revista do seminário dos alunos do ppglm/ufrj · 2015-02-13 · sobre um problema na...

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Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ Revista de Filosofia Rio de Janeiro 2014

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Revista do Seminrio dos Alunos do

PPGLM/UFRJ

Revista de Filosofia

Rio de Janeiro

2014

REVISTA DO SEMINRIO DOS ALUNOS DO PPGLM/UFRJ

https://seminarioppglm.wordpress.com/revista-do-seminario-dos-alunos-do-ppglm/

[email protected]

Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Filosofia e Cincias Sociais/Departamento de

Filosofia/Programa de Ps-graduao Lgica e Metafsica

Largo So Francisco de Paulo, No 1, Sala 320-B

Editores Responsveis

Juliana Abuzaglo Elias Martins

Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes

Revisor

Diego Soffritti Cardoso

Revista do Seminrio dos Alunos do PPGLM/UFRJ

Revista de Filosofia Anual

Volume 5, 2014, 200p.

Publicao digital

ISSN: 2236-0204

1. Filosofia Peridicos. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-graduao

Lgica e Metafsica (PPGLM) 2. Seminrio dos Alunos do PPGLM/UFRJ.

Agradecemos ao PPGLM pela ajuda e divulgao.

Sumrio

Editorial....................................................................................................... 05

Algumas abordagens nominalistas da matemtica

Daniela Moura Soares................................................................................. 06

O percurso do lgos em Grgias de Plato: do dilogo ao anlogo

Edmilson Carvalho Barbosa......................................................................... 21

Natura naturans e Naturphilosophie: a natureza como produtividade em

Schelling

Gabriel Almeida Assumpo......................................................................... 37

O realismo modal lewisiano: uma apresentao e algumas objees

Gustavo Emmanuel Alves Vianna de Lyra.................................................... 48

Sobre as duas utilizaes do termo res no quodlibet 7, q. 1-2, de Henrique de

Gand

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva............................................................... 62

A crise da idia de autoridade poltica no mundo moderno: o diagnstico de

Hannah Arendt

Eduardo Valory.............................................................................................. 79

Sobre um problema na interpretao de enai e ousa

No smile do sol de Plato (Repblica vi 509b)

Andr Luiz Braga da Silva.............................................................................. 99

Observaes sobre vida estudantil em Benjamin e Heiddeger: breve anlise

dos textos a vida dos estudantes e o discurso do reitorado

Juliana Abuzaglo Elias Martins..................................................................... 122

Juzos: Kant e Frege

Pablo Barbosa Santana da Silva.................................................................... 128

Problemas de mereologia: o que um todo?

Rhamon de Oliveira Nunes......................................................................... 145

Sntese, imaginao e categorias no 10 da Deduo Metafsica

Danillo Leite................................................................................................. 156

Uma leitura do prlogo do Sofista de Plato

Nelson de Aguiar Menezes Neto................................................................. 165

Conhecimento e Governo em Trasmaco

Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes.................................................... 177

A viso semantista da linguagem de Chateaubriand

Ana Clara Polakof........................................................................................ 191

Revista do Seminrio dos Alunos do PPGLM/UFRJ, v. 5, n. 1, 2014. (ISSN: 2236-0204)

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Editorial

com grande prazer que apresentamos o volume 5 da Revista do Seminrio dos

Alunos do PPGLM/UFRJ. O Seminrio ocorrido entre 01 e 05 de dezembro de 2014 tm

agora publicados os artigos submetidos revista. Neste volume temos como primeiro artigo

um debate entre o platonismo e o antiplatonismo na matemtica, tentando entender os

pressupostos ontolgicos da matemtica. Em seguida, temos um artigo sobre o papel do

dilogo e do anlogo no Grgias de Plato. O terceiro artigo trata da filosofia da natureza de

Schelling e o conceito de natura naturans, estudando produtividade da natureza em si. O

quarto artigo faz uma anlise do realismo modal lewisiano e as aplicaes da teoria dos

mundos possveis. O prximo artigo, fala sobre a noo de coisa (res) em Henrique de

Gand. O sexto artigo analisa a perspectiva de Hannah Arendt sobre as causas que teriam

ocasionado o desvanecimento da idia de autoridade no mundo ocidental durante a

modernidade. O stimo artigo aponta para um problema na histria da interpretao do smile

do Sol da Repblica de Plato (VI, 509b). O oitavo artigo expe algumas idias de Walter

Benjamin e Martin Heidegger sobre os estudantes alemes. O artigo seguinte aborda de forma

comparativa as teorias do juzo de Kant e de Frege. O dcimo artigo tem o intuito de clarificar

o conceito de todo tal como entendido pela mereologia clssica e compar-lo com as

nossas intuies do senso comum. O dcimo primeiro artigo explora a diferenciao entre o

uso puramente lgico e o uso real do entendimento no 10 da Deduo Metafsica de Kant. O

dcimo segundo artigo trata da dramatizao dos dilogos de Plato, mas especificamente do

Sofista. O dcimo terceiro artigo explora da relao entre governo e conhecimento no discurso

de Trasmaco na Repblica de Plato. O ltimo artigo Apresenta algumas crticas feitas por

Chateaubriand em Logical Forms ao programa lingustico de Chomsky.

Gostaramos de agradecer a todos os autores pela participao no Seminrio e pelo

envio dos textos para publicao. Por fim, nossos agradecimentos ao leitor que sempre bem

vindo a nossa composio filosfica.

Juliana Martins

Luiz Maurcio Menezes

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ALGUMAS ABORDAGENS NOMINALISTAS DA MATEMTICA

Daniela Moura Soares1

RESUMO: Neste artigo, apresento o debate entre os defensores do platonismo matemtico por um

lado e os defensores do antiplatonismo matemtico, por outro lado. Tal debate surge ao formularmos

o problema de saber se as asseres matemticas obrigam-nos a postular a existncia de certo de tipo

de objetos abstratos, tais como nmeros, conjuntos e funes. Discutirei, em especial, duas formas de

antiplatonismo matemtico, quais sejam, o fisicalismo e o ficcionalismo quanto matemtica. Ambos

podem ser classificados como formas de nominalismo, visto que rejeitam a existncia de objetos

matemticos abstratos. Primeiramente, discutirei as objees de Frege ao fisicalismo matemtico de

Mill. Apresento, a seguir, duas formas de responder ao principal argumento contra a viso platonista

da matemtica o argumento da indispensabilidade , nomeadamente, a resposta dos defensores do

hard-road nominalism e a resposta dos defensores do easy-road nominalism.

PALAVRAS-CHAVE: platonismo; antiplatonismo; compromisso ontolgico; nominalismo.

ABSTRACT: In this paper, I present the discussion between platonism and anti-platonism in

mathematics. This discussion arises when we ask whether the mathematical assertions constrain us to

postulate the existence of some kind of abstract objects, such as numbers, sets and functions. In

particular, I will discuss two forms of anti-platonist views, namely, physicalism and fictionalism in

mathematics. Both can be classified as forms of nominalism, since there are no mathematical abstracts

objects from the physicalists or fictionalists point of view. Firstly, I present Freges objections to

Mills physicalist view about mathematics and also some possible ways to reject these objections.

Secondly, I present two kinds of answers to the main argument against the platonist view of

mathematics the indispensability argument namely, the hard-road nominalism answer and the

easy-road nominalism answer.

KEYWORDS: platonism; anti-platonism; ontological commitment; nominalism.

1. Introduo

Que 3 um nmero mpar uma verdade elementar da aritmtica, tal como que 2+ 2 =

4. Em virtude do qu, no entanto, so as proposies expressas pelas frases 3 um nmero

mpar e 2 + 2 = 4 verdadeiras? Podemos responder adequadamente a esta pergunta sem

postular a existncia de certo tipo de objetos abstratos, nomeadamente, nmeros? O problema

filosfico que est em disputa consiste, pois, em saber qual o compromisso ontolgico da

matemtica, especificamente da aritmtica. O compromisso ontolgico de uma dada teoria

corresponde s entidades com as quais esta teoria est comprometida. O modelo atmico de

Rutherford-Bohr, por exemplo, est comprometido com a existncia de partculas

subatmicas, a saber, nutrons, eltrons e prtons. Tais partculas so, porm, entidades

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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concretas, visto que se existem, esto localizadas no espao e no tempo.

Estar, pois, a aritmtica ontologicamente comprometida com a existncia de

entidades abstratas? Isto , podemos explicar as suas verdades sem postularmos a existncia

deste tipo de entidades?

As teorias que pretendem responder a este problema dividem-se adequadamente em

teorias platonistas e teorias nominalistas. Os defensores do platonismo respondem

positivamente primeira pergunta e negativamente segunda. Os defensores do nominalismo,

por outro lado, respondem negativamente primeira pergunta, mas positivamente segunda.

O platonismo matemtico pode ser caracterizado como a conjuno das seguintes quatro

teses2:

(A) H objetos matemticos

(B) Tais objetos so abstratos

(C) Tais objetos existem necessariamente e independentemente de quaisquer agentes

cognitivos capazes de os conceber

(D) As verdades da matemtica so acerca destes objetos

Deste ponto de vista, proposies simples da aritmtica tal como a proposio

expressa pela frase 3 mpar so acerca de objetos abstratos, isto , objetos que no tm

localizao espaciotemporal. Assim, tal como a expresso Scrates na frase Scrates

mortal refere a pessoa Scrates, a expresso 3 na frase 3 mpar refere o nmero 3. Os

referentes dos termos Scrates e 3 tm, contudo, naturezas distintas; no primeiro caso

trata-se de um objeto concreto isto , um objeto que existe no espao e no tempo , mas no

segundo caso trata-se de um objeto abstrato isto , um objeto que existe fora do espao e do

tempo. Alguns proponentes desta viso so: Frege (1884), Gdel (1964) e Shapiro (1967).

Contrariamente, a tese central defendida pelos defensores do nominalismo matemtico

a de que no h entidades matemticas abstratas e, portanto, somos obrigados a aceitar o

seguinte trilema: (a) a matemtica acerca de entidades concretas, ou (b) as verdades da

matemtica no devem ser interpretadas literalmente, ou (c) no h verdades matemticas. Os

defensores daquilo a que podemos chamar nominalismo fisicalista rejeitam (b) e (c) e, por

silogismo disjuntivo, aceitam (a). De acordo com esta viso, as verdades da matemtica em

2 Esta caracterizao daquilo a que chamamos viso platonista da matemtica encontra-se em Linnebo (2013)

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especial da aritmtica so acerca de objetos fsicos comuns (objetos contveis). Esta teoria

foi defendida por Mill (1843) e, mais recentemente, por Phillip Kitcher (1984).

Se rejeitarmos (a) e (c), por outro lado, estamos obrigados a aceitar (b). Isto , estamos

obrigados a aceitar a tese segundo a qual as verdades da matemtica no devem ser

interpretadas literalmente. Deste ponto de vista, a proposio expressa pela frase 3 mpar,

por exemplo, no deve ser entendida como uma afirmao simples acerca de um objeto (o

nmero 3) que exemplifica uma propriedade (a propriedade ser mpar). A forma lgica de

uma proposio deste tipo no Fn, mas sim x x = n Fn, onde n representa o nmero 3

e Fx representa a propriedade ser mpar. Assim, as verdades da matemtica devem ser

interpretadas como condicionais contrafactuais cujas antecedentes so sempre falsas, pois

asseveram a existncia de objetos matemticos abstratos os quais no existem. A idia de um

defensor desta teoria a qual chamamos if-thenism a de que as verdades da matemtica

so verdades vcuas. Alguns proponentes desta tese so: Chihara (1990) e Hellman (1989).

De igual modo, se rejeitarmos a idia de que a matemtica acerca de entidades

concretas e aceitarmos a tese de que as verdades matemticas devem ser interpretadas

literalmente, estaremos comprometidos com (c), isto , com a tese segundo a qual no h

verdades matemticas. Chamamos ficcionalismo a esta viso. Nesta perspectiva, a forma

lgica de proposies expressas por frases tais como 3 mpar de fato Fn; a referncia de

n , contudo, vazia, pelo que tal proposio no verdadeira. Evidentemente, um defensor do

ficcionalismo no tem de estar comprometido com a tese mais forte segundo a qual

proposies matemticas tais como as de que 3 mpar e 2 + 2 = 4 so falsas; so apenas no-

verdadeiras. Hartry Field (1980), Balaguer (1998) e Leng (2010) so alguns dos defensores

desta viso.

O objetivo deste artigo tentar mostrar que tanto o nominalismo fisicalista como o

ficcionalismo no respondem adequadamente ao problema de saber se a matemtica obriga-

nos a postular a existncia de entidades abstratas.

2. Primeiro argumento a favor do platonismo matemtico

Porque no h argumentos diretos a favor da viso platonista da matemtica, o modo

mais promissor de defender esta viso consiste em dizer que no podemos explicar

adequadamente o fato de que muitas proposies da matemtica so verdadeiras, sem

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recorrermos existncia de entidades abstratas. A estratgia de um defensor do platonismo

matemtico consistir, pois, em refutar todas as teorias que pretendem explicar a natureza das

verdades matemticas sem recorrer existncia de uma realidade no-espaciotemporal.

Evidentemente, mostrar que no h alternativas plausveis ao platonismo matemtico no

suficiente para que possamos fornecer uma defesa integral desta tese. Assim, os proponentes

da viso platonista da matemtica tero igualmente de responder a todas as objees feitas a

esta viso.

Consideremos, portanto, o seguinte argumento indireto a favor do platonismo

matemtico:

(1) Se h verdades matemticas, ento h entidades abstratas em virtude das quais estas

verdades existem.

(2) H verdades matemticas.

(3) Logo, h entidades abstratas em virtude das quais estas verdades existem.

A concluso deste argumento corresponde tese platonista, isto , idia segundo a

qual as verdades da matemtica so acerca de entidades no-espaciotemporais. Este, contudo,

no um argumento direto a favor da viso platonista da matemtica, pois a estratgia aqui

usada consiste apenas em ressaltar a idia de que a melhor explicao para o fato de que h

verdades matemticas a existncia de entidades abstratas. Deste ponto de vista, a existncia

de entidades abstratas condio necessria para haver verdades matemticas; isto

precisamente o que expresso por (1).

Embora tanto (1) como (2) sejam disputveis, parece-nos mais razovel rejeitar (1) se

quisermos defender uma tese antiplatonista, porm realista. H dois modos de ser

antiplatonista no que diz respeito natureza das verdades matemticas. Podemos endossar

uma teoria antiplatonista moderada cuja idia central seja a de que a existncia de entidades

abstratas no condio necessria para a existncia de verdades matemticas. Deste ponto de

vista, aquilo que faz uma proposio tal como 2 + 2 = 4 ou 3 mpar ser verdadeira no

a existncia de entidades abstratas, mas sim a existncia de objetos concretos, isto , objetos

que existem no espao e no tempo. Dizemos que uma teoria deste gnero realista, pois

ajusta-se idia de que as nossas teorias matemticas so descries verdadeiras da realidade.

Trata-se, porm, de uma realidade espaciotemporal. Por outro lado, podemos defender uma

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teoria antiplatonista mais controversa segundo a qual no h verdades matemticas. O

argumento dos proponentes desta teoria que todas as proposies matemticas as quais nos

parecem trivialmente verdadeiras tais como 3 mpar e 2 + 2 = 4 so falsas precisamente

porque so acerca de objetos que no existem, nomeadamente, objetos abstratos. Tal como

defensvel que a proposio expressa pela frase "Pgaso alado" falsa porque a referncia

do termo "Pgaso" vazia, tambm defensvel que a proposio expressa pela frase "3

mpar" falsa caso a referncia do termo "3" seja vazia. Ambos os tipos de teorias podem,

contudo, ser caracterizados como formas de nominalismo, posto que rejeitam a idia

platonista segundo a qual a existncia de objetos abstratos aquilo que torna as proposies

da matemtica verdadeiras.

3. O antiplatonismo realista de John Stuart Mill

[...] Todos os nmeros tm de ser nmeros de algo. No h coisas tais como nmeros

em abstrato. Dez deve significar dez corpos, ou dez rudos, ou dez batimentos de um pulso.

Embora os nmeros tenham de ser nmeros de algo, podem, contudo, ser nmeros de

qualquer coisa. [...]

(John Stuart Mill,1843, pg. 243-244)

Jonh Stuart Mill (1843) defendeu uma tese nominalista e realista segundo a qual

conjuntos de objetos concretos so aquilo em virtude do qu as proposies mais elementares

da matemtica, tal como 2 + 2 = 4, so verdadeiras. Dizer que 2 + 2 = 4 significa apenas dizer

que se somarmos qualquer conjunto de quaisquer dois objetos a qualquer outro conjunto de

quaisquer outros dois objetos, obteremos um conjunto de quatro objetos. Mill, entretanto,

parece pensar que os conjuntos de objetos concretos que tornam verdadeiras as proposies

mais simples da aritmtica so apenas aqueles conjuntos de objetos os quais nos causam

impresses sensoriais e os quais podem ser divididos em partes que tambm nos causam

impresses sensoriais. Assim, o que torna a proposio expressa pela frase 2 + 1 = 3

verdadeira o fato de haver conjuntos de trs objetos que nos causam a seguinte impresso

sensorial , e os quais podem ser separados em duas outras partes que nos causam a seguinte

outra impresso sensorial . A idia central de Mill, portanto, a de que as verdades mais

elementares da matemtica so acerca de coisas que podem ser sensorialmente percebidas.

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Portanto, questo de como podemos explicar a existncia de verdades matemticas

sem recorrer a objetos abstratos, Mill responde do seguinte modo: posto que aquilo que faz

uma proposio da matemtica tal como 2 + 2 = 4 ser verdadeira qualquer conjunto de

objetos concretos o qual nos causa algum tipo de impresso sensorial e o qual pode ser divido

em partes de diferentes modos as quais tambm nos causam algum tipo de impresso

sensorial , segue-se que os numerais no devem ser entendidos como nomes de objetos

abstratos; devemos antes entend-los como termos gerais que se aplicam a conjuntos de

coisas. O numeral "3", por exemplo, um termo geral que se aplica a qualquer conjunto de

trs objetos concretos que nos causa alguma impresso sensorial e que pode ser separado em

partes de diferentes modos as quais tambm nos causam impresses sensoriais: aplica-se por

exemplo a um conjunto de trs pedras, o qual nos causa a seguinte impresso sensorial , e

que pode ser separado em outras trs partes, as quais nos causam a seguinte outra impresso

sensorial . . ., e o qual tambm pode ser separado em duas partes, as quais nos causam a

seguinte outra impresso sensorial . O numeral 4, de igual modo, um termo geral que se

aplica a qualquer conjunto de quatro objetos concretos, que nos causa algum tipo de

impresso sensorial e que tambm pode ser separado em partes de diferentes modos, partes as

quais tambm nos causam impresses sensoriais: aplica-se a um conjunto de quatro pedras

(ou de quatro mas), o qual pode ser separado em partes que nos causam a seguinte

impresso sensorial . . . ., ou em partes que nos causam a seguinte outra impresso sensorial ...

., ou em partes que nos causam a seguinte impresso sensorial (.. ..).

Deste modo, o que torna a proposio expressa pela frase "2 + 2 = 4" verdadeira

qualquer conjunto de quatro objetos concretos que possa ser separado em dois outros

conjuntos de dois objetos que somados resultam num conjunto de quatro objetos. Neste

sentido, dizer que 2 + 2 = 4 significa apenas dizer que se somarmos um conjunto de dois

objetos concretos a outro conjunto de dois outros objetos concretos obteremos um conjunto de

quatro objetos concretos. Logo, perfeitamente possvel explicar a existncia de verdades

matemticas sem recorrer a entidades abstratas. Mill rejeitaria, portanto, (1); isto , rejeitaria a

tese segundo a qual se h verdades matemticas, ento h entidades abstratas em virtude das

quais estas verdades existem.

Ser a proposta de Mill razovel? Frege (1884) levantou uma srie de objees a esta

proposta. Consideremos a idia defendida por Mill segundo a qual aquilo que torna a

proposio expressa pela frase 2 + 1 = 3 verdadeira qualquer conjunto de trs objetos

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concretos o qual nos causa a seguinte impresso sensorial , e o qual pode ser separado em

partes que nos causam a seguinte outra impresso sensorial . A primeira objeo de Frege

consiste em dizer que, se o que torna a proposio expressa pela frase 2 + 1 = 3 verdadeira

um conjunto de objetos que pode ser separado em partes, ento a proposio de que 2 + 1 = 3

contingentemente verdadeira. Caso todos os objetos concretos existentes no mundo

estivessem atados uns aos outros de modo a no poderem ser separados, ento no haveria

conjuntos de objetos concretos os quais pudessem ser separados em partes. Assim, aquilo que

torna a proposio 2 + 1 = 3 verdadeira no existiria, pelo que esta proposio no seria

verdadeira. Entretanto, afirmar que verdades elementares da aritmtica tais como 2 + 2 = 4 e

2 + 1 = 3 so contingentemente verdadeiras parece-nos algo pouco razovel. Logo, a teoria

nominalista de Mill implausvel, dado que implica que as verdades mais elementares da

aritmtica no so verdades necessrias.

A segunda objeo apresentada por Frege consiste em dizer que se a tese milliana

segundo a qual os numerais so termos gerais que se aplicam apenas a conjuntos de objetos

concretos que nos causam impresses sensoriais e que podem ser separados em partes for uma

tese verdadeira, ento o termo 0 no seria um numeral, posto que no faz sentido dizer que

este termo se aplica a algum conjunto de objetos concretos que possa ser separado em partes.

De igual modo, no haveria verdades matemticas tais como 0 = 0, ou 0 + 0 = 0, pois no faz

sentido dizer que tais verdades so acerca de conjuntos de objetos concretos que nos causam

algum tipo de impresso sensorial e que podem ser separados em partes de diferentes modos,

partes as quais tambm nos causam algum tipo de impresso sensorial.

A terceira objeo apresentada por Frege consiste em atacar a idia de Mill segundo a

qual a definio de qualquer nmero afirma a existncia de um conjunto de objetos concretos

o qual nos causa algum tipo de impresso sensorial. Se esta idia estiver correta, ento o

numeral 3, por exemplo, nada mais do que um termo geral que se aplica apenas a

conjuntos de objetos concretos que nos causam algum tipo de impresso sensorial. Deste

ponto de vista, portanto, o termo geral 3 no se aplica a uma coleo de trs badaladas, pois

embora uma badalada seja uma entidade concreta dado que existe no espao e no tempo ,

um conjunto de trs badaladas no parece ser um conjunto que possa ser separado em partes

as quais nos causam a seguinte impresso sensorial . Ao usarmos a expresso As ltimas

trs badaladas do sino estaramos, portanto, a cometer um erro categorial, visto que

estaramos comprometidos com o falso pressuposto de que um conjunto de trs badaladas

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pertence classe dos conjuntos de objetos concretos que podem ser separados em partes que

nos causam algum tipo de impresso sensorial. De igual modo, o uso das expresses trs

cores e trs mtodos diferentes de resolver uma equao constituiriam tambm erros

categoriais.

Um defensor da teoria de Mill poderia, contudo, simplesmente no fazer qualquer

apelo a conjuntos de objetos concretos que nos provocam impresses sensoriais. Bastaria

dizer que aquilo que torna as proposies mais elementares da aritmtica verdadeiras so

conjuntos de objetos concretos, independentemente de serem conjuntos que nos causam

algum tipo de impresso visual. Neste sentido, a terceira objeo de Frege poderia ser

respondida, pois os numerais so agora entendidos no como termos gerais que se aplicam

apenas a conjunto de objetos concretos os quais podem ser divididos em partes que nos

causam algum tipo de impresso sensorial, mas sim como termos gerais aplicveis a qualquer

conjunto de objetos concretos, sem restries. O numeral 3 aplica-se a qualquer conjunto de

trs objetos concretos, o numeral 4 aplica-se a qualquer conjunto de quatro objetos

concretos, e assim por diante.

Uma maneira de responder primeira objeo de Frege consiste em dizer que o

nominalismo de Mill no implica que as verdades elementares da aritmtica so verdades

contingentes; se interpretarmos estas verdades como verdades condicionais e esta parece ser

a estratgia de Mill , podemos conservar a idia de que as verdades elementares da

aritmtica so verdades necessrias. Assim, dizer que 2 + 2 = 4 significa apenas dizer que se

juntarmos um conjunto de dois objetos a qualquer outro conjunto de dois objetos, ficamos

com um conjunto de quatro objetos, e apenas isto que torna a proposio expressa pela frase

2 + 2 = 4 verdadeira. No entanto, mesmo que no houvesse quaisquer objetos, esta

proposio seria ainda assim verdadeira, posto que a sua antecedente seria falsa; se no h

quaisquer objetos, ento no podemos juntar um conjunto de dois objetos a outro conjunto de

dois objetos. Dizemos, pois, que no h circunstncias possveis nas quais a proposio

expressa pela frase Se juntarmos um conjunto de dois objetos a outro conjunto de dois

objetos, ficamos com um conjunto de quatro objetos no seja verdadeira. Logo, esta

proposio uma verdade necessria.

Outra objeo que podemos levantar ao nominalismo de Mill a qual est relacionada

segunda objeo de Frege consiste em dizer que, embora a teoria de Mill permita-nos

explicar a verdade das proposies elementares da aritmtica sem recorrer a entidades

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abstratas, estaremos comprometidos com a existncia de conjuntos, se a aceitarmos. Em

primeiro lugar, a nica maneira de explicar a verdade das proposies de que 0 = 0 e de que 0

+ 0 = 0 sem recorrer a objetos abstratos admitir a existncia de conjuntos vazios aos quais o

termo 0 se aplica. Em segundo lugar, ao afirmarmos que aquilo que explica a verdade das

proposies elementares da aritmtica tal como 2 + 2 = 4 o fato de haver conjuntos de

objetos concretos que podem ser somados uns aos outros, estamos comprometidos com a

existncia de conjuntos.

Entretanto, podemos rejeitar a idia de que um conjunto de objetos concretos seja uma

entidade abstrata, isto , uma entidade sem localizao espaciotemporal. Um defensor do

nominalismo de Mill poder dizer que um conjunto de objetos concretos nada mais do que

a matria a qual constitui os seus elementos. Assim, o conjunto de trs ovos, por exemplo,

nada mais do que a matria que constitui os trs ovos. Porm, se aceitarmos esta explicao

acerca da natureza dos conjuntos de objetos concretos, estaremos obrigados a dizer que o

conjunto formado pela Torre Eiffel e pelo Monte Everest, por exemplo, idntico ao conjunto

do conjunto formado pela Torre Eiffel e pelo Monte Everest, pois ambos so constitudos

pelos mesmos objetos concretos e, portanto, pela mesma matria. Logo, no nos seria

permitido aceitar a existncia de conjuntos de ordem maior que um; no conseguiramos, pois,

explicar a verdade de algumas teorias hierrquicas dos conjuntos, como a teoria dos conjuntos

de Zermelo-Fraenkel3.

A resposta a esta objeo consiste em dizer que pelo menos a verdade das proposies

elementares da aritmtica tais como 2 + 2 = 4 pode sim ser explicada sem que se recorra

a qualquer noo de conjunto. Deste ponto de vista, o que explica estas verdades a

existncia de objetos concretos que podem ser divididos em partes iguais, as quais constituem

na verdade outros objetos. Assim, o que torna a proposio expressa pela frase 2 + 2 = 4

verdadeira qualquer objeto que possa ser divido em quatro partes iguais; dizer que 2 + 2 = 4

significa apenas dizer que se h algum objeto o qual possa ser dividido em quatro partes

iguais, ento se somarmos duas partes deste objeto s outras duas partes, obteremos quatro

partes; nenhuma noo de conjunto de objetos concretos usada aqui.

Outra forma bastante mais simples de explicar o que torna as proposies mais

elementares da aritmtica verdadeiras sem recorrer a objetos abstratos consiste em dizer que

tais proposies so verdadeiras em virtude de haver objetos concretos, independentemente de

3 Esta objeo tese de que conjuntos de objetos concretos possam ser identificados com agregados de matria

est em Balaguer (1998, pg. 106).

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serem objetos concretos que podem ser divididos em partes. Neste sentido, o que torna a

proposio 2 + 2 = 4 verdadeira o fato de que se juntarmos quaisquer dois objetos,

obteremos quatro objetos. A desvantagem de adotar esta alternativa mais simples, na qual

explicamos a verdade de proposies do tipo 2 + 2 = 4 no em termos de objetos concretos

que podem ser divididos em partes iguais, mas em termos de objetos concretos apenas

independentemente de serem objetos que podem ser divididos em partes iguais , que no se

consegue explicar a verdade de outras proposies elementares da aritmtica sem que se

recorra novamente existncia de conjuntos. No conseguimos explicar, por exemplo, a

verdade da proposies de que 3 impar, visto que no faz sentido dizer que um objeto

tomado isoladamente tem a propriedade de ser mpar (ou par). O que faz algum sentido dizer

se quisermos explicar a verdade deste tipo de proposies sem postular a existncia de

objetos abstratos os quais exemplificam as propriedades de ser mpar e de ser par,

respectivamente que tais proposies so verdadeiras em virtude de haver conjuntos de

objetos concretos os quais ou tm a propriedade de ser mpar, ou a propriedade de ser par.

Assim, um conjunto mpar se no pode ser divido em partes iguais; todos os conjuntos de

trs objetos concretos so, portanto, mpares, assim como tambm o so todos os conjuntos de

cinco objetos, de sete objetos e assim por diante. Por outro lado, um conjunto de objetos

concretos par, se pode ser dividido em partes iguais, pelo que todos os conjuntos de dois

objetos tm a propriedade de ser par, assim como todos os conjuntos de quatro objetos, seis

objetos e assim sucessivamente. Nesta perspectiva, o que torna a proposio expressa pela

frase 3 mpar verdadeira qualquer conjunto de trs objetos concretos e o que torna a

proposio expressa pela frase 4 par verdadeira qualquer conjunto de quatro objetos

concretos. Esta alternativa, contudo, pressupe a existncia de conjuntos, pois o que

exemplifica as propriedade ser mpar e ser par no so objetos, mas sim conjuntos de objetos.

Todavia, se explicarmos a existncia de verdades matemticas em termos de objetos

que podem ser divididos em partes iguais, conseguimos explicar o que torna proposies do

tipo 3 mpar e 4 par verdadeiras, sem usar a noo de conjunto e, portanto, sem nos

comprometermos com a existncia deste tipo de entidade. Uma maneira partida promissora

de formular tal explicao consiste em dizer que aquilo que exemplifica a propriedade ser

mpar qualquer objeto concreto que pode ser divido em trs partes iguais, ou em cinco

partes iguais, ou em sete partes iguais; isto , qualquer objeto que possa ser dividido em um

nmero mpar de partes um objeto mpar. De igual modo, aquilo que exemplifica a

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propriedade ser par qualquer objeto que possa ser divido em quatro, ou em seis partes, ou

em oito partes: isto , qualquer objeto que possa ser dividido em um nmero par de partes

um objeto par. Segue-se desta explicao, contudo, que duas coisas podem ser

simultaneamente par e mpar. Um objeto cujo comprimento seja 10 centmetros, por exemplo,

tanto pode ser divido em cinco partes iguais (de 2 centmetros cada uma), como pode ser

dividido em quatro partes iguais (de 2,5 centmetros cada uma), pelo que de acordo com esta

viso, um objeto cujo comprimento seja 10 centmetro simultaneamente par e mpar.

4. O nominalismo antirrealista de Hartry Field

[...] H bons argumentos para considerarmos a matemtica padro como um corpo de

verdades? [...]

Hartry Field (1980, pg. 7)

Visto que no podemos explicar facilmente a existncia de verdades matemticas sem

recorrer a entidades abstratas, parece no haver boas razes para rejeitarmos (1). Resta-nos

saber, portanto, se a negao de (2) plausvel.

A idia central dos defensores daquilo a que chamamos ficcionalismo a de que as

nossas teorias matemticas no so verdadeiras precisamente porque so acerca de entidades

que no existem, nomeadamente, entidades abstratas. Tal como defensvel que a proposio

de que Pgaso alado no verdadeira caso a referncia do termo Pgaso seja vazia ,

tambm defensvel que a proposio de que 3 mpar no verdadeira, caso a referncia do

termo 3 seja vazia. Assim, dado que no podemos explicar a existncia de verdades

matemticas sem postular a existncia de entidades abstratas, estamos obrigados a aceitar a

viso plantonista da matemtica, ou a rejeitar a existncia de verdades matemticas. Um

defensor do ficcionalismo argumentar, portanto, que a inexistncia de verdades matemticas

mais plausvel do que a viso plantonista da matemtica, visto que se aceitarmos o

platonismo matemtico, seremos incapazes de explicar como possvel haver conhecimento

de proposies que so acerca de objetos com os quais no temos qualquer tipo de contato4. O

4 Esta uma objeo epistmica contra a viso platonista da matemtica, proposta originalmente por Benacerraf

(1973). Muito sucintamente pode ser formulada do seguinte modo: (1) Se as verdades da matemtica fossem

acerca de objetos sem localizao espaciotemporal (objetos abstratos), ento seriam acerca de objetos com os

quais no poderamos ter qualquer tipo de contato uma vez que ns, agentes cognitivos, estamos localizados no

espao e no tempo. (2) E se fossem acerca de objetos com os quais no podemos ter qualquer tipo de contato,

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problema com este tipo de alternativa, parece-nos, contudo, bvio. Em primeiro lugar, a idia

segundo a qual no h verdades matemticas bastante implausvel. Se as proposies as

quais constituem as nossas teorias matemticas fossem falsas, a matemtica no teria qualquer

tipo de poder explicativo. Em segundo lugar, a atitude de um defensor do ficcionalismo de

rejeitar o platonismo matemtico com base nos argumentos epistmicos incoerente, visto

que a premissa central destes argumentos a tese quase indisputvel de que h

conhecimento matemtico. Ora, se h conhecimento matemtico, ento h verdades

matemticas. Mas se h verdades matemticas, ento o ficcionalismo falso.

Ademais, consideremos o seguinte argumento contra o ficcionalismo5:

(4) Algumas proposies matemticas formam uma parte indispensvel das nossas teorias

empricas das teorias da fsica, por exemplo.

(5) Muitas dessas teorias so verdadeiras.

(6) Mas se algumas proposies matemticas formam uma parte indispensvel das nossas

teorias empricas e se muitas dessas teorias so verdadeiras, ento h verdades matemticas.

(7) Logo, h verdades matemticas.

A estratgia de Hartry Field (1980) para responder a este argumento consiste em

rejeitar (4). Field pretende mostrar que todos os usos de noes matemticas nas cincias

empricas podem ser explicados de um ponto de vista nominalista. Ao usarmos proposies

que envolvem noes matemticas, tal como a de nmero, podemos sempre interpret-las de

modo a eliminar tais noes. Consideremos, por exemplo, a seguinte proposio: o corpo X

tem 10 metros. Do ponto de vista de um defensor do platonismo, a forma lgica desta

proposio envolver alguma quantificao sobre objetos abstratos. Field, por outro lado,

interpreta-a do seguinte modo: existe um particular concreto a o qual tem a propriedade de ter

o mesmo comprimento que outro particular concreto b concatenado a si mesmo 10 vezes.

Evidentemente, esta interpretao envolve a noo matemtica de nmero, mas a expresso

b concatenado a si mesmo 10 vezes poderia ser substituda pelo seguinte: b * b * b* b * b *

b * b * b * b * b, onde * representa a relao de concatenao. No claro, porm, se todas

ento seriam acerca de objetos incognoscveis. (3) Mas se as verdade da matemtica fossem acerca de objetos

incognoscveis, ento no haveria conhecimento matemtico. (4) Evidentemente, porm, h conhecimento

matemtico. (5) Logo, as verdades da matemticas no so acerca de objetos incognoscveis, pelo que no so

acerca de objetos abstratos. 5 Esta uma das formulaes daquilo a que chamamos argumento da indispensabilidade.

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as aplicaes da matemtica s cincias empricas poderiam ser explicadas de um ponto de

vista nominalista (considere-se, por exemplo, proposies tais como (d) a presso exercida

por X sobre Y de 10N/m2, ou (e) a temperatura de Z de 50 C.) Uma srie de objees

foram levantadas ao programa nominalista de Field, dentre as quais a de que a sua estratgia

de tentar eliminar as noes matemticas das nossas teorias empricas no pode ser estendida

mecnica quntica, muito embora talvez funcione para a mecnica clssica. Tal objeo foi

proposta por Malament (1982).

Outra estratgia para resistir ao argumento da indispensabilidade consiste em rejeitar

(6). Esta a estratgia de Balaguer (2011). Do seu ponto de vista, (6) falsa, dado que

podemos explicar o fato de que a matemtica indispensavelmente aplicvel s cincias

empricas sem nos comprometermos com a tese de que h verdades matemticas. Tal

explicao consiste no seguinte: imaginemos que W uma teoria emprica qualquer, a qual

pode ser expressa como a conjuno das seguintes proposies: P, Q, R. P uma proposio

puramente matemtica, Q e R so proposies empricas que visam descrever algum aspecto

da realidade fsica, por exemplo. Evidentemente, se P for falsa, W ser falsa, visto que pelo

menos uma das suas conjuntas falsa. Contudo, se Q e R forem verdadeiras sendo P falsa ,

W fornecer-nos- ainda assim uma descrio adequada da realidade emprica, visto que o

mundo fsico tal como deveria ser para que W fosse verdadeira. A idia de Balaguer que

uma teoria pode ser estritamente falsa, mas ainda assim descrever adequadamente algum

aspecto da realidade.

Outra objeo ao ficcionalismo, por outro lado, consiste em dizer que no seramos

capazes de explicar a objetividade da matemtica, se aceitarmos a tese ficcionalista de que

no h verdades matemticas. Se no h verdades matemticas, o que faz 2 + 2 = 4 ser correta

e 2 + 2 = 5 no o ser? Field responde a esta objeo apelando idia de que uma proposio

matematicamente aceitvel se pode ser derivada de um conjunto de axiomas, os quais tambm

devem ser matematicamente aceitveis. Esta resposta, contudo, no funciona, pois a mesma

objeo aplica-se aceitabilidade dos axiomas matemticos. O que faz com que o axioma de

Peano segundo o qual 0 no o sucessor de qualquer nmero natural seja matematicamente

aceitvel, mas a sua negao no?

5. Concluses

Conclumos que a tarefa de explicar a existncia de verdades matemticas sem

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recorrer a entidades abstratas dificilmente ser bem-sucedida. Se aceitarmos o nominalismo

defendido por John Stuart Mill, ficamos com o problema de explicar como possvel que as

verdades matemticas sejam verdades necessrias. Por outro lado, se entendermos as verdades

matemticas como verdades condicionais, poderemos conservar a idia de que todas as

verdades matemticas so verdades necessrias, mas estaremos comprometidos com a tese

bastante controversa de que algumas verdades matemticas so vacuamente verdadeiras.

Ademais, um defensor do nominalismo milliano estar inevitavelmente comprometido com a

existncia de conjuntos, pois embora seja possvel explicar a verdade de proposies tais

como 2 + 2 = 4 e 3 mpar sem usar a noo de conjunto, no fcil explicar a verdade da

proposio de que 0 no o sucessor imediato de qualquer nmero natural sem fazer

referncia ao conjunto vazio. Por outro lado, a alternativa ao nominalismo de Mill,

nomeadamente, o ficcionalismo de Hartry Field tambm enfrenta vrias dificuldades. Em

primeiro lugar, a idia segundo a qual no h verdades matemticas extremamente

implausvel. Em segundo lugar, a atitude dos defensores do ficcionalismo de rejeitar a tese

platonista com base nos argumentos epistmicos uma atitude incoerente, dado que uma das

premissas centrais destes argumentos afirma que h conhecimento matemtico. Mas se h

conhecimento matemtico, ento a tese ficcionalista segundo a qual no h verdades

matemticas falsa.

Deste modo, conclumos que no podemos explicar a existncia de verdades

matemticas sem recorrer existncia de entidades abstratas. A viso platonista da

matemtica , pois, a tese mais plausvel.

BIBLIOGRAFIA

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University Press.

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O PERCURSO DO LGOS EM GRGIAS DE PLATO:

DO DILOGO AO ANLOGO

Edmilson Carvalho Barbosa1

RESUMO: Em Grgias, Plato descreve Scrates dialogando com o personagem homnimo na

expectativa de que este defina e delimite bem a atividade que ele exerce: a retrica. Para que esta

definio seja obtida, Scrates dialoga. No entanto, ao longo do dilogo, o filsofo insistentemente

compara a retrica com diversas outras atividades at que toda esta comparao realizada se consagra

na fala dos gemetras: uma fala cuja natureza explicitamente analgica. Procedendo assim,

atravs de um dilogo comparativo que por fim se consolida sob a forma do que anlogo, o filsofo

consegue definir a natureza de cada atividade pelos limites que elas mesmas possuem e compartilham

em comum, demonstrando o permetro e o lugar muito prprio que cada uma exerce e ocupa dentro

deste campo que o territrio prprio do , onde os diversos discursos emergem e se diferenciam.

Estando a demonstrar atravs da fala analgica dos gemetras os limites e as fronteiras que estas

atividades compartilham em comum, o filsofo est, nada mais, nada menos do que agindo como um

legtimo gemetra, j que a geometria desde a sua origem aquela arte que por excelncia se ocupa

em estabelecer limites e fronteiras.

Portanto, no dilogo Grgias, Scrates procede como um gemetra: ao dialogar, compara; ao

comparar, estabelece analogias; ao estabelecer analogias, demonstra os limites que as atividades tm

entre si e que ao mesmo tempo as definem mutuamente. Eis o propsito deste artigo: descrever como

este procedimento se realiza ao longo desta obra, particularmente no que tange ao modo como o

caminha e avana na forma do dilogo at se constituir na forma do anlogo.

PALAVRAS-CHAVE: ; dilogo; analogia; definio; geometria; Plato.

ABSTRACT: At Gorgias, Plato describes Socrates dialoguing with the eponymous character with the

expectation that he define and well delimit the activity that he exercises: the rhetoric. For this

definition be obtained, Socrates dialogues. However, during the dialogue, the philosopher repeatedly

compares the rhetoric with various other activities until all this made comparison is consecrated in the

"speech of geometers": a speech whose nature is explicitly analogical. By doing so, through a

comparative dialogue that finally is consolidated in the form of what is analogical, the philosopher

can define the nature of each activity by the limits that they themselves have and share in common,

demonstrating the perimeter and the very own place that each exercises and occupies within this field

that is the own s territory, where the various discourses emerge and differ. Being to demonstrate

through the analogical speak of geometers the limits and boundaries that these activities share in

common, the philosopher is no more and no less than acting as an authentic geometer, since the

geometry from its origin is that art par excellence engaged in setting limits and boundaries.

Therefore, in the Gorgias dialogue, Socrates proceeds as a geometrician: dialoguing, he compares;

comparing, he establishes analogies; establishing analogies, he demonstrates the limits that the

activities have each other and that at the same time define them mutually. This is the purpose of this

article: to describe how this procedure is made along this work, particularly with respect to way how

the walks and advances in the form of dialogue until to be constituted in the form of analogy.

KEYWORDS: ; dialogue; analogy; definition; geometry; Plato.

1 Programa de Ps-Graduao em Lgica e Metafsica da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(PPGLM/UFRJ).

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Desde o incio da obra, Scrates impe uma condio s respostas que espera obter

atravs das perguntas feitas ao longo do dilogo que entabula com seus interlocutores: elas

devero ter conciso (), pois com tal conciso se consegue dizer qual a arte de

Grgias e como se pode cham-lo: ela, de retrica; ele, de retrico (448e-449a). A conciso,

portanto, figura desde o primeiro momento como uma exigncia que procura delimitar o

discurso at que uma coisa possa ser chamada e assim definida: quanto maior for a

delimitao, melhor ser a definio. , alis, o que se v logo depois de Grgias ter definido

concisamente o objeto especfico da retrica, quando Scrates admite que sobre o que parece

evidente h de se perguntar e se perguntar, tendo perguntado para que se pudesse delimitar

() o discurso () passo a passo (454b-c).

Como se v, a definio que Scrates almeja obter da retrica depende do ato de

delimitar (), em impor limites (). Alis, em grego, o prprio verbo empregado

para designar o ato de definir que advm do substantivo que significa termo,

fronteira, confim ou limite, traduzindo assim a ao de fixar um limite, atravs do qual a

prpria coisa delimitada e diferenciada. E aqui, a conciso () aparece como uma

exigncia explcita para realizar uma delimitao. Alis, assim Olimpiodoro j compreendia

esta exigncia, ao analisar este dilogo no sculo VI da nossa era. Ao investigar o modo como

o filsofo particularmente compara os discursos grandes com os concisos nesta obra, ele dir

que na verdade, espantoso abarcar muitas () coisas com poucas (),

agraciando com poucas () respostas (OLYMPIODORUS, Commentary on Platos

Gorgias, 3.12, 4-5 e 3.13, 11-12), deixando a entender assim o quo surpreendente poder

reduzir o muito ao pouco e que o discurso conciso exatamente aquele que justifica sua

surpresa: ele se limita a pouco, ou seja, ao menor nmero de termos possveis. Portanto, para

este comentador antigo, a conciso implica uma delimitao que obtida atravs do uso de

poucos termos, poucas palavras. Um discurso conciso seria, sob este ponto de vista, um

discurso curto, enxuto, como habitualmente dizemos.

o que se percebe quando se considera justamente a passagem 449b-c que

Olimpiodoro estava a analisar, quando Scrates pergunta a Grgias se ele no estaria disposto

a dar cabo das perguntas com respostas tal como agora dialogavam, reservando para mais

tarde os discursos extensos () com a qualidade que Plo empregou, se dispondo a

responder com conciso () o que lhe fosse perguntado. Grgias responde ento que,

apesar de algumas respostas necessitarem de discursos grandes (), no h como deixar

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=perai%2Fnesqai&la=greek&can=perai%2Fnesqai0&prior=e(/nekahttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=lo%2Fgon&la=greek&can=lo%2Fgon0&prior=to/nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=pe%2Fras&la=greek&can=pe%2Fras0&prior=dikai/wn

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de experimentar maior conciso (), pois isto uma das coisas de que ele se

vangloria, j que ningum faz o mesmo com mais conciso () do que ele.

Scrates diz ento que disto que ele necessita e pede para Grgias fazer uma exibio da

breviloquncia (), deixando a grandiloquncia () para mais tarde, o

que Grgias confirma que ir fazer, para que o filsofo viesse a afirmar que no havia ouvido

ningum discursar mais concisamente (). Como se v, nesta passagem em

que os interlocutores entram num acordo sobre o tamanho e a extenso do discurso que

devero empregar, a contraposio dos termos notria e revela que a conciso justamente

o atributo que se ope ao que extenso () e grande (), sendo portanto sinnima

ou equivalente daquilo que curto e pequeno, vindo a caracterizar assim os discursos

enxutos, aqueles que se delimitam a poucos termos e cuja delimitao tanto espantou

Olimpiodoro.

J para Dodds (DODDS, 1990, pp. 195-196, 198, 200 e 203), a exigncia de conciso

implica tambm uma delimitao. Porm, uma delimitao que acaba levando Grgias a ver

aquilo que diz respeito especificamente retrica dentre todas as artes exemplificadas: afinal,

quando Grgias d sua primeira definio formal de retrica, dizendo que ela diz respeito a

discursos (449e), tal descrio se mostra ainda muito ampla para este comentador, visto

que ela se aplica tambm a outras artes como o prprio Scrates ir demonstrar. O mesmo

ocorre, alis, com as definies subsequentes que Grgias ir fornecer: quando ele afirma por

uma segunda vez que a retrica diz respeito maior das atividades humanas e mais

excelente (451d-e), o filsofo precisa demonstrar que outras artes tambm creem que

procedem deste modo. E antes mesmo de alcanar a definio concisa do objeto prprio da

retrica e em razo dele ter dito que sua arte diz respeito ao ato de persuadir, por meio do

discurso, os juzes no tribunal, os senadores no conselho, os cidados nas assemblias ou em

toda outra reunio que seja uma reunio poltica (452e), o filsofo tentar sintetizar tudo que

este interlocutor dissera, observando que ele parecia ter esclarecido mais aproximadamente

aquilo que acreditava ser a arte da retrica mas que, se o compreendera bem, ele estava a dizer

que a retrica era uma artes da persuaso e que toda sua atividade tinha, como principal, este

fim (452e-453a).

Percebe-se assim que, se a exigncia de conciso, sob a perspectiva de Olimpiodoro,

implica somente em reduzir o discurso a poucos elementos, tornando-o enxuto, j sob a

perspectiva deste comentador moderno tal exigncia permite que se passe de um discurso

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mais amplo e genrico para outro que mais especfico, traduzindo de modo conciso

justamente aquilo que prprio da coisa que se pretende definir. Sob este ponto de vista, um

discurso conciso seria aquele que se reduz na medida em que traduz as caractersticas

prprias e essenciais da coisa que se pretende definir. Um discurso desta natureza seria

aquele que talvez pudssemos chamar de essencial, de modo que uma definio no seria

outra coisa seno isso: um discurso que traduz e diz aquilo que uma coisa propriamente .

Assim pelo menos j a compreendia Aristteles, para quem uma definio um discurso que

designa o que uma coisa (ARISTTELES, Tpicos, 101b38).

E talvez no possa ser mesmo de outro modo. Afinal, uma definio no pode ser feita

por quaisquer termos, por mnimos que sejam: tais termos devem ser capazes de traduzir

aquilo que a coisa . A conciso, portanto, no pode implicar somente uma delimitao feita

com poucas palavras: ela tem que se delimitar ao essencial, quilo que prprio da coisa que

se pretende definir; seno, no temos uma boa definio. Como Irwin observa (IRWIN, 1995,

pp. 112-113), a busca de Scrates por uma definio implica dizer o que uma coisa

propriamente , sendo para isso necessrio se reportar a uma propriedade sua que seja ao

mesmo tempo fundamental e explicativa: fundamental na medida em que abarca todos os seus

casos e explicativa na medida em que explica todas as outras propriedades suas. A conciso,

portanto, exige que se delimite e reduza o discurso quilo que prprio da coisa e que por fim

ir defini-la, vindo a caracterizar o procedimento que desde o incio do dilogo o filsofo

impe a cada resposta dada. Com tal procedimento, ele espera vir a alcanar no fim uma

definio concisa, reduzindo assim tudo o que foi conversado anteriormente com o

interlocutor a um mnimo essencial.

A conciso est presente assim na ltima resposta dada e traduz aquilo que Grgias

acredita que a retrica tem de mais especfico, sendo alcanada por uma delimitao que se

subordina fundamentalmente quilo que uma coisa tem de mais prprio e essencial, como

Dodds e Irwin observam. Todavia, apesar da conciso vir a caracterizar mais apropriadamente

o resultado final que se obtm atravs deste procedimento, h de se observar que ela

caracteriza tambm suas etapas anteriores, garantindo assim sua consecuo. E, de fato, as

etapas anteriores deste procedimento so compostas justamente por perguntas e respostas

elaboradas com poucos termos com conciso, como havia dito Olimpiodoro. Tal conciso

de termos quem acaba por indicar desde o incio que o interlocutor ter que proceder

inevitavelmente a uma reduo do prprio discurso, estando por isso presente em algumas

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perguntas que o filsofo elabora, bem como em algumas respostas dadas pelo seu interlocutor,

sejam na forma de um simples sim, sejam na forma de frases que expressam concordncia em

relao ao que foi dito.

, alis, o que se pode ver desde o no incio do dilogo, na passagem 449a, quando

Scrates pergunta a Grgias: de que voc deve ser chamado e qual a arte de que tem

conhecimento?, ao que Grgias responde de forma concisa: de retrica, oh Scrates. O

filsofo ento lhe enderea uma pergunta menor e mais concisa, para que ele complete a

pergunta anterior: ento deve-se chamar-te de retrico?. Pergunta que, no entanto,

respondida quase concisamente, j que seu interlocutor se estende, acrescentando algumas

observaes que parecem mais apndices: e de bom retrico, oh Scrates, se deseja me

chamar do que de fato me gabo, como disse Homero. Tal procedimento o que se repete e

se reafirma atravs das perguntas e respostas que se sucedem ao longo do dilogo, quando o

filsofo volta a tomar as artes como exemplos exemplos que, cabe lembrar, ajudam ao

interlocutor a delimitar suas respostas. Na passagem 449d, Scrates pergunta: ocorre

retrica dizer respeito de que coisas? Por exemplo, a tecelagem diz respeito manufatura de

roupas, no diz?. Comparao com que o professor de retrica concorda, j que responde de

forma concisa com um simples sim, dando oportunidade para Scrates seguir mais adiante

com outro exemplo expresso de modo conciso: e a msica no diz respeito composio de

melodias?. Pergunta que Grgias responde novamente com um conciso sim, a ponto de o

filsofo exclamar: por Hera, Grgias! Tuas respostas me agradam, pois responde de um

modo muito conciso ().

Mas alm da conciso caracterizar algumas perguntas e respostas afirmativas ao longo

do dilogo, ela caracteriza tambm algumas snteses que o filsofo elabora a meio caminho e

que passam a servir como um exemplo a ser seguido e tomado pelo seu interlocutor para

alcanar a conciso final. Como vimos, depois de Grgias ter dito que a retrica diz respeito

ao ato de persuadir, por meio do discurso, os juzes no tribunal, os senadores no conselho, os

cidados nas assemblias ou em toda outra reunio que seja uma reunio poltica (452e),

acrescentando logo em seguida que com tal tipo de poder, far escravo o mdico e

escravizar o ginasta, tornando-se manifesto para os outros que o financista acumula riquezas

no para si, mas para aquele que tem o poder de falar e persuadir a multido (452e), o

filsofo dir que ele parecia ter esclarecido mais aproximadamente aquilo que acreditava ser

a arte da retrica mas que, se o compreendera bem, ele estava a dizer que a retrica era uma

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artes da persuaso e que toda sua atividade tinha, como principal, este fim (452e-453a). Ao

se expressar assim, empregando o advrbio prximo no grau superlativo (), o

filsofo admite que a resposta dada se aproxima da definio concisa que espera obter

proximidade que no entanto poder ser mais estreitada se o seu interlocutor vier a proceder tal

como ele prprio procedeu ao reduzir todo o discurso anterior a uma expresso mais sinttica

que inclusive passa a servir de exemplo para o interlocutor se expressar do modo mais conciso

possvel. o que se percebe pela resposta dada por Grgias ao afirmar que lhe parecia que

Scrates definira () suficiententemente (), pois isto era o que ela, a retrica,

tinha mesmo por principal (453a). Ao se expressar assim, o professor de retrica concorda

com a sntese que o filsofo fez sobre o que ele prprio havia dito anteriormente, indicando

que ela conseguiu definir suficientemente o que pretendiam.

Entretanto, nem sempre o interlocutor concorda com o que filsofo diz e tal

discordncia ser expressa tambm de forma concisa, seja na forma de um simples no ou

atravs de uma curta expresso que indica negao. o que vemos acontecer quando Scrates

decide saber a respeito de qu o indivduo considerado melhor ter que ficar com mais,

retomando os exemplos das artes para que o seu interlocutor pudesse delimitar suas prprias

respostas a ponto de alcanar maior conciso. Na passagem 490d-e do dilogo, Scrates

pergunta a Clicles: de um modo ou de outro, voc no disse que o mais entendido melhor?

Afirmaste ou no?. Neste momento, Clicles concorda, dizendo concisamente: da minha

parte, sim. Porm, na sequncia do dilogo, quando Scrates pergunta se ele no havia

afirmado que necessrio ao melhor ter mais, Clicles nega concisamente e se reexplica,

dizendo: no de comida, nem de bebidas. O filsofo ento insiste em manter seus exemplos,

na expectativa de que seu interlocutor viesse a dizer, de modo conciso, a respeito de qu o

homem considerado melhor deve ter mais. Ele pergunta: mas ento de roupas, j que

necessrio ao maior tecelo ter a maior roupa e andar vestido com as mais variadas e as mais

belas?. Clicles, porm, nega mais uma vez de forma concisa e enftica o exemplo que o

filsofo reiterou ao dizer: que roupa o qu!. Scrates, no entanto, no abandona seu

procedimento e insiste em levar o seu interlocutor por este caminho at alcanar a definio

desejada, dizendo: mas ento de sapatos, pois claro que o mais entendido e melhor tenha

mais. E assim o sapateiro necessita dos maiores sapatos e caminha calado com os mais

variados. Contudo, por mais uma vez, seu interlocutor resiste e nega concisamente o

exemplo proposto pelo filsofo ao dizer que sapato o qu, dizes besteiras!, obrigando-o a

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empregar outro exemplo de arte - agora a do lavrador com suas sementes - para que Clicles

viesse pelo menos a dizer, de forma concisa e bem definida, quem afinal o indivduo por ele

considerado melhor: os que entendem das atividades pblicas e tm um modo prprio de bem

administr-las.

Vemos assim que a conciso, apesar de caracterizar o resultado final que se obtm

atravs deste procedimento comparativo, caracteriza tambm suas etapas anteriores que so

compostas de algumas perguntas e respostas concisas, algumas snteses, vindo a constituir os

passos com que o dilogo propriamente caminha, o prprio ato de dialogar. Como diz Kahn,

Scrates foi o mestre da arte da conversao filosfica por pergunta e resposta, como

ilustrado nos dilogos (KAHN, 1999, p. 302). Dixsaut subscreve tal comentrio: o espao

platnico do aquele dinmico do perguntar e responder (DIXSAUT, 2012,

p.73), acrescentando que ele vir a se transformar na dialtica tal como apresentada na

Repblica. Olimpiodoro mesmo j havia deixado entender situao semelhante ao analisar

especificamente o dilogo Grgias e dizer que, nele, algumas perguntas so dialticas e tem

somente um sim ou no como resposta (OLYMPIODORUS, Commentary on Platos

Gorgias, 3.11, 1-2). Kahn e Benson (KAHN, 1999, pp. 294-296, 300-304; BENSON, 2011, p.

93) sero, no entanto, mais cautelosos do que Dixsaut e Olimpiodoro ao atribuir s perguntas

deste dilogo um carter eminentemente dialtico, j que o ato de dialogar no apresentado

aqui com toda a especificidade tcnica com que a dialtica ser caracterizada na Repblica,

vindo a constituir somente o modo muito prprio como o filsofo emprega o discurso por

oposio ao modo como o retrico o emprega e que so inicialmente distinguidos por sua

extenso, caracterizados respectivamente por sua breviloquncia () e por sua

grandiloquncia (). De fato, o que vemos ocorrer na passagem 448d, quando

Scrates admite que evidente, pelo qu Plo falou, que este tem se dedicado mais

chamada retrica do que a dialogar (), bem como na passagem 449b-c, quando

pergunta a Grgias se ele no estaria disposto a dar cabo das perguntas com respostas tal

como agora dialogavam (), reservando para mais tarde os discursos extensos com

a qualidade que Plo empregou, se dispondo a responder com conciso () o que lhe

fosse perguntado, solicitando-o na sequncia a fazer uma exibio da breviloquncia

(), deixando a grandiloquncia () para mais tarde.

Contudo, por mais que o ato de dialogar no tenha aqui toda a especificidade tcnica

com que a dialtica ser caracterizada na Repblica, h de se observar que isto no significa

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que ele no tenha qualquer tipo de atributo tcnico. Alis, exatamente o contrrio: ele possui

atributos altamente tcnicos, mesmo no tendo sido explicitados formalmente por Scrates.

Afinal, como vimos, esta mesma breviloquncia ou conciso que ele impe s suas

perguntas para que, de passo a passo (), se possa delimitar o discurso (454b-c) a ponto de

alcanar uma definio. E tais perguntas sempre tomam uma arte como um exemplo a ser

seguido; procedimento que, cabe lembrar, Grgias chega a adotar, dizendo que fora conduzido

() belamente (455d-e), o que indica quo metdico este procedimento , sobretudo

se considerarmos que a palavra mtodo () significa atravs de um caminho ( +

): palavra que implica a rota que se toma em uma investigao, como bem observa Gill

(GILL, 2010, p. 172). Tais condies demonstram claramente o quanto o ato de dialogar,

descrito nesta obra, se desenvolve atendendo a exigncias bastantes tcnicas, mesmo que estas

no tenham toda a especificidade tcnica com que a dialtica ser caracterizada na Repblica.

Irwin (IRWIN, 1995, pp. 110-111) chega a observar que o termo muito

pouco especializado para ter uma traduo precisa, uma vez que ele tem um alcance muito

geral, podendo por isso mesmo ser traduzido como conversao ou discusso. Contudo,

acrescenta acertadamente que o termo tem um uso bastante especializado em Grgias, pois se

refere a um tipo de discusso que segue regras bastante definidas por Scrates e que no so

vlidas para qualquer tipo de conversa, dentre as quais a exigncia de se dizer o que uma

coisa e que, como vimos, leva o professor de retrica a buscar e encontrar uma definio

concisa sobre aquilo que diz respeito a sua arte, passo a passo e por conduo. Robinson,

alis, chega a lembrar que um mtodo consiste exatamente nisso: o mtodo ocorre s na

busca e a busca s por meio do mtodo (ROBINSON, 1953, p. 71). No entanto, no faz tal

observao sem acrescentar mais adiante que o procedimento baseado em pergunta-e-

resposta essencial para a descoberta filosfica (ROBINSON, 1953, p. 80), j que as

perguntas so feitas justamente pelo filsofo e no pelo seu interlocutor, servindo-lhe assim

de guia. E isto ocorre porque os parceiros neste empreendimento no so idnticos em funo:

um lidera e outro segue; o lder questiona e o seguidor responde exceto ou pelo menos em

certa medida nos casos em que um homem desempenha ambos papis de uma nica vez,

indicando justamente como exemplo deste caso uma passagem de Grgias (ROBINSON,

1953, p. 77-78).

Nesta passagem, em que Clicles resiste em concordar com as concluses a que fora

levado, ele pergunta a Scrates: voc mesmo no pode percorrer o discurso, tanto falando

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%28ch%3Ds&la=greek&can=e%28ch%3Ds0&prior=tou=http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=u%28fhgh%2Fsw&la=greek&can=u%28fhgh%2Fsw0&prior=kalw=s

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por si mesmo quanto respondendo por si mesmo? (505d). Scrates faz ento alguns

comentrios e atende ao pedido do seu interlocutor, executando exatamente o que ele havia

pedido. Ele diz:

Escuta ento o discurso que revisado desde a origem. O prazer e o bem so a

mesma coisa? No so idnticos, como eu e Clicles concordamos. Dos dois, o

prazer realizado por causa do bem ou o bem por causa do prazer? O prazer por

causa do bem. E o prazer no isto cuja presena nos d prazer, e o bem no isto

cuja presena nos faz bons? Totalmente. Mas no somos bons, ns e todas as outras

coisas que so boas, pela presena de alguma excelncia? o que me parece

necessrio, oh Clicles (506c-d).

Tal passagem, sem sombra de dvida, levanta questes importantes sobre um dilogo

realizado entre duas pessoas e um dilogo que uma pessoa trava consigo prpria, sobretudo

porque o primeiro tem um cunho iminentemente social e o segundo, individual, sendo o

segundo o recurso de que o filsofo se viu forado a lanar mo para chegar a alguma

concluso em funo de tudo o que fora perguntado e respondido anteriormente, levando por

fim o seu interlocutor a reconhec-la e admiti-la, mesmo que a contragosto. Contudo, desta

passagem indicada por Robinson, gostaria de me apropriar particularmente do modo como o

dilogo foi representado, sobretudo porque a etimologia do termo grego implica o

fato de que o discurso, o , tanto se divide quanto atravessado de um lado a outro -

movimentos expressos pela preposio , como esclarece Chantraine (CHANTRAINE,

1977, pp. 275-276) e que se encontram devidamente representados nesta passagem.

Na primeira passagem, Clicles solicita o filsofo a percorrer () o discurso

(), tanto falando quanto respondendo por si mesmo, tal como os dois vinham fazendo

juntos anteriormente: em um dilogo composto por perguntas e respostas concisas. Sob esta

condio, percebe-se que ato de dialogar consiste em um movimento que percorre e atravessa

todo um discurso que parte de uma pergunta e alcana uma resposta que, por sua vez, gera

outra pergunta que leva outra resposta e assim sucessivamente, demarcando todo um

compasso que divide o prprio discurso em perguntas e respostas concisas. Noo, alis, que

se reitera na passagem seguinte, quando o filsofo atende solicitao do seu interlocutor,

pedindo para que ele ouvisse o discurso () que vai ser revisado () desde a

origem (), passando a recapitular e resumir justamente em seguida as perguntas e

respostas anteriormente formuladas. Sob esta condio, percebe-se que o dilogo compe um

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discurso que tem uma origem e um fim: ele se origina com uma pergunta e conclui-se com

uma resposta, ressurgindo at mesmo a cada pergunta feita e a cada resposta dada, visto que

se manifesta reincidentemente atravs de cada pergunta que procura se concluir com uma

resposta que lhe satisfaa. Contudo, como o discurso volta pra trs, procurando revisar tudo o

que foi conversado ao longo das perguntas e respostas anteriores, h de se compreender

tambm que o dilogo consiste em movimento cruzado que, depois de ter ido inicialmente de

c para l, retorna de l pra c, buscando relembrar e sintetizar tudo o que foi a cada passo

admitido e atando assim a origem concluso, mostrando que o se completa e se

realiza na medida em que atravessa as partes que o constituem. Neste sentido, entende-se que

o ato de dialogar compe-se de um que se encontra dividido entre a pergunta do

inquiridor e a resposta do interlocutor e que, por sua vez, levado de c para l e de l pra c,

entrecruzando o que cada um diz e dando um curso muito prprio ao que se diz, j que as

perguntas e respostas concisas de que se compe o dilogo constituem propriamente os passos

com que o avana e caminha at alcanar uma definio e, mais adiante, a fala dos

gemetras, na qual as atividades se definem mutuamente em funo de sua frmula analgica

e qual o filsofo atribui tambm conciso.

Afinal, antes de Scrates demonstrar resumidamente tudo o que dissera atravs desta

frmula analgica, ele observar: para no discursar de modo prolixo (), quero

falar como os gemetras, pois a partir de agora talvez possa acompanhar. (465c). Ao se

expressar assim, entendemos que o filsofo veio discursando de modo prolixo ou

grandiloquente prolixidade ou grandiloquncia pela qual inclusive vir a se desculpar ao

encerrar sua fala geomtrica, dizendo que talvez no seja um procedimento descabido, no

ter te permitido falar atravs de grandes discursos ( ), quando eu mesmo me

estendi em discursos longos (). Mas veja se no tenho uma desculpa de valor: quando

falei com conciso (), no me compreendeu (465d-e). Ao introduzir e encerrar a fala

tpica dos gemetras deste modo, conseguimos compreender que ela concisa por no ter

justamente o atributo a que se ope, uma longa extenso, tal como Olimpiodoro j havia

deixado entender o que a conciso ao analisar a passagem desta obra em que o discurso

grande se antepe ao conciso e que, como vimos, aquele que se limita ao menor nmero de

termos.

Bicudo muito provavelmente subscreveria tal interpretao: ao comentar sua traduo

dos Elementos de Euclides, observa que a prtica deste matemtico contempla com frequncia

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a conciso, pois ao invs dele dizer o quadrado sobre a AB para se referir ao quadrado que

tem por lado a reta AB, diz, na maioria das vezes, o sobre a AB, de modo que a conciso

implica claramente um encurtamento das expresses (BICUDO, 2009, p. 12). E para

fundamentar sua posio, este tradutor se utiliza de uma passagem em que Proclo comenta a

obra do matemtico: preciso a tal obra desembaraar-se de todo o suprfluo, pois isso um

obstculo instruo... Muita preocupao deve ter sido efetuada em relao s clarezas e, ao

mesmo tempo, s concises (), pois os contrrios destas turvam nossa inteligncia

(PROCLUS, A Commentary on the First Book of Euclids Elements, 73.25 a 74.5). No

entanto, como se v, o termo grego no qual Bicudo baseia sua interpretao .

Porm, ele pode ser tomado, sim, como um significador de conciso, j que deriva do verbo

que indica o ato de cortar em pequenos pedaos e reduzir, abreviar o tamanho, mas

que Plato no emprega em Grgias, nem mesmo para se referir conciso do discurso. No

entanto, o filsofo emprega tal verbo na passagem 334d do dilogo Protgoras para se referir

justamente ao dilogo conciso, quando Scrates pede ao interlocutor para reduzir ()

as respostas, tornando-as mais concisas (): um indcio expressivo de que o

discurso que possui tal atributo aquele que se reduz a poucos termos. Proclo mesmo

emprega o termo para se referir a um discurso desta natureza ao propor ao leitor que

revisassem, por agora, com conciso () os discursos sobre teoremas e problemas e

como eles prprios se diferenciam (PROCLUS, A Commentary on the First Book of Euclids

Elements, 200, 6-8).

Contudo, este comentador antigo tambm emprega este termo num mbito

exclusivamente matemtico ao se reportar ao conhecimento da geometria, estereometria,

aritmtica e astronomia:

difcil, para cada conhecimento, escolher e arranjar os elementos de acordo com

uma direo, j que uns conduzem ao todo enquanto outros deste retornam. E h os

que operam com muitos e com poder de juntar-se; outros, com poucos. H os que

empregam demonstraes mais concisas; outros estendem suas teorias em uma

extenso ilimitada (PROCLUS, A Commentary on the First Book of Euclids

Elements,73.15-22).

Sob a perspectiva deste comentador da obra euclidiana, vemos que certos

conhecimentos matemticos possuem mais conciso () quando no estendem

() suas demonstraes e suas teorias em uma extenso () ilimitada (),

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ou seja, quando estas so curtas, compostas com poucos termos e, por consequncia, que a

conciso tpica da fala dos gemetras caracteriza uma demonstrao feita com poucos termos.

E de fato ela o : ao dizer, justamente na sequncia da fala que a indumentria est para a

ginstica como a sofstica est para a legislao e a culinria para a medicina como a retrica

para a justia (465b-c), percebe-se que a demonstrao feita constitui-se de termos que se

reduzem nomenclatura de certas artes, j que no h qualquer tipo de discurso, ao longo da

sua sintaxe, que explique a natureza da relao existente entre elas. Contudo, como algumas

destas artes j haviam sido tomadas anteriormente como exemplo ao serem comparadas com a

retrica - a saber, a medicina e a ginstica - e como estas passam a fazer parte desta frmula

analgica com que toda esta comparao por fim se estrutura e se consagra, h de se entender

que a analogia acaba por resumir de maneira bastante concisa tudo o que foi discutido

longamente desde o incio do dilogo, quando j se procurava aquilatar toda semelhana e

diferena que h entre elas. Neste sentido, percebe-se que a conciso, caracterstica da

demonstrao propriamente analgica dos gemetras, no se refere somente aos poucos

termos de que ela constituda, j que a analogia formulada passa a sintetizar e traduzir

tambm todas as relaes que se do entre estes. A conciso, portanto, atribuda fala

analgica dos gemetras se refere substancialmente ao que aqui vou chamar de condio

estrutural, j que ela no caracteriza somente as suas partes, mas tambm um todo que abarca

e delimita um certo nmero de termos e como estes esto a se relacionar.

Termos e relaes, alis, que j se encontram expressos no sentido prprio da palavra

, sobretudo se considerarmos que ela foi definida por Aristteles como uma

igualdade de razes (ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1131a 31), por Euclides como

grandezas que tem a mesma razo (EUCLIDES, Elementos, Livro V, definio 6) e por

Theon de Smirna como a maior semelhana e identidade de razes (THEON DE SMIRNA,

Da Utilidade Matemtica, 82.6), demonstrando o sentido profundamente matemtico da

palavra e que ela j era entendida como proporo, onde se percebe claramente a relao que

se d entre termos. Mas uma relao salvaguardada pelo , por uma razo, tal como

figura no fragmento DK A2 do filsofo-matemtico Arquitas e que constitui o testemunho

mais antigo que temos do emprego desta palavra com tal significado. Ao analisar a natureza

dos trs tipos de mdias existentes na msica, Arquitas observa que a mdia aritmtica

quando trs termos se excedem por uma razo ( ) de tal modo: o primeiro excede o

segundo como esse segundo excede o terceiro. Nessa proporo (), ocorre que o

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intervalo dos maiores termos seja menor e o dos menores, maior. Neste fragmento, como se

v, a palavra aparece associada expresso , indicando explicitamente o

que se entendia por analogia: a razo que certos termos compartilham em comum quando so

comparados, sendo todos evidenciados termos e razo simultaneamente e em conjunto de

maneira bastante concisa.

Do ponto visto etimolgico, possvel chegar tambm mesma concluso, j que o

prefixo implica um movimento de completude, como indica o verbo (examinar

profunda e completamente), usado como exemplo por Liddell e Scott em seu dicionrio

(LIDDELL, SCOTT, 1888, pp. 214-215). Chantraine (CHANTRAINE, 1977, p. 82) tambm

lembra que este prefixo implica uma noo de completude, tal como ocorre em

(completamente cheio), (quase cheio) e (muito ferido). Contudo, se

considerarmos, como Liddell e Scott fazem, os movimentos de repetio e de retorno que este

prefixo implica, tal como ocorre respectivamente nos verbos (crescer ou surgir

gradualmente), (reconhecer) e (voltar-se, retirar-se, reverter) e se

atentarmos para o seu sentido acentuadamente ascensional que por vrias vezes Chantreine

observa e que acaba por indicar como uma coisa se coloca sobre a outra, tal como ocorre na

expresso , (sobre o ombro) e se aplicarmos todos estes movimentos ao termo ,

poderamos supor o movimento de um discurso que se volta sobre si mesmo de modo

completo e que acaba demarcando intervalos - uma razo com que o prprio se

manifesta. Tal sentido, alis, fica mais claro se considerarmos em particular o significado

propriamente distributivo desta preposio como estes dois autores salientam, tal como ocorre

na expresso (dia a dia) e (a cada cem homens) que

denotam uma proporo, onde as relaes existentes entre os termos atravs de uma razo se

estruturam e se tornam evidentes por completo.

Mas se a conciso atribuda fala dos gemetras se refere a uma condio

propriamente estrutural, h de se pensar que a conciso atribuda s perguntas e respostas de

que se compe o dilogo se refere a uma condio que de natureza processual, j que

atravs de perguntas e respostas reincidentemente concisas o dilogo caminha passo a passo e

avana at alcanar, por fim, uma definio concisa. Mccabe (MCCABE, 2011, pp. 62-63)

mesmo deixa a entender isso ao observar que este procedimento implica um processo

contnuo que avana em virtude de algum tipo de contraste entre dois pontos de vista, entre a

assero e a negao, fornecendo sua prpria dinmica. Neste sentido, entende-se que a

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conciso caracterstica da fala dos gemetras de o