da paisagem urbana e dos danos decorrentes de sua violação
que contribuirão tanto para a prevenção quanto para uma reparação mais eficaz do dano
ambiental difuso.
Sobre os danos à saúde Campos36
em aprofundado trabalho sobre poluição visual, refere-
se a um importante estudo científico realizado pelo Instituto Paulista de Stress, Psicossomática e
Psiconeuroimunologia – IPSPP de São Paulo, intitulado “Stress, Saúde e Poluição Visual” (2003).
As pesquisas feitas sob a coordenação do Professor Esdras Guerreiro Vasconcellos, apontaram
como agentes causadores de estresse: a concentração excessiva de mídia externa, placas,
outdoors, letreiros, faixas, backlights, painéis, grafites, pichações, recipientes de lixo
34
MARCHEZAN, 2006,p. 15
35
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 3 ed. rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 127.
36
CAMPOS, Watila Shirley Souza. Poluição Visual no Direito Brasileiro. Dissertação. Santos: Universidade Católica de Santos, 2006, p. 29.
Disponível em http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6 Acesso em 02 MAR 2009
Nº 24 - Dezembro 2010 73
expostos abertamente em locais públicos, postes de fiação aérea, moradores de rua,
favelas com deficiente organização urbana e arquitetônica, dentre outros.
Todos esses agentes foram considerados causadores de alterações de humor tão relevantes
que determinam ser o estresse o início de uma cadeia de sintomas fisiológicos e psicológicos que
podem levar o indivíduo até ao óbito. Esclarece ainda mais:
Existem estudos afirmando que, na vida cotidiana de um indivíduo
civilizado, o organismo recebe cerca de 23.000 informações ao dia.
Decerto que não nos damos conta disso, não percebemos todas as
milhares de coisas que, permanentemente, acontecem ao nosso redor
e, concomitantemente, dentro de nós e, portanto, também não
percebemos que sentimos algo com respeito a cada uma delas
(SIIWINGER, 2001). Sabemos hoje que, toda vez que uma sensação
de eustress ou distresss37
acontecer, antecede ao aparecimento dessa
sensação agradável ou desagradável um processo bem estruturado, no
qual o sistema límbico, o tálamo e o neocórtex superior, que são núcleos
cerebrais vitais para a elaboração da informação, são acionados e
preparam uma resposta comportamental a cada uma delas. Para tanto
eles acionam um eixo neuro-endócrino específico que inclui
componentes do sistema nervoso e glandular. Os principais integrantes
desse eixo de stress são o hipotálamo, a glândula hipófise e glândula
supra-renal. Esse acionamento decorre da avaliação que o sistema
límbico e cortical superior venha a fazer da informação recebida e a
resposta por eles estruturada implica inevitavelmente uma secreção
maior ou menor de hormônios de ativação ou inibição, os quais são
descarregados na corrente sanguínea e vão, cada um à sua maneira,
atuar sobre os diversos órgãos e sistemas do nosso corpo38
.
Dentre os fatores causadores de distress existentes no contexto
físico-social de nossa vida contemporânea, está o agente poluidor
visual. Ele é visto como sendo um dos mais relevantes. O homem do
século XX e, consequentemente, o deste século, elabora 85% das
informações do meio ambiente através do sistema visual. Esse hiper-
desenvolvimento do sistema visual provocou uma certa atrofia no
funcionamento dos outros órgãos dos sentidas, ou seja, do paladar,
da audição, do olfato e, sobretudo, do tato. Ver é fundamental. Ver
para crer parece ter se tornado o mote de vida do homem do século
da comunicação. E exatamente por ser essa via de entrada na
integridade interior de nosso organismo, uma das mais importantes
37
Segundo a pesquisa, o eustress ocorre quando o motivo causador de estress é positivo, agradável e alegre, ao passo que o distress acomete o
indivíduo caso o motivo estafante seja negativo, desagradável e irritante.
38
VASCONCELLOS, 2003 apud CAMPOS, 2006, p. 30
74 Revista da PGM
para o ser humano moderno, convém que se exerça aqui redobrados
cuidados, visto que tudo que penetrar à membrana do receptor visual
traz em si e consigo determinado potencial para desencadear um
processo de stress lá dentro do corpo.
Dessa análise, não é difícil concluir que os graves prejuízos à saúde física e mental do
indivíduo têm reflexos patrimoniais e extrapatrimoniais sobre as suas esferas individuais. Ocorre
que, além de atingir a individualidade, o estresse decorrente da poluição visual, tomada como
prática danosa à paisagem urbana, tem reflexos imediatos sobre a esfera social do indivíduo,
sobre as suas relações de convivência, sobre o indivíduo em sua dimensão coletiva e sobre a
coletividade abstratamente considerada. Explica-se: o mesmo estudo, bem como outros já
publicados, relacionam o stress aos desarranjos familiares, baixa produtividade no trabalho,
violência e outros comportamentos anti-sociais.
Além dos danos à saúde, a poluição visual prejudica, ainda, a atividade turística:
O potencial turístico de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e
Ouro Preto está diretamente ligado à formosura de suas paisagens. A
indústria do turismo, com todos seus desdobramentos econômicos,
nessas e em outras cidades, depende da conservação e melhoria de
seus belos panoramas39
.
Ao tratarmos das funções da paisagem como microbem ambiental, referimo-nos à
conectividade que a paisagem proporciona ao estabelecer uma relação sensorial do homem com
a natureza, com a história, com a cultura, com a arte. A perda ou deterioração da paisagem
impede o exercício dessa função, gerando uma situação de desvinculação, verdadeira alienação.
Privar a coletividade dessa função estético-conectiva traz gravíssimos prejuízos à qualidade de
vida, limita o desenvolvimento do ser humano, empobrece a existência, deprime, oprime.
Por fim, retomamos a antes apontada função democrática da paisagem, como atributo
que tem a paisagem urbana de expressar a identidade, as peculiaridades e as diferenças da
sociedade que nela reside e de todos aqueles que, de algum modo, com ela se relacionam.
O abuso da utilização de tecnologias e de equipamentos publicitários em nome de uma
“modernização” está levando à produção de cidades iguais. A Globalização impõe uma
padronização internacional40
: todas têm que se parecer com o Times Square. O bucólico, o histórico,
o artístico, o característico, o local e o pessoal, embora valorizados pelo movimento pós-moderno,
são desprestigiados ante a pressão econômica.
Desse modo, a lesão às paisagens peculiares, através da poluição visual de equipamentos
publicitários padronizados e tecnologias expostas, configura dano extrapatrimonial ambiental,
vez que atinge a função democrática da paisagem urbana, gerando a perda de identidade
39
MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.
40
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade . P. 67-76 Disponível em www.pdf-search-engine.com/baixar-livro-stuart-hall-identidade-
cultural-na-pós-modernidade-pdf.html. Acesso em 12 SET 2008.
Nº 24 - Dezembro 2010 75
das cidades. Como consequência, pode ocasionar reflexos patrimoniais, pela perda do valor
turístico, por exemplo.
Ante o exposto, são drásticas as conseqüências da poluição visual e exigem uma rápida
mudança de postura por parte dos operadores do direito. Caso esta não ocorra, correremos o
risco de limitar as atrações turísticas ao letreiro mais luminoso ou a maior street tv.
4. DANO EXTRAPATRIMONIAL À FUNÇÃO ESTÉTICA DAS CIDADES:
BELEZA É FUNDAMENTAL
4.1 O Modelo de Urbanização e a busca por uma paisagem funcional
A conhecida frase do poeta Vinícius de Moraes “as feias que me desculpem, mas
beleza é fundamental” parece não ter ecoado ao longo da trajetória do direito urbano-
ambiental, vez que as cidades e suas interações com o meio ambiente natural sempre foram
pensadas a partir de sua funcionalidade, vista esta numa perspectiva predominantemente
econômica.O modelo de urbanização implantado no Brasil foi fruto do chamado “urbanismo
funcionalista” que se expressou no cenário internacional a partir de 1910, com o movimento
de planificação urbana. Considera-se que a cidade inteira tem que ser reformada e as coisas
tem que estar em seu devido lugar, segundo a expressão pitoresca dos autores do Plano
Regional de Nova York:
[..] A ocupação do solo de acordo com os diversos usos parece ter
sido obra do chapeleiro louco de ‘Alice no País das Maravilhas’. Pessoas
muito pobres vivem em cortiços situados em áreas centrais de preço
elevado. [..] A uns poucos passos da Bolsa se sente o aroma de café
torrado; a uns cem metros de Times Square, o fedor dos matadouros.
[..] A situação contraria todo sentido de ordem. As coisas estão fora
do seu lugar natural. É necessário corrigir essa confusão para que as
atividades se realizem em lugares apropriados.41
A historiografia nacional denota um modo de ver e fazer a cidade que distribui os homens
desigualmente no espaço e subordina os direitos políticos, os direitos individuais e a cidadania
aos modelos de uma racionalidade econômica42
.
A lógica da “ordem e do controle”, o “urbanismo funcionalista” implementado pelos
militares tiveram como consequência um modelo de cidade em que a ocupação ou foi
absolutamente desordenada ou, quando planejada, considerou apenas as funções econômicas do
espaço urbano.
41
TOPALOV, C. Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX.
In: RIBEIRO, L.; QUEIROZ, C. P. (Org.). Cidade, povo e nação, a gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, [s.d]. p. 44.
42
MARCHEZINI, Flávia de Sousa. A trajetória da participação popular no planejamento urbano: o caso do Conselho Municipal do Plano
Diretor de Vitória (1961-2001). Vitória: 2006. Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) - Universidade Federal do
Espírito Santo.
76 Revista da PGM
A arquitetura moderna se mostrou um importante instrumento desse ideário, ao buscar
a uniformização de costumes e estilos, abusando da geometria e dos ângulos retos, trazendo para
nossas cidades uma padronização internacional, descontextualizada dos cenários naturais e sócio-
culturais, com suas construções frias.
Conforme já exposto, mesmo a pós-modernidade, com a retomada da valorização do
local, dos elementos distintivos e da integração com os espaços naturais, não livrou os cenários
urbanos dos problemas decorrentes da avidez lucrativa, mormente no que tange ao abuso na
utilização de elementos publicitários e tecnológicos que, em inúmeros casos, mascaram a
identidade dos espaços da cidade.
No Dizer de Silva43
Uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado onde
até a sua paisagem é objeto de interesses econômicos lucrativos; mas é,
sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam valores
espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a sua memória.
Sobre o problema da funcionalidade, Brasil Pinto44
destaca:
O urbanismo não visa apenas à obra de utilidade, mas cuida do contexto
em que estão inseridos “dos aspectos artísticos, panorâmicos, paisagísticos,
monumentais, históricos, de interesse cultural, recreativo e turístico das
comunidades. (...) Por outro lado, a referência à proteção estética da cidade
e de seus arredores enseja a proteção e a preservação de vistas
panorâmicas, das paisagens naturais e dos locais de particular beleza.
4.2 A Beleza como valor relativo
O culto ao belo sempre fez parte da cultura do homem e foi a arte renascentista que
chamou a atenção para a beleza das paisagens naturais, mas tal perspectiva não foi privilegiada
nas ocupações urbanas, principalmente na trajetória brasileira.
É obra da pós-modernidade a emergência de uma função estética das cidades, mas sempre
condicionada a uma funcionalidade utilitária:
Os efeitos estéticos são de importância muito grande para equilibrar
os desajustes das sociedades industriais contemporâneas. Mas não
há de esquecer que a funcionalidade do traçado urbano constituirá
outra exigência das aglomerações urbanas de hoje, de modo a
proporcionar ao habitante a ao transeunte facilidade e comodidades
sem as quais os desajustes se agravam45
.
43
.SILVA, 2008, p. 307.
44
PINTO, Antonio Carlos Brasil. Turismo e meio ambiente: aspectos jurídicos. Campinas, Papirus, 2003, p.108.
45
SILVA, 2008, P. 310.
Nº 24 - Dezembro 2010 77
Não há se propugnar pelo esteticismo gratuito, mas se há de
perseguir a integração entre o elemento estético com uma diretriz
do desenvolvimento urbano; não a preocupação estética artificial,
mas como algo que brota intuitivamente da forma urbana, incluída
no conceito patrimonial ambiental urbano, de que a paisagem
urbana constituirá o revestimento diáfano e envolvente – se tocado
por um critério estético, não com a idéia de monumentalidade,
mas com o caráter de representatividade – ou as garras com que
esse mesmo ambiente agredirá a visão, o sentimento e o
comportamento das pessoas46
.
A palavra estética advém do grego asthesis e tem como significado o conhecimento
sensorial, a experiência, a sensibilidade. Como ramo da Filosofia, é o estudo racional do belo em
relação ao sentimento que suscita nos seres humanos. Nessa acepção, o belo é tratado com certa
vaguidade, caracterizando-se como um valor relativo, que depende de juízos subjetivos e critérios
que variam no tempo e no espaço.
BENJAMIN47
exemplifica bem o problema na análise do comportamento dos Tribunais:
No Direito comparado, os juízes, por muitos anos, fraquejaram
quando chamados a decidir conflitos atinentes a valores
estritamente estéticos. Nos Estados Unidos, p.ex., antes de 1950, os
tribunais frequentemente viam os valores estéticos como um luxo,
em vez de uma necessidade, negando-lhes proteção legal. Ou, então,
os consideravam subjetivos em demasia, recusando-se a virar
“árbitros de gosto”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os juízes consideravam que a
análise estética de questões coletivas demandariam uma análise
excessivamente subjetiva, variante de acordo com o “gosto de
cada um”, embora jamais tivessem encontrado dificuldades em
reparar o dano estético de uma vítima de erro médico, por
exemplo.
Como se pode perceber, a relatividade da noção de belo foi, durante muito tempo, uma
justificativa para a ausência de tutela dos valores ambientais estéticos, e, embora tal obstáculo
tenha sido transposto na esfera da reparação individual, até hoje é utilizada como escusa na
identificação e quantificação do dano moral difuso.
46
SILVA, 2008, P. 310.
47
BENJAMIN, 2005, não paginado.
78 Revista da PGM
4.3 A Beleza como valor absoluto e direito fundamental e sua reparabilidade na
esfera do dano
Se considerada no passado como um direito supérfluo a partir de uma ótica elitista e
relativista da concepção de belo, o fato é que a estética urbana assume importante posto tanto no
Direito Ambiental quanto no urbanismo contemporâneos, não só no que toca às edificações e
equipamentos urbanos, mas também nas interações entre esse meio ambiente construído e a
paisagem natural.
Consciente ou inconsciente, para muitos a paisagem deixa de ser a
relevância da beleza de um fragmento natural e ressurge como um atributo
holístico da própria natureza, de toda a natureza48
.
Seja com intuitos preservacionistas, seja com interesses econômicos fulcrados no “turismo
sustentável” o fato é que a paisagem, enquanto noção de belo, a partir da sua função estética,
vem, cada vez mais, ganhando relevo no cenário jurídico nacional e internacional.
As disputas político-econômicas pelo ingresso de determinadas cidades na Lista do Patrimônio
Mundial são um exemplo dos interesses que circundam o patrimônio estético das cidades.
No item 2 do presente trabalho, destacamos algumas das funções da paisagem urbana,
não só com base em critérios de funcionalidade utilitarista, mas também com fulcro na importância
da harmonia dos elementos paisagísticos. No item 4, apontamos as consequências danosas da
poluição visual, que traz prejuízos à saúde física e mental dos indivíduos , com reflexos sobre a
sua esfera individual e social,bem como sobre a coletividade abstratamente considerada.
Assim, apesar da relatividade filosófica da noção de belo, a paisagem possui outras funções
que garantem a ela o status de Direito Fundamental a ser protegido. Dentre essas funções, a
função estética, a beleza propriamente dita, ganha contornos absolutos, que independem de
fatores como gostos, modismos, e critérios outros que variam no tempo e espaço:
Nos últimos anos, sem prejuízo do foco ecológico, países de todo o mundo
vem descobrindo e redescobrindo a paisagem, e, a partir dela, o belo
natural, já não mais no seu sentido convencional de formas, cores e sons,
mas enxergando beleza na própria diversidade da natureza. Podemos
dizer que, na perspectiva atual, o belo deixa de ser somente uma percepção
extrínseca (=cultural e visivelmente perceptiva), em proveito de uma
percepção intrínseca, que valoriza os “segredos” da natureza: a apreciação
estética vai do que vemos, sem grande esforço (as montanhas, o verde
exuberante das florestas, a vitalidade dos rios), ao que não vemos, só
sentimos intuitivamente, ou só notamos com o auxílio dos especialistas
(os serviços ecológicos, a qualidade da água, a diversidade das florestas).
É a posição do observador mais sensível, que compreende e aceita que
“somos da natureza e estamos na natureza49
48
BENJAMIN, 2005, não paginado.
49
BENJAMIN, 2005, não paginado.
Nº 24 - Dezembro 2010 79
Nessa ótica, a estética é vista como valor absoluto e a beleza da paisagem urbana, por si
só, como Direito Fundamental, essencial à qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
Sendo o Direito à beleza das cidades um direito fundamental corolário dos direitos da
personalidade, pode ser avaliado sob a ótica individual e difusa, consoante já exposto. A violação
das funções da paisagem urbana, em especial, dos seus atributos estéticos pode, então, caracterizar-
se como dano moral coletivo?
Analisa Leite50
que as graves e grandiosas lesões ambientais ocorridas na história mais
recente demonstram que o direito ainda encontra dificuldades na responsabilização civil e nas
reparações ambientais principalmente devido à complexidade do dano ambiental e em virtude de
uma percepção de índole individualista do direito, ligado a interesses intersubjetivos, e não no
trato solidário e difuso do dano ambiental.
A identificação clara das funções ambientais da paisagem urbana, como proposto no
presente, implica na superação dessas dificuldades apontadas. Seguem alguns casos em que se
configura explicitamente o dano extrapatrimonial ambiental:
1. Destruição de sambaqui, através da retirada da barreira do terreno
limítrofe, afetando tanto um patrimônio cultural como um valor
ambiental, ecológico da população;
2. Risco na utilização, distribuição e estocagem do metano,
combustível comprado para suprir a falta de álcool, ofendendo a
coletividade material e extrapatrimonial;
3. Publicidade anti-ambiental, afetando de forma indivisível
interesses extrapatrimoniais da coletividade;
4. Aterro de lagoa, ferindo a paisagem, ocasionando dano ao valor
paisagístico e ambiental da comunidade;
5. A perda de luminosidade solar, em decorrência, por exemplo, de
urbanização;
6. Perda de paisagem significativa51
.
A resposta, então, é indubitavelmente positiva. A identificação das funções da paisagem
urbana, a delimitação da importância da função estética da paisagem e das consequências de
sua deterioração são imprescindíveis ao trabalho do aplicador e afastam quaisquer argumentos
baseados no desconhecimento das funções ambientais ou na impossibilidade de aferição dos
valores desses bens.
Embora na aferição do dano moral ambiental, em sua dimensão difusa, não se possa
partir dos mesmos pressupostos da reparação do dano moral individual, algumas conquistas
do sistema de responsabilidade civil individual no ordenamento jurídico brasileiro podem e
devem ser reivindicadas na configuração de um sistema de responsabilização transindividual,
sob pena de sofrermos retrocessos: a responsabilidade objetiva, a desnecessidade de prova do
prejuízo e a mensuração do quantum indenizatório, que também pode ser feita por
arbitramento, são exemplos. Infelizmente, contudo, o desconhecimento tem levado, na práxis
50
BENJAMIN, 2005, não paginado.
51
LEITE, 2003, P. 297.
80 Revista da PGM
forense, ao afastamento da responsabilidade ou a fixação de indenizações irrisórias e inaptas à
consecução de sua finalidade inibitória.
Se os Tribunais Pátrios já indenizam o dano moral individual e conseguem, senão
mensurar, mas atribuir valor derivado à honra, à dignidade e à estética individual, não há escusa
válida para a ausência de valoração do dano moral ambiental por lesão que ocasione a perda ou
redução da função estética da paisagem urbana, nem mesmo a indivisibilidade do bem ambiental,
vez que o direito já reconhece a sua existência e presta a ele sua tutela.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A paisagem urbana é um microbem ambiental essencial para a qualidade de vida e, como
tal, a beleza das cidades deve ser considerada como um direito fundamental, corolário do direito
à vida, sendo que função social da cidade prevista no artigo 182 do texto Constitucional está
estritamente vinculada à harmonia dos cenários urbanos.
Já se pode falar na existência de um “estatuto jurídico da paisagem” que assegura a sua
mais ampla proteção, tanto no ordenamento jurídico estrangeiro quanto no nacional.
Buscando guardar coerência com a matriz constitucional, propomos, então, como
critério de responsabilização, a identificação das funções ambientais do microbem lesado (no
caso a paisagem), dentre as quais a função estética, cuja violação terá como consequência
jurídica a reparação dos danos materiais e morais decorrentes da perda ou deterioração do
elemento visual de conexão entre o homem, suas criações e a natureza, bem como de
seus reflexos sobre o macrobem ambiental.
Assim, será passível de reparação qualquer ação que impacte negativamente a harmonia
do meio ambiente, o equilíbrio ecológico, mas sua análise e quantificação se darão a partir da
aferição das funções ambientais do microbem imediatamente lesado e das consequências do
dano sobre o macrobem.
No caso da paisagem, a degradação que ocasione perda ou redução de sua função
estética poderá, conforme o caso, ter reflexos patrimoniais (vocação turística, p. ex.) e
extrapatrimoniais ou morais, estreitamente relacionados à noção de identidade, à segurança e
ao prazer da conectividade que a paisagem proporciona entre o ser humano e o meio ambiente,
à saúde física e psíquica, ao conforto emocional, à tranquilidade que proporciona ao homem
em sua dimensão individual e coletiva, não se limitando à beleza enquanto valor relativo a
depender de subjetivismos e critérios como gosto, tempo e espaço. A beleza das cidades é tida,
pois, como valor absoluto, direito fundamental corolário do direito ao meio ambiente sadio e
atributo da personalidade.
Há ainda que se considerar os reflexos dessa função estética sobre a vida em sociedade.
Explica-se: Apesar do pouco conhecimento científico que a humanidade tem sobre as funções
ambientais em geral, já existem inúmeras pesquisas científicas demonstrando que o “caos urbano”,
o adensamento e a ocupação desordenada das cidades são fatores que causam estresse, insônia,
e contribuem para o aumento da violência e criminalidade. Por outro lado, a paisagem natural ou
a paisagem artificial e suas interações com a natureza, quando adequadamente planejadas, causam
bem-estar e melhoria na qualidade de vida. Assim, a lesão a essa função estética traz reflexos
Nº 24 - Dezembro 2010 81
negativos à esfera social, hipótese em que se consegue visualizar com clareza elementos para
aferição do “dano moral transindividual” decorrente da degradação ambiental.
Nessa linha, a fundamentalidade da paisagem urbana e de sua função estética, bem como
a sua relevância enquanto bem jurídico tutelado é irrefutável, não havendo como dar-lhe ares de
“Direito supérfluo ou fútil”. Por tal razão, os operadores do Direito devem ficar atentos às lesões
hodiernamente cometidas, utilizando-se de todos os instrumentos postos pelo ordenamento para
a garantia da inviolabilidade desse bem, mormente diante das “armadilhas arquitetônicas” da
pós-modernidade.
Não se pode afastar a reparação do dano estético ambiental, ou do dano extrapatrimonial
ambiental decorrente da perda ou deterioração de sua função estética, em razão das dificuldades
em sua quantificação. A transindividualidade do direito, a indivisibilidade dos bens ambientais, o
desconhecimento científico das funções ambientais e todas as demais dificuldades devem se
constituir em desafios e não óbices à reparação. No caso da paisagem como microbem ambiental,
muitas de suas funções já encontram respaldo científico, afinal, na história da humanidade não é
recente o estudo do “belo”, da estética e de seus efeitos sobre o ser humano.
Ainda temos muitos desafios em matéria de proteção da paisagem urbana. Na ótica das
políticas públicas demanda-se, por exemplo, a recuperação dos centros históricos, que por tantas
décadas foram relegados ao abandono, tanto no que tange aos cuidados com o patrimônio cultural,
quanto no que toca à economia dessas áreas centrais, que ficou limitada, na maioria das cidades,
a um tímido comércio popular. O modelo de recuperação ou “revitalização” ou “requalificação”
dessas áreas deve ser fundado na sustentabilidade. Os padrões estéticos devem atentar para a
identidade de nossas cidades, às nossas peculiaridades sociais e jurídicas, bem diferentes do
modelo “globalizado” que se pretende ver “importado” sem qualquer adequação à realidade
brasileira.52
Há ainda o grave problema do “empachamento”, sobretudo pela utilização abusiva e
indiscriminada de elementos de publicidade externa (outdoors, empenas, street tv) e da poluição
visual causada pela instalação desordenada das antenas de telefonia/Estações Radio-base. Isso
sem falar na poluição luminosa e suas trágicas consequências para a fauna noturna e para a
observação astronômica, pondo em risco a sobrevivência de animais noturnos, aves migratórias e
do “direito de ver estrelas”53
.
É terrível constatarmos que o novíssimo direito ambiental, enquanto ciência, somente
inicia a construção de seus próprios princípios e regras quando seu próprio sujeito-objeto está
em fase avançada de destruição. Essa relação paradoxal entre a construção da ciência/destruição
do sujeito-objeto remete, por razões óbvias, a um nascimento tardio, “pós-maturo”, razão pela
qual há pressa, há uma extrema urgência na sua construção e, principalmente, na efetiva produção
de seus efeitos sobre o “mundo da vida”54
. Não há tempo, pois, para purismos, há necessidade de
52
Sobre as ARES – Áreas de Revitalização Econômica das áreas centrais – ver Projeto de Emenda Constitucional e projeto de Lei Complementar
em http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/Imprensa/reabilitacao-de-areas-urbanas-centrais/noticias-2009/marco/
pec-para-reforma-de-centros-urbanos/?searchterm=ARES, sobre os quais temos severas críticas.
53
SANTOS, Nadia Palacio. O Direito de ver estrelas: a poluição luminosa sob a égide jurídica, urbanística e ambiental. In: BENJAMIN, Antônio
Herman de Vasconcellos e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2, p. 467.
54
Sobre a noção de mundo da vida e, Habermas ver :HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1990, p. 130.
82 Revista da PGM
trabalho árduo e conjunto com as demais ciências (interdisciplinariedade) e, como se sugeriu no
presente trabalho, de aproveitamento dos avanços já obtidos nas tutelas individuais que guardem
compatibilidade com a proteção coletiva pretendida. Os passos devem se direcionar para frente.
Paralelamente, no campo do reconhecimento das diversas funções ambientais dos também
diversificados microbens ambientais, mais do que a educação ambiental com vistas à
conscientização, é preciso provocar nos operadores do direito um verdadeiro insight. Do mesmo
modo que hoje já se é possível sentir literalmente na pele os efeitos da destruição da
camada de ozônio, é preciso que todos conheçam e atentem para os dramáticos efeitos
do “afeiamento”, da perda de identidade de uma cidade, que vão desde o aumento do
estresse e da violência urbana aos efeitos econômicos decorrentes da perda/redução do
seu valor turístico.
Não há, portanto, dificuldades intransponíveis na identificação e quantificação
do dano extrapatrimonial decorrente da lesão à paisagem urbana. O reconhecimento
de um estatuto jurídico da paisagem impõe tanto ações de prevenção quanto de
reparação.
A utilização e concretização dos instrumentos jurídicos já existentes, no que concerne à
proteção da paisagem urbana, devem assegurar a todos o sagrado direito de usufruir daquela
maravilhosa sensação que temos na aterrissagem do avião ao retornar de uma viagem: a volta
para o aconchego da cidade em que vivemos com sua beleza peculiar. Aquela que pelo destino ou
escolha chamamos de lar.
Nº 24 - Dezembro 2010 83
O código civil argentino e a determinação
do conceito de estatuto pessoal:
Da contraposição entre Actio e Vindicatio
aos direitos sujetivos 1
Maren Guimarães Taborda2
1
Texto integral da Comunicação apresentada no XII Congreso Internacional, XV Congreso Iberoamericano, Encuentro nacional
extraordinario de profesores de Derecho Romano en homenaje al bicentenario de la Revolución de Mayo, em Buenos Aires, Argentina,
de 26 a 29 de maio de 2010.
2
Mestre e Doutora em Teoria do Estado e do Direito pela UFRGS. Especialista em Gestão Tributária pela Universidad Castilla La Mancha.
Professora de História do Direito e de Direito Constitucional da PUCRS e Fundação do Ministério Público. Procuradora do Município de
Porto Alegre. Coordenadora do Centro de Estudos de Direito Municipal (CEDIM) da PGM de Porto Alegre.
“El método de nuestro Código Civil a sido tomado del
“Esboço” y de Savigny”. (D, Vélez Sarsfield. Derecho Civil, I, 1952)
Resumo: Trata o presente trabalho da recepção, pelo Código Civil Argentino, da principal tese de
Teixeira de Freitas, segundo a qual a distinção entre direitos pessoais e direitos reais, chave de
todas as relações civis, é a organização externa do sistema imanente ao Direito. O estudo também
inventaria o caminho percorrido pelo jurista brasileiro ao fazer a mediação entre o Direito Romano
clássico e a Teoria da Pessoa e dos Direitos Subjetivos.
84 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 85
Introdução
É sabido que D. Vélez Sarsfield, ao redigir o seu projeto de Código Civil para a República
Federal da Argentina utilizou a experiência de outros povos e principalmente o método de trabalho
de Teixeira de Freitas, produzido após décadas de estudos e meditações. Ao poupar um “esforço
considerável de concepção espiritual”, acolheu D. Vélez Sarsfield o sistema proposto no Esboço e
seu principal princípio técnico, qual seja, a divisão dos direitos em pessoais e reais.3
Freitas, na
segunda metade do século XIX, na Introdução à Consolidação das Leis Civis, trabalho preparatório
à codificação civil brasileira, já advertira que a distinção entre direitos reais e direitos pessoais era
fundamental para o sistema de Direito Civil, ou seja, a “chave de todas as relações civis”, uma
vez que corresponde a uma “arrumação” externa daquilo que é internamente dotado de
organização ou sistema imanente.4
Essas categorias, herdadas do Direito romano e conservadas
pelo Direito romano-germânico até nossos dias, correspondem à contraposição existente no Direito
romano primitivo entre actio e vindicatio ou entre actiones in rem e actiones in personam, isto
é, a formas diversas, porém equivalentes, de tutela judicial. Ao contrário das concepções modernas,
que partem do indivíduo, reconhecem-lhe direitos e os sancionam, os romanos “davam a ação”,
criando, com isso, o Direito.
‘Pessoa’, de outra parte, segundo a teoria tradicional do direito civil, é uma criação do
Direito para designar sujeitos de direito, isto é, quem tem aptidão para ser sujeito - potencial ou
atual - de relações jurídicas. Enquanto noção técnica, começou a ser utilizada no medievo e só se
tornou precisa em correlação com a de ‘sujeito de direito’, operada pela Pandectística, no âmbito
do Direito Privado. A identificação entre as noções de ‘pessoa’ e de ‘sujeito de direito’, em um só
conceito, o de personalidade ou capacidade de direito, entendido como capacidade de possuir
direitos e obrigações, remonta à filosofia prática de Kant, cujo centro é o conceito de dever que se
3
Muito já se escreveu sobre a noção de sistema endossada por Freitas, fruto de sua meditação sobre a obra de Savigny e Leibniz. Ver:
MEIRA, Sílvio. Direito Brasileiro e Direito Argentino. Códigos Comercial e Civil. Influência do “Esboço” de Teixeira de Freitas no Projecto
de Vélez Sarsfield. In: MORAES E BARROS, Hamilton et al. Estudos em Homenagem ao professor Caio Mário da Silva Pereira. Rio de
Janeiro: Forense, 1984 e Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do Império. 2ª. Ed. Brasília:CEGRAF, 1983;. MARTINS-COSTA, Judith. O
Sistema na Codificação Civil Brasileira: de Leibniz a Teixeira de Freitas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Vol. 17. Porto Alegre: Síntese, 1999; SCHIPANI, Sandro. Augusto Teixeira de Freitas e il Diritto Latinoamericano.
Atti del Congresso internazionale del centenário di Augusto Teixeira de Freitas. Pádua: CEDAM, 1988; FLORES, Alfredo. O papel de
Teixeira de Freitas no contexto do pensamento jurídico do séc. XIX. The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. Vol
1 (2006), nº 1, Article 3. Disponível in
http://services.bepress.com/lacjls/vol1/iss1/art3 , acessado em 12 de abril de 2010; WALD, Arnold. A obra de Teixeira de Freitas e o Direito
Latino-Americano. Revista de Informação Legislativa nº 41. Brasília: Senado Federal, 2004; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
4
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis. 3a
. ed. 1o
. Volume. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1875, pág. XXXIX.
86 Revista da PGM
revela pelo discernimento moral (onde a necessidade prática exprimida na lei moral implica a
existência de liberdade) e o de ‘relação de dever’, que põe, de um lado, o obrigado, e de outro,
aquele para quem o dever existe, e que é, no caso do dever jurídico, o titular dos direitos subjetivos
respectivos. Os representantes da filosofia clássica alemã, ao adotarem a concepção kantiana de
pessoa, lhe forneceram, contudo, uma nova dignidade, no sentido de conceber os direitos subjetivos
como atributos necessários do homem enquanto pessoa - ser dotado de liberdade - na medida
em que eles garantem o seu agir autônomo.5
A expressão ‘sujeito de direito’, por conseguinte, designa o complexo de direitos e deveres,
cuja unidade é expressa figurativamente no conceito de ‘pessoa’. ‘Pessoa’(natural ou jurídica) é,
então, uma unidade personificada de normas jurídicas que impõem deveres e conferem direitos.
Na maioria dos países que adotam o sistema de direito romano-germânico, as pessoas jurídicas
têm sua natureza descrita conforme imputações de direito privado ou de direito público. No
Direito Romano antigo, a palavra ‘pessoa’ tinha o significado normal de ‘homem’, sem qualquer
alusão à sua capacidade. Embora largamente empregado, o termo persona não tinha um valor
técnico, e tanto era ‘pessoa’ o homem livre quanto o escravo - persona servi - , ainda que este
não fosse considerado sujeito de direito. Para o ser sujeito de direito, além da condição ‘ser
homem’, concorriam mais três, a saber: ser livre, cidadão e senhor de si mesmo - sui iuris. Só
nos textos pós-clássicos é que emerge um emprego diverso do termo, para exprimir uma noção
que se avizinha ao que os modernos entendem por ‘capacidade jurídica’. Na compilação
justinianéia, o termo continuou a ser utilizado de modo genérico e os glosadores civilistas
bolonheses continuaram a não lhe atribuir, em referência ao homem, qualquer particular
significação jurídica.6
Teixeira de Freitas, romanista autodidata e profundo conhecedor da obra da Savigny,
transpôs para o Esboço não só a doutrina romana das obrigações, como o “sistema” inerente à
obra de Gaio, ao afirmar que todo o Direito se refere às pessoas, às coisas e às ações. Mais do que
isso, ao acolher os resultados da doutrina jurídica do séc. XIX e das investigações de Leibniz,
pressupôs e afirmou a existência do Direito como uma substância viva que anima as leis e que
conta com um critério fundamental e universal, derivado da natureza das instituições jurídicas
na realidade: a distinção entre direitos pessoais e direitos reais. Com uma postura metodológica
realista, Freitas proclama a anterioridade racional do Direito Natural (com base na sua
compreensão humanista do Direito), sem que, contudo, as disposições do Direito Positivo resultem
diretamente dele. Inicia o seu trabalho pela determinação do conceito de estatuto pessoal –
vinculado à idéia de ‘pessoa’ – sustentando que “os direitos dos indivíduos se originam tanto no
Direito Natural como no Direito das Gentes, do costume e da civilização.7
5
Cf. STRANGAS, Jean. Les implications philosophiques de la notion de sujet de droit. Archives du Philosophie du Droit. Paris: Sirey,
1990. Ver: KANT, I. La Metafísica de las Costumbres. 3ª. Ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1999. Tradução espanhola de Metaphysik des
Sitten, por Adela Cortina Orts e Jesus Conill Sancho, pp. 298/299
6
Ver: ORESTANO, Riccardo. Il “Probleme delle persone giuridiche” in Diritto Romano. Turim: Giappichelli, 1990.: IGLESIAS, Juan.
Derecho Romano. Historia e Instituciones. Barcelona: Ariel, 1993, pp. 107/108 e 144 a147; CATALANO, Pierangelo. Diritto e Persone.
Studi Su Origine E Attualità Del Sistema Romano. Turim: Giappichelli, 1990, Capítulo V, pp. 163/188.
7
LEIBNIZ. Novos Escritos sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999; Nova Methodus discendae
docendaeque jurisprudentiae, t. IV. Opera omnia. Gèneve, 1768; TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Código Civil: esboço. Rio de Janeiro:
Typographia Universal de Laemmert, 1958.
Nº 24 - Dezembro 2010 87
Pois bem, sem a pretensão de esgotar o assunto, que já foi exaustivamente debatido, este
estudo procura compreender a noção de Pessoa subjacente à legislação civil Argentina, que
encontrando raízes no pensamento de Teixeira de Freitas, faz a mediação entre o Direito Romano
clássico e a Teoria da Pessoa e dos Direitos Subjetivos.
1 . ACTIO IN REM E ACTIO IN PERSONAM NO DIREITO ROMANO CLÁSSICO
No direito romano primitivo, as ações eram facultadas ao cidadão para que, ao término,
investido de poderes (potestas) pudesse dispor de pessoas e bens, como reflexo de sua auctoritas
doméstica. Esta potestas se irradiava em dois planos diferentes: no plano das relações internas
do grupo familiar, implicava poderes de dono e senhor, o que Kunkel e García traduziram por
“direito subjetivo de senhorio”; no plano das relações interfamiliares, que os patresfamilias
constituíam com seus iguais, cada um administrando o patrimônio de suas respectivas famílias,
a potestas se manifestava como um poder apenas sobre determinados atos alheios, de interesse
patrimonial. Por isso, Kunkel chamou estas últimas faculdades de “direito subjetivo de crédito”.
A potestas de senhorio era eficaz contra todos e implicava um dever negativo: abstenção de os
demais interferirem naquela ordem de relações. Poder absoluto,manifestava-se, dentro da
família, como patria potestas, direitos do tutor sobre o pupilo, manus sobre a esposa; exercido
sobre coisas da família, como dominium (mancipium primitivo) ou propriedade, e, ainda,
exercido sobre coisas de outrem, provisoriamente, como fiducia, pignus e hypotheca. Já a
potestas sobre atos alheios de interesse patrimonial era relativa, implicando deveres positivos
dos demais e sujeitando materialmente uma pessoa determinada ou determinável. Suas
manifestações mais evidentes eram as obrigações e o procedimento civil.8
Sendo assim, todas as ações se desenvolveram com base em dois arquétipos: a finalidade
da ação era garantir ou postestas sobre uma coisa (aí incluídas as relações familiares) ou a
potestas sobre uma pessoa (seu comportamento, que podia ser um dar, um fazer, ou uma
omissão). Daí haver, no Direito romano, uma íntima relação entre os poderes de manter, suster,
conter, defender - atuação e defesa exercidos pelo titular do poder - e as fórmulas verbais das
ações da lei, só existindo o ius porque existia uma actio, isto é, aquele era uma decorrência desta
(recurso de tutela processual)..
8
Para o Direito Romano, ver: MIQUEL, Joan. Derecho Romano Privado. Madrid: Marcial Pons, 1992; VILLEY, Michel. Le Droit Romain.
9a
. ed. Paris: Presse Universitaire de France, 1993; WOLF, Hans Julius. Introducción Histórica al Derecho Romano. La Coruña: Imprenta
Moret, 1953.Tradução do inglês Roman Law. An Historical Introduction, 1951; Cf. PUGLIESE, Giovanni. Istituzioni di Diritto Romano.
3a
. ed.Turim: Giappichelli Editore; KUNKEL, Wolfgang. Derecho Romano Privado. Madrid: Editorial Labor, 1937; SCHULZ, Fritz. Principios
del Derecho Romano. Madrid: Civitas, 1990 e Derecho Romano Clássico. Barcelona: Bosch, 1960; MOMMSEN, Teodor. Compendio del
Derecho Publico Romano. Buenos Aires: Editorial Impulso, 1942. ARANGIO-RUIZ, Vicente. Historia del Derecho Romano. 5a
. ed.
Madrid: Reus, 1994; GARCÍA, César Rascón. Manual de Derecho Romano. Madrid: Tecnos, 1992. SURGIK, Aloísio. Lineamentos do
Processo Civil Romano. Curitiba, 1990. D’ORS, Alvaro. Elementos de Derecho Privado Romano. 3a
. ed. Pamplona: Ediciones Universidad
de Navarra e Derecho Romano Privado. Pamplona: EUNSA, 1997; WENGER, Leopoldo. Compendio de Derecho procesal civil romano.
Apêndice à obra de KUNKEL; SILVA, Ovídio A. Baptista. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1996; MEIRA, Silvio A. Lei das XII Tábuas. Fonte do Direito Público e Privado. 5a
. ed. Belém, Edições CEJUP,
1989; BISCARDI, Antonio. Obligatio personae et obligatio rei dans l’histoire du droit romain. Revue Historique de Droit Français et
Étranger, nº 2, Paris: Sirey, 1992; SAVIGNY, Friedrich Karl, in: Metodologia Jurídica. Buenos Aires: Depalma, 1979.
88 Revista da PGM
O conceito material de actio, todavia, formou-se primeiro em um determinado tipo de
ação, a actio in personam, em que a ação surgia paralelamente à obrigação: actio e obligatio
eram inseparáveis. Ao contrário, o nascimento do domínio ou senhorio não dava origem a nenhuma
ação: só surgia uma obrigação depois da litiscontestatio. A ação real nascia quando havia uma
violação, e só foi verdadeiramente reconhecida uma ação real quando os imperadores Honorio e
Teodósio submeteram a ação real, como todas as demais, à prescrição. Em tempos antigos, quando
a demanda era exercício judicial de potestas de senhorio chamava-se vindicationes. Ao exercício
judicial de direitos de obrigações ou de crédito, por outro lado, dava-se o nome de actiones ou
condictiones. 9
Embora, inicialmente, actiones correspondesse ao exercício judicial de obrigações, logo
a expressão actio se empregou também no sentido de vindicationes, como se vê no texto Gaiano,
da época clássica (4.2,3).Desta forma, por exemplo, se uma pessoa estava vinculada a outra pelo
direito pretoriano (através de ações úteis ou in factum), essa relação vinha expressa com outros
termos, como debere, adstringere, actione teneri, indicando deveres genéricos ou sujeição à
actio outorgada pelo magistrado; de outra parte, quando um dever jurídico podia tornar-se efetivo
mediante uma extraordinaria cognitio, também não se empregavam os termos obligatio e
obligare: constitutivo de obligatio era aquele dever que podia tornar-se efetivo por meio de uma
actio in personam; por fim, os deveres derivados de um ius in rem, podiam tornar-se efetivos
mediante uma actio in rem, também não eram obligationes.10
.
Por essas razões, Texeira de Freitas interpretou ser a distinção clássica entre actio in rem
e actio in personam fruto de uma diferença nas fórmulas: na actio in rem, o direito, objeto do
litígio, era enunciado sem que se nomeasse qualquer obrigado ante o direito reclamado; na actio
in personam, ao contrário, o direito era reclamado contra alguém.11
Daí que a peculiariade da
actio in rem clássica aparece no procedimento, na fase in iure: eram as únicas ações que não
implicavam o dever que tinha o demandando de defender-se, isto é, de aceitar uma fórmula
aprovada pelo pretor e, por via de conseqüência, o iudicium.
9
Código. Livro VII: Título XXXVIII, 3 e Título XXXIX, 3.. GARCÍA DEL CORRAL, D. Ildenfonso. Cuerpo del derecho civil romano. Valladolid:
Lex Nova, 1989. Tomo II, pp. 235, e ss. Ora em diante, todas as citações do Corpus Iuris (Digesto, Institutas, Codex e Novelas) são desta
obra.
10
GAIO, 4,2 e 3. Textos conforme manuscrito veronês in: , Alexandre, SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. Institutas de Gaio
e de Justiniano vertidas para o português, em confronto com o texto latino. São Paulo: Saraiva, 1955; DOMINGO, Rafael (org.) Textos de
Derecho Romano. Navarra: Editorial Aranzadi, 2002; Gaius. Institutes. Paris: Les Belles Lettres, 1979. Na época clássica,. obligatio
passa a ser um termo jurídico conhecido com o mesmo significado de obligare (atar), usado em relação às coisas (obligare rem - atar
a uma coisa, dá-la em garantia) e pessoas (obligare personam - impor um dever a uma pessoa). Daí a afirmação de Biscardi, segundo
a qual, mesmo no antigo direito quiritário, o verbo obligare se aplicava também às coisas, e por isso, no direito justinianeu, pode-se
falar em obrigações pessoais e obrigações reais. As obrigações pessoais primitivas seriam: a) a vadiatura (espécie de caução processual,
em que uma persona se tornava responsável pelo cumprimento do dever de outrem de comparecer em juízo,); b) a praedes litis et
vindiciarum ( forma de garantia aplicada às dívidas contraídas pelos particulares para com o Estado, por razão de tributos ou por
adjudicação de obras públicas. Estendia-se ao processo, em que o praedes garantia a restituição da coisa ou de frutos por parte dos
litigantes que, na posse interina da mesma, viesse a perder o pleito); c) a sponsio; d) instituição do vindex (garantia no momento da
execução de uma actio per manus iniectio e e) o nexum. As obrigações reais mais antigas, em que o débito era assegurado por uma
coisa que ficava vinculada (res obligata), seriam a fiducia cum creditore e o pignus datum.
11
Nas fórmulas das ações in rem, havia, normalmente, uma cláusula nisi restituetur ou neque restituetur, inserida imediatamente
antes da condemnatio. Chamadas pela tradição romanística de arbitrium iudicis, nestas fórmulas, ao invés de um iudex, se nomeva
um arbiter (GAIO, 4, 141 e 163).
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Constata-se, então, ser equivocado dizer que as actiones in rem são aquelas que se davam
contra quem lesionasse um ius in re ou in rem, uma vez que, na actio legis Aquiliae, por
exemplo, se protegia um dominium (ius in re), mas a ação era in personam e não in rem. De
outra parte, em casos em que se discutia herança, como o de petição de herança (hereditatis
petitio), a fórmula criada pelo pretor era própria de uma actio in rem, o que implicava que o
demandado não estivesse obrigado a aceitar o iudicium e fosse livre para abandonar a coisa cuja
posse o mesmo detinha. Se não abandonasse a coisa nem aceitasse o iudicium, o autor podia
utilizar contra ele um interdictum quam hereditatem. Já a actio familiae erciscundae - ação de
qualquer um dos co-herdeiros para exigir a divisão de herança -, a actio communi dividundo -
ação aplicável a qualquer caso de co-propriedade - e a actio finium regundorum - ação em que
se discutiam limites de prédios - ao contrário, eram actiones in personam, porque obrigavam o
demandado a defender-se, ainda que o resultado viesse implicar um domínio sobre determinada
coisa.12
O caso da reinvindicatio clássica - ação pela qual o proprietário quiritário podia exigir a
restituição de uma coisa possuída por outrem - é ainda mais exemplar: havendo duas alternativas
processuais, per sponsionem e per formulam petitioriam, mesmo se fosse o caso da primeira
forma, era considerada uma actio in rem, pois, se o demandado se negasse a defender a coisa
vindicada com as oportunas sponsiones ou aceitando a fórmula petitória, devia abandonar a
coisa.13
Por isso, não se pode afirmar ser direta a relação entre a expressão romana ius in re e o
conceito moderno de direito real. Aliás, afirma Miquel, que, em algumas fontes, a expressão ius
in re se contrapõe “nada menos que a la propiedad, que es el prototipo de los Derecho reales”,14
até porque os romanos confundiam propriedade com a coisa sobre a qual a mesma recai.
Resulta daí que as fórmulas das ações da lei ou das ações honorárias eram in rem ou in
personam, conforme a natureza do dever que, através da ação tornava-se efetivo. Nas fórmulas
das ações obrigacionais, a expressão oportere traduzia a idéia de que somente estas geravam
direitos a uma prestação. Nestas ações, o autor se dirigia a uma pessoa determinada - o devedor
obrigado -, de quem pretendia que desse algo ou que respondesse por algo. Ao contrário, nas
actiones in rem, o autor afirmava: a) que a coisa corporal era sua (ação reinvidicatória); b) ou
que, sobre determinada coisa de outrem, competia-lhe uma determinada potestas de senhorio,
como um uso, um usufruto, uma servidão ou, c) tratava-se de uma ação negativa. Na intentio da
fórmula da actio in personam, apareciam os nomes do devedor e do credor (demandante/
demandado); na actio in rem, ao contrário, se afirmava unicamente que uma coisa pertencia ao
autor, sem que aparecesse na intentio da fórmula qualquer nome. A ação real, então, visava a
coisa, e o demandado era tão-somente um obstáculo que se interpunha entre o autor e a coisa.
12
Ver: LENEL, Otto. Essai de reconstitution de l’édit perpétuel. Tradução francesa por Frédéric Peltier, revisada pelo próprio autor.
Paris: Librairie de La Société du Recueil Général des Lois et des Arrêts, 1901. v.1. p. 236 et seq. MANTOVANI, Dario. Le formule del
processo privato romano: per la didattica delle istituzioni di diritto romano. Padova: CEDAM, 1999. p. 60-61 e p. 201-202. Observe-
se que, de acordo com os textos justinianeus, estas ações - familiae erciscundae, communi dividundo e finium regundorum- são
consideradas ações mistas, o que, segundo a visão de SCHULZ e TEIXEIRA DE FREITAS, é equivocado.
13
Sobre a rei vindicatio per sponsionem e per formulam petitioriam ver GAIO, 4,91 e 4,141 e 163, além de . SCHULZ, op. cit, p. 353.
14
MIQUEL, op. cit., p. 159.
90 Revista da PGM
No caso desta última, que nascia de uma violação, o usurpador nada devia ao proprietário, vencedor
da reivindicatória (caso mais destacado de actio in rem): ele apenas deveria sofrer a vindicatio
do titular do domínio que vira seu direito proclamado pelo juiz. O dever que se tornava efetivo
nas ações reais, era, então, um dever de conteúdo negativo, que implicava a omissão, o respeito
ao domínio de outrem, e não uma obligatio propriamente dita. Nas ações pessoais, o resultado,
para o demandado, era a condemnatio; nas ações reais, este deveria apenas suportar a tomada
de posse por parte do autor, porque, antes da demanda, nenhuma obrigação existia entre eles.15
Foi na época medieval, no Brachylogo (compêndio composto na Lombardia, em 1110,
cujo autor é desconhecido),16
que as expressões ius in rem e ius in personam, foram utilizadas
para distinguir uma classe de direitos em oposição a outra classe e, a partir daí é que se afirmou
que a ação que tem por objeto um ius in rem se chama ação real e é oposta àquela que tem por
objeto o reconhecimento de uma obrigação, a actio in personam. Já no séc. XVIII, com Pothier,
afirmou-se o conceito de ius in re como equivalente a direito real. O que permitiu a classificação
dos direitos em pessoais e reais, foi, sem dúvida, a longa elaboração, iniciada na Canonística, do
conceito de “Pessoa” e de “Direito Subjetivo”, elaboração esta que se confunde com a própria
constituição da tradição jurídica, acolhida por D. Freitas e, por conseguinte, por D. Vélez Sarsfield,
no Projeto de Código Civil Argentino.
2. ATRIBUIÇÃO DE VALOR TÉCNICO À EXPRESSÃO ‘PERSONA’: PERSONALIDADE
JURÍDICA. E DIREITOS SUBJETIVOS
A construção da noção técnica de ‘pessoa’ permeia a história do pensamento jurídico do
Ocidente.17
A partir da chamada “Era Axial” iniciou um longo caminho que levou o homem a
constatar a sua igualdade essencial, isto é, a revelação de que todos os seres humanos, apesar de
suas diferenças merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, de
descobrir a verdade e criar a beleza. A idéia de que “todos” os homens são iguais,
independentemente de sua origem social, gênero, idade, etc.- pedra angular da ética cristã - só
recebeu formulação concreta, em termos jurídico-políticos, na era das grandes revoluções liberais,
mais precisamente com a “Virgínia Bill of Rights”, de 12.6.1776 O reconhecimento ou a
presunção de uma igualdade natural dos homens, com o corolário de tratamento igualitário,
15
Cf. BAPTISTA DA SILVA, op. cit. p. 65.
16
Cf. TEIXEIRA DE FREITAS, Consolidação...cit.p.. CLXVI.
17
Ver, em geral: ORESTANO, cit., passim. VILLEY, Michel. Leçons d´Histoire de la Philosophie du Droit.(Les origines de la notion de
droit subjetif). Paris: Dalloz, 1957 e “La promotion de la loi et du droit subjetctif dans la seconde escolastique”,in: La seconda
scolastica nella formazione del diritto privato moderno. Coleção Per la storia del pensiero giuridico moderno. GROSSI, Paolo (org.).
Milano: Giuffrè, 1973; TODESCAN, Franco. Le radici teologiche del giusnaturalismo laico Le radici teologiche del giusnaturalismo
laico I (Il problema della secullarizzazione nel pensiero giuridico di Ugo Grozio). Coleção “Per la storia del pensiero giuridico moderno,
14”. GROSSI, Paolo (org). Milano:Giuffrè. , 1983, p. 9. PUFENDORF, Samuel. De los deberes del hombre y del ciudadano según la ley
natural, en dos libros. Madrid: Centro de Estúdios Politicos Constitucionales, 2002; SOTO, Domingo O.P . De la Justicia y del Derecho.
Madrid: Instituto de Estúdios Políticos, 1968. Tomos I e II; MOLINA, Luis De iustitia et iure. Tratado II, Disputación (Sobre a diferença
entre o direito a uma coisa e o direito real). In: FERNANDEZ, Clemente. Los Filosofos Escolásticos de los siglos XVI y XVII. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, 1986; PANIÁGUA, Jose Maria Rodriguez. Historia del Pensamiento Juridico. Vol. I. Madrid: Universidad
Complutense, 1988.
Nº 24 - Dezembro 2010 91
chamada de “igualdade constitucional”, “mandato da igualdade” ou “técnica da igualdade” foi a
novidade fundamental da filosofia racionalista e individualista dos séculos XVII e XVIII, consagrada
em todas as Declarações de Direitos do Homem que se seguiram às Revoluções Liberais.
Os estóicos antigos, muito antes de Hobbes e Rousseau formularam a hipótese de um
“estado de natureza” anterior ao “estado civil”, isto é, de um estado decorrente da comum
participação dos homens no logos divino, do qual resulta a sua igualdade essencial. Segundo tal
concepção, existe um conjunto de princípios éticos que emanam da razão que rege o universo -
da natureza - o chamado direito natural universal, antecedente imediato da teoria cristã da lex
aeterna e da lex naturalis, formulada mais tardiamente por Tomás de Aquino. Cícero, em Roma,
influenciado pelo epicureísmo e pelo estoicismo médio, também considera a existência de uma
lei natural e de um estado de natureza. A segunda fase da elaboração do conceito de pessoa
natural (ou humana) – que Teixeira de Freitas chama de “Pessoas de existência visível” -, ocorre
com Boécio, no início do séc. VI. Foi na canonística, contudo, mais precisamente na obra de
Sinibaldo de Fieschi (futuro papa Inocêncio IV), que se passou a aplicar correntemente o termo
persona para designar também entidades coletivas, com uma configuração unitária e abstrata
distinta de seus membros particulares.
O problema da ‘pessoa jurídica’ permeou toda a civilística do séc. XVI ao séc. XVII, que o
tratou segundo uma concepção naturalística e objetiva. Duarenus (1509-1559) aplica o termo
persona tanto as universitates quanto a seus componentes, antecipando, em muitos anos, um
conceito unitário de ‘personalidade jurídica’. Domat (1625-1696) dedica, nas Loix civiles, um
único título as personnes (comunidades eclesiásticas e laicas), definidas como assembléias de
muitas pessoas unidas em um ‘corpo’ formado com a permissão do príncipe, para um bem
público permanente, distintas das pessoas particulares. Mas foi só no final do séc. XVI que
apareceram as primeiras tentativas de clarificar a relação entre o elemento naturalístico – o
homem enquanto entidade física real – e a sua consideração do ponto de vista do Direito – o
homem quanto entidade juridicamente relevante -, reservando-se, para este último, a qualificação,
cada vez mais específica e técnica, de persona. Puffendorf (1632-1694) elabora, finalmente, o
conceito unitário de persona moralis, destinado a reunir, sob uma única noção geral, as personae
simplices e as personae compositae Na obra de Puffendorf (fruto de uma articulada e original
ontologia jurídica e considerada como um dos modelos do sistema jurídico codificado), as pessoas
‘simples’ ou ‘compostas’ são portadoras de direitos, tais como as obrigações e o dominium,
caracterizado como um direito que pode ser adquirido por vários modos (originários e derivativos).
A passagem para um concepção eminentemente subjetivística iniciou no curso do séc.
XVIII, quando, retomando a temática principal do individualismo jusnaturalista, que fez coincidir
o status hominis naturalis e o status hominis civilis - a noção de homem como um dado
naturalístico e a noção de pessoa como um dado jurídico -, juristas e filósofos sustentaram que
cada homem é, por si mesmo, portador de ‘direitos subjetivos’, que podem se reportar ao seu
‘poder da vontade’, elevado a sinal natural de sua personalidade e a elemento motor das relações
jurídicas que estabelece.
Desde Grotius (1583-1645), já se vinha tratando da idéia de direito subjetivo como
faculdade de querer ou fazer qualquer coisa, enumerando-se, inclusive, os vários tipos de ‘direitos’
que esse poder implica, tais como: poder sobre si mesmo (potestas in se) - liberdade; poder
92 Revista da PGM
sobre outros (potestas in alios, como o pátrio poder) e poder sobre coisas (potestas in res, como
o domínio/propriedade). Embora não se possa afirmar com precisão o momento que o termo ius
passou a significar direito subjetivo, o certo é que é uma noção que marca o nascimento de um
tipo de pensamento jurídico de cunho nitidamente individualista, cuja causa longíqua e profunda
foi o Cristianismo, que revelando o valor do indivíduo, desenvolveu, na Idade Média, novas categorias
jurídicas estabelecidas em função do interesse individual e não mais em função da situação social,
como a das ‘ pessoas miseráveis’ (miserabiles personae).
Ainda que se utilizasse, no medievo, a palavra ius, ela não se aplicava à faculdade de
querer ou de agir, nem denotava a idéia mesma de faculdade: o ius que cada um reivindicava
nada mais era que seu estatuto. As primeiras definições claras da noção de ‘direito subjetivo’
emanaram do grupo de autores da escolástica tardia (Duns Scott e Guilherme d’Occam),
lentamente foram transmitidas a juristas – Grotius e seus comentadores (Pufendorf, Feltmann e
Thomasius) até receberem uma completa formulação por filósofos como Hobbes e Gassendi, na
esteira de um combate da filosofia moderna contra o direito natural concebido por Aristóteles.
Assim, ao antigo direito natural objetivo - uma ordem fixa e imutável estabelecida
pela razão universal, em que cada instituição social tem uma estrutura fixa - foi contraposto um
direito natural novo, cujo conteúdo é negativo: a ausência de vínculos e de regras sociais, de
deveres e de comandos, é dizer, o direito de liberdade do indivíduo, cuja origem é puramente
humana, convencional. A natureza fez os homens indivíduos, separados e livres e tais liberdades
são dados jurídicos primários, que a lei a e convenção modelam em ‘direitos subjetivos’. Por
conseguinte, a noção primordial do direito é aquele que é dado por natureza aos homens, que as
leis civis limitam: é a liberdade, o poder individual. Isso é o resultado de três construções
complexas, quais sejam o ser humano é um indivíduo, dotado de direitos subjetivos (noção ético-
jurídica); o Estado, por sua vez, é instituído por um ato humano fundador (contratualismo
constitucional), como o afirmou Hobbes, e condição de existência dos direitos subjetivos; o
ordenamento jurídico é um sistema, “racionalmente apreensível e manejável por intermédio de
conceitos gerais, dotados de elevadíssimo grau de abstração.”18
Não há dúvida que Teixeira de Freitas absorveu a tradição da Escola do Direito Natural
de sistematização more geometrico da experiência jurídica. Leibniz (1667) foi o primeiro a a
aplicar o método racionalista axiomático ao plano das Institutas, fazendo a crítica ao sistema
romano tradicional, sob a perspectiva de que não se pode fundar a ciência jurídica sobre a
observação dos fatos concretos. Assim, propõe um sistema de verdades primeiras (principios
inatos) que acabam por constituir um saber totalizante e escalonado, imanentes ao “ser” do
Direito. A partir destas regras gerais, é possível fazer a divisão entre gêneros e espécies, e, após, a
divisão dos termos. O “corpo” inteiro do Direito respousa sobre a qualidade moral dos atos jurídicos,
que são relativas ao sujeitos, aos objetos e às causas (modos de aquisição). O plano tripartite das
Institutas é então transformado, segundo a reconstrução da ordem da natureza. Vinnius (1665),
18
MARTINS-COSTA, Judith. Indivíduo, Pessoa, Sujeito de Direitos: contribuições renascentistas para uma história dos conceitos jurídicos.
Philia & Filia. Mutações do Conhecimento: O Renascimento do Homem Moderno. Porto Alegre, vol. 01, nº 1, jan./jun. 2010, p. 71.
Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/philiaefilia/issue/view/
2010, acessada em 06 de abril de 2010.
Nº 24 - Dezembro 2010 93
por sua vez, ao considerar os iura in rebus (direitos subjetivos), assinala que este podem ser jus
in re e jus ad rem. Puffendorf (1672) reconstrói o ‘sistema de Direito’ a partir de premissas
invidualistas. Os indivíduos têm direitos inerentes à sua pessoa, que são também deveres, fazendo
uma união estreita entre a moral dos deveres e a moral dos direitos. Apresenta um plano sistemático
no qual dos homens possuem deveres de duas naturezas: como indivíduo e em sociedade. Como
indivíduo, tem direitos para com Deus, frente a si mesmo e frente aos outros (convenções); em
sociedade, tem deveres para com a família e para com a cidade. As convenções é que institutem
deveres e direitos como a aquisição da propriedade, a gestão da propriedade e as obrigações ex
contractu. O Plano de Heineccius(1727) não difere muito do de Puffendorf. No entanto, ele
especifica a aquisição de propriedade (que é dever frente aos demais) pode ser derivada ou
originária e é neste particular que surgem os direitos de “guardar a propriedade” e “negociar os
bens próprios” (obrigações ex contractu). Conforme Struve (1760), o Jus (direito subjetivo), ao
ser in re e ad rem, quando se estabelece sobre as coisas, é domínio singular ou dominio universal;
estabelecido sobre pessoas, é “direito pessoal”. No plano de direito natural de Domat (1689), do
amor ao próximo resultam os contratos, e da perpetuação dos direitos naturais, como a sucessão
(ab intestato, por testamento, os legados, as substituições e os fideicomissos). Fleury Argou
(1692) inova ao transformar o sentido do plano tripartite, sob um ponto de vista individualista
(moderno): tudo é estudado em função do indivíduo, sujeito de direitos subjetivos, e que pode
fazer respeitar seus dieritos graças a determinados procedimentos.. Daguesseau (1725) divide a
matéria juridica em três partes, também seguindo, grosso modo, Puffendorf. Assim, para ele,
todos os direitos que os homens podem vir a exercer nas relações com seus semelhantes, se
reduzem a duas espécies: direitos sobre as coisas e os direitos sobre as pessoas. Tal plano será
adotado por Prevôt de la Jannès (1750), que fundará toda a matéria jurídica sobre os direitos
subjetivos existentes a priori, isto é, o Direito civil trata das pessoas e seus direitos: sobre as
coisas, perseguidos pelas ações reais; sobre as pessoas, perseguidos pelas ações pessoais. Pothier
(1750) resolve o encontro da tradição gaiana com o racionalismo axiomático moderno, com os
seguintes passos: partindo da observação do mundo, ele nota a existência de res in commercio,
que se dividem em corpóreas e incorpóreas; no que diz respeito à utilidade dessas coisas para o
Direito, ele adota um ponto de vista segundo o qual os Jura, no sentido de direitos subjetivos, que
podem ter diretamente por objeto as coisas – jura in re/ direitos reais - , ou simplesmente
serem a elas concernentes – juras ad rem/ direitos de crédito. Olivier(1776), a partir da
sistematização feita por Domat, ao conservar o plano tripartite das Institutas, finalmente concebe
a repartição da matéria jurídica em pessoas (I), coisas e modos de aquisição à título lucrativo
(II), meios de adquirir as coisas à título oneroso (III), e as ações (IV).19
Todavia, foi no trabalho de elaboração sistemática da doutrina geral do direito privado,
feito pela Pandectística alemã entre o fim do séc. XVIII e início do séc. XIX, em que este foi,
segundo o espírito e a doutrina da época, concebido e articulado em torno da noção de ‘direito
subjetivo’, isto é, como um ‘sistema de direitos subjetivos’, é que se consolidou a concepção
subjetivística da personalidade jurídica. Tal concepção subjetiva da personalidade ao identificar a
19
Ver ARNAUD, André-Jean. Les origines doctrinales du Code Civil français. Paris: LGDJ, 1969, pp. 134 e ss.
94 Revista da PGM
persona - sujeito de direito - com o seu substrato material (o homem), comportou duas orientações
de pensamento diametralmente opostas e, todavia, ligadas a mesma matriz subjetivística, a saber:
a teoria da ficção e a teoria da realidade. A primeira afirma que só o homem, enquanto ser que
possui uma vontade, pode ser sujeito de direito com existência real, sendo todos os demais sujeitos
artificiais; a segunda, procura demonstrar que todos os ‘sujeitos de direito’ são igualmente dotados
de uma existência e vontade ‘reais’.
No processo de construção sistemática de uma noção geral de ‘sujeito de direito’, apareceu
em 1807, pela primeira vez, a voz ‘pessoa jurídica’ (juristiche Personen), na obra do jurista
alemão Arnold Heise, compreendendo, sob um único conceito, contraposto às pessoas físicas,
tudo o que não fosse o homem singular (Alles, auBer den einzelnen Menschen) e que pudesse
ser reconhecido em um Estado como ‘sujeito de direito’, cujo substrato é constituído do homem
singular (quando exerce determinada função, como nos serviços públicos), de agrupamentos
humanos (universitates), de um conjunto de bens destinados a fins de interesse geral ou quaisquer
outros elementos. Reelaborando a tese de Heise, Savigny afirmou a natureza fictícia da
personalidade jurídica, ao entender que todo direito subjetivo existe a causa da liberdade moral
ínsita ao homem e, por essa razão, o conceito de pessoa como ‘portadora’ (Träger) ou ‘sujeito de
direito’ (Rechtssubject) deve coincidir com o conceito de homem, uma vez que só este é capaz de
direitos. Daí a pessoa jurídica, sujeito artificial, criada por ‘simples ficção’ se distingue das
corporações e das fundações, cujo substrato é uma associação de pessoas ou um complexo de
bens, respectivamente. À diferença dos canonistas e civilistas medievais, Savigny considera tal
ficção não uma criação intelectual da ciência jurídica, mas um “instrumento técnico de que
dispõe o legislador”, que ‘finge’, ante uma associação de homens ou de bens, a existência de uma
unidade, considerada como ‘pessoa’ e como tal, ‘sujeito de direito’. Puchta, por sua vez, aderindo
à tese da ficção, considera haver personalidade jurídica só quando há uma disposição legislativa
que reconhece a condição de ‘sujeito de direito’ de alguém ou algo. Por isso, reagrupa as várias
figuras de pessoas jurídicas sob o único conceito de universitates, distinguindo por universitates
personarum, as corporações, e por univesitates rerum, as fundações.
Teixeira de Freitas, que conhecia não só a obra dos romanistas alemães,como também a
dos civilistas franceses (que, segundo ele, não se tinham ocupado do problema das chamadas
pessoas morais), fez a mediação entre a tradição romanística e a doutrina de sua época a partir
desse conhecimento acumulado, muitas vezes se distanciando ora do Direito Romano, ora de
Savigny , ou mesmo das codificações do séc. XVIII. O certo é que em sua obra principal, o Esboço
para o Código Civil, afirma que são pessoas “todos os entes suscetíveis de aquisição de direitos”
(comentário ao art. 16) e estas se subdividem em pessoas de existência visível e pessoas de
existência ideal. Não há, contudo, um paralelismo absoluto entre a tese de Teixeira de Freitas e a
dicotomia pessoa natural-pessoa jurídica presente na obra de Savigny, uma vez que, para ele, “é
tão natural o mundo visível como o mundo ideal, é tão natural a matéria como o espírito, e tão
natural o corpo do homem como sua alma” (anotação ao art. 17). Por conseguinte, para Teixeira
de Freitas, todo homem é pessoa: “Todos os entes humanos são pessoas, são iguais perante a lei;
ainda que não seja igual a sua capacidade de direito , do mesmo modo que sua capacidadee de
fato ou de obrar – non omnes possumus omnia”. Por isso, já que os direitos existem por causa
das pessoas, e que tais entes são, ao mesmo tempo, individuais e sociais, é possível entender
Nº 24 - Dezembro 2010 95
porque para ele as exigências normativas da razão, resultantes da natureza humana são anteriores
e condicionantes do direito positivo. Tais exigências se moldam em direitos subjetivos, e muitos
destes, porque são inerentes à liberdade humana, são tido como absolutos (valem adversus
omnes), tais como os direitos de liberdade, segurança, personalidade e propriedade.
O esforço de Teixeira de Freitas, foi, então, apresentar um sistema para a codificação do
Direito Civil, já que o “código” significa “um novo methodus disponendi, em que as matérias
estão metodologicamente organizadas de forma a espelhar o ‘movimento natural da vida’ , as
ações do indivíduo burguês, do momento de seu nascimento à sua morte, de forma encadeada,
de uma maneira que não admite saltos lógicos.”20
Assim, no Plano geral do Esboço, ele articula
um Título Preliminar, que trata do lugar e do tempo das relações jurídicas entre pessoas; na
Parte Geral- Livro I, é preciso descrever os elementos dos direitos (pessoas, coisas e fatos). A
Parte Especial, que trata dos direitos, compreende os direitos pessoais (Livro II), em geral, nas
relações de família e nas relações civis (obrigações); o Livro III da Parte Especial trata dos direitos
reais (em geral, sobre as coisas próprias e sobre as coisas alheias).
No Projeto de Vélez Sarsfield, o sistema de direitos subjetivos está assim concebido: nos
Títulos preliminares estão as disposições sobre as leis e sobre os modos de contar os intervalos
do direito; no Livro I, figuram os preceitos jurídicos que dizem respeito às pessoas (em geral e
nas relações de família); já no Livro II, encontram-se os direitos pessoais nas relações civis
(obrigações); no Livro III, os direitos reais e, finalmente, no Livro IV, as disposições comuns
aos direitos pessoais e reais. Assim, verifica-se que Vélez Sarsfield foi mais além de Teixeira de
Freitas porque completou o plano geral do Esboço, no que se refere às disposições comuns aos
direitos pessoas e reais, o que, nas palavras de Silvio Meira, fez com que a “vigorosa concepção de
Teixeira de Freitas” (...) tenha encontrado “bom seguidor”, atualmente consagrado pela crítica
universal.21
Mais notável ainda é o enquadramento do nascituro como “pessoa por nascer”, conceito
que, acolhido pelo codificador argentino, não encontra similar em outros códigos civis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Examinando-se, sumariamente, a atualidade da tese dos direitos subjetivos, verifica-se
que estes aparecem divididos em duas categorias distintas, conforme um critério patrimonial, de
modo que ou são direitos desprovidos de valor econômico, como o direito à honra, à integridade
corporal, ao nome, etc. ou são diretamente avaliáveis em pecunia, como os direitos de propriedade
e os direitos de crédito. Os primeiros denominam-se direitos subjetivos extra-patrimoniais e são
estreitamente ligados à Pessoa. Nestes, ainda pode-se distinguir duas categorias: os direitos do
indivíduo enquanto tal, como o direito ao nome, à imagem, direitos de autor sobre sua obra, à
privacidade, à honra e à integridade corporal, e os direitos do indivíduo na sociedade, como os
de exercer autoridade sobre os filhos (poder familiar), o direito de votar e ser votado, o direito à
liberdade sindical e à greve (direitos subjetivos públicos). Embora sejam tidos como direitos
extrapatrimoniais, a ocorrência de violação por parte de terceiros poderá ensejar uma reparação
pecuniária, a título de indenização.
20
MARTINS-COSTA, Judith H. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999. p. 189.
21
MEIRA, Sílvio. Direito Brasileiro e Direito Argentino..., cit., p. 378.
96 Revista da PGM
Quanto aos direitos subjetivos patrimoniais, são diretamente avaliáveis em pecunia, isto
é, a eles correspondem valores econômicos: são os bens, corpóreos e incorpóreos – direitos de
crédito, direitos reais e a propriedade intelectual. Então, em sentido técnico, patrimônio é o
conjunto de direitos subjetivos de uma pessoa que importam em valoração econômica positiva
(direitos de crédito, direitos reais) ou negativa (dívidas, ônus de servidão, etc.). Tudo isso, que
hoje é consenso na doutrina civilista latinoamericana, está presente na obra de Teixeira de Freitas
e no Código Civil Argentino em vigor na distinção entre Pessoas (estatuto pessoal, aí compreendido
os direitos pessoais nas relações de família – potestas in alios), Direitos Pessoais nas relações
civis (obrigações) e Direitos Reais (sobre coisas próprias e sobre coisas alheias, potestas in res).
Em síntese, no Direito Romano clássico, porque não havia o conceito técnico de pessoa
(personalidade jurídica) e porque ter “direitos” dependia de ter “ação” e do status , as chamadas
actiones in rem eram utilizadas para garantir a potestas do paterfamilias nas relações
interfamiliares, tanto que a reivindicatio era utilizada para reinvidicar um filho(pessoa livre na
concepção romana) ilegalmente detido. Da mesma forma, a transmissão da potestas familiar era
feita indistintamente pela mancipatio, fosse o objeto de transmissão uma coisa em sentido estrito
(res) ou uma pessoa submetida (alieni iuris). Já as actiones in personam, serviam para assegurar
posições nas relações interfamiliares, de modo que a potestas de que o vencedor da ação era
investido incidia sobre pessoa determinada, e não erga omnes. Por tais razões, obrigação e processo
faziam parte da mesma realidade social.
Teixeira de Freitas, ao par de intuir que a distinção romana derivava da natureza do ser
do Direito, adaptou tal percepção aos conceitos modernos de ‘Pessoa’ e de ‘direito subjetivo’, e
assim, se pode entender que o direito familiar não figure mais no âmbito das ações reais, e esteja
adequadamente classificado como direito pessoal (da ‘Pessoa Humana’) nas relações familiares.
Por outro lado, no direito moderno, por obra da processualística alemã do séc XIX (Pandectística),
através da deturpação do conceito de litiscontestatio, operou-se a transformação radical que
identificou as ações reais e pessoais, isto é, as ações in rem foram absorvidas pelas ações in
personam, de modo que os direitos reais se transformam em obrigações quando submetidos a
um processo,”como se o processo tivesse a virtude de transformar em obrigacional todos os
direitos.”22
Mas isso é tema para outra investigação.
22
BAPTISTA DA SILVA, cit., p. 76. e passim.
Nº 24 - Dezembro 2010 97
Los derechos de reunión y asociación en el convenio
europeo de derechos humanos
Miguel Ángel Presno Linera1
1
. Doctor en Derecho. Profesor Titular de Derecho Constitucional de la Universidad de Oviedo. [email protected]; blog
jurídico: http://presnolinera.wordpress.com; página académica personal http://www.uniovi.es/constitucional/miemb/
presno.htm
El artículo 11 del Convenio Europeo de Derechos Humanos (en lo sucesivo CEDH) dispone:
“1.Toda persona tiene derecho a la libertad de reunión pacífica y a la libertad de asociación,
incluido el derecho de fundar, con otras, sindicatos y de afiliarse a los mismos para la defensa de
sus intereses. 2. El ejercicio de estos derechos no podrá ser objeto de otras restricciones que
aquellas que, previstas por la Ley, constituyan medidas necesarias, en una sociedad democrática,
para la seguridad nacional, la seguridad pública, la defensa del orden y la prevención del delito, la
protección de la salud o de la moral, o la protección de los derechos y libertades ajenos. El
presente artículo no prohíbe que se impongan restricciones legítimas al ejercicio de estos derechos
para los miembros de las Fuerzas Armadas, de la Policía o de la Administración del Estado”.
98 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 99
1. LA PLURALIDAD DE DERECHOS PROTEGIDOS: LIBERTADES DE
REUNIÓN Y ASOCIACIÓN, LIBERTAD SINDICAL, RECONOCIMIENTO DE
LOS PARTIDOS POLÍTICOS.
El artículo 11 protege, como se puede deducir con facilidad de su lectura, una pluralidad
de derechos; en tres casos de manera expresa (reunión, asociación y libertad sindical) y en otro
de forma implícita (la creación de partidos políticos y la libertad para afiliarse a ellos). Lo que
hace el artículo 11 del CEDH, de manera similar a otros tratados internacionales (art. 20 de la
Declaración Universal de Derechos Humanos), es refundir en un precepto derechos próximos
que, no obstante, suelen reconocerse en varios artículos en los ordenamientos nacionales; así,
por ejemplo, en cinco preceptos de la Constitución española: artículos 6 (partidos), 7 (sindicatos
y asociaciones empresariales), 21 (derecho de reunión), 22 (derecho de asociación) y 28.1 (libertad
sindical); en cuatro de la italiana: 17 (reunión), 18 (asociación), 39 (libertad sindical) y 49
(partidos) y en cuatro de la brasileña: 5.XVI (reunión);
5.XVII a XXI (asociación), 8 (libertad sindical), 17 (partidos políticos); en tres de la alemana:
8 (reunión), 9 (asociación y sindicatos) y 21 (partidos), etc.
No obstante, el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos separa en preceptos
consecutivos (artículos 21 y 22) las libertades de reunión y asociación. La Carta de Derechos
Fundamentales de la Unión, incluida en el Tratado por el que se establece una Constitución para
Europa, agrupa en un precepto todas las libertades aquí comentadas, mencionando de manera
expresa a los partidos: “Toda persona tiene derecho a la libertad de reunión pacífica y a la libertad
de asociación en todos los niveles, especialmente en los ámbitos político, sindical y cívico, lo que
supone el derecho de toda persona a fundar con otras sindicatos y a afiliarse a los mismos para la
defensa de sus intereses. 2. Los partidos políticos a escala de la Unión contribuyen a expresar la
voluntad política de los ciudadanos de la Unión” (artículo 12). Según las explicaciones del
Praesidium de la Convención, “las disposiciones del apartado 1 de este artículo corresponden a
lo dispuesto en el artículo 11 del CEDH... tienen el mismo sentido y alcance que las del CEDH,
pero su ámbito de aplicación es más amplio dado que pueden aplicarse a todos los niveles, incluido
el europeo. Conforme al apartado 3 del artículo 52 de la Carta, las limitaciones a este derecho no
pueden sobrepasar las que el apartado 2 del artículo 11 del CEDH considera que pueden ser
legítimas. Este derecho se basa también en el artículo 11 de la Carta Comunitaria de los Derechos
Sociales Fundamentales de los Trabajadores”.
No es casual la inmediatez del artículo 11 del Convenio respecto al reconocimiento de las
libertades ideológicas (artículo 9) y de expresión (artículo 10), por las conexiones históricas y
actuales existentes entre ellos y, sobre todo, por su importancia en un sistema democrático, como
ha recordado el Tribunal Europeo de Derechos Humanos (entre otros, en los asuntos Ezelin c.
Francia, de 26 de abril de 1991); Vogt c. Alemania, de 26 de septiembre de 1995; Refah Partisi
y otros c. Turquía, de 13 de febrero de 2003; Partidul Comunistilor (nepeceristi) y Ungureanu
c. Rumanía, de 3 de febrero de 2005)2
y, en esta línea, varios Tribunales Constitucionales, como
2
. Las sentencias del Tribunal Europeo de Derechos Humanos pueden consultarse, en francés e inglés, en http://
www.echr.coe.int/echr
100 Revista da PGM
el español (STC 85/1988, de 28 de abril, F. 2)3
o el francés (Decisión del Consejo Constitucional
94-352, de 18 de enero de 19954
.
“el Tribunal ya ha señalado que la protección de las opiniones y de la
libertad de expresarlas en el sentido del artículo 10 del Convenio constituye uno
de los objetivos de la libertad de reunión y de asociación consagrada por el artículo
11, más aún en el caso de los partidos políticos, teniendo en cuenta su relevancia
para el mantenimiento de pluralismo y el buen funcionamiento de la democracia”
(asunto Refah Partisi y otros c. Turquía, de 13 de febrero de 2003, p. 88).
Los derechos amparados por el artículo 11 tienen una serie de elementos comunes,
además de su “relevancia para el mantenimiento de pluralismo y el buen funcionamiento de la
democracia” (Refah Partisi y otros c. Turquía, cit., p. 89): se trata en todos los casos de derechos
de titularidad y ejercicio individual y colectivo, pues se reconocen a “toda persona” privada (física
o jurídica) para reunirse o asociarse con otras y para desarrollar conductas tanto individuales
(afiliarse, o no, a un partido o sindicato) como colectivas (celebración de una manifestación).
En particular, el Tribunal ha dicho que “el modo en que la legislación nacional protege la
libertad de asociación y la manera en la que las autoridades del Estado aplican las disposiciones
pertinentes en la práctica, da una indicación del desarrollo de la democracia en el país en cuestión”
(asunto Gorzelik y otros c. Polonia, de 20 de diciembre de 2001, p. 55).
Una diferencia tan obvia que ni siquiera ha sido destacada por el TEDH es el carácter
permanente en un caso (asociación) y transitorio en otro (reunión), si bien este último puede
tener cierta duración en el tiempo (en el asunto Cisse c. Francia, de 9 de abril de 2002, se
enjuició la desocupación por la policía de un grupo de 200 extranjeros de la iglesia de San Bernardo,
en París, después de 56 días).
2 EL OBJETO DE LOS DERECHOS RECONOCIDOS EN EL ARTÍCULO 11.
El precepto protege, en primer lugar, la “libertad de reunión pacífica”, ámbito que debe
ser interpretado de manera amplia, incluyendo la libertad para organizar las reuniones y para
asistir a ellas.
Es importante destacar la dimensión objetiva de este derecho, lo que, como es sabido,
significa que además de la obligación negativa de los poderes públicos de no lesionarlo, existe
también la obligación positiva de contribuir a su efectividad, incluso en el ámbito de las relaciones
individuales; así, se ha dicho que “los Estados parte deben tomar medidas razonables y adecuadas
para el desarrollo pacífico de las manifestaciones legales” (asunto Plattform Ärzte für das Leben
c. Austria, de 21 de junio de 1988, p. 34). Y es que:
“Sucede a veces que una determinada manifestación molesta o irrita a
personas contrarias a las ideas o reivindicaciones que promueve. Sin embargo,
3
. Sentencias disponibles en http://www.tribunalconstitucional.es
4
. Sentencias disponibles en http://www.conseil-constitutionnel.fr
Nº 24 - Dezembro 2010 101
los participantes deben poder celebrarla sin temer los posibles actos violentos de
sus oponentes, ya que este temor podría disuadir a las asociaciones o a otros
grupos que defienden sus opiniones o intereses comunes de expresarse
abiertamente sobre cuestiones palpitantes de la vida de la sociedad. En una
democracia, el derecho de contramanifestación no puede llegar hasta paralizar
el ejercicio del de manifestarse. Por consiguiente, la libertad real y efectiva de
reunión pacífica no se reduce a un mero deber de no interferirse por parte del
Estado; una concepción simplemente negativa no estaría de acuerdo con el objeto
y la finalidad del artículo 11. Este precepto requiere, a veces, medidas positivas
incluso, si es necesario, en el ámbito de las relaciones entre individuos (véase,
mutatis mutandis, la Sentencia X e Y c. los Países Bajos, de 26 de marzo de
1985) (asunto Plattform Ärzte für das Leben c. Austria, cit., p. 32).
El Tribunal ha amparado diversas formas de ejercicio de este derecho: reuniones,
concentraciones, manifestaciones, desfiles,…, pero siempre que sean “pacíficas”, exigencia que
constituye un claro límite positivo al derecho, excluyendo de su objeto las reuniones y
manifestaciones violentas. Con esta dicción del artículo 11 del Convenio, ya no es necesario que
una ley interna excluya ese tipo de reuniones para que carezcan de protección. El propio Convenio
ya lo ha hecho. No obstante, nada impide que el legislador interno pueda concretar en una norma
con rango de ley qué ha de entenderse por reunión violenta o, a falta de norma con rango de ley,
que un juez o un funcionario de policía puedan realizar la misma interpretación en el caso concreto.
Esta previsión constituye parte esencial de la delimitación del objeto del derecho de reunión
porque comprende expectativas no garantizadas.
Cumplido el presupuesto de que la reunión sea pacífica, su ejercicio será legítimo por lo
que no cabrá sanción alguna, ni corporativa (Ezelin c. Francia, cit.) ni mucho menos penal (a
contrario, Osmani y otros c. ex República yugoslava de Macedonia, de 11 de octubre de 2001),
amparándose incluso “el hecho de protestar pacíficamente contra una legislación que alguien
infringe” (asunto Cisse c. Francia, cit., p. 50).
En lo que respecta al objeto protegido por la “libertad de asociación”, el “aspecto más
importante es que los ciudadanos deberían poder crear una entidad legal para actuar de manera
colectiva en un campo de interés mutuo. Sin esto, este derecho no tendría un significado práctico”
(asunto Gorzelik y otros c. Polonia, de 20 de diciembre de 2001, p. 55).
Se incluye tanto la libertad positiva (crear una asociación, integrarse en una ya existente,
desarrollar las actividades previstas en los estatutos, abandonar la asociación, etc.), como la vertiente
negativa de no pertenecer a entidades asociativas voluntarias (asuntos Sigurdur A. Sigurjönsson
c. Islandia, de 30 de junio de 1993, donde se declaró contraria al Convenio la integración obligatoria
en una asociación de taxistas para obtener la licencia correspondiente, y Chassagnou y otros c.
Francia, de 29 de abril de 1999, que amparó a los demandantes ante la obligación de inscribirse
en una asociación de caza).
El Tribunal Europeo excluye del objeto del artículo 11 la colegiación obligatoria para el
ejercicio de una profesión, pues la naturaleza jurídica de los colegios profesionales, así como
ciertas funciones públicas que cumplen, le permiten concluir que no son entidades asociativas en
102 Revista da PGM
el sentido de ese precepto (asuntos Le Compte, Van Leuven y De Meyere c. Bélgica, de 23 de
junio de 1981, y Albert y Le Compte c. Bélgica, de 10 de febrero de 1983, sobre la colegiación
obligatoria de los médicos, y Bota c. Rumanía, de 12 de octubre de 2004, sobre la de los abogados)5
.
Tampoco protege este derecho frente a las posibles infracciones cometidas por unos
asociados frente a otros, pues se trata de asuntos internos de la entidad que no están amparados
por el Convenio, que tampoco impone, a diferencia de lo que sucede en la legislación española,
una estructura interna y un funcionamiento democráticos (artículo 2.5 de la Ley Orgánica 1/
2002, de 22 de marzo, de asociación).
Sí forma parte del ámbito protegido por el Convenio la inscripción de las asociaciones en
el registro correspondiente, sin que sea admisible la negativa de las autoridades a realizar el
registro presumiendo intenciones diferentes a las declaradas en los estatutos (asunto Sidiropoulos
y otros c. Grecia, de 10 de julio de 1998).
A continuación, el artículo 11 reconoce el derecho a “fundar, con otras [personas],
sindicatos y de afiliarse a los mismos para la defensa de sus intereses”. En la medida en que es
una forma especial de asociación, forma parte del objeto del derecho de libertad sindical la
posibilidad de crear sindicatos o afiliarse a uno ya existente, el desarrollo de la actividad sindical,
[…] si bien es importante tener en cuenta el añadido final –“para la defensa de sus intereses”-
para delimitar con mayor precisión el objeto protegido, pues, como ha declarado el Tribunal no
se trata de una frase redundante:
“Dicha expresión indica claramente un fin y muestra que el Convenio protege la
libertad de defensa de los intereses profesionales de los adherentes a un sindicato
mediante la acción colectiva del mismo, acción cuyo desarrollo debe ser
posibilitado por los Estados parte. El Tribunal entiende, por tanto, que los
miembros de un sindicato tienen derecho a que el mismo sea oído para la defensa
de sus intereses. El artículo 11.1 deja a cada Estado la elección de los medios a
emplear a este fin; la consulta es uno de ellos, pero existen otros. Lo que exige el
Convenio es que la legislación nacional permita a los sindicatos luchar por la
defensa de los intereses de sus miembros, de acuerdo con modos de acción que
no sean contrarios al artículo 11” (asunto Sindicato Nacional de la Policía Belga
c. Bélgica, de 27 de octubre de 1975, p. 39).
Así pues, este derecho “no garantiza ni a los sindicatos, ni a sus miembros un trato
específico por parte del Estado y, en concreto, el derecho a ser consultados por éste. No sólo este
último derecho no se menciona en el artículo 11.1, sino que tampoco se podría afirmar que los
Estados parte lo consagren todos en su legislación y práctica internas, ni que el mismo sea
imprescindible para el ejercicio eficaz de la libertad sindical” (asunto Sindicato Nacional de la
Policía Belga c. Bélgica, cit., p. 38).
5
En la STC 89/1989, de 11 de mayo, el Tribunal Constitucional español se remite a estas sentencias para concluir que “la
obligación de inscribirse los profesionales en el Colegio y someterse a su disciplina no supone una limitación injustificada,
y menos una supresión del derecho garantizado en el art. 22 C.E. y reconocido en el 11 del Convenio Europeo de
Derechos Humanos” (F. 8).
Nº 24 - Dezembro 2010 103
El Tribunal recuerda también, en esta misma sentencia, que “las cuestiones relativas a
los sindicatos han sido tratadas con mayor detalle en otro convenio elaborado también en el
marco del Consejo de Europa: la Carta Social de 18 de octubre de 1961. El artículo 6.1 de dicho
instrumento obliga a los Estados parte “a favorecer la consulta paritaria entre trabajadores y
patronos”. La prudencia de los términos utilizados muestra que la Carta no reconoce un verdadero
derecho de consulta; según el artículo 20, un Estado que lo ratifica puede no aceptar el compromiso
que resulta de artículo 6.1. Por tanto, no se puede comprender que un derecho de tal naturaleza
se derive implícitamente del artículo 11.1" (p. 38).
El Tribunal no consideró protegido por este precepto el derecho a la negociación colectiva
(asunto Sindicato sueco de maquinistas c. Suecia, 6 de febrero de 1976, p. 39), a beneficiarse
de las condiciones aprobadas en un convenio colectivo (asunto Schmidt y Dahlström c. Suecia,
de 6 de febrero de 1976, p. 34), ni a la duración ilimitada de los convenios (Sindicato sueco de
trabajadores del transporte c. Suecia, de 30 de noviembre de 2004) ya que no aparecen
mencionados en ese artículo ni se consideran indispensables para el ejercicio de la libertad sindical
(asunto Wilson, National Union of Journalists y otros c. Reino Unido, de 2 de julio de 2002). En
definitiva, “lo que exige el Convenio es que la legislación nacional permita a los sindicatos luchar
por la defensa de los intereses de sus miembros, de acuerdo con modos de acción que no sean
contrarios al artículo 11”, entre los que tampoco está necesariamente el derecho de huelga
(asunto Schmidt y Dahlström c. Suecia, cit., p. 36).
No obstante, parece abrirse una puerta a la inclusión de la negociación colectiva a partir
del asunto Gustafsson c. Suecia, de 25 de abril de 1996, donde se habla de su reconocimiento en
diversos tratados internacionales, en particular en el artículo 6 de la Carta Social europea, en el
artículo 8 del Pacto Internacional de derechos económicos sociales y culturales, de 1966, y en los
Convenios 87 y 98 de la Organización Internacional del Trabajo, el primero relativo a la libertad
sindical y a la protección de este derecho, y el segundo al derecho de organización y a negociación
colectiva (p. 53). En esta línea, en el asunto Wilson, National Union of Journalistes y otros c.
Reino Unido, cit., el Tribunal consideró que la práctica consistente en entregar incentivos
económicos para animar a los trabajadores a abandonar la negociación colectiva constituye una
violación por el Estado de su obligación positiva de garantizar la aplicación efectiva de los derechos
reconocidos en el artículo 11.
Un aspecto que también ha suscitado controversias es la “libertad sindical negativa”, en
especial con ocasión de la existencia en algunos Estados de cláusulas que obligan a la afiliación
sindical (closed shop), bien para ser contratado o para permanecer en la empresa. El TEDH no ha
sido rotundo al respecto, alegando que no es su función pronunciarse sobre esas cláusulas en
abstracto, sino resolver los asuntos concretos que susciten; de esos pronunciamientos (asuntos
Young, James y Webster c. Reino Unido, de 13 de agosto de 1981; Sibson c. Reino Unido, de 20
de abril de 1993, y Gustafsson c. Suecia, de 25 de abril de 1996) cabe deducir lo siguiente: el
artículo 11 no reconoce una dimensión negativa del derecho de la misma intensidad que la
positiva, si bien, atendidas las circunstancias, la obligación de afiliación a un sindicato puede ser
contraria al Convenio, lo que sucede si la no afiliación implica un despido que supone la pérdida
de la forma de subsistencia, como ocurría en Young, James y Webster, pero no en Sibson.
104 Revista da PGM
En cuanto a los partidos políticos, existe una copiosa y reciente jurisprudencia, que ha
tenido rápida acogida en la doctrina del Tribunal Constitucional español, si bien el primer asunto
se remonta al caso Partido comunista de Alemania c. República federal de Alemania, decidido
por la Comisión el 20 de julio de 1957.
En especial en la STC 48/2003, de 12 de marzo, que decidió el recurso de
inconstitucionalidad planteado por el Gobierno Vasco contra la Ley Orgánica 6/2002, de 27 de
junio, de partidos políticos. Esta sentencia se dictó justo un mes después de la resolución por la
Gran Sala del Tribunal Europeo de Derechos Humanos del Asunto Refah Partisi c. Turquía, que
es de 13 de febrero de 2003, si bien una Sala de la Sección Tercera del Tribunal dictó una primera
sentencia el 31 de julio de 2001.
Su inclusión en el ámbito protegido por el artículo 11 no ofrece dudas para el Tribunal;
así, en el asunto Partido Comunista Unificado de Turquía c. Turquía, de 13 de enero de 1998,
concluye que:
“la redacción del artículo 11 da un primer elemento de respuesta a la cuestión de
saber si los partidos políticos pueden invocar esta disposición... si el artículo 11
evoca «la libertad de asociación, incluido el derecho de fundar, con otras,
sindicatos», la conjunción «incluido» muestra claramente que no se trata más
que de un ejemplo entre otros de la forma que puede tomar el ejercicio del
derecho a la libertad de asociación. No se podría, por lo tanto, concluir, como lo
hace el Gobierno, que al mencionar a los sindicatos -por razones basadas
principalmente en debates en curso en la época-, los autores del Convenio hayan
pensado excluir a los partidos políticos del campo de aplicación del artículo 11.
Sin embargo, más aún que a la redacción del artículo 11, el Tribunal da valor al
hecho de que los partidos políticos representan una forma de asociación esencial
para el buen funcionamiento de la democracia. Teniendo en cuenta la importancia
de ésta en el sistema del Convenio no se podría tener ninguna duda de que entran
en el ámbito del artículo 11” (p. 25 y 26).
No se protege únicamente la creación de partidos, sino también su vida y el ejercicio de
sus actividades: “el derecho consagrado por el artículo 11 se revelaría eminentemente teórico e
ilusorio si sólo cubriese la fundación de una asociación, pudiendo las autoridades nacionales
poner fin, en seguida, a su existencia sin tener que atenerse al Convenio. Se deriva de ello que la
protección del artículo 11 se extiende a toda la duración de la vida de las asociaciones y que su
disolución por parte de las autoridades de un país debe satisfacer, en consecuencia, las exigencias
del párrafo 2 de esta disposición” (asunto Partido Comunista Unificado…, cit., p. 33).
Los promotores del partido tienen derecho a elegir una denominación y a su inscripción
registral, por lo que la negativa de las autoridades a realizarla, “tomada incluso antes de que
hubiese iniciado sus actividades, no parece proporcional al fin perseguido y, por tanto, necesaria
en una sociedad democrática”. Asimismo, tienen derecho a “hacer campaña a favor de un cambio
de la legislación o de las estructuras legales o constitucionales del Estado, bajo dos condiciones:
(1) los medios utilizados a este efecto deberán ser desde todos los puntos de vista legales y
democráticos; (2) el cambio propuesto deberá ser compatible con los principios democráticos
Nº 24 - Dezembro 2010 105
fundamentales” y, en consecuencia, es perfectamente posible que se proclamen de ideología
comunista (asunto Partidul Comunistilor (nepeceristi) y Ungureanu c. Rumanía, de 3 de febrero
de 2005, p. 60, p. 47, p. 55 y 58; sobre la negativa al registro como supuesto que vulnera el
artículo 11, asunto Partido Presidencial de Mordovia c. Rusia, de 5 de octubre de 2004).
Entre los fines que pueden defender está el derecho de autodeterminación y de separación
de partes de un Estado (asunto Partido Socialista de Turquía c. Turquía, de 25 de mayo de 1998,
p. 47), valiéndose de críticas severas y hostiles a entidades públicas y a las fuerzas de seguridad
aunque coincidan con las empleadas por organizaciones terroristas, pues en otro caso “disminuiría
la posibilidad de tratar tales cuestiones en el marco de un debate democrático y se permitiría a los
movimientos armados monopolizar la defensa de esos principios” (asunto Yazar, Karata, Aksoy
y Partido del Trabajo del Pueblo c. Turquía, de 9 de abril de 2002, p. 57 y 59).
En el mismo sentido, pero a propósito del ejercicio del derecho de reunión, véase el asunto
Stankov y Organización Macedonia Unida “Ilinden” c. Bulgaria, de 2 de octubre de 2001.
Extendiendo a los partidos la protección propia de la libertad de expresión, el Tribunal
concluye que “una formación política no puede verse inquietada por el solo hecho de querer
debatir públicamente la suerte de una parte de la población de un Estado e implicarse en la
vida política de éste a fin de encontrar, dentro del respeto a las reglas democráticas, soluciones
que puedan satisfacer a todos los actores afectados” (Asunto Refah Partisi c. Turquía, de 13 de
febrero de 2003, p. 7).
Como es obvio, forma parte del objeto del derecho la facultad de afiliarse a la formación
política que se desee (asunto Ahmed y otros c. Reino Unido, de 2 de septiembre de 1998, p. 70),
si bien, como luego se verá, pueden excluirse determinadas categorías de personas que desempeñan
ciertas funciones públicas (policías, militares, funcionarios).
3 LAS RESTRICCIONES AL EJERCICIO DE ESTOS DERECHOS Y LOS
LÍMITES A LOS LÍMITES.
Como es conocido, el apartado 2 del artículo 11 dispone que “el ejercicio de estos derechos
no podrá ser objeto de otras restricciones que aquellas que, previstas por la Ley, constituyan
medidas necesarias, en una sociedad democrática, para la seguridad nacional, la seguridad pública,
la defensa del orden y la prevención del delito, la protección de la salud o de la moral, o la
protección de los derechos y libertades ajenos”.
El Convenio incorpora así una habilitación a los poderes públicos nacionales para que
concreten en una norma interna las restricciones al ejercicio de estos derechos, siempre que
respondan a los fines, por lo demás muy genéricos, previstos en esta disposición y sean necesarias
en una sociedad democrática.
Si bien el Tribunal ha sostenido que “la excepciones que establece el artículo 11 deben
ser interpretadas de forma estricta; únicamente razones convincentes y poderosas pueden justificar
restricciones a la libertad de asociación” (asunto Gorzelik y otros c. Polonia, p. 58), en alguna
ocasión ha considerado como fin legítimo la “integridad territorial” (asunto Partido Comunista
Unificado c. Turquía, cit., p. 40).
106 Revista da PGM
Como se ha anticipado, las limitaciones han de estar previstas en una norma interna, lo
que, en palabras del Tribunal (asuntos “Sunday Times” c. Reino Unido, de 26 de abril de 1979,
y Silver y otros c. Reino Unido, de 25 de marzo de 1983) implica las siguientes exigencias:
“primer principio: la injerencia debe basarse en el Derecho interno... El segundo
principio es que la ley pueda conocerse: el ciudadano tiene que disponer de
informaciones suficientes, dadas las circunstancias sobre las normas jurídicas
aplicables a un determinado caso... Tercer principio: sólo se puede considerar
como ley una norma expresada con la precisión suficiente para que el ciudadano
pueda acomodar a ella su conducta; y pueda ser capaz, en su caso recabando
asesoramientos autorizados, de prever, en la razonable medida que permitan las
circunstancias, las consecuencias que pueda producir un acto determinado […]”
(asunto Silver y otros c. Reino Unido, cit., p. 86, 87 y 88).
Para el Tribunal “importa poco, a este respecto, que se enjuicien disposiciones
constitucionales (véase, por ejemplo, la Sentencia Gitonas y otros c. Grecia, de 1 julio 1997), o
simplemente legislativas (véase, por ejemplo, la Sentencia Mathieu-Mohin y Clerfait c. Bélgica,
de 2 marzo 1987). Desde el momento en que el Estado en cuestión ejerce a través de ellas su
«jurisdicción», éstas se encuentran sometidas al Convenio”.
Así pues, en los asuntos de que conozca, el Tribunal analizará las normas limitativas
internas verificando si se incluyen en los fines legítimos previstos en el Convenio y si las medidas
adoptadas son necesarias. En suma, el Tribunal valora las normas, los hechos acaecidos y el
enjuiciamiento de los tribunales nacionales, incluida la jurisdicción constitucional, si bien ha
matizado que “no tiene como tarea sustituir a los tribunales internos competentes, sino verificar
bajo el ángulo del artículo 11 las decisiones que éstos han dictado en virtud de su poder de
apreciación”. Para resumirlo en pocas palabras, el Tribunal llevará a cabo un juicio de
proporcionalidad de la actuación estatal, analizando “el conjunto del asunto para determinar si
era «proporcionada al fin legítimo perseguido» y si los motivos invocados por las autoridades
nacionales para justificarla son «pertinentes y suficientes»” (asunto Partido Comunista Unificado
c. Turquía, cit., p. 30 y 47)6
.
6
Es conveniente destacar que el Tribunal Constitucional español (STC 48/2003, de 12 de marzo) ha analizado la
constitucionalidad de la Ley Orgánica 6/2002, de 27 de junio, de partidos políticos, sirviéndose de estos mismos criterios
(F. 12): “Se respetan, en definitiva, los criterios sentados por la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos
en materia de disolución de partidos políticos (SSTEDH de 30 de enero de 1998, Partido Comunista Unificado de
Turquía c. Turquía; 25 de mayo de 1998, Partido Socialista c. Turquía; 8 de diciembre de 1999, Partido de la Libertad
y la Democracia c. Turquía; 31 de julio de 2001 y 13 de febrero de 2003, partido de la Prosperidad c. Turquía; 9 de
abril de 2002, Yazar y otros c. Turquía; 10 de diciembre de 2002, DEP c. Turquía), que exige como condición de su
ajuste al Convenio: a) la previsión por ley de los supuestos y causas de disolución (que, obviamente, se cumple por las
normas impugnadas, incluidas en una ley formal; b) la legitimidad del fin perseguido (que, como queda dicho, en el
caso examinado es la garantía de los procesos democráticos de participación política mediante la exclusión como partido
de aquel ente asociativo que no se ajuste a las exigencias que respecto a la actividad, dimanan de la concepción
constitucional del partido político); y c) el carácter necesario de la disolución en una sociedad democrática (acreditado
por el examen precedente de las concretas causas de disolución establecidas en la Ley)”.
Nº 24 - Dezembro 2010 107
El principio de proporcionalidad se ha aplicado tanto al derecho de reunión (asunto
Cisse c. Francia, cit., p. 53) como al de asociación, en especial para enjuiciar la disolución
de partidos políticos, ámbito en el que el Tribunal ha parecido guiarse por un especial celo,
declarando que “los Estados contratantes sólo disponen de un margen de apreciación
reducido, que se duplica con un control europeo riguroso que afecta a la vez a la ley y a las
decisiones que la aplican, incluidas las de un tribunal independiente. El Tribunal ya indicó
la necesidad de tal control a propósito de la condena de un parlamentario por injurias (asunto
Castells c. España, de 23 de abril de 1992, p. 42); con más motivo tal control se impone
cuando se trata de la disolución de todo un partido político y de la prohibición que afecta a
sus responsables de ejercer en el futuro cualquier otra actividad similar” (asunto Partido
Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 46).
En su enjuiciamiento, el Tribunal tiene muy en cuenta las circunstancias que rodean el
caso sometido a su examen, lo que es ineludible para determinar, por ejemplo, si se dan las
condiciones que avalan la prohibición de celebrar una manifestación (asunto Rai y otros c. Reino
Unido, de 6 de abril de 1995) o si tales razones no existen (asunto Stankov y Organización
Macedonia Unida “Ilinden” c. Bulgaria, de 2 de octubre de 2001).
Respecto a las medidas restrictivas contra los partidos políticos, el Tribunal ha afirmado
que su proporcionalidad ha de valorarse teniendo en cuenta una serie de datos, sin desdeñar ni
mucho menos “las dificultades unidas a la lucha contra el terrorismo” (asuntos Irlanda c. Reino
Unido, de 18 de enero de 1978, p. 11 y siguientes; Aksoy c. Turquía, de 18 diciembre de 1996, p.
70 y 84, y Partido Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 59), lo que nos ofrece varios ejemplos
de “control laxo” sobre la medida restrictiva del derecho.
Esos datos son: a) “los estatutos y el programa de la formación política”; b) “si los actos
y discursos de los dirigentes y miembros del partido político, tomados en consideración en el
marco del asunto, son imputables al conjunto del partido”; c) “si los actos y discursos imputables
al partido político constituyen un conjunto que ofrece una clara imagen de un modelo de sociedad
concebido y predicado por el partido y que estaría en contradicción con el concepto de sociedad
democrática”; d) “si existen indicios que muestren que el riesgo de atentado a la democracia, a
reserva de ser probado, está suficiente y razonablemente próximo” (asunto Refah Partisi c.
Turquía, cit., p. 104)7
.
A la vista de todas estas circunstancias valoradas en conjunto, el Tribunal Europeo de
Derechos Humanos concluyó, en un caso, que “una medida tan radical como la disolución
inmediata y definitiva del TBKP, decretada antes incluso de sus primeras actividades y completada
con una prohibición a sus dirigentes de ejercer cualquier otra responsabilidad política, se muestra
7
Parece obvia la proximidad de esta exigencia con la doctrina del clear and present danger, acogida también por el
Tribunal Constitucional español en la sentencia sobre la ley de partidos (STC 48/2003, de 12 de marzo, F. 12): “En el
mismo sentido, el Tribunal Europeo de Derechos Humano, considera que si bien el margen de apreciación de los
Estados debe ser escaso en materia de disolución de partidos políticos, cuando el pluralismo de las ideas y los partidos,
que es inherente a la democracia, está en peligro, el Estado puede impedir la realización o continuación del proyecto
político que ha generado ese peligro (STEDH, de 31 de julio de 2001, caso Refah Partisi (Partido de la Prosperidad) c.
Turquía)”.
108 Revista da PGM
desproporcionada al fin pretendido y, por lo tanto, no necesaria en una sociedad democrática”
(asunto Partido Comunista Unificado c. Turquía, cit., p. 61). En este caso,
“el programa del TBKP apenas habría podido verse desmentido por acciones
concretas ya que, disuelto desde su fundación, el partido no ha tenido tiempo de
llevarlas a cabo. Ha sido así sancionado por un comportamiento que entra dentro,
únicamente, del ejercicio de la libertad de expresión” asunto Partido Comunista
Unificado c. Turquía, cit., p. 58).
En otro supuesto el Tribunal estimó que:
“los actos y discursos de los miembros y dirigentes del Refah eran imputables al
conjunto del partido, que estos actos y discursos revelaban el proyecto político a
largo plazo del Refah tendente a instaurar un régimen basado en la charia en el
marco de un sistema multijurídico, y que el Refah no excluía el recurso a la
fuerza a fin de realizar su proyecto y mantener el sistema previsto por él.
Considerando que estos proyectos estaban en contradicción con la concepción
de la sociedad democrática y que las posibilidades reales del Refah de aplicarlos
hacía más tangible e inmediato el peligro para la democracia, la sanción impuesta
a los demandantes por el Tribunal Constitucional, incluso en el marco del reducido
margen de apreciación de que disponen los Estados, se puede razonablemente
considerar que respondía a una necesidad social imperiosa. En consecuencia,
como resultado de un control riguroso en cuanto a la presencia de motivos
convincentes e imperativos que pudieran justificar la disolución del Refah y la
prescripción temporal de ciertos derechos políticos pronunciada contra los demás
demandantes, el Tribunal considera que estas injerencias correspondían a una
necesidad social imperiosa y eran proporcionales a los fines perseguidos. Por lo
tanto, la disolución del Refah puede considerarse necesaria en una sociedad
democrática en el sentido del artículo 11.2” (asunto Refah Partisi c. Turquía,
cit., p. 132 y 135).
A continuación, recuerda el Tribunal en sus fundamentos que:
“el Refah, fundado en 1983, participó en varias elecciones legislativas o
municipales, y que obtuvo aproximadamente el 22% de los votos en las elecciones
legislativas de 1995, lo que le permitió ocupar 158 escaños en la Gran Asamblea
nacional de Turquía (que contaba con un total de 450 escaños en la época de los
hechos). Tras su participación en el poder en el marco de una coalición, el Refah
obtuvo cerca del 35% de los votos en las elecciones municipales de noviembre de
1996. Según un sondeo de opinión efectuado en enero de 1997, si se hubiesen
celebrado elecciones en ese momento, el Refah habría obtenido el 38% de los
votos. Según los pronósticos del mismo sondeo, el Refah habría podido obtener
el 67% de los votos en las elecciones generales que debían probablemente
celebrarse cuatro años más tarde. Pese al carácter aleatorio de algunos sondeos,
estas cifras atestiguan un aumento considerable de la influencia del Refah como
Nº 24 - Dezembro 2010 109
partido político y de sus posibilidades de acceder en solitario al poder… El Tribunal
deduce de ello que el Refah disponía, en la fecha de su disolución, de un potencial
real de apoderarse del poder público, sin verse limitado por los compromisos
inherentes a una coalición. En la hipótesis de que el Refah hubiese propuesto un
programa contrario a los principios democráticos, su acceso en solitario al poder
público le habría permitido establecer el modelo de sociedad enfocado en dicho
programa” (p. 107, 108).
4 LA TITULARIDAD DE LOS DERECHOS
Como se puede deducir de lo visto hasta ahora, los derechos reconocidos en el artículo
11 son de titularidad individual y colectiva (“Toda persona…”), pudiendo ejercerlos tanto personas
físicas como jurídicas (sindicatos, asociaciones, partidos políticos, etc.). Entre las personas físicas
se incluyen tanto mayores como menores de edad, nacionales de los Estados parte y extranjeros,
y personas con permiso de residencia o sin él, pues como ha admitido el Tribunal en el ya citado
asunto Cisse c. Francia está protegido “el hecho de protestar pacíficamente contra una legislación
que alguien infringe” (p. 50).
No obstante, debe recordarse que, de conformidad con lo previsto en el artículo 16 del
Convenio, “ninguna de las disposiciones de los artículos 10, 11 y 14 podrá ser interpretada en el
sentido de que prohíbe a las Altas Partes Contratantes imponer restricciones a la actividad política
de los extranjeros”. Además, como se ha anticipado, el apartado segundo concluye afirmando
que “el presente artículo no prohíbe que se impongan restricciones legítimas al ejercicio de estos
derechos para los miembros de las Fuerzas Armadas, de la Policía o de la Administración del
Estado”. Se trata de personas que están en una relación de sujeción especial, lo que, como es
bien sabido, hace referencia a la situación jurídica en la que se encuentran los individuos sometidos
a una potestad administrativa de autoorganización más intensa de lo normal.
En estas relaciones el contenido de ciertos derechos fundamentales puede tener una
extensión menor, debido a su coexistencia con los bienes y funciones constitucionales para cuyo
servicio se ha instituido la relación de sujeción: piénsese en la profesión militar, cuya especial
sujeción se encuentra al servicio de la jerarquía y la eficacia necesarias para el adecuado
cumplimiento de las funciones constitucionales que tiene atribuidas la Administración militar.
España ha formulado una reserva al artículo 11 del Convenio en la medida en que sea
incompatible con lo dispuesto en los artículos 28 y 127 de la Constitución de 1978; es decir,
con el derecho fundamental que reconoce y, para algunas profesiones, limita la libertad sindical
y con el precepto que prohíbe la pertenencia de los jueces, magistrados y fiscales a partidos
políticos y sindicatos.
A nuestro juicio, y teniendo en cuenta lo resuelto hasta la fecha por el Tribunal Europeo,
no se observan contradicciones entre el Convenio y los mencionados preceptos constitucionales,
pues las restricciones a las que alude el artículo 11 afectan a los mismos colectivos profesiones
(fuerzas armadas, policía, miembros de la Administración) que los mencionados en el artículo
28 y 127 (miembros de las fuerzas o institutos armados o personas sometidas a disciplina militar,
funcionarios públicos en general y jueces, magistrados y fiscales en particular).
110 Revista da PGM
No obstante, si el Convenio permite estas restricciones, es obvio también que el Legislador
interno no está obligado a introducirlas y que, en cada Estado, únicamente deberá hacerlo
cuando esos límites respondan a los principios constitucionales de organización de la
función pública, del poder judicial, de las fuerzas de seguridad y de la institución militar. Al
hacerlo, debe acreditar que el recorte que experimentan los derechos es necesario para el fin
legítimo previsto, proporcionado para alcanzarlo y respetuoso con el contenido esencial del derecho
fundamental restringido.
Así, el Tribunal, en el asunto Ahmed y otros c. Reino Unido, de 2 de septiembre de 1998,
analizó un reglamento que limitaba la posibilidad de ejercer actividades políticas para los
funcionarios locales que ocuparan “puestos sometidos a restricciones en el plano político”.
El Tribunal consideró que las injerencias resultantes de la aplicación del reglamento a los
demandantes perseguían el objetivo legítimo de proteger los derechos de terceros —incluidos los
miembros de las asambleas locales y los electores— a un régimen político auténticamente
democrático a nivel local. Para el Tribunal, la intención del reglamento era reforzar la larga tradición
de neutralidad política de los funcionarios locales.
Señaló, además, que las medidas en cuestión se aplicaban únicamente a categorías
estrictamente delimitadas de altos funcionarios, que ejercían actividades en las que era esencial
la necesidad de una imparcialidad política. Además, el reglamento no había sido diseñado para
prohibir cualquier comentario sobre cuestiones políticas, controvertidas o no. Lo único que
intentaba era evitar los comentarios de carácter partidario que, juzgados de manera razonable,
podrían interpretarse como algo a favor o en contra de las tesis de un partido político El derecho
de los demandantes de adherirse a un partido político no era objeto de limitación alguna.
En el asunto Rekvényi c. Hungría, de 20 de mayo de 1999, sobre las actividades políticas
de los policías, declaró lo siguiente:
“las garantías incluidas en el artículo 10 del Convenio se aplican al personal
militar y a los funcionarios (asunto Engel y otros c. Países Bajos, de 8 de junio
de 1976, y asunto Vogt c. Alemania, de 26 de septiembre de 1995). El Tribunal
no encuentra ninguna razón para excluir a los policías de esta conclusión,... La
obligación impuesta a ciertas categorías de funcionarios, especialmente a los
policías, de abstenerse de actividades políticas se dirige a la despolitización de los
servicios afectados y, de hecho, contribuye a la consolidación y al mantenimiento
de la democracia pluralista en el país... el deseo de velar por que el papel crucial
de la policía en la sociedad no resulte comprometido por la erosión de la
neutralidad política de sus funcionarios se concilia con los principios
democráticos. Teniendo en cuenta el papel de la policía en la sociedad, el Tribunal
ha reconocido que contar con fuerzas policiales políticamente neutrales constituye
un fin legítimo para cualquier sociedad democrática. Vista la historia particular
de ciertos Estados parte, sus autoridades nacionales pueden, para asegurar la
consolidación y el mantenimiento de la democracia, estimar necesario disponer
de ciertas garantías constitucionales que restrinjan la libertad de los policías para
ejercer actividades políticas y, en especial, para participar en el debate político.
Nº 24 - Dezembro 2010 111
Falta determinar si las concretas restricciones pueden ser consideradas
«necesarias en una sociedad democrática»…. Los policías tienen siempre el
derecho de ejercer actividades que les permitan expresar sus opiniones y
preferencias políticas. Es del todo evidente, incluso si los policías están sometidos
a restricciones en interés del servicio, que tienen el derecho… de votar...”
5 LAS GARANTÍAS DEL DERECHO.
Conviene recordar que la legitimación ante el Tribunal para la defensa de éste y los otros
derechos está reservada (artículo 34 del Convenio) a “cualquier persona física, organización no
gubernamental o grupo de particulares que se considere víctima de una violación, por una de las
Altas Partes Contratantes, de los derechos reconocidos en el Convenio o sus Protocolos”, por lo
que no serán admitidas las demandas presentadas por “organizaciones gubernamentales”
entendiendo por tales “no solamente los órganos centrales del Estado, sino también las autoridades
descentralizadas que ejercen «funciones públicas», cualquiera que sea su grado de autonomía en
relación a dichos órganos; sucede lo mismo con las colectividades territoriales” (asunto Gobierno
de la Comunidad autónoma del País Vasco c. España, de 3 de febrero de 2004, sobre la presunta
vulneración por algunas disposiciones de la Ley Orgánica 6/2002, de partidos políticos, de, entre
otros, el artículo 11; en el mismo sentido, Ayuntamiento de Rothenthurm c. Suiza, de 14 de
diciembre de 1988, Ayuntamiento de Mula c. España, de 1 de febrero de 2001, y Ayuntamiento
de Dandeyds c. Suecia, de 7 de junio de 2001).
112 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 113
1
Procurador do Município de Porto Alegre, professor do Curso de Direito da UNISINOS, Mestre em Teoria do Direito pelo
PPG em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O direito natural aplicado ao homem do futuro:
Uma (re)formulação dos direitos de personalidade no
código civil, suas implicações frente às nanotecnologias
Nelson Nemo Franchini Marisco1
114 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 115
Introdução
O termo nanotecnologia vincula-se à manipulação da matéria na escala molecular. A
nanotecnologia refere-se a tecnologias em que produtos apresentam uma dimensão de 1/10 de
mícron, cem nanômetros ou cem bilionésimos de metro. A nanotecnologia está associada a várias
áreas de pesquisa e produção em escala atômica (medicina, eletrônica, computação, engenharia
física, química, biologia, etc.).
A manipulação de átomos nesta escala apresentará diferentes propriedades. Não se tem
certeza científica quanto ao potencial perigo que as atividades de pesquisa e exploração destas
tecnologias trarão para a espécie humana.
Esse cenário é preocupante, pois em muitas áreas, como a da saúde, farmacologia, química
industrial, informática, cosmética, as nanotecnologias já estão incorporadas. Esse é o cenário
atual das nanotecnologias: grandes possibilidades econômico-financeiras e científicas, riscos a
serem descobertos (que poderão afetar a saúde humana), e a necessidade de criação de marcos
regulatórios, tanto para as pesquisas quanto para os produtos finais do processo. Assim, as
nanotecnologias, nas múltiplas formas de aplicação citadas afetarão os Direitos da Personalidade
previstos no Código Civil de 2002.
A doutrina moderna do direito civil utiliza em larga escala as chamadas cláusulas gerais.
A cláusula geral de tutela dos direitos de personalidade, fundamentada no substrato axiológico do
princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pode ser utilizada para proteção das conseqüências à
saúde, psique e outros malefícios à pessoa causados pelas Nanotecnologias.
116 Revista da PGM
I - O homem do futuro ou “o que estamos fazendo”?
O homem do futuro. A humanidade, tal como conhecemos, ainda está presa a terra. Até
que ponto a ciência realizará e afirmará os sonhos do homem?
Na Revista Veja de 28 de julho de 2010, consta material de divulgação da Sociedade
Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, cujo tema é a Nanobiotecnologia, indicando
que o futuro já começou. Informa que a tecnologia que lida com a manipulação da matéria no
plano molecular está na base de novos recursos diagnósticos. Já se prometem microrrobôs capazes
de se autoduplicar, que circulariam pelo corpo humano unindo-se aos tecidos orgânicos para
deter processos de envelhecimento ou estimular funções do cérebro. Essa realidade da nova era
que inicia é assim transmitida:
Robôs microscópicos que navegam pela corrente sanguínea e mandam
informações do corpo humano para equipamentos. Medicamentos
inteligentes que agem exclusivamente nas células doentes.
Nanopartículas injetáveis que possibilitam, em casos de câncer,
localizar metástases até então não visualizadas nos exames de
imagem. Parece ficção científica? Essas possibilidades já são realidade
nos laboratórios de pesquisa, acenando com promessas de utilização
médica no futuro. O fato é que a nanobiotecnologia vem transpondo
às fronteiras da imaginação para ganhar terreno em aplicações reais,
fazendo emergir um admirável mundo novo na medicina.
O ser humano e sua vida já estão sofrendo as conseqüências das experiências científicas.
A vida perde o seu caráter natural e passa a ser mesclada com a máquina, com a prótese, com o
implante, com as nanomáquinas inseridas no corpo humano. Segundo Gilberto Dupas (DUPAS,
2009, ps. 57-58):
Os patronos dessas técnicas garantem, para um futuro próximo,
nanorrobôs circulando pelo sangue humano para reparar células,
capturar micróbios ou combater cânceres; todo o acervo das bibliotecas
mundiais contido num dispositivo do tamanho de um torrão de açúcar;
materiais dez vezes mais resistentes e cem vezes menos pesados que o
aço; e armas e aparelhos de vigilância milimétricos e potentíssimos.
Anunciam a implantação de nanochips no organismo humano para
substituir ou adicionar células ou competências, abrindo espaço para
uma primeira geração de pós-humanos. E seus oráculos mais
delirantes prometem a completa regeneração celular; no limite, a
imortalidade.
Nº 24 - Dezembro 2010 117
Os aspectos desumanizadores do progresso científico e material foram preconizados por
Aldous Huxley (HUXLEY, 2009) em Admirável Mundo Novo, publicado em 1931. Huxley (rectius:
os Dirigentes da Nova Europa) da mesma forma que Thomas Hobbes, sublima a estabilidade do
Estado, porém, ao contrário do pensamento do filósofo precursor do liberalismo, pressagia a
idéia que o Estado deverá controlar até mesmo a forma de reprodução humana, visto que seria
possível multiplicar os embriões tantas vezes quantas fossem possíveis (pelo método bokanovski),
para que houvesse mão-de-obra para a indústria que estava florescendo na época de Huxley
(ARENDT, 2001, p. 10):
O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo
o ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora
desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado
a todos outros organismos vivos.
O mundo em que vivemos hoje é muito mais artificial, fabricado pelo homem, que natural.
Quase todos os elementos do nosso ambiente mostram provas do artifício humano (SIMON,
1981, p. 23).
Esse homem do futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um
século parece movido por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada por
algo produzido por ele mesmo. Segundo Hannah Arendt (ARENDT, 2001, p. 16), não há razões
para duvidar de que sejamos possíveis de realizar essa troca, como “não há motivo para duvidar
de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da terra”.
Artificialismo da existência humana – o trabalho produz um mundo artificial de coisas
nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. “O trabalho e seu produto, o artefato humano,
emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do
tempo humano” (ARENDT, 2001). Logo, devemos ser cuidadosos ao igualar “biológico” com
“natural”, porque as coisas que chamamos de artefatos não estão fora da natureza.
Os homens são seres condicionados segundo Hanna Arendt. Tudo aquilo que com eles
entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência (ARENDT, 2001):
O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas
produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas
que devem sua existência exclusivamente aos homens também
condicionam seus autores humanos. Além das condições nas quais a
vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os
homens criam suas próprias condições que, a despeito de sua
variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força
condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida
humana ou entre em duradoura relação com ela, assume
imediatamente o caráter de condição da existência humana.
118 Revista da PGM
De que forma a nanotecnologia irá condicionar a vida humana, a natureza do homem e
suas relações pluripessoais? E de que forma a nanotech irá trazer maior felicidade a vita activa
do homem? O que está em questão não é o que nós fazemos com a Nanotech ou o que nós
deveríamos fazer, mas o que, como diz Gadamer, “ultrapassando nosso querer e fazer, nos
sobrevém, ou nos acontece” (GADAMER, 1997, p. 14).
Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais perdeu
sua conotação negativa de inquietude (ARENDT, 2001, P. 24).
O homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz. E o homem “só pode procurar o
comum de todas as maneiras de compreender e mostrar que a compreensão jamais é um
comportamento subjetivo frente a um objeto dado, mas frente à história efeitual” (GADAMER,
1997, p. 19). Cabe ao intérprete jusfilosófico dizer se as nanotechs são uma representação da
realidade, uma reprodução, e de que forma poderemos interpretá-las.
Desde sempre a técnica acompanhou a existência do homem sobre a terra. Como disse
Engelmann, citando Paulo Becchi, “quando o homem descobre as relações causais da natureza,
passa a imitá-la, além de recriar com seu conhecimento novas técnicas e máquinas que foram
capazes de suprir e controlar os seus efeitos” (ENGELMANN, 2009).
A técnica tem uma função complementar à natureza, ajudando a cumprir o que a natureza
não consegue fazer por si só. Segundo Paolo Becchi, a natureza se transforma em uma grande
máquina movida por conexões causais que, descoberto o mecanismo, o ser humano está em
condições não somente de imitá-la, mas também de recriá-la com suas próprias mãos (BECCHI,
2002, p. 117).
Importante identificar o que distingue o artificial do natural. Simon estabelece as seguintes
fronteiras das ciências do artificial (SIMON, 1981, p. 40):
1. As coisas artificiais são sintetizadas (apesar de nem sempre, e nem
mesmo usualmente, com total premeditação) pelo homem;
2. As coisas artificiais podem ter a aparência de naturais, carecendo
em muitos aspectos da realidade destas.
3. Os objetos artificiais podem ser caracterizados em termos objetivos,
funções, adaptações.
4. Os objetos artificiais são normalmente discutidos, particularmente
durante a concepção, em termos imperativos assim como descritivos.
A artificialidade inclui similitude preceitual mas diferença essencial, semelhança mais
evidente a partir do exterior que do interior. Pode-se dizer que o objeto artificial imita o real voltando
a mesma face para o exterior, adaptando-se a classes comparáveis de tarefas externas, na perseguição
dos mesmos objetivos. A imitação (e isto deve valer para as nanotechs) por poderem ser organizados
sistemas físicos distintos que exibem comportamentos quase idênticos (Simon, 1981).
A percepção que emerge do contexto das nanotecnologias mostra o lado violento da ciência
moderna, pois tudo se quer invadir, inventariar, copiar, transformar, adaptar, em última análise,
dominar (ENGELMANN, 2010). O poder sobre a vida assim caracterizado é próprio de uma
determinada época histórica: a modernidade.
Nº 24 - Dezembro 2010 119
A partir das nanotecnologias, em verdade a partir da explosão de novas técnicas, e em
face da sujeição da vida aos influxos tecnológicos, surge o bio-poder (exercício do poder estatal
sobre a vida), não mais preocupado apenas com a vida humana, mas com as novas tecnologias,
sua pesquisa, desenvolvimento e comercialização (ENGELMANN, 2010).
Pelo que já foi referido verifica-se que o maior risco nas inovações tecnológicas, como as
nanotecnologias, é que a ambição econômico-financeira se sobreponha às questões relacionadas
aos seres humanos. Nesta parte cabe situar o alerta dado por Wilson Engelmann no Simpósio
Internacional “O (des)governo biopolítico da vida humana” ocorrido na Universidade do Vale
do Rio dos Sinos em setembro de 2010:
Portanto, a encruzilhada é justamente esse se dar conta de que a partir
da liberdade o homem será capaz de preservar a essência que é a
humanidade do humano em melhores condições de viver. A liberdade
de escolha permitirá, na sua essência, o aparecimento dos efetivos
resultados das investigações. Por isso, não se trata de fazer a crítica
aos avanços nanotecnológicos. Eles são necessários e representam a
criatividade da espécie humana-racional. No entanto, o progresso
deverá vir acompanhado da liberdade para avançar, recuar, parar
ou retroceder, dependendo dos resultados que vão sendo obtidos.
E aqui voltamos à pergunta inicial, formulada não em termos de indivíduo, mas em
termos de sociedade. Estamos vivendo em uma sociedade pós-humana? Segundo Engelmann
(ENGELMANN, 2009, p. 546):
Aí é que é necessário o “estranhamento” heideggeriano, ou seja, torna-
se fundamental a reflexão sobre o futuro-hoje das pesquisas
nanotecnológicas. Heidegger faz uma série de considerações,
pertinentes para o momento que estamos vivenciando. Não se deve
esquecer um ponto central: “a técnica é meio para um fim” e a “técnica
é uma atividade do homem” (Heidegger, 2001, p. 11). A relação entre
meio e fim é muito significativa e poderá ser enriquecida pela
contribuição de Kant: “age de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim m e nunca simplesmente como meio”
(Kant, 1980, p. 135). As possibilidades das pesquisas nanotech deverão
sempre ser um meio para que as necessidades humanas possam ser
atendidas dentro do melhor nível.
Jürgen Habermas clamou no deserto ao tentar fazer compreender às elites contemporâneas
e às poderosas corporações globais que a programação genética contém um elemento irreversível,
estreitando o espaço de liberdade dos homens (DUPAS, 2009, p. 62). Coloca-se aqui as seguintes
perguntas:
120 Revista da PGM
- intervir no genoma humano ou implantar nanochips no cérebro humano para modificá-
lo é algo que precisa ser normativamente regulamentado ou deixaremos essas ações ao sabor de
preferência dos mercados?
- devemos garantir que a combinação imprevisível de duas sequências imprevisíveis de
cromossomas continue a determinar o direito de vir a ser por meio da lógica da natureza?
- ou aceitaremos que o arbítrio de alguém, que deseja um design apropriado de um novo
ser, com nanopróteses e chips possa interferir nos fundamentos somáticos e na liberdade ética de
outra pessoa que ainda não existe e não pode ser consultada?
- será que o direito a uma herança genética sem manipulação pode ser possível de uma
proteção jurídica, ainda que o maior interesse ainda não tenha nascido?
- que efeitos terão na autocompreensão da nossa espécie os implantes de chips e a
nanotecnologia, que prepara a fusão do homem a máquina?
- e como manter as universidades conectadas com essa perspectiva inovadora e não mantê-
las a serviço de um esquema de dominação que as transforma em empresas fornecedoras de
mão de obra?
- que tipo de transformações ainda podem ser atualizadas nesses hardwares e softwares
mantendo-se a dignidade humana? 2
Ao tornarem incerta a identidade da espécie, os desenvolvimentos das tecnologias
bionanogenéticas afetam a imagem que havíamos construído de nós mesmos enquanto seres
culturais da espécie homem. Gilberto Dupas traz o discurso dos adeptos do “pós-humano”
(DUPAS, 2009, p. 76):
O ser humano é um hardware precário que contém um software
insuficiente. Os avanços notáveis da ciência e da técnica –
nanotecnologias, robótica e próteses profundas – revolucionarão o
organismo do homem, criando um pós-humano habilitado a imensas
conquistas cósmicas.
Uma discussão fundamental é a dos espaços que se abrirão à civilização humana a partir
dessa revolução já iniciada. Usando como referência a citação supra, o pós-humano seria a
superação do humano que, tal como existe hoje, estaria obsoleto.3
2
As perguntas foram extraídas de DUPAS, Gilberto. Uma Sociedade Pós-humana? Possibilidades e riscos da
nanotecnologia. IN: NEUTZLING, Inácio. ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro de. Uma Sociedade Pós-Humana.
Possibilidade e Limites das Nanotecnologias. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 62.
3
Fazendo uma necessária referência ao filme Avatar, de James Cameron, há que se citar as alternativas básicas sugeridas
por Dupas par apensar o pós-humano: “Na primeira, o pressuposto é de que o corpo é um hardware falho e ultrapassado;
seria preferível fazer um download da nossa mente para um corpo que fosse melhor. A atualização do corpo dar-se-ia
aos poucos, modificando o organismo mediante a incorporação de próteses para lidar com as novas exigências. Entre
outras razões para essas modificações estaria a de que o homem precisará poder viver em ambientes que não são seu
habitat natural, até porque nosso próprio modelo civilizacional poderá dar cabo final do ecossistema original da Terra.
(...) A segunda maneira inaugura aquilo que alguns estão chamando de um novo tipo de eugenia. Na eugenia negativa
havia a purificação da raça através da eliminação daqueles caracterizados como ‘humanos’ deficientes’. Na eugenia
positiva, existira a possibilidade de se “melhorar” o patrimônio genético por meio de transformação nas células, obtendo
uma segunda linha de evolução do humano.” (DUPAS, op. cit., ps. 76-77).
Nº 24 - Dezembro 2010 121
Habermas pensa que a manipulação genética poderá alterar nossa autocompreensão
enquanto séries da espécie. As técnicas genéticas que visam à seleção e à alteração das características
deslocam os limites entre o que somos e o modo como lidamos com essa herança sob nossa própria
responsabilidade, entre o acaso e a livre decisão dos homens. As intervenções eugênicas e as
nanotecnologias podem alterar a estrutura da nossa experiência moral e jurídica (HABERMAS, 2004).
E aqui se tem uma nova questão: quais os impactos na estrutura psíquica de um indivíduo
em crescimento ao saber-se design de outra pessoa?4
A pessoa programada não é capaz de entender
a intenção do programador, inserida nela por meio do genoma alterado5
.
II - Direitos Naturais e Nanotecnologia: uma primeira aproximação.
Será preciso utilizar uma ferramenta hermenêutica para proteger a dignidade humana e
os chamados direitos da personalidade. Os direitos da personalidade compreendem os direitos
atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.
Tem-se a personalidade como um conjunto de características e atributos da pessoa
humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico. A pessoa há
de ser tutelada das agressões que afetam a sua personalidade, identificando a doutrina a existência
de situações jurídicas subjetivas oponíveis erga omnes (TEPEDINO, 2004, p. 27).
Utilizar-se-á a “razoabilidade prática” de John Finnis para interpretação e atualização dos
direitos de personalidade (FINNIS, 2002). O cerne da obra de Finnis está nas exigências básicas
da razoabilidade prática. Mas, o que vem a ser a razoabilidade prática? O autor identifica sete
formas básicas de bem humano, formas estas que podem ser promovidas de muitas maneiras e
combinações na vida de um indivíduo. Diante de muitas possibilidades, o autor aduz que há boas
razões para eleger compromissos, projetos e ações, sabendo que a eleição exclui muitos
compromissos, ações e projetos alternativos, que são razoáveis ou possíveis. 6
Em razão da importância do tema para o desenvolvimento do projeto, que procura
esclarecer de que forma a razoabilidade prática atualiza os preceitos do Direito Natural para a
formulação dos chamados direitos da personalidade, faz-se relevante citar excerto da obra de
Tomás de Aquino7
:
Naquelas coisas, porém, que caem na apreensão de todos, acha-se certa
ordem. Com efeito, o que por primeiro cai na apreensão é o ente, cuja
intelecção está inclusa em todas aquelas coisas que alguém apreende.
4
Gilberto Dupas acresce a seguinte pergunta à anterior: “Como se sentirá um adolescente que é homem mas desejaria
ser mulher, ao saber que isto lhe foi imposto pelos pais?” (DUPAS, 2009, p. 80).
5
Ver o filme “Gattaca - A Experiência Genética”, de Andrew Niccol, de 1997, que já levantava as questões aqui abordadas.
6
Finnis salienta que ao falar de “bem”, “bem básico”, “valor”, “bem estar”, não está dizendo “bem moral”. As formas
básicas de bem para Finnis são a vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a sociabilidade (amizade), a
razoabilidade prática e a religião. É preciso deixar claro que Finnis disse ter identificado sete formas básicas de bem
humano, mas que elas são muitas ((FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. Reino Unido: Oxford University
Press, 2002, p. 86-100).
7
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 94, a. 2.
122 Revista da PGM
E assim o primeiro princípio indemonstrável é que ‘não se pode afirmar
e negar ao mesmo tempo’, que se funda sobre a razão de ente e não
ente, e sobre esse princípio todas as outras coisas se fundam, como se
diz no livro IV da Metafísica. Assim como o ente é o primeiro que cai na
apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na
apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com
efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o
primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de
bem que é ‘Bem é aquilo que todas as coisas desejam’. Este é, pois, o
primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal,
evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da
natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas
ou evitadas pertencem, aos preceitos da lei de natureza, que a razão
prática naturalmente apreende ser bens humanos.
O bem da razoabilidade prática, que é um dos sete bens básicos para John Finnis, serve
justamente para possibilitar a participação nos outros bens básicos, pois servirá para orientar os
compromissos, a seleção de projetos, disposições e ações. Mas, como pode alguém saber que
uma decisão é razoável de forma prática?
Essa pergunta John Finnis responde com os representantes clássicos da ética (e da Teoria
da Lei Natural). Eles enfatizam que uma resposta adequada a esse problema somente pode ser
formulada por quem tem experiência e inteligência e um desejo de razoabilidade mais forte que
os desejos e paixões humanas.
Tomás de Aquino distinguiu claramente um tipo de princípios práticos que ele considerava
evidentes por si mesmos para qualquer um com experiência e inteligência suficiente para
compreender as palavras com que se formulam. Ele enfatizou que os princípios morais tais como
os contidos nos Dez Mandamentos são conclusões a partir dos princípios primários evidentes por
si mesmos, que raciocinar até alcançar tais conclusões exige um bom juízo, e que há muitas
outras normas morais mais complexas e particulares que hão de seguir-se e muitos juízos e
decisões morais que hão de fazer-se, todos os quais exigem um grau de sabedoria prática que
poucos homens de fato possuem (FINNIS, 2002, p. 101).
Tomás de Aquino realizou uma categorização tripartite dos princípios da lei natural. Em
primeiro lugar existem os princípios mais gerais (communissima), que são os fins ou o sentido
dos preceitos. Eles expressam as formas básicas de bem humano e, na medida em que se referem
ao bem próprio de cada um, são reconhecidos por qualquer indivíduo que tenha uso da razão e
suficiente experiência para saber a que se referem e não podem, enquanto princípios gerais, ser
eliminados do coração humano. Equivale a dizer que qualquer pessoa mentalmente sã é capaz de
ver que a vida, o conhecimento, o companheirismo, filhos, são bons e dignos de serem possuídos.
A exigência da justiça é um conjunto de exigências da razoabilidade prática que existem
porque a pessoa humana deve buscar realizar e respeitar os bens humanos, não simplesmente
em razão de si mesma e em seu próprio benefício, mas também em comum, isto é, em comunidade
- entendimento compartilhado por todos os seus membros (BAUMAN, 2003, p. 15).
Nº 24 - Dezembro 2010 123
A exigência da justiça é, pois, uma exigência da razoabilidade prática. Muitas de nossas
responsabilidades, obrigações e deveres morais concretos têm por base a oitava exigência básica
da razoabilidade prática:8
a exigência de promover o bem comum da própria comunidade (FINNIS,
2002, p. 125). A pessoa humana deve realizar e respeitar os bens humanos não simplesmente
por si mesma e em seu próprio benefício, mas também em benefício da comunidade.
As exigências da justiça são as implicações concretas da exigência básica da razoabilidade
prática, segundo a qual alguém há de favorecer e promover o bem comum de suas próprias
comunidades (FINNIS, 2002, p. 164). Esse princípio relaciona-se estreitamente com o valor básico
da amizade e com o princípio da razoabilidade prática que exclui a auto-preferência arbitrária na
busca do bem.
Esse princípio, segundo o qual cada um há de favorecer e promover o bem comum de
suas próprias comunidades, contém os três elementos já analisados: orientação-para-o-outro,
em referência à comunidade ou comunidades nas quais a pessoa participa, como ajuda para
alcançar o bem comum; o dever, por ser uma exigência da razoabilidade prática; e a igualdade ou
proporcionalidade, já que (a) o princípio visa ao bem comum da comunidade em questão, e (b)
o princípio visa ao bem comum, que implica uma referência a critérios de conveniência ou
adequação em relação aos aspectos básicos da plena realização humana (FINNIS, 2002, p. 164).
Tratar de algo como a justiça é tratar de algo que diz respeito a como as pessoas devem
tratar os outros, no sentido do modo como os outros merecem ser tratados, têm direito de ser
tratados. Requerimentos sobre a justiça são identificados não pelo próprio caráter das pessoas,
mas considerando o que será estabelecido como relacionamento razoável e de igualdade
proporcional entre elas, em relação a algum ato, abstenção, ordem ou outro assunto que seja
externo, em relação ao olhar do outro, em relação ao que afeta o outro.
Esses são os pontos que John Finnis entende como relevantes para que se estude a justiça:
“[...] viver em comunidade uns com os outros, em cumprir minha parte em tais encargos e
responsabilidades e em administrar, explorar e dispor de recursos naturais” (FINNIS, 2002, p. 188).
Mireille Delmas-Marty pede “uma paisagem em ordem” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 3). É
isto o que também se quer quando se utiliza a razoabilidade prática de Finnis, que nada mais é do
8
Finnis entende que o bem da razoabilidade prática estrutura nossa busca de bens. A primeira exigência da razoabilidade
prática é o que John Rawls chama de um plano de vida racional. Em seguida, não se deve deixar de lado nenhum dos
valores humanos básicos, em que pese o fato de qualquer compromisso com um plano de vida coerente implicar algum
grau de concentração em uma ou algumas das formas básicas de bem, em detrimento das outras (FINNIS, 2002, p.
105). A terceira exigência é a imparcialidade fundamental entre os sujeitos humanos, que são ou podem ser partícipes
das formas básicas de bem. A quarta e a quinta exigência se complementam entre si: com o fim de estar suficientemente
aberta a todas as formas básicas de bem em todas as diferentes circunstâncias ao largo de uma vida, e em todas as
relações freqüentemente imprevisíveis, de cada pessoa com as outras, ela deve ter certo desprendimento em relação a
todos os projetos que assume. Não é razoável, para Finnis, que uma pessoa entenda que não tem mais sentido a sua vida
em razão de um fracasso qualquer. A quinta exigência estabelece o equilíbrio entre o fanatismo e a apatia ou omissão. É
a exigência de que, assumido um compromisso, a pessoa não o abandone em face de uma ligeira dificuldade. A sexta
exigência trata da necessidade de que a pessoa cause bem ao mundo (à sua própria vida e à vida das demais pessoas)
mediante ações que sejam eficientes para alcançar seus propósitos. A sétima exigência é a adoção de uma atitude como
um meio para promover ou proteger um ou mais dos bens básicos em um ou mais de seus aspectos. A oitava exigência
é favorecer o bem comum das comunidades. A nona é “atuar de acordo com sua própria consciência”.
124 Revista da PGM
que a aplicação da phronesis aristotélica e da prudentia do Aquinate. De que forma o direito
poderá proteger o humano – a dignidade do humano – das transformações que se operam diante
de nós? Pede-se ao direito um pouco de ordem.
Para fundamentar o pedido de ordem na estruturação das pesquisas nanotechs (DELMAS-
MARTY, 2004, p. 3):
Em primeiro lugar, que ele coloque marcos, que trace limites. E limite
a si mesmo, “a fim de que não faltem orlas ao mar”, dizia Portalis no
célebre Discours préliminaire au projet de Code Civil (1804), cioso de
não “regular tudo pelas leis” e de assim dar segurança à sociedade
contra as flutuações da ciência. Pois a ciência, dizia ele, “abandonada
à disputa, só oferece um mar sem orlas”, embora também seja verdade
que, recusando todo limite, a ciência (tal como a arte) trabalha para
vencer a desordem, avançando a exploração na direção certa.
Embora certos biólogos considerem que a biologia tem pouco a dizer sobre a pessoa, ou
seja, sobre aquilo pelo qual um individuo da espécie humana se torna uma pessoa, ou pelo
menos é reconhecido como tal, permanece o mistério sobre a definição da pessoa (DELMAS-
MARTY, 2004, p. 31).
Como se constrói a relação entre os Direitos Naturais e os Direitos da Personalidade?
Segundo o professor da Unisinos, coordenador do Grupo JUSNANO (ENGELMANN, 2010, p. 135):
Ao se referir que os Direitos Humanos e os Direitos Naturais têm uma
perspectiva moral geral, significa aceitar que o seu conteúdo, mesmo
sem estar positivado, deverá ser observado, posto ser o elemento básico
para a caracterização e a preservação axiológica em qualquer
evolução tecnológica.
Como já referido, as nanotecnologias trarão consigo uma nova fase de poder, o poder
biotecnológico, o que certamente irá refletir nos chamados direitos da personalidade. Os direitos
da personalidade são a expressão dos direitos naturais-humanos, assentados no valor maior que
é a dignidade da pessoa humana (ENGELMANN, 2010, p. 139).
O Código Civil brasileiro dedica todo um capítulo aos direitos da personalidade, categoria
da qual o legislador se ocupa pela primeira vez. Seu posicionamento, na parte geral do Código,
reflete uma mudança paradigmática do direito civil, que se reconhece como parte de um
ordenamento cujo valor máximo é a proteção da pessoa humana (DONEDA, 2007, p. 135).
Adriano de Cupis refere-se a “direitos essenciais”. Afirma o seguinte (DE CUPIS, 1982, p.
13):
Vi sono certi diritti, vale a dire, dei quali la personalità rimarrebbe
um’attitudine completamente insoddisfatta, priva do ogni concreto
Nº 24 - Dezembro 2010 125
valore; diritti, scompagnatti daí quali tutti gli altri diritti soggettivi
perderebbero ogni interesse rispetto all’individuo: tanto da arrivarsi
a dire Che, se essi non esistessero, la persona non sarebbe più tale.
Sono essi i ‘diritti essenziali’, com cui si identificano precisamente i
diritti della personalità.
Em uma concepção, que não é patrimonialista, da modernidade, afirma-se que os
chamados direitos da personalidade são direitos supremos do homem. Francisco Ferrara, citado
por Tepedino, aduz que “os direitos da personalidade garantem a fruição de nós mesmos,
asseguram ao indivíduo a senhoria da sua pessoa, a atuação das próprias forças físicas e espirituais”
(TEPEDINO, 2004, p. 14).
Na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela nas relações de direito
privado, com o estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de valores atinentes à
personalidade, trataram os civilistas de delinear um direito inspirado pelo paradigma da propriedade
(TEPEDINO, 2004, p. 32).
Não se está a tratar aqui, segundo a doutrina privatista capitaneada por Gustavo Tepedino,
dos Direitos Humanos, enquanto proteção do homem às arbitrariedades do Estado, mas, sob o
ângulo do Direito Privado, direitos do homem que se protegem entre as relações dos particulares,
para defendê-los dos atentados perpetrados por outra(s) pessoa(s).
Costuma-se distinguir os direitos da personalidade em dois grupos: os direitos à integridade
física (o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver) e os direitos à integridade
moral (direito à honra, direito à liberdade, direito à imagem).
A consideração da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1º, II e III da CRFB/88). A garantia de igualdade, do artigo 3º,
III, e, especialmente, do artigo 5º, caput, também da Constituição da República, condicionam o
intérprete e o legislador, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua
axiológica estabelecida pelo poder constituinte originário, e marcam, de acordo com Gustavo
Tepedino, a presença em nosso ordenamento de uma cláusula geral de personalidade
(DONEDA, 2007, p. 46).
Existe uma cláusula geral nos dispositivos do Código Civil – artigos 11 ao 21 – que
estabelece que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do
interessado, adorará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato
contrário a esta norma. Ao que parece, as questões atinentes à inovação tecnológica fazem com
que esta norma surja como uma forma de escudo de proteção para eventuais danos à pessoa
humana.
Fatos novos da sociedade moderna surgem a cada dia, desafiando a dogmática tradicional
e a técnica regulamentar – marcos regulatórios. O projeto de pesquisa visa estabelecer esta conexão
entre à proteção da pessoa humana, sob a ótica dos direitos da personalidade, em relação às
inovações tecnológicas, especialmente, as relacionadas às nanotecnologias.
126 Revista da PGM
O tema dos direitos da personalidade envolve, no que é pertinente ao presente trabalho,
a questão de suas fontes. A verificação de se os direitos da personalidade são direitos naturais, tal
e qual prescrito no Código Civil português.
A doutrina contemporânea entende, todavia, que tal circunstância não se justifica
mais, ou, melhor, que pode se justificar por razões metajurídicas, mas não por razões técnico-
jurídicas.9
O que importa dizer é que a tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva
setorial (direito público e direito privado), não se satisfaz com as técnicas ressarcitórias e repressivas
(binômio lesão-sanção), exigindo instrumentos de promoção do homem (da dignidade humana),
considerado em qualquer situação jurídica de que participe, contratual ou extracontratual, de
direito público ou de direito privado.
Veja-se que a regulamentação das relações jurídicas patrimoniais, incluso os marcos
regulatórios das nanotecnologias, a dignidade humana terá que ser o limite interno capaz de
definir as bases da referida regulamentação. O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece
sempre os limites intransponíveis, o que significa dizer que além destes limites estaríamos no
campo da ilicitude. Como já disse Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2007, p. 54):
Por outro lado, a incidência normativa não se resume às situações
que configuram delito ou que causam dano injusto – momento
patológico de tutela da personalidade -, mas se estende a todos os
momentos da atividade econômica, daí decorrendo que a validade
dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de tutela da
personalidade, está condicionada à sua adequação aos valores
constitucionais e à sua funcionalização ao desenvolvimento e
realização da pessoa humana.
Passa-se a tentativa de gerar-se algumas linhas conclusivas sobre o assunto aqui abordado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que o homem está fazendo é ainda uma incógnita. Que o futuro já está no meio de
nós, parece não haver dúvidas. O que fazer? Como se proteger? O que o jurista, o filósofo e
os demais cientistas podem pensar são em maneiras de minimizar ou evitar que as
experiências, sejam genéticas, sejam apenas moleculares, afetam a vida e a dignidade do ser
humano. As formas de abordagem do assunto ainda são incipientes, mas, a dignidade do ser
humano, alçada a princípio constitucional certamente será o paradigma da proteção dos
direitos de toda a humanidade.
9
DONEDA, 2007, p. 41, citando Adriano De Cupis, I diritti della personalità, que aduz que “qualquer situação jurídica
só pode nascer do lado positivo, ou seja, de uma lei”.
Nº 24 - Dezembro 2010 127
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______. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro in Temas de
Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Nº 24 - Dezembro 2010 129
1
Procuradora do Município de Porto Alegre, mestre em Direito pela PUC/RS, especialista em Direito Municipal, Professora
de Direito, Municipal, Urbanístico e Ambiental
Formas não tributáveis de financiamento
das cidades
Vanêsca Buzelato Prestes1
130 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 131
Introdução
A Constituição de 1988 tratou os Municípios como entes federativos2
e atribuiu-lhes uma
série de competências constitucionais, sobretudo nas denominadas políticas públicas municipais,
das quais os municípios passam a ser partícipes e executores. O aumento das atribuições
constitucionais foram maiores do que a redefinição constitucional das receitas próprias e dos
recursos constitucionalmente destinados aos Municípios, motivo que gera a necessidade de gestão
com muita criatividade e busca de alternativas.
Ao mesmo tempo em que passamos por escassez de recursos, vivemos um momento em
que há uma redefinição do espaço e do lugar das cidades, além do modo de vida nestas. Questões
que no passado não eram valoradas economicamente passam a ter valorização. O silêncio, o
descanso, os espaços de lazer, a paisagem, a areação, a luminosidade constituem-se exemplos de
situações atualmente valorizadas economicamente. Viver em frente a um parque, adquirir um
imóvel próximo a espaço de lazer que propicie contato com natureza, espaço para caminhada ou
próximo a um shopping valoriza e altera o valor do imóvel.
De outra parte, as cidades passam a ser um mercado consumidor importante. Os serviços
precisam ser prestados localmente, pois é onde estão as pessoas, situa-se o mercado consumidor,
onde tudo ocorre. Assim, redes de serviços precisam ser implantadas, a interação destes serviços
com a cidade e os cidadãos ocorre, inclusive grandes empresas utilizam em seu marketing a
proximidade com as pessoas e os valores da cidade.
Todos estes aspectos contribuem para gerar uma identidade da cidade.
Visto de outro modo, fazem também com que os gestores locais tenham que enfrentar de
um lado a escassez de recursos, e de outro, compreender que as cidades que administram podem
e devem ser um indutor de comportamentos privados, de modo a possibilitar a recuperação das
mais valias decorrentes do processo de urbanização.
Neste sentido, as parcerias público-privadas, os instrumentos previstos no Estatuto da
Cidade, Lei Federal N. 10.257, as medidas compensatórias decorrentes do licenciamento ambiental
são importantes instrumentos que, se aplicados para além da perspectiva pontual, mas tendo em
vista um olhar global para a cidade na dimensão de seu território, podem ser revertidas em prol
da construção de cidades mais sustentáveis e agradáveis para se viver.
Visa o presente artigo de um lado, discorrer sobre os instrumentos jurídicos que podem
ser manejados para angariar direta e indiretamente recursos para nossas cidades, com o fim de
dar cumprimento às competências constitucionais e, de outro, demonstrar que os instrumentos
existentes precisam ser utilizados na perspectiva da gestão e não fragmentadamente, pois, a cidade
é um todo.
2
Art. 1º. E art. 18 CF
132 Revista da PGM
1. INSTRUMENTOS NÃO TRIBUTÁRIOS: CONCEITO
Para tratarmos dos instrumentos não tributários vale rememorar que nossa Constituição
Federal desenhou um sistema tributário constitucional rígido, no qual aos Municípios estão
destinados os seguintes tributos próprios: a) Impostos (art. 156 CF); b)Taxas (145, II CF, exercício
de poder de polícia e prestação de serviços públicos específicos e divisíveis); c)Contribuições de
Melhoria (145, III CF); d) Contribuições previdenciárias para custeio da previdência pública (§ 1º
do art. 149 da CF); e) Contribuição para custeio da iluminação pública (art. 149-A da CF)
Além dos tributos próprios, a Constituição regrou o que se denomina repartição de receitas
tributárias, sendo que cabem aos Municípios as seguintes receitas, nos termos do art. 158 da Constituição
Federal(CF): a) IR e proventos incidente na fonte sobre rendimentos pagos pelos municípios, suas
autarquias e fundações que instituírem e mantiverem; b) 50% ITR; c) 50% IPVA licenciados em seus
Municípios; d) 25% ICMS. O art. 159 da CF, também define a forma de repartição de receita tributária
relativa ao Fundo de Repartição dos Municípios, nos termos das alíneas “b” e “d” .
Para o financiamento da saúde3
e da educação4
a Constituição definiu percentuais do orçamento
destinados a estas políticas públicas, gerando uma vinculação constitucional das receitas públicas.
As receitas acima identificadas são constitucionalmente dos Municípios, seja na modalidade
de tributos próprios ou de transferências constitucionais.
As demais formas de arrecadação de receitas são as denominadas não tributárias, ou
seja, não fazem parte do rol acima especificado, exigindo criatividade, compreensão do sistema
jurídico, bem como a aplicação dos instrumentos jurídicos existentes para serem implementados.
A seguir, sem a pretensão de esgotar, mas pretendendo abrir o debate, apresentamos alguns
instrumentos não tributários e também não decorrentes das transferências obrigatórias.
2. INSTRUMENTOS NÃO TRIBUTÁRIOS DO ESTATUTO DAS CIDADES
As parcerias destinadas a implantar empreendimentos urbanísticos são reguladas pelo
Estatuto das Cidades, Lei Federal 10.257/01. Dos instrumentos destacamos a outorga onerosa do
direito de construir, a transferência do direito de construir e a operação urbana consorciada.
O regime urbanístico das cidades tem valor econômico. Permitir construir 05, 10 ou
20 andares faz muita diferença. Atribuir regime urbanístico a áreas que não o tinham, permitindo
a sua utilização com potencial econômico, também faz muita diferença5
. Os franceses
3
Art. 198 CF
4
Art. 212 CF
5
Vide o que ocorreu em Porto Alegre na área onde hoje funciona o estádio do Grêmio e que está sendo proposta a
construção de habitações. Ou , na área do Inter em que será permitida a construção de hotel, com vista para o rio. Não
estou dizendo que não são importantes para a cidade estas modificações. Isto é meritório, especialmente quando estamos
tratando de uma sede da Copa do Mundo. Queremos a Copa aqui, mas é possível fazer de maneira diferente, revertendo
mais benefícios para a cidade. Dizer que Grêmio e Inter farão tudo em suas sedes (Grêmio arena nova e Inter modificações
para atender requisitos da Copa do Mundo) às suas expensas, sem recursos públicos, é não reconhecer que o regime
urbanístico tem forte valor econômico. Aliás, ambas as situações mais se prestam a Operações Urbanas Consorciadas do
que simples alteração de regime urbanístico, na qual o Município e a comunidade perdem o protagonismo nas profundas
alterações que ocorrerão. No caso, mudando o regime urbanístico, apenas assiste-se o resultado. Na Operação Urbana
são todos os atores partícipes e beneficiários deste resultado.
Nº 24 - Dezembro 2010 133
compreenderam isto desde o início do século passado. Lá não há um direito originário de
construir e o instrumento do solo criado6
que separa o direito de propriedade do direito de
construir e de cuja concepção origina-se a outorga onerosa e a transferência de potencial
construtivo, nasce inspirado nesta concepção. Desta forma, compreendendo que a cidade é
um mercado e que precisa ser regulada, o Município deve controlar o regime urbanístico, de
modo a valorizá-lo. É urbanística e juridicamente equivocada, errônea, a concepção que não
tem custo para cidade a adoção de regime urbanístico maior, pois este tem valor de mercado.
Mudar uso sem contrapartida, permitir construção maior sem contrapartida, são exemplos da
falta de compreensão do que estes instrumentos urbanísticos significam.
Muitas cidades já compreenderam esse fenômeno e trabalham com esta variável. O Prefeito
Kassab em São Paulo, tem divulgado que vai fazer operações consorciadas para poder fazer
melhorias urbanas e ambientais. Portanto, compreender que a cidade não é abstração, tem
conteúdo e vale pelo seu todo e que os instrumentos urbanísticos podem ser auxiliares para
reforçar esta idéia-força é fundamental para não permitir que simplesmente toleremos aumento
de altura, alteração de regime ou de uso como se fosse direito individual, ou, utilizado de forma
destacada do planejamento da cidade.
2.1. OUTORGA ONEROSA E TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR
A outorga onerosa do direito de construir e a transferência do direito de construir são
institutos jurídico-urbanísticos que separam o direito de propriedade do direito de construir. Dito
de outra forma, o proprietário do solo não será necessariamente o do subsolo ou do espaço
aéreo, o acessório nem sempre segue o principal, em se tratando de utilização da coisa.
A Carta de Embu de 1976 definiu as diretrizes para utilização do solo criado no Brasi,
somente incorporado a nossa legislação a partir das definições de outorga onerosa do direito de
construir e transferência do direito de construir previstos no Estatuto da Cidade.
O solo criado é o resultado da criação de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas
diretamente sobre o solo natural7
. Segundo Hely Lopes Meirelles, “o solo criado será sempre um
acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela
lei. Acima deste coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não
terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município”8
.
Esta aquisição do Município se dá de forma onerosa, revertendo recursos para os cofres
públicos municipais, que devem ser utilizados na política urbano-ambiental. De outra quadra,
6
"O solo criado é o resultado da criação de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre o solo natural.
(Eros Grau,)”
“O solo criado será sempre um acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido
pela lei. Acima deste coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito originário
de construir, mas poderá adquiri-lo do Município. (Hely Lopes Meirelles)”
7
Nesse sentido, GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: Regiões Metropolitanas, Solo Criado, Zoneamento e Controle
Ambiental, Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.
8
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 7ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo. São Paulo, Malheiros
Editores, 1996.
134 Revista da PGM
toda a noção de solo criado está diretamente vinculada a função social da propriedade urbana,
indicando que não há um direito natural de construir e que o exercício do direito de construir
depende das regras das cidades. No caso brasileiro, depende da definição prevista pelos Planos
Diretores que são os instrumentos jurídicos que definem a função social da propriedade em
nosso país, a teor do que dispõe o art. 182 da Constituição Federal.
Tanto a outorga onerosa quanto a transferência do direito de construir somente tem
sentido se vinculado a uma concepção urbanística.
A outorga onerosa do direito de construir implica na fixação de áreas no Plano Diretor
nas quais o direito de construir poderá ser acima do coeficiente de aproveitamento9
. O
coeficiente pode ser único ou diferenciado e há necessidade de monitoramento do
adensamento , decorrente da utilização deste instrumento de intervenção urbanística, a
teor do que dispõe 0 § 3º, art.28 do Estatuto da Cidade. Nestas áreas em que pode ser
construído além do coeficiente, os interessados devem adquirir este direito de construir do
Município, sendo que os recursos auferidos com esta alienação tem utilização vinculada a
finalidades urbanísticas e ambientais.
Já a transferência do direito de construir implica na possibilidade do proprietário exercer
o direito de construir em outro local.
Depende de lei municipal e está vinculado a finalidade específica.
Ainda, pode ocorrer a alienação deste direito mediante escritura pública.Este instrumento
é extremamente relevante e se bem utilizado pode ser implementador de políticas públicas
estruturais das cidades. Em Porto Alegre, por exemplo, o pagamento das áreas para alargamento
viário decorrente da implantação da 3ª Perimetral se deu essencialmente com a transferência do
direito de construir.
Para ambos os instrumentos de intervenção urbanística acima elencados, alerta-se
que sua utilização precisa refletir uma concepção urbano-ambiental de desenvolvimento da
cidade. Utilizá-los de forma pontual e fragmentada é a antítese da sua concepção e pode, no
tempo, comprometer sua aplicação, por representar o anti-planejamento. Bairros cujo Plano
Diretor indica construções de baixa densidade e altura, por exemplo, não podem se socorrer
destes instrumentos para aumentar estes elementos do regime urbanístico. A visão
instrumental exige que o instrumento esteja a serviço da concepção de cidade e não a cidade
se adeque ao instrumento.
De qualquer sorte, para o fim deste estudo, importante destacar que tanto a outorga
onerosa quanto a transferência do direito de construir são instrumentos de intervenção
urbanística que, se bem aplicados, podem representar formas de financiamento de políticas
públicas urbano-ambientais, pois os recursos auferidos com a alienação do direito de construir
devem ser revertidos para finalidades urbano-ambientais, na forma do que dispõe o art. 31 e
art. 35 do Estatuto da Cidade.
9
Coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno, nos termos do §1º do art. 28 do
Estatuto da Cidade, Lei Federal No 10.257/2001
Nº 24 - Dezembro 2010 135
2.2. OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS
Na doutrina brasileira a utilização da nomenclatura Operações Urbanas foi
utilizada para identificar a relação entre Poder Público e iniciativa privada, na qual o
segundo aporta contrapartidas em troca possibilidade de um modelo urbanístico mais
flexível10
. Nos relatos de Maricato e Ferreira (2002) utilização de transferência de potencial
construtivo11
, aplicação de medidas mitigadoras e compensatórias no âmbito do
licenciamento ambiental12
e pequenas operações resultantes de acordos formais entre
Poder Público e a iniciativa privada, materializados em contratos, que geram recursos
diretos e indiretos, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro, estão englobadas neste
conceito.
Ao longo da história urbanística brasileira tivemos, também, as Operações
Interligadas de São Paulo, amplamente relatadas na doutrina e que influenciaram a redação
do Estatuto da Cidade, hoje em vigor. A Operação Urbana Consorciada regulada no estatuto
da Cidade e que nasceu a partir das experiências existentes tem requisitos próprios, que dão
o tom, estabelecem os requisitos, da relação entre o Poder Público e os particulares a ser
estabelecida.
Nesta quadra, a partir do advento do Estatuto da Cidade tem-se uma formulação
jurídica distinta, com princípios inerentes às Operações Urbanas Consorciadas. Exemplo
disso é a destinação dos recursos nas Operações interligadas de São Paulo. Lá, os recursos
podiam ser destinados para intervenções fora da área delimitada para a Operação. Aqui, por
força do que dispõe o Estatuto da Cidade, não há esta possibilidade. Os recursos devem ser
utilizados no âmbito e em benefício da própria Operação. Outro aspecto, é a cogência de
realização de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), instrumento que tem por função avaliar
a relação da cidade com o empreendimento e do empreendimento com a cidade. Do comando
que exige a elaboração prévia de EIV para a Operação Urbana Consorciada, decorre que este
estudo deve ser parte integrante do projeto de lei que propõe a Operação Urbana Consorciada.
Esta exigência é similar às hipóteses de alienação de bens imóveis que exigem laudo com
avaliação prévia do bem. Neste caso o laudo é um anexo do projeto que lei, cuja inexistência
implica na ausência de exame do respectivo projeto, em face da ausência de um pré-requisito
deste.
10
Nesse sentido ver experiências com Operações Urbanas relatas por MARICATO, Ermínia e FERREIRA, João Sette
Whitaker. Operação urbana Consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade?
In: OSORIO, Letícia Marques (org). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 215
11
Operação faria Lima, citada por Maricato e Ferreira
12
Relato instalação Shopping Center em Porto Alegre, citado por Maricato e Ferreira
136 Revista da PGM
As operações urbanas consorciadas13
estão definidas como um conjunto de intervenções
coordenadas pelo Poder Público, envolvendo diversos interessados, visando melhorias urbanas e
valorização ambiental. Para realizar uma operação urbana consorciada, faz-se necessária a
aprovação de lei específica, articulada com o plano diretor. São requisitos da lei: a forma de
controle da operação partilhado com a sociedade civil e a realização de estudo de impacto de
vizinhança, apontando os aspectos positivos e os negativos deles. Pode estar previsto na lei a
transferência de potencial construtivo no âmbito da operação, bem como certificados de potencial
adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento
das obras necessárias à própria Operação14
. Importante destacar que, em se tratando de lei
específica, afasta leis de gerais, a exemplo das leis de uso do solo que vigoram nas cidades15
.
A operação urbana consorciada do Estatuto da Cidade exige participação popular no
planejamento, gestão, acompanhamento e avaliação desta, sendo expressão do princípio da
democracia participativa na gestão urbano-ambiental. E, necessariamente como corolário de uma
operação urbana, que exige planejamento urbanístico, ambiental, econômico e social com todos
13
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações
consorciadas.
§ 1o
Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público
municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.
§ 2o
Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:
I – a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações
das normas edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;
II – a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente.
Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de operação urbana consorciada,
contendo, no mínimo:
I – definição da área a ser atingida;
II – programa básico de ocupação da área;
III – programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação;
IV – finalidades da operação;
V – estudo prévio de impacto de vizinhança;
VI – contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização
dos benefícios previstos nos incisos I e II do § 2o
do art. 32 desta Lei;
VII – forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil.
§ 1o
Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do inciso VI deste artigo serão aplicados exclusivamente
na própria operação urbana consorciada.
§ 2o
A partir da aprovação da lei específica de que trata o caput, são nulas as licenças e autorizações a cargo do Poder
Público municipal expedidas em desacordo com o plano de operação urbana consorciada.
14
Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo Município de quantidade
determinada de certificados de potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente
no pagamento das obras necessárias à própria operação.
§ 1o
Os certificados de potencial adicional de construção serão livremente negociados, mas conversíveis em direito de
construir unicamente na área objeto da operação.
§ 2o
Apresentado pedido de licença para construir, o certificado de potencial adicional será utilizado no pagamento da
área de construção que supere os padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite fixado
pela lei específica que aprovar a operação urbana consorciada.
15
Nesse sentido, CABRAL, Lucíola. Operação Urbana Consorciada: possibilidades e limitações. In Revista Magister de
Direito Ambiental e Urbanístico. V. 19 (ago/set 2008). Porto Alegre: Magister, 2005
Nº 24 - Dezembro 2010 137
aqueles envolvidos na operação – proprietários, possuidores, moradores, comerciantes etc. da
área atingida – temos a expressão do princípio da sustentabilidade urbano-ambiental. Operação
urbana, realizada na forma do Estatuto da Cidade, que não observe os princípios do Estado
Socioambiental, descumpre a finalidade para a qual foi criada.
Para além de um regime urbanístico mais flexível, efetivamente o seu resultado precisa
demonstrar as melhorias urbanísticas e ambientais, sob pena de estarem eivadas de ilegalidade.
2.2.1. CONTRAPARTIDAS
Contrapartida é a denominação atribuída pelo Estatuto da Cidade para estabelecer a valoração
de algo antes intangível e que passa a ter valor, na medida em que terá benefício direto ou indireto
com a realização da Operação Urbana Consorciada. Não é tributo nem preço público e também não
se confunde com as medidas compensatórias decorrentes do licenciamento ambiental.
Em geral, as contrapartidas se perfectibilizam em obras públicas vinculadas às finalidades
da Operação (vias, urbanização de praças, implantação de esgotamento sanitário, estação de
tratamento de esgoto etc.), destinação de bens imóveis no âmbito da Operação Urbana para
cumprir com as finalidades desta (criação de unidade de conservação), destinação de habitação
de interesse social e oferta de lotes a preço compatível com a renda da demanda habitacional
prioritária, ou contrapartida financeira, destinada à conta vinculada à Operação Urbana
Consorciada. O importante é que ocorra uma equação econômico-financeira que demonstre a
adequação e a compatibilidade entre o valor auferido com a Operação e a contrapartida ofertada.
2.2.2. PROBLEMAS JURÍDICOS RELACIONADOS COM AS CONTRAPARTIDAS
O histórico das Operações urbanas realizadas no Brasil dá conta de uma série de problemas
jurídicos relacionados ao valor da operação, da garantia do pagamento deste valor e da destinação
adequada desses recursos.
Por isso, é imprescindível que instrumentos jurídicos sejam incorporados à prática das
OU, a fim de que sejam uma forma de garantia jurídica quanto à execução desta. Há relatos, por
exemplo, de flexibilização de regime urbanístico, desde que fossem feitas melhorias viárias, mas
que no plano dos fatos não se realizaram. Contudo, sem estabelecer o quando, o como e com
qual valor esta pretensa contrapartida fica vazia, inclusive sem possibilidade de ser cobrada pelo
Poder Público. Se for melhoria viária, por exemplo, a área na qual a via pública será executada já
foi desapropriada? Se não foi, quem pagará pelo valor desta? Em que momento (prazo) deverá ser
feita a via e quais as condições (tamanho da caixa, tipo de pavimento etc.). Essas questões são
preliminares e devem compor e integrar a decisão que exige a contrapartida.
A contrapartida não pode nem ser vil, nem extorsiva. Precisa ser proporcional, razoável.
Além disso, precisa ser certa, líquida e exigível. Para tanto, tem-se usado os Termos de
Compromisso, previstos no art. 585, II, do CPC16
, que são uma forma de juridicamente atribuir
16
Código de Processo Civil.
138 Revista da PGM
um caráter contratual às parceiras estabelecidas pelo Poder Público com os particulares. Na forma
do CPC, estes Termos são título executivo extrajudicial, o que permite a sua execução, na hipótese
de descumprimento. As responsabilidades precisam estar claras e definidas nestes Termos; as
obrigações e os prazos para a sua implementação são requisitos para que possam ser cobradas
posteriormente.
Outra possibilidade é utilizar subsidiariamente a Lei Federal nº 11.079/04, que regra as
parcerias público-privadas no Brasil, sendo que as OU são uma espécie deste gênero. Aplica-se
essa lei naquilo que não for contrário ao que dispõe o Estatuto da Cidade sobre as OU.
É importante, ainda, ter presente que a valorização ambiental e melhorias sociais são
elementos intrínsecos à operação, sendo que a inexistência destes gera conseqüências jurídicas.
Ademais, flexibilizar não é desregrar, sendo que no Brasil o poder regulamentar não cria direitos.
Regime urbanístico é matéria de lei e não de regulamento, por isso, delegações completas na lei
são incompatíveis no sistema brasileiro.
Por último, o Plano da Operação é fundamento desta; não é mera declaração de intenções.
Os princípios vigem e muitas vezes derrogam regras isoladas.
2.3. ALTERAÇÃO DE USO PREVISTO NO PLANO DIRETOR
O Estatuto da Cidade tem como diretrizes a justa distribuição dos benefícios e ônus
decorrentes do processo de urbanização17
e a recuperação dos investimentos do Poder Público de
que tenha resultado valorização de imóveis urbanos, tendo em vista a necessidade da construção
de uma cidade para todos e com fruição de todos os cidadãos. A essência destes comandos decorre
do princípio da equidade. Na lição de Rosângela Cavalazzi do princípio da equidade derivam
outros dois: 1) a afetação das mais-valias do custo da urbanização e 2. A justa distribuição dos
benefícios e encargos/ônus decorrentes da atuação urbanística.18
Inserido neste contexto está expressamente previsto o pagamento de contrapartida em
decorrência da alteração de uso19
, tudo com base no Plano Diretor da cidade. Assim áreas de
expansão urbana, por exemplo, para serem transformadas em urbanas devem observar esta
contrapartida. Isto porque, o regime urbanístico será diferente. Em áreas urbanas há necessidade
de serviços públicos com maior intensidade (drenagem, esgoto, via pública), diferente da área de
expansão urbana, cuja essência é ser uma transição. O mesmo raciocínio se aplica à mudança de
uso da área rural para urbana, da área comercial para industrial, da área que não tem regime
urbanístico por ser funcional para área com regime urbanístico. De rural para urbana talvez seja
o exemplo mais gritante. O imóvel que tinha valor em hectare passa a ser valorado e vendido em
metro quadrado.
17
Art. 2º inc. IX e inc. XI
18
CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e
obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In Direito da Cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço
social urbano. COUTINHO, Ronaldo e BONIZZATO, Luigi, orgs. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
19
Lei Federal No 10.257/01, Art. 29. “O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso
do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”.
Revista PGM de POA - Miolo
Nº 24 - Dezembro 2010 139
Mas, não é diferente a definição de regime urbanístico para área originalmente sem regime
e afetada à finalidade específica (ex. estádio de futebol, porto, estaleiro, cemitério, etc). A indicação
de um regime urbanístico agrega valor ao imóvel, porque define o que é possível construir no
local.
No planejamento urbano é comum as alterações de uso e a existência de áreas sem
regime urbanístico que mudam de finalidade, porque a dinâmica da cidade assim exige ou porque
as oportunidades de negócio surgem. A cidade muda, cresce, se modifica, áreas antes sem valoração
econômica passam a ter valoração e ser importantes para o mercado. Por estes motivos o regime
urbanístico também deve mudar.
Reconhecendo que a cidade se modifica é que o legislador previu a necessidade cobrança
pela alteração de uso20
, na medida em que a propriedade, por força de alteração da lei municipal,
também muda seu preço, sendo mais valorizada. Neste sentido, os proprietários beneficiados por
alterações de uso e valorização monetária da propriedade por força de alteração da lei municipal
devem contribuir, pagar o valor previsto nas respectivas leis municipais. Este instrumento concretiza
o princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização21
3. PRINCÍPIO POLUIDOR-PAGADOR
Na experiência internacional o princípio do poluidor-pagador tem se perfectibilizado na
adoção do imposto verde. Aragão22
, contrariando este entendimento, sustenta que as “ecotaxas”
não são os únicos instrumentos de aplicação do princípio do poluidor-pagador. Ao desenvolver
seu raciocínio aponta que a origem do princípio poluidor-pagador (PPP) foi na economia. Todavia,
atualmente é um princípio normativo, para além da economia . Diz a autora:
“Pensamos, com efeito, que, longe de ser ele próprio um instrumentos
de política de ambiente, o PPP é um princípio normativo que fornece
critérios para a escolha de instrumentos de proteção do ambiente,
econômicos ou oputros, de acordo com uma certa orientação normativa
assumida, comprovadamente eficaz e justa”.
A obra da citada autora, tem por objeto de reflexão a comunidade européia. Aponta
que o poluidor-pagador “paga” de diversas formas e não somente por intermédio de tributos.
E este pagamento é uma obrigação, sendo que o Estado somente subsidiariamente pode fazê-
lo, pois a responsabilidade é do poluidor. Diz que os pagamentos a que os poluidores podem
20
Lei Federal 10.257/01. Art. 30. “Lei Municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a outorga
onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando:
I – a fórmula de cálculo para a cobrança;
II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;
III – a contrapartida do beneficiário.”
21
Art. 2º, inc. IX do Estatuto da Cidade
22
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do
ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 174.
140 Revista da PGM
estar sujeitos, podem se revestir de formas, dentre as quais pode ocorrer os investimentos em
bens (ex. poluidor obrigado a introduzir filtros ou isolamento), pagamentos em contrapartida
direta, lucros cessantes, etc.23
Aduz que o PPP “começou por ser apenas um princípio econômico, visando alcançar
a máxima eficácia na internalização dos custos, mas ascendeu posteriormente a princípio
geral de direito do ambiente, podendo considerar-se actualmente um princípio de ordem
pública ecológica”.24
No Brasil, por força do sistema tributário vigente, que é analítico, tipificado na Constituição
e com tributos previamente definidos, há dificuldade da adoção da experiência internacional.
Assim a pergunta que devemos nos fazer é se no Brasil há outras espécies de aplicação do
princípio poluidor-pagador alheias a órbita tributária, na forma sustentada por Maria Alexandra
de Souza Aragão. Entendemos que sim. Para refletir sobre o tema, importante ter presente que:
(a) no mundo contemporâneo a noção de esgotabilidade de recursos naturais que outrora eram
entendidos como infinitos atribui valor econômico a coisas que anteriormente estavam fora do
mercado; (b) a noção de direitos difusos e de meio ambiente como bem de interesse de uso
comum do povo (art. 225 da CF) exige uma profunda reflexão para os paradigmas que estão
sendo superados e a exigência de reinterpretação dos institutos jurídicos que pré-existiam, antes
da percepção destes novos paradoxos.
O valor econômico que os bens ambientais passam a ter devido ao seu escasseamento é o
primeiro ponto polêmico a ser examinado. O subsolo, por exemplo, por onde passa as ruas, começa
a ser utilizado para a colocação de uma série de infraestruturas (água, luz, esgoto, telecomunicações,
tv à cabo) de várias empresas. Todavia, este espaço é limitado por lençol freático, rochas, entre
outros aspectos físicos do que decorre o seu esgotamento e a necessidade de administrá-lo emerge
de forma evidente. Aqui claramente bem público que estava fora do mercado, que não tinha valor
econômico, passa a tê-lo. E, em nosso entendimento o pagamento para colocar as infra-estruturas
respectivas não é um tributo, mas um preço público decorrente desta nova realidade.
Já a água potável é um bem escasso já admitido por todos e que passa a ter valor econômico
e deve ser cobrada para ser utilizada. Há quem preconize que a cobrança prevista na lei nacional
dos Recursos Públicos é um tributo. Todavia, temos que nesta hipótese também trata-se de preço
público.
A transferência do potencial construtivo de uma área para outra na cidade e a outorga
onerosa do direito de construir são outros exemplos interessantes incorporados na nossa legislação
e na prática das cidades brasileiras que merecem reflexão acerca da natureza jurídica da respectiva
cobrança. Temos que nestas hipóteses a natureza é contratual, pois o particular para adquirir este
solo criado faz uma clara opção de aquisição. Não há compulsoriedade. É um ônus a ser assumido
por quem quer usufruir de maior coeficiente construtivo do que está previsto, tendo natureza
indenizatória.
23
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do
ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 171.
24
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do
ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 211.
Nº 24 - Dezembro 2010 141
Ainda, talvez o exemplo mais polêmico trazido à colação é natureza jurídica da
compensação ambiental prevista no art. 36, § 1º25
da Lei 9.985/2000, que cria o Sistema Nacional
das Unidades de Conservação. O Judiciário tem debatido a matéria, em face da provocação da
Confederação Nacional da Indústria que ajuizou Adin e a Associação Brasileira de concessionárias
de Energia Elétrica Mandado de Segurança visando afastar a referida cobrança. O argumento é
que trata-se de norma de natureza tributária, porque é compulsório, devendo ser pago em moeda
corrente e cujo valor deve ser previamente definido, por força do princípio da legalidade, não
podendo ficar a critério do órgão ambiental a sua fixação.26
Somos de opinião que a compensação
prevista no SNUC não tem natureza tributária. Trata-se de indenização paga antecipadamente,
que tem no princípio do poluidor-pagador o seu fundamento. Pode também ser entendido como
preço público decorrente da fruição de bem público de uso comum do povo (meio ambiente), da
mesma forma que os exemplos anteriores.
Temos que na dimensão atual, no tempo contemporâneo no qual os bens ambientais
possuem conotação distinta do período em que se pensava que eram inesgotáveis, o conceito de
preço público para sua utilização precisa ser redimensionado. Já, procurar enquadrá-los em
forma de tributo, não encontra espaço em nosso sistema. Primeiro, porque os tributos são dotados
de tipicidade e rigidez desde a Constituição não abrindo possibilidade para tributos novos. Segundo,
porque em nosso sistema notadamente o poluidor-pagador se perfectibiliza de forma diferente de
outros sistemas jurídicos com características distintas de sistema tributário e na forma de atuação
na política pública ambiental. Terceiro porque a opção do legislador brasileiro, nas leis que criaram
os institutos jurídicos antes mencionados, inspirados no princípio do poluidor-pagador foi exigir
destes o pagamento por intermédio de outras formas que não a tributária.
Socorrendo-nos novamente da lição de Maria Alexandra de Souza Aragão, temos que
nesta opção legislativa está a legitimação para as respectivas formas de cobrança. No dizer da
autora: “o PPP é também um princípio relativamente indeterminado, porque a sua formulação
não transmite com precisão o seu conteúdo, e daí que possam surgir dúvidas na sua
concretização legislativa. Ora, sendo os poderes públicos os destinatários diretos do PPP e os
poluidores apenas os seus destinatários indirectos, a intervenção concretizadora do legislador
deve servir para definir o âmbito subjectivo, o conteúdo, a extensão e os limites das obrigações
dos poluidores.”27
Foi isto o que ocorreu no Brasil. A mediação do Poder Legislativo resultou nas
leis que definem o percentual de compensação ambiental na Lei do Sistema Nacional das Unidades
de Conservação, a cobrança prevista pela Lei Nacional do Recursos Hídricos e a transferência de
25
Art. 36. “Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim
considerados pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo relatório
– EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do grupo de
Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei.
§ 1º. O montante de recursos s ser destinado pelo empreendedor para esta finalidade não pode ser inferior a 0,5% (meio
por cento) dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento, sendo o percentual fixado pelo órgão
ambiental licenciador, de acordo com o grau de impacto ambiental causado pelo empreendimento.”
26
Agravo de Instrumento Nº 2005.01.00.060479-0/DF, Processo de Origem 200534000186630
27
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política comunitária do
ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 213.
142 Revista da PGM
potencial construtivo onerosa prevista no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01. A nosso ver
e com base no exposto no presente estudo, não há óbice a esta formulação porque o princípio do
poluidor-pagador no Brasil assume outras formas que não a tributária.
4. MEDIDAS COMPENSATÓRIAS NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Após a análise dos impactos ambientais, constatada a possibilidade de execução do
empreendimento, deverão ser definidas medidas mitigadoras para implementação do
empreendimento. Tais medidas devem constar na Licença Ambiental. Estas medidas decorrem
da análise dos impactos efetuada pelo órgão ambiental na fase anterior. São assim identificadas
por Édis Milaré:28
Definição de medidas mitigadoras. Busca-se aqui explicitar as medidas
que visam a minimizar os impactos adversos identificados e quantificados
no item anterior, as quais deverão ser apresentadas e classificadas quanto:
- à sua natureza preventiva ou corretiva, avaliando-se, inclusive, a
eficiência dos equipamentos de controle de poluição em relação aos
critérios de qualidade ambiental e aos padrões de disposição de efluentes
líquidos, emissões atmosféricas e resíduos sólidos;
- à fase do empreendimento em que tais medidas deverão ser adotadas:
planejamento, implantação, operação e desativação, e para os casos de
acidentes;
- ao fator ambiental a que se destinam: físico, biológico ou sócio-
econômico;
- ao prazo de permanência de suas aplicações: curto, médio ou longo;
- à responsabilidade pela implementação: empreendedor, Poder Público
ou outros;
- ao seu custo.
Os impactos adversos que não podem ser evitados ou mitigados deverão ser compensados,
de modo que a sociedade seja retribuída pela utilização do bem ambiental. São exemplos de
medidas mitigadoras a implantação ou a ampliação de vias públicas se ocorrer impacto no trânsito,
a construção de obras de drenagem, na hipótese de alagamentos, a execução de obras viárias ou
28
MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, São Paulo, 2000.
Nº 24 - Dezembro 2010 143
de engenharia de tráfego, entre outras peculiares ao meio urbano. Como medidas compensatórias
a plantação de espécies vegetais, a contribuição para o fundo de meio ambiente, etc.
Essencialmente as medidas compensatórias estão ligadas a noção de fruição de um espaço
já consagrado e constituído e cujo esgotamento vem ocorrendo paulatinamente. Em suma, quem
utiliza este espaço, que é a cidade, contribui. Evidentemente que esta contribuição deve ser
proporcional e motivada ao grau de potencial risco ou de degradação da respectiva atividade ou
empreendimento. A compensação não é monetariamente ou percentualmente igual para todos
os empreendimentos ou atividades e depende do que está consignado na lei respectiva. Todavia,
o que deve ficar claro, é que há fundamento para aplicação destas medidas desde que sejam
adequadas e proporcionais.
5. PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
A crise do Estado nos anos 90 levou a modificação do modelo de gestão estatal
concentrado, gerando diversas formas de participação social de outros setores nas tarefas públicas.
Sem entrar no mérito do que isto tem significado para o Estado brasileiro, tem-se que as
parceiras público-privadas em sentido amplo representam a forma jurídica desta participação.
Sundfeld29
, alerta que há uma base legal múltipla destas denominadas parceiras público-
privadas, sendo a lei de concessão a mais conhecida delas. No âmbito urbanístico a expressão das
parceiras são os instrumentos acima examinados.
O mesmo autor cita que o que conhecemos por lei das PPPs , não é um lei geral de
parceiras, mas uma lei que regula duas espécies: a concessão patrocinada e a concessão
administrativa, que não estavam reguladas na lei de concessão . E define:
“Em sentido amplo, PPPs são os múltiplos vínculos negociais de trato continuado
estabelecidos entre a Administração Pública e particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob
a responsabilidade destes, de atividades com algum coeficiente de interesse geral (concessões
comuns, patrocinadas e administrativas; concessões e ajustes setoriais; contratos de gestão com
OSs; termos de parcerias com OSCIPs; etc). Seu regime jurídico está disciplinado nas várias leis
específicas.
Em sentido estrito, PPPs são os vínculos negociais que adotem a forma de concessão
patrocinada e de concessão administrativa, tal qual definidas pela Lei federal 11.079/04. Apenas
estes contratos sujeitam-se ao regime criado por essa Lei.”
Para o fim deste estudo, importa salientar que as PPPs são importantes instrumentos
incorporados a legislação brasileira para viabilizar e contratualizar a realização de tarefas públicas,
de serviços e obras públicas por particulares. As PPPs adentram no sistema jurídico com regras
próprias, sem, contudo, se afastar do sistema. Representam também, um importante instrumento
na perspectiva do financiamento das cidades, sem, contudo, implicar em completa desoneração
do Estado na realização das tarefas públicas, mas parceria, por suas diversas formas, na consecução
destas.
29
SUNDFELD, Carlos Ari, coord. Parceiras Público-Privadas. São Paulo, Malheiros editores, 1ª edição, 2ª tiragem, 2007
144 Revista da PGM
CONCLUSÕES
Estamos em meio a um modelo de esgotamento do sistema tributário brasileiro, na
medida em que notoriamente paga-se uma enorme gama de tributos diretos e indiretos. Aumentar
ou criar novos tributos representa um desgaste para o governante.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento de que há outras formas não tributárias de
financiamento das cidades é uma realidade jurídico e política que vem se afirmando
paulatinamente.
Os gestores ainda não utilizam os instrumentos previstos no Estatuto da Cidades com a
ostensividade que deveriam. Muitos são os fatores que contribuem. Desconhecimento e dificuldade
com inovações são dois deles. Todavia, um terceiro é o apego à defesa da propriedade que
culturalmente faz parte da conduta dos cidadãos, dos gestores e dos servidores públicos.
Compreender que a função socioambiental da propriedade no Brasil implica um revisitar de
conceitos e pré-compreensões que permeiam as aprovações urbanísticas municipais faz-se
necessário. Perceber que os elementos do regime urbanístico implicam valor econômico, que a
cidade tem um valor intrínseco e que o modelo de esgotamento dos recursos naturais traz inovações
e exigências estruturais, faz parte deste revisitar de conceitos. Pagamento pela mudança de uso,
valor econ6omico do regime urbanístico, outorga onerosa do direito de construir, transferência
de potencial construtivo, operações urbanas consorciadas, são instrumentos inovadores e que
dependem de concreção no âmbito municipal.
Neste estudo examinamos instrumentos e institutos que podem e devem ser aplicados
pelos gestores como forma de financiamento das políticas públicas nas cidades, a partir da
compreensão e dos princípios do Estado Socioambiental que está densificado na legislação
infranconstitucional, em especial no Estatuto da Cidade.
Todavia, muito pouco adianta este elencar de instrumentos se o gestor e os servidores
que aplicam, concretizam a norma, usarem “roupa nova” para práticas velhas. A grande essência
destes instrumentos é a sustentabilidade das cidades que tem como fio condutor a dignidade da
pessoa humana e como meta cidades ambientalmente mais adequadas. A utilização isolada e
fragmentadamente dos instrumentos é a antítese da construção das cidades sustentáveis que
precisamos construir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O Princípio do Poluidor Pagador: pedra angular da política
comunitária do ambiente. Universidade de Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 213.
CABRAL, Lucíola. Operação Urbana Consorciada: possibilidades e limitações. In Revista Magister
de Direito Ambiental e Urbanístico. V. 19 (ago/set 2008). Porto Alegre: Magister, 2005
CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico
Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In Direito da Cidade:
Nº 24 - Dezembro 2010 145
novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. COUTINHO, Ronaldo e
BONIZZATO, Luigi, orgs. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
DE CESASE, Claudia e CUNHA, Eglaísa Micheline Pontes Cunha. Financiamento das Cidades:
Instrumentos Fiscais e de política Urbana – Seminários Nacionais. Brasília: Ministério das
Cidades: 2007
GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: Regiões Metropolitanas, Solo Criado, Zoneamento e Controle
Ambiental, Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1983.
MARICATO, Ermínia e FERREIRA, João Sette Whitaker. Operação urbana Consorciada:
diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade? In: OSORIO, Letícia
Marques (org). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades
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MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, São Paulo, 2000.
SUNDFELD, Carlos Ari, coord. Parceiras Público-Privadas. São Paulo, Malheiros editores, 1ª edição,
2ª tiragem, 2007
PRESTES, Vanêsca Buzelato (coord). Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Fórum,
2006
______________e VIZZOTTO, Andrea. Direito Urbanístico. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009
146 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 147
Revista da
Procuradoria-Geral
do Município de Porto Alegre
Pareceres e
Informações
148 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 149
Valor da FG de servidor cedido ao
Legislativo Municipal
Edmilson Todeschini
150 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 151
PARECER Nº 1156/2010
PROCESSO Nº 4.001029.08.8
INTERESSADA: Coordenação Jurídica do DEMHAB
ASSUNTO: Valor da FG de servidor cedido ao Legislativo Municipal
“Servidor autárquico cedido para a Câmara Municipal com ônus para
a origem e com complementação remuneratória pelo cessionário.
Valor distinto da Função Gratificada de nível “5” entre cedente e
cessionário. Impossibilidade de incorporação de valor distinto que o
correspondente na autarquia de origem. Inviável a aplicação híbrida
dos planos de carreira do DEMHAB e da Câmara. Possibilidade de
revisão do nível da FG, considerando as atividades efetivamente
exercidas no órgão cessionário.
1 – Relatório e análise de precedentes
A Coordenação Jurídica do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB consultou
esta Procuradoria objetivando equacionar a divergência entre seus pronunciamentos técnicos e o
parecer emitido pelo Conselho Municipal de Administração de Pessoal – COMAP, acerca do mesmo
caso concreto.
A matéria enfrentada pelo presente parecer é a (im)possibilidade jurídica de um servidor
autárquico, cedido à Câmara Municipal, incorporar Função Gratificada de nível “5”, da autarquia,
com o valor que corresponde ao nível “5” da Câmara.
Em sede de análise de precedentes, registra-se que a única manifestação jurídica emitidas
por esta Procuradoria Municipal, enfrentando a questão semelhante à presente foi a informação
de fls. 109-114, subscrita pelo Procurador Marcelo Dias Ferreira. Os Pareceres da PGM de nºs
964/1997 e 975/1997, referidos nos autos do expediente administrativo em epígrafe, tratam de
matérias distintas do presente, como será comentado adiante.
Findo este breve relatório, passa-se a responder a consulta.
2 – Diferenças em relação às manifestações da
PGM invocadas como paradigma
No que pese o interessado ter invocado a Sra. Jane de Araújo Schenkel como paradigma,
as duas situações são deveras distintas. Naquela, não se fazia presente qualquer cedência, nem
pedido de aplicação híbrida de Planos de Cargos e Funções de distintos entes da administração
municipal. Referido caso tratava tão somente da possibilidade de o servidor investido em cargo de
nível médio incorporar vantagem pecuniária exclusiva do nível superior.
152 Revista da PGM
Também é inconfundível com o tratamento dispensado a Luiz Carlos Bertotto, pois referido
parecer tratou da possibilidade da contagem do tempo de exercício de cargo comissionado para
fins de incorporação de vantagem vencimental.
Por fim, em relação à servidora Maria Cristina Utzig Piovezan, a situação jurídica
enfrentada foi a possibilidade de compatibilização das atividades exercidas na entidade
cessionária, em relação àquelas da cedente, para fins de cômputo do tempo necessário á
incorporação de gratificação.
3 – Incomunicabilidade entre os planos de carreira do
DEMHAB e da CMV
Embora o Estatuto de Servidores Municipais adotado pela Câmara Municipal de Porto
Alegre seja o mesmo das administrações centralizada e autárquica do Poder Executivo, eles adotam
Planos de Classificação de Cargos e funções distintos. No DEMHAB a matéria é regrada pela Lei
6.310/88, que “Estabelece o Plano de Carreira dos Funcionários do DEMHAB”. Já na Câmara
Municipal está tratada pela Lei nº 5.811/86.
Ora, quando do provimento de determinado cargo público, seja pela forma originária
(nomeação), seja por qualquer das modalidades derivadas (transposição, readaptação, etc.), o
servidor vincula-se integralmente à legislação do ente em que o cargo está inserido. Significa
afirmar que o plano de carreira de um ente, de um órgão ou de uma pessoa jurídica não se
comunica com o de outro, nem para o estabelecimento de vantagens, nem para a atribuição de
outras obrigações.
Assim, o servidor Franco Sessa, vinculado ao DEMHAB, fica inteiramente excluído do
abrigo legal dos servidores da Casa Legislativa, no que pese exercer atividades similares aos
servidores desta e distintas daquelas desempenhadas pelos servidores do ente de origem.
Assim, eventual cedência não implica no rompimento do vínculo com o órgão de origem,
nem no estabelecimento de liame com o ente cessionário. A pretensão do estabelecimento de
novo vínculo funcional, em decorrência da designação para ente ou órgão diverso daquele em
que o servidor está investido, evidenciaria lesão ao constitucional princípio do concurso público,
dentre outros. A título exemplificativo, veja-se o acórdão que segue:
“SERVIDOR PÚBLICO. MAGISTÉRIO. FUNÇÃO GRATIFICADA.
INCORPORAÇÃO. LEI-CRISTAL Nº 370/95. POSSIBILIDADE. IMPLEMENTO
DO REQUISITO TEMPORAL DEMONSTRADO. CEDÊNCIA DO MUNICÍPIO
PARA O ESTADO QUE NÃO AFASTA O VÍNCULO COM O MUNICÍPIO.
A incorporação de Função Gratificada aos vencimentos da servidora
encontra amparo na Lei -Cristal nº 370/95 e exige a implementação do
lapso temporal que restou comprovado.
A cedência da servidora municipal para exercer a função de direção e
vice-direção em escola estadual não a desvincula do Município de Cristal,
inclusive pelo fato de a percepção dos vencimentos ter sempre se dado
pelos cofres municipais.
Nº 24 - Dezembro 2010 153
Manutenção da sentença de procedência.
APELAÇÃO IMPROVIDA.”
(Ap. Cív. 70013456983, 3ª C.C., TJRS, Rel. Des. Nelson Antonio Monteiro
Pacheco, Julgado em 28/9/2006)
Maior flexibilidade comportaria a situação daqueles servidores que prestaram concurso
unificado para a centralizada e para as autarquias, podendo ser nomeados originalmente em
qualquer delas, conforme a vaga existente quando do provimento do cargo. Tal situação legitima
a migração dos servidores de um ente para o outro, observado o rol daqueles para os quais
prestou concurso. No que pese a singularidade da situação aqui enfrentada, necessário ponderar
que inclusive nesta hipótese é inadmissível a aplicação híbrida de 2 distintos planos de carreira
para os servidores incorporarem vantagens.
Ocorre que o caso em tela, o servidor Franco Sessa prestou concurso público que não o
habilitava a eventual nomeação originária na Câmara Municipal. Por conseguinte, não restou
habilitado a ingressar na Câmara via transposição. Logo, a incomunicabilidade do Plano de Cargos
da Câmara com o do DEMHAB é ainda mais sólida que a habitualmente verificada no caso daqueles
servidores que prestaram concurso unificado.
A admitir-se a possibilidade de os servidores cedidos incorporarem as vantagens
distintas da legislação a que estão vinculados, com abrigo legal na legislação do cessionário,
todos os servidores federais e estaduais, assim como os municipais de outros entes, quando
cedidos ao Município de Porto Alegre, acabariam incorporando as vantagens exclusivas do
cessionário. Seus atos de inativação registrariam parcelas com códigos e valores inexistentes
do órgão de origem, o que tenderia a ensejar a negativa de registro das aposentadorias pelo
Tribunal de Contas.
4 – Legalidade da despesa Pública
O valor da FG 5, do DEMHAB, deve ser pago, necessariamente, pela tabela de valores
válidos para aquela autarquia. Pelo constitucional princípio da legalidade, o código que lhe
corresponde só abriga o dispêndio de determinado valor mensal.
Imprescindível considerar que cada código de cargo, de gratificação, de auxílio, de vale e
de todas as demais espécies remuneratórias e indenizatórias têm a exata correspondência em
valor pecuniário, não podendo abrigar o pagamento de valor diverso.
Então, se o código de determinada FG só autoriza o erário gastar determinado valor mensal,
o eventual pagamento de montante maior que o autorizado implica na efetivação de despesa
ilegal e, por conseguinte nula. Tal ilegalidade, se levada a cabo, enseja a responsabilização
patrimonial tanto do autorizador quanto do beneficiário.
Assim, a eventual utilização de um código autorizador de determinado valor pecuniário
para abrigar o pagamento de maior monta pecuniária implicará no ferimento de princípio norteador
do Direito Financeiro. Por isso, o pedido do servidor há de ser negado.
154 Revista da PGM
5 – Revisão do nível da função gratificada
No que pese a impossibilidade de conferir à FG de nível 5, do DEMHAB, valor maior que
aquele que lhe corresponde na referida autarquia, apresenta-se viável, para caso corrente a
aplicação de solução diversa.
As atividades descritas pela Câmara Municipal, como efetivamente desempenhadas pelo
servidor Franco Sessa, no exercício da função gratificada, se fossem desempenhadas na autarquia
ensejariam a percepção da “FG 6”, conforme elementos informativos constantes da fl. 125, nos
seguintes termos:
“Conforme solicitado à fl. 123, as atividades desempenhadas pelo servidor
FRANCO SESSA, na Câmara Municipal de Porto Alegre, descrita às fls.
124, constituem atribuições, se exercidas nesse Departamento, ao Cargo
de Assessor de Desenvolvimento e Gestão (2.4.2.6) correspondente a
uma FG – Nível 6, conforme o que consta no Regimento Geral, do
Departamento Municipal de habitação – DEMHAB, Decreto nº 14239, de
16/07/2003.”
Por tais razões, endossando a manifestação jurídica de fls. 109-114, entende-se possível,
à luz da primazia da realidade fática em relação aos formalismos, deferir ao servidor a incorporação
de “FG 6”, com o valor que lhe corresponde no DEMHAB.
6 – Conclusões
1ª – Os Planos de Carreira ou Planos de Cargos e Funções dos diversos entes ou pessoas
jurídicas que integram o Município de Porto Alegre são incomunicáveis entre si para fins concessão
de vantagens funcionais;
2ª – A cedência de servidor não lhe confere a incorporação das vantagens do Plano de
Carreira do cessionário, se distintas, tanto no nível como no valor, das gratificações previstas na
legislação que rege a relação funcional ente de origem;
3ª – Impossível incorporar FG de nível “5”, do DEMHAB com valor a maior em relação
àquele que lhe corresponde no ente de origem, em razão da legalidade da despesa pública e dos
princípios do Direito Financeiro;
4ª - Possível a revisão do nível da FG do servidor para o “Nível 6”, de modo a que ela
abrigue as atividades por ele exercidas no órgão cessionário.
É o parecer.
À superior consideração.
Porto Alegre, 3 de dezembro de 2009.
Nº 24 - Dezembro 2010 155
EDMILSON TODESCHINI
Procurador do Município
Matr. 39335.9 – OAB/RS 31.344
HOMOLOGAÇÃO
HOMOLOGO o Parecer nº 1156/2010, da lavra do Procurador Edmilson Todeschini,
que versa acerca da possibilidade de um servidor autárquico, cedido à Câmara Municipal,
incorporar Função Gratificada de nível “5” da autarquia, com o valor que corresponde ao nível
“5” da Câmara. Conclui-se que: 1) os planos de carreira e de cargos dos diversos entes ou pessoas
jurídicas que integram o Município são incomunicáveis entre si para fins de concessão de vantagens
funcionais; 2) a cedência de servidor não lhe confere a incorporação das vantagens do plano de
carreira do cessionário, se distintas, tanto no nível como no valor, das gratificações previstas na
legislação; 3) impossibilidade de incorporar FG de nível “5”, do DEMHAB, com valor a maior em
relação àquele que lhe corresponde no ente de origem; e 4) possibilidade de revisão do nível da
FG do servidor para o nível “6”, de modo a que ela abrigue as atividades por ele exercidas no
órgão cessionário.
Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de
Pessoal, Contratos e Serviços Públicos; Procuradoria de Pessoal Estatutário e à Assessoria Jurídica
do DEMHAB estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.
PGM, 06 de abril de 2010.
João Batista Linck Figueira
Procurador-Geral do Município
156 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 157
Concurso Público nº 333 - Biólogo
Alexandra Cristina Giacomet Pezzi
158 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 159
PARECER Nº 1157
PROCESSO Nº 1.050971.09.3
INTERESSADA: Coordenação da Coordenadoria Geral de Vigilância em
Saúde (CGVS) da Secretaria Municipal de Saúde
ASSUNTO: Concurso Público nº 333 - biólogo
Concurso público para provimento de vagas de biólogo. Edital de
Abertura nº 248/1998. Segunda etapa do certame anulada por
decisão judicial. Chamamento dos aprovados para nova
apresentação dos títulos. Alteração da ordem classificatória. Nova
homologação, tornada pública em 09 de julho de 2009.
Questionamento quanto ao prazo de validade.
A CGVS solicitou que a Procuradoria do Município de Porto Alegre estude a possibilidade
de nomeação de três biólogos dentre os aprovados em concurso público realizado em 1998.
Esse certame, de número 333, teve, por força de decisão judicial, anulada a sua
segunda etapa.
Consta da sentença, referente aos processos nº 100713602, autuação atual nº
1.05.21959628 (ação declaratória) e 100605311 (cautelar inominada), ambas movidas
exclusivamente pela candidata Simone Portela de Azambuja:
“Pelo expendido JULGO PROCEDENTES a ação ordinária e cautelar
inominada, e declaro nula a segunda etapa do concurso nº 333/98,
referente à prova de títulos, para biólogo, devendo o ato ser refeito,
tornando definitiva a liminar deferida. (...) Porto Alegre, 20 de julho de
1999. Eliziana da Silva Perez, Juíza de Direito Substituta.”
Contra a decisão o Município interpôs todos os recursos possíveis e, por fim, uma ação
declaratória de ineficácia (da sentença), sob o argumento de que não restou observada norma
processual de caráter cogente que determina a inclusão na lide dos litisconsortes necessários, a
teor do artigo 47, caput, do Código de Processo Civil.
Essa ação foi julgada extinta, com julgamento do mérito, nos termos do artigo 269, inciso
IV, do CPC, não tendo sido reformada pelos sucessivos recursos interpostos pelo ente público.
Foi então determinado que o Município cumprisse integralmente o decisum, sob pena
de multa diária.
Por meio do Edital nº 168, publicado no Diário Oficial do Município de 16 de dezembro
de 2008, todos os candidatos habilitados à 2ª etapa foram convocados a reapresentarem os títulos
que possuíam naquela data.
160 Revista da PGM
A renovação do ato implicou, conforme a Coordenação de Seleção e Ingresso da Secretaria
Municipal de Administração, pequenas alterações na ordem classificatória, tendo sido lavrado
novo edital de homologação final, publicado no DOPA de 10 de julho de 2009.
Tal situação, deveras sui generis, suscitou questionamentos quanto ao prazo de validade
do concurso, em face do novo ato homologatório.
A carência de biólogos por parte da Administração Municipal é permanente, inclusive para
atender às novas atribuições da Equipe de Vigilância em Saúde Ambiental e do Trabalhador (EVSAT)
e, segundo consta do expediente nº 001.033936.09.9, ao programa “Minha Casa, Minha Vida”.
Não existe, conforme a Coordenação de Seleção e Ingresso da Secretaria Municipal de
Administração, outro concurso em andamento para provimento de cargos de biólogo. Na verdade,
desde o concurso público nº 333, de 1998, nenhum outro foi realizado com essa finalidade,
sendo compreensível o interesse manifestado por Secretarias de aproveitamento da reserva técnica
daquele certame.
Contudo, se é certo que as necessidades públicas devem ser atendidas e que o serviço
público não pode sofrer solução de continuidade1
, também não resta dúvida de que o
equacionamento da questão, nos termos preconizados, reclama cautela, a fim de que os novos
atos de admissão não venham a ser impugnados pelo Tribunal de Contas.
O concurso público nº 333, é importante que se diga, contou com 135 candidatos aprovados
e permaneceu válido, em virtude de sua prorrogação, até 21 de fevereiro de 2003.
Nesse período, foram nomeadas vinte e quatro (24) pessoas, cuja boa-fé não foi objeto
de discussão e que tiveram, por isso mesmo, preservado o seu vínculo com o Município, para
todos os fins.
Destas, apenas a 21 e a 22ª tiveram a sua situação alterada devido ao refazimento da
prova de títulos, passando para a 56ª e 39ª colocação, respectivamente. No entanto, desistiram da
vaga, como comprovado nos autos pela Secretaria Municipal de Administração, pelo que a situação
restou equacionada. Portanto, não se há que falar em preterição de candidatos.
Caso autorizado, as nomeações recomeçariam do 22º lugar, considerando-se agora a
ordem instituída pelo Edital nº 125, de 09 de julho de 2009.
A questão se coloca é: pode a Administração Municipal atender necessidades atuais de pessoal
por meio da nomeação de candidatos aprovados em concurso público realizado em 1999, segundo
regramento adequado àquele contexto2
? Em caso positivo, qual o prazo aplicável às nomeações?
Não se ignora que a Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso III, prescreve que “o
prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual
período”.
In casu, já se deu a fluência desse prazo, com a nomeação de candidatos segundo a
necessidade e as possibilidades orçamentárias da Administração Pública na época dos fatos.
1
"O serviço público deve ser prestado de maneira contínua, o que significa dizer que não é passível de interrupção. Isto
ocorre pela própria importância de que o serviço público se reveste, o que implica ser colocado à disposição do usuário
com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e oportunidade.” BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito
administrativo. 2. ed.. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 165.
2
Quanto ao número de cargos vagos, que era de nove (09), atribuições legais, etc.
Nº 24 - Dezembro 2010 161
Ao pedido da CGVS a Assessoria Jurídica da SMA respondeu, em duas oportunidades, o
seguinte:
“4. Quanto ao prazo de validade do concurso, como a homologação final
foi refeita através do Edital nº 125, em razão de decisão judicial já
explicitada, abriu-se novo prazo de validade para o Concurso nº 333.
(...)
Importante salientar, no entanto, que, embora o concurso em questão
esteja válido até 09/07/2011, o Município não tem o dever de prorrogar
o prazo por igual período, podendo assim proceder se houver interesse
da Administração da admissão dos candidatos, conforme disponiblidade
orçamentária,...”
“5. O novo rol de classificados, seguido da conseqüente nova homologação
final, aplacou o prazo de validade do concurso, cujo encerramento,
conforme o item 13 do Edital nº 248/1998, acontecerá em 10 de julho
de 2011, isso considerando a hipótese de não se admitir a prorrogação
automática, recomendação que fiz verbalmente à Secretária de
Administração e à Supervisora de Recursos Humanos”
Em vista dessas manifestações, a Secretária Municipal de Administração determinou, em
06 de abril de 2010, nos autos do processo nº 1.033936.09.9:
“Assim, estando válido o aludido concurso – ao menos, até 10 de julho
de 2011 -, determino sejam tomadas as providências para atendimento
dos pedidos de nomeação de biólogos, de acordo com o rol de classificados
do Edital nº 125, publicado na Edição nº 3557, no dia 10 de julho de
2009, do Diário Oficial de Porto Alegre.”
Com o devido respeito, adoto posição em sentido contrário.
Por primeiro: O comando sentencial se limitou a declarar a nulidade da segunda etapa do
aludido concurso e a determinar a repetição do ato.
Tanto é assim que, ao pedido da autora, Simone Portela de Azambuja, nos autos do processo
1.05.2195962-8, de que o juízo determinasse ao Município, de forma expressa, tendo em vista a
literalidade da claúsula 13 do Edital nº 248 e a existência de reserva técnica, que a validade do
concurso é de dois (02) anos a partir da publicação da homologação final, ocorrida em 10 de
julho de 2009, sendo ainda passível de prorrogação uma vez, por igual período, foi proferido
despacho no seguinte sentido:
“Vistos. Incabível o pedido das fls. 359-60, pois diverso do que concedido
à autora no julgamento da ação”.
162 Revista da PGM
Em decorrência, entendo que a anulação judicial da prova de títulos não impõe a
reabertura do prazo de validade do concurso, extrapolando o limite constitucional de quatro
anos (dois mais dois). A referida decisão visou apenas garantir o chamamento de candidato
que eventualmente tenha tido a sua nota majorada e que não se encontrava no rol de
nomeados.
Outro fundamento, ainda que de menor importância, é o provável desinteresse na vaga
por parte dos candidatos subseqüentes, dado o tempo decorrido. Isso é o que demonstra a
experiência, sobretudo da SMA, na condução de concursos públicos.
Em assim sendo, as vagas de biólogo porventura existentes deverão ser supridas por
meio de novo concurso público, cuja realização recomendo, em caráter de urgência.
À apreciação superior.
Procuradoria de Pessoal Estatutário, 10 de maio de 2010.
Alexandra Cristina Giacomet Pezzi
Procuradora.
OAB/ RS 52.989
HOMOLOGAÇÃO
Homologo o Parecer nº 1157/2006, da lavra da Procuradora Alexandra Giacometti Pezzi,
que versa acerca da impossibilidade de prorrogação de prazo em concurso público para provimento
de cargos do quadro efetivo do Município em decorrência da decisão judicial que determina o
refazimento de etapa do certame, devendo prevalecer no caso concreto o regramento constitucional
de vigência máxima dos concursos públicos limitado a quatro anos (dois anos,prorrogáveis por
mais dois anos).
Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta
de Pessoal, Contratos e Serviços Públicos: à Procuradoria de Pessoal Estatutário; e à Secretaria
Municipal da Administração, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos
similares.
PGM, 01 de junho de 2010.
César Emílio Sulzbach
Procurador-Geral do Município, em exercício.
Nº 24 - Dezembro 2010 163
Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/
2000 e Decreto Nº 5.296/2004
Vanêsca Buzelato Prestes
164 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 165
PARECER Nº 1159/2010
PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº 002.323798.00.2.05882
INTERESSADO: CADAHAP/ Coordenação
ASSUNTO: Normas sobre acessibilidade. Lei Federal Nº 10.048/2000 e
Decreto Nº 5.296/2004
Acessibilidade universal. Conteúdo da Ordem urbanística.
Direito difuso. Lei Federal Nº 10.048/2000. Norma geral que se
aplica ao Município. Decreto Federal Nº 5.296/04. Programa
Minha Casa, Minha Vida. Incidência da Legislação no processo
de aprovação urbanística. Habitação de Interesse Social. Regras
específicas previstas no art. 28 do Decreto Federal Nº 5296/04.
Interpretação inc. II do art. 28. Diferença entre unidades
acessíveis no piso térreo e todas unidades do piso térreo
acessíveis. Inexistência de percentual para exigência de
acessibilidade nas unidades habitacionais destinadas à
habitação de interesse social na norma existente. Necessidade
de identificar no projeto as unidades acessíveis do piso térreo.
Precedentes PGM. Informação PUMARF 320/09.
Por designação do Procurador Geral, tenho participado das reuniões da CADHAP, Comissão
de Aprovação de empreendimentos destinados a habitação interesse social, no Município de Porto
Alegre.
Esta Comissão foi constituída para dar conta da demanda habitacional prioritária,
especialmente decorrente do Projeto Minha Casa, Minha Vida que destina uma série de recursos
federais, repassados pela Caixa Econômica Federal, para habitação popular.
Uma das questões que vem sendo debatidas e que geraram dúvidas quanto a regra a ser
aplicada decorre das normas de acessibilidade. Segundo o representante da SEASIS (Secretaria
Especial de Acessibilidade do Município de Porto Alegre) na Comissão todas as habitações do
pavimento térreo deveriam ser acessíveis universalmente, o que implica em padrões edilícios
distintos, desde o tamanho das portas, até a configuração do banheiro. A aplicação a todas as
habitações do pavimento térreo implicará no aumento do custo e na diminuição das unidades
habitacionais.
Por sua vez, a Caixa Econômica Federal informa que aplica a exigência que consta no
Estatuto do Idoso, o qual destina 3% das habitações dos empreendimentos aos idosos1
.
1
Art. 38. Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, o idoso goza de prioridade na
aquisição de imóvel para moradia própria, observado o seguinte:
I – reserva de 3% (três por cento) das unidades residenciais para atendimento aos idosos;
II – implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;
III – eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso;
IV – critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposentadoria e pensão.
166 Revista da PGM
Frente a dúvida sobre qual a exigência a aplicar a Coordenadora da CADHAP enviou consulta
à PGM questionando este ponto e salientando que na demanda prioritária não se faz razoável ter
exigência maior do que aquelas imputadas à cidade formal.
À época da consulta a signatária exarou a Informação PUMARF Nº 320/09, para esclarecer
os pontos que causavam a dúvida. Por ora, retorna o expediente com a seguinte solicitação: “
Solicitamos que a Informação PUMARF 320/09 possa ser transformada em Parecer-PGM, a
fim de dar respaldo jurídico ao trato do tema “ acessibilidade nos empreendimentos Minha
Casa, Minha Vida” .
Em face desta solicitação o expediente foi novamente distribuído à signatária em 22.01.10.
É o relatório.
A questão da acessibilidade universal compõe o conteúdo de direito difuso integrante da
ordem urbanística. Nesta perspectiva deixa de ser um problema individual e passa a ser tema da
coletividade, problema e responsabilidade de todos.
A noção de acessibilidade nasce da necessidade de inclusão social das pessoas portadoras
de deficiência2
, inseridas nas Constituições democráticas que tem como fio condutor a dignidade
da pessoa humana e corolário a inclusão social e a universalidade das políticas públicas. Todavia,
em que pese ter se originado na necessidade dos portadores de deficiência hoje também contempla
aqueles com mobilidade reduzida que não necessariamente são portadores de deficiência ou
com deficiência. Na categoria mobilidade reduzida estão os idosos.
Densificando os dispositivos constitucionais e as normas integradas ao ordenamento
jurídico brasileiro decorrentes da firmatura e incorporação de Tratados Internacionais está em
vigor a Lei Federal 10.048/2000.
A Lei Federal 10.048/2000 disciplina a prioridade de atendimento a determinadas pessoas,
estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. Por se tratar de norma geral, aplica-se aos
demais entes federativos - leia-se Estados e Municípios - sem ferir a autonomia municipal, eis
que não adentra em especificidade local.
Já o Decreto 5.296 de 2004 regulamenta estas leis. No âmbito municipal já temos uma
série de dispositivos sobre acessibilidade. Conforme Saibert3
“a Lei Municipal Nº 8.317/99 dispôs
sobre a eliminação de barreiras arquitetônicas nas edificações de uso público”4
Conforme esclarecido, a Lei Federal Nº 10.048/2000 foi regulamentada pelo Decreto N.
5.296/04. Este Decreto adota conceitos e tem uma seção que dispõe especificamente sobre
habitação de interesse social.
2
Sobre o tema ver: SAIBERT, Candida Silveira. O Controle do uso e Ocupação do Solo urbano pelo Município: Acessibilidade
como Limitação urbanística ao Direito de Construir. Trabalho de Conclusão Especilaização. PUC/RS, 2006 e MAZZILLI,
Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 2008. 21ª edição, revista, ampliada e atualizada
3
SAIBERT, Candida Silveira., In PRESTES , Vanêsca Buzelato (org). Temas de Direito Urbano- Ambiental. Belo
Horizonte:Forum, 2006.
4
Art. 3º. As adequações de que trata o art. 1º. Desta lei serão definidas em conformidade com o disposto na Norma
Brasileira (NBR) 9.050/94 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou a que vier substituí-la”.
Nº 24 - Dezembro 2010 167
O objeto da consulta e deste Parecer são as regras aplicáveis aos expedientes que tramitam
na CADHAP, Comissão que aprova empreendimentos para habitação de interesse social. Contudo,
as regras atinentes à acessibilidade e que resultam da Lei e do Decreto acima citados aplicam-se
ao processo de aprovação de modo geral.
Sobre acessibilidade, o art. 8º I estabelece que:
I – acessibilidade: condição para utilização, com segurança e
autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos
urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos,
sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora
de deficiência ou mobillidade reduzida;
...
VII – edificações de uso coletivo: aquelas destinadas às atividades de
natureza comercial, hoteleira, cultural, esportiva, financeira, turística,
recreativa, social, religiosa, educacional, industrial e de saúde,
inclusive as edificações de prestação de serviços de atividades da
mesma natureza;
VIII – edificações de uso privado: aquelas destinadas à habitação,
que podem ser classificadas como unifamiliar ou multifamiliar;e
IX – desenho universal: concepção de espaços, artefatos e produtos
que visam a atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes
características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma,
segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que
compõem a acessibilidade.
Veja-se que a idéia é conceber espaços acessíveis para todos e não só para os
portadores de deficiência. Por isso, o conceito de mobilidade reduzida que engloba categoria
maior. Para além disso, incorpora-se ao urbanismo a idéia de circulação ampla, sem
obstáculos colocados pelo homem (degraus, mobiliário urbano, etc). Assim, a acessibilidade
é ampla e visa trabalhar a autonomia, a viabilização da mobilidade daqueles com mobilidade
reduzida, motivo pelo qual há forte incidência e cogência das regras nos locais públicos e de
acesso público.
Especificamente com relação a habitação de interesse social temos o seguinte dispositivo:
Art. 28. Na habitação de interesse social, deverão ser promovidas as
seguintes ações para assegurar as condições de acessibilidade aos
empreendimentos:
I – definição de projetos e adoção de tipologias construtivas livres de
barreiras arquitetônicas e urbanísticas;
168 Revista da PGM
II – no caso de edificação multifamiliar, execução das unidades
habitacionais acessíveis no piso térreo e acessíveis ou
adaptáveis quando nos demais pisos; (grifei)
III – execução das partes de uso comum, quando se tratar de edificação
multifamiliar, conforme as normas técnicas de acessibilidade da ABNT;
IV – elaboração de especificações técnicas de projeto que facilite a
instalação de elevador adaptado para uso das pessoas portadoras de
deficiência ou com mobilidade reduzida.
Parágrafo único. Os agentes executores dos programas e projetos
destinados à habitação de interesse social, financiados com recursos
próprios da união ou por ela geridos, devem observar os requisitos
estabelecidos neste artigo.
As áreas de uso comum devem seguir rigorosamente as normas de acessibilidade dispostas
na ABNT. Não há dúvida quanto a isso, justamente porque atendem e dialogam com o pressuposto
da autonomia do indivíduo, da acessibilidade de todos na cidade sustentável e inclusive que
caracteriza a Constituição Democrática de 1988.
A dúvida que exsurge refere-se ao inciso II. Segundo a SEACIS a locução deste artigo
implica que todas as habitações no piso térreo sejam acessíveis internamente, inclusive. Segundo
os técnicos que compõem a CADHAP esta acessibilidade interna pressupõe marcos de portas
mais largos, espaço interno de circulação e dos cômodos, incluindo banheiro, além de outras
modificações que não constam no regramento municipal como cogentes e aplicáveis a todas as
habitações, conforme pretende a SEACIS.
Respeitando entendimento contrário, não comungamos do entendimento da SEACIS.
Isto porque, a interpretação da locução – execução das unidades habitacionais acessíveis no piso
térreo - é completamente diferente de todas unidades do piso térreo deverão ser acessíveis,
forma traduzida pela Secretaria. Existirem unidades habitacionais acessíveis no piso térreo é a
obrigação que decorre da norma citada em epígrafe. Contudo, todas as unidades habitacionais do
piso térreo serem acessíveis é diferente de terem unidades acessíveis. Dito de outra forma, se no
projeto arquitetônico há 20 unidades habitacionais no piso térreo, há que ter unidades que sejam
internamente acessíveis. Todavia, a regra não exige que todas as 20 sejam acessíveis . Neste
particular, cabe agregar uma informação técnica apreendida nas reuniões da comissão. Estes
empreendimentos são construídos em blocos. Isto implica dizer que os andares são idênticos,
tem a mesma coluna para passagem das redes de água, esgoto e luz, inclusive para se enquadrar
ao custo do financiamento previsto para o Projeto. Disso resulta, que o andar térreo que não
possa ter concepção arquitetônica distinta dos demais. Assim, o que for construído no térreo será
idêntico aos demais.
É certo que estamos em um momento de afirmação de direitos e que definir espaços
juridicamente protegidos para as minorias faz parte desta afirmação.
Contudo, no caso concreto entendemos que além de não ser obrigatório que todas as
unidades do piso térreo sejam acessíveis, mas que existam unidades acessíveis no piso térreo,
Nº 24 - Dezembro 2010 169
temos que outros interesses relevantes estão protegidos, tais como a inclusão social daqueles que
até então não tinham onde morar. Para isso, um maior número de unidades também é importante.
Segundo relatou o Demhab na reunião que debatemos este tema, a autarquia tem o
cadastro dos portadores de mobilidade reduzida e com eles define projeto, local e definição da
moradia acessível. Veja-se que o princípio da acessibilidade resulta , inclusive, melhor atendido.
No Programa Minha Casa, Minha Vida, para os casos de 0 a 03 salários há subsídio Federal
e definição de cadastro prévio dos contemplados pelo Município. Assim, há como identificar na
demanda específica o número de habitações para portadores de necessidades especiais exigido,
como vem fazendo o Demhab.
Já, nos restante da demanda envolvendo 03 a 06 salários mínimos e 06 a 10 salários
mínimos, o Município pode exigir do empreendedor a promoção de adaptação das unidades
habitacionais, na hipótese daquelas destinadas exceder a demanda existente.
Contudo, neste momento, faz-se importante deixar claro que não há um percentual
previamente definido na lei federal ou na lei municipal que estabeleça ou quantifique o número
de unidades habitacionais que devam ser acessíveis no térreo ou adaptadas nos demais andares.
A utilização do Estatuto do Idoso subsidiariamente, como faz a Caixa Federal, pode ser
um caminho. Todavia, veja-se que o dispositivo que a Caixa Federal utiliza prevê prioridade no
atendimento de idosos para fins de financiamento habitacional e nada tem a ver com a
acessibilidade. Sua aplicação é subsidiária, pois há uma dedução de que idosos tem mobilidade
reduzida e por isso recomenda-se habitações acessíveis e adaptadas. Frise-se que não há cogência
na adoção deste percentual para fins de aprovação dos empreendimentos.
De todo o exposto, concluímos que:
1. a noção de acessibilidade nasce da necessidade de inclusão social das
pessoas portadoras de deficiência, inseridas nas Constituições
democráticas que tem como fio condutor a dignidade da pessoa humana
e corolário a inclusão social e a universalização das políticas públicas;
2. contemporaneamente, além dos portadores de deficiência, contempla
as pessoas com mobilidade reduzida que não necessariamente são
portadores de deficiência ou com deficiência; na categoria mobilidade
reduzida estão, por exemplo, os idosos;
3. as normas de acessibilidade universal compõem o conteúdo de direito
difuso integrante da ordem urbanística, deixando de ser um problema
individual, passando a ser tema da coletividade e responsabilidade
de todos;
4. as normas sobre acessibilidade estão previstas na Lei Federal Nº 10.048/
2000 e regulamentadas no Decreto Nº 5.296/2004 e aplicam-se a todos
os entes federativos, incluindo-se os Municípios, por serem normas gerais;
170 Revista da PGM
5. o Decreto Federal prevê regras específicas pata habitação de interesse
social, estabelecidas no art. 28;
6. nas áreas de uso comum, em se tratando de habitações unifamiliares,
obrigatoriamente deverão ser aplicadas as normas de acessibilidade
estabelecidas pela ABNT, por força do disposto no art. 28, III do Decreto
Federal 5.296/04;
7. não há regra legal que obrigue todas as habitações do piso térreo serem
acessíveis; há necessidade de existirem habitações acessíveis no piso
térreo das edificações multifamiliares aprovadas como habitação de
interesse social, na forma do que dispõe o art. 28, II do Decreto Federal
N.5.296/04;
8. não há percentual de habitações acessíveis definido nas regras existentes;
o percentual pode ser definido no projeto conforme a demanda, na forma
que vem fazendo o Demhab;
9. a cada projeto deve ser verificado o cumprimento da norma, cabendo ao
empreendedor demonstrar o número de habitações do piso térreo
acessíveis; nas Diretrizes a serem expedidas pela Comissão, deve constar
a exigência de unidades acessíveis no piso térreo, na forma do que dispõe
o art. 28, inc. II do Decreto Federal Nº 5.296/04, a serem contempladas
no projeto apresentado pelo empreendedor; a inexistência de unidades
acessíveis no térreo pode implicar na não aprovação do projeto respectivo.
É o parecer.
A sua consideração.
Em, 19 de fevereiro de 2010.
Vanêsca Buzelato Prestes
Procuradora Municipal
OAB/ RS 27.608
Nº 24 - Dezembro 2010 171
Exigência de multa prévia para fins de
admissibilidade de recurso administrativo
Eleonora Braz Serralta
172 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 173
PARECER Nº. 1160/2010
PROCESSO Nº. 01.005795.06.0
INTERESSADO: Município de Porto Alegre
ASSUNTO: Exigência de multa prévia para fins de admissibilidade de
recurso administrativo
Exigência de depósito prévio para fins de admissibilidade de
recurso administrativo. Art. 10º. da Lei Complementar n. 12/75.
Inconstitucionalidade. Precedentes jurisprudenciais.
Entendimento consolidado no STF e STJ. Necessidade de
padronização de procedimentos.
Trata-se de mandado de segurança que, a exemplo de inúmeras outras ações judiciais
movidas contra o Município de Porto Alegre, visa à determinação de recebimento de recurso
administrativo independentemente de depósito prévio.
É argüida a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio à luz do que dispõe o
art. 5o
., XXXIV, “a”, LIV e LV da Constituição, do qual emergem os direitos de petição, do devido
processo legal e ao contraditório e à ampla defesa.
A recusa no recebimento do recurso administrativo por parte das diversas Secretarias
Municipais é feita com base no art. 10o
e parágrafo único da Lei Complementar Municipal n. 12/
75:
Art. 10 - Será notificado o infrator da multa imposta, cabendo recursos ao Prefeito
Municipal, a ser interposto no prazo de quinze dias.
Parágrafo único - O recurso deverá ser acompanhado da prova de ter sido
efetuado o depósito da multa imposta no órgão próprio.
A legislação municipal é clara ao exigir o depósito da multa imposta e, por essa razão, a
legalidade do ato administrativo vem sendo defendida nos processos judiciais que versam sobre a
matéria.
No caso em comento, a segurança foi concedida e foi interposto, pelo Município de Porto
Alegre, recurso de apelação, que restou desprovido.
Da mesma forma, os demais processos que tramitam nesta equipe têm tido desfecho
semelhante, reconhecendo a inconstitucionalidade da exigência, a exemplo da recente decisão
no processo n. 10800189411, todos com base no atual entendimento do STF.
É o breve relatório.
174 Revista da PGM
1. Objetivo
Por meio deste parecer, objetiva-se abordar as seguintes questões, visando à padronização
de procedimentos no âmbito da administração municipal:
· Nos casos de insucesso nas ações judiciais movidas contra o Município,
devem ser interpostos recursos às cortes superiores (RESP ou RE)?
· É constitucional o ato que recusa o recebimento de recurso administrativo
com base no art. 10o
da Lei Complementar n. 12/75?
· Quais as providências que devem ser adotadas pela administração
municipal a respeito do tema?
2. Procedimentos adotados pela equipe
Há na PUMARF diversos casos que versam sobre o mesmo tema, sendo que a
interposição de recursos, inclusive aos Tribunais Superiores, vinha sendo feita com base em
precedentes jurisprudenciais, a exemplo do RESP 649.395, de 18/08/2005, que trazia a
seguinte ementa:
DEPÓSITO PRÉVIO COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DO
RECURSO ADMINISTRATIVO. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA
AMPLA DEFESA PRESERVADOS. PRECEDENTES DO STF E STJ.
O duplo grau não atinge a esfera administrativa, sendo constitucional
a exigência de depósito prévio para fins de interposição de recurso
administrativo. Precedentes do STF. A exigência do depósito recursal
administrativo não viola os princípios constitucionais do contraditório
e da ampla defesa (art.5º, LV) e do devido processo legal (art. 5º, LIV).
O depósito prévio para a interposição de um novo recurso evita a
procrastinação e objetiva a mais rápida percepção dos impostos pela
Administração. Recurso conhecido e provido.
O próprio Supremo Tribunal Federal já esposara o entendimento de que a instrução de
recurso administrativo com a prova do depósito prévio da multa imposta “não constitui óbice
ao exercício do direito constitucional do art. 5o
, LV, por se tratar de pressuposto de admissibilidade
e garantia recursal”, como se depreende do REXT n. 210.235-1, de forma que a interposição de
recursos tinha respaldo na jurisprudência de então. Nesse sentido também o RE 311023, de
18/09/2001:
Nº 24 - Dezembro 2010 175
EMENTA: - Recurso extraordinário. Admissibilidade de recurso
administrativo. Depósito de 30% do valor do débito. - O Plenário desta
Corte, ao julgar a ADIMC 1.922, de que fui relator, indeferiu o pedido de
medida liminar contra o § 2º do art. 33 do Decreto Federal 70.235/72,
com a redação dada pelo artigo 32 da Medida Provisória 1.863-53/99
(resultado de reedições sucessivas, e entre elas se acha a Medida Provisória
1.621-30/99), por entender ausente a plausibilidade jurídica da tese de
ofensa aos incisos XXXIV, XXXV, LIV e LV do artigo 5º da Constituição.
Salientou-se, ainda, nesse acórdão que isso ocorria inclusive pela
inexistência, na Carta Magna, da garantia ao duplo grau de jurisdição na
via administrativa, sendo esse depósito requisito de admissibilidade de
recurso administrativo e não o pagamento de taxa para o exercício do
direito de petição. Posteriormente também assim foi decidido no RE
234.425 em caso análogo. Dessa orientação, divergiu o acórdão recorrido.
Recurso extraordinário conhecido e provido.
Dessa forma, diante de decisões das Cortes Supremas que entendiam constitucional a
exigência de depósito prévio, havia fundamento para a interposição dos Recursos Especial e
Extraordinário.
3. Atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e do
Superior Tribunal de Justiça
Em decisão conjunta dos Recursos Extraordinários n. 388359, 389383 e 390513, prolatada
em 28/03/2007, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a exigência
de depósito prévio em recursos administrativos.
Foram declarados inconstitucionais o § 2º do art. 33 do Decreto Federal n.º 70.235/72 e
os §§ 1º e 2º do art. 126 da Lei Federal nº 8.213/1991 que, a exemplo do que dispõe o § único do
art. 10 da Lei Complementar Municipal n. 12/75, exigiam depósito prévio como condição de
admissibilidade de recurso administrativo.
A partir dessas decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem adotado o mesmo
entendimento. Em extensa pesquisa, verificou-se que todas as turmas têm decidido nesse sentido,
com base nos referidos precedentes do Supremo, inclusive aquelas em que, anteriormente, fora
albergado posicionamento em sentido oposto. Em outras palavras, o STJ acolheu o entendimento
do STF, à unanimidade, alterando posicionamento anterior, a exemplo do REsp n. 894060, de
lavra do Ministro Luiz Fux:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSO
ADMINISTRATIVO FISCAL. RECURSO ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DE
DEPÓSITO PRÉVIO. GARANTIA DA AMPLA DEFESA. DIREITO DE PETIÇÃO
INDEPENDENTEMENTE DO PAGAMENTO DE TAXAS. NOVEL
JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
176 Revista da PGM
1. O depósito prévio ao recurso administrativo, para a discussão de crédito
previdenciário, ante o flagrante desrespeito à garantia constitucional da
ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF/88) e ao direito de petição
independentemente do pagamento de taxas (artigo 5º, XXXIV, “a”, da CF/
88) é inexigível, consoante decisão do Supremo Tribunal Federal, na
sessão plenária ocorrida em 28.03.2007, nos autos do Recurso
Extraordinário 389.383-1/SP, na qual declarou, por maioria, a
inconstitucionalidade dos §§ 1.º e 2.º, do artigo 126, da Lei 8.213/91,
com a redação dada pela Medida Provisória 1.608-14/98, convertida na
Lei 9.639/98 2. O artigo 481, do Codex Processual, no seu parágrafo único,
por influxo do princípio da economia processual, determina que “os
órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao
órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver
pronunciamento destes ou do plenário, do Supremo Tribunal Federal
sobre a questão”. 3. Consectariamente, impõe-se a submissão desta Corte
ao julgado proferido pelo plenário do STF que proclamou a
inconstitucionalidade da norma jurídica em tela, como técnica de
uniformização jurisprudencial, instrumento oriundo do Sistema da
Common Law e que tem como desígnio a consagração da Isonomia Fiscal
no caso sub examine. 4. Recurso especial desprovido.
Da mesma forma, a decisão no REsp 1020786, em que foi relator o Ministro Castro
Meira, da Segunda Turma do STJ, que até então decidia no sentido oposto:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO.
DEPÓSITO PRÉVIO. INEXIGIBILIDADE. RECENTE POSICIONAMENTO DO
PRETÓRIO EXCELSO. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
SENTENÇA DENEGATÓRIA. EFEITO SUSPENSIVO. RELEVÂNCIA E PERIGO
DA DEMORA. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.
1. A apelação interposta contra sentença que denega segurança será
recebida no efeito devolutivo.Precedentes.
2. “Só em casos excepcionais de flagrante ilegalidade ou abusividade, ou
de dano irreparável ou de difícil reparação, é possível sustarem-se os
efeitos da medida atacada no mandamus até o julgamento da apelação”
ROMS 351/SP, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro). 3. A aferição dos
efetivos riscos de grave lesão ao patrimônio jurídico da recorrida
demandaria a imprescindível incursão na seara fático-probatória
constante do processo, o que é vedado na via estreita do recurso especial,
ante o teor da Súmula 7/STJ. 4. No julgamento dos RE’s 389.383/SP e
390.513/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, a Suprema Corte, reiterando
a orientação firmada no RE 388.359/PE, declarou a inconstitucionalidade
Nº 24 - Dezembro 2010 177
dos §§ 1º e 2º do artigo 126 da Lei nº 8.213/91, com a redação da Medida
Provisória 1.608-14/98, convertida na Lei nº 9.639/98. 5. É ilegítima a
exigência do depósito prévio de 30% do valor da exação para o protocolo
de recurso administrativo. 6. Recurso especial não provido.
4. Jurisprudência atual do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem seguido, nos últimos julgados, a mesma
orientação. Feita pesquisa em todas as Câmaras de Direito Público, constatou-se que os julgados
recentes são unânimes ao acolher o entendimento do Plenário do STF, no sentido da
inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio para admissibilidade de recursos
administrativos, como se depreende das seguintes ementas, separadas por Câmara Cível:
Direito Público: 1° (1ª e 2ª câmaras cíveis), 2° (3ª e 4ª câmaras cíveis)
e 11° (21ª e 22ª câmaras cíveis) Grupos Cíveis.
1ª Câmara Cível
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE
SEGURANÇA. INEXIGIBILIDADE DE DEPÓSITO PRÉVIO PARA FINS DE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ADMINISTRATIVO. PRECEDENTE DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA
EXIGÊNCIA. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70023529076,
Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe
Silveira Difini, Julgado em 24/09/2008)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DO DEPÓSITO PRÉVIO PARA A
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO. LEGITIMIDADE PASSIVA
DO SECRETÁRIO MUNICIPAL DA FAZENDA. RECONHECIMENTO. MÉRITO.
EXAME DESDE LOGO. ART. 515, § 3º, DO CPC. 1. Legitimidade passiva
do Secretário Municipal da Fazenda. Reconhecimento. 1.1 Tratando-se
de mandado de segurança impetrado contra ato de agente fiscal do
Município, que notificou a impetrante da necessidade de depósito prévio,
como requisito de admissibilidade para a interposição de recurso
administrativo, nos termos do art. 62, IV, § 3º, da LCM 7/73, alterado
pela LCM 534/05, recai sobre o Secretário Municipal da Fazenda
legitimidade passiva, ante sua superioridade hierárquica, e ao poder-
dever de anular ato ilegal e abusivo praticado por funcionário inferior.
1.2 Ademais, a regra do art. 14, VII, do Regimento Interno do Tribunal
Administrativo de Recursos Tributários do Município de Porto Alegre,
178 Revista da PGM
TART, confere ao respectivo Presidente decidir sobre a admissibilidade
dos recursos administrativos, o que não ocorreu, tendo em conta que a
natureza preventiva do mandamus. 2. Mérito. Exame desde logo. Art.
515, § 3º, do CPC. A exigência do depósito prévio de 30% do crédito
tributário para a interposição do recurso administrativo se mostra
violadora dos princípios constitucionais da ampla defesa e da isonomia.
Dispositivo infraconstitucional, previsto no art. 62, IV, § 3º, da LCM 7/73,
alterado pela LCM 534/05, do Município de Porto Alegre, não recepcionado
pela nova ordem constitucional. Orientação do STF e do STJ. 3. Dispositivo.
Apelação provida e, na forma do art. 515, § 3º, do CPC, segurança
concedida. (Apelação Cível Nº 70024999120, Primeira Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 27/08/
2008)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DO DEPÓSITO PRÉVIO PARA A
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO. DESCABIMENTO. A
exigência do depósito prévio de 20% do crédito tributário para a
interposição do recurso administrativo se mostra violadora dos princípios
constitucionais da ampla defesa e da isonomia. Dispositivo
infraconstitucional, previsto no art. 194, § 3º, da Lei Complementar
Municipal n.º 12/94, na redação dada pela LC nº 154/01, do Município
de Caxias do Sul, não recepcionado pela nova ordem constitucional.
Concessão da segurança. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº
70022764872, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 26/03/2008)
2ª Câmara Cível
EMENTA: APELAÇÃO CIVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO
PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E A
AMPLA DEFESA 1. Segundo precedente do Plenário do Supremo Tribunal
Federal, ofende os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla
defesa, assim como o direito ao devido processo legal (art. 5º, LV, da
CRFB/88) a exigência de depósito prévio, pelo contribuinte, para exercício
do direito de defesa. 2. Assim, viola a Constituição o art. 62, inciso III, e
§ 3º da Lei Complementar Municipal nº 7/73 de Porto Alegre. Precedentes.
APELAÇÃO PROVIDA. ORDEM CONDEDIDA. UNÂNIME. (Apelação Cível
Nº 24 - Dezembro 2010 179
Nº 70025694886, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Denise Oliveira Cezar, Julgado em 26/11/2008)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA
DE DEPÓSITO PRÉVIO COMO CONDIÇÃO PARA ADMISSÃO DE RECURSO
ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE. A realização de depósito prévio dos
débitos pendentes - ou parte deles - junto ao Fisco é medida
inconstitucional de cerceamento à ampla defesa e ao acesso aos órgãos
julgadores. O pleito administrativo está inserido no gênero direito de
petição e, como dispõe o artigo 5º, XXXIV, da Constituição Federal,
independe do pagamento de taxas, caracterizando-se a exigência do
depósito como instrumento mitigador do direito de defesa. Precedentes
do STJ e STF. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70023063621,
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang,
Julgado em 24/09/2008)
EMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO. EXIGÊNCIA DE CAUÇÃO OU DEPÓSITO
PRÉVIO DO VALOR SOB DISCUSSÃO, COMO CONDIÇÃO PARA O
CONHECIMENTO DO RECURSO ADMINISTRATIVO:
ICONSTITUCIONALIDADE. Nos termos do atual entendimento do Supremo
Tribunal Federal (ADIN nº 1976/DF, de 28/03/2007; AgReg no RE nº
396059/RJ, de 10/04/2007; AgReg no RE nº 283811/SP, de 15/05/2007; e
AgReg no RE nº 504288/BA, de 29/05/2007) mostra-se flagrantemente
inconstitucional, à vista do disposto no art. 5º, LV, da Carta Magna, a
exigência de caução ou depósito prévio de valor sob discussão como
condição para a admissibilidade de recurso administrativo. DECISÃO:
Recurso desprovido. Reexame necessário conhecido. Unânime. (Apelação
e Reexame Necessário Nº 70022307144, Segunda Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Roque Joaquim Volkweiss, Julgado em 24/
09/2008)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO
TRIBUTÁRIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. AUTORIDADE COATORA. (...)
RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO PRÉVIO. INADMISSÃO. VIOLAÇÃO
DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. A realização de
depósito prévio dos débitos pendentes - ou parte deles - junto ao Fisco
para efeito de recebimento de recurso administrativo, nos termos do
artigo 62, inciso III, parágrafo 3º, da Lei Complementar Municipal nº 07/
73 não pode ser admitida, pois viola o princípio constitucional da ampla
defesa, impedindo o acesso do contribuinte às instâncias administrativas
para exame da matéria controvertida. Apelo provido para reconhecer a
180 Revista da PGM
legitimidade passiva e, com fulcro no § 3º do artigo 515 do Código de
Processo Civil, prosseguindo no julgamento do feito, conceder a
segurança. (Apelação Cível Nº 70019981158, Segunda Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Armando Bezerra Campos,
Julgado em 05/12/2007)
3ª e 4ª Câmara Cível
Aparentemente não recebem mais recursos acerca da matéria. Em
decisões proferidas até 2005 (antes, portanto, da mudança de
entendimento do STF), os desembargadores integrantes das respectivas
câmaras já alegavam não ter sido a legislação municipal recebida pela
CRFB/88, visto que violaria os princípios da ampla defesa e do devido
processo legal.
21ª Câmara Cível
Houve alteração no entendimento da Câmara:
EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.
DEPÓSITO PRÉVIO. RECURSO ADMINISTRATIVO. ILEGALIDADE. É
ilegítima a exigência de depósito prévio para admissibilidade de recurso
administrativo. Precedentes do STJ e STF. Sentença mantida em reexame
necessário. (Reexame Necessário Nº 70026390625, Vigésima Primeira
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz,
Julgado em 03/12/2008)
EMENTA: APELAÇÃO. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE
SEGURANÇA. ISS. EXIGIBILIDADE. RECURSO ADMINISTRATIVO.
DEPÓSITO PRÉVIO. POSSIBILIDADE. Independe de depósito prévio a
interposição de recurso administrativo, por afrontar ao princípio
constitucional da ampla defesa. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível Nº
70025639329, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 01/08/
2008).
EMENTA: AGRAVO. APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO. CABIMENTO. DANO IRREPARÁVEL
OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO
PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. De regra, os recursos em mandado
de segurança têm somente efeito devolutivo; todavia, a jurisprudência,
Nº 24 - Dezembro 2010 181
especialmente do Superior Tribunal de Justiça, vem admitindo a
possibilidade de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta
em face de sentença denegatória de segurança em casos excepcionais de
flagrante ilegalidade ou abusividade, ou de dano irreparável ou de difícil
reparação. A Constituição Federal, por seu art. 5º, inciso LV, assegura aos
litigantes em processo judicial e administrativo o contraditório e o amplo
direito de defesa, com os recursos a ela inerentes. Por outras palavras, o
acesso e o manejo de recurso administrativo é requisito indissociável da
ampla defesa. A exigência de depósito para interposição de recurso
administrativo empeça a defesa em sua plenitude, com danos que soam
evidentes, não fosse bastante importar afronta ao princípio assegurado
pela Carta Magna. Agravo provido. Unânime. (Agravo de Instrumento Nº
70023185481, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 02/04/2008)
EMENTA: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE
INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. EXIGÊNCIA DE
DEPÓSITO PRÉVIO PARA A APRECIAÇÃO DE RECURSO ADMINISTRATIVO.
DESCABIMENTO. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
RECEBIMENTO NO DUPLO EFEITO DE RECURSO DE APELAÇÃO
INTERPOSTO PELA IMPETRANTE. O Supremo Tribunal Federal tem
reconhecido a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio para
a apreciação de recurso administrativo, por violar as garantias
constitucionais do direito de petição, do contraditório e da ampla defesa.
Assim, o recurso de apelação interposto pela empresa impetrante deve
ser recebido no duplo efeito, pois de acordo com o entendimento dos
integrantes da Suprema Corte. Agravo de instrumento provido. (Agravo
de Instrumento Nº 70022246334, Vigésima Primeira Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em
30/01/2008)
22ª Câmara Cível
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. RECURSOS. AGRAVO INTERNO. DECISÃO
MONOCRÁTICA EM APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO E
CONSTITUCIONAL. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO PRÉVIO PARA INTERPOR
RECURSO ADMINISTRATIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. Provido o apelo,
estando a decisão de acordo com as disposições legislativas e da
jurisprudência desta Câmara, desta Corte e do STF, não cabe modificar o
pronunciamento em agravo interno, pois não comprovada a sua
incorreção no plano material. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (Agravo
182 Revista da PGM
Nº 70027819762, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 18/12/
2008)
EMENTA: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.
RECURSO ADMINISTRATIVO. DEPÓSITO PRÉVIO. CONDIÇÃO DE
ADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. Segundo orientação
consagrada no Eg. Supremo Tribunal Federal, padece de
inconstitucionalidade a exigência de prévio depósito como condição de
procedibilidade de recurso administrativo. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação
Cível Nº 70024503732, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Mara Larsen Chechi, Julgado em 20/08/2008)
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA DE DEPÓSITO
PRÉVIO. INCONSTITUCIONALIDADE. JURISPRUDÊNCIA DO PLENO DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Segundo a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, a exigência de depósito prévio para o recebimento de
recurso administrativo ofende a Constituição da República. Ressalva do
ponto de vista pessoal. Recurso provido por ato do Relator. Art. 557 do
Código de Processo Civil. (Apelação Cível Nº 70023729106, Vigésima
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel
de Azevedo Souza, Julgado em 21/07/2008)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. EXIGÊNCIA
DE DEPÓSITO PRÉVIO COMO REQUISITO PARA INTERPOSIÇÃO DE
RECURSO ADMINISTRATIVO. DESCABIMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE
DA OBRIGAÇÃO RECONHECIDA PELO PLENO DO STF. Mostra-se indevida
a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de
recurso administrativo interposto. Inconstitucionalidade da exigência do
depósito reconhecida pelo Pleno do STF. Precedentes TJRGS, STJ e STF.
Apelação provida liminarmente. (Apelação Cível Nº 70023670789,
Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos
Eduardo Zietlow Duro, Julgado em 03/04/2008)
5. A inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 10º. da
Lei Complementar n. 12/75
Como já visto, o parágrafo único do art. 10º. da lei Complementar Municipal n. 12/75
(Código de Posturas de Porto Alegre) determina que o recurso deverá ser acompanhado da
prova de ter sido efetuado o depósito da multa imposta no órgão próprio e, portanto, estabelece,
como requisito de admissibilidade, o depósito prévio.
Nº 24 - Dezembro 2010 183
Embora o Município tenha defendido a legalidade e a constitucionalidade do referido
dispositivo de lei municipal, com base em algumas decisões da época, a jurisprudência consolidou-
se no sentido diametralmente oposto.
Na esteira da Jurisprudência agora já consolidada, antes transcrita, a exigência de depósito
prévio para interposição de recursos administrativos fere os ditames constitucionais. Os recursos
administrativos, situados no âmbito dos direitos fundamentais, recebem dupla proteção
constitucional no art. 5º., pelo direito de petição (inciso XXXIV) e pelo direito à ampla defesa e ao
contraditório (inciso LV).
Diante do que até agora foi exposto, é nosso entendimento de que o parágrafo único do
art. 10º. da Lei Complementar Municipal n. 12/75 é inconstitucional.
6. Conclusões: Atuação do poder executivo diante da
inconstitucionalidade do dispositivo legal
Diante do exposto, opinamos no sentido de que deve ser modificada a atuação do poder
executivo, no âmbito das diversas Secretarias e departamentos:
a) Atuação judicial - Quanto à interposição de recursos às Cortes Superioras
Uma vez declarada pelo Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da exigência
do depósito prévio, entendimento acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, à unamidade, em face aos incisos XXXIV e LV do art. 5º, da Constituição
Federal, por ferirem os direitos fundamentais de petição, ampla defesa e contraditório, opinamos
no sentido de não mais serem interpostos recursos para as cortes extremas.
b) Atuação administrativa - Quanto ao procedimento a ser adotado nos Recursos
Administrativos
Em face da flagrante inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 10º da Lei
Complementar n. 12/75, opinamos no sentido da sua não aplicação. A interposição do recurso
administrativo não mais deve estar condicionada ao depósito prévio da multa imposta, devendo
ser recebido o recurso independentemente do pagamento prévio da multa.
A possibilidade de o executivo municipal declarar a ineficácia de lei municipal válida já foi
examinada no Parecer/PGM n. 1109/2004, com a seguinte ementa:
INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL – INTERPRETAÇÃO E
CONCREÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA -
POSSIBILIDADE DE O EXECUTIVO MUNICIPAL DECLARAR A INEFICÁCIA
DE LEI VÁLIDA NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO – ADEQUAÇÃO DA
ADMINISTRAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FORMAL (RESERVA DE
LEI) – ORIENTAÇÃO PELO PRECEITO DA PROPORCIONALIDADE –
184 Revista da PGM
EXIGÊNCIA DE ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO EMITIDO COM BASE
EM LEI RECONHECIDAMENTE INCONSTITUCIONAL – EFEITOS
JURÍDICOS E LEGAIS
c) Atuação legislativa - Necessidade de alteração legislativa
Pelos mesmos motivos já expostos, opinamos no sentido de que seja estudado um projeto
de lei suprimindo o parágrafo único do art. 10º da Lei Complementar n. 12/75.
É o parecer.
Porto Alegre, 04 de maio de 2009.
Eleonora Braz Serralta
Procuradora do Município
OAB/RS 29.694
HOMOLOGAÇÃO
HOMOLOGO o Parecer nº 1160/2010, da lavra da Procuradora Eleonora Braz Serralta,
que versa acerca da inconstitucionalidade do Artigo 10º da Lei Complementar n. 12/75, que exige
depósito prévio para fins de admissibilidade de recurso administrativo, posicionamento corroborado
pelo entendimento jurisprudencial consolidado no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal
de Justiça.
Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação à Procuradoria-Geral Adjunta de
Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente; à Procuradoria-Geral Adjunta de Assuntos Fiscais;
à Procuradoria de Urbanismo, Meio Ambiente e Regularização Fundiária; à Secretaria Municipal
d Fazenda; e à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, estabelecendo-se orientação jurídica
uniforme para casos similares.
PGM, 13 de setembro de 2010.
Marcelo Kruel Milano do Canto
Procurador-Geral do Município, em exercício.
Nº 24 - Dezembro 2010 185
Regularização urbanística do projeto de assentamento
da área destinada aos Kaigangues
Vanêsca Buzelato Prestes
186 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 187
PARECER Nº: 1161/2010
PROCESSO Nº: 004.003481.07.7
INTERESSADO: Demhab/ Coordenação de Urbanização
ASSUNTO: Regularização urbanística do projeto de assentamento da
área destinada aos Kaigangues
Assentamento de comunidade Kaigangue. Área pública municipal.
Aplicação do Regime Urbanístico previsto na Lei Complementar
Municipal 527/05. Aprovação como Área Especial de Interesse
Cultural. Inaplicabilidade da lei dos condomínios para fins
registrários. Impossibilidade de individualização da gleba.
Aprovação de projeto para área comum indivisa. Regime
urbanístico que respeita a tradição e costumes indígenas.
O presente processo trata da regularização jurídica da área de propriedade municipal
concedida à comunidade kaigangue. A propriedade segue sendo municipal, nos termos do que
consta na matrícula em anexo (matrícula fls 03).
No processo de aprovação o técnico municipal apontou uma situação incomum, pois no
condomínio consta 23 unidades com habitação e 23 unidades privativas sem habitação, o que ,
para o regime urbanístico usual gera uma distorção. Para superar esta “ distorção”, as unidades
foram descritas como terrenos, o que pressupõe a individualização destes (manifestação a fl. 2).
A manifestação do técnico do Demhab foi assim exarada:
“ Na elaboração das planilhas da NBR 12.721 e descrição das unidades
habitacionais, deparamo-nos com uma situação incomum. Neste
condomínio há 23 unidades com habitação e 23 unidades privativas sem
habitação. Assim há uma distorção na fração ideal das unidades. E na
descrição das 23 unidades sem casa, foi necessário descrevê-las como
terreno. Solicitamos parecer sobre a possibilidade de regularização deste
condomínio da forma como está sendo encaminhado, e em caso negativo,
orietanções de como proceder> Em anexo encaminhamos a planilha
da NBR 12.721; planta da área, e; descrições dos terrenos e das unidades
habitacionais do condomínio”.
O Demhab desenvolveu o projeto. O colega Pellenz consultado em como proceder, aliou
fortes argumentos apontando a inadequação da aprovação de propriedades privadas. Aponta que
a “ finalidade não é alienar a propriedade privada a cada família indígena, mas em ceder o uso da
terra à comunidade kaigangue para que ela se auto-regule, conforme seus costumes. “ A Secretaria
188 Revista da PGM
de Direito Humanos, além de acolher os argumentos do colega Pellenz, alinhou outros fortes
motivos para apontar a necessidade do processo de aprovação ir ao encontro da cultura indígena,
respeitando a sua organização sócio-cultural que é diferenciada da nossa. Sugere, par tanto, a
similaridade coma Reserva indígena, nos termos da Lei 6001/73.
Neste contexto, o processo foi enviado à PUMARF para orientar a forma de aprovação do
projeto urbanístico do local. Saliento, todavia, que o projeto urbanístico, que inclusive recebeu
premiação, foi desenvolvido e executado de acordo com a cultura indígena, cabendo a regularização
jurídica da situação, haja vista que urbanisticamente está adequado.
É o relatório.
A dúvida que exsurge no processo em tela advém da inadequação do processo de aprovação
usual para projetos desenvolvidos e direcionados à população indígena. No caso em exame, a
população indígena a que se refere o presente expediente não é aquela de aldeia, mas os
denominados índios urbanos, ou seja, aqueles que vivem, trabalham, interagem com a cidade,
com o meio urbano, porém tem direito de manter a sua identidade sócio-cultural.
A Constituição Federal, em seu art. 231 garante aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições. Há assim, uma proteção constitucional à cultura indígena, que tem
se expressado em uma série de formas normativas no âmbito infraconstitucional, ao densificar o
disposto na Carta Magna.
Dentre estas formas de reconhecimento, tem-se que nem todos os índios localizam-se
em reservas e estão submetidos ao regime jurídico das reservas indígenas, regulado na Lei Federal
6001/73, cuja atribuição de atuar é da FUNAI, órgão federal responsável pela política indigenista
no Brasil1
.
Demais disso, as reservas indígenas e a execução da política pública compete à União,
por intermédio da Funai. Por estes motivos, não é juridicamente possível adotar a sugestão da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana.
Em se tratando de atuação municipal, a execução de políticas públicas para a população
indígena, respeita a diversidade cultural de cidadãos que vivem em nossa cidade. Dito de outro
modo, há o reconhecimento de que em Porto Alegre há população indígena residindo e que
precisa de tutela. Este é o fundamento constitucional que dá guarida à utilização de recursos
públicos para atender o povo indígena.
Paradoxalmente, o reconhecimento constitucional da diversidade cultural também traz
diferenciações necessárias, pois nem todos vivem, interagem e se expressam da mesma maneira.
Nas cidades, a regulação do solo, visa assegurar o cumprimento da função social da
propriedade. Para esta regulação utiliza-se o regime urbanístico, que nada mais é do que as
condições de uso deste solo2
.
1
Sobre a história da política indigenista no Brasil e a modificação desta a partir da Constituição de 1988 ver: www.
funai.gov.br , site acessado em 29 de janeiro de 2010
2
Para melhor entendimento ver: SILVA, José Afonso. Direito urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1995,
p. 149 e ss
Nº 24 - Dezembro 2010 189
Nas cidades, o regime urbanístico do solo urbano se dá pelas regras de uso e ocupação do
solo, as quais, em Porto Alegre, constam na Lei Complementar Nº 434/99, o Plano Diretor. O art.
94 desta Lei estabelece que o regime urbanístico é definido em função das normas relativas a
densificação, atividades, dispositivos de controle das edificações e parcelamento do solo.
A Lei Complementar 434/99 não previu um regime urbanístico específico para utilização
de área para comunidade indígena. Todavia, estabeleceu a possibilidade de áreas especiais. Diz o
artigo 73:
“Art. 73. As Áreas Especiais são aquelas que exigem um regime urbanístico
específico, condicionado as suas peculiaridades no que se refere a
características locacionais, forma de ocupação do solo e valores
ambientais, classificando-se em:
...
§ 1º ....
§ 2º . Após a instituição da Área Especial, O Poder Executivo enviará à
Câmara Municipal projeto de lei definindo o seu regime urbanístico, no
prazo máximo de 01 (um) ano.”
As áreas especiais, portanto, tem regime urbanístico especial voltado ao atendimento da
sua finalidade. No caso em exame, a finalidade deste regime é o desenvolvimento de projeto
urbanístico para moradia de indígenas, respeitadas suas tradições.
Veja-se que a área é um todo maior, pertencente ao Município e que não será parcelada.
Dito de outra forma, não se aplica a Lei Federal Nº 6766/79, na modalidade desmembramento ou
loteamento. Isto porque, a área é indivisa, pois o projeto desenvolvido, a fim de respeitar a tradição
indígena, guarda esta característica. Também não é o caso de aplicar a Lei Federal Nº 4591 que
regula os condomínios, prevendo um condomínio fechado ou, de outra parte, criar lotes individuais,
pelo mesmo motivo que são se aplica a lei do parcelamento do solo.
No caso em exame, não há parcelamento ou subdivisão da gleba em lotes. A gleba se
manterá indivisa. E isto é juridicamente possível, porque se trata de área especial, na qual se
desenvolveu um projeto urbanístico específico, dialogando com a manutenção da tradição e cultura
indígena que não adota a propriedade ou o uso individual desta.
Para aprovação do projeto urbanístico, aplica-se tão somente a Lei Complementar Nº
527/05, a qual instituiu Área de interesse Cultural com a finalidade de assentar a Comunidade
Kaigangue. Trata-se de uma lei Complementar, de mesma hierarquia das demais existentes e por
ser lei especial afasta a lei geral.
Eventual questão de interpretação decorrente da aplicação da Nº Lei 527/05 precisa ter
em vista a finalidade da instituição desta Área de Interesse Cultural, qual seja, o assentamento da
comunidade indígena, respeitando as crenças, costumes e tradições desta. De nenhum modo, a
interpretação na aplicação da lei pode desvirtuar a finalidade para a qual a lei foi criada.
Isto posto, retornando a dúvida que ensejou à consulta temos que:
a) para aprovação do projeto urbanístico, aplica-se a Lei Complementar
Nº 527/05;
190 Revista da PGM
b) a descrição deve ser de área indivisa, de 23 unidades com habitação e
23 unidades privativas sem habitação, na forma posta no
encaminhamento, acrescido dos demais detalhamentos intrínsecos a
especificidade do projeto para assentamento da comunidade Kaigangue;
c) não cabe a instituição de condomínio para fins registrários. Cabe a
aprovação do projeto urbanístico, com base na Lei Municipal 527/05 e a
averbação deste na matrícula do imóvel, que é de propriedade municipal,
enfatizando tratar-se de assentamento indígena.
É a opinião.
A sua consideração.
Em, 29 de janeiro de 2010.
Vanêsca Buzelato Prestes
Procuradora Municipal
OAB/ RS 27.608
HOMOLOGAÇÃO
HOMOLOGO o Parecer nº 1161/2010, da lavra da Procuradora Vanêsca Buzelato Prestes,
que versa acerca de assentamento de comunidade Kaigangue em área pública municipal com
aplicação de regime urbanístico previsto na Lei Complementar Municipal n. 527/05, através de
aprovação como Área Especial de Interesse Cultural, sendo inaplicável a Lei dos Condomínios
para fins registrários; bem como trata da impossibilidade de individualização da gleba e conseqüente
aprovação de projeto como área comum indivisa em regime urbanístico que deve respeitar a
tradição e costumes indígenas.
Registre-se. Encaminhe-se cópia desta homologação á Procuradoria-Geral Adjunta de
Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente; à Procuradoria de Urbanismo, Meio Ambiente e
Regularização Fundiária; à Secretaria Municipal do Meio Ambiente; e ao Departamento Municipal
de Habitação, estabelecendo-se orientação jurídica uniforme para casos similares.
PGM, 13 de setembro de 2010.
Marcelo Kruel Milano do Canto
Procurador-Geral do Município, em exercício.
Nº 24 - Dezembro 2010 191
Revista da
Procuradoria-Geral
do Município de Porto Alegre
Município em Juízo
192 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 193
Ação civil pública. Contratação de cooperativa.
Contrato de prestação de serviços.
Relação entre associado e cooperativa.
Terceirização.
Rogério Scotti do Canto
194 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 195
I. O RELATÓRIO
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE COOPERATIVA. CONTRATO DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. RELAÇÃO ENTRE ASSOCIADO E COOPERATIVA.
TERCEIRIZAÇÃO.
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO
REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO.
Já foi observado nesta revista, em artigo anterior (n°. 17/2003), que, há algum tempo, as
administrações públicas, em particular as municipais, têm enfrentado uma pretensão específica
deduzida pelo Ministério Público do Trabalho, via Ação Civil Pública, visando impedir à contratação
de cooperativas de trabalho, usualmente sob a alegação de que o modo de funcionamento destas
cooperativas mascararia relações de emprego, sob os auspícios do não cumprimento de regras
que disciplinariam especificamente as relações entre a entidade e seus associados (art. 442, §único,
da CLT), condição que tornaria irregular a contratação pelo ente público.
Em nova hipótese articulada contra o Município de Porto Alegre, os pedidos foram
deduzidos em cumulação, porém, desta feita, com pleito de antecipação de tutela (deferido) para
proibir a contratação de cooperativas que mantivessem, com seus associados, relações que não
fossem revestidas de subordinação, com vinculação empregatícia, sob pena de multa diária por
trabalhador contratado de modo diverso. A ação especificava contratações com várias cooperativas
para atividades no HPS – Hospital de Pronto Socorro e ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento
de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde, relacionadas aos
serviços de portaria, telefonia, limpeza e conservação; bem como para, em prazo máximo de seis
meses, afastasse todos os trabalhadores que prestassem trabalho nas condições especificadas,
com imposição de penalidade, etc.
A antecipação de tutela foi deferida nos seguintes termos:
“(a) que se abstenha de admitir empregados ao HPS e SAMU, diretamente,
sem prévia aprovação em concurso público para a execução de serviços
permanentes e essenciais relacionados à sua atividade-fim ou por
interposta pessoa – salvo em relação a serviços de vigilância, conservação
e limpeza ou especializados, ligados à atividade-meio, em se tratando de
empresa prestadora de serviços -, sob pena de pagamento de multa no
valor de R$ 10.000,00 por infração e por trabalhador em situação irregular,
reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos;
(b) que afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os trabalhadores
que prestem serviços junto ao HPS e SAMU por meio de cooperativas de
trabalho em relação a atividades permanentes, precipuamente de limpeza
e conservação, auxiliar de lavanderia, auxiliar de cozinha, telefonista e
196 Revista da PGM
portaria, bem como aqueles que lhe prestem outros serviços de caráter
permanente (não –eventual), de forma pessoal, subordinada e onerosa,
por intermédio de interpostas pessoas, sob pena de pagamento de multa
no valor de R$ 10.000,00 por infração e por trabalhador em situação
irregular, reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos.”
Houve Mandado de Segurança (improcedente – unânime), seguido de Agravo Regimental
(não provido – unânime), Embargos de Declaração (não provido) e Recurso Ordinário, que foi
provido (TST-unânime) para cassar a antecipação de tutela, restabelecendo o tema e o normal
curso da ação originária (ACP). Atualmente, o processo encontra-se concluso para sentença, tendo
havido, entrementes, em momento posterior à decisão do TST, a assinatura de um TAC, cujo
objeto e alcance condicionariam, à sua vez, um possível desfecho para esta demanda, motivo pelo
qual deverá ser apreciado no momento próprio.
Os julgamentos destas demandas não são convergentes nem uniformes, ademais
de que envolvem aspectos que, em regra, não se esgotam nos estritos limites das decisões
que lhes seguem, daí a importância da decisão do TST no aspecto. Mesmo que o tema e
os limites da impugnação tenham conteúdo preponderantemente processual, a decisão
também acaba por resguardar o alcance de normas que balizam a atividade
administrativa, em especial às que regram a atividade contratual do município e das
prerrogativas constitucionais a ele conferidas.
Adiante, seguem as peças do recurso ordinário e o acórdão/TST (RXOF e ROMS - 689/
2007-000-04-00, DJ - 27/06/2008), cassando a medida antecipatória de modo unânime.
Rogério Scotti do Canto
Procurador do Município
PPC/PGM
II. A PEÇA DO MUNICÍPIO
Processo TRT nº.: 00689-2007-018-04-00-5 (MS)
Mandado de Segurança
Impetrante-Recorrente: Município de Porto Alegre
Impetrado-Recorrido : Juiz Substituto da 18a
. Vara do Trabalho de Porto Alegre
Razões de Recurso Ordinário
Município de Porto Alegre
Eméritos Julgadores:
Nº 24 - Dezembro 2010 197
I-INTRODUÇÃO
1.1 - A decisão que ora se impugna denegou segurança ao julgar improcedente Mandado
de Segurança interposto contra decisão que deferiu medida de antecipação de tutela em Ação
Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho contra o Município ora recorrente,
tendo por objeto a impugnação de relações de trabalho do Hospital de Pronto Socorro e ao SAMU
– Serviço Médico de Atendimento de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria de
Saúde do Município prestadas por entes cooperativados.
1.2 - O móvel desta Ação Civil Pública e o elemento preponderante para a impugnação
articulada seriam o modo de funcionamento das cooperativas, diante do caráter prejudicial que
as relações entre ‘associados’ e aquelas imporiam à ordem jurídica trabalhista, porquanto
mascarariam relações de empregos sob os auspícios do não cumprimento de regras que
disciplinariam a hipótese e de contratações que seriam irregulares perpetradas pelo ente público
demandado.1
1.3 - Os objetos destes contratos voltaram-se para serviços de higiene, limpeza e
conservação, portaria, e telefonia – compreendendo porteiros, telefonistas, auxiliares de serviços
gerais, auxiliares de lavanderia e auxiliares de cozinha - contratos anexos.
Concluindo pela ilicitude das terceirizações encetadas pelo Município, uma vez que as
funções então terceirizadas seriam essenciais e não atividades secundárias ou
atividades-meio, mas sim com atividades principais do ente público, proclamou a
responsabilidade do ente público.
Sem embargo e a par do teor do disposto no inc. IV do verbete do Enunciado 331 do TST
observou a existência de solidariedade na responsabilização do Município quanto a eventuais
verbas devidas pelos entes cooperados em decorrência desta ação.
Diante dessas premissas acima resumidas, deduziu as seguintes
pretensões:
“a) A antecipação de tutela para determinar que o réu, em relação ao
Hospital de Pronto Socorro, ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento
de Urgência e agendamento de consultas da Secretaria da Saúde:
(1) se abstenha de admitir empregados sem prévia aprovação em
concurso público (art. 37, II, da CF/88), diretamente ou através de
interposta pessoa, sob pena de pagamento de multa no equivalente a
R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado
em situação irregular, reversível ao FDD – Fundo de Defesa de Direitos
Difusos, criado pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.
1
- a saber: COOPERSERV - Cooperativa de Serviços e Mão-de-Obra Ltda., PORTSERV – Cooperativa Gaúcha de Serviços
Gerais Ltda., META – Cooperativa de Serviços Ltda. e COOTRAVIPA – Cooperativa de Prestação de Serviços dos Trabalhadores
das Vilas de Porto Alegre Ltda.
198 Revista da PGM
(2) afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os trabalhadores que
lhe prestam serviços através de cooperativas de trabalho nas atividades
de limpeza e conservação, auxiliar de lavanderia, auxiliar de cozinha,
telefonista e portaria, bem como aqueles que lhe prestem outros serviços
de caráter não eventual, de forma pessoal, subordinada e onerosa, através
de interpostas pessoas, sob pena de pagamento multa no equivalente a
R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado em
situação irregular, reversível ao fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado
pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.
b) a procedência da ação para determinar ao Réu que em relação ao
Hospital de Pronto Socorro, ao SAMU – Serviço Médico de Atendimento
de Urgência e agendamento de consultas da Secretaria da Saúde:
(1) se abstenha de admitir ou manter empregados sem prévia
aprovação em concurso público (art. 37, II, da CF/88), diretamente
ou através de interposta pessoa, sob pena de pagamento de multa no
equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por
trabalhador flagrado em situação irregular, reversível ao FDD – Fundo
de Defesa de Direitos Difusos, criado pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.
(2) abstenha-se de contratar ou manter trabalhadores através de
cooperativas e trabalho para a prestação de serviços de caráter não eventual,
de forma pessoal, subordinada e onerosa, tanto para a sua atividade-fim
quanto para a atividade-meio, restando desde logo estabelecido que é vedada
a contratação para as atividades de limpeza e conservação, telefonista,
lavanderia, cozinha e portaria, sob pena de pagamento multa no equivalente
a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração e por trabalhador flagrado em
situação irregular, reversível ao fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado
pelo Decreto n. 1306, de 09.11.94.
(a) sucessivamente, caso sejam indeferidos os pedidos n°s 1 e
2, seja o Réu condenado nas seguintes obrigações de fazer e não fazer:
3.1) que sempre que contratar a prestação de serviços subordinados
através de cooperativas de trabalho ou de mão-de-obra, inclusive na
renovação ou prorrogação dos contratos ora em vigor, inclua cláusula
prevendo que serão satisfeitos aos trabalhadores os direitos assegurados
no artigo 7° da Constituição Federal, em especial nos incisos III, IV, V, VI,
VII, VIII, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XXII, XXIII, XXVIII, bem como
estipulando remuneração dos trabalhadores em valor suficiente para
permitir a satisfação dos mencionados direitos, os quais devem ser
calculados observando o piso mínimo regional, sem prejuízo dos valores
e percentuais destinados ao pagamento de contribuições sociais, fundos
e taxas de administração cobrados pela cooperativa, sob pena de
Nº 24 - Dezembro 2010 199
pagamento de multa no equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) por
infração e por trabalhador flagrado em situação irregular, incidente em
cada ocasião em que constatada a irregularidade, reversível ao FDD –
Fundo de Defesa de Direitos Difusos;
3.2) que seja declarada a responsabilidade solidária do Réu pelo
pagamento das verbas devidas aos trabalhadores cooperados em razão
do ora postulado, cabendo ao Réu igualmente a fiscalização quanto ao
efetivo pagamento dos valores aos trabalhadores que lhe prestam
serviços.” (grifos do original)
1.4 - Em sede de cognição superficial, nos termos do art. 273 do CPC, antecipou a tutela
postulada a deferindo nos seguintes termos:
“Por conseguinte, concedo parcialmente a tutela específica para
determinar ao demandado
(a) que se abstenha de admitir empregados ao HPS e SAMU,
diretamente, sem prévia aprovação em concurso público para a
execução de serviços permanentes e essenciais relacionados à sua
atividade-fim ou por interposta pessoa – salvo em relação a
serviços de vigilância, conservação e limpeza ou especializados,
ligados à atividade-meio, em se tratando de empresa prestadora
de serviços -, sob pena de pagamento de multa no valor de R$
10.000,00 por infração e por trabalhador em situação irregular,
reversível ao Fundo de Defesa do Direitos Difusos;
(b) que afaste, no prazo máximo de seis meses, todos os
trabalhadores que prestem serviços junto ao HPS e SAMU por
meio de cooperativas de trabalho em relação a atividades
permanentes, precipuamente de limpeza e conservação, auxiliar
de lavanderia, auxiliar de cozinha, telefonista e portaria, bem
como aqueles que lhe prestem outros serviços de caráter
permanente (não –eventual), de forma pessoal, subordinada e
onerosa, por intermédio de interpostas pessoas, sob pena de
pagamento de multa no valor de R$ 10.000,00 por infração e por
trabalhador em situação irregular, reversível ao Fundo de Defesa
do Direitos Difusos.”
(grifou-se, págs. 08-11 da medida, Anexo-3, fls.)
1.5 - Interposto o presente Mandado de Segurança, e liminarmente mantida esta decisão,
com subseqüente Agravo Regimental, que não fora provido, esta decisão não foi alterada.
200 Revista da PGM
1.6 - O âmbito de divergência do presente recurso reside na manutenção da medida
de antecipação de tutela concedida com a denegação da segurança, ante a existência de
direito líquido e certo a permitir o afastamento da tutela antecipada e diante de regras que
impediam a concessão nos termos admitidos, em especial em relação a normas
constitucionais, que impedem o alcance dos efeitos do provimento judicial na esfera da
autonomia e da liberdade contratual do ente público.
II - DA DECISÃO RECORRIDA
2.1 - A decisão ora atacada veio assim ementada:
“ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA EM AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE COOPERATIVAS DE NÃO-DE-OBRA
PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS DO MUNICÍPIO. Não
há ilegalidade na decisão que, à luz da verossimilhança das
alegações e do dano de difícil reparação, antecipa os efeitos da
tutela para coibir a contratação de cooperativas de mão-de-obra
para prestação de serviços essencial do Município – saúde -, o
qual é indelegável pelo meio eleito pelo impetrante. OJ 64 da
SDI-II do TST cujo entendimento se adota. Segurança denegada.”
2.2 - O no que pertine, colhem-se as seguintes passagens:
“ ..
Destaca-se, inicialmente, que o pedido de concessão da segurança diz
textualmente: ‘conceder a segurança para cassar ou revogar o provimento
de “..antecipação de tutela deferida por ato do MM. Juiz Substituto da
18a
. Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos autos do processo nº. 01765-
2006-018-04-00-7 – Ação Civil Pública (...)’. Contudo, a causa de pedir
da petição inicial restringe-se os argumentos ao não-preenchimento dos
requisitos contidos no art. 273 do CPC,sob o argumento de que legal a
contratação de cooperativas de mão-de-obra por meio de processo
licitatório. Esse mesmo argumento o impetrante utiliza para amparar a
alegação de existência de direito líquido e certo e da arbitrariedade do
ato coator. Portanto, a ação mandamental é restrita ao item ‘b’ da decisão
antecipatória de tutela.
(...)
Acresça-se, ainda, que dos fundamentos da decisão antecipatória de tutela
verifica-se que a verossimilhança deita raízes mais profundas e que vai
além da controvérsia acerca da contratação de cooperativas de mão-de-
Nº 24 - Dezembro 2010 201
obra para a prestação de serviços permanentes e necessários. É que o caso
presente trata de terceirização de serviço essencial do Município - saúde -
, o qual é indelegável pelo meio eleito pelo impetrante (art. 37, II, c/c art.
198 da CF/88). Desta forma, irrelevante a inexistência de vedação na Lei
8.666/93 acerca da participação de cooperativas nos processos licitatórios.
Com base no mesmo fundamento, a garantia de igualdade dos concorrentes
no processo de licitação, garantia prevista no art. 37, XXI, da CF/88, não
socorre a tese de direito líquido e certo do impetrante. A norma
constitucional se destina a assegurar a igualdade de condições entre os
concorrentes, não estendendo sua eficácia ao amparo da utilização do
instituto do cooperativismo para mascarar empresa prestadora de serviços.
O prazo de seis meses para que os trabalhadores exercentes de atividades-
fim do HPS e SAMU por interposta pessoa – cooperativas – sejam afastados
não irá onerar desproporcionalmente o Município.
(...)
Desta forma, não se verifica perigo de dano irreparável ou de
irreversibilidade da decisão porque
o término desses contratos ocorrerá dentro do prazo de seis meses
definido na decisão antecipatória. De qualquer maneira, o Município
terá de providenciar novos contratos de prestação de serviços, sendo
que o prazo de seis meses revela-se razoável para tanto.
Por fim, não prospera a alegação dos impetrantes de que a decisão
antecipatória possui “efeitos inespecíficos, na medida em que é
direcionada ao HPS e SAMU. Segurança denegada.” (grifou-se)
- DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
2.3 - Quanto ao ponto em que o acórdão restringe a impugnação, especificamente porque
fora solvida tendo em conta tão-somente o entendimento de que o impetrante teria dirigido à sua
pretensão somente ao “item b”, foram interpostos embargos de declaração, sublinhando o
específico enfrentamento do tema e a específica irresignação e dando ênfase à violação do art. 2º
e ao art. 5º, caput, e inciso II, ambos da CF, visto o expresso comando do provimento
para a abertura de concurso público para postos de telefonistas do Serviço de Emergência do
Município – SAMU e ao entendimento do C. STJ quanto à impossibilidade de concessão de
tutela com efeitos de irreversibilidade.
Estes argumentos, por expressa invocação - itens IV, V e XI, em item próprio quanto
à existência de Pressuposto Negativo da Tutela Antecipada - à evidência, fizeram parte
da causa de pedir e expressamente pugnaram pela desconstituição do item “a” da medida
202 Revista da PGM
antecipada, ante a manifesta violação às regras constitucionais sublinhadas, na medida
em que os comandos ali postos adentram na esfera precípua de agir administrativo,
que não permitiria ordens com este grau de ingerência da Administração Pública, na
expressa dicção das normas constitucionais, em especial o art. 2º da CF.
Os embargos não foram providos (fl.s).2
- DOS LIMITES DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
O Autor da Ação Civil Pública relatou a existência de contratos entre o ente ora impetrante
e algumas cooperativas, a saber: COOPERSERV - Cooperativa de Serviços e Mão-de-Obra Ltda.,
PORTSERV – Cooperativa Gaúcha de Serviços Gerais Ltda., META – Cooperativa de Serviços Ltda.
e COOTRAVIPA – Cooperativa de Prestação de Serviços dos Trabalhadores das Vilas de Porto Alegre
Ltda., através dos quais ter-se-ia implementado a terceirização de alguns serviços a serem prestados
em favor do HPS – Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre e ao SAMU – Serviço Médico de
Atendimento de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde.
Os objetos destes contratos voltam-se para serviços de higiene, limpeza e
conservação, portaria, e telefonia – compreendendo auxiliares de serviços gerais,
auxiliares de lavanderia e auxiliares de cozinha - contratos anexos, fls.
Tais contratações representariam burla a legislação trabalhista, na medida em que os
associados dessas cooperativas, embora formalmente vinculados na condição de autônomos,
prestariam serviços não eventuais, sob dependência e mediante salário, na condição, portanto,
de empregados.
Partindo dessa premissa, deduziu vários pedidos, inclusive em sede de antecipação de
tutela, pressupondo a inexistência de trabalho cooperativado nas relações então investigadas –
inicial da ACP.
Nessa linha, concluindo pela ilicitude das terceirizações encetadas pelo Município, uma
vez que as funções então terceirizadas seriam essenciais e não atividades secundárias ou
atividades-meio, mas atividades principais do ente público, proclamou a responsabilidade
do ente público impetrante.
Assim agindo, teria violado o art. 37 da CF, conquanto não teria havido concurso
público para a prestação de serviços na forma do art. 3° consolidado, bem como reclamou,
em forma sucessiva, em não se admitindo a supressão das contratações engendradas com
as cooperativas, a incidência do art. 7° da CF, para o fim explícito de o Município assegurar
aos trabalhadores os direitos sociais ali previstos e que nominadamente específica – item
“c” da inicial da Ação Civil Pública.
Levando ao extremo a presunção de fraude decorrente de tal raciocínio, o Autor conclui
que havia um dever do tomador de serviços de evitar a contratação de entes prestadores de
2
- EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ABRANGÊNCIA DA AÇÃO DE SEGURANÇA. VÍCIO DE OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.
Especificada, fundamentadamente, a abrangência por que foi conhecida a ação de segurança, insurgência a esse respeito
não espelha vício de omissão no julgado, nem se veicula por embargos de declaração.
Nº 24 - Dezembro 2010 203
serviço que declaradamente não utilizam trabalhadores sob vínculo de emprego, como é o
caso, por exemplo, das cooperativas de trabalhadores, pena de multa por infração e por
trabalhador encontrado em condições de trabalho subordinado..
Daí por que, como pedidos principais, pugnou pelo impedimento de contratação
com estes entes, tanto para atividades-meio como para atividades-fim, sob pena de
multa por infração e por trabalhador flagrado em condições de subordinação, nos termos
do art. 3° da CLT.
Bem como para que o ente público, em um prazo de seis meses, afastasse todos
os trabalhadores que prestem serviços através de cooperativas nas atividades de limpeza
e conservação, auxiliares de lavanderia, auxiliares de cozinha, telefonista e portaria.
O móvel da demanda e o elemento preponderante para o desfecho da controvérsia seriam
o modo de funcionamento das cooperativas, diante do caráter prejudicial que as relações entre
‘associados’ e as cooperativas impõem à ordem jurídica trabalhista, porquanto mascarariam
verdadeira relação empregatícia sob os auspícios do não cumprimento de regras que disciplinariam
a hipótese e de contratações que seriam irregulares perpetradas pelo ente público ora demandado.
Delineada a demanda em seus elementos objetivos, mereceu, por parte do município ora
agravante, desde a contestação, um realce para uma condição fática (e, enquanto tal, fato
público e notório) que se somou à constatação admitida pela própria inicial da Ação Civil Pública
de que os serviços consistem nos supra descritos, e que se prende à circunstância de
que as contratações inquinadas de ilegais foram precedidas de certame licitatório (nas
modalidades Concorrência e Tomada de Preços), nos quais sagraram-se vencedoras as
cooperativas citadas, que participaram em igualdade de condições com os outros
habilitados, dados inequivocamente constatados pelos instrumentos contratuais acostados com
peça vestibular e a contestação e ora também juntados (inicial e contestação anexas).
- DO MÉRITO
III- DA DEMANDA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DAS QUESTÕES FÁTICAS E
JURÍDICAS A ELA SUBJACENTES
III.a- DO ALCANCE DA IMPUGNAÇÃO
Visto os limites em que decidida a ação e a controvérsia sobre este ponto é imprescindível,
por primeiro, a correta definição do alcance em que proposta a demanda.
3.1.a - Tendo em conta os limites da demanda subjacente (ACP), da extensão das decisões
havidas e da complexa situação fática e jurídica que delas decorrem, pede-se vênia para renovar
alguns tópicos já introduzidos na ação de Mandado de Segurança e em contestação da Ação Civil
Pública para a correta compreensão do tema e da controvérsia.
3.1.b - Como sublinhado, o objeto do “mandamus” não visou apenas a desconstituir o
contido no item “b” desta, mas, também, e principalmente, ao contido no item “a”, exatamente
pelos comandos ali postos, que, no entender do Município e como sublinhado desde a
204 Revista da PGM
contestação da ACP e na própria inicial do Mandado de Segurança, adentram na autonomia, na
esfera administrativa e contratual do município, infringindo a regra do art. 2° do CF (itens 4.2
e 5.14 da inicial do MS).
3.1.c - Neste ponto, expressamente asseverou o Município que a relevância do tema
era por demais complexa para, em sede de antecipação de tutela, ordenar o desfazimento
de contratos e impedir contratações, reordenando o serviço público com comando
para realizar concurso público, preencher quadros funcionais com a criação de cargos
e funções, razão pela qual, diante desse alcance, imiscui-se na esfera da atividade e
da liberdade contratual do ente público para, com supressão de atividade legislativa
específica, obstaculizar pactuações administrativas e regrar de modo diverso da lei e
das prerrogativas constitucionais aos Municípios conferidas.
Como visto, com tal extensão, a medida antecipada, em última analise, satisfez as
pretensões deduzidas em sua totalidade, condição que, em se cuidando de liminares, é vedada
pelo STJ.
Diante de tais termos, seria demonstrada a incorreção da medida deferida e, por
conseqüência, a existência de direito líquido e certo do Município a ser resguardado e
para vê-la desfeita, em particular quanto às normas que especificou, a saber: art. 2°
(resguardado pelo art. 60, §4°, III, como cláusula pétrea); - art. 5°, “caput” e
XVII; - art. 37, XXI; art. 174, §2°; todos da CF; art. 442, §único, da CLT; art. 3°, §1°,
II, da Lei de Licitações
Este é o alcance da impugnação do Mandado de Segurança.
IV- DA DECISÃO RECORRIDA – E DO DIREITO LÍQUIDO E
CERTO DO MUNICÍPIO
4.1 - A decisão antecipatória veio nos termos acima especificados e mantida com o
indeferimento da medida liminar postulada no Mandado de Segurança .
4.2 - Com a devida vênia do douto prolator, a manutenção da medida antecipatória com
a denegação da segurança está juridicamente equivocada, condição que se tentará demonstrar
com os argumentos adiante alinhados.
4.3 - Observou-se que a medida antecipatória contou com deficiências jurídicas
suficientes para ensejar o seu indeferimento.
Afirmou-se que a lei é violada quando incidiu quando não era o caso de incidência, bem
como quando deixou de incidir quando era caso de incidência obrigatória.
Estas condições se apresentaram na hipótese em exame:
(a) por que não estavam presentes os requisitos do art. 273 do CPC, permissivos
ao deferimento da medida antecipatória; portanto, incidiu quando não era
caso de incidência;
Nº 24 - Dezembro 2010 205
(b) quando o conteúdo da antecipação, com comandos para desfazer e impedir
contratações, condição que acabaria por reordenar o serviço público com
supressão de atividade legislativa específica, viola o art. 2° da CF, regra que
deveria incidir e foi irregularmente arredada;
(c) na medida em que obstaculiza contratos administrativos e regra-os de modo
diverso do conferido pela lei e por prerrogativas de ordem constitucional
conferidas aos Municípios, também ofende de forma direta ao art. 2° da CF; norma
que, de igual modo, teria incidência obrigatória e irregularmente deixou de incidir;
(d) quando ordena a realização de concurso público, com a conseqüente
determinação para criação de cargos e funções públicas, também ofende o
art. 2° da CF, que, por mais este motivo, deixou de incidir quando era de
incidência obrigatória;
(e) o comando para impedir a participação de cooperativas em procedimentos
licitatórios viola o princípio da isonomia estampados nas regras do art. 3°,
§1°, II, da Lei 8.666/93, art. 5°, II, e art. 37, XXI, da CF, que eram de incidência
obrigatória e foram indevidamente afastadas;
(f) quando, também por conta do comando para afastar cooperativas de licitações,
também atinge regras constitucionais principiológicas garantidoras da
formação e do associativismo via cooperativas, inclusive cooperativas de
trabalho, como o art. 174, §2°, da CF;
(g) por fim, atinge o próprio art. 442, §único, da CLT, quando acaba por suprimir
atividade especifíca do Poder Judiciário de investigar, em ações individuais e
em casos concretos, eventuais incorreções que somente por este meio
poderiam ser analisadas, presumindo ilícitas todas as relações travadas com
cooperativas, quando se sabe que essa condição se encontra absolutamente
inexistente; portanto, esta decisão, nos limites em que proferida, impede a
correta incidência desta norma.
V- DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E DO PROCESSO LEGISLATIVO
INCIDENTES – DOS REFLEXOS FINANCEIROS E DA CRIAÇÃO DE CARGOS
PÚBLICOS
5.1 - Agrega-se ao acima posto, a absurda consideração de que o cumprimento do
provimento não interferiria, acarretaria ou oneraria desproporcionalmente o ente público.
Particularmente neste tópico, considerando a exigüidade do tempo concedido (e
pouco importa, aqui, a consideração de que os contratos vigentes terminariam dentro do
206 Revista da PGM
período de seis meses), há de ser levado em conta às necessárias, imprescindíveis e
decorrentes implicações no orçamento público e no procedimento legislativo – limitações
da Lei de Responsabilidade Fiscal e Projeto de Lei para a criação de cargos de telefonistas e
com a autorização legislativa para tanto.
5.2 - Observe-se, por exemplo, o art. 21 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que
dispõe ser nulo de pleno direito o ato que provoque aumento de despesa com pessoal e não
atenda às exigências dos art. 16 e art. 17 desta Lei Complementar, e ao disposto no art. 37,
XIII e no art.169, §1º, ambos da CF.
A regra do art. 16 dispõe sobre a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação
governamental que acarrete aumento da despesa. A norma explicita que o ato que acarrete aumento
de despesa deverá estar acompanhado de (I) estimativa do impacto orçamentário-financeiro no
exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes, e (II) declaração do ordenador de
despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária
anual e compatibilidade com o Plano Plurianual e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.
“art. 169, §1º, CF- A concessão de qualquer vantagem (....), a
criação de cargos, empregos ou funções públicas (...), bem como
a admissão de pessoal ou contratação de pessoal, a qualquer título,
(...), só poderão ser feitas:
I- se houver prévia dotação orçamentária suficiente (...);
II- se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias
(...);”
(grifou-se)
5.3 - Estas condições jurídicas, na forma em que foram delineadas pelas decisões havidas
e ora mantida pela r. decisão que se impugna, configuram direito líquido e certo do Município-
Agravante para vê-las corretamente aplicadas ao caso concreto.
5.4 - Nesses termos, adiante restarão demonstradas a incorreção, a ilegalidade
e, em matéria de fundo, a inconstitucionalidade da medida deferida e ora atacada; por
conseqüência, a existência de direito líquido e certo do Município a ser resguardado e
para vê-la desfeita.
VI- DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E DOS REQUISITOS
JURÍDICOS PERTINENTES
- DO ART. 273 DO CPC
6.1 - O ordenamento já previa para o deferimento de medidas cautelares a comprovação
do “periculum in mora” e o “fumus boni iuris”, que, para as hipóteses de medidas antecipatórias
e de liminares específicas3
, redundou na pré-existência de “prova inequívoca”, da “verossimilhança
da alegação” e do “fundado receio de dano irreparável”.
Nº 24 - Dezembro 2010 207
6.2 - Resumidamente, o sistema jurídico brasileiro examina estes requisitos como graus
de probabilidade. 4
Para (a) a verossimilhança da alegação, requer uma probabilidade satisfatória ou máxima,
dependendo sempre de um “juízo de delibação”5
, portanto, análise dos aspectos subjetivos do
“thema decidendum” para a verificação desses diferentes graus de probabilidade das alegações,
entendendo-se esta como credibilidade e certeza jurídica, já que aparência ou plausibilidade
jurídica dirá com medidas cautelares; e (b) prova inequívoca, reconhecidamente verdadeira, com
alto grau de certeza, com máxima carga de motivos e razões aptas a permitirem um juízo de
“probabilidade segura”6
, com atividade cognitiva que não pode se restringir a um simples ou
superficial exame jurídico da hipótese.
Portanto, o sistema exige a existência do trinômio - alegação, fato e prova. Para o caso,
inexistiu nos moldes perpetrados pela lei e que autorizariam um juízo antecipatório como o
deferido.
- DA INEXISTÊNCIA DA VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO
6.3 - Como sublinhado, esta condição jurídica deveria vir pautada por um exame de
probabilidade, de certeza jurídica, e que esta contivesse um grau suficientemente elevado
capaz de permitir um exame dos aspectos subjetivos das alegações, provas e fatos que
conduzam a uma aparência de verdade, sem ater-se um simples exame dos limites e das
condições jurídicas.
Pois bem, transpondo estas análises para a hipótese concreta, ver-se-á com clareza que
esta condição ficou ausente.
6.4 - A medida deferida examina dois aspectos já observados acima: o primeiro, uma
demanda individual (processo n°. 1019.018/92-5, anexo-4), do ano de 1992, onde resultou em
um juízo de procedência desta reconhecendo que a relação do trabalhador com a cooperativa
então demandada era de emprego e não de associado ou cooperado.
Porém, um exame um pouco mais acurado das alegações deduzidas pelo
Município afastaria dúvidas sobre este ponto em particular, especialmente quando esse
Tribunal Regional, em sucessivas outras demandas individuais, tem afirmado a correção
de relações travadas entre trabalhadores e cooperativas, balizadas pelo art. 442, §único,
da CLT, admitindo tais relações como de associados ou entes cooperados, nos termos da
lei (doc. anexo).
A análise procedida pela Autoridade Coatora e mantida pelo acórdão deveria buscar uma
probabilidade de certeza infinitamente maior.
Na decisão de antecipação não houve qualquer menção ao fato de essa Corte Regional já
ter enfrentado o tema, em julgamento de Ação Civil Pública promovida pela mesma parte, em
3
- art. 461, §3°, do CPC
4
- Código de Processo Civil Reformado, J. E. Carreira Alvim, 6a
. Ed., Forense, págs. 94 e segs.
5
- expressão citada pelo autor, obra citada, pág. 97.
6
- idem, pág. 106/107
208 Revista da PGM
termos tais que se constituía, ao menos, em questão prejudicial para um julgamento e que
permitisse antecipar os pedidos com o alcance dado.
Esta decisão veio nos seguintes termos:
Processo n°. 00922.018/98-7,com trânsito em julgado neste mês de
agosto/2006 (decisão anexa).
A hipótese versava sobre contratação, através de cooperativa, de auxiliares de
cozinha, portanto, atividades-meio, de caráter permanente, para escolas da rede municipal
de ensino e veio proferida nos seguintes termos:
“EMENTA: MUNICÍPIO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
Ao Poder Público cumpre organizar o seu pessoal, em termos de
cargos, empregos e funções públicas na forma de como previsto
no art. 37 da CRFB/88, respectivos incisos e correspondentes
parágrafos, no que incluída a previsão do inciso IX para situações
especiais, mas excepcionadas, as atividades-meio a exemplo das
contempladas no entendimento sumulado por via do Enunciado
331/TST.”
No que interessa, salientam-se os seguintes pontos:
“5. REGULARIDADE DAS CONTRATAÇÕES
...
Sustenta que os contratos tachados de ilegais foram celebrados com
amparo na lei das licitações, destacando o art. 71 da Lei 8.666/93, que
isenta o Poder Público de responsabilidade quanto aos direitos trabalhistas
dos empregados de empresa contratada; que a decisão de origem investe
contra o parágrafo único do art. 442 da CLT, que afasta o vínculo de
emprego entre a sociedade cooperativa e seus associados; que os serviços
da contratação em tela, porque dizentes com higiene, limpeza e cozinha,
não se constituem de atividade-fim do serviço público de ensino, senão
que atividade-meio; ...
... que não há possibilidade legal de impedir a participação de Cooperativas
em certames licitatórios.
Com razão.
As relações entre associados de cooperativas e suas entidades e destas
com empresas ou órgãos públicos tomadores de serviços têm sido motivo
de grande e crescente preocupação, especialmente em locais onde a mão-
de-obra braçal é mais exigida, tendo muitos estudiosos se debruçado
Nº 24 - Dezembro 2010 209
sobre a matéria, uns para concluir pela “fraudoperativa” e outros pela
legal existência de tais entidades, erigindo-se em uma oportunidade de
trabalho em um mercado escasso.
A propósito, não deixa de marcante quanto se lê na última capa da obra
“COOPERATIVAS DE TRABALHO - Existência Legal” (FERRARI, Irany. SP,
LTR, 1999), no sentido de que : “Não se pode admitir, por excesso de
zelo ou por tutela indesejada, que toda e qualquer cooperativa de
trabalho, urbana ou rural, seja fraudulenta ou prejudicial a seus
associados que buscam o trabalho solidário e a conquista de seu
próprio destino. Os exemplos de sua atuação benéfica multiplicam-se
a cada dia, como mostra a realidade, apesar dos preconceituosos que
só vêem o trabalho válido se sob a forma subordinada”.
(...)
Na mesma publicação: “Deveras importante trazer à lume ensinamentos
do Professor Octavio Bueno Magano: ‘... As condições do mundo moderno
implicam a generalização da atuação de cooperativas, fenômeno que
se conjuga com a tendência no sentido da terceirização. No passado
remoto o fenômeno da terceirização encontrava-se extremamente
marginalizado por obra do Enunciado n. 256, do TST.( ...). Tem-se, pois,
que, desde janeiro de 1994 (data de publicação do Enunciado n. 331),
tornou-se possível a terceirização de atividade-meio das empresas.
Posteriormente, com o advento da Lei n. 8949/94, desapareceram óbices
à terceirização, quer no que concerne à atividade-meio, quer no que
respeita à atividade-fim, desde que a sociedade colocadora de mão-de-
obra se revista da forma cooperativa. (...) Os críticos da nova lei
costumam dizer que a disposição do parágrafo único, do artigo
442, da Consolidação das Leis do Trabalho, porque tal
hermenêutica feriria princípios constitucionais e
especialmente o Enunciado n. 331, do Tribunal Superior do
Trabalho. Essa tomada de posição fulmina-se com a simples
invocação do princípio de que o intérprete não distingue onde
a lei não distingue. Ora, se a Lei n. 8949/94 não faz distinção
entre atividades-meio e atividade-fim, não é dado ao intérprete
fazê-la. Por outro lado, querer contrapor a Constituição à regra
contida no parágrafo único do art. 442, da Consolidação das
Leis do Trabalho, é olvidar que a Lei Magna, consoante já
salientado, dá especial relevo ao cooperativismo, de um modo
geral, como se constata pela leitura dos seus artigos 174, 2º,
187, inciso VI e 192, inciso VIII. Outro argumento usado pelos
adeptos do imobilismo é o de que a terceirização de atividades,
mediante a contratação com cooperativas violaria os artigos
210 Revista da PGM
9º e 444 da CLT. Sucede que os preceitos de lei em causa só
podem ser tidos como violados, quando impedida ou desvirtuada
a aplicação do corpo de leis de que fazem parte. Ora, é a própria
Consolidação das Leis do Trabalho que prevê o funcionamento
de sociedade cooperativa, sem a configuração de vínculo de
emprego entre ela e seus associados, ou entre estes e os
tomadores do serviço daquela”.
Assim, tendo-se como certo que a CRFB/88, especialmente nos seus
arts. 5º, XVII e 174, § 2º , abre margem para o “cooperativismo e
outras formas de associativismo”, com recepção de quanto previsto
na Lei nº 5.764/71 e ainda que a recente alteração havida no texto da
CLT, através da Lei nº 8.949/94, no sentido de que “qualquer que
seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo
empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os
tomadores de serviços daquela”, vem a prestigiar a fundação de
cooperativas de trabalho, tem-se como certo que é esta, sem dúvida,
no contexto legal atual, forma de atender às exigências de mão-de-
obra supletiva para eventos e/ou para atividades-meio, ao mesmo
tempo em que restam abertas possibilidades de trabalho num
mercado extremamente reduzido.
Ainda que tanto legitime, no contexto de direito, as cooperativas de
trabalho, não há como deixar de ter como certo, porém, que tal
legitimação não confere ao Poder Público a possibilidade de desincumbir-
se de seus deveres básicos para com a coletividade (atividade-fim), através
da contratação de cooperativas.
Ao Poder Público cumpre organizar o seu pessoal, em termos
de cargos, empregos e funções públicas na forma de como
previsto no art. 37 da CRFB/88, respectivos incisos e
correspondentes parágrafos, no que incluída a previsão do
inciso IX, para situações especiais, quando “a lei estabelecerá
os casos de contratação por tempo determinado para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público” e
excepcionadas, ainda, as situações especificamente
contempladas no entendimento sumulado por via do Enunciado
331/TST, quais sejam, trabalho temporário ( Lei 6019/74),
serviços de vigilância (Lei 7.102/83), conservação e limpeza,
serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador,
desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta.
No caso do autos, envolvendo a matéria contratação de serviços com a
COTRAVIPA na atividade-meio do tomador e uma vez “inexistente a
pessoalidade e a subordinação direta” e considerado ainda que mesmo
“a contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta,
Nº 24 - Dezembro 2010 211
não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública
Direta, Indireta ou Fundacional”, na forma do Enunciado 331/TST,
tratando-se de “prestação de serviços de 65 cozinheiros e 156 auxiliares
de cozinha terceirizados nos período de 01 de julho a 31 de dezembro de
1997; 35 cozinheiros e 115 auxiliares de cozinha terceirizados no período
de 01 de janeiro a 28 de fevereiro de 1998...”, para atuação nas escolas
municipais de Porto Alegre, não há como se possa chancelar o comando
posto em Sentença, no sentido de que o Município “somente possa firmar
contratos de prestação de serviços de natureza permanente com
pessoas físicas ou jurídicas que utilizem na sua execução mão de obra
de trabalhadores admitidos sob vínculo de emprego”.
Cumpre, assim, em tal contexto de Direito, dar-se provimento ao recurso
voluntário para absolver o Município da condenação.”
(grifos do original)
6.5 - Ou mesmo em sucessivas demandas individuais com resultado de
improcedência, isto é, mostrando que a relação entre trabalhador e cooperativa não é
de emprego, mas de associado. E recentíssimas, por exemplo (docs. anexos):
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO PELO SEGUNDO
RECLAMADO E REEXAME NECESSÁRIO. IDENTIDADE DE MATÉRIAS.
ANÁLISE CONJUNTA. VÍNCULO DE EMPREGO COM A PRIMEIRA
RECLAMADA (COOEZA) E RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO
SEGUNDO RECLAMADO. “In casu”, não há que se cogitar em
reconhecimento de vínculo de emprego com qualquer dos
reclamados, tampouco em responsabilidade subsidiária do
segundo reclamado, reputando-se perfeita a relação havida entre
as partes, nos moldes do disposto no parágrafo único do art. 442
da CLT. Recurso provido.
(Acórdão processo n°. 01433-2004-018-04-00-0 - REO/RO-, 5a
.
Turma, TRT-4, Rel. Juíza Berenice Messias Corrêa, 06/07/2006)
EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. COOPERATIVA DE TRABALHO.
RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO MUNICÍPIO DE PORTO
ALEGRE. Não restando descaracterizado o caráter associativo da relação
havida entre o autor e a COOTRAVIPA, primeira reclamada, não há como
reconhecer o liame de emprego, tendo em vista o expressamente disposto
nos arts. 90 da Lei nº 5.764/71 e 442, parágrafo único, da CLT. Nesta
linha, não há cogitar de responsabilidade subsidiária do ente municipal
recorrente, como tomador dos serviços. Recurso provido. (Ac. Proc. n°.
00836-2004-018-04-00-2 - RO, 2a
. Turma, TRT-4, Rel. Juíza Convocada
Inajá Oliveira de Borba, 10/05/2006)
212 Revista da PGM
EMENTA: EMENTA: RELAÇÃO DE EMPREGO. COOTRAVIPA. Vencido
o Juiz Relator, decidiu a Turma que, sendo a cooperativa de trabalho
regularmente constituída e atuando na conformidade das suas normas
estatutárias, não se forma vínculo de emprego com o associado, segundo
norma do parágrafo único do artigo 442 da CLT. (Ac. Proc. n°. 00867-
2005-018-04-00-4 – RO, 4a
. Turma, TRT-4, Rel. Juiz Fabiano de Castilhos
Bertolucci, 08/03/2007, publicado em 20/03/2007)
6.6 - Portanto, bastava verificar que e o próprio Tribunal Regional tem posições
não unânimes sobre o tema, condição que, por si só, já inviabilizava a afirmação de
certeza jurídica e sobre a existência de fundado receio de ineficácia do provimento
final (decisão anexa).
VII - DO ALCANCE E DOS EFEITOS DA DECISÃO ACIMA DECISÃO SOBRE O
JULGAMENTO DO PRESENTE MANDADO DE SEGURANÇA
7.1 - Exatamente por conta da decisão posta no item precedente, veiculou o
Município, na contestação da ACP e observou nesta, uma preliminar de “coisa julgada”,
porém, exatamente pelos efeitos de decisões desta espécie, também sublinhando tratar-se de
“questão jurídica” que inviabilizaria o pedido liminar então postulado e, agora, a própria decisão
que se recorre.
7.2 - Argumentou-se que havia uma questão jurídica, quanto à constituição da Cooperativa
COOTRAVIPA, à luz da Lei n°. 5.764/71, que já havia sido deduzida e enfrentada pelo Tribunal
Regional, no processo n°. 00922.018/98-7, Rel. Juiz Lenir Heinen, 1a
. Turma, decisão de abril/
2003, então manejada em Ação civil Pública pela mesma parte ora demandante.
7.3 - Este enfrentamento pelo Tribunal conduziu para um exame de mérito que não
poderia ser revolvido. Assim, no particular, caberia um juízo preliminar de extinção do processo,
uma vez que seria inviável novo exame para investigar situação jurídica em que já houvera
apreciação de mérito entre as mesmas partes.
Esta mesma questão também fora enfrentada em demandas com matéria conexa – v.g.,
processos n°. 01370.025/97-1 (RO), Rel. Juiz José Antônio Pereira de Souza, publicado em 02/04/
2001, 1a
. Turma, n°. 95.019927-3 (REO/RO), Rel. Juíza Dulce Olenca Baungarten Padilha, publicado
em 04/05/2001, 2a
. Turma. (docs. anexos, fls.)
Assim:
“EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IDONEIDADE DA COOTRAVIPA
PARA FORNECER/LOCAR MÃO-DE-OBRA. Não há que se falar em
fraude no comportamento da cooperativa reclamada, eis que a
prestação de serviços é um de seus objetivos legalmente
assegurados. Observa-se, ainda, que a COOTRAVIPA é
regularmente constituída segundo as normas previstas na Lei n°.
5.764/71 e que os contratos de prestação de serviços firmados
Nº 24 - Dezembro 2010 213
(fls. 18/48) encontram-se dentro dos parâmetros legais. Nega-se
provimento ao recurso.
(Ac. 01370.025/97-1 RO, Juiz Relator José Antônio Pereira de Souza, 18/
01/2001, 1a
. Turma, TRT-4a
. Região)
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COOTRAVIPA. DMLU. Hipótese
em que são se verifica qualquer irregularidade na prestação de
serviços de limpeza urbana pela Cootravipa por meio de seus
sócios, ao DMLU. Trata-se de cooperativa regularmente
constituída, nos termos do art. 90 da Lei 5.764/71 e do art. 442,
parágrafo único, da CLT. Provimento ao recurso ordinário para
absolver a reclamada da condenação imposta.
(Ac. n°. 95.019927-3 REORO, Juíza Relatora Dulce Olenca B. Padilha,
15/01/2001, 2a
. Turma, TRT-4a.
Região)
7.4 - De qualquer sorte, mesmo que não fosse acolhida esta preliminar tal questão jurídica
seria (e é) impeditiva de um juízo de procedência, ao menos quanto aos efeitos sobre a Cooperativa
Cootravipa. Portanto, um juízo de mérito quanto à constituição desta e sua relação contratual
com o ente público não pode ser objeto de nova apreciação que venha a conflitar com o
posicionamento já havido em feito judicial anterior.
Veja-se as decisões acostadas sobre outras ACP, desta feita movidas contras o DMLU -
Departamento Municipal de Limpeza Urbana e Cootravipa, onde discutiu-se exatamente, não
apenas a legalidade da constituição da referida cooperativa, mas principalmente a legalidade no
fornecimento/locação de mão-de-obra (docs. anexos).
Este é apenas um dos aspectos. O outro é que esta decisão havida, efetivamente, impede
um provimento com os efeitos que ora foram dados.
VIII- DO CONCEITO DOS SERVIÇOS E DAS ATIVIDADES IMPUGNADAS
8.1 - É que os efeitos desse julgado não se subsumem a apenas o que foi dito
quanto à Cooperativa Cootravipa.
Há uma necessária constatação que é o fato de que o objeto das contratações ora
impugnadas dizer com as chamadas atividades-meio ou atividades secundárias. Todas as
ora elencadas pelo demandante se encontram nesta categoria.
A segunda, que também antecede a investigação de fundo, é a consideração de que a
presente demanda, quase que em idênticos limites, já fora apreciada pela E. TRT, nos autos dessa
anterior ACP reproduzida acima (processo n°. 00922.018/98-7, com trânsito em julgado
neste mês de agosto/2006 – doc. anexo).
8.2 - Por conseguinte, esta condição, por si só, já foi capaz de não permitir um juízo de
deferimento do pedido liminar.
Diante disso, era forçoso reconhecer a ausência dos requisitos exigidos para
a antecipação, ao menos a inexistência de verossimilhança do direito alegado.
214 Revista da PGM
8.3 - Somente estas questões e dados jurídicos acima levantados já se prestariam para
afirmar a inexistência de verossimilhança da alegação, de prova inequívoca e de justificado
receio de dano irreparável.
8.4 - Não obstante a demanda posta na ACP conexa a este “writ” ter vindo com
parâmetros e limites jurídicos idênticos aos já enfrentados e com decisão de improcedência na
Ação Civil Pública anterior, a particularidade da presente é a extensão da fundamentação e do
pedido e dos limites das atividades almejadas.
E, como já afirmado, a existência do julgamento acima especificado já permitiria dúvida
razoável ou, quiçá, certeza para não permitir o deferimento.
8.5 - Veja-se que a hipótese versada na decisão reproduzida acima diz com
“cozinheiros” e “auxiliares de cozinha” em escolas; nesta, fala-se em “telefonistas”, “auxiliares
de lavanderia”, serviço de limpeza e portaria, etc.; todas atividades ditas de meio, cujas
pactuações, quer com empresas prestadores quer com cooperativas, são plenamente
resguardadas pela Lei e pela Constituição.
XIX- DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA E CONTRATUAL DO MUNICÍPIO
9.1 - A manutenção da decisão antecipada com o r. acórdão ora atacado, revela um agir
jurídico fundado em presunção meramente decorrente de raciocínio indutivo (onde analisa-se
casos individuais e generaliza-se a conclusão, método, inclusive, que já foi suficientemente
afastado como ferramenta idônea para chegar-se a conclusões válidas), acaba, como afirmado,
por adentrar na esfera da liberdade contratual e da autonomia administrativa do
ente público, violando regras constitucionais e infraconstitucionais, a saber:
- art. 2° da CF;
- art. 5°, “caput” e XVII; CF
- art. 37, XXI; CF
- art. 174, §2°, CF;
- art. 442, §único, da CLT;
- art. 3°, §1°, II, da Lei 8.666/93 (Licitações)
9.2 - Estas regras definem a separação de poderes e, com isso, a liberdade contratual e a
autonomia administrativa do município, (art. 2°), assentam e garantem o princípio da isonomia
(art. 5°, “caput” e art. 37, XXI); garantem o livre associativismo (art. 5°, XVII); garantem e
fomentam o cooperativismo (art. 174, §2°); definem a inexistência de vínculo de emprego a relações
entre cooperado e cooperativa (art. 442, §único, da CLT); e garantem a isonomia, permitem a
participação de cooperativas em procedimentos de licitação, vedando qualquer ato que as impeçam
de participar em licitações (art. 3°, “caput”, e inciso II do §1°, da Lei 8.666/93).
9.3 - Portanto, definitivamente, a verossimilhança do direito exigida NÃO
está presente para permitir a incidência da regra do art. 273 do CPC, daí por que
merece ser modificada a r. decisão ora impugnada para, julgando o presente procedente.
Nº 24 - Dezembro 2010 215
X- DA PROVA INEQUÍVOCA E DA EXISTÊNCIA DE DANO IRREPARÁVEL A
SER RESGUARDADO COM A ANTECIPAÇÃO DO PROVIMENTO E DA
SATISFATIVIDADE DA DECISÃO
10.1 - Analisando os limites em que proposta a demanda vê-se que a antecipação deferida
não tem o efeito primordial de resguardar o provimento efetivo ao final do processo.
A sua denegação, ao contrário, NÃO tornaria sem objeto o processo ou imprestável
a sentença.
10.2 - Como ponderado, o art. 273 do CPC consagra tal qualidade de prova que, como
visto, não existe no caso. O trinômio observado pela doutrina – prova inequívoca + juízo de
verossimilhança + fundada alegação – cai por terra, diante das evidências em contrário, inclusive
já enfrentadas por essa Corte Regional, como no julgado antes reproduzido.
10.3 - Se as condições jurídicas já eram suficientes para indeferir o pleito de antecipação,
o MM. Juízo ora invectivado ainda fez mais: adiantou todo o mérito da demanda, a ponto de
ordenar a realização de concurso público, condição que necessariamente, ao caso, implica
criar cargos e funções públicas, desfazer contratos e realizar licitações e em seis meses.
Em tais termos, pouco importando o nome que se dê, o provimento antecipado
rigorosamente satisfez a totalidade, em extensão e conteúdo, as postulações do Ministério
Público.
Ante a irreversibilidade de decisões antecipatórias, assim se expressou o STJ, que, no que
interessa, grifou-se (doc., fls.):
PROCESSUAL CIVIL – TUTELA ANTECIPADA –
IRREVERSIBILIDADE DO PROVIMENTO JURISDICIONAL –
INADMISSIBILIDADE. É inadmissível a concessão da
antecipação dos efeitos da tutela quando houver perigo de
irreversibilidade do provimento antecipado. Isso se verifica no
caso de a tutela pretendida envolver a paralisação total das atividades
da ré, que já a exercia por longo período, sem oposição, fato que
demonstra a ausência de urgência do pedido. Recurso especial
provido. (REsp. n°. 253246/SP, RECURSO ESPECIAL 2000/0028905-
1, Rel. Min. Castro Filho, 3a
. Turma, 20/11/2003, publicado DJ 09/
12/2003, pág. 278, RSTJ vol. 183, pág. 247)
No contexto, portanto, não era de se adiantar provimento quando a
irreversibilidade seria comprometida. Os desfazimentos contratuais seguramente
renderão disputas judiciais subseqüentes e, eventualmente, pagamentos
indenizatórios, bem como ser impossível a realização de procedimentos licitatórios
em tão curto prazo ou que estes não sejam interrompidos ou suspensos por ordens
judiciais, visto a impossibilidade de não permitir a participação de cooperativas
em licitações.
216 Revista da PGM
10.4 - A manutenção da medida renderá subseqüentes indenizações, quiçá com
vultosos pagamentos, por que a rescisão, antes do regular termo final de contrato
administrativo, sem culpa da contratada, causa dano a esta. Pelo dever de indenizar,
ainda que advindo de ordem judicial, há a presença de fundado receio de dano
irreparável e irreversível ao Município.
10.5 - Tal como decidido, a medida tem caráter definitivo, impedindo qualquer retorno
às condições jurídicas anteriores ou iniciais. Por conseguinte, em tal caso, jamais caberia o
deferimento da medida.
Ademais, os direitos em jogo não seriam prejudicados pela demora do
término do curso normal do processo; ao contrário, desfazer contratos implicará
imediatamente desempregar.
10.6 - Ainda, cabe salientar que quando, por uma determina via jurídica, se pretende um
efeito normativo diverso daquele que seria plenamente atingido por outra via expressamente
determinada e prevista no ordenamento para tanto, afirma-se que há um subterfúgio legal para
atingir este objetivo. Este modo de agir é ofensivo ao “Devido Processo Legal”.
Observou-se que a via escolhida para o ataque a supostas relações inquinadas de ilícitas
poderiam dar-se pela desconstituição das cooperativas então irregulares, nos termos das leis
permissivas a sua criação e funcionamento, mas jamais pela restrição à liberdade contratual do
ente público, negando vigência a todo um conjunto normativo incidente e adentrando na esfera
da autonomia dos municípios.
Diga-se, a propósito, que o Ministério Público tem ao alcance outras instituições para,
quando necessário, investigar essas cooperativas, a fim de, efetivamente, quando atinente,
desconstituí-las ou, que seja, atacá-las para esse fim e não, pela via indireta, imiscuir-se na esfera
e na autonomia contratual municipal.
XI- DO FUNDADO RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL E DA EXISTÊNCIA DE
COMANDOS INESPECÍFICOS
11.1 - Nesse ponto, há aspectos diferentes a ser tratados. Por primeiro, a par dos comandos
que contêm o provimento adiantado, por si sós, causadores de danos, aí sim, irreparáveis, ao
Município, como a ordem para imediatamente contratar, por suposto, subtraindo o juízo de
conveniência do ente público, com a criação e cargos e funções, talvez impedindo atingir a limitação
constitucional de gastos com quadros funcionais; depois, para os desfazimentos contratuais e
realizações de novos certames licitatórios.
Em segundo lugar, analisando os comandos contidos no provimento, verifica-se
a incerteza neles afirmados, quando, por exemplo, observa “... outros serviços de caráter
permanente...” ou “... serviços permanentes e essenciais...” sem especificá-los, deixando
uma conduta a ser exigida em momento futuro ou que outros atos administrativos,
porventura conexos, sejam ou tenham eficácia antecipadamente contida ou sejam
impedidos de expedição, tornando-os destituídos de certeza.
Nº 24 - Dezembro 2010 217
11.2 - Do que se verificará a seguir, o único fundado receio de dano irreparável não é o
que justificou o deferimento da medida, que, como visto, inexistiu, mas, sim, de dano irreparável
ao Município-Impetrante e ora Agravante, que se verá atingido em sua liberdade contratual e em
sua esfera administrativa, tendo de desfazer uma séria de pactuações em curso e outras que
sofrerão os efeitos diretos e reflexos desta decisão.
- DA IMPOSSIBILIDADE DE EVITAR-SE A PARTICIPAÇÃO DE
COOPERATIVAS EM PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS
11.3 - Como corolário da ordem, há uma conseqüência inevitável e de difícil composição,
quer quanto aos efeitos práticos dela decorrentes, quer quanto à possibilidade jurídica de
atendimento, qual seja a não participação ou o impedimento de participação de cooperativas em
procedimentos licitatórios, ante o princípio da isonomia e da competição.
Sabidamente, não há nada que as impeça de participar. Há diretrizes, não apenas
principiológicas, que permitem suas inclusões em licitações, veja-se o art. 3° da Lei de Licitações
(Lei 8.666/93), cujo conteúdo afirma a isonomia, e cujo §1°, I, impede a existência de vedações
que restrinjam qualquer condição ou tratamento diferenciado. No mais, o próprio art. 37, XXI, CF,
garantidor do princípio isonômico.
11.4 - Tanto quanto o art. 273 do CPC, cuja incidência ao caso foi indevida, na medida em
que, como visto, ausentes os requisitos permissivos para isso, o mesmo se dá quanto às regras
garantidoras do princípio isonômico, cuja incidência, também, não pode ser afastada no trato
contratual com as cooperativas.
Lei 8.666/93
Art. 3°- A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa
para a Administração, e será processada e julgada em estrita conformidade
com os princípios básicos da legalidade , da impessoalidade, da
moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa,
da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e
dos que lhe são correlatos.
§1° - É vedado aos entes públicos:
I - ...
II- estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial,
legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre
empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a
moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos
218 Revista da PGM
financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no
parágrafo seguinte e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de
1991. (grifou-se)
Por sua vez:
Art. 37, XXI, CF – ressalvados os casos especificados na legislação,
as obras, serviços, compras e alienações serão contratados
mediante processo de licitação pública que assegure igualdade
de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta,
nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação
técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das
obrigações. (grifou-se)
11.5 - Com base nestas normas, as licitantes-cooperativas ingressam com Mandados de
Segurança ou outra medida que permita provimento antecipatório ou liminar e obtém a ordem
respectiva para participar dos certames.
Veja-se o entendimento do TJRS sobre o assunto em recentíssimas decisões, inclusive
sobre os chamados TAC - Termos de Ajustes de Conduta patrocinado pelo próprio Ministério
Público do Trabalho, em que foi parte META COOPERATIVA DE SERVIÇOS LTDA., cuja contratação,
por força desta ação, pode vir a sofrer os efeitos diretos da futura decisão final – doc. anexo. -10.
Assim:
Agravo de Instrumento. Licitação e contrato administrativo. Ação
Declaratória de Nulidade e julgamento à participação de
cooperativa de trabalho em certame promovido pelo Banrisul.
Ofensa ao princípio da isonomia. Antecipação de tutela para a
abertura do envelope de proposta. Cabimento. Agravo provido.
(proc. n°. 70015367196, Agravante: Meta Cooperativa de Serviços Ltda.,
Agravado: Banrisul, 21a.
Câmara Civil, TJRS, Rel. Des. Francisco José
Moesch, 11/10/2006)
AGRAVO E INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. ANTECIPAÇÃO
DE TUTELA. LICITAÇÃO. COOPERATIVA DE MÃO-DE-OBRA.
EXCLUSÃO EM EDITAL DE CONVOCAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. A licitação destina-se a
garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e
selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração. Constitui-
se em quebra deste princípio a exclusão de determinada
modalidade de sociedade, no caso, cooperativa de mão-de-
obra, no edital de convocação. A habilitação destas entidades em
Nº 24 - Dezembro 2010 219
provimento antecipatório é medida que atende à verossimilhança do
direito invocado e ao risco da demora. Agravo provido. (Agravo de
Instrumento n°. 70010891885, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz, 15/
06/2005)
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SEGURANÇA.
LICITAÇÃO. COOPERATIVA DE MÃO-DE-OBRA. EXCLUSÃO DO
PREGÃO ELETRÔNICO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA ISONOMIA.
Não há omissão no acórdão que reconhece a ilegalidade do ato
administrativo que restringe a participação de cooperativa de
mão-de-obra em licitação. Embargos rejeitados. (Embargos de
Declaração, 21a
. Câmara Cível, proc. n°. 70016634172, Embargante:
Banco do Brasil, Embargado: Cooperativa de Transporte e Serviços do
Sul Ltda. COOPSUL, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz, 11/10/2006)
(grifou-se)
11.6 - Ou em recente notícia e decisão do TJRS, março/2007, (doc. anexo) sobre
alterações de edital que visem a impedir a participação de cooperativas em certames licitatórios.
“ Rh.
A restrição lançada no item 1° do Edital a participação das
cooperativas de trabalho efetivamente, salvo melhor juízo,
representam ofensa aos princípios constitucionais da
isonomia e liberdade do trabalho, além de lesão ao princípio
da legalidade, já que as cooperativas de trabalhadores estão
autorizadas, por lei, a oferecerem mão-de-obra e a participarem de
licitações na administração pública. Assim, tal condição é lesiva
não só a autora como a toda e qualquer cooperativa que, querendo
participar do certame, cumpra os demais requisitos legais, razão
por que, defiro a antecipação da tutela proibindo a
demandada de aplicar tal vedação até segunda ordem, pena
de multa de R$ 10.000,00 a ser aplicada ao Presidente da
Comissão de Licitações.
Cite-se, intime-se, via ofício, a ser entregue pela própria autora. Dl.
Em 07/03/2007. Flávio Mendes Rabello – Juiz de Direito Substituto”
(grifou-se – doc. anexo)
11.7- Todas estas condições jurídicas confirmam, não um temor, mas, concretamente, a
evidência de dano ao Município, quando ficaria, de um lado, a atender a uma ordem que impediria
a participação de cooperativas a licitações e, de outro, a cumprir outra ordem, desta feita para
permitir as suas participações.
220 Revista da PGM
O certo é que os objetos desses procedimentos não se realizarão a tempo ou, na pior das
hipóteses, ficarão sobrestados até o julgamento final das eventuais demandas ou até a invocação
e resolução de um conflito positivo de competência pelo STJ.
Não é difícil prever a caótica situação e os contornos jurídicos que tais situações e
contratações poderão assumir, com óbvios prejuízos ao serviço público de saúde municipal ou,
como queiram, à correta prestação da saúde no Município.
11.8- Como se vê, o aspecto objetivo resultante é a absurda situação de licitações e
contratações trancadas por, com vênia da expressão, um faz-de-conta: de um lado, o Judiciário
Trabalhista dizendo não poder, de outro, o Judiciário Civil dizendo que pode e, ainda, de
outro, o Ministério Público do Trabalho observando o exercício de seu “papel” e, por fim, a
população, entre o rochedo e o mar, sofrendo todos esses efeitos, porém, aí, sem nenhum
faz-de-conta.
XII- DO PRESSUPOSTO NEGATIVO DA TUTELA ANTECIPADA – DA
INCIDÊNCIA DO §2° DO ART. 273 DO CPC E DA OFENSA AO ART. 2°DA CF
12.1-Diz esta regra que a tutela não será antecipada quando houver perigo de dano
irreversibilidade do provimento antecipado.
Este é o caso.
Neste aspecto em particular, as conseqüências atingirão não só aos contratos
analisados no feito, mas outros com vigência em curso e que sofrerão efeitos diretos e
reflexos da decisão ora impugnada.
Os desdobramentos fáticos e jurídicos de uma decisão de procedência (de difícil
superação operacional em prazo exíguo) acarretarão, a par da pretensão almejada pelo
Autor, efeitos e obstáculos que não serão superáveis pelo Município-impetrante.
12.2-As contratações havidas em todo este interregno, que não se prendem
apenas às colacionadas, atenderam à particular legislação incidente sobre a hipótese
(Lei de Licitações), cuja regularidade da execução dos contratos daí resultantes é
matéria, cujo alcance não tem limite apenas nos aspectos estritamente vinculados
às relações entre trabalhadores e sociedade cooperativa, senão que profundamente
ligados à liberdade contratual do ente público e a prerrogativas constitucionais inerentes a
tal atividade.
Por isso, a flagrante ofensa ao art. 2° da CF e ao princípio da separação de poderes.
12.3-Portanto, haverá DANO IRREPARÁVEL ao Município na manutenção do provimento
antecipado, razão pela qual deve o r.acórdão ser modificado julgando procedente cassado .
Nº 24 - Dezembro 2010 221
XIII- DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO
13.1- Certo é que o “pressuposto” exigido para a demanda mandamental - direito líquido
e certo - é aquele que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto
a ser exercitado no momento da impetração.
Em outras palavras, “... há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos
e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for duvidosa; se a sua extensão
ainda não estiver delineada; se o seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados,
não rende ensejo à segurança. Em última análise, diz H.L.Meirelles, a lei está a exigir que esse
direito se apresente com todos os requisitos para o seu reconhecimento e exercício no momento
da impetração - direito líquido e certo é direito comprovado de plano.7
(grifou-se)
Certo também que se viola a lei tanto por não a aplicar quando incidira,
que é o caso, como pelo motivo contrário, a saber, aplicar dispositivo que não incidiu
na hipótese concreta, condição que também se apresentou ao caso concreto.
13.2-Nesses termos, configura-se direito líquido e certo do Impetrante a
incidência, e também a não incidência, de regras que comporiam corretamente o conflito,
conquanto já faziam parte da esfera jurídica do Município, tendo este a prerrogativa
jurídica de vê-las corretamente atuando e regulando o caso concreto.
Estas normas foram especificadas nos itens precedentes e são as seguintes:
- DO ART. 273 do CPC
Como fundamentado, em especial nos itens IV e V, não estando presentes os
requisitos do art. 273 do CPC permissivos ao deferimento da medida antecipatória, isto
é, PROVA INEQUÍVOCA da verossimilhança do direito e FUNDADO receio de dano
irreparável, ou sendo duvidosa suas existências, esta regra não poderia incidir na
hipótese.
Constituía-se, pois, direito líquido e certo do Impetrante a não incidência desta norma.
- DO ART. 273, §2º, DO CPC
Ao contrário, ante a existência do chamado pressuposto negativo para a antecipação da
tutela, cuja regra diz que a tutela NÃO SERÁ antecipada quando houver perigo de dano irreversível
decorrente do provimento antecipado, esta deveria incidir e foi indevidamente afastada.
Como demonstrado, itens VI e VII acima, somado ao entendimento do C. STJ, donde não
se antecipa o que dificilmente poderá retornar ao estado (fático e jurídico) anterior, entendimento
abaixo, era direito líquido e certo do Impetrante a incidência desta, que indevidamente e teve sua
incidência irregularmente arredada.
7
- Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Civil Pública, Ação Populae, Mandado de Injunção , “Habeas Data”,
LTR, 12ª Ed., 1989, pags. 12 e 13.
222 Revista da PGM
PROCESSUAL CIVIL – TUTELA ANTECIPADA – IRREVERSIBILIDADE
DO PROVIMENTO JURISDICIONAL – INADMISSIBILIDADE. É
inadmissível a concessão da antecipação dos efeitos da tutela
quando houver perigo de irreversibilidade do provimento
antecipado. Isso se verifica no caso de a tutela pretendida envolver a
paralisação total das atividades da ré, que já a exercia por longo período,
sem oposição, fato que demonstra a ausência de urgência do pedido.
Recurso especial provido. (REsp. n°. 253246/SP, RECURSO ESPECIAL
2000/0028905-1, Rel. Min. Castro Filho, 3a
. Turma, 20/11/2003, publicado
DJ 09/12/2003, pág. 278, RSTJ vol. 183, pág. 247)
- DO ART. 2° DA CF
Art. 2° - São poderes da União, independentes e hormônicos entre
si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art.4°- A constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§4°- Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
...
III- a separação dos poderes;
Como visto, o conteúdo da antecipação tem comandos para desfazer e impedir
contratações, bem como para ordenar a realização de preenchimento de cargos com a
realização de concurso público, etc. (item “a” da medida antecipada).
Estes comandos afrontam os limites impostos pelo art. 2° da CF, conquanto penetram na
autonomia, na esfera administrativa e contratual do município (itens 4.2 e 5.14 da inicial do MS).
A medida antecipada e mantida pelo provimento ora impugnado expressamente
ordena o desfazimento de contratos e impede o livre agir contratual do Município,
acrescido do efeito de pretender reordenar o serviço público com comando para realizar
concurso público, preencher quadros funcionais, com a criação de cargos e funções.
Com estes comandos, o alcance da medida antecipada adentra na esfera da
atividade e da liberdade contratual do ente público para, com supressão de atividade
legislativa específica, obstaculizar pactuações administrativas e regrar de modo diverso
da lei e das prerrogativas constitucionais aos Municípios conferidas, uma vez que regra
estas relações de modo diverso da Lei e da Constituição.
Como os contratos administrativos não merecem regulação por normas de índole
trabalhistas, mas têm sua disciplina estatuída por diplomas alheios ao direito do
trabalho, notadamente a Lei 8.666/93, falece competência à Justiça do Trabalho para
processar e julgar a demanda.
Nº 24 - Dezembro 2010 223
Como já visto e salientado antes, tal realidade é de nitidez ímpar, ao ponto de ter-se
precedente jurisprudencial firmado pelo próprio TRT da 4ª.
Região, em ação civil pública movida
pelo mesmo Ministério Público do Trabalho contra o Departamento Municipal de Limpeza Urbana
– DMLU de Porto Alegre, onde restou assentada a sustentada incompetência, como se vê:
“EMENTA: JUSTIÇA DO TRABALHO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. A justiça do trabalho é
incompetente para julgar ação que visa desconstituir contrato de
natureza administrativa, assim como coibir futura contratação dessa
natureza”.8
E o corpo do acórdão traz irretocável raciocínio que se pede vênia para
transcrever:
“Não se vislumbra como enquadrar a matéria ‘sub judice’ na previsão do
art. 114 da Constituição Federal de 1988, em que pese ponderáveis
pronunciamentos no sentido de que estaria inserida na parte do dispositivo
que se reporta ‘na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação
de trabalho’. Ainda que o inciso III do art. 83 da Lei Complementar 75/93
faça referência a direitos sociais constitucionalmente garantidos, há que
se entender que são somente aqueles direitos que se inserem na
órbita trabalhista, pois à toda evidência a lei não poderá ampliar
a competência constitucionalmente estabelecida. O que se visou,
com a presente ação, foi impedir a prorrogação e a feitura de
novos contratos do reclamado com a Cootravipa e ‘empresas
similares’ (em relação a estas o pedido não foi acolhido). Não se
trata, pois, de contrato de trabalho no sentido estrito da CLT, mas de
contrato de prestação de serviços entre o reclamado, autarquia municipal,
e COOTRAVIPA, pessoa jurídica de direito privado. A situação, no caso
presente, é diversa de outros julgamentos já ocorridos neste Tribunal e
que tratavam da contratação por interposta pessoa, naqueles casos,
empresas intermediadoras de mão-de-obra.
Revestido o recorrente da forma de autarquia e a contratada
de Cooperativa, o contrato necessariamente teria de ser
examinado do ponto de vista do direito administrativo, bem
como do disposto no parágrafo único do art. 442 da CLT, que
excepciona a regra geral do art. 3° da CLT ao tratar de
cooperativa” (grifou-se)
8
- Acórdão da 2ª
Turma, TRT - 4ª
Região, Rel. Juíza Dulce Olenca B. Padilha, julgado em 06/08/96 - Ac. 95.019927-3 RO,
cópia fls. 66/69
224 Revista da PGM
Bem se vê que tanto a relação processual não se angulariza entre sujeitos capazes de
verem julgada demanda entre si pelo Judiciário Trabalhista e tampouco o objeto submetido é
materialmente envolvente de relação afeita ao direito do trabalho.
Logo, além de manifesta a incompetência material para disciplinar hipótese, os comandos
do provimento adentram explicitamente a limites que não lhe são permitidos pelo art. 2º da CF.
Não se olvide da impossibilidade legal de impedir a participação em certame licitatório de
Cooperativas. Atendendo aos requisitos ali postos, não há como afastá-las. A r. decisão, assim,
investe equivocadamente para um outro arranjo daquelas relações que, em última análise, impede
a vigência dos ordenamentos mencionados e nega anteriores decisões dessa Corte , daí por que o
remédio, além de equívoco, não debelaria a doença.
O ataque poderia se dar pela desconstituição da Cooperativa, nos termos da lei permissiva
de sua criação, eis que então não seria essa a “forma societária” prevista e autorizada pelo
regramento, mas jamais a tentativa dessa regularização pelo impedimento da atividade contratual
exclusiva do ente público.
De tudo se vê, portanto, que não vinga a tentativa de descaracterizar-se a relação
de cooperação entre os associados da Cootravipa e muito menos é de cogitar-se de
imputar ilegalidade em contrato administrativo firmado entre esta e o Poder Público.
Nesse sentido, era direito líquido e certo do Município-Agravante ver a incidência
desta para corretamente compor corretamente a demanda. Na medida em que
indevidamente afastada, tem-se por violado direito certo e líquido do Município.
- DO ART. 3°, §1°, II, DA LEI 8.666/93 E DO ART. 5°,
II E ART. 37, XXI, AMBOS DA CF
Estas assentam e garantem o princípio da isonomia.
Art. 5°, II- Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei.
Art. 37- A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte:
...
XXI- ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,
serviços, compras e alienações serão contratados mediante
processo de licitação pública que assegure igualdade de condições
a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as
Nº 24 - Dezembro 2010 225
exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à
garantia do cumprimento das obrigações. (grifou-se)
Por sua vez, o comando contido na medida impugnada é claro para impedir a participação
de cooperativas em procedimentos licitatórios em franca oposição ao disciplinado pelas regras
citadas, violando diretamente o princípio da isonomia nelas estampados.
Estas, também eram de incidência obrigatória e, do mesmo modo, foram
indevidamente afastadas. A correta composição da demanda passa necessariamente pela
consideração e incidência destas regras.
O agir jurídico-administrativo do Município NÃO pode ficar condicionado a provimento
que ordena de modo diverso da lei e ofende a princípio desta magnitude, reordenando
procedimentos licitatórios sem a observância da isonomia entre os participantes.
Portanto, a não incidência destas norma viola direito líquido e certo do Município.
- DO ART. 174, §2°, DA CF
De igual modo, também por conta do comando para afastar cooperativas de procedimentos
licitatórios, atinge regras constitucionais principiológicas garantidoras da formação e do
associativismo via cooperativas, inclusive cooperativas de trabalho, como o art. 174, §2°, da CF,
que, ao caso, deveria ser observada. A sua não supressão ou não incidência à hipótese também
viola direito líquido e certo do Município.
- DO ART. 442, §ÚNICO, DA CLT
Por fim, a manutenção do provimento implica suprimir o enfrentamento de demandas
individuais pelo próprio Poder Judiciário, onde, por via indireta, acaba por deslocar a competência
deste sobre o enfrentamento do tema.
Este agir jurídico atinge o art. 442, §único, da CLT, quando acaba por suprimir
atividade especifíca do Poder Judiciário de investigar e conhecer, via ações individuais e em
casos concretos, os direitos subjetivos postos em disputa e outras incorreções que somente
por este meio poderiam ser analisadas e enfrentadas, presumindo ilícitas todas as relações
travadas entre cooperativados e cooperativas, quando se sabe que essa condição se encontra
absolutamente inexistente.
Portanto, esta decisão, nos limites em que proferida, impede a correta incidência desta
norma, violando direito líquido e certo do Município.
13.3-Nesses termos, estas condições jurídicas, na forma em que foram delineadas
pelas decisões havidas e ora mantida pelo r. provimento que se impugna, configuram direito
líquido e certo do Município-Agravante para vê-las corretamente aplicadas ao caso concreto,
visto que o agir jurídico-administrativo do Município foi plenamente resguardados pela Lei e
pela Constituição.
226 Revista da PGM
13.4- Posto isso, reafirma-se que todas estas normas acima especificadas foram,
nos termos fundamentados, diretamente violadas pelo deferimento da antecipação de
tutela e ora mantida pela r. decisão de não concessão da medida liminar postulada,
razão pela qual, está inquinada de ilegalidade e inconstitucionalidade.
Daí a afronta aos dispositivos invocados, precisamente, eis que teriam incidência obrigatória
e foram indevidamente arredados.
13.5-As regras acima definem os contornos sobre os quais o agir do Município, no contexto,
deveria ser orientado. E, entre estes, não há margem para a discrepância perpetrada pela decisão
ora impugnada, com comandos distoantes dos ditames da lei e da Constituição, com ordem para
tangenciar o princípio da isonomia em procedimentos licitatórios, ditando o reordenamento de
quadros funcionais e ordenando atividade administrativa com supressão de atividade legislativa
específica para tanto, com o preenchimento e criação de cargos e funções, ou regrando de modo
diverso da lei o agir e a liberdade contratual do Município.
Pelos fundamentos acima anotados, não restam dúvidas sobre os direitos que envolvem
a esfera jurídica das partes, restando claro a ausência de embasamento legal suficiente para
permitir o adiantamento do provimento nos termos em que postulado, condição que autoriza a
procedência desta ação, restabelecendo a inteireza do direito constitucional e infraconstitucional,
dando-se efetividade do direito invocado.9
Por fim, cabem algumas considerações de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena por absoluta
pertinência ao tema aqui tratado, em longo e específico artigo - Ação Civil Pública e Tutela
do Trabalhador, em Recursos Trabalhistas e Outros Estudos de Direito e de Processo
do Trabalho, págs. 98,100, 102 e108. 10
Argumentando sobre os requisitos da ação civil pública no contexto das normas que a
regulam, poucos parágrafos bastam para retratar a hipótese dos autos, cuja semelhança não seria
mera coincidência:
“ (...)
Não há difuso emanado de indivíduos identificados ou de grupos
de indivíduos que se aglutinam e se identificam sob formas
contratuais preestabelecidas. Deles desprende o intérprete um
interesse como difuso, como se compusesse um fenômeno abstrato
autônomo. Tal postura ensombra o ambiente de trabalho, que
decorre de condições físicas e sociais concretas em que se insere
cada trabalhador na empresa.
9
- A fim de evitar qualquer irregularidade processual, observou o Município a desnecessidade de autenticação dos
documentos acostados, nos temos do art. 24 da MP n°. 1390/12.06.96 e suas sucessivas reedições (MP n°. 1973-62/
01.06.2000), ainda em vigência por força da EC n°. 32/2001, bem como do art. 365, IV e VI, do CPC, que afirma
corresponderem aos originais.
10
- Ação Civil Pública e Tutela do Trabalhador, pág. 83/108, LTR, Recursos Trabalhistas e Outros Estudos de
Direito e de Processo do Trabalho, 2001
Nº 24 - Dezembro 2010 227
Com as deformações cometidas pelo Ministério Público do Trabalho,
a tudo transformando em objeto de ação civil pública, estar-se-á
criando uma terceira via de procedimento estatal e uma ação especial
para a cobertura de atos e fatos e pessoas, cujo modus operandi
(relações de trabalho) já se encontra amparado por três formas e
espécies diferentes de ação estatal: os procedimentos coletivos, pelos
sindicatos; a ação e a fiscalização do Ministério Público do Trabalho,
com pesadas multas e até eventual interdição de estabelecimentos
pela via competente (CLT, arts. 626 a 634) e as reclamatórias plúrimas
ou individuais dos próprios trabalhadores (CLT, art. 483).
Nem é crível nem de bom senso jurídico que o Estado intervenha
de duas ou três ou mais maneiras diferentes – fiscalização do
Ministério Público (que desaguará no processo administrativo e
judicial, perante a Justiça Federa), ou pela ação sindical, ou pela
ação individual e sobre elas, e além delas, faça desabar, pelos
tentáculos de um terrífico ius publicum, uma soi disant ação
civil pública, a serviço da qual se intenta, a propôs, adrede,
modelar um suposto interesse difuso.
Os fins institucionais do Ministério Público do Trabalho passaram
a ser abrangentemente desviados, quando seus órgãos se
interimiscuem na relação de trabalho, como se partes de um
contrato fossem, no uso de legitimações para propor a ação civil
pública inclusive a de “nulidade de contrato, acordo coletivo ou
convenção coletiva”, como se lhes dessem corpo os arts. 127 e
129, III, da Constituição Federal, até desaguar na mecânica a
descoberto do art. 83, IV, da Lei Complementar n. 75, de 20.5.1993.
(...)
Como que procurando tecnicizar um anátema que desabalou pelas
províncias do Direito do Trabalho Brasileiro, como valor conotativo
em si e por si, alude-se, comumente, à terceirização, a cooperativas
de trabalho, a condições de habitação do trabalhador, invocando-
se, como se fossem debitáveis às empresas, em nível de vício
institucional, o esvaziamento e o enfraquecimento dos sindicatos.
En passant, pode-se lembrar que nesta última postura já se delineia, pretextualmente,
uma tentativa de substituição de poder e da tutela a ele correspondente, de que são titulares os
sindicatos, pela figura do Procurador do Trabalho.
(...) “
228 Revista da PGM
Após exemplificar com uma ACP sobre uma pequena propriedade rural de 120ha., cuja
multa incidente resultara, até o ano de 2000, em aproximadamente R$ 48.000.000,00 (processo
n°. 419/97, Varginha/MG, o autor conclui:
“Aberto o cenário, volta a cena para os Tribunais do Trabalho, a
quem cabe o ponderado exame de todos os movimentos e
desenlaces da ação civil pública atirada, como um dardo
flamejante, sobre as relações individuais de trabalho, ou para
mais entulhar por vias transversas a Justiça do Trabalho ou para
levar ao polio, como uma pujante força combativa quixotesca, o
órgão do Ministério Público do trabalho.” (grifos do autor)
Isso posto, é a presente para, acolhendo as razões acima, modificar a r. decisão impugnada
para julgar procedente a presente ação, concedendo a segurança nos termos pleiteados.
Deferimento.
Porto Alegre, 01 de setembro de 2007.
Rogério Scotti do Canto
Procurador do Município
OAB/RS 28.852
III. A DECISÃO
Acórdão Inteiro Teor
NÚMERO ÚNICO PROC: RXOF e ROMS - 689/2007-000-04-00
PUBLICAÇÃO: DJ - 27/06/2008
A C Ó R D Ã O
SBDI-2
PPM/pr
REMESSA EX OFFICIO E RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COOPERATIVAS.
INTERMEDIAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA.
Antecipação da tutela, deferida em ação civil pública, com a determinação de que o
Município se abstivesse de intermediar a contratação de mão-de-obra. A presença de fortes
indícios de que, com a criação de entidade cooperativa, estavam sendo sonegados aos
trabalhadores direitos positivados em sede constitucional, em virtude da prática de
intermediação de mão-de-obra, e ainda o suposto receio de que a continuidade dessa prática
Nº 24 - Dezembro 2010 229
prolongasse a violação das garantias sociais constitucionais mínimas dos trabalhadores são
questões cuja verossimilhança não pode ser imediatamente aferida, por serem passíveis de
apreciação apenas em demanda de cognição ampla da controvérsia, e não em sede de cognição
sumária, como na antecipação de tutela concedida na ação civil pública. Recurso ordinário e
remessa ex officio a que se dá provimento.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Remessa Ex Officio e Recurso Ordinário em
Mandado de Segurança nº TST-RXOF e ROMS-689/2007-000-04-00.5 , em que é Remetente
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO, Recorrente MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE,
Recorrido MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO e Autoridade Coatora JUIZ TITULAR
DA 18ª VARA DO TRABALHO DE PORTO ALEGRE .
O Município de Porto Alegre impetrou mandado de segurança (fls. 02/30), com pretensão
liminar, contra ato do Juiz da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, que, nos autos de Ação Civil
Pública nº 1765-2006-018-04-00-7, proposta pelo Ministério Público do Trabalho da Quarta Região,
deferiu a antecipação da tutela, determinando ao impetrante que se abstivesse de admitir
empregados ao Hospital Pronto Socorro de Porto Alegre - HPS e no Serviço Médico de Atendimento
de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde - SAMU, diretamente
e sem aprovação prévia em concurso público, para execução de serviços permanentes e essenciais
à sua atividade-fim. Determinou ainda que o município afastasse, no prazo máximo de seis meses,
todos os trabalhadores que prestam serviços, relativos às atividades permanentes, junto ao HPU e
SAMU, por intermédio de cooperativas de trabalho.
A liminar foi indeferida (fls. 488/490).
O Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região denegou a segurança
(fls. 990/966), por considerar inexistente violação de direito líquido e certo na hipótese.
Aos embargos de declaração opostos pelo município, foi negado provimento,nos termos
da decisão às fls. 1.004/1.005.
O impetrante interpôs recurso ordinário fls. 1.179/1.214), reiterando os termos constantes
da petição inicial do mandado de segurança.
Subiram os autos a esta Corte, por força do processamento do recurso
ordinário e da remessa necessária (fl. 1.050).
Foram oferecidas contra-razões às fls. 1.056/1.076.
O Ministério Público do Trabalho opinou pelo não-provimento do recurso
(fls. 1.080/1.082).
É o relatório.
V O T O
CONHECIMENTO
Atendidos os pressupostos de recorribilidade do recurso ordinário, dele conheço e passo
a analisá-lo conjuntamente ao recurso ex officio.
230 Revista da PGM
MÉRITO
O Município de Porto Alegre impetrou mandado de segurança (fls. 02/30), com pretensão
liminar, contra ato do Juiz da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, que, nos autos de Ação Civil
Pública nº 1765-2006-018-04-00-7, proposta pelo Ministério Público do Trabalho da Quarta Região,
deferiu a antecipação da tutela, determinando ao impetrante que se abstivesse de admitir
empregados ao Hospital Pronto Socorro de Porto Alegre - HPS e no Serviço Médico de Atendimento
de Urgência e Agendamento de Consultas da Secretaria Municipal de Saúde - SAMU, diretamente
e sem aprovação prévia em concurso público, para execução de serviços permanentes e essenciais
à sua atividade-fim. Determinou ainda que o município afastasse, no prazo máximo de seis meses,
todos os trabalhadores que prestam serviços, relativos às atividades permanentes, junto ao HPU e
SAMU, por intermédio de cooperativas de trabalho. Alegou que, na verdade, trata-se de contratação,
precedida de processo licitatório, de empregados cooperados, para exercerem trabalho em funções
relacionadas à atividade-meio do município, como faxina, telefonia e vigilância. Sustentou a
existência de coisa julgada com relação à COOTRAVIPA, em razão da análise da mesma controvérsia,
nos autos do Processo nº 1370.025/1997.1.
O Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região denegou a segurança (fls. 990/966),
por considerar inexistente, na hipótese, violação de direito líquido e certo. Adotou, para tanto, o
seguinte fundamento:
(...) irrelevante a inexistência de vedação na Lei 8.666/93 acerca da participação de
cooperativas nos processos licitatórios. Com base no mesmo fundamento, a garantia de igualdade
dos concorrentes no processo de licitação, garantia prevista no art. 37, XXI, da CF/88, não socorre
a tese de direito líquido e certo do impetrante. A norma constitucional se destina a assegurar a
igualdade de condições entre os correntes, não estendendo sua eficácia ao amparo da utilização
do instituto do cooperativismo para mascarar empresa prestadora de serviços.
O prazo de seis meses para que os trabalhadores exercentes de atividades-fim do HPS e
SAMU por interposta pessoa cooperativas sejam afastados não irá onerar desproporcionalmente o
Município. Na linha do que já se decidiu quando do exame da liminar, a cópia reprográfica dos
contratos administrativos firmados entre o impetrante e as cooperativas (fls. 31-132) revela termos
aditivos de prorrogações até 03-4-07 com a Cootravipa (fl. 40) e até 10-7-07 com a Portoserv (fl.
101). No tocante à Meta, a análise do contrato e o termo aditivo das fls. 107-8, cujo objeto é a
alteração de um posto de telefonia, gera presunção de que houve termo aditivo de prorrogação até
julho-07. Desta forma, não se verifica perigo de dano irreparável ou de irreversibilidade da decisão
porque o término desse contrato ocorrerá dentro do prazo de seis meses definido na decisão
antecipatória. De qualquer maneira, o Município terá de providenciar novos contratos de prestação
de serviços, sendo que o prazo de seis meses revela-se razoável para tanto (fls. 994/995).
O impetrante interpôs recurso ordinário (fls. 1.179/1.214), reiterando os termos da petição
inicial do mandado de segurança. Argumentou que não estão presentes os requisitos da prova
inequívoca, da verossimilhança e do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação,
contidos no art. 273 do CPC para a concessão de tutela antecipada, na ação civil pública ajuizada
pelo Ministério Público do Trabalho. Ponderou que o Juiz da 18ª Vara de Porto Alegre, ao
fundamentar a antecipação da tutela, incorreu em violação do art. 2º da Constituição Federal, na
Nº 24 - Dezembro 2010 231
medida em que obstaculiza contratos administrativos e regra-os de modo diverso do conferido
pela lei e por prerrogativas de ordem constitucional conferidas aos Municípios e quando ordena
a realização de concurso público, com a conseqüente determinação para criação de cargos e
funções públicas (fl. 1.022). Asseverou que a proibição da participação de cooperativas em
procedimento licitatório viola o princípio da isonomia, nos termos dos arts. 3º, § 1º, II, da Lei nº
8.666/93, 5º, II, e 37, XXI, da Constituição Federal. Indicou ainda ofensa aos arts. 174, § 2º, da
Constituição Federal e 422 da CLT.
Passo à análise.
Assim está registrado o ato coator, quanto à verossimilhança das alegações contidas na
ação civil pública:
(...) no caso em exame, não pode o demandado delegar atividades que lhe são
permanentes, ainda que acessórias, vinculadas a atividades-meio, para cooperativas, já que as
atividades mencionadas não possuem autonomia necessária para serem executadas por sociedade
de cooperativa. Vale dizer, nos limites do indigitado entendimento sumular, poderia haver
terceirização ou terciarização, mas a empresas prestadoras de serviços, que admitem empregados
para executar sua atividade econômica, jamais por cooperativas. Essa última entidade, como
visto só poderá prestar serviços de natureza econômica, não permanentes ou essenciais, como é
o caso dos autos, já que os serviços de telefonia, limpeza e portaria por constituírem atividades
permanentes não podem ser executados com discricionariedade de escolha, pelo trabalhador, do
local, forma e duração do trabalho. Mais grave, ainda, é a circunstância de ser tal tipo irregular
intermediação de mão-de-obra patrocinada por um ente público.
Portanto, dada a natureza da obrigação, a relevância do fundamento da demanda e a
existência de justificado receio da presente ação, deve o pleito ser apreciado sob a óptica da tutela
específica insculpida no art. 461 do CPC, aplicável subsidiariamente à espécie (fl. 240).
Inicialmente, saliente-se que, de acordo com os termos do art. 127 da Constituição Federal,
ao Ministério Público cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis.
Sua função custos legis decorre da natureza indisponível da maior parte dos direitos
trabalhistas, razão da classificação do Direito do Trabalho como Direito Público. Ao empregado
não é dado abrir mão de seus principais direitos, cabendo ao Ministério Público defendê-los -
mesmo que o trabalhador não o faça - contra decisões judiciais, legislativas ou atos do Executivo
que firam os direitos sociais conferidos pela Constituição Federal.
Assim, o objetivo da ação pública ajuizada pelo Ministério Público era resguardar direitos
trabalhistas que estariam sendo violados coletivamente, em face da tentativa de se ocultar a
formação do vínculo de emprego, sob o pretexto de os contratados serem sócios de uma cooperativa,
e tendo em vista os termos art. 83, III, da Lei Complementar nº 75/93.
De outra parte, para a concessão da tutela antecipatória de obrigação de fazer e de não
fazer como no caso dos autos, é necessário o preenchimento dos requisitos contidos no art. 273
do CPC, a saber: verossimilhança das alegações, reversibilidade da medida e fundado receio de
dano irreparável ou de difícil reparação.
232 Revista da PGM
Nesse sentido, já se posicionou esta Subseção em julgamento de mandado de segurança,
no qual se debateu acerca da legalidade da decisão que concedeu tutela antecipada em ação
civil pública, a fim de sustar a intermediação fraudulenta de mão-de-obra por intermédio de
cooperativa, verbis :
MANDADO DE SEGURANÇA TUTELA ANTECIPADA EM AÇÃO CIVIL
PÚBLICA.LEGALIDADE.
1. Não fere direito líquido e certo a concessão de tutela antecipada em ação
civil pública sustando a intermediação fraudulenta de mão-de-obra por cooperativa,
quando conta com sólido respaldo fático e jurídico, agindo o juiz dentro da estrita
legalidade ao conceder a antecipação da tutela, de vez que presentes os elementos
exigidos pelo art. 273 do CPC e fundamentado convenientemente o seu convencimento
(CPC,art. 273, § 1º).
2.In casu, a ação civil pública decorreu de procedimento investigatório deflagrado
por denúncia da fiscalização do trabalho quanto a empregados não registrados nas
empresas fiscalizadas, que trabalhavam como cooperados. O inquérito constatou a
intermediação de mão-de-obra, através da Cooperativa, quer para atividades-fim das
tomadoras de serviços, quer para suas atividades-meio, mas com subordinação e
pessoalidade na prestação dos serviços. Destaca-se o caso, em relação a uma das
tomadoras de serviços, de dispensa dos empregados e recontratação, através da
Cooperativa, para prestação dos mesmos serviços, mas com redução remuneratória.
Por outro lado, algumas das empresas investigadas firmaram o termo de compromisso
com o Ministério Público, reconhecendo o vínculo empregatício direto com os
trabalhadores cooperados, assinando suas CTPSs.
3. Além da verossimilhança das alegações, retratada nesse quadro fático,fruto do
procedimento investigatório, a tutela antecipada , limitada à vedação de intermediação
de mão-de-obra pela cooperativa, sem impor reconhecimento de vínculo pelas tomadoras
dos serviços, foi deferida em face da existência de fundado receio de dano de difícil
reparação, pela exploração a que os trabalhadores estavam sendo submetidos, com
sobrejornadas excessivas, sem pagamento de horas extras, férias, 13º salário e FGTS.
4. Convém destacar que a disciplina das liminares e da tutela antecipada em
sede de ação civil pública, proposta pelo Ministério Público do Trabalho em defesa de
interesses coletivos, é distinta dos processos meramente individuais. Isto porque,
dispondo o Ministério Público de amplo poder investigatório, instrui a ação civil pública
com os autos do inquérito civil público, nos quais se oferece ampla possibilidade de
defesa, justificação e composição com os inquiridos, não havendo que se falar em ausência
do contraditório.
5. Ademais, a liminar e a tutela antecipada são o veículo oportuno para se dar
celeridade à prestação jurisdicional nas ações de caráter coletivo, quando patente o
descumprimento do ordenamento jurídico trabalhista e urgente a correção da
Nº 24 - Dezembro 2010 233
ilegalidade, pelos efeitos danosos que provoca na sociedade. Recurso ordinário
desprovido. (ROMS-746061/01.9, Rel. Min.
Ives Gandra Martins Filho, DJU de 10/08/2001)
Assim, de acordo com o entendimento acima exarado, a verossimilhança a ensejar a
concessão de tutela antecipada deve estar, pelo menos aparentemente, comprovada na ação civil
pública, por meio do inquérito instaurado com o fim de instruí-la.
Ocorre, entretanto, que, no caso dos presentes autos, a presença de fortes indícios de que
estavam sendo sonegados aos trabalhadores direitos positivados em sede constitucional, em virtude
da prática de intermediação de mão-de-obra, e ainda o suposto receio de que a continuidade
dessa prática prolongasse a violação das garantias sociais constitucionais mínimas dos trabalhadores
são questões cuja verossimilhança não foi imediatamente aferida, quando apreciado o pedido de
tutela antecipada.
Na hipótese vertente, não foram analisados pela autoridade coatora os documentos que
comprovariam a fraude alegada na ação civil pública.
Temerária, portanto, a condenação imposta em tutela antecipada. Ressalte-se que, caso
seja confirmada a existência de fraude à legislação trabalhista, com as condenações subseqüentes,
não haverá perdas para os “cooperados-empregados”, pois poderão receber, judicialmente, seus
direitos trabalhistas, na época própria.
Tendo em vista, pois, a não-configuração dos pressupostos autorizadores da concessão
da tutela antecipada, previstos no art. 273 do CPC, dou provimento ao recurso ordinário e à
remessa ex officio para, concedendo a segurança requerida, cassar a decisão liminar concessiva
da tutela antecipada, proferida pelo Juiz-Presidente da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos
autos da Ação Civil Pública nº 1765-2006-018-04-00-7
(fls. 695/705).
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal
Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário para, concedendo
a segurança requerida, cassar a decisão liminar concessiva da tutela antecipada, proferida pelo
Juiz-Presidente da 18ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, nos autos da Ação Civil Pública nº 1765-
2006-018-04-00-7 (fls. 695/705).
Brasília, 24 de junho de 2008.
MINISTRO PEDRO PAULO MANUS
Relator
234 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 235
Honorários advocatícios na fase de execução de
sentença ante a nova sistemática do CPC –
Definição do STJ
Cristiane da Costa Nery
236 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 237
I. RELATÓRIO
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA FASE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA
ANTE A NOVA SISTEMÁTICA DO CPC – DEFINIÇÃO DO STJ
Trata-se de cumprimento de sentença efetuado pelo Município de Porto Alegre para
recebimento de verba honorária fixada em ação de indenização por danos morais e patrimoniais
vencida pela municipalidade e que tramitou na 4ª Vara da Fazenda Pública.
Fixados honorários advocatícios na decisão da ação, foi requerido o seu cumprimento
com base no art. 475-J do CPC, onde também se pleiteou a fixação de honorários advocatícios
para a fase de execução.
Entendendo não se tratar de nova ação executiva, o juízo não fixou honorários, intimando
a parte vencida a pagar o montante da condenação de 1º grau, acrescida tão-somente da multa de
10% pelo não pagamento espontâneo.
O Município interpôs Agravo de Instrumento, ao qual foi negado seguimento por decisão
monocrática da 12ª Câmara Cível do TJRS, ante entendimento de que não caberiam honorários
advocatícios na fase de execução.
Interposto Agravo Interno para submissão da matéria ao colegiado, foi este desprovido.
Contra esta decisão foi interposto Recurso Especial, ao qual foi negado seguimento pela Terceira
Vice-Presidência do TJRS.
Interposto, assim, Agravo de Instrumento para destrancar e dar prosseguimento ao Recurso
Especial junto ao STJ, ao qual foi dado provimento para determinar a subida do Recurso Especial.
A 1ª Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Especial.
Interpostos Embargos de Divergência, ante decisão da 2ª Turma em outro sentido. Em
decisão monocrática o Ministro Arnaldo Esteves Lima conheceu e proveu o Recurso Especial,
fixando honorários advocatícios em 20% sobre o valor da execução, conforme íntegra da decisão
em anexo, entendendo cabível a fixação honorária na fase de execução, utilizando precedentes e
bem enfrentando o trabalho do advogado nessa fase processual.
Atuou no feito a Procuradora signatária, responsável pela demanda na Procuradoria
de Serviços Públicos, tendo sido feitos os embargos de divergência pelo advogado Luís
Maximiliano Telesca Mota, que atua pela PGM/POA em Brasília-DF.
Cristiane da Costa Nery
Procuradora do Município
PSP/PGM/POA
OAB/RS 40.463
238 Revista da PGM
II. A PEÇA DO MUNICÍPIO
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
OBJETO: RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO DA DECISÃO PROFERIDA
NOS AUTOS DA DEMANDA PROMOVIDA POR PEDRO JAEGER
ZIMMERMANN CONTRA O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE
PROC.: 70016919839
MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, por meio de sua procuradora signatária, vem à
presença de Vossa Excelência, tempestivamente, nos autos da ação promovida por PEDRO JAEGER
ZIMMERMANN, interpor RECURSO ESPECIAL, inconformado com a decisão que majorou a
verba honorária fixada em sentença, com base no artigo 105, III, a, da Constituição Federal, pelas
razões que seguem anexas.
Diante do exposto, o Município Recorrente espera que Vossa Excelência, após as
formalidades legais e de estilo, concedendo prazo ao Recorrido para resposta, admita o presente
recurso, remetendo os autos ao Superior Tribunal de Justiça.
Porto Alegre, 28 de dezembro de 2006.
Cristiane da Costa Nery
Procuradora do Município
OAB/RS 40.463
EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL
RECORRENTE: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE
RECORRIDO: PEDRO JAEGER ZIMMERMANN
EGRÉGIA TURMA,
DOS FATOS
O autor ingressou com ação de reparação de danos materiais e morais contra o Município
de Porto Alegre, em decorrência de acidente ocorrido com seu veículo, o que sustentou ter ocorrido
em função da má sinalização da via.
Sobreveio sentença de improcedência da ação, com a condenação do autor em custas
processuais e honorários advocatícios, estes fixados em R$ 150,00.
Interpôs apelação, a qual restou desprovida para reconhecer a ilegitimidade passiva da
municipalidade. Interpostos embargos de declaração pelo autor, foram estes rejeitados e entendidos
como protelatórios, sendo aplicada multa de 1% sobre o valor da causa corrigido.
Nº 24 - Dezembro 2010 239
Transitada em julgada a decisão, o poder público requereu o cumprimento da sentença
de acordo com a nova fase de execução prevista pelo atual CPC, a fim de pleitear o pagamento dos
honorários que lhe são devidos.
Não pago espontaneamente o montante, houve a incidência da multa de 10%, sendo
indeferida a fixação de honorários advocatícios pleiteados para essa fase processual, decisão da
qual se agravou, restando desprovido o agravo de instrumento em decisão monocrática.
Interposto Agravo, restou ele submetido ao colegiado e não provido por unanimidade.
O julgado enfrenta fundamentalmente a questão relativa à fixação de honorários consoante
a sucumbência verificada, de acordo com a lei processual civil em vigor.
Desta forma, a matéria decidida importa em questão jurídica de relevância, e os
fundamentos, tanto das razões do Município, como da decisão, residem em matéria processual e
de legislação infraconstitucional, oportunizando, assim, a interposição de recurso especial.
DO CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL
O Recurso Especial, no caso em tela, é proposto com fundamento no art. 105, III, a,
da Constituição Federal, que admite o remédio processual quando a decisão recorrida negar
vigência à lei federal.
O acórdão proferido pela Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul desafia recurso especial, pois nega vigência ao art. 20, parágrafos e artigos
475-I e 475-J, do Código de Processo Civil Brasileiro, como adiante se verifica.
São restritas as possibilidades de admissibilidade do recurso especial, pois sua origem é
a mesma do recurso extraordinário, ou, melhor dizendo, é nada mais que o antigo recurso
extraordinário adstrito à matéria infraconstitucional. E, por isso, tem função específica, bem
caracterizada pelo Ministro Antonio de Pádua Ribeiro, no artigo “Função do Recurso Especial”,
publicado na Revista da Ajuris n. 47, pg. 41, cuja lição abaixo transcreve-se:
“Em suma, a função do recurso especial é tutelar a autoridade e
unidade da lei federal. E essa função é exercida, segundo ensinamentos
de PONTES DE MIRANDA, assegurando sua inteireza positiva (art.
105,III,a) a sua autoridade (art. 105,III,b) e a sua uniformidade de
interpretação (art. 105.III,c)”
No mesmo sentido, delimitando o remédio recursal através da sua caracterização,
reportamo-nos ao artigo do também Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicado na Revista
Forense n. 307, pg. 57, que diz o seguinte:
“Trata-se de modalidade de recurso extraordinário lato sensu,
destinado, por previsão constitucional, a preservar a unidade e
autoridade do direito federal, sob a inspiração de que nele o interesse
público, refletido na correta interpretação da lei, deve prevalecer sobre
os interesses da parte”.
240 Revista da PGM
Daí, conclui-se que o recurso especial visa, única e exclusivamente, ao interesse público
na aplicabilidade da legislação federal e na sua correta interpretação.
Quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso, transcreve-se voto do Min. Aldir
Passarinho Júnior quando da apreciação do Edcl.Resp. nº 331.106-SP, 4ª T. do STJ, j. 17 de junho
de 2002, verbis:
“A controvérsia contida no especial, a toda evidência, referia-se,
também, ao art. 159 do Código Civil1
, princípio básico e fundamental
de feitos dessa natureza, de modo que o prequestionamento é implícito.
A proporcional idade entre a lesão e o ressarcimento são inerentes a
essa espécie, e, como sabido, a jurisprudência do STJ é pacífica em
admitir a intervenção da Corte quando se revela inadequação do valor
arbitrado pela instância ordinária e o dano causado ( cf. REsp n.
268.020/SP, 43 Turma, reI. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU de
18.02.2002; REsp n. 292.927/MO, reI. Min. Aldir Passarinho Junior,
48 Turma, DJU de 04.02.2002 e REsp n. 53.321/RJ, 38 Turma, reI.
Min. Nilson Naves, DJU de 24.11.97).”
Portanto, é nesse sentido que se espera o recebimento do presente Recurso
Especial, já que se está a debater a fixação de verba honorária para fase de cumprimento
de sentença, prevista pela legislação processual civil em vigor, cabendo ao Superior
Tribunal de Justiça a análise e a fiscalização dessa aplicação.
DA NEGATIVA DE VIGÊNCIA À LEI FEDERAL – CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL - DA NECESSÁRIA APLICAÇÃO DO ARTIGO 20, § 4º E ARTIGOS 475-
I E 475-J – DO CABIMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATICIOS NA FASE DE
EXECUÇÃO
A municipalidade requereu ao juízo de 1º grau a fixação de honorários advocatícios para
a fase de execução, os quais foram indeferidos pelo entendimento de que não se trata de nova
ação executiva, mas sim de cumprimento de sentença, pelo que não se poderia falar em honorários
advocatícios.
Não se pode concordar com a argumentação constante das decisões prolatadas até aqui
sobre a matéria.
Ainda que sejam fixados de forma provisória no início dessa nova fase, entende-se cabível
a fixação eis que inaugurada nova fase processual, em que se postula o pagamento do valor
devido não pago espontaneamente, como prevê a nova lei processual civil, artigos 475-I e 475-J,
de acordo com o verificado pelo cartório, anexando-se memória de cálculo atualizada do valor
para possibilitar a satisfação.
1
Código Civil de 1916.
Nº 24 - Dezembro 2010 241
O ente público municipal necessitou efetuar diversos procedimentos para que se
instaurasse essa nova fase processual.
A municipalidade peticionou pelo cumprimento da sentença e anexou memória de cálculo
com a atualização do valor devido, acrescido da multa pelos embargos de declaração.
Intimado o devedor a pagar em 15 dias. Não foi pago de forma espontânea o valor devido
pelo autor da ação que foi julgada improcedente. Assim incidente a multa de 10%.
Intimada a municipalidade a anexar nova memória de cálculo com o valor acrescido da
multa de 10%.
Peticiona novamente o Município anexando nova memória de cálculo acrescida da multa
de 10%, a fim de que fosse dado prosseguimento à fase de execução com a expedição do competente
mandado de penhora.
Portanto, todo o impulsionamento da fase de execução, com realização de cálculos
inclusive, teve que ser feito pela parte credora, vencedora da ação, porque o autor, devedor, não
realizou espontaneamente o pagamento que deveria realizar.
Nada mais justo que fixar honorários para essa nova fase em que há o trabalho do advogado
do credor no impulsionamento, peticionando, requerendo, juntando cálculos, etc.
Salienta-se que os honorários já fixados no processo em sentença foram fixados pelo
trabalho antes realizado, mas não há qualquer remuneração para esses procedimentos de
cumprimento de sentença posteriores.
Além disso, o art. 20, parágrafo 4º do CPC refere expressamente como serão fixados
honorários advocatícios nas execuções, verbis:
“...
4º Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que
não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou
não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas
das alíneas a, b e c do parágrafo anterior.
...”
Como se verifica o CPC não faz distinção entre tipos de execução e refere ainda
que podem ser EMBARGADAS OU NÃO, de qualquer forma devem ser fixados honorários
advocatícios.
Não se pode deixar de ressaltar que os honorários advocatícios são fixados para remunerar
o trabalho do profissional que atua no feito e não está adstrito a ações específicas ou
individualizadas.
Havendo o trabalho profissional, especialmente em função da total falta de preocupação
ou zelo por parte do devedor que não pagou o que devia, demandando despesas ao poder público
para o trabalho dessa nova fase, deve ele sim ser remunerado e da forma como preceitua o art. 20
e parágrafos do CPC, não havendo qualquer justificativa para entendimento diverso.
Quem pagará os gastos do poder público municipal com a hora do profissional
procurador que poderia estar trabalhando em outra ação se ocorresse o pagamento
devido, o material utilizado nas petições, o trabalho do contador que realizou as
memórias de cálculo juntadas?
242 Revista da PGM
E todos esses procedimentos foram necessários ante a inércia do devedor. JUSTA, ASSIM,
A FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
E a doutrina está a dispor ao encontro do aqui enfrentado, inclusive com artigos de
desembargadores de nosso Estado. A Desa. Elaine Harzheim Macedo entende cabível a fixação de
honorários advocatícios nessa nova fase processual, o que já foi tema abordado pela mesma em
cursos, palestras etc.
O réu não está impedindo de pagar e evitar o procedimento expropriatório, o que agora
não é diferente. Mais. Hoje existe uma previsão de cumprimento, ou seja, o devedor deve pagar
sob pena de incidência da multa. SE NÃO PAGA SUBMETE-SE À EXECUÇÃO. É NOVA ATIVIDADE,
NOVO PROCEDIMENTO A SE INSTAURAR: DE EXECUÇÃO.
O próprio art. 133 da Constituição Federal refere ser o advogado indispensável à
administração da justiça e na fase de execução para cumprimento da sentença não é diferente,
exercendo seu trabalho para alcançar o pagamento devido, e por tal deve ser justamente
remunerado, sob pena de se estar penalizando o credor em última análise, eis que este não
recebeu o que lhe era devido e previsto em lei como de cumprimento obrigatório e ainda terá que
arcar com o pagamento do profissional advogado a fim de promover os procedimentos de execução.
Assim, o art. 20 e parágrafos do CPC e o art. 133 do CPC devem ser observados e fixados
honorários advocatícios, já que em fase de penhora e avaliação, ou seja, em execução propriamente
dita, CABENDO AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A FISCALIZAÇÃO DESSA APLICAÇÃO, JÁ QUE
NÃO MATÉRIA DE APLICAÇÃO RECENTE E A TRATAR DE REMUNERAÇÃO DO PROFISSIONAL
ADVOGADO.ltima anlizando o credor em [ualho para alcançar o pagamento devido, e por tal deve
ser justamente remunerado, sob pena de se eISE
Desse modo, evidencia-se a alegada ofensa ao artigo 20, parágrafos, em especial o § 4º do
CPC, posto não haver observância à necessária aplicação e fixação de honorários para a nova fase
processual instaurada, prevista nos artigos 475-I e 475-J do CPC, o que autoriza o processamento
do presente recurso especial interposto.
REQUERIMENTO
Diante do exposto, não resta dúvida que o respeitável aresto recorrido desafia Recurso
Especial, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal, na medida em que viola o
disposto na legislação infraconstitucional.
E é pelos argumentos invocados no presente recurso que o Recorrente confia que,
atendidos os pressupostos de admissibilidade, seja ele admitido, com as cautelas de estilo para
ser remetido ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, pelas teses invocadas e pelos superiores
suplementos que aditará, haverá de provê-lo, para que seja feita a necessária e costumeira justiça!
Termos em que
Pede Deferimento.
Porto Alegre, 28 de dezembro de 2006.
Cristiane da Costa Nery
Procuradora do Município
OAB/RS40.463
Nº 24 - Dezembro 2010 243
Transporte escolar – Competência e
discricionariedade do gestor municipal
Cristiane da Costa Nery
244 Revista da PGM
Nº 24 - Dezembro 2010 245
I. O RELATÓRIO
TRANSPORTE ESCOLAR – COMPETÊNCIA E DISCRICIONARIEDADE
DO GESTOR MUNICIPAL
Trata-se de Ação Declaratória com pedido de tutela antecipada ajuizada em 2005 contra o
Município de Porto Alegre e a Empresa Pública de Transporte e Circulação – EPTC, alegando estar
lhe sendo negado o direito de prestar serviço de transporte escolar no Centro Universitário Ritter
dos Reis – UNIRITTER, inobstante existirem autorizados no local e ter o autor alvará para prestação
do serviço em outros locais.
A tutela antecipada foi indeferida, o que foi mantido em sede de Agravo de Instrumento.
Contestado o feito, foi apresentada réplica. Concluída a instrução do feito, após realização
de audiência de instrução e julgamento e apresentação de memoriais escritos (estes elaborados
pela colega Bethania Regina Pederneiras Flach), foi prolatada a sentença de improcedência em
novembro de 2010, após parecer também nesse sentido proferido pelo Ministério Público estadual.
A r. sentença enfrentou a questão da competência municipal para dispor sobre a matéria,
nos termos do art. 30, I da Constituição Federal, também enfrentando a questão da
discricionariedade do gestor público em relação aos serviços e atos administrativos correlatos
que lhe cabem. Além disso, ratificou a necessidade de cumprimento do art. 333 do CPC, no que
se refere ao ônus da prova, cabível ao autor, o qual, no presente feito, não logrou êxito nesse
intento.
Importante citar o trecho da fundamentação da bem lançada decisão, ao encontro das
teses sustentadas pelo Município de Porto Alegre:
“A Lei nº 8.133/98 dispõe que o serviço de transporte escolar deve ocorrer mediante a
obtenção de prévia outorga pública, na forma de autorização.
Outrossim, o artigo 30, inciso I, da CF/88 confere aos Municípios competência para
regular o trânsito no que tange aos assuntos de interesse local.
Dito isto, verifica-se que no caso concreto a parte autora já possui autorização
municipal para explorar no Município de Porto Alegre o serviço de transporte escolar. A questão
insurge-se quanto à autorização de tráfego junto ao Centro Universitário Ritter do Reis –
UNIRITTER.
Do conjunto probatório constata-se que inicialmente o pedido formulado pelo autor
foi rejeitado, tendo em vista a existência de outros transportadores que possuem condições
técnicas e operacionais para realizarem o transporte das pessoas.
Gize-se que o agir do réu está em consonância com o disposto na lei, uma vez que
há limites a ser observado quanto à concessão de autorizações para a exploração do
transporte escolar.
246 Revista da PGM
Dentre eles está a aglutinação do serviço em bacias e, por consequência, o esgotamento
da capacidade dos permissionários existentes em certas rotas.
Assim, a convocação para o preenchimento das vagas em cada bacia operacional
deverá respeitar a lista formada pelas requisições devidamente protocoladas pelos interessados
quando da publicação do Edital.
O autor não se desincumbiu de seu ônus probatório, forte o artigo 333, inciso I, do
CPC, de demonstrar que a rota que pretende abranger em sua autorização de tráfego está
carente de prestadores de serviços. “
Em anexo segue a contestação apresentada pelo Município e a sentença. A ação tramita
na 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, sob a responsabilidade da Procuradora signatária,
lotada na Procuradoria de Serviços Públicos da PGM, sob o nº 1.05.2397751-8.
PSP/PGM, novembro de 2010.
Cristiane da Costa Nery
Procuradora do Município de Porto Alegre
OAB/RS 40.463
II. A PEÇA DO MUNICÍPIO
EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(A) DE DIREITO DA 7ª VARA DA FAZENDA
PÚBLICA DA COMARCA DE PORTO ALEGRE - RS.
Processo nº 1.05.2397751-8
Autor: LUIZ ANTÔNIO ALVES DA ROCHA
Réus: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE e EMPRESA PÚBLICA DE TRANSPORTE E
CIRCULAÇÃO
Objeto: CONTESTAÇÃO
O MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, pessoa jurídica de direito público
interno, com endereço na rua Siqueira Campos, nº 1300, 12º andar -
Procuradoria-Geral do Município, nos autos da ação DECLARATÓRIA que
lhe move LUIZ ANTÔNIO ALVES DA ROCHA, vem, respeitosamente, à
presença de Vossa Excelência, por sua procuradora firmatária, apresentar
CONTESTAÇÃO, aduzindo em sua defesa o quanto segue.
DA AÇÃO PROPOSTA
O autor ajuizou a presente ação declaratória com pedido liminar contra o Município de
Porto Alegre e a EPTC, alegando estar sendo cerceado em seu direito de operar o transporte
escolar junto à UNIRITTER.
Nº 24 - Dezembro 2010 247
Postula a autorização para prestar o serviço liminarmente, a expedição de alvará provisório,
a sua classificação definitiva como transporte escolar com a emissão do competente alvará
exclusivamente para o campus UNIRITTER Porto Alegre.
São esses os fatos sucintamente reproduzidos, não procedendo, entretanto, a pretensão
como se demonstrará.
DA ATUAÇÃO DA EPTC/SMT E DA LEGITIMIDADE DO
MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE
Cumpre esclarecer que com o advento da Lei 9.503, de 23.09.97, Código de Trânsito
Brasileiro - CTB , que reordenou o Sistema Nacional de Trânsito, o Município de Porto Alegre
efetivamente assumiu a gestão do sistema no que diz respeito à fiscalização, autuação e aplicação
das medidas administrativas cabíveis por infrações à circulação, estacionamento e
parada, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito (art. 24 do CTB).
A fim de dar cumprimento ao disposto no Código de Trânsito Brasileiro foi aprovada a Lei
Municipal 8.133/98, que autorizou a criação da Empresa Pública de Transporte e Circulação
- EPTC, órgão executivo de trânsito de Porto Alegre.
A Lei nº. 8.133, de 12 de janeiro de 1998, que dispôs sobre o “Sistema de Transporte e
Circulação no Município de Porto Alegre, adequando a legislação municipal à federal, em
especial, ao Código de Trânsito Brasileiro”, ora anexa, dividiu o exercício das competências
municipais relativas ao transporte e trânsito entre a Secretaria Municipal dos Transportes
e a Empresa Pública de Transporte e Circulação -EPTC.
À Secretaria Municipal dos Transportes, órgão integrante da estrutura administrativa
centralizada do Município, coube o planejamento, a regulamentação e a concessão do Sistema
Municipal de Transporte Público e de Circulação do Município de Porto Alegre ( art. 7º, II, Lei nº.
8.133/98 ), cabendo à Empresa Pública de Transporte e Circulação - EPTC, ser o órgão executivo
de trânsito do Município, responsável pela operação, controle e fiscalização do Sistema de
Transporte Público e de Circulação.
A EPTC é empresa pública municipal, organizada sob a forma de sociedade anônima,
cuja criação foi autorizada pela Lei Municipal nº 8.133 de 12.01.98, sendo dotada de personalidade
jurídica e autonomia administrativa e financeira.
Tendo, por determinação legal, personalidade jurídica própria e autonomia administrativa,
à EPTC compete a defesa judicial dos atos decorrentes da sua atividade no mundo jurídico, como
exercício de um direito.
A atuação da EPTC, então, nada mais é do que a atuação do Município através de um ente
por ele criado para realização de uma atribuição municipal. Sua atividade está inserida no contexto
da descentralização administrativa.
À EPTC cabe, dentre outras atribuições, a fiscalização permanente da prestação dos serviços
de transporte de passageiros e a intervenção na prestação dos serviços, nos casos previstos em lei.
A fim de instruir a presente ação de forma meritória, o Município traz as informações
sobre o caso obtidas junto à Empresa Pública.
248 Revista da PGM
DO PEDIDO DE INCLUSÃO DO PREFIXO Nº 594 - UNIRITTER
O presente caso trata de transporte de passageiros, sendo aplicável em grande parte a
legislação municipal de Porto Alegre e não a legislação de trânsito, ou seja, o Código de Trânsito
Brasileiro. Vejamos.
Tratando-se de transporte de universitários, caracterizado, portanto, como transporte
escolar, a legislação a ser observada é a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal 13.700/02
e alterações posteriores.
Conforme rezam os artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 8.133/98 são preestabelecidos
que Escolar é o transporte de estudantes e professores executado mediante contrato entre as
partes com período de duração regular, efetuado por ônibus, microônibus, furgão ou veículos
assemelhados, obedecidas as normas estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro e pelo Poder
Público Municipal. Este autorizará o serviço de transporte de passageiros escolar nos termos do
regulamento próprio, o qual definirá a forma de composição do preço a ser pago pelo usuário.
O regulamento de que trata a referida lei é, hoje, consolidado pelas disposições contidas
no Decreto Municipal n.º 13.700, de 22 de abril de 2002, alterado pelo Decreto Municipal nº
14.588/04, estabelecendo o regulamento de operação e controle do Transporte Escolar.
O artigo 4.º do referido Decreto define as condições do sistema de transporte escolar para
concessão de novas autorizações. A saber:
“Art. 4º As autorizações para a exploração do serviço de
transporte escolar que envolvam escolas localizadas no Município de
Porto Alegre serão fornecidas pela Secretaria Municipal dos
Transportes, a título precário, a pessoas físicas para 01 (um) veículo
e jurídicas para no máximo 05 (cinco) veículos, pelo prazo de 72
(setenta e dois) meses.
§ 1º A autorização do serviço será formalizada mediante
termo, o qual especificará o número do prefixo do veículo autorizado,
que poderá operar em até 06 (seis) escolas.
§ 2º Aquele que estiver autorizado a operar em menos de
06 (seis) escolas poderá solicitar a ampliação de sua autorização,
para acrescentar outra(s) escola(s), desde de que respeitado o limite
máximo de 06 (seis) escolas e mediante as condições definidas no
parágrafo terceiro.
§ 3º Será autorizada a inclusão de novas escolas no alvará
de tráfego, para os autorizatários que operam em menos de 06 escolas,
desde que os demais transportadores autorizados para realizar o
transporte na referida escola possuam ocupação superior a 70%.
§ 4º O serviço de transporte escolar será organizado por
bacias operacionais compostas por bairros da cidade, a serem
estabelecidas através de Resolução da Secretaria Municipal dos
Transportes.
Nº 24 - Dezembro 2010 249
§ 5º O Alvará de Tráfego terá validade de um ano e nele
constará as escolas autorizadas para operar, de acordo com a relação
de alunos cadastrados na SMT/EPTC.
§ 6º No momento da renovação anual do alvará de tráfego
será exigida a comprovação do recolhimento da contribuição sindical
obrigatória.
§ 7º Somente serão concedidas novas autorizações quando o
sistema de transporte escolar tiver ocupação maior que 75% em todas
as bacias operacionais.
§ 8º Nos casos de encerramentos das atividades do
estabelecimento de ensino ou no caso de cessação do transporte,
possuindo o autorizatário apenas uma escola no alvará, terá o prazo
de um ano para permanecer nesta situação, devendo neste período
manter as vistorias em dia.”
Já, a Resolução n.º 04/02, do Secretário Municipal dos Transportes, dispôs sobre as
Bacias Operacionais e inclusão de escola no Transporte Escolar de Porto Alegre, dando outras
providências.
Cumpre esclarecer que por Bacia Operacional do Transporte Escolar deve se ter como a
delimitação de um espaço urbano que tem como referência a localização dos estabelecimentos
de ensino da Cidade de Porto Alegre. Diferentemente de como era operado o transporte escolar
antigamente, o qual era prestado desordenadamente por qualquer transportador em quaisquer
escolas que desejasse atuar, a Administração buscou delimitar os espaços de atuação dos
transportadores para equalizar os critérios de demanda x oferta do serviço prestado.
Anteriormente, o sistema de transporte escolar possibilitava que qualquer transportador
realizasse o transporte em qualquer escola, concentrando-se, naturalmente, a oferta onde o serviço
fosse mais rentável. Afora isso, as distâncias entre os locais de embarque e desembarque eram
altas e faziam que o custo operacional do transporte impactassem na qualidade oferecida. Por
outro lado, esvaziava-se a oferta do transporte em escolas em que fosse baixo o poder aquisitivo.
Ocorre que a Administração, não desejando que o transporte fosse prestado a minorias,
implementou delimitações geográficas, as quais foram definidas pela Resolução N.º 04/2002.
Por certo, a lei determina que os autorizatários do sistema de transporte escolar poderão
operar em uma única Bacia Operacional estabelecida de acordo com as escolas cadastradas no
seu alvará de tráfego.
A Resolução n.º 03/2006 da Secretaria Municipal dos Transportes, de 14 de março do
corrente ano, por sua vez, dispôs sobre as Bacias Operacionais e inclusão de escola no Transporte
Escolar de Porto Alegre, dando outras providências.
O Artigo 5º da referida Resolução, prevê que as autorizações de prefixos nas instituições
de ensino, serão realizadas através de sorteio público, sendo que as suas regras serão definidas
em edital próprio. Ou seja, para inclusão de escolas nos prefixos escolares, deverá ocorrer sorteio
público prévio, exceto naquelas situações elencadas nos §§ 2º e 3º do artigo 5º da Resolução
nº03/06.
250 Revista da PGM
A SMT/EPTC já está em fase de estudos dos índices de ocupação das Escolas, com o fito
de elaborar o quanto antes o Edital de Sorteio Público para inclusão de Escolas dos alvarás dos
autorizatários do Sistema de Transporte de Escolares, ainda, para o ano letivo de 2007.
Na UNIRITTER, objeto do presente feito, já existem 07 prefixos realizando o
transporte de Escolares (prefixos nºs 68, 266, 382, 452, 542, 558, 571), sendo que cada
prefixo não possui ocupação superior a 70%.
Assim, importante esclarecer que se o índice de ocupação desta Escola for superior a 70%,
a mesma não participará do Sorteio, permanecendo com os 07 prefixos no transporte de escolares.
Especificamente, no tocante ao autor, vinculado ao transporte escolar, por meio do prefixo
594, verificamos que o mesmo possui em seu Alvará 3 (três) Escolas: Escola Particular de 1º
Grau São Vicente Mártir, Colégio Particular Saint Exupery e Escola Estadual de 1º Grau
Alceu Wamosy, com percentual de ocupação global de 76,67%.
Ao contrário do sinalado pelo autor, não consta nos cadastros da SMT/EPTC,
qualquer pedido de inclusão de escola, o que deve comprovar ante os termos do artigo
333, inciso I do CPC.
A análise de inclusões de escolas, sem a necessidade de sorteio público, é restrita somente
àquelas situações anteriormente apontadas (artigo 5º e §§ 2º e 3º da Resolução nº03/06). Em
não sendo preenchidos tais requisitos, não há inclusão a ser deferida.
De qualquer forma, como antes referido, a UNIRITTER já possui 07 autorizatários escolares,
sem ocupação superior a 70% do previsto na legislação, o que não guindaria ao autor a sua
inclusão junto a essa Escola.
DA NATUREZA JURÍDICA DA AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO
A autorização é ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a
Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade
material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seria legalmente proibido.
Para Hely Lopes Meirelles, a autorização é o ato administrativo discricionário e precário
pelo qual o Poder Público torna possível ao interessado a realização de certa atividade, serviço,
ou a utilização de determinados bens particulares ou públicos que a lei condiciona à
aquiescência prévia da Administração, tais como o uso especial de bem público, o porte de
arma, o trânsito por determinados locais, etc.
Assim, na autorização, embora o pretendente satisfaça às exigências administrativas, o
Poder Público decide discricionariamente sobre a conveniência ou não do atendimento da pretensão
do interessado, ou da cessão do ato autorizado.
Não há qualquer direito subjetivo à obtenção ou à continuidade da autorização, daí por que
a Administração pode negá-la, como pode cassá-la a qualquer momento sem indenização alguma.
Caberá ao administrador, então, a escolha de melhor solução quando houver necessidade
de decidir, presentes duas ou mais alternativas.
Na escolha influenciará sua decisão por ter ele que respeitar o princípio inserido pela
Emenda Constitucional n.º 19, qual seja, o Princípio da Eficiência.
Nº 24 - Dezembro 2010 251
Atuando sempre objetivando a solução mais eficiente, o administrador deverá observar
que o mérito administrativo agora é compromissado com a melhor forma de solução, com
verdadeira obrigação de optar pelo meio mais eficiente e perfeito de acabamento.
Dessa forma, essa espécie de ato administrativo, que é discricionário, é resultante
de escolha criteriosa feita pela autoridade administrativa, na busca do que melhor atenda
ao interesse público.
Por certo que a margem de escolha não significa liberdade absoluta, o conteúdo tem de
ser consentido pelas normas do ordenamento, a autoridade deve ser competente e o fim deve ser
o interesse público.
Por se tratar de questão de mérito administrativo a concessão de direito que decorre de
autorização administrativa não pode perpetuar no tempo em decorrência de uma concessão
judicial, seja porque foge à regra do instituto ou porque não compete ao Poder Judiciário.
DA IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DO MÉRITO DO
ATO ADMINISTRATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO
A legalidade do ato administrativo diz respeito à sua conformação com as normas de
ordenamento. A margem livre sobre a qual incide a escolha inerente à discricionariedade
corresponde ao aspecto de mérito do ato administrativo; tal aspecto expressa o juízo de conveniência
e oportunidade da escolha, no atendimento do interesse público, juízo esse efetuado pela autoridade
à qual se conferiu o poder discricionário.
Com efeito, ao Judiciário descabe o exame do mérito dos atos administrativos. Nesse
sentido é a jurisprudência dominante, a saber:
“Administrativo. Mandado de Segurança. Cancelamento de
licitação. Abertura de outra com mudança de objeto, mais adequado
às necessidades da administração. Possibilidade. Questão de mérito
administrativo. Segurança denegada.” Justiça Federal – Estado do
Sergipe, Juiz Fereal Ricardo César Mandarino Barretto (Grifo nosso)
“Remoção – Legalidade – Servidor estável que não tem
garantido a propriedade do cargo que ocupa – Critério de
conveniência e oportunidade da Administração – Desvio de
finalidade não demonstrado – Impossibilidade de o Poder
Judiciário ingressar na análise da discricionaridade
administrativa – Recurso não provido.” Apelação 99.153-5, 7ª Câmara
de Direito Público – Paraguaçu Paulista – 13.03.00 (Grifo nosso)
Ora, sendo o mérito de um ato administrativo imune à apreciação do Poder Judiciário,
impõe-se pela improcedência do pedido, já que o r. Juízo não pode determinar a inclusão do
Prefixo nº 594 na UNIRITTER, sem a realização de Sorteio Público, considerando que este
252 Revista da PGM
ato é discricionário e se encontra sob análise da conveniência e oportunidade da autoridade
administrativa, observando-se o regramento legal existente.
DA NECESSIDADE DE FISCALIZAÇÃO PELO PODER PÚBLICO- EPTC
Ainda que de competência exclusiva da EPTC, importante que o Município reitere o fato
de que há a necessidade de fiscalização do serviço em questão, com base na legislação municipal
aplicável. Tal competência é da EPTC, a qual a exerce de maneira eficaz.
O autor necessita da autorização em seu prefixo, sob pena de ser autuado por operar em
escola não autorizada, conduta tipificada no artigo 20, inciso X do Decreto Municipal nº 13.700/
02. A inobservância de quaisquer das regras e condições legais impostas à prestação do serviço de
transporte de escolares, acarretará a aplicação das autuações e penalidades previstas no Decreto
Municipal nº13.700/02 e alterações posteriores (em anexo).
Não há a negativa do próprio de que efetua irregularmente a prestação dos serviços, ou
seja, sem a necessária autorização. Mais. Refere que somente efetua a prestação de transporte
escolar junto a UNIRITTER, mas possui em seu alvará 03 escolas, como antes referido, o que
reforça a necessidade de fiscalização por parte do Poder Público, salientando que a UNIRITTER já
possui 07 prefixos que lhe prestam o transporte escolar.
Ex positis, demonstrada a legalidade da prática do ato pela administração, bem como
seus critérios definidores, inexistindo qualquer direito certo ao demandante, como faz parecer, a
improcedência é medida que se impõe.
DO REQUERIMENTO
Diante de todo o exposto, o Município de Porto Alegre requer a IMPROCEDÊNCIA total da
presente ação nos termos acima expostos, condenando-se o autor ao pagamento das custas
processuais e honorários advocatícios.
Requer, outrossim, a produção de todo o gênero de provas em direito admitidas, em
especial depoimento pessoal, documental e testemunhal, caso necessário.
Termos em que,
Pede deferimento.
Porto Alegre, 05 de janeiro de 2007.
Cristiane da Costa Nery
Procuradora do Município,
OAB/RS 40.463
Nº 24 - Dezembro 2010 253
III. A DECISÃO
COMARCA DE PORTO ALEGRE - 7ª VARA DOS FEITOS DA FAZENDA
PÚBLICA
2º JUIZADO - FORO CENTRAL
Processo nº: 1.05.2397751-8
Ação Ordinária
A: Luiz Antonio Alves da Rocha
R: Município de Porto Alegre e outro
Juíza Prolatora: Marilei Lacerda Menna
Dia: 17 de setembro de 2010.
VISTOS ETC.
Luiz Antonio Alves da Rocha propõe ação declaratória contra o Município de Porto
Alegre e Empresa Pública de Transporte e Circulação - EPTC, alegando, em síntese, que faz
o transporte escolar de alunos e professores do Centro Universitário Ritter dos Reis há mais de 04
anos sem nunca ter conquistado o alvará e autorização pertinentes para realizar o transporte dos
alunos junto a esta Universidade, embora sempre teve o referido alvará. Afirma que possui Termo
de Autorização e Alvará de Tráfego embora esteja vencido desde 30.04.2005 e Identidade de
Condutor Transporte Público de Passageiros Escolares, todos estes concedidos pela Prefeitura
Municipal de Porto Alegre, todavia não está podendo realizar o transporte escolar dos alunos, em
razão da não concessão/autorização para o referido transporte, embora tenha toda a disponibilidade
legal e administrativa já concedida, inclusive com veículo devidamente habilitado e dentro das
normas para a concessão de transporte escolar. Assevera que cumpre todos os requisitos da lei
para obter a autorização pertinente a realizar o transporte dos passageiros junto a Universidade
Ritter dos Reis, mas em razão de burocracias administrativas está sendo cerceado o seu direito de
realizar sua atividade profissional já reconhecida pela demandada. Refere-se a ausência de
concorrência desleal. Postula liminar. Pede a procedência da ação para o fim de declarar que o
autor deverá ser classificado como transporte escolar, tendo alvará e autorização definitiva para o
desenvolvimento de suas atividades junto a UNIRITTER.
Foi indeferido o pedido liminar, sendo mantida a decisão em sede de agravo de
instrumento.
Citados, o Município de Porto Alegre apresentou contestação, arguindo, que com o advento
do Código de Trânsito Brasileiro assumiu a gestão ao sistema no que diz respeito à fiscalização,
autuação e aplicação das medidas administrativas cabíveis por infrações à circulação,
estacionamento e parada, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito, em razão disto a
Lei Municipal 8.133/98 autorizou a criação da Empresa Pública de Transporte e Circulação –
EPTC, órgão executivo de trânsito de Porto Alegre, que é responsável pela fiscalização permanente
da prestação dos serviços de transporte de passageiros e intervenção na prestação dos serviços.
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Quanto ao pedido de inclusão do prefixo nº 594 – UNIRITTER, por se tratar de transporte
universitário deve ser observada a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal 13.700/02. Assevera
pela necessidade de observância da Bacia Operacional que cuida da delimitação de um espaço
urbano que tem como referência a localização dos estabelecimentos de ensinos da cidade de
Porto Alegre. Os autorizatários do sistema de transporte escolar poderão operar em uma única
Bacia Operacional estabelecida de acordo com as escolas cadastradas no seu alvará de tráfego.
Alega que na UNIRIITER já existem 07 prefixos realizando o transporte de Escolares, sendo que
cada prefixo não possui ocupação superior a 70%. Assim, se o índice de ocupação desta Escola for
superior a 70% a mesma não participará do Sorteio, permanecendo com os 07 prefixos no
transporte de escolares. Outrossim, ao contrário do sinalado pelo autor, não consta nos cadastros
da SM/EPTC qualquer pedido de inclusão de escola. Explana que a autorização é ato administrativo
unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo
de bem público ou o desempenho de atividade material ou a prática de ato que, sem esse
consentimento, seria legalmente proibido. Afirma pela impossibilidade de exame do mérito do
ato administrativo pelo Poder Judiciário. Pede a improcedência da ação.
Por sua vez, a ré Empresa Pública de Transporte e Circulação S/A – EPTC aduzindo que por
se tratar de transporte universitário deve ser observada a Lei Municipal 8.133/98 e o Decreto Municipal
13.700/02. Alega que o artigo 30, inciso I, da CF/88 concede ao Município competência para legislar
sobre assuntos de interesse local. Conforme rezam os artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 8.133/98
são preestabelecidos que Escolar é o transporte de estudantes e professores executado mediante
contrato entre as partes com período de duração regular, efetuado por ônibus, microônibus, furgão
ou veículos assemelhados, obedecidas as normas estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro e
pelo Poder Público Municipal, bem como que este autorizará o serviço de transporte de passageiros
escolar nos termos do regulamento próprio o qual definirá a forma de composição do preço a ser
pago pelo usuário. Alega que a SMT/EPTC já está em face de estudos os índices de ocupação das
Escolas, com o fito de elaborar o quanto antes o Edital de Sorteio Público para inclusão de Escolas
dos alvarás dos autorizatários do Sistema de Transporte de Escolares. A UNIRIITER já possui 07
prefixos realizando o transporte de Escolares, sendo que cada prefixo não possui ocupação superior
a 70%. E que inexiste pedido de inclusão de escola do autor nos cadastros da SMT/EPTC. Explana
pela impossibilidade de exame do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Pede a improcedência.
Houve réplica.
Intimadas as partes para dizerem quais as provas que pretendiam produzir, o autor e a ré
EPTC requereram a produção de prova oral. Não houve manifestação do Município.
Sobrevieram audiências de instrução e julgamento na qual foram ouvidas testemunhas e
foi acostado documentos.
Indeferiu-se o pedido de realização de perícia.
Foi declarada encerrada a instrução. Oportunizou-se as partes a apresentação de
memoriais.
O Ministério Público opina pela improcedência da ação.
Os autos vieram conclusos.
É o relatório.
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Passo a fundamentar e a decidir.
Inexistindo preliminares a serem analisadas, passo ao exame do mérito, o qual busca a
parte autora autorização da sua inclusão na escola UNIRITTER em seu alvará de tráfego.
A Lei nº 8.133/98 dispõe que o serviço de transporte escolar deve ocorrer mediante a
obtenção de prévia outorga pública, na forma de autorização.
Outrossim, o artigo 30, inciso I, da CF/88 confere aos Municípios competência para regular
o trânsito no que tange aos assuntos de interesse local.
Dito isto, verifica-se que no caso concreto a parte autora já possui autorização municipal
para explorar no Município de Porto Alegre o serviço de transporte escolar. A questão insurge-se
quanto à autorização de tráfego junto ao Centro Universitário Ritter do Reis – UNIRITTER.
Do conjunto probatório constata-se que inicialmente o pedido formulado pelo autor foi
rejeitado, tendo em vista a existência de outros transportadores que possuem condições técnicas
e operacionais para realizarem o transporte das pessoas.
Gize-se que o agir do réu está em consonância com o disposto na lei, uma vez que há
limites a ser observado quanto à concessão de autorizações para a exploração do transporte
escolar.
Dentre eles está a aglutinação do serviço em bacias e, por consequência, o esgotamento
da capacidade dos permissionários existentes em certas rotas.
Assim, a convocação para o preenchimento das vagas em cada bacia operacional deverá
respeitar a lista formada pelas requisições devidamente protocoladas pelos interessados quando
da publicação do Edital.
O autor não se desincumbiu de seu ônus probatório, forte o artigo 333, inciso I, do CPC,
de demonstrar que a rota que pretende abranger em sua autorização de tráfego está carente de
prestadores de serviços.
Com efeito, verifica-se, ainda, que não se constata nos cadastros da SM/EPTC qualquer
pedido de inclusão de escola por parte do autor. Ainda, o autor informou em audiência que não
obteve a concordância dos demais concorrentes que realizam o transporte escolar na UNIRITTER.
Logo, impõe-se a improcedência do pedido nos termos em que foi formulado.
Nesse sentido destaco o seguinte julgado da Corte Estadual:
“APELAÇÃO CÍVEL. ação de obrigação de fazer. serviço de
transporte escolar. autorização. descumprimento das condições para
o recebimento de novos alvarás. improcedência da demanda.
Conforme o regramento para a concessão de autorizações dos
serviços de transporte escolar, os novos alvarás somente serão
concedidos, caso haja anuência de todos os autorizatários cadastrados
na instituição de ensino, atendido o índice de ocupação global dos
veículos.
256 Revista da PGM
Exigências que não se mostram desarrazoadas ou
desproporcionais para a execução do serviço concedido.
Não cumprindo o requerente tais condições, não há
fundamento para a demanda que visa compelir a Administração à
concessão de alvará. Improcedência do pedido. Apelação
desprovida”.(Apelação Cível. Nº 70030267579. Segunda Câmara Cível -
Regime de Exceção. Relator: DES. MARCO AURÉLIO HEINZ. Julgado em
06.05.2010).
Gize-se que os depoimentos das testemunhas ouvidas não têm o condão de modificar o
entendimento do Juízo.
Por derradeiro, registro que só cabe ao Judiciário anular atos administrativos ilegais, não
sendo esta a situação dos autos, uma vez que a Administração, ao negar o pedido administrativo
formulado pela parte autora a fim de obter a inclusão de nova escola em seu alvará de tráfego de
trânsito, agiu dentro dos parâmetros legais.
Diante de tais lineamentos, interpretar de forma diversa atentaria contra os princípios e
as normas que norteiam o nosso ordenamento jurídico.
Isto posto, julgo improcedente o pedido formulado na presente ação ordinária proposta
por Luiz Antônio Alves da Rocha contra o Município de Porto Alegre e a Empresa Pública
de Transporte e Circulação - EPTC.
Condeno o autor ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios que fixo
em R$ 600,00, para cada um dos patronos dos réus, corrigido a partir da presente data pelo IGP-
M. Todavia, suspendo a condenação haja vista ser o autor beneficiário da assistência judiciária
gratuita, ora deferido, nos termos da Lei 1.060/50.
Fica suspensa a condenação no tocante ao pagamento de custas a Cartórios Judiciais
Privatizados, nos termos da decisão proferida em liminar pelo Supremo Tribunal Federal, na
Medida Cautelar em Reclamação nº 7362.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Por fim, em homenagem aos princípios da instrumentalidade, celeridade e economia
processual, eventuais apelações interpostas pelas partes restarão recebidas em seu efeito
suspensivo (art. 520, caput, do CPC), salvo a ocorrência de quaisquer dos casos dos incs. I a VII
do mesmo artigo, quando o recebimento será apenas no efeito devolutivo.
Interposto(s) o(s) recurso(s), caberá à Sra. Escrivã, mediante ato ordinatório, abrir vista
à parte contrária para contra-razões, e, na sequência, ao MP(nas hipóteses em que houve
intervenção). Por fim, remeter os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça.
Nº 24 - Dezembro 2010 257
Idêntico procedimento deverá ser adotado na hipótese de recurso adesivo.
Ressalvam-se, entretanto, as hipóteses de intempestividade, ausência de preparo (a menos
que o recorrente litigue com gratuidade judiciária ou assistência judiciária gratuita ou postule o
benefício no momento da interposição da irresignação) e oposição de embargos de declaração,
quando os autos deverão vir conclusos.
Transcorrido o prazo recursal sem aproveitamento, certifique-se o trânsito em julgado e
intimem-se as partes para que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, digam sobre o
prosseguimento.
Cumpra-se.
Porto Alegre, 17 de setembro de 2010.
Marilei Lacerda Menna
Juíza de Direito
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V Congresso de Procuradores
das Capitais Brasileiras
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Área I: Urbanismo (Estatuto da Cidade, medidas de controle urbano,
patrimônio urbanístico, desapropriações) e Meio Ambiente (patrimônio
ambiental construído e natural).
Enunciado 159 (AI I): Mudança climática - Os acordos internacionais de que o país seja
parte são firmados em nome da Federação Brasileira, vinculando a todos os entes que a integram.
Sendo assim, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima obriga também
aos Municípios. Por isso, e por força do direito difuso a um ambiente ecologicamente equilibrado
(art.225, caput, da Constituição da República), é dever dos entes locais adotar, no âmbito de sua
competência, políticas e legislação próprias que contemplem medidas de mitigação e de adaptação
aos efeitos do aquecimento global, bem como aquelas necessárias a contribuir com a prevenção
do problema.
Enunciado 160 (AI I): Poluição visual, defesa do patrimônio cultural, APAC - A proteção
do patrimônio cultural não pressupõe que o bem ou conjunto a ser tutelado seja portador de
referência histórica, artística ou arquitetônica. Por isso, é legítima a proteção de valores imateriais
contemporâneos para que sirvam de objeto de memória da presente para as futuras gerações.
Nesse mister, os atos de proteção de conjuntos urbanos de valor cultural não se confundem com
o instituto do tombamento, embora seja possível tombar os elementos daquele conjunto que,
individualmente, possuam valor histórico, artístico ou arquitetônico.
Enunciado 161 (AI I): ARES - É constitucionalmente possível, em tese, a adoção do
conceito das ARES (Áreas de Revitalização Econômica), tal como defendido pelo Ministério das
Cidades. A associação da iniciativa privada ao desempenho de serviços públicos, contudo, deve
ocorrer com observância da premissa de que não se pode delegar a particulares o exercício de
atividades próprias de estado.
Enunciado 162 (AI I): Conselhos urbanísticos/participação popular/Plano Diretor - No
âmbito dos governos municipais, a falta de audiência pública ou de oitiva de conselho urbano-
ambiental só acarreta irregularidade para o processo administrativo correspondente quando houver
ato normativo local que expressamente determine que uma e/ou outra tenha lugar. Nos casos em
que seja normativamente prevista a realização de audiência pública não a pode substituir a consulta
do conselho competente; e nem a manifestação deste, quando prevista em regra jurídica própria,
supre o pronunciamento daquela.
Enunciado 163 (AI I): Ação possessória x poder de polícia - É incabível discutir a validade
de atos de polícia urbano-ambiental do Município sob a luz dos direitos reais que o infrator
eventualmente detenha, especialmente posse.
262 Revista da PGM
Área II: Pessoal (estatutários e celetistas, Previdência)
Enunciado 164 (AI II): Pagamento a maior. Critérios para devolução. I – Na
hipótese de devolução de pagamento indevido a servidor público, a boa-fé não é o único
critério a ser considerado. II – Na hipótese do pagamento ter decorrido de erro da
administração (erro de fato) ou decisão judicial a devolução do valor se impõe, observado
o prazo prescricional. III – A devolução deverá ser precedida de processo administrativo,
assegurados o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF), salvo nos casos de decisão
judicial.
Enunciado 165 (AI II): O Prefeito Municipal não possui legitimidade para figurar no
polo passivo de Mandado de Injunção visando a supressão da omissão legislativa quanto à edição
da lei complementar prevista no art. 40, § 4º da Constituição Federal.
Enunciado 166 (AI II): Não estão ao alcance da vedação introduzida pela Emenda
Constitucional nº 19/98, no texto do art. 37, XIV da Constituição Federal, as parcelas que, embora
recebam a denominação de gratificações, objetivam a remuneração do regime complementar de
trabalho, dada a sua natureza vencimental.
Área III: Licitações e Contratos Administrativos
Enunciado 167 (AI III): Pregão Eletrônico - Nas contratações de bens e serviços
comuns, recomenda-se a utilização do pregão em sua forma eletrônica preferencialmente
à presencial, ressalvados os casos de sua comprovada inviabilidade, a ser justificada
pela autoridade competente.
Enunciado 168 (AI III): Pregão para Serviços de Engenharia - É possível a utilização
do pregão, inclusive para fins de registro de preços, para contratação de serviços comuns de
engenharia.
Enunciado 169 (AI III): Carona - No âmbito municipal, é possível a adesão à ata de
registro de preços (“carona”) entre órgãos e entidades do próprio Município (Administração Direta
e Indireta), desde que tal instituto seja regulamentado em legislação local.
Enunciado 170 (AI III): Aditivo de Ata - Aplicam-se aos quantitativos registrados em ata
os limites de acréscimos dispostos no art. 65, §1º da Lei n. 8.666/93.
Enunciado 171 (AI III): Prorrogação de Contratação Direta - A prorrogação dos contratos
decorrentes de dispensa e inexigibilidade de licitação pressupõe a comprovação da continuidade
dos requisitos que ensejaram a contratação direta, aplicando-se, por analogia, o disposto no art.
55, XIII, da Lei n. 8.666/93.
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Área IV: Tributos Municipais, Repasses Constitucionais e Orçamento
(incluindo gestão de dívida ativa)
Enunciado 172 (AI IV): Base de Cálculo do ITBI – Valor Venal ou Valor da
Arrematação Judicial - A base de cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel, entendido como
o valor da venda potencial do bem em condições normais de mercado. O preço obtido em
arrematação judicial decorrente de hasta pública raramente reflete o seu valor venal. Ressalva-
se a possibilidade de lei municipal determinar como base de cálculo o valor da arrematação
em hasta pública, à luz dos seus poderes de reduzir a base de cálculo e do princípio da
praticidade da fiscalização.
Enunciado 173 (AI IV): Substituição de Executado na Execução fiscal. Hipóteses de
Sucessão - Não se aplica a Súmula n. 392 do STJ às hipóteses de sucessão tributária previstas no
CTN, inclusive às verificadas após o lançamento ou ao ajuizamento da execução fiscal. Nos casos
de cobrança de IPTU ou taxas fundiárias em que houver posterior sucessão tributária, por força
de alienação do bem, só será imposta à Fazenda Pública a obrigação de executar o novo proprietário
se este cumpriu a obrigação acessória ou dever instrumental do IPTU de comunicar o novo registro
de propriedade, antes do ajuizamento da execução fiscal, não sendo suficiente o simples pagamento
ou comunicação da transmissão relativos ao ITBI. Entretanto, nada impede que a Fazenda Pública
busque, por meio próprio, eventual novo proprietário, sucessor, para fins de execução.
Enunciado 174 (AI IV): LEASING: definição do local da ocorrência do fato gerador
e base de cálculo - Nas prestações de serviços de leasing, o local de ocorrência do fato gerador
é o estabelecimento prestador, entendido à luz dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n.
116/2003, abrangendo, por exemplo, as situações em que o atendimento é realizado na
concessionária, com apresentação das condições do financiamento e comercialização. A base
de cálculo deve ser o valor global do contrato, uma vez que o mesmo é típico, conglobando
de maneira incindível suas distintas obrigações e remunerações. Exclui-se, apenas, o valor
pago a título de VRG (Valor Residual Garantido), desde que comprovadamente destinado à
remuneração da opção de compra.
Indicativos:
Nº 4 (AI IV): Cabimento do Protesto de Dívida Ativa - Na hipótese de adoção do protesto
pelo gestor público como instrumento de cobrança de créditos tributários, é recomendável que o
mesmo se realize apenas se houver previsão em lei do próprio ente tributante e que se limite aos
débitos objeto de prévio parcelamento tributário. Estas medidas cumprem o princípio da legalidade
e reduzem o risco de constrição equivocada de devedores. É recomendável que os termos de
parcelamento de dívida contemplem cláusula de aceitação de eventual protesto pelo devedor,
caso inadimplente, configurando-se, com o pacto, novação objetiva em relação às garantias do
crédito tributário.
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Nº 5 (AI IV): É recomendável a busca de comprovação da morosidade do aparelho
judiciário para distribuir ou processar as execuções fiscais, inclusive em relação à citação,
podendo ser oficiado ao órgão competente do Poder Judiciário para obtenção de informação
nesse sentido, o que se mostra útil ao afastamento de eventuais alegações de prescrição nas
respectivas ações.
Área V : Competências, Serviços e Obrigações Constitucionais do
Município (aspectos de responsabilidade civil do estado, deveres
impostos pela CF aos entes locais, etc.)
Enunciado 175 (AI V): Cabe ao Procurador do Município colaborar para a revisão
periódica das listas de medicamentos, bem como dos protocolos e diretrizes terapêuticas, através
da identificação das demandas mais frequentes e informação aos órgãos competentes, evitando a
judicialização ou minorando o volume de ações de saúde.
Enunciado 176 (AI V): Cabe ao Procurador do Município, com o objetivo de evitar a
judicialização das políticas públicas e consequentes distorções no orçamento, atuar no controle
interno de sua execução, colaborando para a sua adequada gestão, através do fornecimento de
elementos de que dispõe por força de sua atuação jurídica.
Enunciado 177 (AI V): O Município, com fundamento na sua autonomia municipal,
tem competência para permitir o uso de instrumentos que assegurem o exercício da função da
Guarda Municipal, dentre os quais o uso de arma de fogo e cães adestrados.
Enunciado 178 (AI V): Os Procuradores Municipais não têm poder de conciliar, transigir
ou desistir nos processos de competência do Juizado Especial (Lei 12.153/2009) sem lei municipal
que os autorize e especifique as hipóteses cabíveis.
Enunciado 179 (AI V): Nas unidades de saúde no plano da administração municipal,
recomenda-se a observância das listas padronizadas de fármacos, protocolos e diretrizes
terapêuticas estabelecidas pelo SUS ou a apresentação de laudo técnico que justifique conduta
diversa.
Área VI: Carreira e Atuação dos Procuradores Municipais (análise das leis
aplicáveis e das estruturas de cada procuradoria, troca de experiências práticas sobre
os sistemas aplicados em cada capital para gestão de seus interesses jurídicos, direitos
dos procuradores, aspectos éticos da atuação dos procuradores).
Enunciado 180 (AI VI): Com o objetivo de fortalecimento da autonomia municipal no
pacto federativo, a representação dos Municípios deve ser feita exclusivamente por Procurador
Municipal. A supressão do inciso II e inserção dos Municípios no inciso I do artigo 60 do projeto
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do novo Código de Processo Civil (PLS n. 166/2010) se justifica pela necessidade de tratamento
uniforme entre os entes federativos.
Enunciado 181 (AI VI): Impõe-se a supressão do parágrafo único do artigo 94 do Projeto
do Novo Código de Processo Civil (PLS n. 166/2010), que trata da possibilidade de contratação de
advogados por órgãos públicos que não disponham destes profissionais em seus quadros, por
contrariar a ordem constitucional.
Enunciado 182 (AI VI): A representação dos Municípios perante os Juizados Especiais
da Fazenda Pública, nos termos da Lei Federal n. 12.153/2009, é privativa do Procurador Municipal
efetivo.
Enunciado 183 (AI VI): O Enunciado n. 25 passa a vigorar com a seguinte redação: “Os
honorários advocatícios pertencem aos Procuradores Municipais, a quem cabe dispor sobre a sua
destinação.”
Enunciado 184 (AI VI): O Procurador Municipal, ao proferir parecer, somente será
responsabilizado em caso de má-fé não sendo competente o Tribunal de Contas para a aferição de
tal responsabilidade.
Moção:
Foi aprovada moção de apoio do VII Congresso de Procuradores Municipais à proposta
do Senador Mozarildo Cavalcante sobre a percepção de honorários advocatícios pelos advogados
públicos no projeto do novo Código de Processo Civil – PLS n. 166/2010.
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