revista do brasil

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nº 121 setembro/2016 www.redebrasilatual.com.br SÉRGIO VAZ E O PODER DA PERIFERIA A formação do orgulho passa pela cultura e o saber OS INFINITOS CONTRASTES DA ÍNDIA O país escancara verdades que o Ocidente prefere esquecer

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Page 1: Revista do Brasil

nº 121 setembro/2016 www.redebrasilatual.com.br

SÉRGIO VAZ E O PODER DA PERIFERIAA formação do orgulho passa pela cultura e o saber

OS INFINITOS CONTRASTES DA ÍNDIAO país escancara verdades que o Ocidente prefere esquecer

Page 2: Revista do Brasil

REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 3

8. Política Por uma frente amplaem defesa do Brasil

14. Eleições A importância de SãoPaulo para o Brasil

18. Saúde A medicina privadaavança sobre o SUS

22. História Pequisa revela como aVolks ajudou a ditadura

26. CinemaTendler documenta influênciado capital na política global

32. EntrevistaSérgio Vaz, da Cooperifa,traduz a cultura da periferia

38. CidadaniaAreia Grande, no sertão daBahia, contra os poderosos

42. ViagemDo mais lindo ao mais triste, amagia e os contrastes da Índia

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“Pobre e classe média defendendo o golpe faz lembrar aquele mascote da Sadia. Aquela ave feliz que fala bem da empresa que mata aves.” Esta frase, tirada de um desses “memes” que circulam nas redes sociais, é ilustrativa do processo de enganação a que foi submetida a população nos últimos tempos. Pessoas que vestiram amarelo para protestar con-

tra a corrupção foram, em sua maioria, massa de manobra para dar suporte ao golpe. E com ele se impôs um governo fisiologista, carregado de denúncias de corrupção, do qual partirão ainda os ataques a direitos sociais e trabalhistas, que não escolherão suas vítimas pela cor da camisa. Todos serão afetados.

A tática dos usurpadores foi encorpada pela violência típica das ditaduras. No dia em que São Paulo protagonizou uma gigantesca manifestação pela democracia, pelo “Fora, Temer” e por “Diretas já”, mais de 20 pessoas haviam sido detidas mesmo antes de o pro-testo começar. Entre elas, menores de idade sem direito a defesa. Atos dos dias anteriores também foram marcados pelo uso desmedido de tropas e armas. O enredo e os ingre-dientes se complementam: o poder econômico a sustentar políticos inescrupulosos, o poder da mídia a enganar a sociedade e a força das tropas a sufocar as vozes dissonantes.

Sem que o povo seja convocado a decidir sobre o destino do país, nenhum governo terá legitimidade para evitar que mergulhemos numa crise ainda mais penosa – e a, pelo menos, mais dois anos de instabilidade política e social. A única certeza de agora é de que se não houver resistência, as pessoas sofrerão mais, a crise não terá hora para terminar e corre-se ainda o risco de o poder ser usurpado para além de 2018. Aos movimentos sociais e à sociedade organizada cabe dialogar muito com a população desorganizada e envolvê-la nessa batalha – política, jurídica, de informação e, sobretudo, nas ruas.

Estrada sinuosa

ÍNDICE EDITORIAL

Há várias edições, a revista alerta sobre as consequências do golpe

Índia: cultura rica; povo

pobre

SeçõesCartas 4

Marcio Pochmann 5

Destaque do mês 6

Mauro Santayana 12

Lalo Leal 30

Emir Sader 37

Curta essa dica 48

Crônica: Ladislau Dowbor 50

GRANDE S. PAULO

98,9FM

A ALEGRIA DE OUVIR RÁDIO ESTÁ DE VOLTADEIXE A PLAYLIST DE LADO.

As notícias que as outras não dão e as músicas que as outras não tocam.

24 horas no ar, todos os dias

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Page 3: Revista do Brasil

REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 54 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL

Nos estertores do mês de agosto do ano de 2016, o processo de impedimento do governo da pre-sidenta Dilma Rousseff, legítima e majoritaria-mente eleita em novembro de 2014, fez acender o alerta amarelo acerca da finalidade e da validade

do regime democrático no Brasil. Por sua tradição autoritária, posto que sua experiência democrática representa apenas um quarto tempo da sua existência enquanto nação independente desde 1822, a perspectiva da disputa pelo poder por meio das eleições livres encontra-se novamente comprometida.

Em síntese, a frustração da esperança de que as transforma-ções significativas da realidade nacional frente a um capitalis-mo excludente e externamente dependente possam de fato vir a ocorrer. Consolida-se, assim, a máxima do conservadorismo das elites dirigentes de que o futuro possível é tão somente o congelamento do presente.

Mesmo o reformismo corretivo de excessos numa sociedade tão desigual segue inaceitável pela elite dirigente, indicando o quanto inexiste marcha progressiva, tão pouco trajetória evolu-tiva na histórica da dominação brasileira. O que significa dizer que o estamento burocrático identificado por Raymundo Faoro (em seu clássico Os Donos do Poder) e por Florestan Fernandes (em A Revolução Burguesa no Brasil) permanece ativo e altivo no interior do aparelho de Estado ao longo do tempo.

Não obstante evidências de modernização provocadas pela recente inserção passiva na globalização, as estruturas institu-cionais e políticas no país não se alteraram, apenas adaptaram--se aos esquemas de continuidade, cada vez mais complexo e sofisticado. Nesses termos, os vícios do patrimonialismo, com privilégios extra-econômicos garantidos aos estamentos buro-cráticos do Estado, seguem “imexíveis”, independentemente da vigência do regime democrático.

Da mesma forma, o papel da comunicação na disputa e con-vencimento da direção moral, cultural e política da sociedade se mantém central. Certamente Antônio Gramsci (Cadernos do Cárcere) identificou e destacou como a organização da comuni-cação se apresenta comprometida com a manutenção e defesa da sustentação ideológica do bloco dinâmico do poder, dispen-sando a existência do regime democrático.

Diante disso, a esquerda que se organizou em torno de parti-

Advento do governo Temer agrava o descrédito na política ao fazer valer o coronelismo da República Velha, segundo o qual tanto faz quem está de plantão no governo: os poderosos seguirão intocados

Impedimento de Dilma e descrédito da política

Laura TavaresSó não entendi a omissão de ser enfer-

meira e sanitarista. Não sabia que a pro-fessora Laura Tavares havia resolvido ser também economista, como sua mãe Ma-ria da Conceição Tavares, mas apagar uma história na enfermagem e na saúde públi-ca. Até porque a ela, brilhante como é, con-seguiu o ápice dentro de uma profissão tão aviltada e discriminada neste país. Quan-to à entrevista foi brilhante e fruto da sa-bedoria de Laura Tavares, enfermeira, sa-nitarista e, também, economista. (“Muitos morrerão antes”, ed. 120)

Marcos Brito

Laura e a mordaçaGostaria de parabenizar pela excelen-

te entrevista com Laura Tavares. Lem-bram-se do que dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso? “O Bra-sil não aguenta salário mínimo de US$ 100...” Com o governo Lula, o salário mí-nimo chegou a bater em US$ 300 e o Bra-sil não somente aguentou como cresceu. Agora aquele neoliberalismo da época do FHC – se era tão bom, por que o Bra-sil vivia em recessão? – volta a bater à nossa porta. (Entrevista com Laura Ta-vares, “Muitos morrerão antes”, ed. 120). Gostaria de parabenizar também pela ex-celente reportagem “Pedagogia da mor-daça” (na mesma edição). Em alguns es-tados americanos, é proibido o ensino da Teoria da Evolução nas escolas. Se eles querem viver na idade média, problema

[email protected]

As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.

CARTAS

www.redebrasilatual.com.br

Coordenação de planejamento editorial

Paulo Salvador e Valter SanchesEditores

Paulo Donizetti de SouzaVander Fornazieri

Editor AssistenteVitor NuzziRedação

Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gabriel Valery, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo

Gomes e Sarah FernandesArte

Leandro SimanIconografiaSônia Oddi

CapaTiago Macambira (protesto)

Priscilla Vilariño/RBA (Sérgio Vaz)Danilo Ramos (Índia)

SedeRua São Bento, 365, 19º andar,

Centro, São Paulo, CEP 01011-100Tel. (11) 3295 2800

Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046

Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani)

ImpressãoBangraf (11) 2940 6400Simetal (11) 4341 5810

DistribuiçãoGratuita aos associados

das entidades participantesTiragem

120 mil exemplares

Conselho diretivoAdriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa,

Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Carlos Eduardo Bezerra

Marques, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Douglas

Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos,

Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva,

Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, João Carlos de Rosis, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo,

Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha,

Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson

Franca dos Santos Diretores responsáveis

Juvandia Moreira Rafael Marques

Diretores financeirosRita Berlofa

Moisés Selerges Júnior

MARCIO POCHMANN

dos políticos desde a transição da ditadura civil-militar (1964--1985) para o regime democrático, acreditando que as eleições não eram apenas para valer, mas, sobretudo, para transformar a realidade, fragiliza o seu sentido material. O governo Temer, em suas consequências forjadas pela experiência da República Velha (1889-1930), aponta que tanto faz qual seja o partido de plantão no governo: os interesses do coletivo de ricos, podero-sos e privilegiados seguirão intocados.

Por isso, proclamam que a Constituição Federal de 1988 não cabe na economia brasileira de 2016 em diante. Se o regime po-lítico atual impossibilita a mudança democrática da realidade, qual o sentido prático de perseguir somente retórica, uma vez que a aliança conservadora entre o estamento burocrático e o poder das comunicações termina por bloquear a viabilidade da mudança prática?

O descrédito atual da política no Brasil resulta justamente dis-so. Ou seja, a constatação acerca da lacuna entre o descompro-misso das promessas com suas realizações possíveis.

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Avenida Paulista, 31 de agosto de 2016

deles. Quem hoje pode negar, com base científica, a teoria de Darwin?

Luiz Soares de Oliveira

Carlos LessaDo jeito que a sociedade brasileira é de-

sunida, eles venderão absolutamente tu-do e nada acontecerá com eles, vide o té-trico caso da privataria. (Entrevista com Carlos Lessa, ed. 120)

Alexandre Abreu 

Imprensa decadenteJá deixei há muito tempo de assistir à

TV Globo e as outras. Não compro ne-nhuma publicação que venha da Edito-ra Globo ou da Abril. É uma quadrilha. E o poder judiciário se associou a elas. Que nenhum desses congressistas golpis-tas volte a repetir mandatos nas próximas eleições. E vamos trabalhar nas bases elei-torais desses deputados e senadores gol-pistas para lembrar ao povo que eles são os ladrões do Brasil. Roubaram o nosso bem precioso, o nosso voto, a nossa de-mocracia, a nossa liberdade. Assassina-ram a nossa Constituição. Tudo no Bra-sil merece ser repensado, a começar pelo STF, que tem uma minoria comprometi-da com a democracia. (“O jornalismo do colapso à fraude”, ed. 120)

Willams Will

O texto de Santayana aponta o cami-nho a seguir. Informar doutrinando, cada vez mais, cidadãos que se tornarão uma legião crescente de patriotas, solidários com a humanidade trabalhadora do país e dos demais países emergentes e perifé-ricos. É preciso reverter esta tendência conservadora, golpista e autoritária. Nos-sos filhos e netos, enfim, as novas gera-ções não merecem um futuro de intole-rância fascista. A Ponte para o Futuro de Temer, Cunha, Globo, Gilmar Mendes, Moro, Janot e Cia. deve ser detonada. (“O Brasil na camisa de Força”, ed. 119)

Nelson Raimundo Braga

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REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 76 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL

redebrasilatual.com.br Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Seduzir e precarizarEleito em agosto para a presidência do Tribunal Regional do

Trabalho da 2ª Região (TRT-2), o maior do país, Wilson Fer-nandes é crítico do discurso da pretensa “modernização” das re-lações do trabalho. Ele não vê relação direta entre flexibilização e criação de postos de trabalho e alerta que o “discurso sedutor” pode ser usado, na verdade, para simplesmente retirar direitos, em um momento de crise, em que o trabalhador mais precisa de proteção. O magistrado diverge do presidente do Tribunal Su-perior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho, que já manifestou apoio ao Projeto de Lei 4.962, de 2016, que trata da flexibiliza-ção. E também critica o PLC 30, que tramita no Senado, sobre terceirização. “Terceirizar a atividade-fim significa precarização de direitos.” Fernandes toma posse em outubro. bit.ly/rba_trt-2

Pesquisa ameaçada

Uma lavoura de tomate orgânico pro-duz em média de seis a oito quilos por me-tro quadrado. Essa produtividade, porém, pode ser 60% maior, chegando a render 9,5 quilos, com a utilização de um fungo chamado  Trichoderma. O resultado é de grande relevância porque o tomate é dos alimentos mais consumidos e mais enve-nenados, segundo uma pesquisa da Agên-cia Nacional de Vigilância Sanitária (An-visa). E porque derruba um dos principais argumentos da indústria de agrotóxicos, o de que só com uso de agroquímicos é pos-sível aumentar a produção. O estudo é da Unidade de Pesquisa de Agricultura Ecoló-gica de São Roque (SP), vinculada à Agên-cia Paulista de Tecnologia dos Agronegó-cios (Apta), órgão da Secretaria Estadual da Agricultura. Mas pesquisas de relevân-cia semelhantes à de São Roque, desenvol-vidas em 16 outras unidades da Apta, estão ameaçadas por um projeto do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). O PL 328/2016 tramita em caráter de urgência e está pa-ra ser votado na Assembleia Legislativa. bit.ly/rba_apta

Vidas poupadas

No momento em que o Estatuto do De-sarmamento está sob ameaça no Con-gresso Nacional, com iniciativas parla-mentares que buscam revogá-lo, o Mapa da Violência 2016 – homicídios por ar-mas de fogo no Brasil, divulgado na últi-ma quinta-feira (25), mostra justamente a importância do Estatuto na redução do número de mortes por arma de fogo no Brasil. Segundo o estudo, cerca de 133 mil vidas foram poupadas entre 2004 (o pri-meiro ano em vigor do Estatuto) e 2014. bit.ly/rba_desarma

Menos veneno, mais saúdeA argentina radicada no Brasil Paola Carosella dispensa o título glamouroso

de chef e vai direto ao ponto: “Sou cozinheira”. Conforme conta, na casa em que nasceu, nos arredores de Buenos Aires, havia uma horta. “Orgânico não era al-ternativo. Era a única coisa que existia. E não sou tão velha assim”, diz. “Hoje que sou conhecida e converso com as pessoas, digo que estamos comendo ve-neno; que estamos matando nossos filhos ao fazer um suco de laranja.” Ela lem-bra que há cerca de 500 feiras orgânicas catalogadas em todo o país. “É pouco. Eu e muita gente que conheço queremos comprar produtos 100% orgânicos e não temos como. Não tem carne orgânica.” Para ela, há uma série de coisas que devem ser mudadas. “Não vamos viver num mundo que não precisa de dinhei-ro, mas a ambição tem de ser menos desmedida. É possível fazer um suco sem espremer as pessoas junto.” Paola participou de audiência pública na comissão especial que analisa projeto de lei conhecido como “PL do veneno”, por revo-gar os principais pontos da Lei dos Agrotóxicos, facilitando o registro de novos agroquímicos e afrouxando regras e punições. bit.ly/rba_paola

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Não é a escolaDurante duas semanas, a cada medalha conquistada ou perdi-

da por atletas brasileiros na Olimpíada surgiam questionamen-tos das razões pelas quais o Brasil não consegue entrar no seleto grupo das potências esportivas. Com frequência, a escola passou a ser apontada como o caminho seguro para a redenção olímpi-ca. Inclusive profissionais da imprensa esportiva apontaram a mesma solução. Para o professor Marcos Garcia Neira, da Facul-dade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar, não é função da escola e dos profes-sores de educação física a formação de atletas. Para ele, a solu-ção é a criança, ou o jovem, se inserir num clube ou num centro de treinamento, em que a entidade seja federada da respectiva modalidade. “Não temos tradição nem conhecimento de for-mar pessoas para atuar no esporte de alto nível”, diz o professor. bit.ly/rba_esporte_escola

A culpa é da vítima“Essa decisão judicial é o que costumo chamar de um segundo ato de violên-

cia. O primeiro foi a violência física praticada pela Polícia Militar, em 2013. O segundo é o juiz promovendo essa falácia, me condenando por estar ali fazen-do meu trabalho, exercendo meu direito e a minha profissão”, diz o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha durante protesto contra o aumento da tarifa do transporte público, em junho de 2013, em São Paulo. Sérgio teve o pedido de indenização recusado pela Justiça de São Paulo. A sentença alegou que ele foi culpado pelo ocorrido, por se colo-car na linha de tiro. “Essa minha indignação não é só pessoal. É uma indigna-ção coletiva. Nas redes sociais dá para se ver muitas manifestações repudiando essa decisão. No Estado de direito, é um absurdo você pensar que uma pessoa que vá para um ato para trabalhar, fotografar, que seja culpada pela violência que sofre.” bit.ly/rba_culpa_da_vitima

REDEBRASILATUAL.COM.BR

Wilson Fernandes, contra a precarização de direitos

Paola Carosella: “estamos comendo veneno”

Hugo Parisi, saltos ornamentais no parque aquático Maria Lenk nos Jogos Olimpicos Rio 2016

Fotógrafo Sérgio da Silva, recebeu bala de borracha no olho durante violência da PM contra manifestantes em 2013

Page 5: Revista do Brasil

8 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 9

A vida após o

Diante da agressão à democracia consumada em 31 de agosto de 2016, o campo progressista tem agora o desafio da união Por Eduardo Maretti

As forças progressistas e democráticas do país têm diante de si uma tarefa que pode ser associada metaforica-mente ao mito grego conhecido como Os Doze Trabalhos de Hércules. As

dificuldades são imensas, em decorrência tanto de conhecidos erros políticos cometidos pelo PT no governo, quanto da sofisticação do golpe parlamen-tar consumado em 31 de agosto de 2016. Ainda é cedo para previsões confiáveis num cenário ainda nebuloso. “O horizonte de análise do cenário po-lítico ainda está muito curto. É como dirigir sob neblina, você não enxerga muito bem o que está à frente”, diz o cientista político Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB).

Nesse horizonte, uma das certezas é a necessidade de compreensão – por parte de democratas, movi-mentos sociais, partidos políticos progressistas, cen-trais sindicais populares e empresários preocupados com o futuro do Brasil – de que é urgente a união em torno do que o cientista político Roberto Ama-ral, um dos coordenadores da Frente Brasil Popular, vem defendendo muito antes do impeachment: uma “política de frente”.

Essa união deve necessariamente incluir forças liberais progressistas, como afirmou o ex-ministro

Luiz Carlos Bresser-Pereira em várias ocasiões du-rante o processo político, para muitos, iniciado em 2013. Perdida a luta contra o impeachment, a reorga-nização não apenas da esquerda, mas de um espectro mais amplo, é condição necessária para o enfrenta-mento do que vem por aí. Porque, como diriam os mineiros, 2018 “está logo ali”, e as hesitações decor-rentes da perplexidade instaurada com a vitória do golpe parlamentar podem custar muito mais caro, a partir de 2019, do que parece hoje.

“Construir uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser, daqui pra frente, a primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação – neste país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e igno-rância”, diz Mauro Santayana, em artigo nesta edi-ção (leia na página 12). “É preciso costurar uma am-pla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista (se não existir, é preciso criar-se um).” Isso porque o alcance da vitória ultraconser-vadora que levou Michel Temer a assumir definiti-vamente o governo do Brasil é amplo, considerando que a grande derrotada é uma entidade que não se pode fulanizar, nem partidarizar: a Constituição Fe-deral de 1988, que Ulysses Guimarães (1916-1992) ajudou a construir com sua extrema habilidade po-lítica após os anos de obscurantismo pós-1964.

POLÍTICAPOLÍTICA

golpeNAS RUASPaulista, 4 de setembro de 2016: mais de 100 mil por “Fora, Temer” e “Diretas Já”

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10 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 11

blema é ampliar nosso campo, atraindo para a defesa da legali-dade os liberais e democratas”.

Nesse sentido, movimentos de esquerda precisam compreen-der e ter humildade para aceitar dentro dessa frente ampla figu-ras do perfil dos senadores Kátia Abreu (PMDB-TO) e Armando Monteiro (PTB-PE), ex-ministros de Dilma Rousseff, ligados ao agronegócio e à indústria, respectivamente, mas fiéis à ex-presi-dente até o fim. Apesar da fidelidade a Dilma e de seu papel con-tundente na defesa da democracia, Kátia chegou a ser hostilizada em manifestações de esquerda.

POLÍTICA POLÍTICA

Fatura é cobradaA afirmação de que o impeachment sem crime de responsabi-

lidade “rasgou” a Constituição Cidadã não é mera retórica, usada por opositores de Temer. Com iniciativas emblematizadas pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela gas-tos públicos em todas as esferas de governo por 20 anos, e sus-pende as vinculações constitucionais orçamentárias em educação e saúde, o governo “eleito” indiretamente pelo Congresso Nacio-nal busca suprimir em nome do ajuste fiscal todo tipo de direi-tos conquistados pela cidadania, instituídos pela Carta de 1988.

A proposta viola o inciso IV, parágrafo 4º do artigo 60 da Cons-tituição, que proíbe emenda constitucional “tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. Demole o artigo 5°, “Dos Direi-tos e Garantias Fundamentais”, cujo caput é o abrangente “todos são iguais perante a lei”. Afronta os artigos 194 e 195 (que tratam da Seguridade Social), os artigos que tratam do Sistema Único de Saúde (SUS), de seguro-desemprego e da assistência social. “Essa PEC simplesmente enterra a Constituição de 1988 no que diz respeito aos direitos sociais. É simples assim”, afirma o eco-nomista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, estão na iminência de se concretizar ameaças a di-reitos trabalhistas inscritos na Consolidação das Leis do Traba-lho, o que nem mesmo Fernando Henrique Cardoso, que gover-nou por oito anos (1995-2002), conseguiu fazer. E as entidades empresarias que patrocinaram a destituição da presidenta eleita já começam a cobrar a fatura.

“Junto com a Frente Parlamentar da Indústria de Máquinas e Equipamentos, nós apoiamos a votação, o mais rápido possível, da PEC 241, da limitação dos gastos públicos, e incentivamos as reformas da Previdência e trabalhista”, afirmou em nota o presi-dente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máqui-nas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso, no próprio dia 31. “É urgente fazermos a reforma da Previdência Social e moderni-zar a legislação trabalhista”, ecoou o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade.

As ameaças à Petrobras e às riquezas nacionais, não apenas o petróleo, mas também a água, entre outras, além dos direitos já mencionados, nunca estiveram tão perto de se concretizar. E é por isso que, segundo Roberto Amaral, o projeto de Temer “vai requerer repressão do movimento sindical em geral, em particu-lar dos petroleiros, e dos movimentos do campo”.

É nesse contexto, considerando a amplitude da derrota, que se insere a urgente necessidade de as forças democráticas, para além do PT, entenderem o tamanho da tarefa. “A derrota não é só da Dilma, nem do Lula, nem do PT. Não é nem da esquerda. É de todas as forças progressistas. A regressão do tipo que se aba-teu no país é uma derrota inclusive dos liberais e democratas. A corrupção venceu”, disse o sociólogo Laymert Garcia dos Santos no dia 31 de agosto.

O papel de LulaO ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dá sinais de compre-

ender a importância de seu partido abandonar o apego a uma es-

ResistênciaPor outro lado, lideranças como o presidente da CUT, Vag-

ner Freitas, e o coordenador da Frente Povo sem Medo, Gui-lherme Boulos, assumem de imediato a tarefa da resistência. “O golpe na democracia afetará profundamente a vida dos tra-balhadores e trabalhadoras do campo e da cidade e dos bra-sileiros e brasileiras que mais precisam da manutenção e am-pliação dos direitos e das políticas públicas, tanto hoje quanto no futuro. Não se trata de uma simples troca de comando e, sim, da usurpação dos destinos do Brasil por uma parcela da classe política, do judiciário e da imprensa que quer o poder a qualquer preço”, alertou o dirigente da CUT logo após a vo-tação do impeachment.

“Exerceremos resistência diária e aguerrida contra os inimigos da pátria. Não estamos sós, ocuparemos todos os espaços e, da mesma maneira que já fizemos antes, combateremos o arbítrio e a tirania, sempre em defesa da democracia, da participação po-pular, da distribuição de renda, justiça social e direitos da classe trabalhadora”, afirmou Vagner.

Porém, dentro do ambiente obscuro que se instalou no país , ainda é possível destacar pontos positivos. O principal talvez se-ja traduzido por uma metáfora: a semente. Existe expectativa de que as sementes plantadas durante os 13 anos de governo pe-tista frutifiquem, apesar das justificadas críticas de lideranças e movimentos sociais aos governos de Lula e Dilma, de que não implementaram reformas estruturais, como a tributária, do sis-tema político, de comunicação e da educação, quando tinham apoio popular, e um Congresso menos hostil, para executá-las pelo menos em parte.

No médio prazo, a ameaça concreta ou mesmo a confirmação da perda de direitos deve despertar parte da população paralisada pela guerra midiática para a compreensão do que realmente esta-va em jogo em 2016. “A gente tinha um projeto de ir mais longe, mas não fomos. Mas o pouco que se andou foi uma caminhada. E essa possibilidade de ir à universidade, apesar das condições em que ela está, da possibilidade do sonho da casa própria apesar de todos os problemas do Minha Casa Minha Vida, a gente ex-perimentou uma vitória, tímida, da ideia de que a gente também tem direitos”, disse no dia 31 de agosto a ativista Jurema Werne-ck, da coordenação técnica da organização Criola, que defende e promove os direitos das mulheres negras.

“Vamos sinalizar que, perdendo ou ganhando, eles não são do-nos. Eles estão em vantagem nesse momento, é verdade. Mas a luta para eleger Lula e Dilma é uma luta de décadas, em que ví-nhamos produzindo esse clima de insurgência e indignação, de necessidade de mudanças. Isso fica porque não acabou. A gente não desiste porque os fascistas, racistas, homofóbicos e sexistas estão vencendo neste momento”, acentua Jurema.

Junto às necessidades de se construir uma frente unificadora das forças democráticas, progressistas e liberais, e de resistir à supressão de direitos, há finalmente outras exigências. A de que a esquerda, como um todo, e o PT, em particular, reavaliem seu papel, seus er-ros e acertos, no processo que levou ao golpe parlamentar de 2016, enquanto aos movimentos caberá lutar pela sua superação.

pécie de egocentrismo partidário e abraçar a causa de uma fren-te ampla e democrática. Inclusive porque, como observa André Singer no livro Os Sentidos do Lulismo, o ex-presidente não lide-rou um governo de oito anos propriamente de esquerda, mas de centro-esquerda. Reformista em alguns aspectos, e não de rom-pimento. Daí a perplexidade de muitos diante da ferocidade das forças retrógradas perante um grupo que, no poder, passou longe de propor qualquer solução mais radical, do tipo da implemen-tada por Hugo Chávez (1954-2013) na Venezuela.

Durante os anos em que governou, o PT sempre considerou oportunos os acordos e alianças, desde que ele próprio fosse sem-pre o cabeça de chapa. Com sua reconhecida capacidade política e de articulação, Lula continua sendo a principal força aglutinadora da centro-esquerda brasileira. Ele estaria considerando a possi-bilidade de que um candidato de outra legenda tenha o apoio de seu partido em 2018.

Em resolução divulgada no dia 2 de setembro, com a presen-ça de Lula, o PT demonstrou entender parcialmente a necessi-dade de uma frente ampla. O partido apontou para a necessi-dade de se “construir uma ação conjunta e iniciativas práticas com partidos e entidades populares, capazes de mobilizar e dar efetividade a este objetivo rumo à normalização democrá-tica, como a Diretas Já”. Mencionou as frentes Brasil Popular e Povo sem Medo.

Mas o entendimento soa parcial porque, embora tenha men-cionado as Diretas Já na resolução, o partido parece se esquecer de que aquele movimento de 1984 era formado por uma frente muito mais ampla e envolvia mais do que partidos e movimentos de esquerda. Em dezembro de 2015, Roberto Amaral já afirmava o que considerava então a estratégia para evitar o golpe: “O pro-

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FINAL PROGRAMADO Quando as “autoridades” acham que a manifestação foi longe e tem de acabar, a PM parte pra cima com cacetetes, balas de borracha e bombas de efeito moral

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O Brasil e o perigoso jogo da história

Construir uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser a primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação – neste país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e ignorância

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O afastamento definitivo de Dilma Rousseff da pre-sidência da República foi apenas mais uma etapa de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próxi-mos anos. Desde que chegou ao poder, em 2003, o

PT conseguiu a proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase tudo certo. Livrou o país da de-pendência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando US$ 370 bilhões em reservas internacionais, que transformaram nosso país no quarto maior credor individual externo dos Esta-dos Unidos. E o fez sem aumentar a dívida pública. Mas isso não veio ao caso. Ajudou a criar 20 milhões de empregos, fez milhões de casas populares, criou Pronatec, ProUni, Ciência Sem Fron-teiras e Fies, fez dezenas de universidades federais e promoveu extraordinários avanços sociais. Mas isso não veio ao caso.

Voltou a produzir e a construir navios, ferrovias – a Norte-Sul já chegou a Anápolis (GO) – usinas hidrelétricas, plataformas e refinarias de petróleo, mísseis, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares. Mas isso não veio ao caso. Porque o PT foi extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez. Se tinha um projeto para o país, e que medidas faziam – coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na defesa – parte desse projeto. Confiou mais na empatia e na intuição do que a informação e no planejamento.

Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, “marque-teiros” sem afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas. O PT teve mais de uma década para explicar didaticamente à população as vantagens da democracia, seus defeitos e qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações. Teve o mesmo tem-po para estabelecer uma linha de comunicação que explicasse a que tinha vindo, e os avanços e conquistas que obtinha para o país.

O PT dividiu-se, e não estabeleceu uma estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto que pretendia implementar para o país. Suas lideranças foram rei-teradamente advertidas de que ocorreria o que ocorreu – a pre-sença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa disso. De nada adiantou.

Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apar-tidária”, fascista, violenta, hipócrita – deu um show de mobiliza-ção. Estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes portais e redes sociais – em um verdadeiro mas-sacre midiático, uma espécie de discurso único, imposto como sagrada verdade para parte da população.

Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a História é um perigoso jogo que não permite a presença de ama-dores. Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a esquerda. Mais grave é a guerra que se desenha, e que já começou, entre os que atacam a política, os “políticos”, a democracia e o presidencialismo de coalizão contra os que serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e além. O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.

E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até ago-ra, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019. A judicialização da política, a ascensão da antipolítica e de uma plutocracia que acredita que não pre-cisa de votos nem de maior legitimação do que sua condição de concursada para “consertar” o país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, presidentes da República, em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista, ajuda-rá a sepultar o regime presidencialista anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento e a essência da democracia.

Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma tornou-se insustentável. Caminhamos para uma situa-ção de confronto em que o fascismo já está ficando com todas as armas, e a esquerda com todas as vítimas. Nações e pessoas

precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois avançar de novo. É preciso resistir, mas com um projeto claro para o país.

A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes li-deranças da agricultura e da indústria, como os senadores Ká-tia Abreu e Armando Monteiro, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento. Que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e geopolítico e evitar, ao mesmo tempo, a abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal aos estrangeiros.

A costura de uma aliança que evite a subordinação e a fascisti-zação do país deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro – ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação – neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância. A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento das forças democráticas – que devem combater esse isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras condições; a fratura da sociedade nacional; a desquali-ficação da política e da democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país.

É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, pri-meiramente, do centro nacionalista (se não existir, é preciso criar--se um), suprapartidária, politicamente inclusiva, equilibrada e conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles existem, vide o Almirante Othon, por exemplo –, empresários, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os trabalhadores em torno de um projeto que possa evitar o estupro das liberdades demo-cráticas e dos direitos individuais e a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames internacionais. Vamos fazê-lo?

De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita, enquanto a esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamenta-ção em grupos fechados e páginas do Facebook.

Não deu combate às excrescências que sobraram do gover-no Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma infinidade de escândalos anterio-res, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os envolvidos nos problemas da Petrobras. E cometeu erros táti-cos imperdoáveis. Não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava Jato, de público, quando essa operação parcial e seletiva foi justamen-te o principal fator na derrubada da presidente da República.

Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plu-tocracia egoístas, conservadoras e “meritocráticas”, entregues de mão beijada para adoção institucional pela direita. Ampliaram--se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis que poderiam em prin-cípio funcionar bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta de funcionários públicos formados em universidades privadas – alinhadas à direita – com financiamento do Fies e em cursinhos para concurseiros, que não têm nenhuma visão real do que é o país, a República ou a História, e acham, ao lado de jovens juízes, que devem man-dar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege.

Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica sen-do travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como sempre ocorre historicamente, sob a bandeira da anticorrup-ção, pretende alterar a legislação e o código penal para restrin-gir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados princípios de que o ônus da prova cabe a quem acusa e de que todo ser humano será consi-derado inocente até inequívoca prova de sua culpa.

PROTESTOS Em várias cidades manifestantes vão às ruas contra posse do interino e afastamento definitivo de Dilma

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ainda o descontentamento popular com política e o descrédito geral nos políticos – massificado com a ajuda dos meios de comunicação.

“Nessa disputa, mais do que nunca, o debate sobre o destino das cidades e de questões específicas e locais deve ser ofuscado, já que o ambiente eleitoral está profundamente contaminado pela crise política que vive o país. Estão no centro dessa crise, inclusive, o próprio modelo político-eleitoral, a representatividade e a forma como os partidos se estrutura-ram e cresceram”, escreveu em seu blog a urbanista Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo.

A ocasião, no entanto, pode ser uma oportunidade para se discutir o resgate

Cabe aos cidadãos entender seu papel na democracia, e o da democracia em suas vidas, para que o golpe que abalou o Brasil não abale, na mesma intensidade, o lugar onde vivem. Sobretudo na maior metrópole do paísPor Helder Lima

O FUTURO DE SÃO PAULO

O dia 16 de agosto marcou o início da corrida eleitoral nos 5.570 municípios do país. A campanha traz no-vidades. Vai durar pouco,

45 dias, e deve diminuir também o volu-me de recursos, com a proibição das doa-ções de empresas a candidatos e partidos. E com a audiência da TV aberta em que-da, o horário eleitoral obrigatório tende a ter sua influência reduzida. Crescerá a importância do tradicional corpo a corpo e da presença inteligente nas redes sociais.

Mas não são apenas as formas de cam-panhas que afetarão as eleições nas cida-des. Além da mudança de regras, a crise política e a economia em recessão pesa-rão sobre o conteúdo. Projetos de aper-to fiscal e ataques a direitos, a consolida-ção do impeachment de Dilma Rousseff, a incapacidade do governo federal de em-placar uma retomada do crescimento na economia exigirão muita competência dos candidatos em mostrar do que serão capazes. E como se não bastasse a crise prolongada pelo golpe parlamentar, há

ELEIÇÕESELEIÇÕES

da democracia a partir das cidades. É o que acredita a também urbanista e pro-fessora da USP Erminia Maricato. “Do meu ponto de vista, podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu ren-da por meio dos governos municipais”, afirmou. “Precisamos recuperar a impor-tância da descentralização das decisões do poder local, a democracia direta, es-pecialmente o orçamento participativo, especialmente o favela-bairro. Transfor-mar as favelas e bairros periféricos em áreas saneadas, em bairros dignos, com todos os equipamentos de infraestrutu-ra”, diz Erminia.

Ricos, famosos... e os projetos?A cidade de São Paulo, por sua dimen-

são para o cenário nacional, é especial-mente mais contaminada pela crise polí-tica. Como em quase todas as eleições, há sempre um candidato cujo objetivo de ali-mentar o ódio ao PT parece sempre maior do que convencer os eleitores a votar nele, como Major Olímpio (SD). De novidade, há o racha no PSDB. Para conseguir sua in-dicação, com apoio de Geraldo Alckmin, o empresário João Doria Júnior superou uma convenção partidária contaminada

por denúncias de irregularidades. E, com outras palavras e estilo, mas idêntico na essência antipetista, apresenta como ob-jetivos desfazer realizações da gestão de Haddad, elogiadas internacionalmente.

Revogar a redução do limite de veloci-dade que mitigou os acidentes de trânsito e melhorou a fluidez nas ruas, desvalo-rizar a cultura cicloviária, interromper a expansão das faixas exclusivas de ônibus para introduzir um formato privatizado de corredores estão entre seus objetivos. Quem também não aprecia reconhecer algo de positivo na gestão Haddad é a can-didata do PMDB, Marta Suplicy. Marta é a outra ponta do racha tucano. Adversá-rio de Alckmin no ninho, com vistas à disputa regional e nacional de 2018, José Serra preferia indicar Andrea Matarazzo. Perdeu, e fez de Matarazzo vice da ex--petista, com apoio de Gilberto Kassab.

A ex-prefeita, depois de perder para os inimigos em 2004 (para Serra) e em 2008 (para Kassab), juntou-se a eles. Deixou o antigo partido para se filiar ao PMDB de Michel Temer e se associar ao golpe par-lamentar que derrubou Dilma Rousseff. Em São Paulo, porém, levanta como prin-

cipais bandeiras ações de seus tempos de PT, como os Centros de Educação Uni-ficados (CEU). As unidades de educação integral abertas às comunidades dos bair-ros onde estão instaladas foram marca do programa que comandou na condição de petista na gestão 2001-2004. Acabaram abandonadas pelas gestões de Serra e Kassab (2005 a 2012) e só foram retoma-das por Haddad na atual gestão, ganhan-do inclusive cursos noturnos gratuitos de extensão universitária para educadores.

A eleição traz ainda como novidade a presença de Luiza Erundina concorrendo pelo Psol. Como Fernando Haddad, mas com menos estrutura partidária e tempo de rádio e TV, a primeira prefeita mulher da maior cidade do país (1989-1992) entra no debate eleitoral como reforço do cam-po democrático e – apesar dos 81 anos bem vividos – como alternativa de reno-vação, fiel aos mecanismos de democracia participativa e a uma visão de planejamen-to urbano voltada a corrigir, no futuro, aberrações do crescimento desordenado.

A Fernando Haddad, por sua vez, mes-mo exercendo na prática essa gestão base-ada no esforço de longo prazo para solu-

PRIMEIRA PREFEITA Apesar dos 81 anos, Erundina aparece como alternativa de renovação

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16 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 17

Segundo o candidato à reeleição, a Constituição de 1988 significou um pro-cesso de fortalecimento dos municípios, pelo fato de ter descentralizado recur-sos. “Cada partido criou um modo de go-vernar, nasceram experiências diferentes a partir de uma base constitucional que criava condições inéditas para os prefei-tos”, defende, lamentando os retrocessos em curso no país, com a agenda de Michel Temer e um Congresso Nacional de con-servadorismo sem precedentes.

Mais humanaO economista Marcio Pochmann, can-

didato à prefeitura de Campinas (SP), disse que o risco de esvaziamento do de-bate sobre as cidades nas eleições deste ano ocorre graças ao papel da mídia. “Rui Barbosa dizia que a imprensa são os olhos e ouvidos da sociedade, mas não hoje”, afirma. Durante o debate com o tema “A cidade que você não vê na mídia”, pro-movido pelo Centro Barão de Itararé no final de agosto, Pochmann disse que a re-alidade das cidades não é o que se vê por meio da imprensa.

Não bastasse a democracia sob ataque, a capacidade de o processo eleitoral apro-fundar a busca de soluções para os proble-mas de mobilidade, moradia, saúde e edu-cação é limitada pela falta de uma gestão

cionar os maiores problemas da metrópole, não faltam adversidades. Sua administra-ção sofre com o ódio promovido pelos principais meios de comunicação ao PT .

Ele próprio reconhece ter falhado na co-municação, a ponto de a população não conseguir associar avanços à sua gestão. Por exemplo, a redução do tempo de per-curso para quem vive em bairros mais pe-riféricos e trabalha longe. Ou a instalação de iluminação de LED em bairros habitu-ados à escuridão. “A nova iluminação está resgatando a sensação de segurança, pes-soas estão voltando até a pôr a cadeira na calçada para conversar à noite. Mas tem gente que acha que isso é coisa da Eletro-paulo, não sabe que é da prefeitura”, diz o secretário de Governo, Chico Macena.

A não-novidade do pleito é a presença do deputado federal Celso Russomanno (PRB). Inexpressivo no Congresso Na-cional, Russomanno se vale da popula-ridade conquistada como apresentador de TV. E que atingiu seu ápice na eleição de 2012, quando ficou fora do segundo turno na reta final. Na ocasião, caiu em desgraça quando sinalizou impor tarifas diferenciadas de ônibus conforme a dis-tância percorrida pelo usuário. Pouco in-teligente, numa cidade com as dimensões de São Paulo. Mas graças a essa populari-dade, e não à defesa de algum projeto es-pecífico, ele voltou a começar a disputa na liderança. Não se sabe como irá terminar.

ELEIÇÕESELEIÇÕES

metropolitana. Como diz a urbanista Er-minia Maricato, São Paulo são os 39 muni-cípios que compõem o conglomerado ur-bano ao seu redor, onde vivem mais de 20 milhões de pessoas. Para a professora da USP, falta uma orquestração das gestões municipais. “Na nossa cidade, se você pe-gar o problema da mobilidade, vai ver que 70% do emprego fica no centro expandi-do do município e grande parte dos traba-lhadores não mora no município”, obser-va ela, para quem é impossível resolver o problema de mobilidade da metrópole só com política municipal.

A professora chega a dizer que o maior desafio do próximo prefeito da capital será mostrar que os problemas são mais metropolitanos. “Não dá para resolver o problema da moradia dentro do muni-cípio de São Paulo, nem o problema do meio ambiente. O prefeito de São Paulo é cobrado por coisas que não são dele. Às vezes vem um morador de Osasco ou de Guarulhos cobrar o prefeito de São Paulo por alguma coisa que não é responsabili-dade dele”, defende.

A urbanista alerta ainda para a concen-tração de renda. “Alguns anos atrás, cons-tatei que 23% dos chefes de família do Bra-sil todo que ganhavam mais de dez salários mínimos moravam no município. É uma concentração de renda forte, é uma popu-

Cidades engessadasUm dos principais desafios de quem

quiser levar a campanha e o futuro da ci-dade a sério, portanto, será conviver com menos recursos e pouco tempo para se co-municar. Ainda assim, a sucessão muni-cipal é grande oportunidade de discussão sobre o modelo de cidade que se deseja pa-ra o futuro. Se uma cidade que seja espaço de humanização e resistência à mercanti-lização e inclusiva, ou voltada aos interes-ses do capital, como historicamente esteve marcada em seu crescimento.

“É o desempenho que eles (candidatos) tiverem nos próximos debates e nas pes-quisas eleitorais que vai determinar se um ou outro vai falar de questões mais pro-positivas ou vai privilegiar o ataque ao adversário”, afirma o cientista político Pe-dro Fassoni Arruda, professor da Pontifí-cia Universidade Católica (PUC-SP). “A crise política não vai sair do debate, mas as questões da cidade serão colocadas na medida em que os eleitores começarem a cobrar dos candidatos”, diz Arruda.

No primeiro embate televisivo entre os candidatos houve tensão. Excluída por uma regra da minirreforma, que exige da legenda nove ou mais representantes na Câmara Federal para que o candida-to participe, Luiza Erundina ficou de fora. Poderia ter participado se houvesse con-cordância de dois terços dos demais de-batedores. Haddad e Russomanno aceita-

lação que mora em condomínios e muito ligada à demanda de privilégios. Histori-camente, é uma população acostumada a negar o problema da pobreza e da desi-gualdade – é uma população muito volta-da para o próprio umbigo”, diz.

Erminia, no entanto, pondera: “Mas não é toda essa classe média que é assim. Hoje você tem jovens da classe média, ra-zoavelmente bem situados em termos de renda, que estão aí defendendo a huma-nização da cidade, a abertura da Avenida Paulista, as ciclovias, a prioridade para o transporte público”, destaca, reconhecen-do um movimento maior em defesa de uma cidade mais humana.

O professor da PUC-SP Pedro Fassoni Arruda lembra que existem alguns défi-cits na cidade que têm relação com a pró-pria administração municipal. Ele tam-bém diz que houve avanços com a gestão de Haddad, mas como a professora Ermi-nia, Fassoni destaca que na questão das linhas e corredores de ônibus, nem tudo é responsabilidade do governo municipal. “Enquanto a tarifa de ônibus é determi-nada pela prefeitura, a de trens e metrô é do governo estadual – assim como os ônibus intermunicipais.”

Ele também diz que a prefeitura tem uma parcela de responsabilidade com a segurança pública, com a guarda civil, mas que a essência da segurança cabe ao governo estadual. “Houve melhorias, co-mo o menor tempo para trabalhadores e estudantes chegarem ao trabalho, e a ta-rifa subiu abaixo da inflação do período. Saúde e educação deixam a desejar, mas houve melhorias graduais, com a cons-trução de postos de saúde, escolas mu-nicipais, contratação de professores”, afir-ma. Indagado se a depender do candidato vitorioso a cidade pode perder conquis-tas, Fassoni diz acreditar que sim.

A população da cidade de São Paulo, como a das demais 38 cidades que for-mam a região metropolitana, tem pouco tempo para decidir se caminhará em di-reção a um futuro mais civilizado, ou se permitirá um retrocesso amargo ao pas-sado, como ao que está sendo submetido o país: o de entregar a máquina pública a grupos interessados em satisfazer inte-resses privados.

ram, mas Marta e Doria Júnior vetaram. Erundina foi com a militância à porta da emissora, no Morumbi, zona sul de São Paulo para protestar. Somente depois de o debate acontecer o Supremo Tribunal Fe-deral (STF) julgou a inconstitucionalidade da restrição. “A Band antecipou o debate antes da decisão do STF porque quis me excluir, porque eu defendo a democrati-zação dos meios de comunicação”, disse.

Não bastasse o imbróglio jurídico ali-mentado pela minirreforma, as medidas de ajuste fiscal de grande alcance preten-didas pelo governo de Michel Temer fa-zem com que os prefeitos e candidatos olhem para as cidades preocupados com o futuro. Sobretudo diante da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241. A proposta quebra as exigências de empe-nho mínimo com Saúde e Educação.

Para o prefeito Fernando Haddad, os efeitos da PEC vão se tornar agudos na organização territorial da cidade e pro-vocar a disputa da sociedade pelo orça-mento público. Haddad lembrou que o poder público é atuante em frentes como saneamento, habitação e mobilidade. “Se não tiver o poder público, como fazer?”, indagou Haddad. “Congelar a capacida-de de responder a isso vai causar que tipo de conflito? Não sou capaz de responder qual o significado social e político, como os governos progressistas vão se colocar diante dessa configuração.”

NINHO DIVIDIDO Marta aderiu aos golpistas do PMDB e tem o apoio do tucano José Serra. Alckmin lançou João Doria, pelo PSDB

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venenoArquitetada por operadoras e seguradoras privadas com aval do governo, a proposta dos “planos acessíveis” aponta para retrocesso nas regras do setor e o desmonte da rede de atendimento básico gratuitoPor Cida de Oliveira

SAÚDESAÚDE

Entre o remédio e o

ENTREGAGoverno e planos de saúde: a conta vai para os mais pobres

MARCOS CORRÊA/PR

PRISCILLA VILARIÑO/RBA

TUDO PODE MUDARMaria Zenilda e seus filhos Lucas e Isabella usam o SUS há sete anos: confiança e bom atendimento

Reunidos desde o início de agosto, representantes do governo de Michel Temer e de planos e seguros de saúde finalizam proposta do setor

para revigorar sua saúde financeira. A ideia é criar planos de saúde “acessíveis”, uma espécie de proposta pronta, que o ministro da Saúde, Ricardo Barros, de-fende desde que tomou posse, junto com o então governo interino de Michel Te-mer, em 12 de maio. A proposta soa tam-bém como mirabolante. Afinal, é apre-sentada como solução para o SUS, que só neste ano viu seu orçamento perder R$ 12 bilhões. No enredo desses planos, segundo o ministro, os mais pobres po-deriam aderir e aliviar as filas do sistema público. Só falta ele traduzir: o governo quer resolver o financiamento do setor

enviando a conta para os mais pobres. “Será um tiro no pé dado pelo governo ao tentar tirar do bolso da população mais essa despesa”, diz o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ro-nald Santos.

Famoso por suas pérolas machistas e se-xistas que encobrem sua falta de intimida-de com assuntos da pasta, Barros apregoa que convênios baratos para a população vão salvar as contas ao injetar de R$ 20 bi-lhões a R$ 30 bilhões por ano na saúde pú-blica. No entanto, faltam estudos a respei-to. “Os números, mágicos, só podem ter saído da cartola. Tudo indica o contrário. É um grande negócio para as operadoras”, contesta o economista Carlos Ocké, pes-quisador do Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada (Ipea) e presidente da Asso-ciação Brasileira de Economia em Saúde.

A proposta é uma das faturas cobrada por um setor que encolhe. De agosto de 2014 para cá, passou de 50 milhões de beneficiários – os titulares de planos, que podem ter vários dependentes – para 48,3 milhões. É 1,7 milhão de contratos a me-nos, segundo a Agência Nacional de Saú-de Suplementar (ANS). Entre os motivos, mensalidades reajustadas acima da infla-ção e o sucateamento da rede, lotada, com espera semelhante à do serviço público, e problemas de gestão, como no caso da Unimed Paulistana, quebrada há um ano.

Só no SUSPor essas razões, há mais de dois anos a

artista gráfica Michaella Pivetti, 47 anos, de São Paulo, fez carteirinhas do SUS para ela e as duas filhas, de 7 e 13 anos. Con-sultas com pediatra, clínico geral, gineco-logista e outras especialidades, exames e outros procedimentos, só na rede públi-ca. “Ainda não passamos por situação de

emergência, mas nossa experiência tem sido boa. Há demora para alguns agen-damentos e os postos estão cheios. Mas é assim também nos convênios particula-res, cada vez mais caros e de menor qua-lidade”, diz Michaella. Nascida na Itália, ela compara o SUS ao sistema do seu país. “Serviço público é para atender bem den-tro de estruturas básicas. Um serviço para tanta gente é assim em todo mundo, sem luxo. Precisamos de mais recursos para aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”.

A diarista Maria Zenilda Duarte Ca-bral, de São Paulo, foi para o SUS há qua-se sete anos, depois do nascimento de seu filho Lucas. “Fui muito bem atendida no pré-natal e no parto em hospital particu-lar, mas ficava caro incluir o Lucas. Como eu usava pouco, preferi parar de pagar”, conta. Lucas é acompanhado pela mesma pediatra, que atende a caçula Isabella, de 5 anos. “Fiz pré-natal e parto pelo SUS, com atendimento igual no particular. O

médico do pré-natal é meu ginecologis-ta até hoje.” Ela conta que os filhos fize-ram cirurgias para retirada de adenoide e pequenas cirurgias e que não pretende voltar a pagar convênio.

A saúde da população, porém, não de-verá ser melhor com os planos de Bar-ros. Para Ronald Santos, do CNS, os pla-nos não serão baratos e nem para todos. “Esses planos de faz-de-conta vão excluir os idosos e quem tem doenças crônicas, que necessitam dos serviços com mais frequência”, diz. Santos teme também pelo desmonte da estrutura atual, com fechamento de unidades de UBS e UPA e demissão de trabalhadores, colocando em risco programas de saúde da família e outras políticas preventivas.

O governo não deu detalhes, mas pla-nos baratos não são novidade. Segundo a ANS, há 2.414 planos ambulatoriais já comercializados, sendo 908 familiares ou individuais, 1.038 coletivos ou empresa-

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20 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 21

SAÚDE SAÚDE

UM FUTURO MELHORA má qualidade do convênio particular fez com que Michaella migrasse para o SUS: “Precisamos de mais recursos para aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”

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riais e 464 por adesão. Outros quatro não são identificados pela agência. Há ainda planos em regime de adesão a uma enti-dade que assina o contrato com a opera-dora. No começo são baratos, e como têm reajuste fora de regulação, muitas vezes são reajustados pelo dobro da inflação e a operadora pode aumentar o valor quan-do os usuários passam a usar muito a rede credenciada, por exemplo.

No começo, chegam a custar 40% me-nos e depois chegam a ter mais de 100% de aumento. Sem poder pagar, o clien-te encerra o contrato. “Em geral ofere-cem consultas e exames simples, ao cus-to médio de R$ 100 mensais para a faixa etária em torno dos 35 anos, que exige menos acompanhamento do que na ter-ceira idade. As pessoas não compram porque sabem que não cobrem nada e vão ter de acabar indo pro SUS”, diz o professor da Faculdade de Medicina da USP e vice-presidente da Associação Bra-sileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Má-rio Scheffer. A Abrasco, aliás, juntamen-te com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Pedia-tria e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), além de outras en-tidades, pretendem ir à Justiça contra o governo caso a proposta vingue.

Causa preocupação, segundo Sche-ffer, a “ponte para o passado” embutida na proposta, mais especificamente aos anos 1990, antes da regulação do setor. “A cobertura era mínima, praticamente ambulatorial. Excluía tratamentos caros, como atendimento a doentes de câncer e de aids, e até aqueles mais baratos, co-mo fisioterapia”, lembra. A regulamenta-ção veio com a Lei 9.656/1998, em vigor desde 2 de janeiro de 1999, que garante o tratamento de todas as doenças lista-das pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID), inclusive quimioterapia, hemodiálise e transplantes. Mas a legis-lação praticamente foi revogada com a criação da ANS, em janeiro de 2000, que introduziu o conceito de rol de procedi-mentos obrigatórios. A cada “ampliação”, já há a falsa ideia de mais cobertura. Para o Idec, o rol é ilegal por restringir direitos garantidos em lei vigente.

Negócios Carlos Ocké, do Ipea, vê outra inten-

ção por trás dos planos populares: a “fi-nanceirização” da saúde, já que o gru-po de trabalho do Ministério da Saúde inclui representantes da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Ge-rais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg). “Como o ministro vem dando pistas de que pretende mexer no plano de saúde individual e empresarial, provavelmente o individua l vai ser ambulatorial com co-bertura reduzida. Embora o foco esteja no plano popular, desconfiamos que haja mudanças nos plano empresariais, com a adoção da ideia do VGBL na saúde”, diz, citando a sigla para Vida Gerador de Be-nefícios Livres, um seguro de vida com cláusula de cobertura à saúde.

Segundo Ocké, a ideia de uma nova ca-tegoria de plano que una assistência mé-dica e previdência privada já vem sendo anunciada pela ANS desde 2011. Seria uma forma de um fundo de capitalização individual que, em tese, ajudaria a custear os gastos com saúde na velhice. “Isso vai pressupor recursos públicos, por meio de renúncia fiscal, num mix de poupança fi-nanceira com assistência médica atrati-vo num primeiro momento pela supos-ta vantagem de uma poupança que será sacada só em caso e doença. Mas como a probabilidade de um idoso ficar doente é grande, quando precisar de certos pro-cedimentos vai ter que pagar do seu bol-so porque o rol é muito limitado e terá franquia por uso”, explica.

Embora atenda um quarto da popula-ção, o setor privado concentra 53% de to-dos os recursos. Vende a ideia de melhor atendimento – um sonho de consumo de muita gente e item da pauta de sindi-catos – graças aos subsídios públicos di-retos e indiretos. É a sociedade pagando esse benefício que os empregadores dão aos seus trabalhadores, e ao subsídio fis-cal, em que pessoas física e jurídica aba-tem seus gastos com saúde no imposto de renda. São recursos que o Estado pode-ria arrecadar e não arrecada. Os planos ganham também ao não ressarcir o SUS pelo atendimento prestado a seus clien-tes. Um levantamento recente da Folha de

S.Paulo mostrou que 30% das operadoras ainda não pagaram nem 1% do valor da dívida com o SUS. De 2001 para cá, deve-riam ter sido ressarcidos R$ 2,1 bilhões. No entanto, 40% do valor não foi pago e nem parcelado para recebimento futuro, um valor estimado em R$ 826 milhões.

Com 47% dos recursos, o SUS é o pla-no de saúde da Michaella, Maria Zenilda, seus filhos e outros milhões de brasilei-ros, que têm promoção da saúde, preven-ção de doenças, vacinas, vigilância sani-tária, SAMU, atendimento a doenças médias e complexas, como cirurgias de grande porte, transplantes. Essa despro-porção explica a dificuldade de acesso ao sistema e a qualidade baixa dos serviços muitas vezes com demora na realização

de consultas, exames e cirurgias que aca-bam capitalizadas como propaganda em prol do setor privado.

Um quadro que tende a piorar na pers-pectiva de arrocho com a PEC 241. A pre-visão é congelar os investimentos por 20 anos, a partir de 2017, admitindo somen-te correção pela inflação do ano anterior. Ou seja, em 2036 a despesa da União de-verá ser a mesma do mínimo constitucio-nal fixado para 2016. Conforme o Con-selho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Se-cretarias Municipais de Saúde (Conase-ms), as aplicações mínimas de recursos destinados a ações e serviços públicos em saúde, atualmente regidos pela Emenda Constitucional 86, têm destinação cres-

cente e escalonada dos recursos, calcu-lados em percentuais de arrecadação da Receita Corrente Líquida, que no exercí-cio de 2016 é de 13,2%.

Segundo as entidades, a EC 86, que substitui regra que vigorava desde 2000, a Emenda 29, reduziu os recursos da Saúde em 2016, com perdas da ordem de R$ 17 bilhões, se atualizados pelo IPCA. Além disso, a nova metodologia proposta pe-lo governo federal irá agravar o históri-co subfinanciamento do setor. E mesmo que a arrecadação tributária aumente nos próximos anos, novos recursos financei-ros não serão destinados necessariamen-te às áreas sociais.

A regra, desde 2000, é que estados apli-quem 12% e municípios, 15%. Municí-

pios, os que menos arrecadam, e estados respondem por 58% do total de gasto público em saúde, aplicando percentu-ais bem acima do que manda a Consti-tuição. Em 2015 aplicaram, respectiva-mente, R$ 25 bilhões e R$ 6,4 bilhões além. “Para continuar oferecendo os serviços de atenção básica, temos apli-cado 32% da nossa receita própria, mais que o dobro dos 15% que a Constituição determina”, diz o secretário municipal de Saúde de Osasco (SP), José Aman-do Mota. “Com os cortes no primeiro quadrimestre, posso dizer que não te-mos expectativa de executar o orçamen-to e nos manter no patamar de execução de 2015. Nosso teto financeiro vem sem correção há algum tempo.”

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Diogo, presidente da Comissão da Ver-dade da Assembleia Legislativa paulista, e por Cezar Britto, ex-presidente do Con-selho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros.

A Volks passou a negociar uma repara-ção judicial. Um diretor da matriz alemã, Manfred Grieger, veio ao Brasil em 2015 e reuniu-se com representantes do Mi-nistério Público, inclusive com Macha-do, que falou sobre um possível termo de ajustamento de conduta (TAC). “Foi o início de uma discussão sobre como che-gar a um acordo a respeito dessa questão”, afirmou na ocasião ao jornal O Estado de S. Paulo. Procurado para comentar o atu-al estágio das conversas, o executivo não respondeu ao pedido de informações. A empresa também não se manifestou.

Ex-integrante do grupo de trabalho do movimento sindical na CNV, Sebastião Neto, coordenador do Intercâmbio, In-formações, Estudos e Pesquisas (IIEP),

diz que o mais importante é estabelecer a cadeia de comando que existia na empre-sa. “Queremos chamar as pessoas a que ele (coronel Adhemar Rudge, responsável pelo setor de segurança industrial da em-presa) se reportava.”

Segundo Neto, não existe nenhuma “Volksfobia” – mas a documentação que envolve o caso é extensa. A empresa de-monstra relação próxima com o Dops. Neto afirma que a proposta de Grieger é de fazer reparações individuais, o que ele não considera interessante. “Nós quere-mos discutir reparação coletiva”, diz, ci-tando possíveis ações, como projetos de educação e um memorial.

ResponsabilidadeVice-presidente do Comitê Mundial

dos Trabalhadores na Volks, Reinado Marques da Silva, o Frangão, funcionário da empresa na unidade de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, esteve com

Grieger na Alemanha. O executivo tam-bém se reuniu, em São Bernardo, com o presidente e o secretário-geral do Sindi-cato dos Metalúrgicos, Rafael Marques e Wagner Santana, respectivamente. Segun-do ele, a montadora mostra disposição de fornecer documentos e assumir responsa-bilidades pelo ocorrido no Brasil, confor-me o que for decidido pela Justiça, deixan-do claro que essa não é a prática do grupo.

“O que eles colocam é: vamos arcar com tudo que for de minha responsabilidade sobre gestão de pessoas ligadas à empresa. Eles repudiam esse processo”, diz Frangão. À empresa de comunicação DW Brasil, também em 2015, Grieger afirmou ain-da que a montadora iria investigar “todos os indícios” de participação da funcioná-rios da empresa em violações de direitos humanos. “A Volkswagen lamenta muito que pessoas tenham sofrido ou tenham si-do prejudicadas economicamente duran-te a ditadura militar, eventualmente, por

HISTÓRIAHISTÓRIA

Memórias da fábricaMinistério Público investiga denúncia sobre participação da Volkswagen no aparato repressivo da ditadura, um capítulo histórico ainda obscuroPor Vitor Nuzzi

Divulgado há quase dois anos, o re-latório final da Comissão Nacio-nal da Verdade (CNV) destinou um capítulo aos trabalhadores e ao movimento sindical. Entre

as investigações que ficaram pendentes, está a participação de empresas em atividades da di-tadura. E o caso da Volkswagen, entre outros, pode mostrar avanços em prazo mais curto: a pedido de várias entidades, o Ministério Pú-blico investiga, desde o final de 2015, possível colaboração da montadora com órgãos de re-pressão e violações de direitos humanos.

A atuação é conjunta – envolve MP federal, estadual e do Trabalho. “O MPF recebeu da Comissão da Verdade documentos que com-provam o envolvimento da empresa no forne-cimento de dados dos trabalhadores de suas fábricas ao Dops (um dos órgãos responsáveis pelas prisões e torturas do período), na orga-

nização de um sistema próprio de vigilância e monitoramento do movimento sindical e do envolvimento direto na prisão e na tortura de seus empregados dentro do ambiente da em-presa”, diz comunicado.

Na representação encaminhada ao procura-dor regional dos Direitos do Cidadão do Es-tado de São Paulo, Pedro Antônio de Oliveira Machado, as várias entidades – entre as quais dez centrais sindicais, além de pesquisadores, ativistas e ex-funcionários – ressaltam a neces-sidade de esclarecimento de episódios daquele período histórico. E fazem referência à “obscu-ridade que ainda faz transbordar a ignorância e a superficialidade de tratamento do tema da complicidade do empresariado” com o regime autoritário. O documento também é assinado pela advogada Rosa Cardoso, que coordenou o grupo de trabalho do movimento sindical e a própria CNV, pelo ex-deputado Adriano

ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE (1974)

FUSCAS E PANCADAS Nos anos 1970 e 1980 a Volks manteve um rígido esquema de segurança em sua unidade de São Bernardo

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CLIMA DE GUERRAArmada com fuzis, a PM acompanha a movimentação dos grevistas na porta da Volks em 1979

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mecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”, relatou Bellentani em depoimento.

O grupo de trabalho do movimento sindical na Comissão da Verdade cita ain-da a formação, em 1983, do Centro Co-munitário de Segurança (Cecose) no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. “Esse centro operava no compartilhamento de informações sobre as atividades dos tra-balhadores, sobretudo, dos dirigentes sindicais, por meio de reuniõe s mensais nas dependências das fábricas, hotéis ou pousadas da região, com a presença de representantes empresariais”, afirmam os representantes do grupo. A Volks tem uma unidade na região, em Taubaté.

“Nos documentos obtidos a respeito do funcionamento do centro, localizou--se um, datado de 18 de julho de 1983, no qual se registra, textualmente, que o re-presentante da empresa Volkswagen ex-pôs os assuntos mais importantes em reu-nião, apresentando anotações, em forma de ‘lembretes’.” Novas informações foram

meio da participação de funcionários da Volkswagen do Brasil”, declarou.

O caso da montadora instalada no Bra-sil nos anos 1950 (a fábrica do ABC co-meçou a funcionar em 1959) pode ser emblemático, mas não é o único. Os re-latos apontam colaboração de dezenas de empresas com a repressão. O relatório da CNV aponta “situação inédita” em 1964. “Na Primeira República, a fábrica era do-mínio privado do patronato e o Estado permanecia ausente. Com a criação da legislação trabalhista, a partir do Estado Novo, o espaço fabril tornou-se terreno de disputa, mediada pela virtual presença do Estado, e os conflitos se fizeram públi-cos.” Já na ditadura, acrescenta, “o Estado estará presente nas fábricas, não como ár-bitro, mas como ‘agente patronal’.”

ViolênciaEm relação à Volks do Brasil, o rela-

tório da CNV identifica “uma profusão de documentos” que, segundo o colegia-

HISTÓRIA HISTÓRIA

do, comprovam a cooperação da empre-sa com órgãos como o Dops. Cita o caso do hoje aposentado Lúcio Bellentani, no ABC – funcionário no setor de Ferramen-taria, foi preso na própria fábrica, duran-te o trabalho, em 1972, por dois homens, um deles portando metralhadora. “Na ho-ra em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já co-

Em 11 de agosto, o frei dominicano Tito de Alencar Lima, morto em 1974, na França, tornou-se cidadão paulistano, após aprovação de projeto do vereador Toninho Vespoli (Psol), há quase um ano. Na cerimônia em homenagem a Tito, na Câmara Municipal, representantes de movimentos do passado e do presente se reuniram para discutir problemas que ainda persistem na sociedade brasileira, como a violência policial e a tortura. Por isso, estavam presentes ao evento representantes dos estudantes e do movimento Mães de Maio.

“Apesar de não realizarmos todos os sonhos que nós tínhamos, tem outras pessoas gerando novos sonhos que dão sentido à morte e à vida continuada de Tito”, afirmou frei João Xerri, ao ligar fatos históricos que resultaram no suicídio do dominicano à atuação de grupos, na atualidade, por justiça e democracia.

Três dias depois do evento na Câmara, uma caminhada pelo centro de São Paulo lembrou do ex-presidente João Goulart. O elevado conhecido como Minhocão passou a levar o nome de Jango, em lugar de Arthur Costa e Silva, um dos generais-presidente do período autoritário – a partir de outro projeto, do vereador Eliseu Gabriel (PSB), sancionado pelo prefeito Fernando Haddad (PT). “É muito importante, neste momento político, em que se debate abertamente o retrocesso, rememorar Jango”, disse João Vicente, filho de Goulart.

A Câmara discute outro projeto emblemático. A ideia é dar o nome de Frei Tito a uma rua que hoje lembra um de seus algozes, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops.

Um resgate necessário

VEIA MILITARO coronel Adhemar Rudge chefiou o setor de segurança industrial da Volks de 1969 a 1991

RELAÇÕES ESTREITAS A própria Volks se encarregou de passar ao Dops um resumo do “comício” feito por Lula na porta da montadora

DOCUMENTAÇÃO EXTENSASebastião Neto: “A empresa demonstra relação próxima com o Dops”

Também na casa legislativa paulistana, Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, instalada pelo prefeito Fernando Haddad em setembro de 2014, deu mais um passo no sentido de aprofundar a participação do mundo empresarial em ações de repressão da ditadura. No último dia 15 de agosto, o pesquisador Paulo Fontes foi ouvido pelo colegiado sobre o papel da indústria Nitro Química na perseguição a militantes operários.

Fontes é coordenador do Laboratório de Estudos do Mundo do Trabalho e dos Movimentos Sociais (LEMT) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc/FGV-RJ). Seu livro Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores Migrantes em São Miguel Paulista: 1945-66, lançado em 2012, recupera a saga dos trabalhadores que deixaram o Nordeste para serem operários da companhia, criada em 1935 pelo empresário José Ermírio de Moraes, pai de Antônio Ermírio, morto há

2 anos, do Grupo Votorantim.O autor observa que as relações entre o aparato repressivo

e os empresários, que são bem anteriores a 1964, estão muito presentes no caso da Nitro Química. Ele ressalta que os trabalhadores e os impactos diretos dos regimes autoritários à vida pessoal e ao mundo do trabalho não são estudados como deveriam. “Embora a maioria dos mortos e desaparecidos seja de trabalhadores ou pessoas com origem nas classes populares, eles sempre foram negligenciados entre as vítimas da ditadura. É preciso trazer à tona essa discussão sobre a relação entre sindicalistas e ativistas que são esquecidos na história.”

obtidas recentemente, após a representa-ção encaminhada ao Ministério Público.

Um documento do Setor de Análise, Operações e Informações do Dops rela-ta, por exemplo, “comício” realizado em 26 de março de 1980 na portaria da Volks no ABC, citando um “resumo” feito pela segurança da própria Volks sobre a atua-ção do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, à época pre-sidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Lula falava justamente sobre o monitoramento que os operários sofriam na fábrica, citando o coronel Adhemar Rudge. Na representação ao MPF, as en-tidades afirmam que ele era “amigo no-tório” do coronel Erasmo Dias, ex-secre-tário estadual de Segurança Pública em São Paulo.

Em 23 de junho último, o MPF convo-cou Rudge para depoimento. De acordo com o Ministério Público, com passagem pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal da Guanabara, ele passou a chefiar a segurança industrial da Volks em 1969. Permaneceu lá até novembro de 1991, quando se aposentou – completará 90

anos em outubro. Ao MPF, Rudge negou as acusações sobre perseguição e disse que seu setor se limitava a cuidar do patrimô-nio da empresa. Naquele mesmo dia, ou-tro ex-funcionário da Volks, João Batista Lemos, declarou que “a própria Volks me entregou para o Dops”. Hoje diretor execu-tivo da CTB, Batista foi anistiado em 2013.

Para Frangão, o processo é importante também para a geração atual. “Isso reforça ainda mais que a democracia, por mais di-fícil que seja, é a melhor forma de a gente

lidar com os problemas e as adversidades.”Existem muitos relatos de parcerias

empresariais com a ditadura. A Comis-são da Verdade da Assembleia Legislati-va paulista cita também a Operação Ban-deirante (Oban), que teve financiamento de indústrias paulistas, mas lembra que a participação patronal na manutenção do sistema de repressão da ditadura não se limitou a São Paulo.

Entre suas recomendações, o grupo dos trabalhadores na CNV propôs “in-vestigar, denunciar e punir empresários, bem como empresas privadas e estatais, que participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe e do regime mi-litar”. Sebastião Neto lembra que a pro-posta não foi incluída no relatório final.

A coordenadora do grupo de trabalho, Rosa Cardoso, afirmou em sua apresen-tação que o golpe de 1964 e a consequen-te ditadura “foram um empreeendimento civil e militar”. Sem o projeto empresa-rial, que buscava mudar o modelo eco-nômico no Brasil, teria havido “um me-ro levante”.

LINHA DURA Lúcio Bellentani foi preso em 1972 enquanto trabalhava. Começou a apanhar na sala de segurança da VolksW

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Frei Tito foi militante estudantil. Preso em 1968, foi torturado no Dops e depois na Oban

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Silvio Tendler prepara filme sobre a força do capital financeiro na economia mundial.

“Transferimos todas as decisões para um lugar sem controle nem transparência.

O mundo não aprendeu com 2008” Por Vitor Nuzzi

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No site da sua produtora, a Caliban – referência a personagem de Shakes-peare na peça A Tem-pestade, um símbolo de

resistência –, Silvio Tendler é apresentado como tendo 48 anos de cinema. Ele mesmo

contesta suavemente a informação. “A gente estreia quando vai pela primeira vez”, afirma,

contando que na infância os pais o levavam aos cinemas perto de casa, em Copacabana, no Rio

de Janeiro. “Era minha principal diversão desde os 5 anos de idade”, diz Tendler, que por essa conta

conclui ter 61 anos de cinema – nasceu em março de 1950, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio.

O marco zero, ao menos formal, é o curta Fantasia para Ator e TV, de 1968, dirigido por Paulo Alberto

Monteiro de Barros, em que Tendler aparece como assistente de direção. São décadas de produção con-

tínua e múltipla, já que o diretor costuma se envolver com vários projetos simultaneamente. No ano passado,

por exemplo, lançou dois filmes, Parir é Natural e Harol-do Costa – O nosso Orfeu, além de uma série (Há Muitas

Noites na Noite). Em 2016, produz mais séries e projetos de três curtas e

três longas. Entre os trabalhos em curso, está um filme sobre a influência do capital na política. Tem o nome provisório de

Dedo na Ferida. “É uma crítica à política dominada pelo sis-tema financeiro. Você não discute mais o dinheiro a serviço da

produção”, diz Tendler, lembrando que se trata de um fenômeno mundial. “Acho que é a primeira vez que vamos discutir com pro-

fundidade a força do sistema financeiro na economia.” Segundo a apresentação do filme, que fala em “ciclo de submissão”, a ideia é su-

gerir “o fortalecimento da democracia como resistência à ideologia da economia privada”.

O trabalho deverá estar concluído até o fim do ano, com pelo menos 30 entrevistas. Dedo na Ferida é feito em parceria com o Sindicato dos Engenheiros (Senge) do Estado do Rio de Janeiro e com a federação interestadual da categoria (Fisenge). Para Tendler, isso ajuda a “devolver para a sociedade civil o protago-nismo das ações transformadoras”.

Em julho, ele esteve na França – onde mo-rou durante quatro anos, na década de 1970 –, para conversar com o diretor grego Costa--Gavras, autor de clássicos como Z, Estado de Sítio e Missing, e de obras que também tra-tam do tema abordado pelo cineasta brasilei-ro, como O Corte (2005) e O Capital (2012). No primeiro, um engenheiro perde o empre-go e, desesperado, se torna um assassino. No longa mais recente, Gavras conta a história de um jovem executivo que chega à direção de um banco europeu com a missão de levar adiante um plano de demissões em massa, e a rede de intrigas formada nesse “jogo plane-tário”. Uma frase do filme, pronunciada pelo protagonista: “Os americanos querem que eu demita. Os franceses, que eu fracasse. E minha equipe quer me apunhalar”.

AusteridadeSilvio Tendler também já conversou sobre

a situação da Grécia com a espanhola María José Fariñas Dulce, professora de Filosofia

VITOR VOGEL/RBA

Silvio Tendler: “Acho que o mundo pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.”

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inferior a uma jazida e achar que isso é modernidade”.

Para Tendler, o enfraquecimento do Estado e o domínio do capital podem le-var o mundo a uma tragédia. Seu filme “serve como alerta a situações que têm de mudar”, diz. “Acredito muito na força do cinema para a transformação da socieda-de”, acrescenta o autor do documentário O Veneno está na Mesa, sobre a presença de agrotóxicos na alimentação.

Ele cita trabalhos que, pelo nomes, mos-tram um pouco de seu pensamento: Fio da Meada (“Sobre saberes ancestrais”), Sonhos Interrompidos e Caçador de Bra-sis. “Todos dialogam entre si. São uma des-coberta do mundo em que a gente vive e

CINEMA CINEMA

do Direito na Universidade Carlos III, de Madri. “Não é nenhuma radical”, obser-va. Ela foi uma das integrantes de um tri-bunal internacional organizado no Brasil em julho, para “julgar” – e condenar – o processo de impeachment contra a pre-sidenta Dilma Rousseff. E considerou a situação política brasileira parte de uma “contrarrevolução neoliberal” também vivida na Europa. “Ela falou, por exem-plo, que a Grécia está empenhada aos bancos”, diz o cineasta.

A lista de entrevistados inclui ainda Yanis Varoufakis. Trata-se do economis-ta e ex-ministro de Finanças da Grécia, contestador dos regimes de austerida-de e crítico da chamada Troika (Co-missão Europeia, Banco Central Euro-peu e Fundo Monetário Internacional). Em entrevista ao El País em fevereiro, ele defendeu uma Constituição euro-peia “redigida pelos cidadãos e não pe-las corporações”, pedindo transparên-cia. “A intenção (da União Europeia) é democrática, mas transferimos todas as decisões para um lugar sobre o qual não existe nenhum tipo de controle nem transparência...”

O cineasta brasileiro acredita que o mundo não “aprendeu” com a crise fi-nanceira deflagrada em 2008, que che-gou a pôr os mercados financeiros em xe-que. “Olha a situação do Brasil hoje e me

diz se alguma coisa mudou. Só tiraram o bode da sala”, diz. Segundo ele ouve dos entrevistados, a globalização é irreversí-vel. Também está em curso um processo de diminuição do papel do Estado, que muitos veem ainda como uma força regu-ladora na economia. “É uma posição que eu também defendo, mas que está bas-tante fragilizada. A economia está muito mais dominada pelas empresas. Os Esta-dos são reféns.”

ReformasCom 14 anos completados 20 dias an-

tes do golpe de 1964, o cineasta é de uma geração que discutiu e vivenciou mo-mentos de industrialização do Brasil, de expansão de sua economia, e lutou pelas chamadas reformas de base. Expressou e expôs o processo histórico brasileiro em várias de suas dezenas de obras, como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), Jango (1984), A Era JK – Saudades do Bra-sil (1992) e Tancredo, a Travessia (2011). Seu acervo particular compreende mais de 80 mil títulos sobre história do país e do mundo.

“Antes de Juscelino e Jango, temos de pensar que o Brasil de Vargas era outro. Antes de 1930, o Brasil não era industria-lizado, era um grande cafezal. Vargas de-senvolveu o capitalismo e a presença do Estado na economia”, observa Tendler, ci-

o que queremos. Acho que pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.”

Otimista, mas preocupado. Por isso, considera seu filme um “grito universal” à sociedade. “Temos de mudar o nosso projeto de desenvolvimento”, afirma. Pa-ra Tendler, as pessoas mostram incapaci-dade de discutir questões cotidianas. “Es-tão em seus casulos, com seus pontos de vista fechados.”

Ele considerou, por exemplo, “depri-mente” a sessão da comissão especial do Senado, em 4 de agosto, que aprovou um relatório favorável ao impeachment de Dilma Rousseff sem entrar no cerne da questão, se houve mesmo as tais pedala-das. “Não existe mais a defesa de um pro-

jeto de nação”, afirma. Mas o diretor acre-dita que, se confirmado, Michel Temer terá os mesmos problemas que Dilma te-ve de enfrentar. “Com esse Congresso aí não vamos ter tranquilidade nenhuma”, diz, apontando para a “gula” dos depu-tados. “A minha esperança é de uma no-va eleição (em 2018)’’, acrescenta, ainda sem saber qual seria a sua opção política.

Ao pensar na Olimpíada recentemente disputada no Rio, Tendler vê aumentar a importância do debate sobre a influência do poder financeiro. “Virou um evento comercial, onde os grandes atletas têm seus patrocinadores, o doping é um pro-blema universal – não é só dos russos – e o espírito olímpico é pecuniário.”

tando empresas como a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Siderúrgica Nacional e lembrando das hoje chama-das parceria público-privadas. “Isso foi inventado por Juscelino nos anos 50. O Jango não teve tempo, ele foi sabotado. Se o Brasil tivesse feito a reforma agrária que o Jango pretendia, não estaríamos vi-vendo essa situação de caos econômico. Seria outro país.”

Ele não se considera um nacionalis-ta. “Sou uma pessoa que pensa nos in-teresses do povo. Se isso é ser naciona-lista...”, afirma, para em seguida, como exemplo, chamar de “crime” o que ocor-reu com uma das empresas símbolo do país: “Criar a Vale, vender por um valor

PLENA ATIVIDADE Diretor de clássicos como Z, O Corte e O Capital, Costa-Gavras é um dos entrevistados de Tendler para seu próximo filme, Dedo na Ferida

PROCESSO HISTÓRICO Tendler e a equipe de Jango, filmado em 1984

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O Caçador de Brasis

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LALO LEAL

milhares de pessoas com seus automóveis, para morar em ruas antes habitadas por poucas famílias.

Clara, personagem vivido de forma brilhante por Sonia Bra-ga, é uma jornalista e escritora aposentada que não se dobra às investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno prédio onde mora, chamado Aquarius. Todos os seus vizinhos venderam os apartamentos mas ela resiste bravamente e sua re-sistência conduz a narrativa do filme.

A violência dos especuladores é assustadora mas não irreal. Vai das propostas financeiras apresentadas entre sorrisos me-lífluos e aparentemente cordiais a ações agressivas buscando desestabilizá-la emocionalmente. Quem já passou por essas si-tuações sabe a extensão do drama.

Mas em meio a tudo isso Clara vai a festas, cuida do neto, tem desejos sexuais, nada na praia, não abre mão do seu vinho. Ouve boa música, dança. Ao mesmo tempo enfrenta com altivez seus inimigos. Os reduz à sua insignificância mercantil.

Em seu primeiro longa, O Som ao Redor, o diretor Kleber Men-donça Filho, ex-jornalista, já havia ironizado a imprensa marrom ao colocar na boca de uma dondoca, em reunião de condomínio, uma reclamação contra o zelador do prédio porque a sua Veja chegava com o envelope de plástico aberto. Uma rara crítica ne-

gativa ao filme veio justamente dessa revista, curioso não?Agora ele vai mais fundo e mostra a falta de preparo de jo-

vens repórteres ao entrevistar Clara, personagem com história de vida riquíssima, reduzida no jornal a uma usuária do MP3 e das demais mídias digitais. Além de mostrar a promiscuidade das relações familiares existentes entre os donos de um grande jornal e a construtora algoz de Clara. Um deles, no filme, chega a dizer que só permanece no ramo porque sabe de muita coisa que obviamente não publica.

Nada muito diferente da vida real. Basta ver o grande número de páginas ocupadas nos jornalões por anúncios de empreendi-mentos imobiliários. A contrapartida, pode-se deduzir, é a au-sência de matérias mais aprofundadas sobre os males causados pela especulação imobiliária ao urbanismo brasileiro.

Resta-nos o cinema, que no caso de Aquarius vai além do drama urbano. Pode ser visto também como uma alegoria à truculência que hoje nos cerca, com a imposição ao país de um programa de governo que não foi escolhido pelos eleitores. A arrogância dos empreiteiros do filme é a mesma dos políticos sem voto que que-rem nos governar. Não é por acaso que, no Festival de Gramado e na pré-estreia em São Paulo, os gritos de “fora, Temer” ecoaram pelas salas de projeção.

Alguns parlamentares – como o senador Cristovam Buarque – só tremem diante da repercussão inter-nacional do golpe perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff. No mais estão tranquilos, sabendo que a mídia brasileira se perfila ao lado deles, sem

nenhum pudor. Mas o calo internacional não para de doer. E foi justamente no exterior que o diretor e o elenco do filme Aquarius resolveram denunciar o golpe, ainda em maio, em pleno tapete vermelho do Festival de Cannes, diante de câmeras e microfones de todo o mundo. Levantaram cartazes em inglês e francês afir-mando que “um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil” e que “o mundo não deveria aceitar esse governo ilegítimo”.

Provocaram a ira dos golpistas e sofreram retaliações mes-quinhas. O filme foi classificado para maiores de 18 anos pelo

Ministério da Justiça, numa forma peculiar de censura (depois reclassificado para maiores de 16 anos) e um dos escolhidos pelo governo para a comissão que irá definir o candidato bra-sileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017 é Marcus Petrucelli, jornalista da Globo, inimigo declarado do diretor de Aquarius, Kleber Mendonça.

O filme, em si, é ótimo – e nem toca na crise política. Vai ao âmago de uma das maiores tragédias nacionais: a especulação imobiliária que corrói o Brasil de alto a baixo, destrói riquezas materiais e simbólicas irreparáveis. Rouba o sol das praias, como no caso das tardes em Boa Viagem, em Recife, ou o que resta de verde no centro de São Paulo, com o projeto de espigões so-bre o que poderia ser o Parque Augusta. E contribui ainda pa-ra congestionamentos gigantescos ao colocar centenas, ou até

Depois do ótimo O Som ao Redor, novo filme de Kleber Mendonça vai ao âmago da degradação civilizatória promovida pela especulação imobiliária. Um filme corajoso e incômodo – como seu elenco

Aquarius contra os vilões urbanos

LALO LEAL

SÍMBOLO DE NOSSO TEMPOClara, personagem vivido por Sonia Braga, não se dobra às investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno prédio onde mora

QUEM NÃO DEVE NÃO TEMERProtesto em Cannes deixou o governo interino furioso

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Opoeta Sérgio Vaz lançou em junho Flo-res de Alvenaria (Editora Global, 184 págs.), livro em que declama sobre a vida ao seu redor: “Eu sou o oprimido que vive na periferia e que acompanha

de perto o racismo e a fome, seria até um pecado eu não escrever sobre isso”, diz Vaz, autor de outros sete livros e fundador do Sarau da Cooperifa. O já tradi-cional ponto de encontro e de ativismo cultural há 12 anos se reúne toda quarta-feira à noite no Bar do Zé Batidão, no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo.

Foi nesse mesmo bar que o poeta recebeu em agos-to o título de Cidadão Paulistano, honraria concedida pela Câmara Municipal a personalidades não nasci-das na cidade, mas que de alguma forma têm atuação destacada para o seu “engrandecimento” em alguma área. Ele nasceu em Ladainha (MG), em 1964, e mo-ra no município de Taboão da Serra, região oeste da Grande São Paulo. “A grande novidade é que a gente começou a consumir o que a gente produz e não a le-var nossa produção para o outro lado da cidade. O que estamos fazendo agora é dar nosso charme, nossa visão sobre as coisas”, diz Sérgio, para quem os movimentos de cultura da periferia vivem hoje sua “bossa nova”.

“Nossa arte vem da rua, das ruas que os anjos não fre-quentam. Vem da dor. Ela não fala dos negros, fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles e por eles”, diz. Nesta entrevista, o poeta comenta políticas públicas de incentivo para os grupos culturais das bordas da cidade: “Seguimos uma filosofia de vida que é: a gente quer ser feliz também. Antes a gente só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos”, ob-serva. “Estamos em um momento em que precisamos começar a nos reconhecer como humano. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós pre-cisamos chorar essas 12 mortes.” Leia a seguir os prin-cipais trechos e a íntegra na página da RBA na internet.

Qual a temática de Flores de Alvenaria?É o dia a dia. Sou oprimido, como cidadão que vive

na periferia, que acompanha de perto o racismo e a fome. Seria até um pecado eu não escrever sobre isso. Sou um poeta que escreve sobre o que acontece ao meu redor. Gostaria de escrever sobre a Via Láctea, mas no momento preciso escrever sobre racismo, empodera-mento das mulheres negras, saraus, a luta diária para o trabalho. É hora de a caça contar um pouco da história.

Como você define a periferia?É um lugar para trabalhadores e trabalhadoras vi-

verem. Mas não é fácil viver na periferia. Não é indig-no, mas é difícil, lutar contra tudo, acordar de manhã, pegar ônibus e trem lotado para ganhar salário míni-mo, ficar três dias na fila para arrumar vaga na creche e não conseguir, frequentar escola pública ruim, não conseguir fazer exame médico em menos de três me-ses. Ainda assim é um povo que quer ser feliz.

Em agosto foi publicado o edital de Fomento à Periferia, lei proposta por coletivos culturais, sancionada pelo prefeito Fernando Haddad. Es-se tipo de ação tem potencial para fortalecer a cultura e manter esses grupos produtivos?

Acho uma grande vitória das pessoas que lutaram por isso, até porque é função do Estado gerir a cultu-ra. Vai ajudar, assim como o VAI (Programa de Valo-rização de Iniciativas Culturais) ajudou a democratizar um pouco a cultura na periferia. A Lei Rouanet, por exemplo, é democrática só até a página dois, porque você pode até fazer um projeto, captar, mas ninguém quer investir, porque você é da periferia. A lei de fo-mento vem para preencher esse vazio, sem preconcei-to. Quem são os maiores arrecadadores? Os grandes produtores. E quando vai ser a nossa vez? A Lei de Fo-mento à Periferia resolve essas coisas.

Para o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, a cultura serve para sabermos de onde viemos e para onde vamos. “Se a primeira coisa que Temer fez foi acabar com a cultura, isso é muito representativo” Por Sarah Fernandes

A periferia é um país

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Milton Santos também disse que a revolução iria vir da periferia. Estou começando a acreditar. Nós temos os nossos pensadores, os nossos filósofos. Eu cresci estudando em um lugar onde a maioria dos professores era de classe média. Hoje os professores que estão aqui são daqui, moram no mesmo bairro, isso ajuda a gente a pensar, além dos artistas que fi-cam e de alguns políticos que surgem dos movimen-tos populares, por exemplo. Começamos a criar um orgulho periférico, uma forma de pensar. Quando você lê (Karl) Marx, tem de contextualizar para a pe-riferia. Quando lê Charles Baudelaire ele tem que se parecer com o Mano Brown. É isso que a gente está fazendo. Seguimos uma filosofia que é: a gente quer ser feliz também. Antes só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos, construindo.

A produção cultural tem também o potencial de ser uma alternativa de renda?

Sim, principalmente com a economia solidária. Quando você faz um evento tem de pagar os artis-tas, pagar produção, no entorno se montam as bar-racas onde se vendem bebidas... Mexe com toda a infraestrutura e altera a paisagem, com um perfil de resistência. É o empoderamento, palavra de ordem agora. A cultura serve para a gente não enlouquecer, para sabermos de onde viemos e para onde vamos. Tanto que a primeira coisa que Temer fez foi acabar com o Ministério da Cultura; isso é muito represen-tativo. Por que nos é negada a cultura? Porqu e cultu-ra nos faz pensar, nos faz sentir humanos. A cultura tem um poder de humanizar as pessoas. Quanto me-nos cultura, mais bruto a gente é. Algumas pessoas que tinham parado de estudar voltaram por causa dos saraus, pessoas que tinham trancado a faculdade hoje fazem teses falando sobre os saraus.

Quem é o artista da periferia?O que a gente faz é para que o pobre não seja cor-

dial. A gente quer que a pessoa saia fora da caixa, que seja mais combativa. Tem gente que me pergunta: mas vocês tiram as pessoas das ruas e das drogas? Esse não é o propósito, eu não sou assistente social. A gente faz cultura e arte é rebeldia. Se não é rebel-de não é arte, se não transgride, não é arte. Por isso que as pessoas gostam, porque eu gostaria de estar falando o que aquele artista está. Esse é o poder do artista. Ele é o cara que está com uma lanterna na mão. Por isso, eu acho que a arte não pode vir da mão de quem escraviza. A nossa arte vem da rua, das ru-as que os anjos não frequentam. É lá que se escreve. Nossa arte vem da dor. Ela não fala dos negros, ela fala pelos negros, com os negros. Não fala dos po-bres, fala com eles e por eles, junto.

É uma arte de denúncia?Também, mas só fazer arte na periferia já é algo

subversivo. O jovem que faz um funk tinha tudo para ser outra coisa e ele ainda faz música. Ele está sub-vertendo. As pessoas nos querem presos, algemados, implorando cesta básica ou só trabalhando. Fazer ar-te neste país já é um ato político. E nós fazemos arte pela literatura, que é sagrado, o pão do privilégio. E nós, arrogantemente, usamos a literatura para cons-truir pessoas que constroem poemas. Eu não preciso falar que é uma denúncia. Quando um negro escreve um poema já é uma denúncia, quando uma mulher negra está em uma peça de teatro já é uma denúncia.

Há resistência ao golpe na periferia?Muita. A periferia sempre se manifesta, o proble-

ma é que não chega na grande mídia. Quando tocam fogo em um ônibus porque um jovem foi assassina-do pelas costas é uma manifestação, mas o que che-ga lá é que são bárbaros, mas na Paulista são todos inteligentes. Fizemos vários eventos “Fora, Temer”, mas onde apareceu? Três pessoas fecharam a Paulis-ta pelo “Fora, Dilma” e deu em todos os lugares. Eu encontrei um sujeito esses dias que me disse: “Pre-cisamos fazer palestras porque o povo da periferia está alienado com o golpe”. Eu falei: “Ora, por que você não faz isso na classe média? É de lá que veio o golpe”. Não tem preto na Lava Jato, não tem pobre na Petrobras e ainda é culpa do pobre que é aliena-do. Você acha que pode cobrar da população uma posição política estudando em uma escola como a que o Alckmin nos dá, onde se rouba a merenda?

Qual a perspectiva para a cultura na periferia com Temer?

Sobreviveremos, porque a gente nunca viveu com muito. Sempre nos autogerimos, por isso, talvez se-jamos até arrogantes. Vamos continuar lutando, por-que nossa vida é lutar desde sempre. Está difícil, mas sempre esteve. Quando a gente sai de casa, a gente sai para virar o jogo, porque a gente já sai sempre per-dendo. Por isso, a gente precisa jogar melhor, correr mais, lutar mais. O que eu quero dizer é que isso não altera muita coisa, porque a ditadura acabou para al-gumas pessoas, mas para nós ainda não. As pesso-as reclamam até de registrar empregada doméstica.

Com Dilma e Lula, as demandas da classe tra-balhadora na cultura eram correspondidas?

Sempre existiram contradições, mas entendemos que com Dilma era uma coisa e com Temer será ou-tra. Mesmo com a crítica, com todos os defeitos, você tinha diálogo com a periferia. Com Temer não tem, é tudo de cima para baixo. Acabaram com a Secretaria

A lei de fomento prevê financiamento de até 24 meses para os coletivos. Qual a efetividade de editais mais cur-tos, como o VAI ou o Proac (programa estadual de incen-tivo), para as demandas da periferia?

O VAI é mais democrático, porque circula mais e a grana é menor, então não interessa a muita gente. Ajudou a dar um pouco mais de voz à periferia. Eu não sou contra a Lei Rouanet. Acho que tem de ter pra todos, inclusive para a gente, mas será que as outras classes sociais entendem dessa forma? Eu enten-do assim, afinal, como eu sofro preconceito eu não reproduzo. Eu acho que essas leis são necessárias neste momento e dou pa-rabéns para o Haddad por ter sancionado, até porque é impo-pular neste país reacionário. Qualquer medida que seja para o povo é impopular (para os meios comerciais de comunicação).

Essa visão preconceituosa ganhou força mesmo na área da cultura, onde a periferia tem se destacado tanto?

Agora está mais forte ainda. Nós vemos o crescimento do fascismo. Há uns dois ou três anos eles tinham vergonha, mas agora têm orgulho de ser racistas. Nós temos líderes espirituais pregando o racismo e a homofobia.

Que momento vive hoje a produção cultural da periferia?Estamos vivendo nossa Bossa Nova, nossa Tropicália, nossa

Primavera de Praga. A cultura na periferia sempre existiu, mas a partir do ano 2000 surgiu como um movimento. Sempre se fez cultura, mas antes era de uma forma isolada. É quando vem o hip hop que a periferia dá um grito de independência: “Eu posso! Eu sou da periferia, e daí?” É aí que vem o orgulho de ser negro, de ser da periferia e o respeito por quem mora na favela. Antes fazíamos cultura para nos apresentar para a classe média e hoje fazemos para nós. Estamos fazendo e consumindo cultura.

Sempre existiu público para essa arte?Sempre existiu. Quando você começa a assumir a periferia

você se assume como patriota também, como alguém que res-peita seu país, porque, para nós, a periferia é um país. Agora eu vou fazer poesia para o meu vizinho. As pessoas começaram a entender que nós precisamos formar leitores e público. A Coo-perifa tem o Cinema na Laje, Cine Becos, Cine Quebrada, Cine Botecos, tem teatros para fazer na periferia. A gente fortaleceu a antropofagia periférica: pegamos toda essa cultura que vem do centro, mastigamos e entregamos de forma periférica. Damos nosso charme, nossa visão sobre as coisas. Queremos mostrar a poesia negra como ela é, a literatura periférica como ela é. Nos-so teatro se comunica de outra forma, que não é nem melhor nem pior, é a nossa forma. A literatura periférica é melhor do que a universal? Não, ela apenas nos representa.

Essa identificação permite atrair um público maior?Sim, porque as pessoas se reconhecem na sua arte. Elas come-

çam a entender que o teatrão não vai chegar na periferia, que o Paulo Coelho não vai dar palestra na escola pública. O que temos é isso aí: não veio goela abaixo, feito pela Globo ou pela revista.

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Um sujeito me disse que o povo da periferia está alienado com o golpe. Eu falei: ‘É da classe média que veio o golpe’. Não tem preto na Lava Jato, não tem pobre na Petrobras e ainda é o pobre que é alienado

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É o cara que surge daqui. A pessoa vai ter orgulho de dizer: eu co-nheço ele, não pela televisão, mas pessoalmente. Antigamente, a gente ia lá, fazia sucesso e depois era reconhecido na comunidade.

Você diz que a produção artística da periferia não é nem melhor nem pior que a do centro. Como você a define?

O grande barato do que estamos fazendo é não ser a arte pe-la arte. É uma arte solidária e cidadã. Quando você pega a Ivete Sangalo, ela faz uma música de manhã e à tarde ela já está sen-do usada para vender Miojo, macarrão, xampu. Já o que a gente faz dói. Nossa arte sangra, sua, chora. Quando alguém escreve que está tomando um tiro você escuta o barulho da bala, sente o sangue escorrer pela página. Quando a pessoa faz um teatro ela está invocando seus ancestrais, porque naquele momento ela está dando voz a todo um passado e a toda uma trajetória de que foi difícil chegar ali. A gente coloca força, para que seja escutado. Quando eu faço uma poesia, quando alguém faz peça de teatro não está falando só por si, mas por muita gente. Essa arte é diferente da do Paulo Coelho, que pode usufruir das be-nesses do prazer enquanto a gente ainda está lutando para ter o direito a ser cidadão, a participar da civilização.

Ouvi de um produtor cultural que os grandes filósofos da atualidade estão nas periferias...

Cresci estudando onde a maioria dos professores era de classe média. Hoje os professores são daqui, isso ajuda a gente a pensar. Começamos a criar um orgulho periférico, uma forma de pensar. Quando você lê Baudelaire, ele tem de parecer com Mano Brown. É isso que a gente está fazendo

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de Igualdade Racial, isso quer dizer muita coisa. Está entenden-do o que estamos vivendo? É assustador. É absurdo. Você tem o (deputado) Marco Feliciano que vai defender o racismo baseado na Bíblia. Um cara que agora está sendo acusado de estupro. Vo-cê tem uma pessoa que vota a favor do impeachment em nome de Deus e da sua cidade, e no dia seguinte vai presa.

Estamos vivendo uma grande depressão, mas talvez seja um dos momentos mais importantes na história do país. O Brasil precisa reconhecer o que somos e talvez daí comece a mudar. So-mos um povo racista. O Estado quer controlar o corpo da mu-lher. Está escancarado o quão reacionário somos. Mostramos que somos governados pela grande mídia, eles dizem o que pode e o que não pode. Caiu a máscara. Talvez a partir daí a gente comece a melhorar. É quando me reconheço escravo que luto pela minha liberdade. É quando me reconheço que começo a mudar. Cresci ouvindo que o sistema é ruim, mas quem é esse sistema? São os iluminados tupiniquins: os donos dos jornais, da televisão, meia dúzia de pessoas. Agora sabemos que a elite não gosta de pobre e de negro. Agora a gente pode lutar. Jogaram-se as fichas.

E por que não conseguimos quebrar esse preconceito, sobretudo o de classes?

Durante muito tempo a gente fingia que fazia parte disso. No Rio de Janeiro, o cara que mora na favela vai na mesma praia do rico e acha que aquilo é democrático, acha que está sendo aceito, mas não. Nós não estamos lutando na luta de classes, estamos sendo massacrados. Nós não temos armas para lutar. É como enfrentar o Mike Tyson e tentar ficar em cima da lona o máximo de tempo possível, apanhando, caindo, tentando dar um soco... Essa é nossa vida e quando a gente grita somos arrogantes. Eu lembro do Bolsa Família e das pessoas falando que estavam sustentando pobres. Mas você que faz três refeições por dia não quer que a outra pessoa faça também? O Paulo Maluf nos roubou a vida inteira e isso não é um absurdo. Por que é absurdo que se repasse dinheiro para comer? De onde vem essa lógica? Aceita-se tudo da Lava Jato. Aceita-se R$ 23 milhões desviados pelo José Serra, mas e se fosse o Lula? Aos ami-gos tudo, aos inimigos a lei. E mesmo aqui na periferia está cheio de coxinha, que eu chamo de “simpatizante”, porque não tem dinheiro para ser coxinha. É aquele que não vai ser convidado para a festa.

Faltou formação para os trabalhadores se identificarem como classe?

Faltou comunicação, formação política... Conheço gente que pegou ProUni e é contra o programa. Conheço gente que com-prou casa pelo Minha Casa Minha Vida e está pedindo “Fora, Dilma”. A revista Veja está em todas as escolas, em qualquer sala de espera está passando a Globo... É o grande irmão, todo dia e toda hora. Não sei onde nos perdemos, mas nos perdemos. Qualquer coisa que eu posto no Facebook me mandam para Cuba, me chamam de petralha. Como? Se eu não sou filiado a nenhum partido.

Esse preconceito se manifesta também contra a produ-ção cultural da periferia?

ENTREVISTA

O período histórico iniciado pela pri-meira vitória de Lula e concluído com o golpe branco representa um momento extraordinário na história brasileira. Pela primeira vez a luta

contra a maior marca negativa do país – a desigual-dade social – foi combatida como objetivo central dos governos. O Brasil, o país mais desigual do con-tinente mais desigual, realizou, em poucos anos, seu maior processo de democratização social.

Saiu da ditadura mediante um processo limitado de democratização política, pelo predomínio das corren-tes liberais na oposição à ditadura, depois da derrota dos movimentos clandestinos. A isso se acrescentou a derrota da campanha das diretas, o que levou a sucessão ao Colégio Eleitoral construído seletivamente pela di-tadura. Como uma de suas consequências, o candidato da oposição não foi Ulysses Guimaraes, seu dirigente mais importante, mas Tancredo Neves, mais modera-do, cuja morte levou, paradoxalmente, a que o primei-ro presidente civil depois da ditadura fosse José Sarney, ex-presidente da Arena, partido da ditadura, que havia dirigido a campanha contra as eleições diretas.

A transição à democracia foi, assim, um compro-misso entre o velho e o novo, políticos da oposição e outros da própria ditadura. O governo Sarney não promoveu nada além da institucionalização da de-mocracia previamente existente. Não houve demo-cratização da propriedade da terra, nem do sistema bancário, nem dos meios de comunicação. Em suma, não houve democratização econômica, nem social, nem cultural. Democrático, o Brasil seguiu sendo o mais desigual do continente mais desigual do mundo.

A década neoliberal, com os governos de Collor, Itamar e FHC, aprofundou a desigualdade e ainda jogou o Brasil na mais prolongada recessão econô-mica da sua história. Foi com a vitória de Lula, em 2003, que as prioridades começaram a ser mudadas e a luta contra as desigualdades ganhou o lugar cen-tral na ação dos governos.

Foram anos em que a maioria da população, sem-pre postergada, passou a ser incluída, seus direitos fun-damentais passaram a ser reconhecidos. A geração de mais de 20 milhões de empregos com carteira assina-da reverteu a tendência de várias décadas de aumento do número de pessoas sem trabalho, os com empregos precários e ou informais. Junto com a elevação do po-der aquisitivo do salário mínimo em 70% acima da in-flação, representou o maior mecanismo de distribuição de renda. Ao lado disso, as políticas sociais diminuíram a desigualdade aos menores níveis da nossa história.

Entre tantos outros avanços nesses anos, esse foi o mais importante, o mais marcante, pelo peso negati-vo que a desigualdade sempre teve na nossa socieda-de. Foram essas políticas que permitiram as vitórias eleitorais seguintes, completando quatro eleições em que os brasileiros decidiram, pelo voto democráti-co, sua preferência pelo modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda.

Foram essas derrotas da direita e a expectativa se-gura de que elas seguirão, ainda mais com a candi-datura do Lula, que a levou a buscar o atalho do gol-pe, para tirar do governo o partido que o povo tinha escolhido e reiterado que deseja que governe o país.

Fechou-se assim o período mais virtuoso da his-tória, porque o mais democrático, aquele em que os governos tiveram o maior apoio popular, em que o Estado recuperou sua legitimidade, em que se con-sagrou a liderança do Lula.

Um período que pode ser retomado, porque as ne-cessidades da população por políticas sociais aumen-tam ainda mais, com as políticas antipopulares do go-verno golpista, e porque a liderança do Lula é reiterada como a única com grande respaldo popular. Porém, ela exige grande processo de politização popular, que só pode se dar com novos objetivos de futuro, que deem continuidade, mas de forma distinta à do pas-sado, àquele momento vitorioso de conquistas demo-cráticas e populares, de política externa soberana, e de maior autoestima que os brasileiros já viveram.

Fecha-se o período mais virtuoso da história, o mais democrático, em que os governos tiveram o maior apoio popular, em que o Estado recuperou legitimidade. Um período a ser retomado

2003-2016 – A luta contra a desigualdade

EMIR SADER

Sim. O funk, por exemplo, não é mal visto pela música, mas porque é feito por negros. A música em si diz a mesma coisa que o sertanejo universitário, feito por brancos. Eu não sou do funk, mas respeito: alguém que não teve nada ainda quer cantar. E o funk não está enriquecendo ninguém além do cantor, por-que ele mesmo faz a mídia e vende na quebrada dele, sem passar por gravadora. Por que o rap foi perseguido? Porque tinha rádio comunitária, fazia sua própria roupa... O mundo foi feito para poucos. Existe um pensamento único e quem sai dele é pederas-ta, terrorista, bêbado, maconheiro. Porque o status quo diz que você deve assistir TV, ir ao cinema, ao shopping, fazer academia, ir ao barzinho, ler os mesmos livros. Aí você fala que não quer e te segregam, ou pior, te matam. Mas sabe o que eu queria dizer?

O quê?Eu acho que nos devíamos estar em busca de resgatar a huma-

nidade de cada um. Estamos em um momento que precisamos começar a nos reconhecer como humanos, a reconectar. Preci-samos de gente que entenda a dor do outro, com empatia. Pare-ce que a gente perdeu essa capacidade de ser humano e viramos um produto. Nós somos um produto... Aquela pessoa dormin-do na calçada é uma estatística. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós precisamos sofrer essas 12 mortes, chorar cada uma delas. A vida precisa voltar a ter valor. A gente precisa se indignar.

O que a gente faz é para que o pobre não seja cordial. A gente quer que a pessoa seja mais combativa. A gente faz cultura, e arte é rebeldia. Se não é rebelde não é arte

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Há mais de 150 anos, os moradores de Areia Grande cultivam uma maneira de viver transmitida de geração em geração, conhecida como fundo de pasto. Os rebanhos de cabras e bodes,

principalmente, e também as ovelhas e o gado das cerca de 400 famílias são criados soltos na caatinga, numa área de uso coletivo de 26 mil hectares. Esses animais, rústicos e muito resistentes às estiagens co-muns na região, se alimentam livremente nas pasta-gens nativas. O distrito fica numa área de dunas do Rio São Francisco, formada pelas comunidades de Jurema, Riacho Grande, Melancia e Salina da Brin-ca, no município de Casa Nova, norte da Bahia.

Não existem cercas indicando os limites de um fundo de pasto. As únicas áreas cercadas são os ro-çados ao redor das casas, onde os moradores criam pequenos animais e praticam agricultura de sub-sistência. Como as terras coletivas onde os animais maiores são soltos para pastar ficam atrás desses ro-çados, a tradição se encarregou de batizá-las de “fun-do de pasto” – no Cerrado, são “fecho de pasto”. As raízes do sistema de fundo de pasto remontam ao Brasil Colônia. Quem cuidava nos confins do ser-tão do gado dos grandes criadores, que preferiam viver no litoral, eram os vaqueiros – homens rudes e livres que recebiam filhotes como pagamento por seus serviços.

“Aqui todo mundo ou é parente ou é compadre de todo mundo”, brinca Joaquim Pereira da Rocha, o Quinquim, 76 anos, um dos moradores mais antigos

de Areia Grande. Isso acontece, segundo ele, porque o trabalho numa terra compartilhada acaba criando laços de parentesco e compadrio muito fortes entre os moradores, além de desenvolver um senso muito consistente de coletividade e solidariedade.

O dia a dia é de trabalho duro no fundo de pasto de Areia Grande. Os animais são soltos logo cedo para se alimentarem nas terras comunitárias, e re-colhidos aos currais de cada morador quando anoi-tece. Um sino amarrado no pescoço de alguns, cujo som os donos identificam de longe, ajuda na tarefa de recolher a criação. Como os animais vivem mis-turados no campo aberto, os pastores e vaqueiros se revezam nos cuidados do rebanho de toda a coleti-vidade. Se alguém observa algum animal doente – com “bicheira”, por exemplo, provocada por moscas varejeiras, o que pode ser fatal – mesmo que não seja dele, imediatamente amarra o bicho em algum lugar e logo avisa o dono.

Escândalo da mandiocaQuando não há trabalho haja festa em Areia Gran-

de. A agenda cultural e religiosa é movimentada. Em janeiro acontece um Reisado na comunidade de Ju-rema. São José é comemorado por todos com procis-sões e novenas no mês de março. Em maio, Riacho Grande homenageia a padroeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E forró pé de serra não falta na festa da mandioca de Melancia, em outubro. Uma das principais plantações do fundo de pasto de Areia Grande é a mandioca, transformada em farinha e ta-

CIDADANIACIDADANIA

Olhos gordos em Areia GrandeAgruras vividas por comunidades tradicionais do sertão da Bahia começaram com a construção da barragem de Sobradinho, nos anos 1970. A longa saga de luta e resistência que dura até hojePor José Paulo Borges

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TERRAS COMUNITÁRIAS O dia a dia é de trabalho duro no fundo de pasto de Areia Grande. Os animais são soltos logo cedo para se alimentarem e recolhidos aos currais de cada morador quando anoitece

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A fraude provocou imensos danos ambientais que até hoje não foram reparados na caatinga. De acordo com laudo técnico produzido pela empre-sa Consultoria e Assessoria em Agropecuária Or-gânica (Agrorgan), a Camaragibe devastou uma área de 1.945 hectares de caatinga, para plantação de mandioca. “O uso agrícola intensivo realizado pela Camaragibe resultou em perda total de resili-ência e consequente inexorabilidade da degrada-ção daquela parcela de dunas. A reversão de tais processos requer grandes investimentos financei-ros”, atesta o relatório.

“Muitas espécies de abelhas nativas desapare-ceram. Também não se veem mais por aqui ani-mais e aves como o tamanduá, o gambá, a cotia, o juriti e a asa branca”, lamenta Quinquim. O va-queiro também acusa a Camaragibe pela perda de espécies vegetais da caatinga, como a resinei-ra – fonte de renda para a comunidade, que extraía e vendia o látex usado na calefação de cascos de embarcações. A resineira e outras árvores sertanejas viraram cinzas e hoje jazem entre as ruínas da empresa.

O gibão e a perneiraMas a luta dos sertanejos de Areia Grande pela preservação

de seu modo de vida não parou por ali. Outro momento ten-so do conflito agrário aconteceu no dia 6 de março de 2008, durante o cumprimento de um mandado de imissão de posse concedido pela Justiça de Casa Nova a dois empresários que se apresentaram como supostos proprietários das terras. Eram 5h da manhã, quando policiais civis e militares, sob a supervisão de um oficial de justiça, tentaram expulsar as famílias a força da área em disputa. Cercados, chiqueiros, incontáveis caixas de mel e algumas casas foram derrubadas por tratores. Uma dessas casas era de José Campos Braga, conhecido como Zé de Ante-ro, uma referência na comunidade. Vaqueiro de mão cheia, 56 anos na época, Zé de Antero não se intimidou. Foi morar de-baixo de lona, sob um juazeiro, enquanto erguia uma nova casa.

No final da tarde de 4 de fevereiro de 2009, Zé de Antero foi encontrado morto com um tiro de espingarda, numa duna a uns 800 metros de distância da residência inacabada. Na parede até

pioca (comida de origem indígena), afamadas pela qualidade. As casas de mandioca até hoje utilizam métodos tradicionais desconhecidos na cidade grande. Atividade mais recente é a apicultura. Existem milhares de colmeias espalhadas na região.

Um dos primeiros habitantes de Areia Grande foi Manoel Pe-reira da Silva, o Manoel Pracatão (consta que era chamado assim por causa das alpercatas, muito grandes, que usava). Pracatão chegou, segundo velhos registros, em 1860, fugindo de uma seca brava que castigou a cidade de Crato, no Ceará. Na nova terra, casou-se com Cipriana, com quem teve muitos filhos. Joaquim Ferreira da Rocha, o Quinquim, é dessa estirpe. Quinquim pode ficar horas contando as histórias sobre coisas antigas de Areia Grande, passadas por sua mãe, Honorina. “Não existe caatinga como a nossa. Mesmo sem chuva, nunca falta folha verde por aqui. Acho que é por isso que os gananciosos sempre cresceram os olhos pra cima da gente”, matuta o velho vaqueiro.

Pois são justamente esses “olhos grandes”, segundo Quinquim , os responsáveis pelas agruras que Areia Grande vem passando há mais de 40 anos. Começou com a construção da barragem de Sobradinho, nos anos 1970. A obra do regime militar não

fez o sertão virar mar, mas transformou a vida de milhares de sertanejos num inferno. Por imposição do governo, muita gente teve de abandonar suas casas, sepultadas pelas águas, e obrigada a morar em agrovilas distantes até 700 quilômetros da beira do São Francisco, onde sempre viveram. Areia Branca, porém, fin-cou o pé. Os moradores não abandonaram o lugar deles. Foi o começo de uma longa saga de luta e resistência que dura até hoje.

Em 1979, assentada a poeira levantada pela construção da barragem, Areia Grande sofreu outro duro golpe. Na época, a empresa Agroindustrial Camaragibe, com apoio da oligarquia local, instalou no fundo de pasto um empreendimento desti-nado a produção de biodiesel e álcool a partir da mandioca, fi-nanciado com recurso do Proálcool. Mais tarde, descobriu-se que os títulos de posse das terras tomadas dos moradores tradi-cionais eram fraudulentos, fruto de grilagem. A posse era ilegal porque as terras, historicamente reconhecidas como públicas devolutas, têm seu uso garantido pela comunidade. Não demo-rou muito e a Camaragibe abandonou o projeto, deixando atrás uma dívida milionária, que estourou no chamado Escândalo da Mandioca de desvio de dinheiro público.

CIDADANIA CIDADANIA

hoje está pendurado um calendário que parou no ano de 2009. Na parede ao lado, o gibão e a pernei-ra de couro do vaqueiro se esgarçam sob a ação do tempo. O inquérito sobre a morte de Zé de Antero nunca foi concluído. Moradores de Areia Grande afirmam em coro não ter dúvidas de que o compa-nheiro foi assassinado covardemente a mando de pessoas e grupos que querem as terras. Para pre-servar a memória do vaqueiro assassinado, todos os anos, em fevereiro, o povo local reza um terço ao pé de uma cruz feita de cacuricabra – madeira nobre do sertão – fincada no alto de uma duna, nas proximidades do local onde o corpo de Zé de Antero foi encontrado.

O conflito persiste nos dias de hoje. A comu-nidade permanece firme e não abre mão de seu modo de vida. “Volta e meia, somos surpreendi-dos por novas ameaças”, atesta o líder comunitá-

rio Zacarias Rocha. Segundo ele, as pressões atuais partem de poderosos grupos empresariais que querem instalar na região projetos de produção de energia eólica e de mineração. Esses grupos, conta Zacarias, muitas vezes têm o respaldo de deci-sões judiciais controvertidas, que ignoram os direitos adquiri-dos pela população local ao longo de mais de 100 anos. “Além de passar por cima dos nossos direitos, ignoram que ninguém sabe cuidar e preservar a caatinga melhor do que nós.”

A tormenta mais recente no fundo de pasto de Areia Grande desabou no último mês de julho. Uma sentença proferida pelo juiz de Casa Nova, Eduardo Padilha, colocou as 400 famílias do território sob o risco de despejo. O despacho autoriza, inclusi-ve, o uso de força policial. Na comunidade, o receio de que o terror vivido em 2008 e uma tragédia como a de 2009 se repi-tam é grande. “Estamos unidos. Não será essa decisão arbitrária que fará com que entreguemos nossas terras”, afirma Zacarias. O cego Gerônimo Fernandes Braga, 94 anos, e sua mulher, Ma-ria Zulmira Gomes, 91, moradores mais antigos, indagam: “Se nos tirarem daqui, onde vamos morar?” O futuro do morador mais novo, Gabriel Silva da Rocha, que nasceu no último dia 15 de maio, também é incerto. A Comissão Pastoral da Terra de Juazeiro e outras entidades da sociedade civil estão contes-tando a decisão.

USO COLETIVOOs rebanhos de cabras e bodes, principalmente, e também as ovelhas e o gado das cerca de 400 famílias são criados soltos na caatinga, numa área de 26 mil hectares

MEDO E DESAMPARO Uma sentença proferida pelo juiz de Casa Nova, Eduardo Padilha, colocou as 400 famílias do território sob o risco de despejo. O despacho autoriza, inclusive, o uso de força policial. Na comunidade, o receio de uma nova tragédia é grande

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LÍDER ASSASSINADOO Gibão e perneira do vaqueiro José Campos Braga – o Zé de Antero, que não se intimidou por ameaças

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A chegada certamente é um dos momentos mais difíceis, sobretudo se o primeiro destino não for uma das grandes e cosmopolitas cidades da Ín-dia. De repente, você se vê sem referências: nos letreiros e placas não há sequer uma letra conhe-

cida, as pessoas que ocupam os espaços não se parecem com alguém que você reconheça, ninguém veste uma camiseta de uma banda familiar, nenhuma palavra é inteligível. Essas per-cepções pesam tanto quanto a mochila nas costas, em meio à missão impossível de encontrar o hotel. Varanasi, uma das ci-dades sagradas do hinduísmo, fica às margens do Rio Ganges, é organizada em vielas sem nome e grandes escadarias, ou ghats, que levam ao rio.

Nas ruas estreitas o passo é obrigatoriamente lento. É neces-sário dar passagem para motos, vacas, macacos e desviar cons-tantemente de montanhas de lixo e de crianças jogando críque-te. Entre casas, lojas de seda e empórios de temperos e chás, o transeunte encontra templos e pequenas oferendas deixadas no caminho para algum dos 330 milhões de deuses do país, que sob o guarda-chuva de “hinduísmo”, se dividem em centenas de outras crenças. Na caminhada, o desavisado chegará com facili-dade a Manikarnika Ghat onde, 24 horas por dia, todos os dias do ano, corpos dos mortos de todas as partes da Índia são cre-mados – acredita-se que morrer em Varanasi libera o indivíduo de suas encarnações cármicas.

Não é necessário mais do que isso para descobrir o segredo para os próximos dias: desapego. Não apenas aquele em voga na classe média urbana do Ocidente, que prega a fluidez de pesso-as e coisas que não acrescentam mais. A Índia pede mais. Você precisa desapegar da forma como aprendeu a viver. A morte? Também pode ter algo de alegre. Casamento arranjado? Quem disse que é necessariamente ruim e que as pessoas não querem? Garfo, faca e colher? Não, não. Bastam as mãos.

Contrastes da ÍndiaO país-continente reúne maravilhas arquitetônicas, naturais e humanas. É uma montanha russa de emoções: em minutos você vai do mais lindo que já viu ao mais triste. Ali vive um terço dos pobres do mundoPor Sarah Fernandes. Fotos de Danilo Ramos

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Trinta dias e nove cidades depois – a maioria delas no Ra-jastão, estado famoso pelos Marajás, fortes seculares, elefantes e encantadores de serpentes –, você confirma: nada na Índia é pequeno ou discreto. São muitas cores contrastadas nas cons-truções, nas roupas e nas paisagens; muitos sabores nas comi-das, nos temperos e nas frutas; muitos cheiros, em uma mistu-ra constante de especiarias, incenso e banheiro pouco limpo; e muitos sons, da música sempre presente, das celebrações re-ligiosas e das buzinas insistentes de um trânsito caótico, onde a única regra parece ser exatamente fazer barulho. É como se todos os sentidos estivessem aguçados, em um looping que vai do deslumbramento à saturação.

Viver com menos de US$ 1 por diaA Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1,2

bilhão de habitantes, atrás apenas da China (1,3 bilhão). Ape-sar do acelerado crescimento econômico do país nos últimos 20 anos, lá está um terço da população mundial em situação de extrema pobreza. Pelo menos 400 milhões de indianos vivem com menos de US$ 1 por dia, o que delimita a linha de miséria, segundo organismos internacionais. Em Mumbai, maior cidade do país, com arquitetura ímpar, misturando fachadas inglesas com traços orientais, quase seis em cada dez moradores vivem em favelas. Só na maior delas, Dharavi, famosa depois de am-bientar o filme Quem Quer ser um Milionário?, estão 1 milhão de pessoas, em uma condição de miséria que chega a chocar mesmo quem vem de um país tão desigual quanto o Brasil.

Os dados oficiais ganham nome e rosto nas casas das famílias, como na do jovem Laura Rajak, de 15 anos. “Meu irmão traba-lha como faxineiro em um escritório de turismo e ganha 3 mil rupias por mês (o equivalente a US$ 45). Uma mixaria para cá”, diz, sobre a cidade de Kajuraho, conhecida pelos templos mile-nares, que exibem imagens de sexo. “Eu trabalho em uma loja

CAMINHANTE DO DESERTOHomem descansa depois de cruzar o deserto de Thar, à noite, com suas cabras. A prática é comum devido ao clima mais ameno e por conhecerem de memória toda a região

FORA DA ORDEMTrabalho infantil em

Sarnath: situação comum em todo o país

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de produtos da Caxemira, mas só recebo a comissão quando há alguma venda”, conta sentado na única cama da casa de dois cômodos, sem banheiro e sem água encanada, enquanto toma um chai, tradicional bebida que mistura chá preto, temperos e leite. Desde 2009, quando seu pai morreu, a escola deixou ser a prioridade e ele passou a ser o responsável por sustentar a casa, fazendo pequenos bicos.

Não à toa a religião é tão forte no dia a dia dos indianos. É um refúgio em uma sociedade marcada por tanta desigualda-de. O sistema de castas, por exemplo, ainda existe (apesar de ser proibido pela Constituição) e congela possibilidades de ascen-são social. “Somos de uma casta muito pobre, de fazendeiros”, diz Laura, em uma tentativa de explicar, talvez para si próprio, por que precisa lutar com tanta dificuldade apesar de ser tão jovem. São quatro as principais castas na Índia, que se subdi-videm em outras: os brâmanes, composta pelos sacerdotes; xá-trias, dos militares; vaixias dos fazendeiros e comerciantes; e os sudras, que devem servir as castas superiores.

Diferentemente do cristianismo, em que a concepção do tem-po é linear, no hinduísmo ela é cíclica: a vida nunca acaba. Na trilogia hindu, o deus Brahma criou o universo e fez com que os

300 MILHÕES DE DEUSESSacerdote durante o Puja, ritual religioso celebrado diariamente nos Ghats de Varanasi, cidade sagrada para o hinduismo

CORES E ALEGRIAKalbelia, a dança tipica do Rajastao, região fronteira com o Paquistão

ESPORTE NACIONALCrianças jogam críquete numa viela de Varanasi

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seres humanos tomassem consciência da sua existência, o deus Vishinu mantém a criação e o deus Shiva a destrói. Nenhum é mais importante ou mais bondoso que o outro, de forma que o término das coisas é tão importante quanto o começo. O fim dos ciclos, das fases, dos projetos, dos relacionamentos e até da própria vida não é algo necessariamente ruim e também deve ser celebrado.

“Na verdade aqui não ligamos mais tanto para essa história de carma. Nós temos é fome”, resumiu o tratador de camelos Kamal, de 28 anos, na cidade de Jaisalmer, quase fronteira com o Paquistão. Ele nunca frequentou a escola e trabalha desde os 12 anos com camelos.

A história se repete a 1.200 quilômetros dali, em Mumbai, com um lavadeiro de 23 anos que não disse seu nome. Ele vive em Mahalaxmi Dhobi Ghat, maior lavanderia a céu aberto do mundo, onde pelo menos mil pessoas podem lavar roupa ao mesmo tempo e nas mesmas condições precárias de trabalho de quando foi inaugurada, há 140 anos. “Cresci aqui trabalhan-do com lavagem de roupas, casei e hoje moro aqui e continuo o trabalho”, conta.

Fazer da viagem para a Índia um passeio plenamente feliz exige algum esforço. A magnitude do Taj Mahal é pelo menos um pouco ofuscada quando a 100 metros da saída você depara com uma criança usando uma vala na rua como banheiro. As cores e aromas dos mercados do Oriente ou o charme das via-gens de trem perdem um pouco do brilho quando você percebe que é a única mulher no local, até onde os olhos alcançam. A comida, de uma dieta estritamente vegetariana, a base de quei-jo, leite e grãos, perde um pouco o sabor quando é uma crian-ça que serve à mesa.

É uma montanha russa de emoções: em minutos você vai do mais lindo que já viu ao mais triste. A Índia escancara uma verdade que nós, ocidentais urbanos, às vezes esque-cemos: grande parte das pessoas do mundo são pobres – 2,2 bilhões, segundo dados das Nações Unidas. O cidadão do mundo é um sujeito asiático que não tem água potável, não foi para a escola o tempo necessário e que carrega o sem-blante sério de quem começou a trabalhar muito cedo. Ele mora em uma casa pouco arejada, tem pelo menos quatro irmãos e tem fome.

O MODERNO E O MISERÁVEL Mahalaxmi, a maior lavanderia a céu aberto do mundo, em Mumbai: cerca de mil pessoas lavam roupa manualmente para clientes de toda a cidade

IMPACTO CULTURALNa India hindu, animais como a vaca, o macaco e o rato são sagrados e dividem espaço nas ruas com automóveis e motocicletas

LIBERTANDO AS ENCARNAÇÕES CÁRMICASO crematório Manikarnika Ghat funciona 24 horas por dia, todos os dias do ano

BANHO NO GANGESDeuses, carma, sagrado, profano: a grande preocupação dos indianos hoje é a fome

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Por Xandra StefanelPreços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

curtaessadica

Morte e vidaA jornalista e professora paraibana Denise Santana Fon lançou em agosto o livro Contos Para Falar de Morte e Vida (Ilelis Editora/Fundação Perseu Abramo), sobre os crimes cometidos pela ditadura militar. Com prefácio do escritor, poeta e ex-preso político Pedro Tierra, a obra traz contos que resgatam, de forma poética, atrocidades que não podem ser esquecidas: “É muito importante abordar de forma literária o tema, para falar da realidade e transmitir com ternura para as pessoas. É necessário criar figuras de linguagem para fugir da realidade”, afirmou Denise, em entrevista à Rádio Brasil Atual. O livro pode ser comprado pelo site www.ilelis.com.br (R$ 22).

Encantos e encantaçõesA cantora, compositora, rabequeira e atriz Renata Rosa traz em seu terceiro álbum uma refrescante enxurrada de graça e brasilidade. Encantações é repleto de influências de maracatu rural, coco, cirandas e cavalo-marinho, com canções que esbarram no jazz e em sonoridades do Oriente Médio. Entre as faixas, destaque para a Marcha do Donzel, parceria entre Renata e o escritor Ariano Suassuna; Imbarabaô, dela e Hugo Linns; e Roda do Vento. Além de Hugo Linns no contrabaixo e violão, Pepe na viola de dez cordas e bandola e Helder Amendoim e Gilu Amaral nas percussões, o disco traz participações de Cema, Eberú, Yara, Suíra e Noraia Suíra, índias kariri-xocó, nos vocais. Preço sob consulta. Ouça no soundcloud.com/renata-rosa.

Nuances das opressõesChega às livrarias em setembro a primeira edição brasileira de Mulheres, Raça e Classe (Boitempo Editorial, 248 págs.), da intelectual norte-americana Angela Davis, que fez parte do movimento Panteras Negras, do Partido Comunista dos Estados Unidos e da luta por direitos civis, entre outros. A obra traça um panorama histórico e crítico das imbricações entre as lutas anticapitalista, feminista, antirracista e a luta antiescravagista, sem deixar de lado o movimento sufragista e os dilemas contemporâneos da mulher. Um marco da literatura sobre questões de raça e gênero que evidencia o modo pelo qual as opressões estruturam a sociedade. “Mulher, Raça

e Classe é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo”, escreve a filósofa e feminista Djamila Ribeiro no prefácio. R$ 54.

Samba no feminino Toda primeira sexta-feira de cada mês, a partir das 18h, mulheres se reúnem no Centro de Cultura Tendal da Lapa para compartilhar experiências de si e do mundo por meio de suas músicas e composições. O projeto Mulher Escrita, idealizado por Camila Midori e Carol Nascimento, nasceu do questionamento a respeito da participação feminina em espaços musicais e manifestações populares. “Se as mulheres sempre estiveram presentes na história da música, porque é tão incomum vê-las como protagonistas?” Além de promover as sambistas paulistanas, a ideia desses encontros é entender e explorar as relações entre a mulher e a música, em especial com a arte de compor. Na Rua Guaicurus, 1100, Lapa, em São Paulo. Grátis.Trabalhadores no Masp

A exposição Trabalho, de Thiago Honório, em cartaz até 29 de janeiro de 2017 no Museu de Arte de São Paulo (Masp), exibe instrumentos e ferramentas de pedreiros e mestres de obra que foram utilizadas no restauro de uma antiga estação de fornecimento de energia da empresa Light, no centro da capital paulista. Thiago negociou com os trabalhadores a troca ou doação de seus instrumentos: pás, talhadeiras, escadas, picaretas, enxadas, marretas, desempoladeiras, serrotes, foices, roçadeiras, rolos, pincéis, espátulas e outros materiais que dialogam perfeitamente com a arquitetura brutalista do prédio do museu, sem revestimentos ou acabamentos luxuosos, um dos principais pontos de encontro de manifestações sociais da cidade e do país. De terça a domingo, das 10h às 18h, e às quintas-feiras, das 10h às 20h. Avenida Paulista, 1578, São Paulo, (11) 3149-5959. R$ 12 (meia entrada), R$ 25 (inteira) e grátis às terças-feiras.

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Lobo boboEle já causou muito medo em várias histórias: assoprou forte a casa dos três porquinhos, comeu a vovó da Chapeuzinho Vermelho e aterrorizou muitos contos. No livro infantil Este é o Lobo (Editora DCL, 56 págs.), escrito e ricamente ilustrado por Alexandre Rampazo, descobrimos uma das faces desse animal que, nesse caso, é o personagem principal. A história provoca boas reflexões já que acaba revelando muito mais sobre nós mesmos do que sobre o lobo. R$ 27.

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Eu costumava jogar futebol bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Mas, principalmente, brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas im-provisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos bons

tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte, mas a cultura no seu sentido mais amplo, que se transformou numa questão de produção e consumo. Não em alguma coisa que nós próprios criamos.

Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto. Aparente-mente, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento pe-netrou em cada moradia, em todo computador, todo telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal, em um es-tranho e gigante bate-papo global, com evidentes exceções, fi-nanciado pela publicidade.

A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pes-soas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, em vez de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças.

Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular, assistindo o que outras pessoas fazem.

Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. Na Europa são 2,4. Nos Estados Unidos, 25% das mo-radias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obe-sidade prospera, graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obe-sidade. E você pode comprar um relógio de pulso que pode di-zer quão rápido seu coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico. O que tudo isso significa?

Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nos-sas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um co-

Um punhado de otários consumistas

LADISLAU DOWBOR

www.redebrasilatual.com.brAcompanhe na RBA a cobertura dos principais fatos no país e do mundo.E siga nas redes sociais nosso jornalismo crítico, cidadão e transformador

chilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse ter-rível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão im-portante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostitui-ção e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento.

Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da Terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai re-solver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o di-nheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetiva-mente informadas sobre nossos desafios estruturais). Enquanto isso, Olimpíadas e MSN (Messi, Suárez, Neymar para os anal-fabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.

Ladislau Dowbor é professor nas pós-graduações em Economia e em Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor das Nações Unidas. Este texto é trecho de “Crônica em meio à crise global”, cuja íntegra está no site Outras Palavras. bit.ly/cronica_dowbor

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