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Revista do Revista do TRE-RS Janeiro/Junho de 2019

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Revista

do

TRE-R

S

Ano 24N. 46

46

Revista doTRE-RS

Janeiro/Junho de 2019

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Revista do TRE-RS

Ano 24, n. 46Janeiro/Junho de 2019

Nova Fase

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Responsável pela Ficha Catalográfica: Liliane P. Santa Helena - CRB 10/2007

Revista do TRE-RS / Tribunal Regional Eleitoral, Rio Grande do Sul. – Vol. 1,

n. 1 (set./dez. 1996)- . – Porto Alegre: TRE-RS, 1996- .

v. ; 21 cm.

Semestral, 2011- .

Quadrimestral, 1996-2010.

ISSN 1806-3497

1. Direito Eleitoral – Periódicos. I. Brasil. Tribunal Regional Eleitoral (RS)

CDU 342.8(816.5) (05)

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COMPOSIÇÃO DO PLENO

PRESIDENTEDesembargador Jorge Luís Dall’Agnol

VICE-PRESIDENTE E CORREGEDORA REGIONAL ELEITORAL

Desembargadora Marilene Bonzanini

DESEMBARGADORES ELEITORAISDesembargador Federal João Batista Pinto Silveira

Desembargador Eleitoral Gerson FischmannDesembargador Eleitoral Roberto Carvalho Fraga

Desembargador Eleitoral Gustavo Alberto Gastal Diefenthäler

PROCURADOR REGIONAL ELEITORALDoutor Luiz Carlos Weber

DIRETOR-GERAL DA SECRETARIAJosemar dos Santos Riesgo

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CONSELHO EDITORIAL

Adisson LealDoutor em Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Professor do IDP.

André Luiz Olivier da SilvaDoutor em Filosofia pela Unisinos. Professor da Unisinos.

André MarencoDoutor em Ciência Política. Professor Titular de Ciência Política da UFRGS.

Carlos Eduardo Dieder ReverbelDoutor em Direito pela UFRGS e pela USP. Professor da UFRGS.

Daniel Gustavo Falcão Pimentel dos ReisDoutor em Direito pela USP. Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP).

Diogo Rais MoreiraDoutor em Direito pela PUC-SP. Professor da FGV-SP e da Universidade Mackenzie.

Eduardo Munhoz Svartman Pós-Doutor em Ciência Política pela George Washington University (EUA). Professor da UFRGS.

Fabrício Dreyer de Ávila PozzebonDoutor em Direito pela PUC-RS. Professor da PUC-RS.

Gisele Mazzoni WelschDoutora em Direito pela PUC-RS. Professora universitária.

Juliana Rodrigues FreitasDoutora em Direito pela UFPA/ Università di Pisa – Itália). Professora do Centro Universitário do

Estado do Pará (CESUPA).

Luiz Felipe Silveira DifiniDoutor em Direito pela UFRGS. Professor da UFRGS. Desembargador do TJ-RS. Foi Presidente do TRE-RS.

Luiz Carlos dos Santos GonçalvesDoutor em Direito pela PUC-SP. Procurador Regional Eleitoral junto ao TRE-SP.

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Luiz Magno Pinto Bastos JúniorPós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade McGill (Canadá). Professor da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).

Maria Lúcia Rodrigues de Freitas MoritzDoutora em Ciência Política pela UFRGS. Professora da UFRGS.

Marilda de Paula SilveiraDoutora em Direito pela UFMG. Professora do IDP.

Rafael Da Cás MaffiniDoutor em Direito pela UFRGS. Professor da UFRGS. Juiz Substituto do TRE-RS.

Silvana KrauseDoutora em Ciência Política pela Katholische Universität Eichstätt Ingolstadt (Alemanha). Professora da UFRGS.

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EXPEDIENTE

DIRETORIA DA EJERS

Desembargador Jorge Luís Dall’AgnolDiretor

Desembargadora Marilene BonzaniniVice-Diretora

EDITOR DA REVISTA

Desembargador Eleitoral Miguel Antônio Silveira Ramos

EQUIPE DA EJERS

Adriana da SilvaÂngelo Soares CastilhosCristiano Friedrich BoikoDébora do Carmo VicenteDione Santos de Almeida

Fabiana Guimarães dos Santos

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL

Liliane Pinto Santa Helena

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Seção de Expedição e Artes Gráficas - TRE-RS

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SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................13Desembargador Jorge Luís Dall’Agnol

Autores desta edição ....................................................................15

Psicologia política e as fake news nas eleições presidenciais de 2018................................................................................................19Diogo RaisRaimundo Augusto Fernandes NetoTaís Vasconcelos Cidrão

O berço dos direitos sociais: cem anos da Constituição mexicana e alemã ...........................................................................................53Carlos Eduardo Dieder ReverbelMellany ChevtchikCoerência, integridade e Justiça Eleitoral: mundos à parte? ..77Francisco José Borges MottaRodrigo López ZilioCrimes eleitorais e os eventualmente conexos diante do novo en-tendimento do Supremo Tribunal Federal ................................95Douglas FischerParticipação política dos povos indígenas e a perpetuação da in-visibilidade no cenário político .................................................131Bruna Ferreira de AndradeVolgane Oliveira Carvalho

Obstáculos e perspectivas da participação feminina na política . ......................................................................................................177Daniela de Cássia Wochnicki

Fase de habilitação prévia de candidatura: perda de uma chance de reduzir as candidaturas provisórias. ...................................199Francieli de CamposRoger Fischer

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A garantia dos direitos políticos diante do descompasso entre o conceito de domicílio eleitoral e a revisão do eleitorado.........211Cristiano Rodrigues JamesJuliana Almeida Pereira

Partidos políticos no Brasil: reinvenção ou morte na era da de-mocracia digital e da modernidade líquida. ............................229Daniel Borges de Abreu

Expectativa de participação em uma comunidade de práticas de uma organização pública ...........................................................253Rafael Fabiano Ravazolo

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APRESENTAÇÃO

Desembargador Jorge Luís Dall’Agnol

Tenho a honra de apresentar mais um número da Revista

do TRE-RS, organizada e editada pela Escola Judiciária Eleitoral do Rio Grande do Sul, com publicação impressa e eletrônica. Esta edição reúne um variado acervo de trabalhos científicos e acadêmicos que abordam temas de grande relevância para o Direito Eleitoral e a Justiça Eleitoral como um todo.

Os trabalhos selecionados nesta publicação analisam desde a integridade e a coerência das decisões da Justiça Eleitoral à luz da teoria de Dworkin à recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes conexos aos crimes eleitorais. Discorrem sobre fake news à luz da psicologia política, sobre a participação política das mulheres e indígenas, fase de habilitação prévia de candidatura, e o descompasso entre conceito de domicílio eleitoral e a revisão do eleitorado.

Junto a esses artigos, merecem destaque os trabalhos escritos por servidores da casa sobre partidos políticos no Brasil, teorias sobre a expectativa de participação em uma comunidade de práticas de uma organização pública.

Como se pode notar, a revista alia conhecimento teórico-científico à realidade prática de uma instituição pública comprometida com a difusão da ciência e avanço do conhecimento, para melhor cumprir sua missão de garantir a legitimidade do processo eleitoral e a efetiva prestação jurisdicional, fortalecendo a democracia.

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Assim, convém mais uma vez relembrar que a Revista do TRE-RS adota o fluxo contínuo para recebimento de artigos para publicação, com chamada permanente para o envio de trabalhos originais, em todas as áreas do Direito, assim como da Administração, Ciência Política, Jornalismo, Tecnologia da Informação e outros campos que possuam inter-relação com temas afetos à Justiça Eleitoral.

Boa leitura!

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AUTORES DESTA EDIÇÃO

Bruna Ferreira de AndradeBacharela em Direito pelo Instituto Camillo Filho.

Carlos Eduardo Dieder ReverbelDoutor em Direito do Estado (USP/2014), Doutor em Direito Constitucional (UFRGS/2012), Mestre em Direito do Estado (UFRGS/2008), Especialista em Direito do Estado (UFRGS/2005), Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (PUC-RS/2003). Professor adjunto por concurso público na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS. Advogado. Parecerista.

Cristiano Rodrigues JamesCristiano Rodrigues James é técnico judiciário lotado na 42ª Zona Eleitoral de Bicas/MG; bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-graduado em Direito Público pela UFJF.

Daniel Borges de AbreuEspecialista em Direito Constitucional, Mestre em Ciências So-ciais pela PUC-RS, Analista Judiciário do TRE-RS e Assessor Técnico dos Desembargadores Eleitorais.

Daniela de Cássia WochnickiBacharel em Ciência Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Analista Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, Especialista em Direi-to Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNI-SUL), membro do Instituto Gaúcho de Direito Eleitoral – IGADE.

Diogo RaisDoutor e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Curso em Extensão em Justiça Constitucional pela Université Paul Cézanne (França). Colunista na área eleitoral para o jornal Valor Econômico (2016). Coordenador do Observatório da Lei Eleitoral da FGV-

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SP. Colaborador do Caderno Poder da Folha de S. Paulo para as eleições 2018. Professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do grupo MackEleições. Membro fundador da Academia de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP.

Douglas FischerProcurador Regional da República na 4ª Região. Mestre em Insti-tuições de Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Cató-lica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Francieli de CamposAdvogada Eleitoralista, bacharel pela UFRGS, membro da Co-missão Especial de Direito Eleitoral da OAB/RS, membro do Ins-tituto Gaúcho de Direito Eleitoral.

Francisco José Borges MottaDoutor e Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Professor da Faculdade de Direito da Escola Superior do Ministério Público (Graduação e Mestrado). Promotor de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Juliana Almeida PereiraJuliana Almeida Pereira é analista judiciária lotada na 302ª Zona Eleitoral de Capinópolis/MG; bacharela em Direito pela Universi-dade Federal de Goiás e pós-graduada em Ciências Penais.

Mellany ChevtchikGraduação em Ciências Jurídicas e Sociais em andamento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS/2015-atual). Membro do Grupo de Pesquisa Supremacia do Direito (CNPq). Assistente no Projeto de Pesquisa Jurisdição Constitucional e o Estado de Direito (UFRGS).

Rafael Fabiano RavazoloMestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); gra-

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duado em Administração pela UFRGS; professor de Administra-ção; servidor público do Poder Judiciário, atuando na Assessoria de Planejamento Estratégico e Desenvolvimento Institucional do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul.

Raimundo Augusto Fernandes NetoDoutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), mestre em Direito pelo Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), especialista em Direito e Processo Eleitoral e Direito e Processo Administrativos pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente da comissão de Direito Eleitoral da OAB-CE 2016-2021. Advogado.

Rodrigo López ZilioMestre em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Promotor de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador do Gabinete de Assessoramento Eleitoral do MPRS. Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público e da Escola Superior da Magistratura.

Roger FischerAdvogado Eleitoralista, bacharel pela PUCRS, especialista em Direito Eleitoral pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci, membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral da OAB/RS, membro do Instituto Gaúcho de Direito Eleitoral.

Taís Vasconcelos Cidrão Mestra em Direito pelo Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), graduada e especialista em Direito e Processo Constitucionais pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), professora universitária da UNIFAMETRO.

Volgane Oliveira CarvalhoMestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Analista Judiciário do Tribunal Regio-nal Eleitoral do Maranhão. Professor de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

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PSICOLOGIA POLÍTICA E AS FAKE NEWS NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 20181

Diogo RaisRaimundo Augusto Fernandes NetoTaís Vasconcelos Cidrão

1 Este artigo foi escrito originalmente em italiano e aceito para publicação na Revista do “Osservatorio sulle fonti”, revista eletrônica registrada no Tribunal de Florença pelo Decreto n. 5626 del 24 dicembre 2007, com ISSN 2038-5633

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RESUMO: O resultado e o próprio decorrer do período eleitoral brasileiro de 2018, provocaram amplo debate sobre o papel desempenhado pelas fake news que circularam nas redes sociais durante as campanhas presidenciais. Apesar de o assunto ter chegado ao Brasil e, tão logo, ter recebido ampla atenção por parte da população, mídia e também das autoridades (governamentais, judiciárias etc.), ainda persiste uma ausência de consenso no que diz respeito ao seu conceito. Propõe-se aqui uma pesquisa acerca da “informação enganosa” e suas consequências em um nível teórico e prático, à medida que procura promover um diálogo interdisciplinar. PALAVRAS-CHAVE: Informação enganosa. Fake news. Eleições. Psicologia política. ABSTRACT: The result and the very course of the Brazilian electoral period of 2018 provoked a wide debate about the role played by the fake news that circulated in social medias during the presidential campaigns. As soon as this subject arrived in Brazil, it received wide attention from the population, the media and also from the authorities (governmental, judicial, etc.), however, there is still an absence of consensus regarding its concept. It is proposed here a research about “misleading information” and its consequences on a theoretical and practical level, while it aims to promote an interdisciplinary dialogue.

KEY WORDS: Misleading information. Fake news. Elections. Political psychology.

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1. INTRODUÇÃO

O direito à informação (à correta informação), amplamente reconhecido como questão crucial para o futuro das democracias (BOBBIO, 2015), encontra amparo constitucional no ordenamento jurídico brasileiro (art. 5º, XIV). Além disso, é considerado um princípio básico necessário para possibilitar o controle social, facilitando o acompanhamento e o monitoramento da realidade.

Por ser um direito de suma importância, inclusive estando no rol de direitos fundamentais, chega a ser até contra intuitivo se pensar que as fake news (ou “informações fraudulentas”) carecem de uma definição exata e suficiente do que realmente representam no contexto social. Não é surpresa que as fake news, também, foram protagonistas nas eleições presidenciais de 2018. A propagação desse tipo de notícia contribuiu para o sentimento de descrença generalizada do nível de confiabilidade das informações obtidas online pelos próprios cidadãos, que sentem os efeitos/consequências reais dessa prática.

Conquanto essa problemática ponha em risco diversos assuntos da vida privada da população, é ainda mais inquietante quando afeta notícias, comunicações políticas e outros temas relevantes para o desenvolvimento da esfera pública contemporânea. Desta feita, o intuito deste estudo é, por meio de metodologia bibliográfica, averiguar cientificamente (sem preferências políticas) o influxo das fake news na condução das campanhas eleitorais, inclusive, se utilizando de um método comparativo com a eleição presidencial estado-unidense de 2016. E, ainda, saber se as notícias fraudulentas têm a real capacidade de influenciar o eleitor e como poderá fazê-lo.

Constatado o falseamento das informações (da verdade), indaga-se qual reação social (e institucional) é necessária ao resgate da honestidade como prática essencial ao procedimento democrático. E mais, se a atuação estatal (na sua função reguladora das escolhas

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eleitorais) foi – ou está sendo - suficiente para garantir a lisura dos procedimentos eleitorais e a salvaguarda dos direitos fundamentais na sociedade brasileira.

2. O DIREITO À INFORMAÇÃO, DEMOCRACIA E FAKE NEWS

Muito se tem dito recentemente acerca da possibilidade de a internet fortalecer a democracia, de modo que a diferença (dissenso), juntamente com o diálogo, fossem essenciais para o modelo deliberativo. A diferença entre as pessoas necessita de um discurso crítico-racional para que os “privately-oriented individuals” se tornem “publicly-oriented citizens” (DAHLBERG, 2001, p 616) de maneira que a racionalidade possa guiar a tomada de decisões democráticas.

Essa premissa está condizente com os preceitos do próprio Estado Democrático de Direito, no qual a liberdade deve gozar de proteção positiva (na perspectiva da salvaguarda da manifestação da opinião), como também negativa (sob a óptica da vedação à censura desarrazoada). A informação tem grande relevância social à medida que é responsável pela formação da opinião dos cidadãos, suas convicções e, em última instância, da sua personalidade.

Uma das maneiras de se exercitar o diálogo e fomentar o discurso público é mediante o uso da internet. Muito da interação pública envolve a participação virtual – por meio de comunidades (cibergrupos), sites etc. – baseada na conexão de uma pessoa com outras que tenham valores, interesses e preocupações similares. Em outras palavras, pessoas que dividem valores e interesses comuns tendem a se juntar em grupos virtuais e se isolarem em “bolhas” dentro de um conforto de informações que lhes são familiares e “palatáveis”. O problema do isolamento desses cibergrupos advém dos algoritmos que controlam os filtros de pesquisas dos usuários.

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Isso quer dizer que essas pessoas com interesses similares tendem a acessar os mesmos dados que fortalecem cada vez mais o seu ponto de vista. Isso, em última instância, limita a visão de mundo do cidadão, pois não lhe permite ter acesso a novas ideias e perspectivas que, a priori, estariam na contramão da sua própria visão de mundo.

Grande parcela do discurso entre esses grupos de comunicação, no entanto, consiste, não surpreendentemente, em excitação exacerbada, fofocas, calúnias e outros formatos dos diálogos que não contribuem para o fortalecimento da democracia. O resultado prático? A fragmentação do discurso cibernético em cibercomunidades mutuamente exclusivas (DAHLBERG, 2001, p 618).

A internet, apesar de ser um espaço “livre” para o discurso coletivo, não é um locus imune ao controle “offline”, seja ele administrativo ou judicial. No Brasil, a Lei nº 12.965/2014, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet, de fato, veio privilegiar, prima facie, o princípio da liberdade de expressão, de sorte que os provedores de aplicação de internet só estariam obrigados a retirar determinado conteúdo considerado ilícito ou impróprio da rede após sentença judicial específica, sob pena de responsabilização civil. Portanto, pelo menos a priori, não há que se falar em restrição da atuação espontânea dos usuários.

No domínio eleitoral, a Lei nº 13.488/20172, alterou a Lei 9.504/97 (Lei das Eleições) para regulamentar a utilização da internet pelos candidatos (em sítios eletrônicos, blogs, redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas etc.), exigindo declaração na prestação de contas de campanha, dentro dos limites de despesas possíveis, realizando algumas vedações de reprodução de conteúdo ao público em geral (pessoas físicas e jurídicas), sob pena de sansão pecuniária, por exemplo.

2 Art. 57-A e seguintes da Lei 9.504/97.

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O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mediante a Resolução 23.551/2017, destinada a regulamentação das eleições de 2018 no Brasil, juntamente com o teor do Marco Civil da Internet, garantiram a livre manifestação do eleitor identificável ou identificado, objetivando o controle dos excessos, limitados os casos de ofensas a honra ou fatos sabidamente inverídicos (art. 22, § 1º, da Resolução 23.551/2017).

As medidas legais, entretanto, não têm sido suficientemente eficazes na proteção da veracidade da informação postada na internet em razão do grande volume de dados postados, e ao dinamismo do caráter online. Essa ineficácia deu azo ao aparecimento das chamadas fake news. A democratização da internet (e também da informação) tem todo o potencial para estimular o debate eleitoral democrático. Ao que parece, no entanto, a internet também é campo fértil para as notícias falsas, marcando as eleições de 2018 (RAIS, 2018b, online) apesar das promessas da Justiça Eleitoral de que as fake news seriam controladas (BRASIL, 2018a, online), resultando numa eleição sem controle neste aspecto específico.

Em maio de 2014, foi criado por Caitlin Dewey um blog do Washington Post dedicado às tendências da internet. Na ocasião, fora criada uma coluna semanal intitulada What’s fake on the internet, cujo objetivo era desmoralizar as histórias falsas que circulavam na rede. Em dezembro de 2015, no entanto, a coluna foi encerrada sob a alegação de que evidenciava a ineficácia da tentativa de se desacreditar histórias falsas postadas online. Isso em razão da

[…] combination of increasing economic incentives to produce fake and outrageous provoking stories, a rising distrust in media and institutions and the psychological inclination toward trusting what matches our worldview, made the original column format ‘unfit to the current environment’ and ‘pointless’3. (GIGLIETTO, et al 2016, online).

3 Combinação de incentivos econômicos crescentes para produzir histórias de provocação

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Existem, é claro, aqueles diálogos construtivos que envolvem discussões críticas sobre pontos controversos, mas, apesar das vantagens oferecidas pela internet, os recentes acontecimentos durante o período eleitoral de 2018 (o crescimento de “projetos políticos online”) demonstraram que a veracidade das informações obtidas na rede mundial de computadores deve ser investigada a fundo.

Esses “projetos políticos online”, muitas vezes, são encabeçados por grupos de cidadãos, interesses corporativos e até pelo próprio governo, com vistas a influenciar o destino das eleições ou até o próprio “sucesso” do mandato eleitoral. Os entraves causados pela má informação ensejam benefícios para os governantes também durante seus mandatos, à medida que se aproveitam da assimetria de informações para produzir um campo propício à ausência de prestação de contas, corrupção, desvio de recursos públicos etc.

Citam-se aqui dois exemplos de influência das fake news no âmbito político internacional: 1) o jornal The Washington Post (KESSLER; KELLY, 2018) publicou, em janeiro de 2018, uma matéria que contabilizou 2.140 alegações falsas ou enganosas (média de 5,9 reivindicações por dia) pelo Presidente Donald Trump, de acordo com o banco de dados do The Fact Checker que analisa todas as declarações “suspeitas” proferidas pelo Presidente estadunidense. Sobre essa alegação, Michiko Kakutani (2018, pp. 98-99):

O problema não é que Trump apenas tenha mentido de maneira espontânea e desavergonhada, mas que essas centenas e centenas de mentiras tenham se acumulado para criar histórias igualmente falsas, que se encaixam perfeitamente nos medos das pessoas. Ele descreveu os Estados Unidos como um país devastado pelo crime (quando, na verdade, a taxa de criminalidade exibia baixas históricas [...]). Disse ser

falsas e ultrajantes, uma crescente desconfiança na mídia e nas instituições e a inclinação psicológica para confiar em nossa visão de mundo, tornaram o formato da coluna original “impróprio para o ambiente atual” e “sem sentido” (tradução livre).

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um país assolado por ondas de imigrantes violentos (quando, na verdade, estudos mostram que os imigrantes são menos propensos a cometer crimes violentos do que os cidadãos nascidos nos Estados Unidos. Alegou que os imigrantes são um fardo para o país e que deveriam ser investigados com mais cuidado (quando, na verdade 31 dos 78 Prêmios Nobel norte-americanos, desde 2000, foram conquistados por imigrantes [...]). Em suma, Trump criou uma imagem de uma nação em apuros, que precisava muito de um salvador.

Essa psicologia política adotada pelo atual Presidente estadunidense durante sua campanha tem embasamento em uma linha de pesquisa sugestiva de que os apelos ao medo são mais eficazes na mudança de comportamento, especialmente quando é oferecido aos destinatários um(a) recurso/saída para atenuar o perigo (BRADER, 2005) (nesse caso, elegê-lo presidente).

2) Outra influência das fake news na realidade política foi a possível atuação proveniente da Rússia nas redes sociais durante as eleições americanas de 2016, cujo objetivo a curto prazo foi direcionar o resultado ao Trump (depreciando a imagem de Hillary Clinton) para, a longo prazo, lesar a crença dos eleitores no sistema eleitoral e na própria democracia. Para tanto, segundo o WikiLeaks, e agências de inteligência estadunidenses hackers russos obtiveram e-mails do Comitê Nacional Democrata sem autorização. Indicam a existência de 80 mil postagens de agentes russos no Facebook no período compreendido de junho de 2015 a agosto de 2017, que podem ter sido visualizadas por 126 milhões de estadunidenses (KAKUTANI, 2018, p. 159) (INGRAM, 2017) (SHANE, 2017).

A democracia, entretanto, requer que a informação (principalmente política) flua independente do controle de corporações com interesses econômicos e também do controle administrativo com interesses políticos disfarçados. Em outras palavras, a democracia requer informações livres de (ou, ao menos, pouco influenciadas por) vieses.

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A utilização das fake news, por vezes, é seguida de uma linguagem “incendiária”, capaz de provocar o ódio, aversão e/ou desprezo. O diálogo, nesse nível, é utilizado não para fins de fomentar o debate, mas para desmobilizar/destruir o adversário. Essa prática, em última instância, também poderá propiciar o discurso de ódio no âmbito político.

De fato, as fake news e os atos de intolerância política nas redes sociais decorrem de ações deliberadas de políticos e seguidores apaixonados, que, sem se preocuparem com a qualidade do processo democrático e a credibilidade das instituições políticas, buscam o poder a qualquer custo. Eles mentem com propósitos, justificadamente, sob o ideal ideológico, porque acreditam na eficácia da mentira e na capacidade de atrair simpatizantes para o seu credo.

3. POR QUE AS FAKE NEWS SÃO TÃO EFICAZES?

Para se iniciar a discussão acerca das fake news, há uma diferença que merece ser destacada: a possibilidade de a pessoa ser uninformed (desinformado) ou disinformed (mal informado), este último sendo o foco de preocupação deste estudo. A má informação é consequência direta das fake news e está relacionada às preferências políticas de cada pessoa (NYHAN; REIFLER, 2010). Ainda mais importante, porém, é determinar nesta parte do estudo se a distorção da opinião pública (especialmente no que diz respeito à política) pode ser corrigida.

No contexto político atual, muito se percebe que os políticos se preocupam mais em “parecerem certos” do que efetivamente “estarem certos”, porque, afinal de contas, isso basta para causar um grande influxo positivo na imagem dos candidatos. Mesmo que eles se utilizem de jogadas desleais, como as fake news, para aumentar sua “popularidade”, as notícias falsas são “justificáveis”

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em termos de números, haja vista que, uma vez postadas na rede mundial de computadores, é muito difícil desmistificá-las. E, mesmo nos casos nos quais se consegue desmascará-las, não se sabe se os efeitos da notícia correta terão os mesmos níveis de repercussão ou se conseguirão convencer a população do seu conteúdo. Esse parece ser um dos principais motivos do uso abundante das fake news durante as eleições: resultados bastante eficazes.

Isso porque a desinformação (misleading information) possui influxo contínuo na memória e no raciocínio inferencial das pessoas, mesmo após serem desmistificadas. Algumas contribuições foram feitas na tentativa de se explicar a influência continuada da desinformação na mente humana. Segundo Ecker et al (2014), isso decorre do fato de que há falhas no processamento de memória estratégica. Em outras palavras, as informações desatualizadas (erradas) permanecem disponíveis na memória, apesar das tentativas de atualização da memória (conserto). A informação retraída, porém, disponível, pode ser automaticamente ativada e aceita como válida em algum ponto, especialmente quando seu processamento parece fluente. Nesses casos, qualquer ativação automática de informações desatualizadas (ou falsas) exigirá algum processamento de memória estratégico para neutralizar a possível afluência das informações inválidas.

Essa explicação puramente cognitiva não considera fatores motivacionais. O processamento de informações pelas pessoas (inclusive da desinformação) também considera as opiniões e atitudes preexistentes. Isto é, leva-se na devida conta, durante o processamento de informação, o que já conhecem e acreditam. Assim, em muitas circunstâncias, as pessoas terão uma motivação para acreditar em uma versão dos fatos em detrimento de outra, significando que elas têm uma motivação intrínseca para resistir à correção da informação (ECKER et al, 2014).

Parte da culpa por tornar a desinformação fácil de ser

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espalhada é o processo cognitivo chamado viés de confirmação ou confirmation bias (KAHNEMAN, 2012), como sendo uma tendência a considerar informações verdadeiras as que confirmam o que já se acredita ser verdade (GIGLIETTO, 2016). “Partisan motivated reasoning is presumed to be driven by affective-based goals that lead citizens to evaluate attitude-consistent information as strong, convincing, and valid, while inconsistent information is considered weak and unconvincing”. (WEEKS, 2015).

Jonathan Haidt (2012), em sua obra The righteous mind: why good people are divided by politics and religion, entende que a origem das preferências políticas advém, primeiramente, de intuições, confirmando o ponto de vista de Antonio Damasio (2018). Emoções e intuições são maneiras de se processar informação, a mais fácil e natural delas, pelo menos. E, durante anos, esse tipo de cognição tem possibilitado a adaptação do ser humano em seu habitat natural e até a sua vitória, até hoje, na guerra da seleção natural.

As intuições são a causa principal de julgamentos. Posteriormente, a razão (o pensamento racional) acompanham esses julgamentos para estabelecer justificações post hoc para um determinado ponto de vista. Nas suas palavras: “People made moral judgments quickly and emotionally. Moral reasoning was mostly just a post hoc search for reasons to justify the judgments people had already made”. (HAIDT, 2012, p. 47). Em suma, a informação política consistente com a ideologia dos eleitores é mais facilmente acreditada, independentemente de ser verdade.

Se na maioria das vezes pensar é “confirmatório” mais do que “exploratório”, quais são as chances de as pessoas pensarem imparcialmente (com a “mente aberta”), quando suas emoções, intuições e as próprias identidades sociais (cultura) fazem com que essas pessoas queiram ou até mesmo precisem de uma conclusão pré-ordenada?

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Outra confusão cognitiva de problemas associada aos perigos da propagação das fake news, é o viés de disponibilidade (KAHNEMAN, 2012), que traduz a ideia de que a grande exposição a rumores (sejam eles verdadeiros ou falsos) promove a crença neles. Apesar da possibilidade de existir algum ceticismo ou até mesmo receio no que diz respeito a esses rumores, existem situações nas quais eles podem ser tidos como verdades, especialmente em situações em que eles oferecem uma explicação razoavelmente plausível para uma situação política indeterminada. Assim, quanto mais rumores falsos estiverem circulando, mais oportunidades a pessoa tem para ser enganado (GARRETT, 2011).

Os cidadãos descobriram há muito tempo as vantagens da cooperação. Hoje, as pessoas se importam com seus grupos (sejam eles religiosos, raciais etc.), razão por que a política é uma atividade grupal (grupish), e não individual (selfish) (HAIDT, 2012, p. 100). Esses grupos ou, mais especificamente, esses cibergrupos, como mencionado anteriormente, se unem por meio de um elo comum (seja ele um líder, um local, valores etc.) que tem um valor intrínseco compartilhado entre seus membros, o qual prende seus membros em uma “comunidade moral”, que binds and blinds. (HAIDT, 2012, p. 216).

A vida humana é composta por uma série de oportunidades para benefícios mútuos advindos da cooperação. Sabendo jogar o jogo da vida, trabalhar em conjunto com outros (e não só com o próprio cibergrupo) possibilitaria o aumento do “bônus” que, em última instância, todos dividiriam.

Alguns estudos (GIGLIETTO, 2016) chegaram à conclusão de que é, sim, possível mudar a opinião política dos sujeitos. No entanto, se a correção da informação se der diretamente, ou seja, por meio de um modelo de “argumento de autoridade” (quando os fatos relevantes forem fornecidos diretamente aos sujeitos por um entrevistador, por exemplo), o grau de eficácia da correção será muito baixo. Em tais casos, as pessoas tendem a resistir ou rejeitar

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argumentos e evidências que contradigam suas opiniões ou, ainda, em alguns casos, podem vir a apoiar a sua opinião original ainda mais fortemente – o que se chama de backfire effect. Em vez disso, as pessoas normalmente recebem “melhor” a informação corretiva por meio, por exemplo, de reportagens “objetivas” que fornecem os dois lados de um argumento.

Contribuindo para esse ponto de vista, Weeks (2015, online) garante que a raiva também poderá melhorar o processo de raciocínio motivado, na medida em que ela surge em resposta a estímulos aversivos no meio ambiente. Para lidar com essa raiva, as pessoas podem se tornar defensivas, rejeitar informações desafiadoras ou buscar sempre vez mais informações que apoiem sua posição originária. Essas mesmas pessoas, raivosas, são menos propensas a considerar e aprender com novas informações.

Tendo isso em vista, a pergunta que se mostra pertinente é se os candidatos e partidos políticos irão fazer das fake news suas novas armas midiáticas. No Brasil, o estudo dessa possibilidade se faz bastante pertinente em razão dos acontecimentos das últimas eleições presidenciais de 2018. É o que se passa a observar no módulo seguinte.

4. AS FAKE NEWS E A DEMOCRACIA

Muito se tem pesquisado acerca da origem das fake news e sua utilização no cotidiano, especialmente no panorama político, porém seu limiar parece uma consequência atomizada digitalmente de uma característica natural humana: a mentira. É o que Ralph Keyes (2018, p. 13) chama de “a rotinização da desonestidade”. O Cientista Político ianque ensina:

A condição esfarrapada da fraqueza contemporânea é sugerida por quão frequentemente usamos frases como

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‘Muito francamente’, ‘Deixe-me ser franco’, ‘Deixe-me ser sincero’, ‘Verdade seja dita’, ‘Para lhe dizer a verdade’, ‘Para ser sincero’, ‘A verdade é’, ‘Sinceramente’, ‘com toda franqueza’, ‘Com toda honestidade’, ‘Na minha honesta opinião’, ‘Para ser perfeitamente honestos’. Tais tiques verbais são um indicador aproximado de quão rotineiramente enganamo-nos uns aos outros (KEYS, 2018, p 13).

O embuste, a simulação e a enganação foram determinantes para a sobrevivência do homo sapiens, tanto na caça, em busca do alimento, quanto para fugir de predadores. Não sem razão, Karl Popper (apud SCHILPP, 1974, pp. 1.112-1.113) relaciona o surgimento da linguagem “[...] ao momento que um homem inventou uma história, um mito a fim de desculpar um erro que ele cometeu”.

Estaria o homo sapiens recuperando uma característica instintiva do humano – superada pela racionalidade4 – ou será que nunca chegou a perder essa característica inata?

A vida em comunidade, com o consequente estreitamento de laços pessoais, atrelada aos valores religiosos e acrescida do benefício da verdade como constituinte da credibilidade das relações comerciais, foi elemento que transformou a virtude da verdade (honestidade) como necessária à vida cotidiana.

A mendacidade não se coaduna com a relação de confiança entre contratantes comerciais, prestadores de serviços, profissionais liberais (médicos, advogados etc.) e, especialmente, com o exercício da política, na qual a representação pressupõe confiabilidade. De fato, foram estes os motivos condutores para a era da verdade.

Seria uma mentira, supostamente sem conteúdo aético, protegida por pretensos valores pessoais que garantiriam certa isenção moral abonada por outros valores de cariz superior, como de natureza religiosa e política. A antieticidade, assim, proveria do critério subjetivo da intenção do agente. A indagação quanto a

4 Darwin tinha a ideia de que a honestidade era uma virtude decorrente da aprendizagem.

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intenção de cada pessoa; da bondade de cada intenção e, a defesa das mentiras contadas como beneficentes, são subjetivas, de consenso duvidoso e degradam o ambiente social (KEYS, 2018).

De fato, esse critério subjetivo é que contextualiza a era da pós-verdade, na qual valores e interesses pessoais, econômicos, políticos e outros relativizam a verdade, distorcendo fatos e expandindo-os socialmente.

Nesse ponto, faz-se importante salientar a escolha de abordagem do termo fake news. Quer dizer, é óbvio que é possível tratar do tema sob uma perspectiva ética e/ou moral da temática, entretanto, para os fins a que se propõe o presente estudo, optou-se pela construção de um sentido jurídico. Em outras palavras, procura-se a construção de um conceito claro que envolva elementos que consigam, efetivamente, serem tutelados pelo direito e que ao mesmo tempo consiga ser sustentável do ponto de vista prático, e não só no teórico.

Partindo dessa premissa, podemos dividir dois grandes grupos de envolvidos na dissipação das fake news, quais sejam, aqueles que dolosamente (ou seja, sabendo que o conteúdo é inverídico) espalham a notícia fraudulenta, sendo verdadeiros agentes da indústria de fake news. Mas, também, existem aqueles que, acreditando na notícia, repassam sem nenhum filtro e/ou avaliação crítica. Essa última pode ser considerada uma conduta culposa, antiética e, para fins jurídicos, escusável, não incorrendo, o sujeito, em penalização, devido à ausência do dolo. Isso porque, caso o Direito se ocupasse de tutelar a conduta culposa, incorreria na possibilidade de violação do tênue limite, entre o ilícito (a exemplo dos crimes contra a honra) e a liberdade de expressão, além de possivelmente, contribuir, ainda mais, para judicialização das ideologias.

Isso significa que a informação deverá conter o elemento falsidade e a conduta praticada pelo agente deverá ser capaz de gerar

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dano (efetivo ou potencial) e ser praticada mediante dolo. Este é o limite que impõe o conceito jurídico de fake news, como notícia fraudulenta a ser reprimida mediante intervenção estatal. Isso não quer dizer, entretanto, que a conduta de se propagar culposamente notícias inverídicas (simples compartilhamento) não poderá sofrer reprimendas de ordem ética pela sociedade, podem ser, inclusive, alvo de alguma sanção social.

4.1. A origem da intolerância política e sua repercussão social

Muito se questiona, especialmente no caso brasileiro, se a intolerância constatada nos enfrentamentos políticos nas eleições de 2018 foi um fenômeno originado do protagonismo digital, ativado pelas fake news, ocorrido no pleito ou apenas refletiria uma polarização extrema e já existente da política e dos políticos. Pensa-se que as opções são igualmente verdadeiras e, portanto, complementares. A desinformação polui o debate e cria uma atmosfera de incertezas e desconfiança, mas talvez o que parece ser ainda mais perigoso é a capacidade que essa poluição tem de alimentar e ampliar a polarização de opiniões na sociedade (RAIS, 2018a).

De fato, o elemento ético, indispensável às campanhas eleitorais, já não guarda relevância e as disputas já ultrapassaram as questões somente ideológicas. A utilização de métodos nocivos à convivência social, especialmente na política, com a proliferação de mentiras, antes utilizados eventualmente pela imprensa ou mesmo pelas antigas cartas e panfletos apócrifos, tomaram hodiernamente proporções desmensuradas pela evolução tecnológica.

De certo modo, as redes sociais espelham e referendam as bandeiras e o comportamento dos políticos e dos partidos, deteriorados pela crise da democracia. Nessas circunstâncias, Chantal Mouffe, cientista política belga, atribui a busca equivocada pelo consenso humano e a vã tentativa de anulação do dissenso

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natural da humanidade como contributiva para intolerância política. É o agonismo em detrimento do antagonismo, pois “[...] o que a democracia exige é que formulemos a distinção nós/eles de um modo que seja compatível com a aceitação do pluralismo, que é constitutivo da democracia moderna”. (MOUFFE, 2015, p. 13).

O retrocesso civilizatório causado pelas fake news no protagonismo da política mundial é relacionado à baixa ética na política. No best seller How Democracies Die (Como as democracias morrem), os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt tratam da temática exatamente sob o enfoque de que a degradação das relações políticas foram determinantes para a polarização repercutida ativamente na era digital.

Os autores justificam que o contumaz descumprimento de regras de condutas da política (estas não necessariamente escritas) e o desprezo pelas instituições democráticas resultou na crise da democracia. O problema da crise democrática repercute no acirramento do embate político pelos candidatos e seus partidos.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 104) indicam a degeneração na política estadunidenses na afetação da tolerância mútua. Comentam: “[...] reconhecermos que nossos rivais políticos são cidadãos decentes, patrióticos e cumpridores da lei – que amam o nosso país e respeitam a constituição como nós”. Acrescentam os professores radicados em Harvard (2018, p. 107) que o outro núcleo da degeneração, denominado por eles de violação à reserva institucional, exprime-se quando o espírito democrático é violado, mesmo quando os atos praticados expressamente não contrariam a Lei. Mencionam como exemplo a inexistência de regra que proíba o terceiro mandato de um presidente dos Estados Unidos, observada costumeiramente pelos partidos.

Parece que o radicalismo e a quebra da ética na política estimularam os internautas a tornarem-se intolerantes, como os políticos, fazendo da internet um locus de enfrentamento pessoal

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e da afirmação de valores (paixões ideológicas), que supostamente justificariam a desonestidade digital, consciente ou involuntariamente.

A outra face da intolerância é própria da capacidade das redes sociais em atribuir protagonismo ao navegante, mediante a exposição de suas preferências políticas – possivelmente acentuada pela manipulação artificial – trazendo a lume um espetáculo de intolerância já ensaiado na ambiência política. Infelizmente, o espetáculo da intolerância tem sido transposto ao pleito eleitoral brasileiro de 2018, a exemplo da sociedade estadunidense, desde as eleições de 2016. Parece ser um efeito bumerangue, que motiva a continuidade da intolerância de grande parte da classe política. 4.2. Características próprias da fake news nacional

A Fake News que marcou os processos eleitorais em diversas nações, apesar de trazer substanciais semelhanças quanto ao conteúdo destinado ao eleitor, também conduz diferenças próprias a serem observadas no caso nacional. Podem ser destacados pelo menos duas.

A primeira diz respeito a utilização do aplicativo WhatsApp, que tem a característica essencial de comunicação privada interpessoal, mas que, na experiência nacional, em razão dos grandes grupos de relacionamento criados, tiveram bastante uso na proliferação de notícias manipuladas e se revelando de difícil controle pela Justiça Eleitoral, uma vez que não há cobrança pelos serviços de publicações, e consequentemente, inexiste prestação de contas do conteúdo e dos valores utilizados/postados na propaganda eleitoral efetivada (positiva ou negativa) por candidato ou partido neste meio de comunicação.

Acrescentando ainda ao critério de ausência de controle estatal, os aplicativos de comunicação interpessoal trazem um elemento de credibilidade superior aos de outras redes sociais, que é

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a presunção do conhecimento ou vínculos que justifiquem a presença dos interlocutores no grupo de aplicativos como o WhatsApp, fazendo com que a notícia tramite rapidamente sem contestação, tornando-se quase impossível identificar a origem, formando uma bolha de proteção ao redor da informação.

O jornal Folha de São Paulo, na edição de 18 do outubro de 2018 (MELLO, 2018, online), publicou matéria intitulada ‘Em-presários bancam campanha contra o PT pelo Whats App’, denun-ciando a utilização do referido aplicativo, na modalidade “disparo em massa”, utilizando bases diversas de dados, desde a pertencente ao candidato a outras redes de informação adquiridas por empresas de assessoria digital. São citadas na matéria as empresas Quickmobi-le, Yacows, Croc Services e SMS Market como autoras de estratégias de propaganda digital financiadas por empresários.

A ocorrência, que poderia caracterizar abuso de poder, é tipificada tanto pela utilização de acesso a banco de dados vedados pela legislação eleitoral5, pela utilização de doação de pessoa jurídica6 representada no investimento digital e pela propagação em massa de propaganda negativa,7. Foi ela objeto da AIJE - Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 11.527, processo nº 0601771-28.2018.6.00.0000, junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tendo sido negados os pedidos cautelares de sustação sob o argumento da impropriedade processual e da orientação jurisprudencial do próprio Tribunal, que prestigia a liberdade de expressão8.

5 Especificamente o disposto no art. 57-E da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, que proíbe a utilização, doação ou cessão (bem como a venda) de cadastro eletrônico de clientes em favor de candidatos, partidos ou coligações. A violação desse dispositivo poderá implicar na penalidade de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais).6 Após o advento da ADI 4650/DF no TSE, foi retirada da Lei das eleições (art. 24, da lei 9.504/97) a possibilidade de doações em gastos de pessoas jurídicas nas campanhas eleitorais.7 Esta conduta está prevista no Art. 57-D § 2o e § 3o,, bem como pelo art. 57-H § 1o da Lei 9.504 de 30 de Setembro de 1997.8 “[…] A reprimenda a ser aplicada por esta Justiça Especializada pelo uso de publicidade

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Outras decisões do TSE, também, caminharam no mesmo sentido apesar de a legislação vigente garantir a intervenção estatal nos casos de fato sabidamente inverídico e ofensa à honra de candidatos. Destaca-se, neste sentido, a Representação nº 0601846-67.2018.6.00.00009, onde os candidatos Fernando Haddad e Manuela Dávila, solicitaram imediata retirada de fake news espalhadas nas diversas redes sociais, as quais associavam os candidatos ao fato inverídico de terem jogado no lixo uma bíblia recebida em um ato político em Fortaleza, juntamente com uma grotesca montagem que os associava à antirreligiosidade. Por sua vez, na Representação nº 0601545-23.2018.6.00.000010 solicitava o expurgo da internet da acusação feita por um blog contra o senador Álvaro Dias, que o acusava do recebimento de propina no valor de R$ 37 milhões da CPI da Petrobrás.

Em todas as ações, o TSE atribuiu a usuários da internet a capacidade e a responsabilidade de aferir a autenticidade do fato e fazer seu juízo de valor, sob o argumento da liberdade de informação, da livre circulação de ideias e sua confrontação pública, mesmo

de caráter eleitoral, certa e determinada, tida como ilícita situa-se em sede própria, qual seja, a representação de que cuida o art. 101 da mencionada Res.-TSE no 23.551/2017, observado o devido processo legal, tendo a jurisprudência do TSE se orientado, quanto ao tema, no sentido de prestigiar a liberdade de manifestação do pensamento, de expressão e de informação.” (BRASIL, 2018a, online).9 Na decisão extintiva do feito, o ministro Luís Felipe Salomão ressaltou as razões do indeferimento da liminar pleiteada: “[…] Em 28.10.2018, indeferi o pedido de tutela provisória, pois, com enfoque na Constituição Federal, concluí não ser o caso de atuação imediata desta Justiça especializada a fim de obstar a comunicação e retirar a postagem impugnada das redes sociais, uma vez que eventual falsidade no que toca ao conteúdo do vídeo pode ser aferida pelos próprios usuários da Internet, prevalecendo, dessa forma, a livre circulação de ideias e a sua confrontação pública, de modo a resguardar a liberdade de expressão e pensamento das pessoas”.10 Na decisão liminar, o ministro Jorge Mussi justifica sua posição de não intervenção: “[...] Na data de 5.10.2018 indeferi o pedido liminar, porquanto verifiquei que o conteúdo impugnado e considerado ofensivo pelos representantes consubstancia reprodução de notícias veiculadas em diversos sítios eletrônicos na Internet, sob o título: ‘Escândalo: Senador Álvaro Dias lucrou R$ 37 milhões com propina da CPI da Petrobrás’, a revelar que a sua divulgação não é inédita nos meios de comunicação social”.

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havendo fato ofensivo à honra e notoriamente inverídico.Seguramente, as decisões do TSE sobre os notórios

fatos inverídicos que permearam o processo eleitoral brasileiro tiveram uma clara opção de não intervenção judicial no conteúdo da internet, atribuindo o ônus do filtro social ao eleitor, apesar de, expressamente, a legislação brasileira garantir o direito de resposta e a retirada do conteúdo com fundamento no art. 58 c/c art. 57-D § 3º da Lei 9.504/97 nos casos que “[...] ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social.”.

A atitude do TSE, de omitir-se em tutelar da informação ilegal durante eleições, remete ao seguinte questionamento: a decisão do TSE foi decorrente da opção principiológica, contrariando a regra estabelecida ou refletiva pela notória incapacidade estatal em exercer o controle eleitoral prometido sobre as fake news? É fato, no entanto, a inércia da Justiça Eleitoral diante das regras atinentes ao processo eleitoral.

O abuso dos meios de comunicação social é sancionado com a mais grave punição eleitoral, a exemplo do disposto no art. 22 da Lei Complementar 64/9011, que regulamentou o art. 14, § 9º, da Constituição Federal12 com a perda de mandato e inelegibilidade, que preza pela legitimidade das eleições, enquanto a justiça especializada se exime de intervir minimamente na complexa realidade das fake news.

11 Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito.12 Art. 14 - § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

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Não se desconhece a expressiva influência do direito estadunidense no contexto jurídico nacional, elegendo a liberdade de expressão como princípio quase absoluto, impedindo o controle jurisdicional, inclusive de conteúdo expressamente vedado pela legislação pátria, que garante a intervenção estatal em casos de fake news. A autorregulação social é o que deveria ocorrer.

Acentua Aline Osório (2017, p. 58) que a liberdade de expressão “[...] é a realização da democracia e a autodeterminação coletiva”. Diz, ainda, “[…] é imprescindível garantir plena liberdade para que todos os grupos de indivíduos possam ter acesso a opiniões e pontos de vistas sobre temas de interesse públicos”.

Nesse processo, o que se observa é que as fontes de informação têm se diversificado, especialmente com a evolução tecnológica. Atualmente, a informação não é mais apenas aquela divulgada pelos veículos de comunicação tradicionais ou por meio de notícias elaboradas por profissionais no exercício da liberdade de imprensa. Também consiste em informação o conteúdo disponibilizado na Internet por meio da constante participação de indivíduos comuns em blogs, redes sociais e outros inúmeros espaços existentes que permitem esse tipo de integração com o público (RAIS et al, 2018).

A ideia da absoluta liberdade de expressão política encontra ressonância em Ronald Dworkin (1996, p. 200) ao reclamar que o “[…] Estado insulta seus cidadãos e nega a eles a sua responsabilidade moral, quando decreta que não pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas e ofensivas”.

Há a liberdade de expressão, de opinião e ideias, porém, o facto tem existência real, independentemente da utilização interpretativa que se faça dele seguindo a máxima de que podemos ter nossa própria opinião, mas não nosso próprio fato. A distorção ou manipulação fática, ou melhor a notícia fraudulenta (fake

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news) é que deve ser tutelada pela Justiça, como elege a legislação com a expressão “afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica”.

Não é um fato afirmar ou mesmo pôr em dúvida, a ideia de que o ex-presidente Barack Hussein Obama não era nascido nos Estados Unidos da América, como fez o movimento birthers protagonizado por Donald Trump. Relatam os atos de Trump Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 155):

[...] ‘Na verdade, eu tenho gente que andou estudando isso’ afirmou Trump, ‘e eles não conseguem acreditar no que estão descobrindo’. Trump se tornou o bither mais importante do país, aparecendo repetidas vezes em programas de televisão convocando o presidente a divulgar sua certidão de nascimento. E quando a certidão de Obama foi publicada em 2011, Trump sugeriu que era falsificada. Embora Trump tenha optado em não concorrer contra Obama em 2012, seu questionamento ostensivo da nacionalidade do presidente lhe valeu a atenção da mídia e fez com que fosse admirado pela base do Tea Party.13 A intolerância se mostrava politicamente útil14.

O questionamento e a manutenção da dúvida sobre fato incontroverso, público, não parece que deveriam ser considerados como opinião ou livre expressão, especialmente quanto precede de uma ação deliberada com a finalidade de obtenção de dividendos políticos. O detalhe é que Trump nunca admitiu a falsidade de suas afirmações, que, segundo pesquisas de opinião pública reveladas na obra citada de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 155), ainda fazia parte do imaginário de 37% dos entrevistados.

13 Tea Party é um movimento social, originado do Partido Republicano, ultraconservador e de direita radical, com participação expressiva nas eleições estadunidenses, surgido em 2009, quando dos protestos relativos à política social de saúde implantada pelo Presidente Obama.14 Bithers são considerados os participantes do movimento que propalava dúvida quanto à nacionalidade do então presidente dos Estados Unidas da América, Barack Obama.

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O exemplo brasileiro não foge ao modelo ianque. O presidente Jair Bolsonaro, durante o período eleitoral, atribuiu ao governo do PT, especialmente, ao Ministério da Educação (ocupado por seu adversário Fernando Haddad), a distribuição do que chamou de “kit gay”, que teria em seu conteúdo uma cartilha incentivando as crianças ao homossexualismo. O então candidato, chegou até mesmo a levar para uma entrevista na Rede Globo, no Jornal Nacional, a publicação em referência. Apesar da intervenção do Judiciário, que proibiu o candidato de veicular a informação falsa, esta continuou a ser difundida, tanto pessoalmente, como em programas de rádio, conforme apurado pela imprensa (CONGRESSO EM FOCO, 2018a, online).

Do lado oposto, no horário gratuito eleitoral de 16 e 17 de outubro de 2018, o Partido do Trabalhadores - PT, por meio do programa eleitoral, associou diretamente a imagem do candidato Jair Bolsonaro às torturas ocorridas na ditadura militar, inclusive com a utilização de imagens marcantes de tortura utilizadas pelo regime castrense. A vinculação da imagem foi realizada à mingua de comprovação histórica e baseada tão somente em entrevistas passadas que demonstraram o apoio à tortura em “certas” circunstâncias. A peça publicitária levava ao entendimento popular que Bolsonaro torturaria os adversários políticos, caso eleito fosse. O TSE mediante o deferimento liminar da Representação nº 0601776-50, suspendeu a propaganda eleitoral sob o argumento de que “[...] a distopia simulada na propaganda, considerando o cenário conflituoso de polarização e extremismos observado no momento político atual, pode criar, na opinião pública, estados passionais com potencial para incitar comportamentos violentos” (BRASIL, 2018b, online).

A exemplo de Trump, Bolsonaro e Haddad(PT), jamais admitiram as fraudes noticiadas e tiraram proveito eleitoral da fake new. Pesquisa do IDEIA Big Data/Avaaz, divulgada em 1º de novembro de 2018, revela que 83,7% dos eleitores de Jair Bolsonaro (PSL) acreditaram na informação de que Fernando Haddad (PT)

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distribuiu o chamado ‘kit gay’ para crianças em escolas quando era ministro da Educação (CONGRESSO EM FOCO, 2018b, online).

Os números indicam que fatos, e não opiniões, foram distorcidos em benefício de candidaturas, violando a liberdade de expressão e acesso à informação de qualidade que o Estado deve tolerar. Em completa inversão de valores, a mentira e a desonestidade parecem ser mais valorizados que a ética da verdade dentro do jogo democrático que o Estado se obrigou a regular.

Se a verdade não é mais um valor a ser perseguido pelos candidatos e partidos e a mentira é admitida e justificada quando há um suposto interesse “maior” (ideológico) a ser protegido – seja o liberalismo ou o socialismo, ainda que em suas roupagens mais softs – resta clara uma delegação política à população, especialmente aos apaixonados seguidores e protagonistas das redes sociais a irrestrita utilização das fake news.

A simbologia das ações dos representantes e líderes é absorvida e refletida socialmente, porquanto sempre é presente a lição de Pierre Bourdieu (2012, p.188): “O kred, o crédito, o carisma, esse não-sei-quê pelo qual se tem aqueles de quem isso se tem, é o produto do credo, da crença da obediência, que parece produzir o credo, a crença, a obediência.”

4.3. Qual a solução?

Como lidar com o falseamento com propósitos? Tudo se justifica para o lado oposto não levar a melhor. Estes ou outros bordões, talvez mais intolerantes ainda, permearam nas redes sociais e formaram a crença dos eleitores em obediência ao credo de seus lideres na eleição presidencial brasileira de 2018.

A intolerância e o discurso de ódio são consequentes dos credos e dos credores (políticos) que atuam em nome da democracia, de uma democracia própria, assim como se estabeleceram os

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regimes autoritários de outrora. De fato, o momento parece indicar o que alertava Samuel P. Huntington, na obra A Terceira Onda, a qual retrata a transição de regimes autoritários para democráticos no final do século XX. Huntington (1994, p. 307), chama atenção para a possibilidade do retrocesso democrático a depender das lideranças políticas e do desenvolvimento econômico: “A terceira onda, a ‘revolução democrática global’ no final do século XX, não durará para sempre. Ela pode ser seguida por uma nova vaga de autoritarismo, constituindo uma terceira onda reversa”.

Com efeito, a atitude política, com sua reprodução social na internet, remete obrigatoriamente para a decadência da qualidade da democracia (onda reversa), superada pela intolerância ideológica e doutrinária. O accountability do conteúdo democrático do processo eleitoral, que exige tolerância, verdade e padrões éticos de eleitos e eleitores, é tão ou mais essencial do que as ideias políticas defendidas. Guilhermo O’Donnell (2013, p. 92) lembra que “[…] uma avaliação da qualidade de uma democracia deveria ser útil para todos, incluindo aqueles que pensam que os avanços em algum de seus vetores são indesejáveis”.

Na democracia, o procedimento político democrático, já não é mais um valor em si. Parece que muitos vivem a política como um confronto irracional; uma luta de poder sem regras tanto por parte de representantes como de representados. As agressões entre políticos, no parlamento e nas redes sociais, tornaram-se cotidianas e reprisadas por novos protagonistas. É urgente que se renovem os valores democráticos e se reaprenda o que Chantal Mouffe (2006, online) considera essencial para vivência democrática:

Considero que é apenas quando reconhecermos a dimensão do “político” e entendemos que a “política” consiste em domesticar a hostilidade e em tentar conter o potencial antagonismo que existe nas relações humanas que seremos capazes de formular o que considero ser a questão central para a política democrática.

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É cabível a intervenção do Estado na mediação dos conflitos. Esta pode se dar, por exemplo, por meio de políticas públicas de restauração do processo político harmônico (que incluem programas de educação em massa de restauração dos valores democráticos). Também se mostra como uma solução plausível para a repressão à desonestidade (noticiais fraudulentas) eleitoral praticada intencionalmente, mediante punição pelo Poder Judiciário (tanto na Justiça Eleitoral, quanto na Justiça Comum). O alvo do combate jurídico deve se ater ao agente da fraude, sem se estender aos meros reprodutores, que, ressalvadas raras exceções, não há como comprovar o elemento volitivo da fraude, senso responsáveis apenas por compartilhar do que acreditam ser verdade ou mesmo, do que entendem ser melhor para sociedade.

A imprensa e a sociedade (partidos, associações e movimentos sociais) têm essencial participação no processo de revigoração da política como procedimento democrático de valor essencial na manutenção da racionalidade social. A continuar o declínio da qualidade democrática, com a preponderância da mentira e intolerância entre políticos (credores) e seguidores (credo), é previsível a mudança do locus do embate, das redes socais e aplicativos de internet para a vida real nas ruas e nos parlamentos.

5. CONCLUSÃO

O atual panorama político brasileiro em que se deram as eleições presidenciais de 2018, como se pode perceber, em muito se assemelha às circunstâncias que permearam o movimento eleitoral de 2016 nos Estados Unidos da América (eleição Trump vs. Hillary), isto é, a influência digital, especialmente das fake news.

Por meio de uma análise que faz uso dos meios oferecidos pela Psicologia Comportamental (e também, em menor medida, pela própria biologia), foi possível investigar como e por que as fake news

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causam tanto influxo. Isso porque, uma vez espalhadas, seus efeitos dificilmente conseguem ser desmistificados, fortalecendo cada vez mais a existência de cibergrupos, fato que torna as fake news uma promoção pessoal barata e com resultados bastante satisfatórios para seus beneficiários.

A regulação acerca do cuidado com a disponibilização de conteúdos online, não sem razão, cresceu nos últimos anos. Como se pode observar, entretanto, o posicionamento do Superior Tribunal Eleitoral é pelo respeito à liberdade de expressão. Nesse sentido, caberiam ao cidadão a “filtragem” e a criticidade do conteúdo disponibilizado na rede mundial de computadores. As decisões já proferidas pelo retromencionado Tribunal contraria o disposto na legislação eleitoral especializada, que faz menção à retirada do teor inverídico dos sítios eletrônicos, bem como prevê aplicação da penalidade de multa para os responsáveis pela divulgação do conteúdo, nesse caso, os agentes da fraude.

Diante do cenário atual em que se encontra o Brasil (e o mundo), qual seja, com a utilização cada vez mais frequente de ferramentas online para a propagação de conteúdos (verídicos ou não), o Direito deverá se preocupar em como tratar a temática da melhor forma possível. Isso significa que deverá levar em conta para a caracterização das fake news elementos que favoreçam a boa teorização do assunto, bem como a aplicação prática de uma possível solução para o caso.

Isto posto, o que se propõe no presente trabalho é que o Judiciário deverá se ocupar dos casos de condutas dolosas praticadas pelos agentes. Para tanto, essa conduta deverá ser apta a causar dano (potencial ou efetivo) e que o agente aja dolosamente na propagação das notícias falsas. No que diz respeito às condutas culposas, ou seja, de agentes considerados meros reprodutores das notícias sem ter conhecimento da (in)veracidade do conteúdo, a seara jurídica deverá se abster, pelo menos a priori, de intervir. Para esses casos, o que se propõe é a atuação de uma instância pré-jurídica, ou seja, moral e ética por parte da sociedade, que, inclusive, poderá a vir sancionar moralmente aquele “reprodutor”.

Atos de desonestidade e descomprometimento em

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relação aos valores democráticos, a exemplo da utilização do artifício das fake news são as grandes causas do que os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt consideraram como o início da deterioração da democracia estadunidense, ou seja, o desrespeito às normas não escritas. Parece, portanto, que o Brasil também pode caminhar para a mesma zona de perigo.

Sabe-se que a salvaguarda da correta informação exige tolerância, verdade e padrões éticos de candidatos e eleitores. Com efeito, como solução, foi proposto o investimento em políticas públicas educativas de restauração do processo político harmônico, seguindo-se de uma efetiva repressão à desonestidade eleitoral praticada intencionalmente, mediante punição pelo Poder Judiciário.

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O BERÇO DOS DIREITOS SOCIAIS:CEM ANOS DA CONSTITUIÇÃOMEXICANA E ALEMÃ

THE BIRTHPLACE OF SOCIAL RIGHTS:ONE HUNDRED YEAR OFMEXICAN AND GERMAN CONSTITUTION

Carlos Eduardo Dieder ReverbelMellany Chevtchik

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RESUMO: O presente artigo trata da comemoração dos 100 anos da Constituição Mexicana e da Constituição Alemã. Essas duas Constituições tratam da evolução e da primeira positivação dos Direitos Sociais em textos constitucionais. A Constituição da Alemanha ganhou maior notoriedade no cenário jurídico mundial, embora a Constituição do México tenha evoluído bastante na matéria dos direitos sociais. O Brasil foi influenciado pela Carta Constitucional de Weimar, mormente na regulamentação da função social da propriedade e no estabelecimento de um rol de Direitos Sociais.

PALAVRAS-CHAVES: Direitos individuais. Direitos sociais. Liberdades públicas. Constituição mexicana de 1917. Constituição de Weimar de 1919.

ABSTRACT: This article deals with the celebrating the 100th anniversary of the Mexican Constitution and the German Constitution. These two Constitutions deals with the evolution and the first positivation of the Social Rights in constitutional texts. The Constitution of Germany gained more prominence in the world legal scene, although the Constitution of Mexico has evolved a lot in the matter of social rights. Brazil was influenced by the Constitutional Charter of Weimar, mainly in the regulation of the social function of property and in the establishment of a Social Rights role.

KEYWORDS: Individual and social rights. Public freedoms. Mexican constitution of 1917. Weimar constitution of 1919.

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1. INTRODUÇÃO

O reconhecimento de um rol de direitos e liberdades inerentes à pessoa humana na civilização ocidental foi um processo longo e conturbado, intrinsecamente ligado à noção de que o Estado está vocacionado à realização da pessoa e não o contrário. No século XIX, sob o estandarte da liberdade, igualdade e fraternidade, a Revolução Francesa lançou as bases das gerações de direitos fundamentais que lhe sucederam, a começar pelos direitos civis e políticos, consagrados na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. No primeiro quarto do século XX ocorreu a institucionalização dos direitos sociais e econômicos nos textos constitucionais. Todavia, mais recentemente a crise do Welfare State ou Estado do bem-estar social despertou a consciência sobre os valores da solidariedade e fraternidade, no cenário jurídico contemporâneo.

O centenário da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição Weimar de 1919 e a sua importância na gênese dos direitos fundamentais de “segunda geração” reacendeu o debate em torno dos direitos sociais, justificando a realização do presente estudo. A primeira parte analisa o surgimento dos direitos fundamentais, do ponto de vista histórico-político, desde as liberdades públicas asseguradas nas primeiras declarações de direitos, até o surgimento dos direitos sociais e o constitucionalismo de valores. A segunda parte dedica-se ao estudo dos direitos sociais na Constituição Mexicana de 1917, dos aclamados debates da Constituinte até a elaboração do seu texto final. A terceira parte é reservada aos direitos sociais na Constituição Alemã de 1919 e, por fim, sua atual concepção.

2. DIREITOS LIBERDADES E DIREITOS SOCIAIS

Ao remontar a história dos direitos fundamentais,

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costuma-se referir, já na Idade Média, aos forais, às cartas de franquia e à Magna Carta inglesa de 1215. Ocorre que os direitos e liberdades nela previstos não eram dotados de um caráter universal. Em verdade, estava mais direcionada aos direitos do cidadão inglês do que aos direitos do Homem. Quando o fragmentado complexo de forças políticas e sociais do regime feudal sucumbiu diante do fortalecimento e a centralização absoluta do poder real no Estado nacional moderno, entre os séculos XV e XVII, foi necessário resgatar a limitação do poder real através de freios jurídicos (já experimentada na sociedade política medieval) para que se pudesse falar na institucionalização dos direitos fundamentais em sua “primeira geração”.

2.1. As Liberdades Públicas

As declarações de direitos decorrentes da revolução liberal iniciada na Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 04.11.1688, continuada nos EUA com a Declaração de Independência de 04.07.1776, e cujo apogeu fora a Queda da Bastilha francesa em 14.07.1789, estavam nitidamente imbuídas de um caráter jusnaturalista, cujo propósito era limitar o poder. O Bill of Rigths inglês de 1689 afirmou a independência e o reconhecimento da soberania do Parlamento e o Ato de Estabelecimento de 1701 traçou a independência do Poder Judiciário. A mesma fórmula, adaptada às exigências do Novo Mundo, fora observada quando os americanos se afirmaram livres da metrópole inglesa. Mas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, além de exaltar a importância dos direitos e da separação os poderes, trouxe em seu bojo um universalismo inédito até então.

Em suma, a ideia era que a separação dos poderes poderia restringir a atuação do Estado, conforme teorizado por Montesquieu, a partir da experiência inglesa (“pouvoir arrête le pouvoir”). Além

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do mais, as funções do Estado limitar-se-iam à preservação da ordem interna (mediante a administração da justiça e o exercício do poder de polícia) e à defesa da segurança externa. A interferência no domínio social e econômico era concebida negativamente, segundo a lógica do laissez faire, laissez passer. A finalidade das associações políticas era, pois, a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem, a teor do que dispunha o art. 2.º da DDHC.

Tanto a separação dos poderes como a limitação das funções do Estado visavam, em última análise, proteger o indivíduo dos abusos do poder estatal. Eram as chamadas liberdades públicas de “primeira geração”. O primado da liberdade do indivíduo em relação ao poder soberano e o respeito deste aos direitos do primeiro consubstanciou uma mudança na concepção de liberdade até então em vigor. Se, por um lado, a liberdade dos antigos consistia na participação dos membros da comunidade no exercício da soberania e do poder político, por outro lado, a liberdade dos modernos refere-se à autonomia de ser e de agir do indivíduo diante do Poder, de outro.

O status negativus reconhece ao indivíduo um espaço de liberdade requerido para sua autodeterminação (liberdades jurídicas não protegidas), ou seja, seu status libertatis, sendo vedada toda e qualquer proibição que não estivesse legalmente fundamentada. Os direitos individuais eram subordinados exclusivamente à lei, “pedra de toque da construção política liberal”, “única restrição admitida ao princípio primeiro e basilar da liberdade individual” . Em outras palavras: somente a lei pode colocar limites ao exercício dos direitos naturais dos homens (DDHC, art. 4.º) e “tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene” (DDHC, art. 5.º).

Numa época em que a liberdade individual e social era considerada o valor mais caro da comunidade política, os direitos fundamentais, em sua concepção clássica, eram concebidos como

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direitos do indivíduo frente ao Estado. A liberdade era vista como um produto da igualdade formal: todos os cidadãos são iguais perante a lei e esta deve ser a mesma para todos (DDHC, art. 6.º).

Teoricamente fundamentado no consentimento dos governados, o processo político liberal pretendia ser democrático. Na realidade, na primeira fase do Estado Liberal a democracia instrumental era uma democracia pela representação, caracterizada pelo sufrágio censitário e pela presença de “grupos parlamentares” ao invés de partidos. Era uma democracia “contra” os partidos, ou “apesar” dos partidos. A grande massa popular não possuía canais políticos de representação. Havia um “consenso” em torno da ordem econômica e social liberal, sem existir, contudo, uma oposição político-ideológica efetiva. Historicamente, portanto, o Estado liberal se desenvolveu em uma sociedade com participação política limitada.

No entanto, o liberalismo econômico proporcionado pelo Estado abstencionista foi acompanhado pelo agravamento da questão social, com a concentração de riquezas e a penúria da classe trabalhadora marginalizada. À medida em que se expande o sufrágio, com a ascensão política das massas e o aumento progressivo do processo de democratização, o Estado liberal entra em crise. Surgem os partidos políticos, sob a feição de partidos de quadros, numa segunda fase do Estado liberal, depois os partidos ideológicos (também conhecido como Estado-de-partidos no século XX), tidos como os agentes responsáveis pela transformação do Estado liberal em Estado social.

2.2. Os Direitos Sociais

Até o século XIX as preocupações do Estado cingiam-se às condições genéricas do bem comum (preservação da ordem interna e defesa da segurança externa). Contudo, as crises

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cíclicas do sistema capitalista e a “necessidade de fazer frente aos custos humanos das realizações econômicas do capitalismo”, do ponto de vista econômico e social, em consonância com os valores das doutrinas socialistas e a própria doutrina social cristã (encíclica Rerum novarum), do ponto de vista ideológico, conduziram a uma revisão da postura liberal clássica.

Do ponto de vista político, a universalização do sufrágio e a organização dos partidos ideológicos modernos permitiram a participação política das massas no processo eleitoral, abrindo espaço para um regime democrático pluralista com alternância ideológica no poder. Os partidos políticos passam a desempenhar importante papel na organização política das forças sociais, e a democracia instrumental passa a praticar a democracia pelos partidos. Paralelamente, o desenvolvimento da economia de mercado proporcionou os “recursos necessários para o desenvolvimento dos serviços e programas reivindicados pelos reformadores sociais”.

As economias de guerra impulsionaram o intervencionismo, alargando as atribuições e competências do Estado, em substituição ao liberalismo econômico de outrora. Com o advento do Estado social, o Estado assume progressivamente uma função nova: cuidar das condições específicas do bem comum, a fim de assegurar a todos os seres humanos uma vida digna. Os direitos fundamentais passam a comportar não apenas abstenções (liberdades públicas), mas também prestações estatais (status positivus ou status civitatis). Em outras palavras: “passamos da não intervenção do Estado nas relações privadas ao forte movimento intervencionista para promoção dos direitos sociais”.

O aumento das funções do Estado implica uma mudança na concepção tradicional da função do direito: enquanto no Estado Liberal Clássico a função do direito era protetivo-repressiva, ou seja, o direito visava regular os comportamentos mediante sanções negativas (penas, multas, reparações, ressarcimentos), no Estado

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Social Contemporâneo o direito adquire uma função promocional, encorajando certas atividades mediante sanções positivas. Assim chegamos à “segunda geração” dos direitos fundamentais, direitos econômicos e sociais arraigados ao princípio da igualdade, dirigidos não apenas aos indivíduos, mas também dos grupos sociais.

Este processo não foi imediato, mas marcado por uma série de avanços, a começar pela Declaração Francesa de 1793, que previa os socorros públicos (art. 21) e a instrução (art. 22), assim como a nossa Constituição do Império de 1824 (art. 179, n. 31 e 32). A própria Constituição Francesa de 1848 continha o direito ao trabalho e à educação. No constitucionalismo da primeira guerra mundial, a revolução comunista de 1917, de um lado, resultou na Declaração Russa dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918 (posteriormente incorporada pela Constituição da República Soviética Russa do mesmo ano). Do lado ocidental, a nova “geração” dos direitos fundamentais adquiriu expressão com a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, fruto dos movimentos revolucionários ocorridos no México e na Alemanha e, que serão analisadas a seguir.

3. OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917

Em 2017 celebramos o centenário do nascimento da Constituição Mexicana cujos trabalhos foram iniciados no dia 01 de dezembro de 1916, na cidade de Querétaro. A doutrina refere ser ela a primeira carta constitucional a regulamentar, expressamente, os direitos sociais. A Revolução Mexicana de 1910 defendia o reconhecimento de direitos sociais, econômicos e políticos. Entretanto, somente em 1917 é que os Mexicanos conseguiram positivar esses direitos num texto formal e solene.

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O Governo de PORFIRIO DÍAZ proporcionou ao México (de 1876 até 1911) um enorme progresso econômico. Tal avanço não se refletia, de fato, na vida das pessoas. Em realidade, o crescimento econômico mexicano somente se refletia nas camadas sociais mais abastadas, uma vez que a oligarquia local aumentava, e muito, o seu poder aquisitivo. De outro lado, uma grossa maioria da população vivia abaixo da linha da pobreza. PORFÍRIO DÍAZ não somente centralizava o poder, como se reelegia indefinidamente. O político MADERO ingressa no cenário mexicano para mudar essa situação. O lema de sua campanha proclama: “Sufrágio efectivo. No reelección”.

MADERO sagrou-se vencedor das eleições, mas foi assassinado, assumindo o poder o Sr. VICTORIANO HUERTA. Os ânimos estavam acirrados e o governador do Estado de Coahuila, Don VENUSTIANO CARRANZA assume o poder ordenando a expedição de um decreto (datado de 14 de setembro de 1916), convocando a formação do Congresso Constituinte. Na primeira seção aberta para o debate do texto, Don CARRANZA entregou o Projeto pronto para futura discussão, aprovação e modificação. A Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos foi promulgada em 05 de fevereiro de 1917, protegendo direitos sociais ao trabalho, a função social da propriedade e outras liberdades fundamentais.

3.1. Direito Social ao Trabalho e a Função Social da Propriedade

Rememorando o que vinha expresso na Lei de 1.857 o artigo 5º da Constituição mencionava a justa retribuição pecuniária ao trabalho prestado, bem como o assentimento do empregado em prestar tal serviço (afastando-se das amarras da escravidão). Os Deputados Cándido Aguilar, Heriberto Jara e Victorio Góngora projetaram mais garantias aos trabalhadores, principalmente no tocante à jornada de trabalho e na proposição de comitês de

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conciliação e arbitragem, entre patrão-empregado. O direito laboral foi amplamente debatido no Congresso Constituinte. Os opositores criticavam a Carta Constitucional apresentada, associando-a a imagem de um Cristo con dos pistolas.

A questão precisava ser resolvida. ALFONSO CRAVIOTO foi quem, num discurso profético, liderou a mudança. Sugeriu por primeiro sacar do artigo 5º os direitos dos trabalhadores. Por segundo, dar um destaque especial a estes direitos num artigo próprio, cujo discurso inflamado empolgou a todos. Ouçamos o célebre Deputado:

(…) Insinúo la conveniencia de que la Comisión retire, si la Asamblea lo aprueba, del artículo 5º, todas las cuestiones obreras, para que, con toda amplitud y toda tranquilidad, presentemos un artículo especial que será el más glorioso de todos nuestros trabajos aquí; pues así como Francia, después de su revolución, ha tenido el alto honor de consagrar en la primera de sus cartas magnas, los inmortales derechos del hombre, así la revolución mexicana tendrá el orgullo legítimo de mostrar al mundo que es la primera en consignar en una Constitución los sagrados derechos de los obreros(…)

O Sr. Macías apresentou, portanto, juntamente com outros deputados (e até com a participação do engenheiro Pastor Rouaix – secretário de fomento) um artigo específico fora do capítulo das garantias individuais. Sem maiores formalidades, o projeto de artigo foi debatido durante os dez primeiros dias de Janeiro de 1917, sendo os trabalhos concluídos no dia 13 de janeiro, com a sugestão de que a seção respectiva levasse o nome “Del trabajo y de la Previsión Social”. No dia 23 de janeiro os trabalhos foram concluídos, com a fala entusiástica de Rouaix: “(…) quedó terminado uno de los debates más largos y fructíferos que tuvo el Congresso de Querétaro”. E mais adiante: “quedó establecido por primera vez en la Constitución Política de un país, preceptos que garantizaban

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derechos del proletariado trabajador (…)”. Assim nasceu o famoso artigo 123 dos direitos sociais dos trabalhadores mexicanos.

Outro problema originário da Revolução Mexicana foi o da propriedade privada. A propriedade rural necessitava de um tratamento específico nesta Constituição. O projeto do artigo 27 protegia a propriedade privada, mas atentava que a mesma deveria atender a utilidade pública, sua desapropriação deveria ser precedida da justa indenização, bem como se passou a proibir que as corporações religiosas administrassem outros bens que não somente aqueles destinados diretamente a sua finalidade religiosa. O Projeto do artigo 27 foi apresentado ao Congresso Constituinte no dia 24 de Janeiro de 1917, sendo aprovado no dia 30 de Janeiro, por unanimidade de votos. Instaurou-se, naquele momento, a função social da propriedade, em contraste com a tradição romana de ter, usar e abusar dos bens.

3.2. Liberdade de Associação, Reunião e Ensino

A Carta Constitucional do México também se preocupou com a liberdade de associação e a liberdade de reunião, no artigo 9º. Estes direitos são fundamentais nas sociedades democráticas, uma vez que abrem espaço ao pluralismo político e ideológico dos grupos organizados, que intentam atividades conjuntas. Assim, os cidadãos passam a influenciar e a participar indiretamente do governo, controlando a sua atuação.

A associação de indivíduos, dotados de personalidade jurídica, é direito essencial de um Estado. Esses grupos permanentes objetivam metas e fins específicos aos Estados contemporâneos. Sendo que ninguém é obrigado a associar-se ou manter-se associado. O direito de reunião, por sua vez, é uma liberdade pública individual que faculta a um grupo de pessoas se destinar a determinado local para cumprir um fim específico e depois dissipar-se. Este direito

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deve ser exercido, como se sabe, pacificamente, sem armas, e para finalidade lícita, de acordo com a lei. A Constituição Mexicana de 1917 já se preocupava com a regulação dessas liberdades públicas fundamentais, mesmo que timidamente.

Assim como a liberdade de reunião e de associação, os mexicanos, em sua caminhada constitucional já haviam conquistado o direito a educação livre na Constituição da República Mexicana de 1857 (art. 3º). A nova Constituição mantém esta previsão e garante ainda o direito social à educação obrigatória, laica e gratuita. Sendo assim, é vedado às organizações religiosas estabelecerem ou dirigirem instituições de educação primária (art. 3º), dado que, a teor do que dispõe o art. 3º, o ensino é laico. O art. 31, por sua vez, impunha aos mexicanos a obrigatoriedade do ensino primário.

4. OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919

A Alemanha, no século XIX, contava com praticamente duas mil unidades políticas. O mapa político era uma verdadeira colcha de retalhos, espalhando pequenos povoados por todos os cantos da Alemanha. O processo de unificação acompanhou lento processo histórico de aglutinação, em que as cidades-estados foram sendo anexadas e crescendo de tamanho. Hanover, por exemplo, aumentou 10 vezes de tamanho do século XIX para o século XX. Nesse processo de unificação a guerra de 1870-1 contribuiu para vencer o particularismo que dominava em alguns Estados do Sul da Alemanha e em 1871 o rei Guilherme I da Prússia é proclamado Imperador em Versalhes.

Servindo-se do ideal federalista da Paulskirche de 1848, Otto von Bismarck (chefe do governo prussiano e durante longo período Chanceler do Reich) formou as bases da Constituição do Segundo Reich que se estendeu de 1871 a 1918, outorgando ao

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Estado federal um direito bem mais amplo em matéria legislativa. No entanto, esta Constituição não continha disposições sobre direitos fundamentais nos mesmos termos das Constituições que lhe sucederam, isso, porque, tais matérias eram contempladas pelas Constituições dos Estados alemães.

Em 1918, após quatro anos de luta, ciente da superioridade de seu inimigo diante da derrota de seus aliados na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha chega ao fim de sua capacidade de resistência. Com a derrocada das instituições políticas e um quadro social crítico, a esquerda radical, influenciada pelos valores bolcheviques vitoriosos na revolução russa, luta para tomar o poder e estabelecer os conselhos de operários e soldados. Nas palavras de PETER GAY: “algum tipo de revolução parecia inevitável”. De fato, neste cenário triunfa a revolução que culminou com a elaboração da famosa Constituição de Weimar de 1919.

A revolta na Base Naval de Kiel de 28.10.1918, com a insurgência dos marinheiros contra a “batalha final”, ecoou, deflagrando uma greve geral. Em 09.11.1918 o então Chanceler, Príncipe Max de Baden, anuncia a abdicação do Kaiser Guilherme II e faz de Friedrich Ebert seu sucessor. Os líderes do movimento revolucionário assumem o controle dos órgãos centrais de Berlim. Os governos dos Estados são derrubados e o Social Democrata Philipp Scheidemann, antecipa-se aos Spartakus e proclama a República. Em 12.11.1918 o novo Governo, composto por três representantes do Partido Socialista Majoritário Alemão (MSPD) e três do Partido Social Democrata Independente (USPD) publica seu primeiro pronunciamento na Gazeta oficial do Reich: “El Gobierno nacido de la Revolución, cuya orientación política es puramente socialista, se impone la misión de realizar el programa socialista […]”.

Com a abdicação formal do Imperador e a renúncia do príncipe herdeiro, o governo desacreditado já não oferecia ameaças ao Governo provisório estabelecido. A maior ameaça da República

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de Weimar era uma luta de “socialistas contra socialistas” (entre os grupos radicais de esquerda, representantes da vertente marxista do socialismo, e os socialistas moderados). Após uma série de incidentes e crises, que culminaram com a saída dos Independentes do governo provisório, o movimento socialista alemão quedou enfraquecido. Convocadas as eleições para a Assembleia Constituinte (realizadas em 19.01.19), os partidos socialistas não obtiveram maioria absoluta esperada.

O Primeiro Projeto de Constituição, redigido pelo Ministro Hugo Preuss, continha tendências acentuadamente unitárias, suscitando protestos federalistas, razão pela qual fora consideravelmente modificado pelo Governo, resultando num Segundo Projeto. Submetido à Comissão de Estados, tal Projeto não sofreu alterações consideráveis e, ainda em fevereiro o Terceiro Projeto fora levado à Assembleia Nacional. A Comissão Constitucional então efetuou um trabalho mais profundo e objetivo, que culminou num Quarto Projeto, que, em essência, deu à Constituição seu aspecto final.

Em que pese os Estados tenham sofrido algumas restrições em seus direitos, o capítulo dedicado aos direitos e deveres fundamentais do cidadão fora ampliado, passando a contar com disposições sobre religião e associações religiosas, vida econômica, entre outras. A Constituição, inclusive, ampliou o âmbito dos direitos fundamentais da liberdade de opinião e da liberdade de associação à vida jurídica total em seus arts. 118 e 159, permitindo sua aplicação entre particulares. A Constituição de Weimar foi aprovada em 31.07.1919, firmada pelo Presidente do Reich em 11.08.1919 de agosto e finalmente publicada em 14.08.1919.

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4.1. Proteção ao Trabalho, Função Social da Propriedade e Socialização das Empresas

A heterogeneidade política resultante constituiu um grande obstáculo para a tomada de decisões na Assembleia. Apenas com mudanças de coalizões se alcançavam as maiorias necessárias. Era preciso, para tanto, concessões recíprocas, predominando, entre direita e esquerda, arranjos intermediários. A influência socialista, principalmente na seção referente à vida econômica da Constituição, foi mitigada, caracterizando-se pela adoção de uma postura mais condizente com a realidade econômica da Alemanha arrasada do Pós-Guerra.

Ainda na primeira Seção da parte relativa aos Direitos e Deveres fundamentais dos cidadãos alemães, além da liberdade de circulação pelo Reich para fixar domicílio e para adquirir bens, o art. 111 trata da liberdade para o exercício de profissão, para apenas mais adiante regular a propriedade, o trabalho, etc. Todavia, diferentemente dos mexicanos, que dedicaram um Título (6º) específico ao tratamento dos direitos do trabalhador, na Constituição de Weimar de 1919 a propriedade e as relações trabalhistas são tratadas na Seção (5ª) referente à “Vida Econômica”. Mas isso por si só não ofusca o avanço conferido no tratamento da matéria, a qual fora dedicada atenção numa extensão sem precedentes nas Constituições dos Estados Alemães.

Assim como a Constituição Mexicana, em seu art. 123, a Constituição de Weimar também previa a criação de um direito trabalhista (art. 157). Note-se, todavia, que a Constituição Mexicana fora muito mais exaustiva, em que pese em um número menor de artigos, ao dispor sobre o do trabalho que a Constituição Alemã. Entretanto, nem por isso foram deixados de lado temas como os sindicatos (art. 159). Visando a melhoria das condições de trabalho e da vida econômica, os sindicatos foram estendidos a todas

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profissões, não estando mais restritos apenas à classe industrial. Os seguros sociais, dependentes da colaboração do assegurado, já existentes na Alemanha há mais de 40 anos, também não foram olvidados (art. 161).

Ocorre que a conquista de direitos como a limitação da jornada de trabalho, condições salubres nas instalações das empresas, seguros sociais, etc., implicou um aumento nos custos de produção, prejudicando, em maior medida, no cenário internacional, os Estados que mais energicamente impusessem esta proteção que os demais. Atentos a necessidade de proporcionar a classe trabalhadora um mínimo de direitos sociais, a Assembleia Nacional previu a necessidade de uma regulamentação internacional (art. 162) das condições gerais das relações trabalhistas. Além do reconhecimento do direito ao trabalho, outro aspecto importante é a garantia de apoio aos necessitados, mediante o atendimento de condições indispensáveis ao seu sustento (art. 163). Tal aspecto, todavia, gerou grandes problemas econômicos na Alemanha já arrasada pela primeira guerra mundial.

As limitações impostas aos princípios fundamentais da ordem individualista da sociedade e da economia têm por base um já mencionado socialismo moderado. Nesse viés, a liberdade econômica do indivíduo é assegurada dentro dos ditames da justiça, da existência humanamente digna e do bem comum (art. 151), que não consistem novidades na legislação do Reich. A Constituição de Weimar conserva ainda a garantia à propriedade privada, bem como a possibilidade de expropriação de bens imóveis (art. 153), anteriormente previstos nas Leis e Constituições Territoriais.

Todavia, o direito à indenização plena não constitui mais garantia irrestrita, estando sujeito às limitações impostas pelas leis do Reich.

Sob a máxima “a propriedade obriga”, a Constituição prevê a função social da propriedade, cujo uso deve atender o interesse geral (art. 153). Ademais, visando atender as necessidades

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habitacionais dos alemães, fomentar a colonização e proporcionar a rotação de terras para o desenvolvimento da agricultura, foi previsto um programa de reforma agrária (art. 155). O art. 155 estabelece ainda que o cultivo e a exploração do solo são um dever do proprietário para com a coletividade.

No tocante à socialização, os alemães foram além e previram três modalidades de intervenção estatal nas empresas (art. 156). A primeira consiste em uma espécie de “agrupamento”, em virtude de lei, de diversas empresas (que conservam sua autonomia), visando assegurar a colaboração de todos os elementos de produção, a participação de patrões e empregados na administração e regular, de acordo com os princípios da economia social, a produção, a distribuição, a fixação de preços, a importação e a exportação de produtos. A segunda, mais intervencionista, envolve a participação do Estado e dos municípios na administração das empresas. Por fim, a terceira significa a socialização das empresas, com a conversão destas em propriedade coletiva.

4.2. Liberdade de Associação, Reunião e Ensino

A teor do que dispunha a Constituição do Império Alemão (Reichsverfassung), as reuniões somente poderiam ser dissolvidas quando no todo ou essencialmente não compostas por alemães; quando descambassem em tumulto; ou quando seus manifestantes estivessem armados e não fosse possível dispersá-los. Antes da Lei de Associações de 1908, o direito de associação e reunião era regulado pelos Lands. Uma vez suprimidas as restrições impostas pela Lei de Associações em 1918, não mais se exigia aviso prévio em reuniões de cunho político ou vedava-se a participação de menores de 18 anos nestas; nem sequer era necessária a outorga de permissão especial para a realização de reuniões ao ar livre – foram mantidas apenas disposições visando proteger os próprios participantes (e.g. a

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proibição de armas) .A Seção II da Constituição de Weimar reafirma

estes direitos. De modo semelhante ao que dispõe o artigo 9º da Constituição Mexicana, o artigo 123 da Constituição Alemã de 1919 confere aos alemães o direito de se reunir pacificamente, sem armas e sem necessidade de aviso prévio ou permissão especial. Note-se, todavia, que permanece o critério da nacionalidade, sendo este um direito privativo dos alemães, enquanto na Constituição Mexicana esta limitação fora atenuada, cingindo-se apenas a questões políticas.

O art. 124, por sua vez, permite a formação de associações ou sociedades para fins que não contrariem as normas penais. Não são permitidas restrições prévias, bem como, a negativa da aquisição da personalidade jurídica pelas associações por razões relacionadas ao seu propósito político, social ou religioso . O art. 137 abre ainda a possibilidade de outorga de capacidade jurídicas às associações religiosas, diferentemente da Constituição Mexicana.

A Seção IV regula de maneira detida a educação e as instituições de ensino, matéria absolutamente relegada pela legislação do Reich até então, em razão das opiniões divergentes. No primeiro artigo da Seção são enunciadas a liberdade artística, científica e de ensino, as quais o Estado se compromete a proteger e promover (art. 142). A partir do viés da democratização da educação, são estabelecidas a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino, bem como dos materiais didáticos (art. 145), sendo prevista, inclusive, a concessão de subsídios para o acesso aos níveis secundário e superior (art. 146). Diferentemente da Constituição mexicana (art. 3º), na Constituição Alemã são toleradas organizações escolares baseadas em crenças religiosas (art. 146), sendo o ensino religioso parte obrigatória do currículo (art. 149) em instituições não laicas, estando prevista a possibilidade de adequação do ensino, mediante a organização de instituições, às crenças culturais e religiosos das famílias (art. 146).

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5. CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais, em sua origem, foram marcados pelos direitos e liberdades de “primeira geração”, que visavam assegurar um espaço de autodeterminação ao indivíduo, através da liberdade em face do Estado. No entanto, com o passar do tempo percebeu-se que a garantia de uma liberdade genérica e abstrata não seria suficiente para permitir a autodeterminação almejada e que o Estado precisaria intervir, em certa medida, e proporcionar os meios para que essa liberdade fosse exercida em igualdade de condições. Surgem os chamados direitos fundamentais de “segunda geração”, que passam a comportar não apenas abstenções, mas também prestações do Estado. Exatamente neste contexto eclodem duas revoluções, uma no México em 1910 e outra na Alemanha em 1918-9, culminando com a positivação dos direitos sociais nos textos constitucionais. Entretanto, a concepção acerca dos direitos sociais não permanece a mesma.

De fato, a atual Constituição da Alemanha de Bonn de 1949 afirma o Estado Social dentre seus princípios constitucionais (art. 20, §1), mas não o traduz em pretensões individuais, ao passo que alguns autores chegam a afirmar que a atual Constituição Alemã renuncia aos direitos sociais. Em que pese a nova Constituição contenha um Capítulo sobre o Sistema Financeiro, dedica apenas um artigo ao Ensino (art. 7) e outro à Liberdade de Escolha da Profissão (art. 12), no Capítulo dos Direitos Fundamentais. Não há mais previsão de subsídios ou materiais escolares gratuitos (art. 145 e 146 da Constituição de 1919). A proteção ao trabalho, antes sob a tutela especial do Reich (art. 157), passou a ser matéria de legislação concorrente da Federação e dos Estados (art. 74, §1, alínea 12), assim como a seguridade social, passando a maternidade a ser objeto de proteção e assistência da comunidade (art. 6, §4).

No contexto brasileiro, a Constituição de 1934 e suas

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sucessoras passaram a assegurar direitos sociais. O texto de 1934 continha os direitos econômicos e sociais em seu Título IV e ainda, um Título V dedicado à família, educação e a cultura. Mesmo a Constituição de 1937 (considerada a mais autoritária de nossas constituições) possuía uma seção destinada aos direitos e garantias individuais e também à ordem econômica. A Constituição de 1946 realizou um retorno às fontes liberais de 1891, mas foi capaz de assimilar as conquistas do Estado Social, contendo disposições atinentes à ordem econômica e social no Título V. A Constituição de 1967, seguindo a mesma linha, tratou da ordem econômica e social no Título III, estrutura mantida mesmo após a ampla revisão efetuada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969.

Com o propósito de reinstitucionalizar o regime democrático no país, a Constituição de 1988 normatizou os direitos fundamentais sobre o tripé dos direitos-liberdades, direitos sociais e direitos políticos. Seguindo os influxos do Estado Social Contemporâneo, passou a adotar a denominação “Direitos e Garantias Fundamentais” em seu Título II (ao invés das “declarações de direitos” de outrora), dedicando seu Capítulo I aos direitos e deveres individuais e coletivos, e seu Capítulo II aos direitos sociais, elencando em seu rol a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, contando com disposições detalhadas acerca do direito do trabalho.

Todos esses direitos sociais elencados foram influenciados – de uma forma ou de outra – pelas cartas constitucionais estrangeiras. A Constituição de Weimar notabiliza-se como a mais famosa, a mais copiada, a que mais repercutiu e influenciou os países da Ibero-América. A Constituição Mexicana, entretanto, fica relegada a um segundo plano, embora devesse ser mais valorizada, mormente pelos países de fala espanhola, que se não a copiaram diretamente, indiretamente beberam nas suas fontes primárias os

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ensinamentos básicos dos Direitos Sociais ora positivados. Nesses cem anos da Constituição Mexicana diversos livros e artigos foram publicados sobre o tema, momento em que a doutrina passou a se redimir e preencher essa lacuna doutrinária sobre o importante texto da Constituição de Querétaro de 1917.

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COERÊNCIA, INTEGRIDADE E JUSTIÇA ELEITORAL: MUNDOS À PARTE?

Francisco José Borges Motta Rodrigo López Zilio

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RESUMO: O artigo analisa se as decisões proferidas pela Justiça Eleitoral têm preenchido, adequadamente, os requisitos de coerência e integridade, exigência es-pecífica do novo código de processo civil. Para tanto, partindo da tese de Ronald Dworkin, de que as decisões devem ser geradas por princípios, perquire-se se o Tri-bunal Superior Eleitoral, notadamente nos denominados casos difíceis, tem cumprido com seu dever de julgar as lides eleitorais tendo presente a ideia de integridade do direito. Então, na sequência, é feita uma análise de deci-sões recentes do TSE sobre temas relevantes do Direito Eleitoral (pesquisa, propaganda em templos e igrejas e inelegibilidade decorrente de condenação por violação aos direitos autorais), para concluir que a jurisprudên-cia eleitoral ainda tem um bom caminho a percorrer para compreender para o aperfeiçoamento de sua prestação jurisdicional.

PALAVRAS-CHAVE: Justiça Eleitoral. Decisão judi-cial. Coerência. Integridade. Argumentos de princípio.

ABSTRACT: The article analyzes if the decisions given by the Electoral Justice have adequately fulfilled the re-quirements of coherence and integrity, specific require-ment of the new code of civil procedure. To do so, based on Ronald Dworkin’s thesis, that decisions must be gen-erated by principles, it is necessary to consider whether the Superior Electoral Court, especially in so-called hard cases, has fulfilled its duty to judge the electoral pro-cess, bearing in mind the idea of integrity of the law. Then, an analysis is made of recent TSE decisions on relevant Electoral Law issues (research, advertising in

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temples and churchs, and ineligibility by condemnation for copyright infringement), to conclude that electoral jurisprudence still has a good way to go to understand for the perfection of their jurisdictional provision.

KEY WORDS: Electoral Justice. Judicial decision. Co-herence. Integrity. Arguments of principle.

1. INTRODUÇÃO O que significa levar o Direito a sério? A pergunta nos remete ao trabalho do jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013), que se tornou um dos teóricos mais influentes do pen-samento jurídico contemporâneo quando, a partir da década de 60 do século passado, desafiou, de forma original e abrangente, a tese da separação conceitual necessária entre direito e moral1. Para o au-tor, uma democracia deve levar a sério os direitos dos integrantes da comunidade política, protegendo-os do arbítrio e, eventualmente, mesmo das vontades majoritárias dos indivíduos; e uma forma de resguardar estes direitos (e de reconectar direito e moral) é a exi-gência de que as decisões jurídicas sejam geradas por princípios morais. Desenvolvendo esta ideia, e em meio a um contexto consti-tucional que consagra a judicial review, Dworkin concebeu o Poder Judiciário como um fórum independente, um fórum do princípio, que deveria honrar a seguinte promessa, feita aos integrantes da co-munidade política: de que seus conflitos mais profundos e funda-mentais, “irão, em algum dia, em algum lugar, tornar-se finalmente questões de justiça”2.

1 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, USA: Belknapp, 1977.2 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 102-3. 2

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Decidir por princípio, e não por política (metas públi-cas, objetivos comuns), para Dworkin, era uma questão de isonomia. Tenha-se presente que, para ele, um governo aceitável, digno, tem o dever crucial de tratar as pessoas sob seu domínio com igual consi-deração e respeito (equal concern and respect). E o filtro do princí-pio funcionaria, assim, como uma garantia de que o poder público seria exercido sem desrespeito pela dignidade das pessoas, dotadas de igual importância e merecedoras de igual atenção. De fato, para o pensador americano, o propósito (point) do Direito era o de garantir a legitimidade do exercício do poder público de coerção. E o Poder Judiciário, num Estado Constitucional em que se pratica judicial re-view, figuraria como o último guardião deste arranjo. Juízes têm, portanto, o dever de zelar pela isonomia e de ancorar suas determinações em princípios de moralidade pública. Como fazê-lo de maneira correta? Dworkin passou boa parte de sua trajetória formulando e reformulando esta resposta. Encontramos di-ferentes abordagens e enfoques desta questão ao longo de sua obra. Neste ensaio, vamos focalizar uma de suas propostas mais conheci-das: a exigência de que juízes e tribunais decidam de modo coerente e com respeito à integridade do Direito3. Nossa análise será voltada à jurisdição eleitoral. Não só por se tratar de um campo em que são visíveis as tensões entre ar-gumentos de política e de princípio; mas sobretudo porque a Justiça Eleitoral brasileira, por uma série de fatores distintos e combinados, vem se mostrando como uma espécie de terreno inóspito à integrida-de do Direito e a decisões coerentes. Nosso objetivo é o de lançar luz

3 Como se sabe, a observância dos padrões estabilidade, coerência e integridade da jurisprudência, por parte dos tribunais, é determinada pelo art. 926 do CPC/2015. Referido dispositivo se deve, em grande medida, à contribuição de Lenio Streck, que não apenas defendia esta proposta (de que juízes e tribunais têm de decidir de modo coerente e com respeito à integridade do Direito) em sede doutrinária, mas que também sugeriu emenda à redação inicial do artigo no Anteprojeto. Conferir: Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC!, disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc, acesso em 19.09.2018.

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sobre alguns destes aspectos, contribuindo para a democratização do exercício deste ramo da jurisdição constitucional. Ao trabalho.

2. UM PONTO DE PARTIDA: A VALORIZAÇÃO DA JURIS-PRUDÊNCIA ELEITORAL

Em abril de 20184, o então Presidente do TSE, Ministro Luiz Fux, destacava a importância de os magistrados eleitorais fala-rem “a mesma língua”, aplicando a jurisprudência fixada pelo TSE para gerar segurança jurídica. Conforme sua Excelência, “a ideia é que as jurisprudências dos tribunais sejam um norte para os juízes e, para tanto, devem ser coerentes. Não se pode julgar casos iguais de maneira diferente. As jurisprudências devem ser estáveis”. Essa fala, aliás, representa nada mais do que um entendimento replicado em sede doutrinária, quando o Ministro Fux aludiu à “necessidade de observância dos precedentes judiciais” como instrumento de sal-vaguarda da segurança jurídica5 e como um dos pilares que devem balizar a atuação da Justiça Eleitoral. De fato, a preocupação com a estabilidade e a coerência na aplicação do Direito Eleitoral já havia se manifestado na edição da Res.-TSE nº 23.472/2016, oportunidade em que se regulamentou o processo de elaboração de instrução para a realização de eleições ordinárias. Nessa instrução, o TSE pontuou que a modificação da sua jurisprudência entrará em vigor na data de sua publicação, mas não se aplicará à eleição que ocorra até um ano de sua vigência (art. 5º, ca-put); definiu o que consiste em modificação da jurisprudência e assen-tou que, no julgamento de qualquer feito eleitoral, serão observados os

4 http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Abril/presidente-do-tse-defende-respeito-a-jurisprudencia-durante-periodo-eleitoral, acesso em 05/09/2018.5 FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas de Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Editora Fórum, 2016, p. 20.

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princípios da segurança jurídica e da confiança (art. 6º). Em resumo, o TSE, incorporando-se à tendência brasileira recente de valorização normativa da jurisprudência6, pactuou um dúplice compromisso: com o princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral, de um lado; com a segurança jurídica e confiança, de outro. Aliás, é perceptível que o TSE albergou entendimento que já vinha sendo adotado pelo c. STF, quando pontuou a necessidade de mitigação dos efeitos das viragens jurisprudenciais mediante a observância do princípio da segurança ju-rídica nos processos eleitorais e esclareceu que “as decisões do Tribu-nal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior” (STF – Pleno – Recurso Extraordinário nº 637.485/RJ – j. 01.08.2012). É certo que a Justiça Eleitoral possui atribuição constitu-cional de zelar pela normalidade e legitimidade do processo eleitoral e, nesse mister, enfrenta sérios debates jurídicos sobre temas controverti-dos que envolvem atos que se desenrolam além da campanha eleitoral propriamente dita (convenções partidárias, propaganda eleitoral, etc.), alcançando matérias inerentes aos direitos e garantias fundamentais, com um nítido status constitucional. Basta lembrar que os direitos po-líticos possuem relevância ímpar e, em síntese, são a força motriz do Direito Eleitoral. O desafio que se apresenta para o TSE é o de manter hígidos os critérios de coerência e integridade quando se depara com questões altamente controvertidas e que se relacionam com temas perti-nentes com a formação da vontade política estatal. Decidir questões en-volvendo legitimidade do processo eleitoral, soberania popular, elegibi-lidade, mandato eletivo demanda um esforço argumentativo de grande complexidade, que, por vezes, é obnubilado por uma inescapável tensão

6 Da qual o CPC/15 é o marco mais representativo, como se confere, exemplificativamente, em seus artigos 926 e 927.

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e dicotomia entre o mundo político e o mundo jurídico. Nesse contexto, o Poder Judiciário Eleitoral não pode sucumbir à tentação de dar uma resposta desvinculada da ideia de que a integridade do direito pressupõe que todos os indivíduos devam ser tratados com igual respeito e consi-deração. Vale dizer, o julgamento das questões eleitorais deve sempre envolver argumentos de princípio, e não de política. Deve sempre envolver, mas não tem, contudo, envolvido. Selecionamos, como ponto de observação crítica e de ilustração do nos-so argumento (de que a jurisdição eleitoral tem sido exercida, frequen-temente, de modo desatento aos deveres de coerência e integridade –e, portanto, em desacordo com o dever de isonomia), alguns casos difíceis que chegaram ao TSE ao longo dos últimos processos eleitorais7.

3. ALGUNS TEMAS DA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAL

3.1. Pesquisas eleitorais

A legislação é econômica quando trata de pesquisas elei-torais. Desprezando o crime de pesquisa fraudulenta (art. 33,§4º, da LE), a Lei das Eleições, desde a sua redação originária, prevê a di-vulgação de pesquisa irregular como ilícito, sujeitando os responsá-veis a uma pena de multa (art. 33, §3º, da LE). Pela dicção legal, a irregularidade se perfaz mediante a divulgação da pesquisa eleitoral sem que tenha havido o prévio registro das informações exigidas no caput do art. 33 da Lei Eleitoral. Valendo-se do seu poder normativo, a cada pleito, o TSE tem estabelecido um prazo a partir do qual as

7 Não há espaço aqui, v.g., para desenvolver um tema bastante fértil para o debate jurídico, que é a questão do ativismo da Justiça Eleitoral, cujos exemplos mais candentes (mas não únicos) são o do número de vereadores nas eleições de 2004 (Res.-TSE nº 21.702/2004 e Res.-TSE nº 21.803/2004), da fidelidade partidária (Consulta nº 1.398 – j. 27.03.2007; Consulta nº 1.407 – j. 16.10.2007) e da verticalização das coligações (art. 4º, §1º, da Res.-TSE nº 20.993/2002)

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pesquisas devem ser registradas (01º de janeiro do ano da eleição8), além de acrescentar a obrigação de se registrarem outros requisitos perante os órgãos da Justiça Eleitoral para a divulgação das pesqui-sas (v.g., nome do estatístico responsável pela pesquisa e o número de seu registro no Conselho Regional de Estatística competente9). A Lei nº 12.891/13 acrescentou a vedação, no período de campanha, da realização de enquetes relacionadas ao processo eleito-ral (art. 33, §5º, da LE). Além de não conceituar enquete (e no que ela se diferencia da pesquisa), a lei não previu sanção em caso de descum-primento da regra. Para o TSE, enquete ou sondagem é a pesquisa de opinião pública que não obedeça às disposições legais e às determi-nações previstas nesta resolução10. Se o TSE tem afastado a multa nos casos de divulgação de pesquisa registrada sem todas as informações exigidas por lei (Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 36.141/BA – j. 16/06/2014), existe um sério debate sobre a possibili-dade de aplicação de multa no caso de divulgação de pesquisa anteci-pada e de enquetes ou sondagens no período de campanha. Analisando o panorama normativo vigente apenas rela-tivo ao pleito de 2016, é possível aferir que o TSE não tem levado a um bom termo suas decisões sobre esses casos concretos. Antes de problematizar esse ponto, porém, é relevante estabelecer as premis-sas jurídicas sobre as regras que foram aplicadas no último pleito municipal. A Res.-TSE nº 23.453/2015, que regulamentou as pesqui-sas para as eleições de 2016, trouxe uma sanção11 por divulgação de

8 Para as eleições de 2014, art. 2º, caput, da Res.-TSE nº 23.400/2013; para as eleições de 2016, art. 2º, caput, da Res.-TSE nº 23.453/2015; para as eleições de 2048, art. 2º, caput, da Res.-TSE nº 23.549/2017.9 Neste sentido, art. 2º, VIII, da Res.-TSE nº 23.400/2013; art. 2º, IX, da Res.-TSE nº 23.453/2015; art. 2º, IX, da Res.-TSE nº 23.549/2017.10 Para as eleições de 2014, art. 24, parágrafo único, da Res.-TSE nº 23.400/13; para 2016, art. 23, parágrafo único, da Res.-TSE nº 23.453/15; para 2018, art. 23, parágrafo único, da Res.-TSE nº 23.549/17. 11 Art. 17 da Res.-TSE nº 23.453/2015. A divulgação de pesquisa sem o prévio registro das informações constantes do art. 2º sujeita os responsáveis à multa no valor de R$ 53.205,00 (cinquenta e três mil, duzentos e cinco reais) a R$ 106.410,00 (cento e seis mil,

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pesquisa sem o prévio registro das informações (replicando a regra do art. 33, §3º, da LE), e não previu qualquer possibilidade de pena pecuniária para a divulgação de enquetes ou sondagem durante a campanha eleitoral12. Diante do quadro normativo vigente nas eleições de 2016, o TSE, inicialmente, rechaçou a aplicação de multa nos casos de divulgação de sondagens ou enquetes durante o período de cam-panha (Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 37.658/GO – j. 19/12/201713). Além de vedar expressamente a aplicação de multa por ausência de previsão legal, no caso de divulgação de en-quetes ou sondagens, no citado decisum é feita uma exortação para a proibição de uma interpretação extensiva e uma analogia in malan

quatrocentos e dez reais) (Lei nº 9.504/1997, arts. 33, § 3º, e 105, § 2º).12 Abstraindo toda a polêmica relativa ao (excesso) do poder normativo exercido pelo TSE ao editar as resoluções regulamentadoras dos pleitos eleitorais, o fato é que, nas eleições de 2018, atendendo a uma sugestão do Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral (Genafe/MPF), o TSE estabeleceu que uma sanção por divulgação de enquete no período de campanha, verbis. Art. 23, §2º, da Res.-TSE nº 23.549/2017. Se comprovada a realização e divulgação de enquete no período da campanha eleitoral, incidirá a multa prevista no § 3º do art. 33 da Lei nº 9.504/1997, independentemente da menção ao fato de não se tratar de pesquisa eleitoral.13 ELEIÇÕES 2016. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. PESQUISA ELEITORAL E ENQUETE. DISTINÇÃO. ART. 33, § 3º, DA LEI Nº 9.504/97. NÃO CONFIGURADO. AFASTAMENTO DA MULTA POR AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. [...] 1. A multa prevista no § 3º do art. 33 da Lei das Eleições incide apenas e tão somente na hipótese de ausência de prévio registro da pesquisa divulgada, não sendo, bem por isso, extensiva às outras situações. Precedentes: (AgR-REspe nº 361-41/BA, Rel. Min. Henrique Neves, DJe de 7.8.2014; REspe n° 27-576/MG, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 23.10.2007; e REspe nº 20664/SP, Rel. Min. Fernando Neves, Rel. designado Min. Luiz Carlos Madeira, DJ de 13.5.2005). 2. A doutrina, no que concerne ao art. 33, § 5º, da Lei nº 9.504/97, é remansosa quanto à impossibilidade de aplicação de multa nos casos de realização de enquete ou sondagem, em face da ausência de previsão sancionatória. 3. O silêncio do legislador, no que se refere ao art. 33, § 5º, da Lei nº 9.504/97, ao não estabelecer sanção em caso de realização de enquetes relacionadas ao processo eleitoral, impõe uma vedação de interpretação extensiva, como bem se assinalou no aresto regional, devendo tal norma ser interpretada restritivamente. 4. In casu, não merece reparos a decisão da Corte a quo, que assentou que tanto a Lei n° 9.504/97 como a Resolução TSE n° 23.453/2015 não registram nenhuma sanção explícita ou remissão a outras partes do texto legal em caso de divulgação de enquete, sendo vedadas a interpretação extensiva e a analogia in mala partem, para a cominação de sanção, e.g., multa. [...] 7. Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 37658 - CRISTALINA - GO - Acórdão de 19/12/2017).

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partem na cominação de sanção. Contudo, em momento logo pos-terior (mas ainda julgando processos relativos à eleição de 2016), o mesmo TSE definiu ser possível aplicar multa no caso de divulgação de pesquisa antecipada (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 14488/MG – j. 19/06/201814), ou seja, divulgada antes do prazo fixado de cinco dias. O fundamento para essa decisão é a inobservância do art. 17 da Res.-TSE nº 23.453/2015; contudo, esse dispositivo, porque replica o art. 33, §3º, da Lei nº 9.504/1997, é invocável apenas quando houver uma divulgação de pesquisa sem o prévio registro, e não quando sua divulgação ocorrer antes do prazo legal de cinco dias, que é fixado na lei. Perceba-se a incoerência: a legislação, no que diz respei-to à vedação das enquetes, funciona quase como soft law, ou seja, aponta para a proibição, mas não a sanciona; o TSE, num primeiro momento, encampa esta compreensão, ancorando sua decisão no ar-gumento de princípio de que é descabida a analogia in malam par-tem. Contudo, no caso seguinte (divulgação de pesquisa antecipada, também não contemplada por sanção), este argumento perde peso e, sem que tenha sido apresentada uma única boa razão para a dis-tinção de tratamento, a conduta passa a ser sancionada. Pela via da analogia in malam partem. E o mais curioso: ambas decisões foram relativas à mesma eleição, unânimes e com variação mínima entre as duas composições (cinco ministros coincidem nessas votações).

14 ELEIÇÕES 2016. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO. PESQUISA ELEITORAL ANTECIPADA. ART. 33 DA LEI Nº 9.504/97. ARTS. 2º E 17 DA RES.-TSE Nº 23.453/2015. NÃO RESPEITADO O PRAZO DE 5 (CINCO) DIAS ANTECEDENTES À DIVULGAÇÃO DE PESQUISA ELEITORAL REGISTRADA. MANUTENÇÃO DA MULTA. MÍNIMO LEGAL. DESPROVIMENTO.[...] 4. Na linha da jurisprudência firmada nesta Corte, a multa prevista no art. 33, § 3º, da Lei nº 9.504/97, embora se refira expressamente à divulgação de pesquisa sem o prévio registro, também é aplicada aos casos em que não foi observado o prazo de 5 (cinco) dias entre o registro e a efetiva propagação. 5. Deve, portanto, ser mantida a multa no valor de R$ 53.205,00 (cinquenta e três mil, duzentos e cinco reais), de acordo com a previsão legal do art. 17 da Res.-TSE Nº 23.453/2015, aplicável às pesquisas eleitorais relativas ao pleito de 2016. [...] 7. Agravo regimental desprovido. (Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 14488 - UBERABA - MG - Acórdão de 19/06/2018).

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3.2. Propaganda em templos e igrejas

Noutra assentada, mesmo em temas aparentemente me-nos polêmicos, o TSE também tem apresentado decisões (ainda que monocráticas) passíveis de instaurar um bom debate sobre o alcance do tema da coerência. De fato, a jurisprudência do TSE sempre foi tranquila ao reputar ilícita a propaganda em templos e igrejas, pois são bens de uso comum, a atrair a vedação do art. 37, caput, combi-nado com o §4º, da LE. Esse entendimento foi adotado nas eleições de 2014 (Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 781.963/RJ – j. 17/11/2016) e de 2016 (Agravo Regimental no Agravo de Ins-trumento nº 23.930/RJ – j. 19.06.2018). Por isso, chama a atenção a decisão da Ministra Rosa Weber quando, ao analisar um processo das eleições de 2014, monocraticamente e com a concordância do parecer ministerial (que era o autor da representação), reputou lícita a distribuição de impressos no interior de templo religioso15. Nas suas razões, a Ministra Rosa Weber assevera que o artigo 37, caput, da LE deve ser interpretado em consonância com o artigo 38 da mes-ma lei, pois “se o art. 37, caput, da Lei n° 9.504/97 for interpretado no sentido de que é vedada a realização de qualquer propaganda eleitoral em bem público, restaria vedada a distribuição de material de campanha não só em prédios públicos, mas também nas ruas, esvaziando, assim, a norma contida no art. 38 da mesma lei”. Para reforço da sua argumentação, cita como precedente decisão mono-crática do Ministro Herman Benjamin16, na qual se conclui como lí-cita a distribuição de material de campanha em bens de uso comum. Contudo, algumas ressalvas são necessárias. A um, a de-cisão do Ministro Herman Benjamin não guarda a mesma similitude

15 Recurso Especial Eleitoral nº 162211 – j. 14/6/2018 - Decisão monocrática – Rel. Min. Rosa Weber.16 Recurso Especial Eleitoral nº 8353 – j. 20/9/2017 – Decisão monocrática – Rel. Min. Herman Benjamin.

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fática do julgado da Ministra Rosa Weber, ainda que ambos tratem de bens de uso comum (naquele houve distribuição de propaganda em uma feira livre; neste, no interior de uma igreja). É dizer, a ra-zoabilidade da interpretação indica que não podem ser equiparados atos de distribuição de propaganda eleitoral em bens de uso comum “fechados” ou de acesso controlado ao ato de distribuição de propa-ganda realizada em locais abertos (ruas, praças). A dois, a decisão da Ministra Rosa Weber em momento algum trouxe qualquer argumen-to para superar o entendimento então consolidado do TSE (veda-ção de propaganda no interior das igrejas). A três, porque a decisão monocrática desconsiderou o arcabouço consolidado pelo Pleno do tribunal em relação àquele pleito. Este caso é ilustrativo, assim, de duas disfuncionali-dades: primeiro, a desconsideração do Direito como um romance em cadeia, como um empreendimento coletivo que os juízes têm o dever de continuar, ao revés de começarem, a cada decisão, um novo livro. Dito de modo mais simples, as revisões de entendimen-to não podem ser bruscas e têm de ser devidamente acompanhadas de argumentos de princípio suficientemente densos para justificar a mudança. Estabilidade, coerência e integridade, pois. Segundo, o exemplar é representativo da inconsistência do uso de precedentes como fundamentação de decisões. Quando se invoca um precedente (aqui entendido como qualquer decisão de um caso anterior, e não como material jurídico primário) como fundamento de uma deci-são judicial, deve-se atentar não para o dispositivo, mas para as suas razões determinantes. O precedente, mesmo nos países em que ele tem força vinculante, não tem valor de promulgação; ele é mais ou menos importante conforme sejam influentes os argumentos de prin-cípio que lhe fundamentam. E só se chega aos princípios depois de perscrutados os fatos da causa, o contexto de aplicação. Em suma, a invocação da decisão de Benjamin para a composição da decisão de Weber não tem qualquer valor sem o enfrentamento da discussão

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sobre a (ir)relevância da distinção entre os bens públicos abertos e fechados; e, em todo caso, sem a discussão sobre a necessidade de superação da cadeia de decisões até então prevalente.

3.3. A inelegibilidade e crime de violação de direitos autorais

A sucessiva alternância de entendimento do TSE sobre temas controvertidos é bem desenhada na interpretação sobre a inci-dência do crime de violação do direito autoral como suficiente a atrair a inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea e, 2, da LC nº 64/1990: nas eleições de 2012, adotou entendimento pela inelegibilidade (Recurso Especial Eleitoral nº 20.236/SP – j. 27/09/2012); nas eleições de 2014, pelo não reconhecimento (Recurso Ordinário nº 98.150/RS – j. 30/09/2014); em 2016, retornou-se a defender a inelegibilidade (Recurso Especial Eleitoral nº 14.594/SC – j. 05/04/2017). E, em todos esses julgados, não houve qualquer menção à necessidade de preservação da segurança jurídica e tampouco a observância ao princípio da anualidade eleitoral. Nesse ponto, repisa-se que, mes-mo ainda não tendo sido editada a resolução do TSE, que prevê a aplicação do princípio da anualidade para as decisões eleitorais, esse entendimento já era preconizado pelo STF (RE nº 637485/RJ– Re-percussão Geral – j. 01.08.2012). Qualquer semelhança com o dog law de Bentham17 não é, com efeito, mera coincidência.

17 A expressão dog law aparece nas reflexões de Jeremy Bentham, para quem o direito inglês seria um direito judiciário, integralmente criado por juízes – sendo por essa razão, essencialmente retroativo (no sentido de que o sistema jurídico não asseguraria um determinado direito aos indivíduos, e nem lhes atribuiria deveres, previamente à decisão judicial; esta é que os criaria). Sendo retroativo, equivaleria a um dog law (Quando você quer dissuadir seu cachorro de fazer alguma coisa, você espera até que ele faça e, então, puna-o por fazê-lo). Esta formulação é feita por Bentham em meio a uma campanha pela codificação do direito inglês, com o objetivo de aumentar a segurança jurídica na sua criação e aplicação. Uma boa contextualização do pensamento de Bentham neste ponto, e que serviu de referência para esta nota, é feita por Daniel Mitidiero em seu Precedentes: da persuasão à vinculação (3ª edição, 2018, p. 38-39).

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dworkin defendeu o ponto de que é papel da doutrina dialogar com a prática judicial, visando a constranger os juízes, pela crítica e pelo exemplo, a decidirem melhor. De modo semelhante, e entre nós, Lenio Streck tem falado em constrangimento epistemoló-gico. É disso, em última análise, que trata o nosso trabalho. Há algo de profundamente errado com a justiça de um país quando casos semelhantes são resolvidos de maneira distinta. Ou melhor: quando casos tão semelhantes são resolvidos de maneira tão distinta pelo mesmo órgão julgador e sob o mesmo contexto jurídico-social. Começamos este texto escrevendo sobre como se levam a sério os direitos das pessoas, e apontando a tese da integridade do Direito como uma via possível. Não se trata de um exotismo, ou de exigir demais de nossos juízes, em tempos de pluralismo cultural e de valores. Trata-se de preservar igualdade de consideração e res-peito (e sempre, num nível mais profundo, da dignidade humana). No que trata especificamente da aplicação de precedentes (e, nos ca-sos selecionados, a invocação de “precedentes” é um lugar comum, com maior ou menor ênfase), o case pela integridade fica ainda mais atraente. É preciso, como já tivemos oportunidade de afirmar noutra sede18, atentar para os riscos da desintegração (em que se desvincula arbitrariamente um caso perante a totalidade da prática jurídica) e da hiperintegração (por meio da qual se trata casos distintos como abrangidos por uma mesma regra geral). A solução está em levar a sério a exigência hermenêutica de compreender o texto (sempre um evento, como o é o precedente) a partir da situação concreta na qual

18 MOTTA, Francisco José Borges; RAMIRES, Maurício. O Novo Código de Processo Civil e a Decisão Jurídica Democrática: como e por que aplicar precedentes com coerência e integridade? In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; e LEITE, George Salomão (coord.). Hermenêutica e Jurisprudência no Código de Processo Civil: coerência e integridade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 86-112.

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foi produzido. Assim, para que um sistema de precedentes funcione minimamente, é preciso ter em conta que uma decisão passada não se esgota com o sentido particular que lhe foi atribuído quando da sua criação. A metáfora por Dworkin proposta ilustra bem isso: o juiz deve se comportar, em matéria de precedentes, como um conti-nuador de um texto coletivo. É certo que a Justiça Eleitoral é a afiançadora da legiti-midade das eleições e tem a nobre missão de zelar pela higidez dos processos de investidura política representativa. Portanto, é intuitivo que se aposte, com sinceridade, na atuação de controle do conten-cioso judicial eleitoral exercido por essa Corte especializada. Mas é imprescindível lembrar que não existe forma válida de controle ju-risdicional desvinculada do devido processo legal e, pois, das regras constitucionais. É dizer, com Norberto Bobbio, o sistema democrá-tico é diferenciado dos demais sistemas justamente porque possui as regras do jogo constitucionalizadas19. Dizendo de outro modo, a Justiça Eleitoral não é uma divisão autônoma da jurisdição constitucional brasileira e não deve se comportar como se fosse. Aliás, é na Justiça Eleitoral, mais do que nos demais ramos da jurisdição constitucional, que a dificulda-de contramajoritária se torna mais visível. A interferência direta da justiça nos processos políticos representativos (e de constituição da representação) é necessária e virtuosa, mas não se pode dar de modo discricionário20 e deve estar devidamente blindada dos argumentos políticos e teleológicos. Decididamente, a discricionariedade judi-cial deve ser o quanto possível contida nas decisões jurídicas com repercussão eleitoral. Numa palavra final, a isonomia e a dignidade humana

19 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 13ª edição, 2015, p. 104-105. 20 A propósito do enfrentamento da discricionariedade judicial, conferir, por todos: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 2011.

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devem coordenar a experiência jurídica e justificar o emprego da força coletiva de coerção. Quando não o fizerem, é porque nós, par-ticipantes deste empreendimento coletivo, fracassamos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 13ª edição, 2015.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, USA: Belknapp, 1977.

_____. Uma Questão de Princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos paradigmas de Di-reito Eleitoral. Rio de Janeiro: Editora Fórum, 2016.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais Editora, 3ª edição, 2018.

MOTTA, Francisco José Borges; RAMIRES, Maurício. O Novo Có-digo de Processo Civil e a Decisão Jurídica Democrática: como e por que aplicar precedentes com coerência e integridade? In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; e LEITE, George Salomão (coord.). Hermenêutica e Jurisprudência no Código de Processo Civil: coerência e integridade. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2018.

STRECK, Lenio Luiz. Por que agora dá para apostar no pro-jeto do novo CPC!, disponível em: https://www.conjur.com.

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br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc, acesso em 19.09.2018.

_____. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 2011.

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CRIMES ELEITORAISE OS EVENTUALMENTECONEXOS DIANTE DO NOVOENTENDIMENTO DOSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Douglas Fischer

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RESUMO: O presente artigo visa a analisar muitos questionamentos que vem sendo realizados a partir da decisão tomada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Inquérito n. 4435, em que foi decidido que, havendo crimes eleitorais conexos com crimes comuns, caberá a análise do processamento único à justiça especializada. Em síntese, o entendimento majoritário foi no sentido de que há de se observar as regras do art. 35, II, do Código Eleitoral e também do art. 76 do Código de Processo Penal, que tratam da conexão, de modo que, havendo elementos de presença de crimes eleitorais conexos com crimes comuns (das justiças federal ou estadual), caberá ao órgão especializado a decisão de como proceder em relação a todos os feitos. Aqui, além de fazer uma rápida crítica ao que decidido pela Corte Suprema (na linha do que sustentamos há muitos anos, e não agora por essa decisão pontual), procuraremos apresentar aqui algumas soluções técnicas acerca dos procedimentos a serem adotados tomando-se como parâmetros exatamente precedentes do Supremo Tribunal Federal e a legislação processual penal.

PALAVRAS-CHAVE: Competência. Justiça Eleitoral. Justiça Federal. Crimes Eleitorais. Crimes conexos. Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT: This article aims to analyze many questions that have been made from the decision taken by the Plenary of the Federal Supreme Court in the judgment of Inquiry n. 4435, in which it was decided that, in the case of electoral crimes related to common crimes, the analysis of the single prosecution of

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specialized courts will be carried out. In summary, the majority understanding was that the rules of art. 35, II, of the Electoral Code and also of art. 76 of the Code of Criminal Procedure, which deal with the connection, so that, if there are elements of electoral crimes related to common crimes (federal or state justice), it will be up to the specialized Justice to decide how to proceed in relation to all crimes. Here, in addition to making a quick critique of what the Supreme Court has decided (in line with what we have argued for many years, and not now for this one-off decision), we will try to present here some technical solutions about the procedures to be adopted by taking as parameters exactly precedents of the Federal Supreme Court and the criminal procedural law.

KEY WORDS: Competence. Electoral Justice. Federal Justice. Electoral Crimes. Related crimes. Federal Supreme Court.

1. INTRODUÇÃO

Há muitos questionamentos a partir da decisão tomada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no dia 14.3.2019 no julgamento do Inquérito n. 4435, em que o Plenário (por apertada maioria, 6x5 votos) decidiu que, havendo crimes eleitorais conexos com crimes comuns, caberá a análise do processamento único à justiça especializada. Além de fazer uma rápida crítica ao que decidido pela Corte Suprema (na linha do que sustentamos há muitos anos, e não agora por essa decisão pontual), procuraremos apresentar aqui algumas soluções técnicas acerca dos procedimentos a serem

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adotados tomando-se como parâmetros exatamente precedentes do próprio STF e a legislação processual penal. O acórdão do referido leading case ainda não foi publicado na presente data, de modo que estão sendo utilizados como base os entendimentos expressos pelos ministros em seus votos proferidos e que podem ser colhidos em rede aberta da internet. Em síntese, o entendimento majoritário foi no sentido de que há se observar as regras do art. 35, II, do Código Eleitoral e também do art. 76 do CPP, que tratam da conexão, de modo que, havendo elementos de presença de crimes eleitorais conexos com crimes comuns (das justiças federal ou estadual), caberá ao órgão especializado a decisão de como proceder em relação a todos os feitos.

2. AS REGRAS CONSTITUCIONAIS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA PRERROGATIVA DE FORO E EM RAZÃO DA MATÉRIA

O art. 5º, LIII e LIV, da Constituição Federal dispõe expressamente que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, bem como privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Há três critérios fundamentais para a fixação da competência: em razão das funções („prerrogativa de foro“), em razão da matéria ou (residualmente) em razão do lugar em que cometido o fato criminoso. As duas primeiras são fixadas por expressa determinação constitucional (observada a devida simetria com as constituições estaduais), e portanto são absolutas. A competência fixada por prerrogativa de foro tem a finalidade fundamental de proteger o cargo exercido por determinadas

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pessoas. Em parcial conclusão de estudo publicado no ano de 20141, salvo melhor juízo de forma inédita (porque não encontramos nenhuma sustentação nesse sentido antes dessa data), “forte no Princípio da Isonomia (art. 5º, caput), não é facultado a nenhum Poder de Estado (inclusive ao Judiciário na interpretação da Constituição) incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. Por esta razão, não existe fundamento constitucional racional para assentar que, independentemente do crime cometido, sempre deverá ser conferida a garantia da prerrogativa de foro. Se o motivo central do tratamento diferenciado está na proteção do cargo (e não da pessoa que lho ocupa), deve ela ser o mesmo vetor para estabelecer o delimitador para em quais situações será justificável o quebramento da isonomia e o tratamento diferenciado. Assim, o foro por prerrogativa somente se apresenta justificável ante o Princípio da Isonomia em relação aos crimes cometidos e diretamente relacionados às atividades do agente. No que pertine a outros delitos que não se relacionem intrínseca e diretamente às funções exercidas pelo agente público não pode haver o tratamento diferenciado pela prerrogativa de foro”. Posteriormente, no ano de 2018, o STF acolheu (ao que parece de forma mais restrita) o entendimento supraindicado e, no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal n. 9372, fixou a

1 FISCHER, Douglas. Prerrogativa de Foro e Competência Originária do Supremo Tribunal Federal: uma (re)leitura dos preceitos da Constituição Brasileira como forma de maximização do Princípio Republicano da Isonomia. In: Vilvana Damiani Zanellato. (Org.). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - Temas Relevantes. 1ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014, v. 1, p. 101-135.2 DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECIMENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA. […] I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento,

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tese de que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação o despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. Importante destacar que a prerrogativa de foro será a regra determinante de fixação de competência prevalente sobre as demais3. A seguir, há sempre se observar as regras em razão da matéria, fixadas constitucionalmente de maneira expressa. Por último, existem as regras em razão do lugar. Já sustentamos anteriormente a questão referente à competência em razão da matéria (e ora reafirmamos)4: “A

para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. [...] 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. [...] (Questão de Ordem na Ação Penal n. 937-RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, STF, Plenário, julgado em 3.5.2018, publicado no DJ em 11.12.2018).3 Salvo melhor juízo, a única questão que implicará conjugação de regras em razão das funções com a matéria está consubstanciada na Súmula 702 do STF (“A competência do tribunal de justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau”). Pensamos que, nesse caso, está correta a conjugação das regras, na medida em que a Constituição Federal não dispôs expressamente sobre a competência.4 FISCHER, Douglas; MARQUES, Claiton Renato Macedo. Considerações sobre a correta aplicação da Súmula 704 do STF. Interesse Público, v. 55, p. 141-156, 2009. Também em Revista da Ajuris, v. 80, p. 81, 2008.

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competência penal em razão da matéria da Justiça Federal está explicitamente consignada na Constituição Federal no artigo 108, I, “b”, “d” e “e”, e II, e no artigo 109, IV, V, V-A, VI, VII, IX, X e XI, com as observações dos §§ 3º e 4º deste último. A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, a Justiça do Trabalho passou também a ter algumas competências correlacionadas à matéria penal, embora restritas5. No âmbito da Justiça Eleitoral, a competência é determinada por lei complementar 6, nos termos do artigo 121 da Constituição. E na Justiça Militar, a competência penal deverá observar o que fixado em lei, conforme o artigo 124 da CF/88, limitada a competência da Justiça Militar Estadual às hipóteses previstas no § 4º do artigo 124 da Carta Maior. As Justiças Eleitoral, Militar e do Trabalho são consideradas “especializadas” em razão da matéria. Já as Justiças Federal e Estadual são tidas como “comuns”, sendo a Justiça Federal reconhecida majoritariamente pela doutrina e jurisprudência como “mais graduada”, pois sua competência estaria (como efetivamente está) expressa na Constituição Federal (artigo 109, incisos IV, V, V-a, VI, VII, IX, X e XI), sendo a competência da Justiça Estadual de natureza residual (sem expressa disposição)”. A discussão que originou o leading case na Ação Penal n. 937 envolvia possível crime eleitoral conexos a outros comuns de competência da Justiça Federal. Independente dessa circunstância, o critério para a solução dos problemas deverá abarcar a justiça comum federal e estadual.

5 Confira-se o julgamento proferido pelo STF na Medida Cautelar em ADI nº 3.684-0-DF: “Competência Criminal. Justiça do Trabalho. Ações penais. Processo e julgamento. Jurisdição penal genérica. Inexistência. Interpretação conforme dada ao art. 114, incs. I, IV e IX, da CF, acrescidos pela EC nº 45/2004. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida com efeito ex tunc. O disposto no art. 114, incs. I, IV e IX, da Constituição da República, acrescidos pela Emenda Constitucional nº 45, não atribui à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais.” (Medida Cautelar em ADI nº 3.684-0-DF, Rel. Min. Cezar Peluso, medida deferida, ex tunc, unânime, Plenário, julgado em 1º/02/2007, publicado no DJU de 03/08/2007).6 O Código Eleitoral - Lei n° 4.737/65 - foi recepcionado pela Constituição Federal como lei complementar.

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Com efeito, a competência da Justiça (comum) Federal está prevista explícita e expressamente no art. 109, incisos IV, V, V-A e VI da Constituição Federal 7. Veja-se que estão “ressalvadas” expressamente na Constituição Federal duas Justiças consideradas “especiais”: a Militar e a Eleitoral. A competência da Justiça Estadual é residual: tudo que não se enquadrar na competência da Justiça Federal, caberá à Justiça Estadual, considerando-se exclusivamente o critério em razão da matéria8. A competência da Justiça Eleitoral não está prevista na Constituição Federal, embora a remissão feita pelo art. 121: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”. Dito isso, há se ver que: a) o TSE não tem competência originária penal (matéria afeta ao STF), salvo disposto no art. 22, I, “d”, do Código Eleitoral; b) os Tribunais Regionais Eleitorais terão competência por prerrogativa de foro, observadas duas regras fundamentais: o disposto na Súmula 702 do STF (antes referida) conjugada com a restrição imposta pela decisão proferida na Questão de Ordem na Ação Penal n. 937 (em síntese, pouquíssimos casos9);

7 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela EC n. 45/2004)VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;8 Reportamos às nossas anotações no mesmo texto Fischer, Douglas; Marques, Claiton Renato Macedo. Considerações sobre a correta aplicação da Súmula 704 do STF. Interesse Público, v. 55, p. 141-156, 2009. Também em Revista da Ajuris, v. 80, p. 81, 2008.9 Embora estivessem analisando um caso concreto de declínio de um só crime pelo exaurimento da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, algumas conclusões são importantes serem transcritas a partir da leitura da íntegra do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal n. 937.

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c) a competência dos juízes eleitorais se dará (na grande maioria dos casos), em razão da matéria, segundo previsto no Código Eleitoral.

O Ministro Roberto Barroso foi expresso que se fizesse uma interpretação de que “no caso de parlamentares federais [...] somente haverá o foro perante o Supremo Tribunal Federal em relação a fatos praticados no cargo e em razão do cargo. [...] Assim, se ele não era deputado federal na ocasião, ele não tem foro; e, se o fato não tiver nenhuma relação com o mandato - ele teve uma desavença com o vizinho -, também acho que não tem foro”. Reconheceu ainda de forma expressa - embora obiter dictum - que “a regra geral em Direito, pelo princípio republicano, é que as pessoas devem estar sujeitas à jurisdição de primeiro grau como todo mundo, salvo as situações expressamente contempladas na Constituição. Portanto, sem me comprometer, porque não tratei especificamente dessa questão, se o fato foi praticado quando era governador, a competência, em nenhuma hipótese, passará para o Supremo se ele vier a ser Deputado Federal. Isto está claro no meu voto. E, se ele não é mais o governador, a competência deixou de ser do Superior Tribunal de Justiça. Assim, em linha de princípio, eu mandaria para o primeiro grau. [...] Por isso que procurei demarcar uma tese tão próxima do caso concreto quanto possível, mas, filosoficamente, sou de entendimento de que a regra geral deve ser a jurisdição de primeiro grau”. Em complemento, o Ministro Celso de Mello também assentou que “todas as autoridades públicas hão de ser submetidas a julgamento, nas causas penais, perante os magistrados de primeiro grau, mas penso que o Supremo Tribunal Federal deva, enquanto a Constituição mantiver essas inúmeras hipóteses de prerrogativa de foro, interpretar a regra constitucional nos seguintes termos: a prerrogativa de foro somente terá pertinência nos delitos cometidos em razão do ofício e em estreita relação com o desempenho da função pública que justifica a outorga dessa medida extraordinária, sob pena de tal prerrogativa – descaracterizando-se em sua essência mesma – degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal. [...]” Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio reconheceu que “a fixação da competência está necessariamente ligada ao cargo ocupado na data do cometimento da prática criminosa. E essa competência, em termos de prerrogativa, é única, não flexível, no que viria uma eleição posterior, após o término do mandato ou desincompatibilização, a implicar o deslocamento do processo da primeira instância para outro Tribunal, ressoando o novo mandato, para alguns – não sei por que acreditam tanto no taco dos Tribunais, com menosprezo à pedreira da magistratura, que é a primeira instância –, como verdadeiro escudo”. [..] “A premissa qual é? É a de que a prerrogativa de foro encerra exceção, e, como exceção, deve ser interpretada de forma estrita. Vale dizer que, havendo a prerrogativa de foro, é definitiva até o término do mandato que a gerou. Caso, posteriormente, aquele que detinha a prerrogativa é eleito para cargo diverso, o fato não implica o deslocamento do processo. Com isso, afasta-se, do cenário jurídico, o denominado elevador processual, o sobe e desce de inquéritos e ações penais. [...]” E em complemento, tratando do tema quando exista eventual sucessão de mandatos (até para manter coerência com a tentativa de evitar o elevador processual e respeitar a equidade), o Ministro Edson Fachin pontuou objetivamente que “a proteção que se dá foro é atual: perdura apenas aos atos praticados em determinada legislatura”.

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3. AS REGRAS DE CONEXÃO E CONTINÊNCIA: A IMPOR-TÂNCIA DE SUA DEVIDA COMPREENSÃO

O fundamento para o reconhecimento (em princípio) da Justiça Eleitoral para decidir sobre a unificação processual está em dois dispositivos. O primeiro, do Código Eleitoral (art. 35, II), que dispõe competir aos juízes eleitorais “processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos tribunais regionais”. O segundo, do CPP (enquadrável, em tese, nos incisos II e III, que tratam, respectivamente, das hipóteses de conexão objetiva e probatória), prevendo que a competência será determinada pela conexão: “[...] II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas; III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”. É preciso bem compreender também a extensão do tipo penal de que trata o art. 350 do Código Eleitoral (o vetor fundamental a justificar o deslocamento da competência). É preciso reconhecer que o crime que mais se destaca para possível conexão com os demais delitos é aquele previsto no art. 350 do Código Eleitoral, que dispõe: “Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa, se o documento é particular”. O tipo penal nada mais é do que uma falsidade ideológica para fins eleitorais (hipótese bastante restrita, se bem compreendida

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historicamente a regra em tela). Conforme já reconheceu o STF, tratando do delito em voga, a desaprovação de contas por Corte Eleitoral é “fato que não tipifica, por si só, o crime em questão”. É que a “simples presunção de omissão de despesas na prestação de contas” não caracteriza o crime se o parlamentar “se limitou a submeter aos órgãos de controle eleitoral a documentação de que dispunha, tal como entregue pelos emitentes” 10. Também já reconheceu que “o tipo penal do art. 350 do Código Eleitoral exige expressamente, para sua configuração, que a omissão de declaração que deva constar do documento público seja realizada com fins eleitorais”11. O que é pouco observado em doutrina e na jurisprudência é que, diferentemente do processo civil, as regras de conexão e continência no processo penal foram criadas como formas de modificação de competência territorial (salvo se houver expressa disposição no texto constitucional). Ou seja, não são aptas a modificar competência absoluta (prerrogativa de foro e em razão da matéria quando expressamente previstas na Constituição Federal). As regras de fixação de competência estão na Constituição Federal. As de modificação (para competência territorial exclusivamente, salvo expressa disposição da própria Constituição) estão previstas na legislação infraconstitucional. Essa a razão pela qual, por exemplo, o STF já assentara (quiçá esquecendo dessa decisão no julgamento do leading case debatido) que “a conexão e a continência – artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal – não consubstanciam formas de fixação da competência, mas de alteração, sendo que nem sempre resultam na unidade de julgamentos – artigos 79, incisos I, II e §§ 1º e 2º e 80 do

10 Agravo Regimental na Petição n. 7.354 – DF, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 6.3.2018, publicado no DJ em 25.5.2018.11 Inquérito 4.146-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 22.6.2016, publicado no DJ em 4.10.2016.

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Código de Processo Penal” 12. Relembre-se que o STJ igualmente já decidiu que “a Constituição da República de 1988 exclui expressamente a competência da Justiça Federal para processar e julgar contravenção penal, ainda que praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (artigo 109, IV, da CF)”, razão pela qual “por se tratar de competência constitucional, não se aplicam as normas previstas no Código de Processo Penal acerca da competência por conexão ou continência, sendo correta a decisão que determinou o desmembramento do feito, devendo a Justiça Federal processar e julgar o crime de descaminho ou contrabando e a Justiça Estadual a contravenção penal”13. Não foi diversa a conclusão de que “a competência constitucional atribuída à Justiça Federal não pode ser prorrogada à Justiça Estadual, ante a sua natureza absoluta”14. Como sustentamos na companhia de Eugênio Pacelli, o fundamento “da modificação da competência territorial repousa na facilitação da apreciação de alguns casos, bem como na prevenção contra decisões judiciais conflitantes sobre uma mesma conduta. No primeiro caso, de facilitação da instrução, fala-se em conexão; no segundo, de continência”15. Observe-se que o CPP previu no seu artigo 78 (lá na década de 40 do século passado) que, “na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: IV – no concurso entre a jurisdição comum e a

12 Habeas Corpus nº 69.325-3-GO, Redator p/ acórdão Min. Marco Aurélio Mello, Tribunal Pleno, julgado em 17.6.1992, publicado no DJ em 4.12.1992.13 Conflito de Competência n. 116.564-MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellize, 3ª Seção, 9.5.2012.14 Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 1.289.926 – RS, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 9.4.2019, publicado no DJ em 22.4.2019.15 PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 11ª edição, 2019. São Paulo: Atlas/Gen, p. 178.

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especial, prevalecerá esta”. A incompatibilidade do art. 78, IV, do CPP e do art. 35, II, do Código Eleitoral com (pelo menos) o art. 109 e incisos (antes visto) é manifesta. Essa incompatibilidade (talvez não imaginada em relação aos crimes eleitorais nos termos da Lei de 1965 - , bem depois do CPP, DL. 3.689, de 1941 – embora previsões anteriores nas leis eleitorais) foi expressamente prevista quanto aos crimes militares (também “especial”): (Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento, salvo: I – no concurso entre a jurisdição comum e a militar). Portanto, em nossa compreensão, o “erro técnico” do Supremo Tribunal Federal foi admitir (tal como já fez, de certa forma, em relação à Súmula n. 704, STF) que seria possível a modificação de competência de natureza constitucional por regras infraconstitucionais sem que haja expressa previsão dessa modificação em sede constitucional, na medida em que as normas infraconstitucionais foram feitas exclusivamente para modificação de competência territorial (jamais em razão da prerrogativa de foro ou da matéria). O tema está diretamente relacionado ao princípio do Juiz Natural, que se distingue - e muito - das regras no âmbito do processo civil. O Ministro Marco Aurélio tem absoluta razão em suas argumentações: competência de natureza estrita (da Constituição) não pode ser modificada por normas infraconstitucionais. Segundo compreendemos, deve(ria) prevalecer – como sempre o foi, inclusive para a Justiça Militar, igualmente de natureza especial – a interpretação e compatibilização das regras pela cisão processual, de modo que cada ramo da Justiça julgará os temas

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relativos às matérias a elas constitucionalmente atribuídas.

4. A SUPERAÇÃO DAS CRÍTICAS AO (NOVEL) ENTENDIMENTO DO STF PARA A BUSCA DE SOLUÇÕES

Nada obstante as críticas antes mencionadas, o fato é que a Suprema Corte brasileira emitiu o entendimento antes destacado, cabendo então - agora - encontrar a (melhor) solução para os casos passíveis, em tese, de reunião processual. Há se buscar, então, o entendimento da mesma Corte. É o que nos propomos no presente momento.

5. PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS PARA COGITAR DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA PARA ANÁLISE DE POSSÍVEL REUNIÃO PROCESSUAL SEGUNDO OS CRITÉRIOS DA JURISPRUDÊNCIA DO STF

É certo que praticamente todos os precedentes exarados pelo Supremo Tribunal Federal a respeito do tema dizem com análises de reunião ou cisão processual envolvendo competência por prerrogativa de foro (índole constitucional). E não haveria de ser de forma diversa, pois, como dito anteriormente, a competência constitucional do STF se dá exclusivamente nesses casos. Porém, e também na linha do que destacado, o tratamento da competência por prerrogativa de foro e em razão da matéria deve ser exatamente o mesmo. Fixada essa premissa, há se formular outra pergunta: será qualquer fato ou arguição na justiça comum de possível crime eleitoral conexo que ensejará o deslocamento da competência? A resposta é seguramente não.

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De forma absolutamente correta, o Supremo Tribunal Federal há muito vem entendendo que, para haver o deslocamento de um feito de instância inferior, é fundamental haver dados objetivos e concretos quanto a um fato em tese criminoso de sua competência. A propósito, veja-se exemplificativamente que “a simples menção de nomes de parlamentares, por pessoas que estão sendo investigadas em inquérito policial, não tem o condão de ensejar a competência do Supremo Tribunal Federal para o processamento do inquérito, à revelia dos pressupostos necessários para tanto dispostos no art. 102, I, ‘b’, da Constituição” (Agravo Regimental na Reclamação nº 2.101/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, julgado em 1º.7.2002, publicado no DJ em 20.9.2002). No mesmo sentido, assentou-se que a “simples referência ao nome de três congressistas surgida no contexto de determinado procedimento penal instaurado em primeira instância. […] Sem que se evidencie a presença, fundada em bases concretas, de indícios reveladores de autoria ou de participação ativa, em prática delituosa, de autoridade detentora de prerrogativa de foro, a simples referência ao seu nome, feita em sede de determinado procedimento penal, não basta, só por si, para legitimar o deslocamento, para o Supremo Tribunal Federal, da competência penal de que se acha investido órgão judiciário de inferior jurisdição. […] (Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação n. 26.574, STF, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 1º.6.2017, publicado no DJ em 5.6.2017)”. No mesmo diapasão, o STJ reconheceu que “a simples menção do nome de autoridades, em conversas captadas mediante interceptação telefônica, não tem o condão de firmar a competência por prerrogativa de foro”, sendo indispensável aferir se há indícios efetivos de participação de autoridades em condutas criminosas. [...]” (Habeas Corpus n. 422.642-SP, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25.9.2018, publicado no DJ em 2.10.2018).

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É preciso deixar bem claro que não serão meras ilações ou possibilidades/probabilidades de ocorrência de fato criminoso eleitoral que ensejarão o deslocamento da competência: será fundamental a indicação de dados objetivos e concretos. Sem que tenha sido preenchido esse (primeiro) pressuposto não há se falar, em hipótese alguma, em pretensão a deslocamento da competência da Justiça comum (federal ou estadual) para a eleitoral para a análise da possível manutenção dos feitos de forma unificada. Por fim, dentro desse tópico, uma advertência fundamental: se já instaurada ação penal em determinado juízo com inquéritos possivelmente conexos também em andamento, o deslocamento desses inquéritos para a Justiça Eleitoral analisar eventual competência sua não deslocará a ação penal já em andamento em que não há qualquer imputação de crime eleitoral. Ou seja, e na linha do que já mencionado, a mera possibilidade da existência de fatos a serem apurados em inquéritos não implicará jamais o concomitante deslocamento de ação penal em tese conexa que já corre perante juízo (natural) competente (em razão dos fatos imputados, que delimitam a competência). O que poderá ocorrer é, no máximo, se devidamente comprovado ulteriormente o crime eleitoral num dos procedimentos investigatórios (com a respectiva denúncia recebida) é que o juízo prevalente poderá “avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva”, hipótese em que “a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas” (art. 82, CPP).

6. TODO CRIME DO ART. 350 DO CÓDIGO ELEITORAL ENSEJARÁ A POSSÍVEL CONEXÃO PROCESSUAL COM OUTROS CRIMES COMUNS?

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Partindo-se do pressuposto de que existam elementos efetivos e concretos da ocorrência da prática de delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral - a justificar o deslocamento da análise da reunião para a Justiça Eleitoral - , a questão a se saber é se esse dado, por si só, implicará a manutenção de competência na Justiça Eleitoral para todos os fatos. Precisamos deixar bem claro um erro de nomenclatura: não existe, tecnicamente, o tipo penal próprio de caixa 2 eleitoral16. Utilizar dinheiro sem origem (possivelmente de caixa dois “tradicional”) em campanha eleitoral não é, por ora, tipificado como crime eleitoral. Como dito alhures, a regra do art. 350 do CE trata de um fenômeno criminoso bem específico: uma forma de falsidade ideológica praticada para fins eleitorais. Portanto, há se verificar se os valores recebidos foram efetivamente não declarados e se não são, em verdade, hipótese de corrupção (“propina”) relacionada diretamente a doações eleitorais de forma criminosa e em desconformidade com a legislação eleitoral. Noutras palavras, solicitar contribuição eleitoral clandestina ou recebê-la efetivamente e de fato empregá-la na campanha não é -

16 Há pretensão a ser aprovado um tipo penal com a seguinte redação (que, de qualquer modo, não afasta a ocorrência de crimes de corrupção anteriormente à prática delitiva):“Art. 350-A. Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral.Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.§ 1º Incorre nas mesmas penas quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput.§ 2º Incorrem nas mesmas penas os candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa.§ 3º A pena será aumentada em 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa”.

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em nossa compreensão, pelo menos até o presente momento - crime eleitoral tipificado no art. 350 do Código Eleitoral. Possivelmente será crime de corrupção passiva, prevista no art. 317, CP 17. De qualquer forma, o que é pouco observado também sob a ótica exclusivamente técnica é que mesmo a existência de “doações para fins eleitorais” não implicará necessariamente na possibilidade de denúncia pela prática do crime do art. 350 do Código Eleitoral, na medida em que nem sempre o agente que utiliza o valor espúrio originariamente sabia dessa circunstância (essa circunstância acerca da autoria, absolutamente inconsistente na maioria das vezes, é o que enseja a impossibilidade técnica de imputação do crime da falsidade ideológica eleitoral, exatamente para que não se cogite de inépcia da denúncia). Não esqueçamos que, limitado ao âmbito da Operação Lava Jato, os valores que foram utilizados em campanhas eram recebidos por alguns poucos corrompidos que, retirando do bolo suas quotas-partes, enviavam aos diretórios partidários esses valores, os quais, por sua vez, destinavam aos candidatos (que não necessariamente sabiam dessa origem espúria). Mais que isso, também sob a ótica exclusivamente técnica: mesmo que haja elementos da existência do crime eleitoral previsto no art. 350 da legislação específica, não haverá necessariamente conexão com eventuais crimes (previamente existentes) de corrupção e lavagem de dinheiro (para ficarmos em tipificações básicas e inerentes a esse tipo de conduta). A razão é, igualmente, bastante simples. Não esqueçamos as duas regras fundamentais de conexão que se aplicam para o caso: a) objetiva (art. 76, II, CPP), em que

17 Não se pode esquecer a existência do delito de “corrupção eleitoral”, tipificado no art. 299 do Código Eleitoral, com a seguinte redação: “Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita: Pena - reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa“.

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uma conduta é praticada para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas; b) instrumental ou probatória (art. 76, III, CPP), em que a prova de uma infração ou qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração. Em verdade, o crime do art. 350 do Código Eleitoral não tem como finalidade ocultar crimes comuns (corrupção, lavagem etc.), mas sim, e eventualmente, ocultar gastos clandestinos realizados durante campanhas eleitorais. É preciso ter bem claro esse paradigma. Assim, e noutras palavras, a falsidade ideológica eleitoral é praticada normalmente para ocultar um ilícito eleitoral (não necessariamente um crime), cuja revelação poderia ensejar consequências na seara eleitoral18. Portanto, a falsidade eleitoral não é praticada para ocultar eventuais crimes comuns anteriores como a corrupção, pois o produto dessa conduta normalmente é ocultado mediante outro fato autônomo e prévio também, a lavagem de dinheiro (ambos crimes ocorrem normalmente muito antes de eventual falsidade ideológica eleitoral). Mais incisivamente: essa falsidade, em regra, nada tem a ver com facilitar ou ocultar infrações anteriores, muito menos assegurar a impunidade delas. Igualmente a prova daqueles crimes não influi - direta e objetivamente - na prova do eventual crime de falsidade. Importante advertir que, novamente de forma exclusivamente técnica, razões de mera conveniência processual não justificam a reunião processual. A simultaneidade processual reclama a demonstração de imprescindibilidade da reunião. Não por outra razão que o STJ vem reafirmando que “a interpretação das

18 Em princípio, poderá responder representação em face do disposto no art. 30-A da Lei n. 9.504 (gastos ilícitos), AIJE - Ação de Investigação Judicial Eleitoral - ou AIME - Ação de Impugnação a Mandato Eletivo -, sendo nessas duas últimas por abuso de poder econômico, tendo como consequências possíveis a cassação do registro, do diploma ou do mandato.

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regras do Código de Processo Penal e demais diplomas legais não pode se submeter a critérios puramente práticos, em prejuízo das normas de competência funcional contidas na Lei Fundamental”19. Igualmente a Corte Suprema brasileira tem destacado há muito tempo que, para se configurar “a conexão instrumental (CprPen, art. 76, III), não bastam razões de mera conveniência no simultaneus processus, reclamando-se que haja vínculo objetivo entre os diversos fatos criminosos”20. Tais premissas são consideradas de tal forma como essenciais que, em casos de efetiva conexão, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que “mesmo nos casos em que há os crimes de corrupção ativa e passiva, é assente a jurisprudência do Supremo Tribunal de que inexiste óbice a separação da causa” 21. De qualquer modo, mesmo que superadas essas premissas, há se evoluir, buscando nos precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal o entendimento a respeito do que fazer quando exista eventual conexão entre crimes. Há se ter um critério claro e objetivo.

7. A REUNIÃO PROCESSUAL POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA É EXCEÇÃO: A REGRA DEVERÁ SER A CISÃO PROCESSUAL

Notadamente a partir da decisão plenária do STF no julgamento do Agravo Regimental no Inquérito n. 3.515, de

19 Agravo Regimental na Ação Penal n. 804-DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20.5.2015, publicado no DJ em 5.6.2015.20 Habeas Corpus n. 81.811, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 22.10.2002, publicado no DJ em 22.11.2002.21 Embargos de Declaração no Inquérito n. 3.994, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 7.8.2018, publicado no DJ em 5.9.2018.

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13.2.2014, os precedentes do Supremo Tribunal Federal são claros e expressos no sentido de que, havendo em tese conexão ou continência (subjetiva), a regra será a cisão processual (a ser realizada pelo “órgão jurisdicional prevalente”), mantendo-se a reunião processual apenas em situações absolutamente excepcionais. Mais um dado: salvo melhor juízo, após essa decisão paradigmática, o Supremo Tribunal Federal não manteve em sua competência nenhum caso envolvendo conexão probatória, apenas parcos casos de continência subjetiva (sob a justificativa de unidade na prestação jurisdicional). Reiterando o que antes dito acerca da necessidade do tratamento equânime das modificações de competência em razão da prerrogativa de foro e da matéria, são bastante claros os precedentes do STF que o desmembramento deverá ser a regra, ressalvadas as hipóteses em que a separação possa causar prejuízo relevante à investigação. Exatamente por isso que se assentou num caso concreto que “além de inexistir demonstração objetiva de prejuízo concreto e real na cisão do processo, a análise do titular da ação penal foi conclusiva no sentido da autonomia entre as condutas em tese praticadas pelo denunciado e os demais investigados[...]”22. Noutras palavras, mas assente também em precedentes do STF, “a cisão processual deve ser a regra, afastada apenas nos casos em que a imbricação entre os fatos revelar intensidade tamanha a acarretar prejuízo ao deslinde processual” 23. Exatamente por isso é que, insistimos, o Supremo Tribunal Federal tem - corretamente - assentado que a regra será a cisão processual, cabendo ao Ministério Público, como titular da ação penal, justificar, no primeiro momento possível e de forma

22 Terceiro Agravo Regimental no Inquérito nº 4.146-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 22.6.2016, publicado no DJ em 4.10.2016.23 Agravo Regimental na Petição n. 6.212-DF, STF, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 5.4.2018, publicado no DJ em 16.5.2018.

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detalhada, a necessidade e imprescindibilidade de reunião processual por conexão ou continência. Ausente demonstração dessa essencial reunião, há se aplicar a cisão pelo órgão prevalente, no caso ora debatido, a Justiça Eleitoral. Isso está expressamente consignado no precedente mencionado no início do presente tópico, na pena do Ministro Roberto Barroso (e acolhida pelos demais ministros): “proponho que se estabeleça o critério de que o desmembramento seja a regra geral, admitindo-se exceção nos casos em que os fatos relevantes estejam de tal forma relacionados que o julgamento em separado possa ocasionar prejuízo relevante à prestação jurisdicional. [...] acrescento que o desmembramento, como regra, deve ser determinado na primeira oportunidade possível, tão logo se possa constatar a inexistência de potencial prejuízo relevante. [...]”.

8. AS OBRIGAÇÕES PROCESSUAIS PENAIS POSITIVAS COMO NORTEADORAS DA BUSCA DE EFICIÊNCIA PROCESSUAL: PRECEDENTES DAS CORTES EUROPEIA E INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.

Como defendemos na companhia de Frederico Valdez Pereira 24, são inúmeros os precedentes das cortes supranacionais a respeito da garantia dos direitos humanos no sentido de existir uma obrigação de as autoridades públicas responsáveis pela investigação e/ou persecução penal conduzirem procedimentos adequados, completos e eficazes, na tentativa de responsabilização dos autores dos delitos. Deixamos bem expresso que essa perspectiva internacional gera efeitos significativos no quadro legal nacional ao ensejar preocupação com a eficácia da jurisdição penal.

24 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. Obrigações processuais penais positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2ed, 2019, no prelo.

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Deixamos indelevelmente assinalado na obra retromencionada que, “partindo da noção dos direitos fundamentais como objeto indispensável de proteção criminal (pela perspectiva integral dos direitos fundamentais), tais obrigações processuais são extraídas não apenas de disposições específicas, relativas à proteção dos direitos à vida, integridade física e psíquica, liberdade individual, vida privada e familiar, mas também de cláusula genérica que exige dos países o respeito dos direitos de todos aqueles que estejam sob a jurisdição do Estado. São reconhecidas, assim, obrigações reais e positivas dos Estados membros, que consistem no dever de seus órgãos internos assegurar a salvaguarda desses direitos, prevenindo a violação e esclarecendo judicialmente o cometimento de fatos ilícitos, como forma de efetuar sua repressão, não apenas formal e simbólica, mas adequada e concreta” 25. É fundamental realçar ainda que ambas as convenções (Interamericana de Direitos Humanos e Europeia) possuem regras que impõem aos Estados signatários obrigações de respeitar e fazer valer os direitos e liberdades reconhecidos. São obrigações de dupla vinculação: negativas, vedando aos Estados a violação de Direitos Humanos; positivas, pois exigem das partes a adoção de medidas necessárias para tutelar esses direitos, impedindo a violação deles por terceiros e reprimindo eficazmente eventuais lesões a esses direitos. Tais considerações vêm ao encontro do que corretamente destaca em doutrina nacional Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, para quem “as ordens constitucionais de criminalização são um instrumento da Constituição para oferecer proteção adequada e suficiente a alguns direitos fundamentais, diante de lesões ou ameaças vindas de agentes estatais ou de particulares”, bem assim

25 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 59.

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que a proibição do retrocesso de direitos fundamentais encontra sede, dentre outros, “no princípio da proporcionalidade, compreendido como inclusivo da vedação à proteção insuficiente” 26. Reafirmamos incondicionalmente que, naqueles casos em que se faça presente a denominada dignidade penal (conformidades constitucional e também convencional), o sistema penal deve ser visto como instrumento de tutela dos direitos e das liberdades públicas. Assim, pontuamos expressamente que se estabelece uma “complementação na relação possível entre direito penal e os direitos fundamentais, uma vez que esses últimos deixam de ser concebidos apenas como limites à atividade punitiva estatal, para serem entendidos também como fundamentos, enquanto objeto de defesa, da atuação penal e processual penal” 27. É-nos absolutamente tranquilo afirmar que as cláusulas convencionais protetivas dos direitos fundamentais exigem dos sistemas jurídicos domésticos a condução de investigações aprofundadas, céleres e diligentes, tendo como finalidade a tentativa de esclarecer os fatos e punir os responsáveis ao final do processo (identificando-se nítida hipótese de prevenção geral). Portanto, fica muito claro que os deveres processuais positivos decorrem diretamente, como implicações imediatas, dos direitos humanos protegidos também nas Convenções. Não custa relembrar que, “o reconhecimento das obrigações processuais penais positivas relacionadas à tutela das pessoas ofendidas é cada vez mais frequente nas sentenças da Corte europeia de direitos humanos” 28.

26 GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 160 e 168.27 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 61.28 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais

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Refira-se ainda que, em ambas as Cortes supranacionais, são encontrados julgados com expressa fundamentação no sentido de existir um dever de o Estado investigar e processar os responsáveis por violações de direitos humanos como única forma de evitar a impunidade, tentando-se evitar também a reiteração de condutas lesivas e o desamparo das vítimas e seus familiares. O processo deve ser adequado, idôneo na busca do esclarecimento de crimes. Porém não há como se visualizar um processo penal sem levar em consideração, necessariamente, os direitos e os deveres fundamentais de todos os envolvidos na esfera de responsabilização criminal. Mais objetivamente: o processo penal deve ser compreendido sempre como um instrumento de garantia dos imputados e também de busca da realização das consequências previstas na lei penal (daí a compreensão integral de que se fala). Significa que, para cumprir com as exigências decorrentes da proteção de (todos) os direitos previstos convencionalmente, “os sistemas jurídico-penais internos devem predispor estrutura de atuação e mecanismos adaptados a prevenir, coibir e sancionar efetiva e eficazmente as lesões verificadas”29. É que, “uma vez constatada a possibilidade concreta de ofensas a direitos penalmente tutelados pelas convenções internacionais de direitos humanos, é necessário que as autoridades jurisdicionais e de polícia busquem efetivar a punição dos autores de delitos, mediante a identificação adequada do fato e dos responsáveis em procedimento conduzido de forma aprofundada, diligente e ágil, caracterizado por um esforço autêntico e aplicado na reconstrução dos fatos e na identificação das responsabilidades” 30.

Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 69.29 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 82.30 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto

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Por todas essas razões é que sustentamos, em apertada síntese, que “as obrigações processuais penais positivas podem ser caracterizadas como um dever imposto aos Estados Partes de conduzir procedimento investigativo eficiente e processo penal apto a assegurar o acertamento dos fatos ilícitos e a punição dos eventuais autores, sob pena de violação concreta dos dispositivos das convenções regionais de direitos humanos que estipulam a salvaguarda dos direitos fundamentais envolvidos nas práticas ilícitas” 31.

9. A CISÃO PROCESSUAL COMO PRESSUPOSTO DE MAXIMIZAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES PROCESSUAIS PENAIS POSITIVAS

A teoria não pode se distanciar da prática: elas precisam andar lado a lado, em constantes ajustes e conformidades. Nessa linha, três rápidas constatações importantes no âmbito da Operação Lava Jato. Primeiro, foi o julgamento da Reclamação n. 17.623. Relembre-se que, nesse momento, já estava em andamento da Operação Lava Jato, iniciada em procedimentos perante vara federal em Curitiba. Um dos presos destacou que, na investigação realizada, estariam dois deputados federais, que possuiriam prerrogativa de foro. Os autos foram avocados pelo STF. Verificou-se que, de fato, havia dois parlamentares envolvidos, mas até então ninguém sabia que eram detentores de prerrogativa de foro, pois utilizavam codinomes. A Suprema Corte, por intermédio da 2ª Turma, decidiu

Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 82-83.31 PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 85.

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que não havia nenhuma nulidade (Serendipidade e Teoria do Juízo Aparente), mas que deveriam ficar no STF exclusivamente os fatos relacionados aos parlamentares, determinando a imediata cisão dos demais fatos (conexos e/ou com continência subjetiva) com retorno para primeiro grau, permitindo-se o regular andamento dos feitos perante o juízo natural competente. A partir das duas primeiras colaborações premiadas realizadas (Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef), diversos fatos e inúmeras pessoas foram referidos (quase todos com corroboração de prova). Após o regular procedimento de homologação dos feitos32, a Suprema Corte autorizou inicialmente a manutenção de alguns casos no âmbito de sua competência, mas determinou a imediata cisão de todos os demais que não justificassem diretamente a sua competência extraordinária. A cisão processual foi a regra novamente. Também em determinado momento houve a revelação de que o esquema criminoso praticado por várias pessoas não estava circunscrito ao desvio de recursos da Petrobras, mas também havia nítidas práticas similares em relação ao patrimônio da Eletrobras (fatos normalmente ocorridos no Rio de Janeiro e, em tese, sem vinculação direta com os demais fatos em relação aos quais havia prevenção da Justiça Federal em Curitiba/PR). Novamente a cisão foi realizada. Em todos esses casos (e são apenas alguns exemplificativos) não há nenhuma dúvida: a cisão processual gerou maior eficiência nas apurações dos fatos. Exatamente por isso cita-se em complemento reconhecimento da Corte Especial do STJ no sentido de que “como regra geral, no concurso de agentes, o desmembramento de inquéritos ou de ações penais de competência

32 Para melhor entender o caso, remete-se ao inteiro teor do julgamento do Habeas Corpus n. 127.483-PR, impetrado contra a homologação do acordo, feito na época pelo (saudoso) Ministro Teori Zavascki. A decisão de mérito foi unânime e ali foram fixadas as balizas essenciais do procedimento da colaboração premiada nos moldes da Lei n. 12.850/2013).

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originária, em relação aos réus não detentores de foro por prerrogativa de função. Tal assertiva busca, além da obediência ao mencionado princípio da ‘razoável duração do processo’ (art. 5º, LXXVIII, CF/88), o respeito às normas constitucionais definidoras da competência ratione muneris, as quais são de direito estrito” 33, bem assim que “em observância à razoável duração do processo, é recomendável que a Ação Penal seja desmembrada, preservando-se os princípios do juiz natural e da razoável duração do processo. Nesse sentido, colhe-se do STF: AP 336-AgR/TO, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 10/12/2004; Inquérito 1.690, Plenário, relatado pelo Ministro Carlos Velloso; AP 351/SC, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 17/9/2004; PET nº 2.020-QO/MG, Relator o Ministro Néri da Silveira, DJ de 31/8/2001. No mesmo sentido: STF, Inq 3.842 (Segunda Turma) e Inq 4.130 (Plenário)” 34. Como dito anteriormente, se a reunião processual não pode se dar por mera coveniência, os dados empíricos acima reforçam que a separação processual (cisão) maximiza o pressuposto anterior. Noutras palavras, a cisão processual - para além de ser a regra procedimental preponderante - é um fator que auxilia e muito a melhor apuração dos fatos, evitando-se congestionamento e tumulto processuais.

10. UMA SOLUÇÃO TAMBÉM PROCESSUAL DIANTE DE TODAS PREMISSAS FIXADAS: A CISÃO COMO REGRA COM FUNDAMENTO NO ART. 80 DO CPP

Dispõe o art. 80 do Código de Processo Penal que “será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem

33 Agravo Regimental na Ação Penal n. 804-DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20.5.2015, publicado no DJ em 5.6.2015.34 Questão de Ordem na APn n. 885 – DF, STJ, Corte Especial, unânime, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 15.8.2018, publicado no DJ em 28.8.2018.

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sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação”. Como defendemos na companhia de Eugênio Pacelli há muito tempo, não se trata de uma mera faculdade discricionária. É que “toda a questão gira em torno da preocupação com a efetividade da função jurisdicional, no sentido da duração razoável do processo, eventualmente ameaçada, seja por força da aplicação de determinadas regras procedimentais, como a conexão, por exemplo, seja pelas próprias circunstâncias judiciais do caso concreto”. Desse modo, concluímos, “na conexão [...] quando a separação de processos se revelar mais conveniente que a reunião deles, prevista nos casos do art. 76, CPP, há que se dar primazia à regra do art. 80, CPP”35. Não por outras razões que, no controle da aplicação das leis, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que “nos casos em que a reunião dos processos, mesmo diante da configuração da conexão, se torne inconveniente, seja em razão da complexidade da ação penal, da pluralidade de réus ou de qualquer outro motivo relevante, o Juiz da instrução pode se valer da regra contida no artigo 80 do Código de Processo Penal, para manter a separação dos feitos” 36. Noutras palavras, para além do entendimento do STF de que a regra deve ser a cisão processual, o tema é reforçado pela correta compreensão do disposto no art. 80 do CPP: deve-se conferir primazia à separação processual em face da reunião procedimental.

35 PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Gen/ATlas, 2019, 11ª edição, p.193.36 Conflito de Competência nº 122.043-SP, STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Campos Marques, julgado em 28.12.2012, publicado no DJ em 5.12.2012.

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11. PONDERAÇÃO ACERCA DE CASOS ANTERIORES À DECISÃO DO STF EM QUE PODERIA HAVER EVENTUAL CONEXÃO PROBATÓRIA: HIGIDEZ TOTAL, SEM QUALQUER NULIDADE A SER DECLARADA

Já é possível encontrar alguns posicionamentos no sentido de que, em face da novel decisão do STF, as ações penais que tramitaram perante outros juízos (inclusive com eventuais condenações e absolvições) deveriam ser anuladas e tudo ser remetido para a Justiça Eleitoral analisar eventual conexão.

Tal raciocínio está equivocado, data venia.Primeiro porque as regras de processo penal aplicam-se

para o futuro, presente o princípio tempus regit actum, ou seja, se os atos foram praticados segundo a legislação (e sua interpretação) vigente em determinado momento eles serão absolutamente hígidos37. Esse pressuposto se aplica de forma idêntica à mudança de entendimento jurisprudencial acerca de determinada forma de procedimento. É que, “a mudança de entendimento jurisprudencial (futuro) acerca de como deveria ser praticado determinado ato não pode retroagir para desfazer ou alterar o que (no passado) foi praticado segundo os ditames vigentes (mesmo que em decorrência de compreensão jurisprudencial, desde que pacificada” 38.

Embora não publicado ainda o acórdão em voga, em situações similares de modificação de jurisprudência acerca de procedimentos, o Supremo Tribunal Federal reiteradamente tem reconhecido que devem permanecer hígidos os atos praticados anteriormente. É o que se vê, exemplificativamente, na decisão Plenária no HC n. 127.900-

37 Salvo violação da competência absoluta, que não é o caso. Aliás, é o inverso, como insistentemente defendido: há se preservar a competência absoluta em razão da matéria, constitucionalmente definida.38 PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Gen/ATlas, 2019, 11ª edição, p.1674.

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AM39, na qual foi fixada a orientação de que “a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado”. Ou seja, preservaram-se todos os atos já praticados frente ao princípio do tempus regit actum, exatamente o entendimento consolidado em reiterada jurisprudência do STJ e do STF 40, como se vê também no próprio julgamento que implicou entendimento mais restritivo da

39 HC n. 127.900-AM, STF, Plenário, Rel. Ministro Dias Tóffoli, julgado em 3.6.2016, publicado no DJ em 3.8.2016.40 [...] A Lei nova aplica-se imediatamente na instrução criminal em curso, em decorrência do princípio estampado no brocardo jurídico tempus regit actum, respeitando-se, contudo, a eficácia jurídica dos atos processuais já constituídos. (Habeas Corpus nº 187.385-RJ, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 6.10.2011, publicado no DJ em 14.10.2011).[...] O entendimento consolidado nesta Corte é de que os atos realizados na vigência da lei processual anterior não são prejudicados ou devem ser repetidos sobre as balizas da nova lei adjetiva, uma vez que no processo penal vige o princípio tempus regit actum, nos termos do art. 2º do CPP. [...] (Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 463.386-SP, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18.10.2018, publicado no DJ em 23.10.2018)[...] No âmbito do direito processual penal, quando se fala em aplicação da lei no tempo, vige o princípio do efeito imediato, representado pelo brocardo latino tempus regit actum, conforme previsão contida no artigo 2º do Código de Processo Penal. [...] (Habeas Corpus nº 216.684/MS, STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 18.9.2012, publicado no DJ em 3.10.2012).[...] 1. Nos termos da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do INQ 571, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, a alteração da competência inicial em face de posterior diplomação do réu não invalida os atos regularmente praticados, devendo o feito prosseguir da fase em que se encontre, em homenagem ao princípio tempus regit actum (Inq 1459, Rel. Min. Ilmar Galvão). 2. O regular oferecimento e recebimento da denúncia perante o juízo natural à época dos atos desautoriza o pedido de arquivamento formulado nesta fase processual, em homenagem ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. [...] (Questão de Ordem na Ação Penal nº 905-MG, STF, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 23.2.2016, publicado no DJ em 22.3.2016).

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prerrogativa de foro na Questão de Ordem na Ação Penal n. 93741. Portanto, o novo entendimento do STF (de que havendo possível conexão deverá ela ser analisada pela Justiça Eleitoral, e dentro dos limites estritos do que já abordado aqui) não se aplica a processos em que já exaurida a jurisdição com sentença de mérito (absolutória ou condenatória). Em segundo lugar porque há muito está corretamente sedimentado que a definição do juiz natural se dá pela imputação criminal. Se pelo que narrado na peça acusatória e a sentença condenatória e/ou absolutória for exarada pelo juízo (natural) competente (correlação) nada deve ser objeto de nulidade no futuro se os atos foram praticados de acordo com o juízo competente (natural). Ademais, repise-se aqui (vide item 4 acima), é bastante comum a instauração de processos penais possivelmente conexos em juízos distintos. Nesses casos, a solução é bastante simples, aplicando-se a regra do art. 82 do CPP, segundo a qual o juízo prevalente (no caso eleitoral) poderá “avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva”, hipótese em que “a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas” (art. 82, CPP). Não se olvide ainda e derradeiramente que a Súmula 235 do STJ é bastante clara: “A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”. Portanto, não haverá qualquer hipótese de nulidade nesses casos.

41 [...] “Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. [...] (Questão de Ordem na Ação Penal n. 937-RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, STF, Plenário, julgado em 3.5.2018, publicado no DJ em 11.12.2018).

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12. CONCLUSÕES

Diante de todos os fundamentos anteriormente declinados, pode-se exarar conclusões com as seguintes assertivas:

1) Equivocou-se o STF ao admitir que regras de competência absoluta (competência em razão da matéria fixadas na Constituição Federal) possam ser modificadas por normas infraconstitucionais (art. 76, II e III, CPP e/ou art. 35, II, Código Eleitoral).

2) superado esse tema, tem-se que não será qualquer fato ou arguição na justiça comum de possível crime eleitoral conexo que ensejará o deslocamento da competência. Assim, não serão meras ilações ou possibilidades/probabilidades de ocorrência de fato criminoso eleitoral que ensejarão o deslocamento da competência: será fundamental a indicação de dados objetivos e concretos. Sem que tenha sido preenchido esse (primeiro) pressuposto não há se falar, em hipótese alguma, na pretensão a deslocamento da competência da Justiça comum (federal ou estadual) para a eleitoral para a análise da possível manutenção dos feitos de forma unificada.

3) Se já instaurada ação penal em determinado juízo com inquéritos possivelmente conexos também em andamento, o deslocamento desses inquéritos para a Justiça Eleitoral analisar eventual competência sua não deslocará a ação penal já em andamento em que não há qualquer imputação de crime eleitoral. Ou seja, a mera possibilidade da existência de fatos a serem apurados em inquéritos não implicará jamais o concomitante deslocamento de ação penal possivelmente conexa que já corre perante juízo (natural) competente (em razão dos fatos imputados, que delimitam a competência). O que poderá ocorrer é, no máximo, se devidamente comprovado ulteriormente o crime eleitoral num dos procedimentos investigatórios (com a respectiva denúncia recebida) é que o juízo prevalente poderá “avocar os processos que corram perante os

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outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva”, hipótese em que “a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas” (art. 82, CPP).

4) O crime tipificado no art. 350 do Código Eleitoral caracteriza-se como verdadeira hipótese de falsidade ideológica para fins eleitorais. Além disso, doações eleitorais não declaradas não implicarão necessariamente a possibilidade de denúncia pela prática do crime do art. 350 do Código Eleitoral.

5) Mesmo que haja elementos objetivos acerca da existência do crime eleitoral previsto no art. 350 da legislação específica, não haverá necessariamente conexão com eventuais crimes (previamente existentes) de corrupção e lavagem de dinheiro. O delito eleitoral não tem como finalidade ocultar crimes comuns (corrupção, lavagem, etc), mas sim, e eventualmente, ocultar gastos clandestinos realizados durante campanhas eleitorais. A falsidade ideológica eleitoral é praticada normalmente para ocultar um ilícito eleitoral (não necessariamente um crime), e não para ocultar eventuais crimes comuns anteriores como a corrupção, pois o produto dessa conduta normalmente é ocultada mediante outro fato autônomo e prévio também, a lavagem de dinheiro (ambos crimes ocorrem normalmente muito antes de eventual falsidade ideológica eleitoral). Essa falsidade, em regra, nada tem a ver com facililtar ou ocultar infrações anteriores, muito menos assegurar a impunidade delas. Igualmente a prova daqueles crimes não influem - direta e objetivamente - na prova do eventual crime de falsidade. Portanto, dificilmente haverá conexão objetiva ou instrumental.

6) Razões de mera conveniência processual não justificam a reunião processual: segundo precedentes do STF e do STJ a simultaneidade processual reclama a demonstração de imprescindibilidade da reunião.

7) A reunião processual por conexão ou continência deverá ser exceção, enquanto a regra, a cisão. Expresso

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reconhecimento pelo STF de que “o desmembramento seja a regra geral, admitindo-se exceção nos casos em que os fatos relevantes estejam de tal forma relacionados que o julgamento em separado possa ocasionar prejuízo relevante à prestação jurisdicional. [...] o desmembramento, como regra, deve ser determinado na primeira oportunidade possível, tão logo se possa constatar a inexistência de potencial prejuízo relevante. [...]”. Ou seja, se não for demonstrado pelo Ministério Público que é imprescindível a apuração conjunta dos fatos, a cisão deverá ser realizada de forma obrigatória.

8) São inúmeros os precedentes da Corte Europeia e Interamericana de Direitos Humanos sobre a existência de obrigações de as autoridades públicas responsáveis pela investigação e/ou persecução penal conduzirem procedimentos adequados, completos e eficazes, na tentativa de responsabilização dos autores dos delitos. Noutras palavras, as obrigações processuais penais positivas podem ser caracterizadas como um dever imposto aos Estados Partes de conduzir procedimento investigativo eficiente e processo penal apto a assegurar o acertamento dos fatos ilícitos e a punição dos eventuais autores, sob pena de violação concreta dos dispositivos das convenções regionais de direitos humanos que estipulam a salvaguarda dos direitos fundamentais envolvidos nas práticas ilícitas.

9) A cisão processual é uma forma de maximização das obrigações processuais penais positivas: demonstra-se empírica e hialinamente que a separação de feitos confere como regra a melhor eficiência na apuração dos fatos e punição dos possíveis responsáveis por fatos criminosos.

10) Por todos os fundamentos anteriores, a solução dos casos passará pela aplicação do art. 80 do CPP, segundo o qual “será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não

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lhes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação”. Dentro dessa ótica, é importante não olvidar que, quando a separação de processos se revelar mais conveniente do que a reunião deles, prevista nos casos do art. 76, CPP, deve-se dar primazia à regra do art. 80, CPP.

11) Não há nulidade alguma a ser declarada nos feitos já sentenciados em outros juízos para que se possa analisar eventual conexão com crimes eleitorais. Primeiro, porque a novel interpretação conferida pelo STF deve ser aplicada para o futuro, sem efeitos retroativos (regra processual: tempus regit actum), conforme já reconhecido em vários casos de alteração de procedimento por via de interpretação jurisprudencial. Depois porque a definição do juiz natural se dá pela imputação criminal. Se pelo que narrado na peça acusatória e a sentença condenatória e/ou absolutória for exarada pelo juízo (natural) competente (correlação) nada deve ser objeto de nulidade no futuro se os atos foram praticados de acordo com o juízo originariamente competente.

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PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS POVOS INDÍGENAS E A PERPETUAÇÃO DA INVISIBILIDADE NO CENÁRIO POLÍTICO

Bruna Ferreira de AndradeVolgane Oliveira Carvalho

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RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar de que forma as políticas públicas vigentes são capazes de introduzir a população indígena no ambiente político. Constata-se a invisibilidade indígena no âmbito político deve-se a uma longa história de tutela estatal. Considerando o perfil do índio brasileiro da atualidade e suas demandas, bem como os entraves ao exercício da cidadania, é possível observar que o direito de sufrágio indígena é tratado com displicência pela legislação e jurisprudência brasileiras. O percentual de candidaturas indígenas aptas nas eleições de 2014 a 2018, demonstra a carência da representatividade indígena e, por conseguinte, a necessidade de alternativas que enalteçam a cultura e participação indígena como forma de fortalecer a democracia brasileira. Assim, o índio vive uma condição de sub-cidadania, dadas as dificuldades decorrentes do exercício do direito do sufrágio ativo e passivo e do fato de serem representados por lideranças descompromissadas com seus interesses na frente parlamentar e nos fóruns consultivos. O estudo trata-se de um levantamento bibliográfico, no qual foi adotado o método hipotético dedutivo partindo da análise documental e jurisprudencial contida nas bases de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

PALAVRAS-CHAVE: Indígenas. Direito de sufrágio. Cidadania.

ABSTRACT: This paper aims to analyze how current public policies are able to introduce the indigenous population into the political environment. Indigenous invisibility in the political sphere is due to a long history

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of state tutelage. Considering the profile of the Brazilian Indian of today and its demands, as well as the obstacles to the exercise of citizenship. it is possible to observe that the right of indigenous suffrage is treated with disdain by Brazilian legislation and jurisprudence. The percentage of indigenous candidates eligible in the 2014 to 2018 elections demonstrates the lack of indigenous representation and. therefore, the need for alternatives that enhance indigenous culture and participation as a way to strengthen Brazilian democracy. Thus, the Indian is a condition of sub-citizenship, given the difficulties stemming from the exercise of the right to active and passive suffrage and the fact that they are represented by disengaged leaders with their interests on the parliamentary front and the consultative forums. The study is a bibliographical survey, in which the hypothetical deductive method was adopted, based on the documentary and jurisprudential analysis contained in the databases of the Superior Electoral Court.

KEYWORDS: Indigenous people. Right of suffrage. Citizenship.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal assegurou às comunidades indígenas os meios e a terra para que pudessem preservar sua cultura e suas tradições, encerrando a imposição da assimilação à sociedade europeizada proposta pelo Estatuto do Índio. Na mesma toada, instrumentos normativos internacionais com finalidades semelhantes foram ratificados pelo Congresso Nacional.

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A Convenção Internacional n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional o Trabalho e o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), além de afastarem o princípio da assimilação e aculturação, estabelecem padrões mínimos a serem seguidos pelo Estado a fim de proporcionar o reconhecimento da pluralidade política através de mecanismos adequados de participação dos indígenas nos espaços de formulação de políticas e programas que lhes afetem.

Apesar das conquistas, a história dos povos indígenas foi marcada pelo esforço do Estado em dominá-los e pela luta pela sobrevivência, o que leva a crer que a invisibilidade indígena no âmbito político é uma construção histórica, que se reflete na composição do Congresso Nacional, visto que até hoje apenas dois deputados federais indígenas foram eleitos.

Os índios buscam melhorar suas condições de vida, entretanto a participação das suas lideranças, que nem sempre são afinadas com seus interesses, é limitada. Um novo cenário está por ser descortinado, vez que os indígenas não se contentam apenas com a participação passiva na formulação de políticas indigenistas, mas desejam atuar com seus representantes legislativos, em um contexto ordenador da política nacional.

Nesse contexto, parece que os instrumentos normativos brasileiros não são aptos a introduzir os indígenas no cenário político, o que acaba acarretando uma perpetuação da invisibilidade do índio, o que, por si só, conflita com os propósitos de tais políticas públicas. Justifica-se, portanto, a necessidade de analisar as condições atuais do exercício do direito de sufrágio pelos povos indígenas.

Neste enfoque, o presente trabalho objetiva verificar de que forma as políticas públicas vigentes são capazes de introduzir a população indígena na atual conjuntura política do Brasil. Para tanto, foi utilizada a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial e, de modo conjugado, aplicado o método hipotético-dedutivo.

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2. INDÍGENAS BRASILEIROS: DA INVISIBILIDADE AO RECONHECIMENTO INTERÉTNICO?

De início é necessário revisitar a história brasileira e seus primeiros cidadãos, os índios, evidenciando a existência da invisibilidade indígena até os dias atuais e apresentado a real necessidade de que haja uma participação desta minoria no cenário político brasileiro.

2.1. Construção histórica da invisibilidadeA invisibilidade social, de acordo com Ceres Karam

Brum e Suzana Cavalheiro de Jesus (2015, p. 202), consiste em “um vasto conjunto de formas de exclusão e/ou discriminação por vezes escamoteadas que gravitam em torno de produção de percepções ‘equivocadas e interessadas’ que objetivam conduzir a negativa de reconhecimento da diferença cultural”.

Considerando o conceito de invisibilidade social supracitado, a invisibilidade indígena tem origem no século XVI com a construção da representação deste povo enquanto uma ameaça, quando os europeus, ao relatarem sobre o descobrimento do Brasil, os descreveram como uma sociedade selvagem, “sem fé, sem lei e sem rei” (OLIVEIRA, FREIRE, 2006, p.121).

Tais relatos, que serviam aos interesses da coroa portuguesa, uma vez que os habitantes originais do Brasil eram considerados empecilho à dominação do território brasileiro, fizeram circular imagens profundamente negativas dos povos indígenas.

Após a independência, o processo de descaracterização cultural ganha força com o Decreto nº. 426 de 24 de julho de 1845 que estabeleceu o Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios. “O projeto civilizatório desenvolvido associava a educação religiosa dos índios ao ensino formal de ofícios mecânicos, práticas agrícolas e atividades militares” (OLIVEIRA;

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FREIRE, 2006, p.124) com o intuito de explorar os índios. No mesmo contexto, à época da Regência, eclodiram

os primeiros movimentos que defendiam interesses indígenas, notadamente o direito de possuírem as terras que cultivavam e a liberdade do comércio de seus produtos: a Cabanagem, no Pará e no Amazonas, e a Balaiada, no Piauí e Maranhão, ambas sem grande sucesso.

A partir da metade do século XIX, tem-se a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), ligado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Em seguida, o SPILTN foi transformado em Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que atuou entre os anos de 1910-1967, fato que marca a passagem da tutela indígena das Missões Religiosas para o Estado (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

Embora a nomenclatura designasse algum tipo de amparo aos índios, de acordo com Gomes (1991) apud Bittecourt (2000, p. 100) na passagem da política indigenista para o âmbito de ação do Ministério da Agricultura “dezenas de aldeias indígenas, ainda em existência, foram extintas formalmente, e os seus habitantes condenados a virarem posseiros sem terra e a perderem suas características culturais específicas”. Condutas que atendiam aos apelos da lógica burguesa que vigorava no país.

O período de decadência do organismo começa com Governo Vargas, culminando com sua extinção em 1966. Em meio a acusações de corrupção, o SPI foi substituído, em 1967, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Sob intensa propaganda do governo militar, o órgão propunha solucionar a questão indígena, transformando os índios efetivamente em brasileiros, integrando-os à nação, ao mesmo tempo que assimilando-os culturalmente ao seu povo.

Posteriormente, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), criado em 1972 e vinculado a Igreja Católica, passou a

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proporcionar encontros entre as lideranças indígenas, conhecidos como Assembléias Indígenas e que se espalharam em todo o país. Estas assembleias proporcionaram a conscientização dos índios de seus direitos e a mobilização do povo indígena junto ao Congresso Nacional Constituinte, onde mantiverem um lobby permanente, a fim de que suas reivindicações fossem atendidas, o que resultou em um capítulo específicos da Constituição Federal destinado a eles (BITTENCOURT, 2000, p. 9).

A história mostra que o Estado sempre propagou uma postura protecionista em relação aos índios que, no entanto, mascarou um forte intenção de controlá-los, tornando-os invisíveis. Hodiernamente, a invisibilidade é sentida no Congresso Nacional, na medida em que, historicamente, apenas dois indígena obtiveram sucesso eleitoral conquistando cadeiras na Câmara dos Deputados. Capiberibe e Bonilla (2015, p. 306) atribuem a invisibilidade de hoje ao que chama de a paz dos modernos:

uma paz estabelecida por um mundo baseado na razão e na ciência (seja ela biológica ou econômica) e sustentada pela tolerância aos Outros (os irracionais, os selvagens, os primitivos, as minorias, os pobres etc.), que se apresenta em grandes discursos pacificadores e universalistas sobre direitos humanos e de pertencimento a um mundo comum. Seria bom não fosse o fato de que o mundo universal e tolerante dos modernos é um mundo concebido à sua própria imagem, sendo assim, se aceita a existência do Outro é somente na condição de englobá-lo em sua própria elaboração do que é o mundo.

Por conseguinte, o protagonismo indígena no âmbito político deve passar, necessariamente por uma estratégia de desinvisibilização, contornando a história de exclusão que atendia aos interesses da classe dominante, conforme demonstrado.

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2.2. Grupos indígenas no BrasilNa atualidade, os grupos indígenas se concentram na

região Norte. No último censo demográfico de 2010 foram registrados 896,9 mil autóctones, dos quais 817,9 mil se auto declararam indígenas no quesito cor ou raça e 78,9 mil residiam em terras indígenas, tinham afinidade com tradições, costumes e antepassados, mas se declararam de outra cor ou raça , principalmente pardos (67,5%). Do total, 36,2% foram identificados na área urbana e 63,8% na área rural (IBGE, 2010, online). Estima-se que hoje, haja cerca de 1 milhão de indígenas vivendo em 13,4% do território brasileiro.

No que tange a taxa de alfabetização, o censo de 2010, considerou tanto o português quanto o idioma indígena e constatou que, entre os índios com 15 anos ou mais de idade, 76,7% eram alfabetizados. O analfabetismo predominou nas áreas rurais chegando a 33,4% para os indígenas da mesma faixa etária.

Um dos avanços do último censo, foi a investigação quanto ao pertencimento étnico, quesito utilizado em censos de outros países. Para este fim, o IBGE considerou etnia, a comunidade definida por afinidade linguísticas, culturais e sociais. Foram identificados 305 etnias, das quais as mais populosas são: Tikúna, Guarani Kaiowá, kaingang, Makuxí,Terena, Tenetehara, Yanomámi, Potiguara, Xavante, Pataxó, Sateré-Mawé, Mundurukú, Múra, Xucuru e Baré.

Outras etnias destacam-se não pelo contingente populacional, mas pela busca de autonomia através da venda de suas produções e a exploração dos recursos naturais das terras indígenas. A Agência Brasil em notícia veiculada em abril de 2018 apontou exemplos de produções indígenas financeiramente bem-sucedidas. Destaca-se o comércio de castanha pelas etnias Kaiapó, Xipaya e Kuruaya do Pará, a venda de cogumelos pelos Yanomami (Roraima e Amazonas), além da comercialização de pimenta pelos Baniwa (Amazonas). As 16 etnias que vivem no Parque do Xingu destaca-se

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pela venda de mel (PEDUZZI, 2018, online).Vislumbra-se, portanto, o alvorecer de uma nova era para

os indígenas. Livre-se de toda e qualquer tutela estatal e capaz de lutar por seus anseios e se desenvolver, garantindo assim a autonomia de que precisam para se desvencilhar de políticas protecionistas que não afiançam o avanço na política.

Em contrapartida, Drummond (2012, p.143) constatou que mais de 60% da população indígena brasileira recebe benefícios sociais e previdenciários do Governo Federal e ao analisar o atual projeto político do Estado brasileiro para os povos indígenas inferiu que esse se realiza por meio de articulação interinstitucional, coordenada pela FUNAI, visando à inclusão dos povos indígenas em políticas sociais universais.

Apesar do grande contingente ainda dependente dos benefícios assistenciais estatais, é notável que os índios são capazes de avançar no comércio de recursos naturais e que almejam sua autonomia e independência. Todavia, seus anseios, sobretudo com relação a demarcação e homologação de terras, o que garantiria segurança jurídica aos negócios, encontram barreiras no Congresso Nacional, tendo em vista a quantidade de parlamentares ligados à bancada ruralista, ao agronegócio e aos consórcios de mineração e de usinas hidrelétricas.

3. O DIREITO DO INDÍGENA BRASILEIRO À PARTICIPA-ÇÃO POLÍTICA

A Constituição Brasileira de 1988 dedicou um capítulo específico à proteção dos direitos dos indígenas, o Capítulo VIII, em que são assegurados aos índios os direitos permanentes e coletivos, entre os quais: o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; o uso de suas línguas maternas e dos

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processos próprios de aprendizagem, etc. Assim, pelo atual texto constitucional, os índios

deixaram de ser considerados povos de cultura em vias de extinção, cujo destino desejável seria a incorporação à chamada “comunhão nacional” (BRASIL, 2018 online).

3.1. Tratados internacionais e a participação política dos indígenasRatificando os ideais constitucionais de reconhecimento

interétnico presentes na CF/88, em 2002, o Congresso Nacional aprovou, pelo Decreto nº. 143, o primeiro instrumento internacional a tratar dignamente dos direitos coletivos dos povos indígenas, a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Este instrumento normativo estabelece os padrões mínimos a serem seguidos pelos Estados a fim de afastar o princípio da assimilação e da aculturação no que diz respeito aos povos indígenas.

No que tange a participação política dos povos indígenas e tribais, o artigo 6º da Convenção n.° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT, preleciona que os Estados deverão:

a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) criar meios pelos quais esses povos possam participar livremente, ou pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, em todos os níveis decisórios de instituições eletivas ou órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que lhes afetem; c) estabelecer meios adequados para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses povos e, quando necessário, disponibilizar os recursos necessários para esse fim. As consultas devem ser realizadas em conformidade com a boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado (OIT, 1989)

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A consulta prévia tem previsão constitucional para os casos de aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas (artigo 231 da Constituição Federal), bem como para os casos de acesso a conhecimento tradicional (Lei n.º 13.123, de 20 de maio de 2015).

Insta salientar que a Convenção n.º 169 da OIT contrapondo-se a instrumento normativo internacional anterior, adotou a concepção de povos no lugar de populações. Esta alteração demonstra a quebra do paradigma integracionista na medida em que para a teoria geral do Estado, população é objeto, contido em algum lugar,enquanto povo é sujeito, constitutivo de um lugar e detentor de direitos e deveres de participação e exercício do poder político soberano (DINO, 2014, p.498).

Embora a Constituição não tenha expressamente se referido aos indígenas enquanto povo, entende-se que pelo temor de ensejar movimentos separatista não desejados na época, o artigo 231 da Constituição Federal os assegura direito à sua organização social e à manutenção de suas práticas culturais, bem como à impossibilidade de remoção forçada de suas terras, reconhecendo materialmente os indígenas como povos. Esta é a leitura que se propõe do referido dispositivo.

Outro instrumento internacional garantidor do direito de participação política dos índios aderidos ao ordenamento jurídico foi o PNDH-3 ratificado pelo Decreto nº. 7.037/2009, e atualizado pelo Decreto nº. 7.177/2010. Ele é produto de uma construção democrática e participativa, incorporando resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos e, portanto, assegura:

(a) promoção do diálogo intercultural; (b) reconhecimento da pluralidade política e cultural expressa pelas formas próprias de organização e reafirmação da diversidade cultural dos povos indígenas; (c) proteção das línguas, dos patrimônios

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e conhecimentos tradicionais indígenas, (d) reconhecimento de modelos próprios de resolução de conflitos (Objetivo Estratégico 3 da Diretriz 17); (e) controle pelos povos indígenas, de seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural; (f) garantia de participação indígena nos espaços de formulação e monitoramento de políticas públicas, e nos processos de tomada de decisões que afetem seus direitos; e (g) garantia da participação e do controle social indígenas nas políticas públicas de desenvolvimento com grande impacto socioambiental (BRASIL, 2010, p. 219).

Insta salientar que tanto a Convenção n.º 169, quanto o PNDH-3 não foram equiparados a emendas constitucionais. Todavia, ao considerar a participação política como um dos pressuposto de liberdade necessários à construção de uma vida digna, e, sendo o princípio da dignidade humana a pedra angular dos direitos humanos, o conteúdo neles previstos fazem parte do denominado bloco de constitucionalidade por força do art.5º, §2º da Constituição.

Nesse sentido já se manifestou o Ministro Celso Mello, afirmando que as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da Emenda Constitucional n.º 45, são recepcionadas pelo art. 5º, § 2º da Constituição Federal, o qual “lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012, p. 25).

Contudo, o atual posicionamento do STF, capitaneado por Gilmar Mendes, é a tese da supralegalidade. Segundo a qual os tratados ratificados pelo Brasil anteriores à Emenda Constitucional n.º 45 não aprovados com os rigores das emendas constitucionais, estão em nível hierárquico inferior à Constituição, mas acima de todas as outras normas.

Independentemente da tese adotada, é necessário compreender que o direito indígena fundamental à participação

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diferenciada nos processos decisórios que lhes afetem deriva diretamente da opção política democrática expressa na Constituição, independentemente da força atribuída a essas normas internacionais de que o Brasil é signatário. “A opção política democrática feita em 1988 é a base compartilhada de intenções, valores, princípios e projetos de futuro que tornou possível a assunção pelo Estado brasileiro de tão relevantes compromissos internacionais” (DINO, 2014, p. 501).

Inegável, portanto, que o texto constitucional e tratados internacionais de direitos humanos propagam o reconhecimento da pluralidade política e a preservação da cultura indígena, bases férteis para a construção de meios adequados à participação ativa dos indígenas na formulação de leis e de políticas públicas.

3.2. Do direito do indígena ao sufrágio no cenário político de hoje O direito de sufrágio é compreendido como um direito

subjetivo do cidadão participar da política nacional através do voto, ou dos mecanismos previstos na Constituição Federal: plebiscito, referendo e iniciativa popular, bem como de vir a ser eleito para o exercício de cargos públicos.

3.2.1. Direito do indígena à alistabilidade O direito à alistabilidade confere ao cidadão a

possibilidade de inscrever-se como eleitor e, consequentemente, cacifar-se para participar dos processos políticos em todas as suas nuances, desde o exercício do voto até a candidatura. O alistamento é o ato pelo qual o indivíduo se habilita, perante a Justiça Eleitoral, como eleitor e sujeito de direitos políticos, para tanto, é necessária a observâncias de alguns requisitos: ter idade mínima de 16 anos, ser brasileiro nato ou naturalizado, apresentação de certificado de quitação do serviço militar, este obrigatório apenas para maiores de 18 anos do sexo masculino (SOBREIRO NETO, 2004, p. 136).

Para os índios a obrigatoriedade do alistamento continua

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a se basear no desatualizado Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973), que estabelece que os mesmos estão desobrigados do alistamento e permanecerão até que se integrem à civilização brasileira. Uma vez integrados, o alistamento eleitoral será obrigatório. Dentre as condições necessárias para o alistamento, a exigência de que o índio do sexo masculino, maior de 18 anos apresente quitação do serviço militar é questão tormentosa para os Tribunais Eleitorais.

Em 2001, por meio da Resolução n.º 20.806/2001, o TSE manifestou-se pela obrigatoriedade de comprovação de quitação do serviço militar ou prestação alternativa aos índios integrados e alfabetizados do sexo masculino maiores de dezoito anos de idade. Os demais poderiam optar pelo registro civil de nascimento ou congênere emitido pela FUNAI.

Em decisão mais recente, o plenário do TSE firmou o posicionamento de que é requisito para o alistamento do indígena a comprovação de quitação do serviço militar, independentemente da categorização prevista pelo Estatuto do índio (Lei n.º 6.001/73):

1.Os indígenas têm assegurado o direito de se alistar como eleitores e de votar, independentemente de categorização prevista em legislação especial infraconstitucional, a partir dos dezesseis anos, desde que atendidos os preceitos legais regulamentadores da matéria, conforme orientação firmada por esta corte superior. 2. Todo cidadão do sexo masculino, maior de dezoito anos, que comparece a unidade eleitoral - cartório, posto ou central de atendimento - com a finalidade de se alistar eleitor, deve apresentar, entre outros documentos, comprovante de quitação das obrigações militares, nos exatos termos do art. 44, II, do Código Eleitoral. 3. Tendo em conta a desinfluência da classificação conferida ao indígena para esta justiça especializada e a garantia constitucional relativamente a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (Constituição, art. 231), será solicitado, na hipótese de requerer alistamento eleitoral, documento hábil obtido na unidade do serviço militar do qual se infira sua regularidade com as obrigações correspondentes, seja pela prestação, dispensa, isenção ou quaisquer outros motivos admitidos pela legislação de regência da matéria, em conjunto ou não

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com o do órgão competente de assistência que comprove a condição de indígena, ambos estranhos à órbita de atuação da justiça eleitoral” (BRASIL, 2015, online).

A solução encontrada pelo TSE para superar a classificação ultrapassada e inconstitucional do Estatuto do Índio foi está na contramão da democracia. A decisão preferiu igualá-los aos demais cidadãos a promover medidas que assegurem a representatividade pela via do reconhecimento interétnico.

A Carta Cidadã acolheu o sufrágio universal, o voto direto e secreto e a soberania popular. Não há espaço, pensamos, para serem feitas restrições legais, sem respaldo constitucional, como a descabida comprovação de prestação do serviço militar ou prestação alternativa para o alistamento eleitoral no país. (ALMEIDA, 2012, p. 115)

Além de constituir grave restrição ao exercício da cidadania, a inconstitucionalidade persistiu, tendo em vista que impôs obrigações estranhas às tradições indígenas, o que vai de encontro aos mandamentos constitucionais de respeito à cultura, costumes e crenças. Destaca-se, ainda, outro pressuposto para o alistamento, o domicílio eleitoral. Dispõe o artigo 42, parágrafo único do Código Eleitoral: “Para efeito de inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado, ter o alistando mais de um, considerar-se-á domicílio qualquer delas” (2018, online).

No mesmo sentido o art. 4º da Lei n.º 6.996/82, que dispõe sobre a utilização de processamento eletrônico de dados nos serviços eleitorais:

Art. 4º O alistamento se faz mediante a inscrição do eleitor.Parágrafo único. Para efeito de inscrição, domicílio eleitoral é o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas. (BRASIL, 2018, online)

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Assim, os elementos definidores do domicílio eleitoral são a residência, moradia ou “a demonstração de vínculos políticos, sociais, afetivos, patrimoniais ou de negócios” (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2000, online).

No caso dos indígenas, a problemática surge para aqueles que não os tem em caráter definitivo, os nômades. Ora, “é através da inscrição eleitoral, que o eleitor se vincula a determinado município, onde exercerá o direito de voto mediante a obrigatoriedade formal do comparecimento ao local de votação” (SOBREIRO NETO, 2004, p. 92). Desse modo, a alteração constante de domicílio dificulta, ou até mesmo impede, o estabelecimento de vínculo com o local e os representantes políticos da região.

Superado esses obstáculos, outros surgem limitando o exercício com liberdade do direito de voto. Não raro, os índios são alvos de práticas ilícitas de captação de sufrágio. Nesse sentido, o acórdão do TRE de Santa Catarina:

distribuição de roupas, bens móveis e utensílios de casa realizada em aldeia indígena, durante o período de campanha, com o auxílio de vereador, candidato à reeleição fotos registrando a presença do candidato realizando atos de campanha no local da entrega das benesses visita previamente ajustada em grupo de “whatsapp” criado por correligionários do candidato acervo probatório demonstrando o manifesto intuito de oferecer bens em troca de votos comprovação segura da prática de atos configuradores da compra de votos manutenção da decisão de cassação do diploma necessidade de reduzir, de ofício, a multa aplicada em razão da exclusão da coligação do polo passivo da demanda desprovimento (BRASIL, 2017, online).

Para que a democracia seja efetiva, deverá haver o exercício da cidadania de forma consciente, não se podendo admitir a intervenção de terceiros que limitem a liberdade de escolha do eleitor indígena no pleito eleitoral. Contudo, outra limitação é sentida

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quanto ao acesso à propaganda, tendo em vista que impõe o Código Eleitoral, em seu artigo 242, a obrigatoriedade que a campanha eleitoral gratuita seja veiculada em língua portuguesa.

Para que o exercício do direito ao sufrágio ativo seja livre, necessário se faz o acesso universal à propaganda eleitoral. Conforme assevera Carvalho (2016, p.111): “A escolha dos eleitores só poderá ser reputada livre quando, além da ausência de pressões ou subterfúgios que desvirtuem seu desejo, ocorra em plenitude a oportunidade de conhecer os diferentes candidatos e propostas”.

Não se pode falar no exercício da cidadania sem a liberdade, os dois conceitos estão umbilicalmente ligados, de modo que a ausência dessa implica no desencorajamento do exercício daquela. Bloemer e Mendes (2008) ao entrevistarem eleitores Guarani da aldeia Conquista (SC) observaram o desinteresse dos indígenas pela política dos não-índios devido a atitude inescrupulosa de uma candidata que reteve os títulos de eleitor de alguns deles.

Destacaram, ainda, que embora os guaranis tenham consciência do seus direitos e deveres, votam para manter a documentação em dia, não se identificando com as relações clientelística dos representantes não índios. Por conseguinte, nem procuram, nem são procurados por candidatos, e reivindicam a solução dos problemas da aldeia de acordo com suas tradições, ou seja, recorrendo diretamente ao chefe dos brancos, como dizem, pois para eles cabe ao chefe prover boas condições a todos os membros da aldeia. Assim, a cidadania dos índios não passa de uma ficção, na medida em que as identidades culturais são conflitantes com a identidade homogênea nacional.

Em contrapartida, em 2017, o TRE de Tocantins desenvolveu projeto Inclusão Sociopolítica das Comunidades Indígenas do Tocantins que pretende dar maior conscientização política às tribos, além de integrar as etnias ao processo eleitoral. Uma das ações desenvolvidas foi a confecção de cartilhas que

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falam sobre organização e educação política, levando informações sobre processo eleitoral, voto consciente e crimes eleitorais, por exemplo. O conteúdo foi traduzido para as quatro línguas mães dos indígenas que vivem no estado: povos Meri, Yny, Panhi e Akwê, que correspondem às etnias Kraô, Xerente, Apinajé e Karajá /Javaé/Xambioá (TRIBUNAL REGIONAL DO TOCANTINS, 2018, online).

É notável o empenho dos servidores e juízes do referido tribunal em superar as diferença e limitações, atitudes assim são cogentes. É necessário conjugar, harmonizar os valores políticos dominante com os da diferença. Permanecer na inércia é perpetuar a exclusão do índio, uma verdadeira neointegralização.

3.2.2. Direito do indígena à elegibilidadeO direito à elegibilidade , isto quer dizer, a liberdade de

apresentar-se como candidato apto a receber votos em determinado pleito e, por conseguinte, à possibilidade de alcançar cargos públicos, caso seja vitorioso.

Os indígenas, em geral, desde que preencham as condições de elegibilidade e não se enquadrem em nenhum dos casos de inelegibilidade, têm assegurado o direito político de serem votados. As condições de elegibilidade elencadas pela Constituição Federal são: a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição, a filiação partidária e a idade mínima conforme o cargo pretendido.

As causas de inelegibilidade são mais difusas, estão previstas na Constituição, mas também na Lei Complementar n.º 64/90. As inelegibilidades constitucionais, também chamadas de absolutas, são aquelas encartadas no texto constitucional (CF, art. 14, §§ 4º a 7º). São inelegíveis: os sem domicílio, os sem filiação, os inalistáveis, os parentes de chefes do Poder Executivo e os ocupantes

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de certos cargos, empregos ou funções (ALMEIDA, 2012).O domicílio eleitoral na circunscrição, como visto,

trata-se de barreira imposta ao índio nômade, tanto por ocasião do alistamento, quanto para o registro de candidatura. Assim, o domicílio constitui dupla barreira ao exercício do direito de sufrágio dos índios nômades, já que sua exigência para o alistamento pressupõe um vínculo com o local que se altera constantemente, e esse, por via de consequência é condição para a elegibilidade.

Merece destaque, também, o analfabetismo, já que grande parte dos índios não dominam a língua portuguesa, especialmente a escrita. À vista disso, o exercício da capacidade eleitoral passiva pelos indígenas fica condicionado a comprovação de domínio de uma língua estranha a sua cultura. Nesse sentido, o TRE do Mato Grosso inviabilizou a candidatura pelo não atendimento a condição:

Se o recorrente, apesar de ter instruído seu pedido de registro de candidatura com declaração manuscrita, nada conseguiu escrever além de seu próprio nome, quando submetido a teste de escolaridade na presença do magistrado, conclui-se que a declaração falece de validade, não restando afastado o analfabetismo que inviabiliza a candidatura, notadamente quando a grafia da declaração diverge da elaborada pelo candidato no citado teste. Não há exigência legal relativa ao acompanhamento de representante da FUNAI durante teste de escolaridade de candidato indígena, pois somente há dispositivo relativo a índios e comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional, fato que não condiz com a realidade do recorrente, que é filiado a partido político e pleiteia candidatura a vereador. Não comprovada a alfabetização do insurgente, falta-lhe a condição de elegibilidade imposta pelo art. 1.º, I, a, da LC 64/90 c.c. art. 14 da CF/88, de modo que se nega provimento ao recurso, mantendo-se a sentença de indeferimento. (BRASIL, 2012, online)

Trata-se de um verdadeiro contrassenso o indeferimento da candidatura pelo analfabetismo, quando o índio for alfabetizado por língua própria que, inclusive, é reconhecida constitucionalmente.

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Depreende-se do julgado que, mesmo após 24 anos de promulgação da Constituição Federal que consagrou o reconhecimento interétnico e pretendeu por fim ao princípio da assimilação, o julgador fundamentou sua decisão na classificação ultrapassada e inconstitucional do Estatuto do índio: “não integrados à comunhão nacional” (BRASIL, 2018, online).

O ordenamento jurídico brasileiro no artigo 231 da Constituição Federal reconhece a língua dos povos autóctones, bem como seus costumes, crenças e tradições. Entretanto, o próprio texto constitucional impõe restrição. O uso das línguas indígenas nas escolas das aldeias, embora reconhecido, é colocada de forma subsidiária a língua portuguesa, conforme dispõe o §2º do artigo 210 da Constituição Federal1.

Assim, o dito avanço do ordenamento jurídico brasileiro, apenas acomoda as diferenças ao contexto da sociedade, sem assegurar prerrogativas inclusivas na conquista da autonomia política e governamental, ficando a cargo dos inconstantes posicionamentos do judiciário afastar a inelegibilidade quando o índio for alfabetizado por sua etnia, como já foi exarado em julgamento ícone do TRE do Mato Grosso: “Tratando-se de indígena aculturado e alfabetizado por sua etnia, não incide a causa de inelegibilidade prevista no art. 14, parágrafo 4º, da Constituição Federal” (BRASIL, 2008, online ).

O reconhecimento da língua indígena deve ser efetivo, sob pena do discurso da diversidade étnico-cultural tornar-se falacioso. Nesse sentir, se o indígena domina sua língua mãe não há incidência da causa de inelegibilidade analfabetismo, porquanto é alfabetizado em língua reconhecida pela Constituição Federal.

1 Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

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Outra causa de inelegibilidade refere-se a necessidade de que o índio esteja filiado a determinada agremiação partidária, que conforme o Código Eleitoral pode ser exigido um prazo mínimo de filiação para que possa se candidatar (ALMEIDA, 2012). Ademais, enquanto minoria nacional, não há ação afirmativa que imponha percentual de vagas para candidatos indígena nos partidos, ao contrário, tem-se notícia de barreiras a participação indígena por coligações partidárias.

Nas Eleições Gerais de 2018, Adriel Kokama, líder indígena da zona rural de Manaus, precisou recorrer ao TRE do Amazonas para inscrever candidatura a Deputado Federal. Segundo ele, seu nome havia sido incluído na nominata do seu partido, mas não foi incluído entre os candidatos registrados na Justiça Eleitoral. Para Kokama, a sua retirada da disputa pelo partido decorre da reação daqueles que ainda resistem à presença dos índios na política. “Sofremos preconceito há mais de 500 anos, mas hoje os indígenas estão se levantando na política amazonense e brasileira” (AGRO EM DIA.COM.BR, 2018, online).

A conclusão a que chegou o candidato indígena corrobora com o que foi afirmado no capítulo antecedente, de modo que não pode ser outro o entendimento, a invisibilidade persiste e uma das formas que ela se manifesta é no cenário político.

3.3. A problemática das instituições mediadorasFrente ao quadro da subcidadania dos índios, movimentos

indígenas tem surgido com o intuito de fomentar a sua inserção nos processos de decisão, participando de diversos arranjos coletivos na busca por seus direitos, “é um processo político que acontece no âmbito de determinada organização, que busca uma visibilidade política, que lhes permita ter voz, visibilidade, influência e capacidade de ação e decisão” (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2012, p.44). Tal processo possibilita a criação de instâncias diretas e indiretas de participação e

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deliberação políticas.Desde 2011, existe uma Frente Parlamentar de apoio aos

povos indígenas, criada pelo Requerimento n.º 2893/2011 apresentado pelo deputado Padre Ton (PT/RO) com o apoio de 187 parlamentares. Embora o apoio tenha sido vultoso, isso não significa uma adesão imediata e plena à defesa de todos os interesses dos grupos indígenas (CAPIBERIBE; BONILLA, 2015).

O resultado disso é quadro de complexa definição formado por indígenas carentes de proteção social que, não raro, se tornam objeto de projetos de lei casuístas, congressistas que não encampam verdadeiramente a defesa dos interesses do grupo e lideranças políticas, auto-intituladas, indígenas que, muitas vezes, estão mais afinadas com os interesses dos ruralistas ou outros grupos econômicos.

Aqueles que defendem, verdadeiramente, os interesses indígenas procuram dotar de eficácia social o dispositivo da Convenção nº169 da OIT, que dispõe: “os povos interessados devem ser consultados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (OIT, 1989).

Todavia, apesar dos esforços, a consulta não é meio de participação política suficiente, já que instrumentos consultivos não possuem caráter vinculante. Além do mais, os povos indígenas são chamados sempre a posteriori a participar do processo de elaboração das políticas, isto quer dizer, depois que elas já tiveram seus desenhos discutidos e aprovados.

Destaca-se, ainda, que a dependência de organizações representativas para que as demandas indígenas cheguem ao mundo institucionalizado encontram barreiras, conforme discorre Faleiro (2014):

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Evidentemente, acompanhando os avanços do movimento indígena e sua inserção em espaços institucionalizados pelo Estado, ao levar demandas para esses fóruns, como contrapartida, eles acabam recebendo demandas de outros setores da sociedade. Por este motivo, agendas de desenvolvimento, de meio ambiente, de comércio e de direitos, acabam gerando uma intervenção na vida das aldeias, ainda que perceptível apenas em médio prazo. Intervenção por contrapartida que, nas últimas décadas, tem sido convenientemente explorada pelos governos do Brasil nas agendas de desenvolvimento – construção de barragens, estradas, exploração mineral, extração de madeira e outros recursos naturais. Talvez por isso, o aparente descompasso do governo atual pareça persistir. Afinal, é muito mais fácil negociar com um governo que, diante da diversidade de zelosos indigenistas de plantão – ora trabalhando no movimento, ora no Estado –, consegue acessar os recursos situados em terras indígenas.

Além disso, a FUNAI, órgão da estrutura de Estado que visa desenvolver políticas e a proteção dos povos indígenas e de seus territórios, há muito tempo sofre críticas quanto a morosidade e ineficiência na condução das políticas indigenistas. Sobre o tema CIMI (2017, p.16) afirma que:

Em 2017 o órgão indigenista passou a ser orientado e conduzido por segmentos que são historicamente anti-indígenas – os empresários do agronegócio e da mineração, fundamentalistas religiosos e militares. Estes vêm definindo como a Funai deve atuar e estão conduzindo a política de governo destinada aos povos indígenas. De uma morosidade em suas ações, passou-se para um planejamento estratégico que visa à inviabilização da Funai enquanto estrutura de Estado para desenvolver as políticas e a proteção dos povos e de seus territórios. As consequências se refletiram na paralisação de todas as demarcações de terras, nas restrições orçamentárias para as ações e os serviços nas áreas e no abandono das atividades voltadas à proteção dos povos em situação de isolamento e risco e à fiscalização das terras demarcadas, em especial na Amazônia, que estão sendo

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alvos de desmatamentos, incêndios criminosos, invasões de madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros.

Infere-se, portanto, que persiste a tutela estatal controlando-os politicamente e contribuindo para que seus anseios não adentrem o Congresso Nacional, sobretudo quando as bancadas ruralista e religiosa, contrárias a seus anseios, são maioria.

4. UM ASPECTO DA CRISE DA DEMOCRACIA BRA-SILEIRA: INDÍGENAS COMO VERDADEIROS CIDADÃOS

O Brasil, como outros países, vive uma crise de legitimidade da representação política. Os partidos tradicionais tiveram apresentadas às escancaras muitas práticas indecorosas, multiplicam-se escândalos de corrupção e a infidelidade partidária naturalizou-se. Os indígenas fazem parte do grupo de cidadãos que não se sentem politicamente representados, seja no Executivo, seja no Legislativo.

Assim, diante desse distanciamento dos governantes das aspirações dos governados, o modelo representativo tem esvaziado o processo democrático, tendo em vista que o povo não se sente representado pela opções oferecidas (FONSECA; LACERDA; PEREIRA, 2014). Indistintamente, todos vivem esse mal-estar. Ocorre que com muito mais vigor essa crise reverbera nos índios, vez que a indiferença cívica construída historicamente em relação a eles gera uma sensação de não pertencimento ainda maior.

O voto não é obrigatório para os indígenas moradores das aldeias, mas ainda que o fosse, a obrigatoriedade do voto não é, por si só, um estímulo para a participação. Na verdade, o índio pode até estar fisicamente presente, contudo, raramente engajado. “Em uma atitude passiva, restringe-se a escolher candidatos que não lhe

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agradam, de modo que o processo eleitoral acaba tendo uma função meramente plebiscitária, prevalecendo os interesses das oligarquias políticas e do recrudescimento da elitização política” (FONSECA; LACERDA; PEREIRA, 2014, p.148).

Nesse sentir, é que necessário se faz a promoção de um diálogo intercultural no âmbito das aldeias, sem a mediação de instituições facilmente corruptíveis, como visto. Apenas com a valorização do índio, como cidadão, será possível romper com o atual cenário “no qual a formação do governo e do legislativo obedece ao princípio da representação como filtro para controle das facções e recrutamento de uma elite política” (ALKMIM, 2013, p. 69).

Vive-se uma nova espécie dominação, os oprimidos consentem com a tirania lhes aparece como o governo do povo, pelo povo, para o povo, mas que não passa de uma política feita a base da exclusão social que não garante mais a legitimidade do sistema representativo.

Tocqueville (1988) apud Fonseca, Lacerda e Pereira (2014) em suas previsões, ainda no século XVIII, já vislumbrava que, livres de toda responsabilidade para com seus semelhantes, e ocupados unicamente com seus interesses pessoais, os indivíduos permaneceriam na passividade, em um comportamento de indiferença com a gestão da coisa pública, de modo que a representação exerceria um tipo novo de autoritarismo sobre a minoria e, tudo isso, com o consentimento popular, o chamado, “despotismo pelo consentimento do povo”, termo este utilizado pelo autor.

Constata-se que a crise de legitimidade do sistema representativo contribui ainda mais para o distanciamento do índio do cenário político. O indígena não se sente encorajado nem a votar, nem a ser votado, pois não se identifica com as relações clientelistas dos não-índios. É nesse sentir que não se pode igualá-los aos demais cidadãos. É imprescindível a construção de condições que assegurem a participação dos índios.

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O reconhecimento das minorias identidárias é um ingrediente primordial para qualquer democracia e que não pode ser silenciado. Os grupos minoritárias devem ser respeitados cada qual com suas particularidade, sendo este um dos objetivos da democracia, incluir essas classes no convívio social sem discriminações negativas, sobretudo quando há um grave histórico de opressão, como no caso dos índios.

Foi evidenciado até o momento todas as barreiras vivenciadas pelos indígenas com relação ao sufrágio e no âmbito das instituições, além disso foi demonstrado como a crise da democracia representativa pode contribuir para desencorajar os índios a participarem dos pleitos eleitorais. Impende agora analisar o impacto disso nos últimos anos.

4.1. Panorama da representatividade política indígena no BrasilAtravés dos dados referentes à raça declarada pelos

candidatos a cargos eletivos no instante da formalização do seu pedido de registro de candidatura é possível verificar o impacto da sub-cidadania indígena no cenário político atual. Insta salientar que os dados correspondem apenas as últimas duas Eleições Gerais (2014 e 2018) e a Eleição Municipal de 2016, tendo em vista só a partir de 2014 o TSE incluiu o critério cor/raça para registro da candidatura. O período de análise pode, então, ser insuficiente para demonstrar o aumento das candidaturas.

Mas, é certo que os indígenas não mais se contentam com a participação passiva na formulação de políticas indigenistas específicas. Eles desejam atuar com seus representantes legislativos, em um contexto ordenador da política nacional na defesa de seus interesses, que, como visto, como ou não coincidir com os da comunidade a qual o candidato diz pertencer.

Conforme Codato, Lobato e Castro (2017) o início da carreiras dos indígenas tende a ser em posições locais de

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representação, em instituições como as associações de cada povo. Em seguida, ascendem a associações que congregam mais de um grupo indígena da mesma região, passando a formar alianças entre indígenas e brancos, sendo reconhecidos como lideranças, tanto pelos brancos, como por outros grupos indígenas. As lideranças tendem a ocupar postos nas secretarias municipais ou em instâncias de representação indígena, onde ganham visibilidade entre os diversos grupos da mesma etnia.

É evidente o engajamento na construção de uma carreira política, apesar do longo caminho que se percorre, o que pode denotar que no decorrer do processo as lideranças percam a afinidade e o interesse em defender sua comunidade de origem.

A partir das eleições de 2014, o TSE passou a registrar as candidaturas utilizando o critério de cor/raça segundo a autodeclaração do candidato. Assim, tem-se como objeto de análise da representatividade dos indígenas nos mais diversos cargos, as Eleições Gerais de 2014 e 2018 e nas Eleições Municipais de 2016.

Em 2014, das 22.052 candidaturas deferidas para os cargos de Deputado Estadual, Deputado Federal, Deputado Distrital, Senador, Primeiro e Segundo Suplente de Senador, Governador, Vice-Governador, Presidente e Vice-Presidente, apenas 74 candidatos se declararam índios, representando 0,34% do total de candidaturas. Para os mesmos cargos em 2018, foram deferidas 26.016 candidaturas, das quais 121 refere-se candidatos auto-declarados índios, representando 0,47% do total.

Infere-se, portanto, que entre 2014 e 2018 houve um aumento da participação dos indígenas nos pleitos eleitorais. Todavia, este crescimento pode ser atribuída tanto a um aumento da representatividade, quanto a uma mudança de postura quanto ao reconhecimento da identidade étnica do candidato.

Importante registrar que assim como no Censo Demográfico, pode haver candidatos que, embora se reconheçam

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como índios, tenham afi nidade com costumes e crenças, mas se auto declararam de outra cor ou raça.

Quanto a distribuição por cargo, em 2014 não houveram candidatos indígenas para os cargos de Governador, Presidente, Vice-Presidente e primeiro suplente de Senador. Já em 2018, apenas para o cargo de Presidente não houve candidatura indígena.

TABELA 01: Total de candidaturas deferidas e candidaturas de indígenas autodeclarados por cargo nas eleições gerais de 2014 e 2018FONTE: ANDRADE, 2018

Dos cargos disputados nas Eleições Gerais de 2014 e 2018, a maior parte das candidaturas indígenas foram para o cargo de Deputado Estadual. Codato, Lobato e Castro (2017, p. 6) lembra que é natural já que há mais vagas para o cargo, mas sustenta também que o fenômeno decorre da construção de lideranças ocorrer no âmbito regional. Quanto ao pequeno número de candidatos indígenas nos cargos majoritários, o autor atribuiu ao fato de serem candidaturas mais dispendiosas e complexas.

Em 2018, foram deferidas três candidaturas indígenas para Vice-Presidente da República, isto demonstra que os indígenas estão alcançando vôos mais altos no cenário político em termos de representatividade, sobretudo quando um deles foi eleito.

Todavia, não se pode inferir que todas as candidaturas serão movidas pelo engajamento de defesa dos interesses da classe. Por óbvio, há candidatos que são motivados por interesses

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individuais, tal como ocorre com os não índios.

Em alguns locais, a eleição de candidatos indígenas é resultado de anos de mobilização política de indígenas e indigenistas. Em outros, tratam-se de candidaturas motivadas por interesses alheios aos das comunidades indígenas, como a intenção das elites locais de angariar votos indígenas. Desta forma, encontramos candidatos indígenas em partidos com diferentes orientações ideológicas: o PT elegeu 26 dos indígenas que concorreram ao pleito municipal em 2008; o PMDB, 12; o PSDB, 6; o PR, 6; o PV, 5; o PPS, 4; o DEM, 3; o PC do B, 3; o PDT, 2; o PP, 2; o PRB, 2; o PHS, o PMN, o PRP, o PSC, o PSDC, o PSL e o PTB elegeram 1 candidato cada um. Mas, independentemente da fi liação partidária dos candidatos, a presença indígena nas câmaras municipais confere a elas um colorido especial. Não podemos deixar de considerar que, em sociedades regidas pela lógica da dádiva, até mesmo práticas identifi cadas como clientelistas podem assumir novas características. A atuação dos indígenas eleitos deve ser acompanhada de perto pela sociedade civil como um todo e, especialmente, por aqueles que os elegeram (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2009, online).

Nas Eleições Municipais de 2016, das 467.933 candidaturas deferidas para os cargos de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador, apenas 1.554 candidatos se autodeclararam indígenas, distribuídos conforme a tabela abaixo:

TABELA 02: Total de candidaturas deferidas e candidaturas de indígenas autodeclarados por cargo nas eleições municipais de 2016FONTE: ANDRADE, 2018

Dos cargos disputados, a maior parte das candidaturas

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indígenas foram para o cargo de vereador, representando 0,34% do total, seguido de Vice-Prefeito (0,33%) e Prefeito (0,16%).

Não obstante o maior número de candidatos indígenas nas eleições locais quando comparado as eleições gerais, isso não importa uma maior representatividade local que nacional. Isso é visível ao comparar os cargos de deputado federal, deputado estadual e vereador, vez que o percentual de candidaturas indígenas permanece em torno de 0,32% e 0,34% do total de candidaturas.

Analisar a representatividade indígena na política não é uma tarefa fácil, dado a dificuldade de definir quem seria índio pelo critério da auto-declaração. Demais disso, este trabalho evidenciou que representatividade, tanto para índio quanto para não índios, não é sinônimo de que haja identidade entre eleitor e candidato.

Todavia, esse é o modelo em voga. Apesar das dificuldades enfrentadas pelos índios, não lhes pode ser negado o direito a essa conexão entre comunidade indígenas e instituições políticas. Pelo contrário, demonstrou-se que políticas públicas devem ser implementadas para fortalecê-la, dado o ínfimo número de candidatos que se propuseram a concorrer.

4.2. O fortalecimento da democracia: soluções para a subrepresentatividade indígena

A democracia e a representação, para a maior parte da doutrina, percorriam caminhos interligados, hoje não mais. Prevalecia o entendimento de que a representação política não era apenas de mera formalidade política, mas sim uma autoproteção de todo o povo contra o monopólio do poder governamental, resultando em um só valor: o da igualdade (PHILIPS, 2001).

Todavia, por todo o exposto e pelo panorama da representatividade indígena no cenário político, é evidente que a democracia indireta dificilmente resultará em um valor de igualdade para minorias historicamente massacradas como os índios. Não se quer

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com isso condenar o modelo representativo, pelo contrário, em virtude das dimensões territoriais do nosso Estado,o modo representativo foi o melhor encontrado até o momento. Trata-se, no entanto, de valorizar o eleitor , e não o candidato, explica Carvalho (2016, p.55):

O processo eleitoral não pode ser compreendido apenas como um caminho para ascender ao poder, na realidade, é, sobretudo, conforme mencionado alhures, mecanismo de concretização dos direitos do cidadão. O eleitor deve ser encarado como peça-chave do processo e não como mera engrenagem.

Assim, diante da sub-cidadania indígena mudanças precisam ser impulsionadas no sentido de fomentar não só a representatividade indígena, mas também de fortalecer o diálogo e, por conseguinte, a democracia brasileira. Edilene Lobo (2010) apud Carvalho (2016) lembra que é fundamental em uma democracia participativa, a garantia da participação ativa, tendo em vista que é dela que nasce o vínculo entre eleitor e representante.

Tal vínculo precisa ser reforçado, sobretudo por que, conforme mencionado alhures, as consequências da ilegitimidade do sistema representativo reverbera com mais força nos índios, dada ao massacre histórico vivido e que ainda se perpetua no âmbito político.

Assim, por todo o exposto até aqui, é que a verdadeira democracia para os índios no modelo representativo, perpassa, inicialmente, pela correção de todos os empecilhos descritos anteriormente. O analfabetismo não pode mais ser considerado, quando o índio for alfabetizado por sua própria etnia, o alistamento e elegibilidade dos índios nômades não devem depender do local onde residam. Além disso, deve-se romper com a tutela estatal que intermedeiam a relação entre os indígenas e os espaços de debate institucionalizados.

Propõe Dino (2014, p.500), especificamente aos indígenas, a criação de espaços qualificados e permanentes de

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participação social indígena, preferencialmente fora dos ambientes institucionalizados de poder, e a previsão de procedimentos de consulta adequados e vinculantes. Isto quer dizer, um arranjo procedimental que possibilite um diálogo intercultural sem a tutela estatal. Além disso, que não pode se limitar apenas em indagações descompromissadas, pois não se trata de dar voz, mas essencialmente de dialogar e construir entendimentos, que se concretizem em ações.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelos indígenas nos fóruns consultivos, que afastam, sobremaneira, seus anseios, quais sejam: a representação correr por conta de lideranças descompromissadas e o bombardeio sofrido com demandas das agendas de desenvolvimento (FALEIRO, 2014), é razoável propor um diálogo para compatibilizar esses interesses, desde que não seja o único mecanismo. É nesse sentido que se deve destacar que, ainda que existam movimentos e debates, a voz de tais ações é mínima e a formação de opinião política apenas com a existência desses atos se torna difícil, o que faz com que a realidade vivida pelas tribos e grupos não seja levada ao conhecimento público.

Contrapondo-se Dorneles e Veronese (2018, p.56) defendem como ferramentas garantidoras da representação indígena a criação de cotas para eleição de indígenas nas casas legislativas de todo o Brasil, assim como frentes e bancadas parlamentares estáveis. Ressaltam, ainda, que as organizações partidárias podem colaborar reservando vagas para a candidatura indígenas.

Nesse sentido, com o objetivo de ampliar a participação de indígenas no sistema democrático representativo, mediante a previsão de regras específicas para a eleição de Deputados Federais que os representem, desde 2013 tramita no Congresso Nacional, Proposta de Emenda à Constituição (PEC n.º 320), que visa alteração do artigo 45 da Constituição Federal e incluir três parágrafos com o intuito de instituir um regime de representação especial para os povos indígenas na Câmara dos Deputados. O caput do artigo 45 da

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Constituição Federal passaria a ter a seguinte redação:

Art. 45 A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal, e de representantes indígenas eleitos em processo eleitoral distinto, nas comunidades indígenas. [...] § 3º A totalidade de comunidades indígenas receberá tratamento análogo a Território, elegendo quatro Deputados indígenas em processo eleitoral abrangendo todos os eleitores com domicílio eleitoral em comunidades indígenas. § 4º Quando do alistamento eleitoral, os indígenas domiciliados em comunidades indígenas poderão optar por votar nas eleições gerais ou por votar nas eleições específicas para candidatos à representação especial destinada aos povos indígenas. § 5º A distribuição geográfica das vagas especiais para Deputado Federal destinadas aos povos indígenas, assim como as normas relativas ao processo eleitoral nas comunidades indígenas serão estabelecidas em lei. (BRASIL, 2014)

Essa proposta passou pelo crivo de constitucionalidade da Comissão de Constituição e Justiça em 2014, no qual se inferiu que não houve ofensa a nenhuma cláusula pétrea. No entanto, encontra-se pendente de votação na Câmara dos Deputados desde 2015, quando fora desarquivada.

No parecer, o Deputado Alessandro Molon assevera que a proposta em comento respeita as diretrizes da Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (Convenção nº. 169), na medida em que nesta os Estados comprometem-se a assumir a responsabilidade de:

desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade, incluindo medidas que assegurem aos seus membros o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorgada aos

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demais membros da população. (BRASIL, 2014)

Assim, a proposição propicia representatividade direta de indígenas no Poder Legislativo, coadunando-se com os ideais constitucionais ao sugerir processo eleitoral específico a essas comunidades que favorece o incremento da democracia brasileira, que passa não apenas a reconhecer a importância política dos povos indígenas brasileiros, mas também consolida um modelo democrático comprometido com a verdadeira inclusão social e política.

Impede ressaltar que não se trata a proposta de reserva de vagas para candidatura nos partidos políticos, o que levaria a pensar que ocorreria com os índios o mesmo que ocorreu com as mulheres. Candidatos-laranja seriam usados apenas para cumprir a cota de candidaturas indígenas, o que já ficou cabalmente demonstrada a ineficácia pelos dados trazidos pelo TSE, em 2016, em que 89,3% dos candidatos sem nenhum voto eram mulheres. A proposta, ao contrário, insere os índios no cenário político de forma direta.

Souza traz as palavras de Nilmário Miranda, ex-Secretário Nacional de Direitos Humanos e um dos envolvidos na criação da mencionada PEC 320/13, no qual afirma:

Eu não consigo pensar o Brasil sem os indígenas: são os povos originários, ocupam 13% do território nacional, têm outra relação com a natureza diferente dos não índios e são 305 etnias diferentes. A Constituição diz que o Estado brasileiro é multiétnico e a diversidade cultural é um valor fundamental em nossa nacionalidade. Todo território tem direito a quatro deputados. Não é cota. Eles são os povos fundamentais para a nacionalidade, portanto, nada mais justo do que tê-los nesta Câmara para que eles se defendam na tribuna e ganhem o Brasil com suas propostas. Se o Congresso não olhar para isso, as ruas vão nos cobrar. Eles têm muito a ensinar ao nosso povo e precisamos deles aqui. Aqui, só se ocupa a tribuna para pedir terra indígena, desmatar mais o país, jogar mais veneno nas terras, assorear mais os rios e comprometer a qualidade de vida de gerações futuras. Precisamos dos

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indígenas, precisamos deles aqui, mas eles não virão nunca com esse modelo político baseado na força do capital e do poder econômico. (SOUZA, 2015, p. 180)

A fala do movimento indígena sobre a PEC também foi trazida por Souza:

O MI é totalmente favorável a essa proposta. Ele já apresentou essa proposta para o MI e já nos posicionamos favoráveis a isso e aí então ele deu entrada no Congresso Nacional e está tramitando em algumas comissões e a gente está acompanhando. É uma proposta que só vem a reparar um erro do Congresso Nacional em não abrir cotas para a representação indígena. A gente ainda não sabe a forma como esses deputados seriam eleitos, mas, ela contempla a comunidade indígena. Ele foi numa reunião da APIB, no fórum de lideranças do MI, do qual eu faço parte e apresentou para nós e nós acabamos favoráveis para ele dar seguimento a essa emenda. (SOUZA, 2015, p. 181)

Observa-se, portanto, que um novo contexto está sendo delineado no cenário político com o intuito de incluí-los. Para concretizá-lo é necessário se libertar de debates infindáveis para dar lugar a projetos políticos democráticos radicalizados, uma vez que, apenas assim é que se alcança a solução de uma problemática que se mantém há tantos anos.

Se os novos grupos conseguirão transformar as instituições, ou se a lógica das instituições conseguirá diluir – via cooptação – a identidades deles, é algo que, naturalmente, não pode ser decidido de antemão e depende da luta hegemônica. Certo, porém, é que não há qualquer mudança histórica de vulto em que não seja transformada a identidade de todas as forças intervenientes. Não existe possibilidade de vitória em termos de uma autenticidade cultural já adquirida. A crescente percepção desse fato explica a centralidade do conceito de - hibridização nos debates contemporâneos. (LACLAU,

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2011, p. 84-85)Assim, a representação política plural se mostra como

o primeiro e maior passo para a luta indígena pela democracia. Os índios, como verdadeiros cidadãos brasileiros, devem ter o direito à participação e representação política sem que se percam da sua cultura e de seu modo de vida. Só assim é que farão presente para o cenário nacional as suas vontades, ideias e participação na política institucional.

Assim, na construção de cidadanias diferenciadas para grupos que são diferentes Coelho (2015, online) explica que “essa diferenciação compreende o direito à auto-organização social, que implica formas de poder diferenciadas, assim como de representação”

Não pode ser outra a conclusão senão entender que a construção de uma cidadania diferenciada ao índio, depende da permanência da democracia representativa com a superação dos entraves aqui expostos e a luta para que ela seja efetivada em todos os âmbitos da sociedade deve ser regra e, com isso, se deve ainda mais defender a ideia de promover o acesso ao cenário político dos índios por meio de eleições específicas, como propõe a PEC n.º 320.

Além disso, deve-se romper com a tutela estatal e dar força ao discurso indígena no âmbito das aldeias, tornando suas decisões vinculantes, de modo que o índio, quando da condição de eleitor, sinta-se protagonista e compelido a eleger opções que lhe representam. Só assim conseguirá a um só tempo, fortalecer a democracia e promover uma verdadeira cidadania aos índios. Esta é a forma de expandir o processo democrático em curso.

5. CONCLUSÃO

Este estudo partiu da construção da invisibilidade indígena, uma vez que, ao longo da história do Brasil, os povos

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indígenas foram expropriados de seus territórios tradicionais, sofrendo as consequências de políticas voltadas à sua assimilação e integração, as quais contribuíram para a conformação de um processo amplo de perdas culturais, sociais, econômicas e simbólicas, tendo em vista que a política indigenista estatal sempre esteve marcada pela existência de projetos que apresentavam correspondência as diretrizes econômicas de cada época.

Hodiernamente, os grupos indígenas, especialmente aqueles habitantes na região norte, têm reivindicado a produção em larga escala dos recursos naturais como forma de alcançar sua autonomia. Todavia, seus anseios, sobretudo com relação à demarcação e homologação de terras, encontram barreiras no Congresso Nacional em virtude a quantidade de parlamentares ligados à bancada ruralista, ao agronegócio e aos consórcios de mineração e de usinas hidrelétricas.

A Constituição Federal, no artigo 231, reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além de ter optado pelo regime democrático e o pluralismo político, bases sobre as quais foram ratificados a Convenção n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da OIT e o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Tais normas defendem a promoção do diálogo intercultural, bem com asseguram a participação indígena nos espaços de formulação e monitoramento de políticas públicas, e nos processos de tomada de decisões que afetem seus direitos, preenchendo a notável lacuna existente após o fim do princípio da assimilação consagrado no inconstitucional Estatuto do índio.

Da análise do exercício do direito de sufrágio ativo dos índios observa-se alguns obstáculos desde o alistamento perante a Justiça Eleitoral até o momento do voto, sobretudo para os índios nômades, tendo em vista que impede o estabelecimento de vínculo com o local e os representantes políticos da região, o que esvazia o contingente de indígenas votantes. Demais disso, ao índio do gênero

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masculino maior de 18 anos é exigida a quitação do serviço militar, o que constitui grave restrição ao exercício da cidadania.

No que concerne à liberdade do direito de voto, os índios não as tem plenamente. A oportunidade de conhecer os diferentes candidatos e propostas é limitada, tendo em vista que o Código Eleitoral dispõe que a propaganda eleitoral só pode ser veiculada na língua portuguesa. Além disso, não raro os índios são alvos da prática de captação ilícita de sufrágio.

Quanto ao direito à elegibilidade, em geral, desde que preencham os requisitos legais, têm assegurado o direito político de serem votados. Do rol de inelegibilidade, o analfabetismo ainda é causa do indeferimento de candidaturas indígenas. Fato que não se coaduna com a previsão constitucional de reconhecimento interétnico, porquanto, a alfabetização pela língua mãe deve ser considerada para fins de garantir a elegibilidade do indígena.

No que tange a participação em fóruns consultivos e nas frentes de bancadas parlamentares, percebe-se que, não obstante dê concretude aos mandamentos dos tratados internacionais no que se refere a consulta de lideranças, estas não defendem os interesses da comunidade indígena, de modo que persiste a tutela estatal controlando-os politicamente e contribuindo para que seus anseios não adentrem o Congresso Nacional, sobretudo quando as bancadas ruralista e religiosa, contrárias a seus anseios, são maioria.

Assim, vislumbra-se uma cidadania simbólica, tendo em vista que representantes de minorias indígenas dificilmente conseguem vaga no Congresso Nacional. Quando alcançam, raramente pela via eleitoral, seus interesses não encontraram aceitabilidade dos demais parlamentares.

Demais disso, vive-se a crise da democracia representativa que tem como consequência principal a descrença nas instituições e, por conseguinte, o esvaziamento do pleito eleitoral que se reflete com mais veemência nas comunidades indígenas.

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Desse modo, defende-se, como forma de superar a ilegitimidade do sistema, o reconhecimento de grupos minoritários no âmbito político, sobretudo, aqueles com um grave histórico de opressão, como no caso dos índios.

Conclui-se, portanto, que é necessário superar os entraves com relação ao exercício do sufrágio e a construção de uma cidadania diferenciada ao índio. Esta depende de promover a eles o acesso paritário ao cenário político por meio de eleições específicas, como propõe a Projeto de Emenda a Constituição nº. 320. Além de romper com a tutela estatal e dar força ao discurso indígena no âmbito das aldeias, tornando suas decisões vinculantes, de modo que o índio, quando da condição de eleitor, sinta-se protagonista e estimulado a eleger opções que lhe representam. Só assim será possível a um só tempo, fortalecer a democracia representativa e promover uma verdadeira cidadania aos índios. Esta é uma forma de expandir o processo democrático em curso. REFERÊNCIAS

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OBSTÁCULOS E PERSPECTIVAS DA PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA

Daniela de Cássia Wochnicki

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178 Daniela de Cássia Wochnicki

RESUMO: O presente estudo se propõe a relacionar bre-vemente alguns compromissos internacionais que reco-nheceram necessárias ações de incentivo a participação feminina na política, para então abordar os dispositivos pertinentes ao tema constantes no ordenamento jurídico brasileiro. A partir de então, são apontadas algumas bar-reiras à aplicação dessas normas, que existem também em outros países. Menciona-se o importante papel do Poder Judiciário na fiscalização desta política afirmativa, com destaque para decisões proferidas no âmbito do Tri-bunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. Por fim, são traçados comentários acerca de evidências sobre os efeitos positivos das candidaturas femininas bem suce-didas sobre outras mulheres que possam nutrir ambições em relação ao ingresso na vida pública. PALAVRAS-CHAVE: Participação política. Mulheres. Direito Eleitoral. Poder Judiciário.

ABSTRACT: This paper briefly considers some inter-national commitments that recognize necessary to pro-mote affirmative actions in order to enhance women’s political participation. Legal provisions related with the topic and provided by Brazilian legal system are pointed out. Next, legal barriers in Brazil, and also in foreign countries, to the actual implementation of these laws are made evident. In the end, the author highlights Judiciary important role in assuring affirmative policies rigor, es-pecially those delivered by the Rio Grande do Sul Re-gional Electoral Court. The paper concludes by arguing that successful female candidates have a positive effect on women who aspire a public carreer.

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KEY-WORDS: Women’s political participation. Elec-tion law. Judiciary.

1. ANTECEDENTES

Entre 5 e 13 de setembro de 1994, no Cairo (Egito), foi realizada a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas - CIPD, com a participação de 179 países. Tal encontro é um marco em relação aos temas populacionais, que deixaram de centrar-se no controle do crescimento como condição para a melhoria da situação econômica e social dos países, uma vez que, a partir das discussões realizadas nesse evento, o pleno exercício dos direitos humanos e a ampliação dos meios de ação da mulher passaram a ser reconhecidos como fatores determinantes da qualidade de vida dos indivíduos.

Segundo Alves1,

[o]s resultados da CIPD têm sido com razão interpretados como uma mudança de paradigma, que deixou para trás uma visão instrumental para abordar as questões de população e desenvolvimento, adotando uma perspectiva de desenvolvimento humano, empoderamento das mulheres, igualdade de gênero, saúde e direitos reprodutivos.

O governo brasileiro é signatário do Programa de Ação da CIPD do Cairo, bem como de outros compromissos da ONU que resultaram numa agenda cumulativa de recomendações de políticas públicas nas áreas de direitos humanos e políticas sociais e ambientais.

1 ALVES, José Eustáquio Diniz, CORRÊA, Sônia. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. Seminário Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo, da Abep, realizado em 11 e 12 de agosto de 2009, em Belo Horizonte.

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180 Daniela de Cássia Wochnicki

No âmbito regional, o Consenso de Quito (2007), destacou o compromisso dos países da América Latina em alcançar a paridade, inclusão igualitária e inserção nos espaços de decisão.

A enumeração desses acordos, apenas ilustrativa, preten-de demonstrar que a necessidade de ouvir a voz das mulheres na po-lítica não é apenas “uma tendência”, mas sim a constatação de espe-cialistas de todas as áreas e do mundo inteiro acerca dos benefícios dessa medida para a qualidade de vida das populações, seja porque essas cidadãs tendem a atuar no sentido de provocar debates acerca de investimentos em saúde e educação, seja porque existem estudos acerca da diminuição dos níveis de corrupção em parlamentos mais igualitários.

Em pesquisa sobre a inclusão política das mulheres, ao tratar das estratégias para sua consecução, Jussara Reis Prá2 estabelece as distinções entre dois instrumentos utilizados para incrementar a participação feminina na política, que sejam, a paridade e as cotas.

Segundo a autora,

que enquanto a paridade prevê a igualdade de acesso das mu-lheres e a sua inserção em cargos públicos e de representa-ção política (igualdade de resultados), as cotas se limitam a igualar as condições de ingresso em instâncias parlamentares (igualdade de oportunidades). A implicação disto é a de que a adoção de medidas de paridade exige uma mudança signi-ficativa no âmbito das políticas públicas, vez que as ações afirmativas ou compensatórias - que regem as cotas -, deve-rão ser substituídas por políticas redistributivas. Neste caso, exigindo a redistribuição do poder político. A despeito disso, vale lembrar que:O debate sobre a paridade põe em evidência que o cidadão não é neutro, que a cidadania é construída sobre modelos masculinos e que o acesso à representação se dá em um cená-

2 PRÁ, Jussara Reis. Democracia paritária, mulheres e cidadania política de gênero. In: 2º Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, 2014, Brasília. Desigualdades de gênero e de raça, 2014. Disponível em http://www.sndd2014.eventos.dype.com.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=4124, acesso em 17.04.2018.

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rio de caráter sexuado, caracterizado pela exclusão - não aci-dental, mas, antes, estrutural - das mulheres (MONTAÑO, 2007, p.4).

Como se depreende da leitura, o sistema de paridade é muito mais efetivo.

A autora citada também menciona que os representantes da América Latina “reafirmaram seu compromisso com acordos regionais e internacionais sobre mulher, comprometendo-se a adotar um conjunto de medidas em defesa dos direitos das mulheres, entre elas, a de empreender os esforços necessários para assegurar a paridade de gênero na política”.

O mesmo estudo aponta que três países da região – Equador, Bolívia e Costa Rica - incluíram previsão de participação paritária de homens e mulheres nas listas eleitorais em suas legislações, com base em alternância paritária e sanção para o descumprimento da lei. Da mesma forma procedeu a Nicarágua, sem, no entanto, estabelecer sanção pela não observância do regulamento.

No caso brasileiro, o preâmbulo da Constituição da República já sinaliza que a igualdade é um valor supremo a ser perseguido por uma sociedade que almeja ser “fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”3.

O princípio da igualdade, em seu aspecto formal, impõe restrição ao Estado em relação à instituição de toda sorte de tratamento discriminatório negativo ou que visem à restrição das liberdades públicas fundamentais do indivíduo com base em critérios tais como raça, religião ou classe social.

3 BRASIL. Presidência da República. Legislação. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 17.04.2018.

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Nas palavras de José Luiz de Almeida Simão4, a igual-dade evoluiu também para o aspecto inclusivo com a emergência de novos direitos. Ele destaca que

[o] novo marco teórico de Estado, portanto, incorpora em sua concepção a ideia de atividade, ou seja, as funções impostas à administração pública exigem a adoção de um conjunto de normas e atos tendentes à realização de um fim ditado pela norma constitucional, vinculando não apenas a atividade es-tatal, mas também a do particular (COMPARATO, 1998). É nesse contexto que se pode falar que o Estado está autoriza-do a promover políticas públicas com a finalidade de atender aos objetivos fundamentais da ordem jurídica cristalizados na Constituição Federal, promovendo a igualdade substan-cial, e não meramente formal.No direito brasileiro, os objetivos fundamentais do Estado nacional vêm elencadosno art. 3o da Magna Carta, sendo importante destacar a pro-moção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A implementação de medidas que garantam o incremen-to da participação das mulheres na política, como representantes eleitas, deve, desse modo, ser tomada como medida necessária à promoção da igualdade substancial. O número de mulheres eleitas deve ser proporcional ao número de eleitoras, de forma a garantir a legitimidade democrática.

A adoção de políticas públicas de prestígio ao princípio da igualdade, no aspecto aqui analisado, em nosso ordenamento ju-rídico interno, é assim sintetizada por José Jairo Gomes5:

4 SIMÃO, José Luiz de Almeida, RODOVALHO, Thiago. O Estado na promoção da igualdade material : a constitucionalidade das cotas raciais como critério para ingresso no ensino superior - ADPF 186/DF. Revista de informação legislativa, v. 51, n. 202, p. 131-144, abr./jun. 2014. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/503041, acesso em 17.04.2018.5 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018. p. 338.

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A primeira ação afirmativa visando incrementar a participa-ção feminina na política foi positivada na Lei nº 9.100/95, cujo artigo 11, § 3º, determinava que “Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”.Esse percentual mínimo foi elevado a 30% pela Lei nº 9.504/97, que também deixou de indicar o sexo beneficiado com a quota. Assim, nas eleições proporcionais, cada parti-do preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% “para candidaturas de cada sexo” (LE, art. 10, § 3º – redação dada pela Lei nº 12.034/2009). De sorte que, à vista da quantidade de candidatos que a agremiação poderá registrar, no mínimo 30% do total deverá ser ocupado por um dos sexos.O aludido § 3º, artigo 10, da LE teve sua redação alterada pela Lei nº 12.034/2009. A expressão deverá reservar cons-tante do texto anterior foi substituída pelo imperativo pre-encherá.

O doutrinador comenta a cota eleitoral de gênero inseri-da no ordenamento jurídico brasileiro, na Lei das Eleições, funda-mentando-a nos valores atinentes à cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político que fundamentam o Estado Democrá-tico brasileiro. Acrescenta que

a baixa efetividade dessa solução tem lhe rendido críticas. Afirma-se que a política de quotas deveria garantir aos bene-ficiados o efetivo preenchimento de cadeiras nas Casas Legis-lativas. Para tanto, propugna-se que um percentual de cadeiras nas Casas Legislativas (e não um percentual de vagas na dis-puta) seja destinado ao atendimento da quota de gênero.[...]Ainda nos dias de hoje, é flagrante o baixo número de mulhe-res na disputa pelo poder político em todas as esferas do Es-tado; ainda menor é o número de mulheres que efetivamente ocupam os postos público-eletivos. Tais constatações são de todo lamentáveis em um país em que o sexo feminino forma a maioria da população.Com efeito, consoante evidenciado pelo senso demográfico realizado pelo IBGE em 2010, a população feminina era,

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naquele ano, de 51% do total contra 49% da masculina (dis-ponível em: http://www.ibge.com.br/home/ – sinopse dos re-sultados do Censo 2010. Acesso em: 30 abril 2011). Também são maioria nas universidades e instituições de ensino supe-rior, respondendo, ademais, por expressiva fatia dos merca-dos de trabalho e consumo.Por outro lado, segundo dados estatísticos publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral, o eleitorado feminino supera o masculino, prevalecendo a preeminência feminina em quase todas as faixas etárias.6

De fato, a implementação de uma política pública séria, na forma do mecanismo da paridade, aparentemente não encontra espaço na pauta legislativa nacional, muito embora, como se viu, o país tenha assumido compromisso nesse sentido no âmbito interna-cional.

O Brasil optou por adotar um sistema de cotas de vagas em disputa, bastante menos eficaz no atingimento da meta de demo-cracia paritária.

2. OBSTÁCULOS E AVANÇOS

Não obstante o atual mecanismo de implementação da política pública venha avançando lentamente, marcadamente pela disposição do Poder Judiciário em impedir que as disposições legais constituam legislação simbólica, é perceptível que as tentativas de incremento da representação política das mulheres enfrentam resis-tências, e não só no Brasil.

José Eustáquio Diniz Alves7 ilustra que

6 Ibid., p. 3357 ALVES, José Eustáquio Diniz, CORRÊA, Sônia. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. Seminário Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo, da Abep, realizado em 11 e 12 de agosto de 2009, em Belo Horizonte.

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o apego a lógicas patriarcais e heteronormativas não é pri-vilégio ou monopólio dos dogmatismos religiosos. Seja de forma explícita, seja de maneira menos óbvia, concepções regressivas e reativas às mudanças em curso nos domínios continuam a circular nos discursos e práticas de instituições seculares – como os sistemas educacionais e judiciais e nos espaços da sociabilidade cotidiana. Essas concepções e as dinâmicas políticas que delas decorrem são, possivelmen-te, as barreiras mais difíceis de desalojar quando se trata de traduzir em realidades as promessas de igualdade e direitos humanos anunciadas pela CIPD e demais conferências da década de 1990.

Maria Helena Santos8, com base em estudo do caso português, aponta as principais percepções acerca da desigualdade de gênero na política. Segundo a pesquisadora,

os estudos qualitativos mostraram que à exceção das deputa-das, sobretudo de esquerda, que percebem a situação como um problema de ordem social e política, o resto da popula-ção entrevistada considera que se trata essencialmente de um problema de ordem social (para as/os não profissionais da política também de ordem «natural»), revelando, em geral, uma fraca sensibilidade relativamente à questão da qualida-de da democracia representativa. Uma análise comparativa entre profissionais e não profissionais da política eviden-ciou que, enquanto que as e os não profissionais da política percebem a situação como o reflexo da evolução histórica «normal» da sociedade e do comportamento das próprias mulheres, já as/os profissionais da política, sobretudo os de-putados, percebem-na como o reflexo de apenas mais uma das desigualdades existentes na sociedade.

8 SANTOS, Maria Helena, AMANCIO, Lígia. Resistências à igualdade de género na Política. Ex aequo, 25. Portugal, 2012. Pp. 45-58. Disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n25/n25a05.pdf, acesso em 17.04.2018.

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No mesmo estudo, a autora descreve uma situação ocorrida em Portugal relacionada à implantação das políticas afirmativas aqui analisadas:

[n]as eleições europeias, salienta-se a polémica sobre o even-tual incumprimento da Lei da Paridade por parte do PSD Madeira na constituição da lista, acusado de tentar contornar a lei, ao integrar duas candidatas na lista (em terceira e sexta posições), seguindo o preceito legislativo, mas com o intuito subjacente de, após as eleições, elas renunciarem aos manda-tos para assegurar a eleição de um candidato.

Como se percebe, as conjecturas visando a fraudar às disposições legais não são exclusividade brasileira.

No entanto, ainda que sejam perceptíveis tentativas de burla em outros sistemas jurídicos, José Eustáquio Diniz Alves9 des-taca o atual quadro que aqui vivenciamos:

Os avanços na representação política das mulheres brasilei-ras têm sido pequenos e não têm acompanhado os avanços ocorridos no resto do mundo. Após a IV Conferência Mun-dial das Mulheres em Pequim, em 1995, houve uma tendên-cia de crescimento da representação parlamentar feminina em todo o mundo e também no Brasil. Porém, a situação bra-sileira ficou aquém do esperado. O percentual de mulheres no parlamento no Brasil é menor do que em outras regiões com nível de desenvolvimento mais baixo. Na América Lati-na e no Caribe, o Brasil estava em um dos últimos lugares no ranking da participação feminina nos parlamentos. Em 2009, o Brasil só possui taxas de participação maior do que o Haiti e a Colômbia, perdendo para todos os outros países, em uma lista de 29 parlamentos.

9 ALVES, José Eustáquio Diniz, CORRÊA, Sônia. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. Seminário Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo, da Abep, realizado em 11 e 12 de agosto de 2009, em Belo Horizonte. Disponível em http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/livros/article/view/113, acesso em 17.04.2018.

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O mesmo autor sugere medidas legislativas para fomentar o crescimento da representação parlamentar feminina: reforma política para mudar os termos da lei de cotas, com a promoção da redução do número de partidos para evitar as legendas de aluguel, que favorecem os homens; alteração no cálculo do número de candidaturas de cada partido, que deveria cair de 150% para 100% das vagas; regras de definição da lista de candidaturas partidárias que garantam um percentual efetivo – mínimo e máximo – para cada sexo; elevação da cota até se atingir a paridade, isto é, 50% das candidaturas para cada sexo; criação de outros mecanismos de promoção das mulheres, como garantia de acesso aos fundos financeiros, participação nas instâncias deliberativas do partido e do Estado, espaço na mídia, etc.

Na esfera do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, o julgamento de dois casos paradigmáticos merece destaque: o RE nº 495-85 e o RE nº 339-86.

A primeira ação, de relatoria do Des. Eleitoral Eduardo Augusto Dias Bainy, tratava-se de Ação de Impugnação a Mandato Eletivo – AIME, proposta pelo Ministério Público Eleitoral em ra-zão de registro fraudulento de candidaturas femininas no Município de Viadutos. Com apoio em gravação ambiental, ficou comprovado que pretensa candidata registrou seu nome apenas para viabilizar as candidaturas masculinas, de forma que o Tribunal reconheceu a frau-de e, por consequência, revogou o deferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários – DRAP da coligação, bem como cassou os mandatos obtidos. O julgamento ocorreu em 13.12.2017 e confirmou a decisão de primeira instância.

Naquela ocasião, o Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes pontuou em voto-vista que

este Tribunal tem se deparado - na maioria das vezes mercê de elogiável promoção do Parquet - com um número elevado de ações eleitorais questionando a normalidade e a legitimi-

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dade das eleições, em face do lançamento de candidaturas apenas para que se preencha, em fraude à lei, o número mí-nimo de vagas previsto para cada gênero, sem o efetivo de-senvolvimento das candidaturas.[…]Conforme reconhece o TSE, “o incentivo à presença femini-na constitui necessária, legítima e urgente ação afirmativa que visa promover e integrar as mulheres na vida político-partidá-ria brasileira, de modo a garantir-se observância, sincera e ple-na, não apenas retórica ou formal, ao princípio da igualdade de gênero”, prevista no art. 5º, caput e inciso I, da CF/88 (RP 29657, Rel. Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benja-min, DJE 17.3.7).[…]O Brasil vive uma sub-representação feminina muito grande. É preciso ser reconhecido que não basta garantir o número de vagas, sendo necessário conferir às candidatas mulheres as mesmas condições, mesmo espaço político e igualdade de oportunidades, e não lançar verdadeiras candidaturas fictícias com objetivo único de cumprir a proporção imposta pela lei.

Como se depreende das palavras do nobre magistrado, o Poder Judiciário vem sendo provocado a reprimir as tentativas de burla ao cumprimento da política inclusiva.

No segundo recurso mencionado, a fraude foi reconheci-da em relação a outro dispositivo da legislação eleitoral – art. 9º da Lei n. 13.165/15 – que determina a aplicação de percentual mínimo dos valores do Fundo Partidário no financiamento das campanhas eleitorais das candidatas. No caso, a candidata em questão recebeu o valor e doou grande parte dele para candidatos do sexo masculino, que concorriam no mesmo pleito. Cabe a transcrição da ementa:

RECURSO. REPRESENTAÇÃO. CAPTAÇÃO OU GAS-TOS ILÍCITOS DE RECURSOS. ART. 30-A DA LEI N. 9.504/97. VEREADORES. ELEITOS. QUOTAS DE GÊ-NERO. PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA. PERCENTUAL DO FUNDO PARTIDÁRIO. ART. 9º DA

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LEI N. 13.165/15. VERBA DE DESTINAÇÃO ESPECÍFI-CA. DESVIO DE FINALIDADE. UTILIZAÇÃO IRREGU-LAR. REPASSE A OUTROS CANDIDATOS. CONDUTA ILÍCITA. CASSAÇÃO DOS DIPLOMAS. PROVIMENTO. PROCEDÊNCIA. ELEIÇÕES 2016. 1. O art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95 e o art. 9º da Lei n. 13.165/15 tratam da difusão e do fomento à participação e à representatividade feminina na política, cabendo à Justiça Eleitoral envidar esforços, a fim de conferir a maior efetivi-dade possível aos regramentos que visam à sua implemen-tação. 2. Os representados, eleitos vereadores, utilizaram verba do Fundo Partidário, de dotação específica, em desvio de finali-dade. Repasse de parte do recurso destinado a financiar can-didaturas femininas para a campanha de candidato do sexo masculino. 3. Os dispositivos da Lei das Eleições atribuem aos can-didatos a obrigatoriedade do emprego de verbas do Fundo Partidário, de acordo com o estabelecido em lei. Os arts. 20 e 24, § 4º, da Lei n. 9.504/97 estabelecem a responsabilidade dos candidatos pelos recursos utilizados na campanha. Nessa senda, o uso, por candidatura masculina, da receita destinada à campanha feminina, viola a norma de captação e o gasto de recurso por gênero previsto na Lei das Eleições. 4. A irregularidade das condutas dos representados foi devi-damente comprovada pelo acervo probatório constante nos autos. Reconhecidos a captação ilícita de recurso por parte do vereador e a realização de gasto ilícito pela vereadora. O percentual dos recursos do Fundo Partidário, desvirtuados pela prática dos representados, é substancial em relação ao total de receitas arrecadadas por ambas as campanhas. 5. Os fatos estão revestidos de relevância jurídica suficiente a justificar a cassação dos mandatos outorgados. Os votos obtidos pelos candidatos devem ser computados para a le-genda pela qual concorreram. Procedência da representação. 6. Provimento.(Recurso Eleitoral n 33986, ACÓRDÃO de 05/09/2017, Relator(a) DR. LUCIANO ANDRÉ LOSEKANN, Publi-cação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 161, Data 08/09/2017, Página 4).

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O relator do acórdão, Des. Eleitoral Luciano André Lo-sekann, consignou em seu voto que

recente precedente do Tribunal Superior Eleitoral espelha a necessidade de que a interpretação das regras eleitorais não deva estar centrada apenas no caráter meramente formal das normas eleitorais, e sim no privilégio à análise da violação do direito material (principal).[…]Assim, desvirtuamentos como o verificado nestes autos, que acabam por macular a regra que, mesmo timidamente, dire-ciona recursos financeiros às candidaturas femininas, devem ser coibidos pela Justiça Eleitoral tão logo sejam detectados e apontados para, inclusive e se for o caso, impedir que a conduta perniciosa se torne regra no curso das campanhas eleitorais.A Lei n. 13.165/15 representou avanço na legislação eleito-ral, na medida em que buscou enfrentar duas das principais queixas de estudiosos do tema: a falta de recursos financeiros e o tempo de rádio e televisão.

As situações expostas demonstram que mesmo as tími-das medidas legislativas existentes em favor da implementação da igualdade são objeto de tentativas de fraude.

Já os avanços na implementação de ações afirmativas que priorizem e impulsionem a voz feminina na política brasileira vem sido capitaneados pelo Poder Judiciário. Recentemente, o Su-premo Tribunal Federal, ao julgar a ADI n.º 5617, e o Tribunal Su-perior Eleitoral, ao responder à Consulta n.º 0600252-18, avançaram na implementação de mecanismos que permitam que as mulheres participem de forma mais efetiva das disputas eleitorais.

Na ação direta de inconstitucionalidade mencionada, o Supremo Tribunal Federal, conferindo densidade à norma que prevê a cota de candidaturas, equiparou o patamar legal mínimo de can-didaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados (ADI 5617, Relator Min. Edson Fachin, Tri-

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bunal Pleno, julgado em 15/03/2018, publicado em 03/10/2018). Já na consulta, o Tribunal Superior Eleitoral, seguindo a mesma linha, afirmou que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Finan-ciamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão devem observar os percentuais mí-nimos de candidatura por gênero (Consulta nº 060025218, Relatora Min. Rosa Weber, publicado em 15/08/2018).

Interessante pontuar que, embora a previsão legislativa de cotas especifique que a reserva é necessária para o registro de candidaturas para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais (art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97) – portanto, refere-se às eleições proporcionais -, as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral não estipulam tal restrição.

3. PERSPECTIVAS

Em face da obrigatoriedade da destinação de recursos e de propaganda para candidaturas femininas, tanto proporcionais quanto majoritárias, já foi possível observar nas Eleições 2018 que parte dos recursos foi destinada a candidatas suplentes ou vices em candidaturas majoritárias.

Este foi um dos apontamentos realizados no Relatório Preliminar da Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que verificou que “a legislação atual não estabelece sanções claras para aqueles partidos que não cum-prem a cota de financiamento das mulheres” e sugeriu “a definição de um regime legal de sanções para aqueles partidos que não cum-pram as cotas de gênero, tanto na alocação dos recursos quanto no acesso aos meios de comunicação”.

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O relatório da OEA também reconheceu o relevante papel do Poder Judiciário, ao consignar que parabenizava “as autoridades judiciais do Brasil por promover a criação de mecanismos para alcançar uma maior equidade nos espaços de representação política por meio de suas decisões em casos específicos”.

Também ponderou que

A falta de eficácia do marco normativo para promover a par-ticipação das mulheres se deve, não apenas ao baixo per-centual da cota, mas também ao sistema eleitoral de listas abertas, que não garante os lugares para as mulheres, bem como ao comportamento das organizações políticas que con-centram o financiamento em poucas candidatas, muitas ve-zes candidatas suplentes, e consideram 30% como um limite máximo e não como o piso mínimo. Diante desta situação, a MOE/OEA acredita que o Brasil deveria dar um passo além da cota e promover a incorporação de forma gradual e pro-gressiva da paridade política.[…]A Missão recomenda aprofundar as orientações sobre como aplicar esses fundos de forma a impedir a concentração da maior parte dos recursos em poucas candidatas ou candidatas suplentes.A Missão recomenda o estabelecimento de critérios mais claros para a alocação de recursos públicos dentro dos parti-dos políticos, que permitam uma utilização mais equitativa desses fundos e que promovam o acesso do maior número de mulheres possível aos cargos de escolha popular. Além disso, sugere-se a definição de um regime legal de sanções para aqueles partidos que não cumpram as cotas de gênero, tanto na alocação dos recursos quanto no acesso aos meios de comunicação.10

Sem a pretensão de avaliar o acerto ou desacerto das decisões que estabeleceram que os recursos públicos e o tempo de propaganda em rádio e televisão pudesse ser destinado também às

10 Relatório Preliminar da Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA), disponível em http://www.oas.org/documents/por/press/Relatorio-Preliminar-MOE-Brasil-2o-Turno-Portugues.pdf, acesso em 07.03.2019.

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candidaturas majoritárias e a par das dificuldades na implementação de políticas públicas que facilitem o acesso das mulheres aos cargos eletivos, o estudo realizado por Bruno Wilhelm Speck reacende a esperança de que o país possa encontrar o rumo da implementação da igualdade substancial no campo político.

No trabalho, que se insere na linha de estudos sobre a baixa presença de mulheres na política brasileira e foi denominado “O efeito contagiante do sucesso feminino: A eleição de prefeitas e o impacto sobre as candidaturas nos próximos pleitos”11, o pesqui-sador analisou se a eleição de uma prefeita aumenta o número de mulheres disputando o próximo pleito para a prefeitura no mesmo município, considerando como base de dados as eleições municipais para prefeito no Brasil entre 2000 e 2012.

As dificuldades de inserção das mulheres na dinâmica dos partidos políticos são de natureza material e comportamental e, nas palavras do pesquisador,

[a] lém do acesso limitado aos recursos materiais ou imate-riais necessários para campanhas eleitorais bem sucedidas, as mulheres também enfrentam os estereótipos sobre o seu papel na sociedade. Uma dessas visões é que elas não perten-cem ao mundo da atividade política. As consequências são novamente a redução da ambição política de mulheres por autosseleção negativa, antecipando as dificuldades a serem enfrentadas nos partidos e no eleitorado. A presença de este-reótipos na sociedade, os quais negam às mulheres um lugar na política, está amplamente documentada.[…]Os estereótipos podem ser mais importantes que os fatos, pois a avaliação negativa que os líderes partidários fazem das chances eleitorais de candidatas afeta a política de sele-

11 SPECK, Bruno Wilhelm. O efeito contagiante do sucesso feminino: A presença de mulheres em cargos eletivos nos municípios brasileiros e o impacto sobre os próximos pleitos. Paper preparado para o 37º Encontro Anual da ANPOCS, Águas de Lindoia-SP, 23-27 de setembro 2013. Disponível em https://larrlasa.org/articles/10.25222/larr.398/print/, acesso em 17.04.2018.

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ção mesmo que não tenha embasamento na realidade (San-bonmatsu 2006b). Para o caso brasileiro, os trabalhos dispo-níveis indicam processos similares de filtros de acesso que passam pela escassez de mulheres nos diretórios dos partidos (Meneguello et al. 2012; Wylie e Santos 2016) e pelas re-gras de seleção de candidaturas (Álvares 2008). Por outro lado, políticas afirmativas dentro dos partidos que garantem a presença de mulheres nos pleitos atuam na direção oposta (Godinho 1996; Sacchet 2008, 2011).

A pesquisa constatou que a vitória simbólica de mulheres para cargos de alta visibilidade parece constituir um importante fator de mudança nos padrões de seleção dos partidos. Speck narra que quando “uma mulher eleita prefeita demonstra que pode ganhar uma disputa majoritária a ambição de outras potenciais candidatas cresce e os partidos políticos mudam a sua avaliação sobre a viabilidade eleitoral de candidaturas femininas”. Isso porque

os partidos perderiam o medo (infundado) de que mulheres não se elegessem e, segundo, porque, para não perder eleito-res, as demais siglas se sentiriam pressionadas a lançar can-didatas para demonstrar publicamente o seu compromisso com o princípio da igualdade de gênero. Segundo os autores, esses processos ocorrem no âmbito nacional quando partidos lançam, em média, mais mulheres em resposta à prática de pequenos partidos de avant-garde, mas também no âmbito desagregado quando partidos respondem a mulheres que se candidatam por partidos concorrentes no mesmo distrito. Os autores testam as hipóteses sobre o efeito contágio com da-dos das eleições legislativas na Noruega e no Canadá.

Ele ainda acrescenta que “[c]ada eleição de uma can-didata para qualquer cargo político significa que o número de mu-lheres politicamente experientes no município aumenta, levando os partidos políticos, sem revisar o seu cálculo utilitário, a nomear mais candidatas para disputarem cargos eletivos”. E conclui no sentido de

completar o debate estrutural e institucional por uma dimen-

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são histórica e circunstancial. As duas barreiras que contri-buem para a exclusão das mulheres de cargos políticos são o processo de recrutamento e seleção de candidatos, de um lado, e a disputa eleitoral e o voto popular, do outro lado. No primeiro caso, os atores chaves são os candidatos e os parti-dos políticos; no segundo, os eleitores têm um papel chave. A lenta erosão das duas barreiras passa pela normalização da experiência de ver e experimentar mulheres participando da vida política.

Outra constatação relevante em relação aos resultados experimentados por mulheres que se lançam na vida política foi trazido por Polianna Pereira dos Santos12. Ela verificou, em relação às Eleições 2016, que

[f]oram mulheres as candidatas mais bem votadas em quatro capitais: Porto Alegre (RS), Belém (PA), Recife (PE), Belo Horizonte (MG). Em todos os casos, as mulheres eleitas tive-ram votação expressiva, a favorecer a eleição de outros can-didatos de sua sigla. É dizer, essas mulheres atuaram como “puxadoras de votos” em seus respectivos partidos, sendo capazes de favores, para além da sua própria eleição, a elei-ção de outros candidatos com sua votação nominal.

O estudo também encaminha conclusão no sentido de que

[é] essencial que se entenda que com isso não se pretende dizer que campanhas pelo voto em mulheres sejam ruins ou desnecessárias. Elas são imprescindíveis, mesmo para dar visibilidade a essas candidatas. Todavia, não são suficientes, nem podem ser o único mote de ação. Isso acaba, por vezes, sendo utilizado como justificativa para a baixa representa-ção, quando o que vemos é que mesmo quando as mulheres votam em mulheres, isso não repercute, necessariamente, em um implemento da representação feminina nas mesmas proporções. Portanto, rever as ações afirmativas adotadas

12 SANTOS, Polianna Pereira dos. Mulher não vota em mulher e é simples assim? Notícia de 29.03.2018 publicada no portal Jota. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/e-leitor/mulher-nao-vota-em-mulher-e-e-simples-assim-29032018, acesso em 17.04.2018.

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atualmente, analisando-as conjuntamente com os arranjos institucionais que compõem o nosso sistema eleitoral é es-sencial para compreender e propor medidas mais efetivas, que impliquem, de fato, no aumento das chances de sucesso dessas candidatas, e não as culpabilize pela ineficiência da política pública.

De fato, é possível uma mudança nos padrões de seleção dos partidos políticos de modo a avalisar a viabilidade de uma candidatura feminina, em especial diante do sucesso que algumas cidadãs têm obtido na vida política. O efeito contagiante apontado por Speck traduz isso, bem como o ótimo desempenho obtido por candidaturas femininas nas últimas eleições.

4. CONCLUSÃO

Diversos compromissos legislativos demonstram que a necessidade de ouvir a voz das mulheres na política, longe de ser uma tendência, está baseada na constatação de especialistas de todas as áreas e do mundo inteiro acerca dos benefícios dessa medida para a qualidade de vida das populações.

O ordenamento pátrio tem avançado lentamente nesse sentido, marcadamente pela disposição do Poder Judiciário em impedir que as disposições legais constituam legislação simbólica.

A par das dificuldades na implementação de políticas públicas que facilitem o acesso das mulheres aos cargos eletivos, estudos recentes reforçam a esperança de que o país possa encontrar o rumo da implementação da igualdade substancial no campo político, sobretudo diante da constatação de que a vitória simbólica de mulheres para cargos de alta visibilidade propicia que outras potenciais candidatas desenvolvam ambições de atuação política e de que os partidos se vejam pressionados a lançar candidatas para

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demonstrar publicamente o seu compromisso com o princípio da igualdade de gênero.

Em acréscimo, havendo mulheres politicamente experientes na localidade, os partidos políticos são levados a revisar o seu cálculo utilitário e a nomear mais candidatas para disputarem cargos eletivos.

A normalização da experiência de ver e experimentar mulheres participando da vida política se mostra um importante fator de implementação da democracia representativa. Ao mesmo tempo, os obstáculos verificados demonstram que se faz necessária a revisão das ações afirmativas em face dos arranjos institucionais de nosso sistema eleitoral, a fim de compreender e propor medidas mais efetivas que aumentem as chances de sucesso de todas as candidatas, deixando de lado o discurso que culpabiliza as mulheres pela ineficiência da candidatura.

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FASE DE HABILITAÇÃOPRÉVIA DE CANDIDATURA:PERDA DE UMA CHANCE DE REDUZIR AS CANDIDATURAS PROVISÓRIAS. 1

Francieli de CamposRoger Fischer

1 Artigo originalmente publicado na Revista Científica Virtual da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP. São Paulo, 2018, v. 29 – Primavera, pp. 74-80. Disponível em: https://esaoabsp.edu.br/ckfinder/userfiles/files/RevistaVirtual/REVISTA29.pdf.

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RESUMO: o presente artigo analisa uma celeuma existente no cenário jurídico eleitoral brasileiro: a grande quantidade de candidaturas impugnadas e sujeitas à avaliação judicial no curso das campanhas eleitorais, o que denominamos de candidaturas provisórias, as quais, no mais das vezes, quando da data do pleito, não possuem julgamento com trânsito em julgado acerca da elegibilidade, embora possa o candidato promover todos os atos de campanha. Como resultado deste estudo, espera-se que, nas Eleições de 2020, a ideia da habilitação prévia possa ser retomada, com sua inclusão na legislação eleitoral, conferindo-se maior legitimidade aos candidatos perante os eleitores.

PALAVRAS-CHAVE: Registro de candidatura. Elegibilidade. Habilitação prévia. Candidaturas provisórias.

ABSTRACT: the present article analyzes an existing debate in the brazilian electoral legal scene: the large number of contested candidatures and subject to judicial evaluation during the course of the electoral campaigns, which we call provisional candidatures, which, more often than not, when the date of the suit, do not have a final judgment regarding eligibility, although the candidate may promote all campaign acts. As a result of this study, it is expected that in the 2020 elections, the idea of prior qualification can be resumed, with its inclusion in electoral legislation, giving candidates more legitimacy vis-à-vis voters.

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KEY WORDS: Registration of candidature. Eligibility. Prior Authorization. Provisional candidatures.

Uma das celeumas hodiernamente existentes no cenário jurídico eleitoral brasileiro diz com a grande quantidade de candidaturas impugnadas e sujeitas à avaliação judicial no curso das campanhas eleitorais. É o que denominamos chamar no presente estudo de candidaturas provisórias, considerando que, no mais das vezes, quando da data do pleito, não há definição com trânsito em julgado acerca da elegibilidade, embora possa o candidato promover todos os atos de campanha, a teor do disposto pelo art. 16-A da Lei das Eleições:

O candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior.

Tal situação gera uma série de consequências negativas, seja do ponto de vista do eleitor/cidadão, tocante à credibilidade do candidato e do pleito, como também da segurança jurídica e do custo financeiro decorrente de eventual reconhecimento de inelegibilidade de candidato eleito.

Gize-se que cada vez mais se depara com situações de impugnação de candidaturas, mormente em razão do aumento de causas de inelegibilidades decorrentes da Lei da Ficha Limpa.

Ademais, desde a reforma eleitoral de 2015, trazida pela Lei 13.165, o interstício para a apreciação de tais impugnações foi reduzido de forma drástica, considerando que o período de campanha caiu de 90 para 45 dias. Em função de tal prazo, muitas vezes, consoante se verificou nas eleições de 2016, não há condições

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de se cumprir o disposto pelo § 1º do art. 16 da Lei 9.504/97, que estabelece que até 20 dias antes da data das eleições todos os pedidos de registro de candidatos, inclusive os impugnados e os respectivos recursos, devem estar julgados pelas instâncias ordinárias, e publicadas as decisões a eles relativas.

É inegável que o eleitor, ao ter que escolher entre players cuja candidatura se encontra subjudice, acaba por não avaliar de forma adequada a sua opção: a escolha na urna pode se dar em candidato que, ao final, tem sua candidatura reconhecida pela Justiça Eleitoral como inabilitada, traduzindo-se na mencionada falta de credibilidade do eleitor para com o processo eleitoral lato sensu.

Isso porque, dependendo da espécie da candidatura – se majoritária ou proporcional -, soluções diversas serão adotadas em caso de reconhecimento de inelegibilidade.

Em caso de candidatura majoritária, cuja solução se dê após o pleito, os votos serão considerados nulos, devendo ocorrer novas eleições, às expensas da Justiça Eleitoral, tudo de acordo com o disposto pelo art. 2242 e §§ do Código Eleitoral, observando a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 5525.3

Na eleição proporcional, se o candidato tiver seu

2 Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias. [...] § 3o A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados. § 4o A eleição a que se refere o § 3o correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será: I - indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; II - direta, nos demais casos.3 Plenário do STF – ADI 5525, julgado em 07/03/2018: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou parcialmente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da locução “após o trânsito em julgado”, prevista no § 3º do art. 224 do Código Eleitoral, e para conferir interpretação conforme a Constituição ao § 4º do mesmo artigo, de modo a afastar do seu âmbito de incidência as situações de vacância nos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, bem como no de Senador da República.

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registro indeferido antes da realização das eleições, os votos dados a ele serão considerados nulos, a teor do § 3º do art. 175 do Código Eleitoral. Declarado inelegível o candidato após a realização das eleições, os votos a ele atribuídos serão contados para o partido pelo qual tiver sido feito seu registro, nos termos do art. 175, § 4º do Código Eleitoral.

Todo esse quadro resumidamente ventilado se dá em razão do sistema hoje previsto pela legislação para o registro de candidaturas.

É que, com o escopo de concorrer no pleito eleitoral, seja municipal, estadual ou federal, os partidos políticos e as coligações formadas devem apresentar à Justiça Eleitoral os pedidos de registros dos candidatos e candidatas escolhidos nas convenções partidárias.

O registro dos candidatos é o marco que declara a condição jurídica do candidato dentro da relação eleitoral. É neste momento que a Justiça Eleitoral estabelece os critérios jurídico-legais de garantia da higidez do regime democrático.4

Os processos de registro de candidatura, de acordo com o TSE5, “em que pesem não possuam natureza contenciosa quando inexistente impugnação ao pedido, se revestem de caráter jurisdicional”.

Rodrigo López Zilio6 ensina que mesmo que sem a presença determinada de um polo passivo, se trata de uma relação jurídica processual de jurisdição voluntária, na medida que o juiz deve assumir postura imparcial para resolver definitivamente aquela demanda, e, ainda, porque ao requerido devem ser assegurados os direitos aos contraditório e ampla defesa, havendo estabilidade na decisão prolatada pelo juízo.

4 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, pp. 360, 361.5 TSE – Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral n.º 336317 – Relator Ministro Marcelo Ribeiro, Julgado em 13/10/2010.6 ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 6ª Edição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, p. 339.

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Elaine Harzheim Macedo e Rafael Morgental Soares7, embora discordando se tratar de jurisdição voluntária, concluem da mesma forma acerca do caráter de jurisdicionalidade do procedimento. Asseveram que “o requerimento formulado pelo Partido Político visando ao registro da candidatura de seu(s) candidato(s), nos termos do art. 94, c/c art. 87, do CE, e arts. 10, caput e seus parágrafos, e 11 da LE, reveste-se de natureza postulatória, perante o órgão judicial competente (eleições municipais, Juiz Eleitoral da respectiva Zona Eleitoral; eleições gerais, os Tribunais Regionais Eleitorais, eleições presidenciais, o Tribunal Superior Eleitoral), instaurando, a partir de sua distribuição no juízo apropriado, um processo de natureza jurisdicional, cujo procedimento é, essencialmente, documental e cujo iter é estabelecido de forma célere, bastante concentrada, como de resto os procedimentos documentais autorizam (v.g, mandado de segurança), até porque dispensam dilação probatória.”

Para terem os registros deferidos, as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade do postulante a candidato devem ser verificadas neste momento, ressalvadas, evidentemente, as alterações, de fato ou de direito, posteriores ao pedido de registro que afastem a inelegibilidade.

Pela leitura apenas da Carta Magna, basta ao candidato ou candidata preencher as condições de elegibilidade e não sofrer os efeitos das causas de inelegibilidade para poder registrar sua candidatura e concorrer na eleição. Contudo, numa leitura cuidadosa da legislação ordinária e das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, percebe-se que devem ser observadas outras exigências impostas, sob pena de indeferimento8, o que torna o processo deveras complexo.

7 Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=575770113bb5f93b> Acesso em 02 de jul. 2018.8 PEREIRA. Rodolfo Viana. Condições de registrabilidade e condições implícitas de elegibilidade: esses obscuros objetos do desejo. In: Direito eleitoral: debates ibero-americanos/compilação. Curitiba: Ithala, 2014, p. 280.

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Há atentar que tanto a lei ordinária como as resoluções do TSE apresentam causas de caráter instrumental que podem determinar o indeferimento do registro, chamadas de condições de registrabilidade. Ou seja, mesmo que, porventura, não adotando a nomenclatura específica, ainda há casos de indeferimento de registro de candidato9 em situações não relacionadas com condições de elegibilidade (artigo 14, §3º da Constituição Federal10) ou causas de inelegibilidade (artigo 14, §§ 4º a 8° da Constituição Federal11 e Lei Complementar 64/90).

A Resolução n.º 23.548/2017 do TSE, a qual dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos para as eleições, traz extensivamente o grupo de documentos de apresentação obrigatória12,

9 TSE- RESPE - Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 213650-SP. Acórdão de 11/11/2014. Relator Min. Gilmar Ferreira Mendes.10 Art. 14. (...) § 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação partidária; - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.11 Art. 14. (...) § 4º São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente. § 6º Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito. § 7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição. § 8º O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições: I - se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade; II - se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade.12 Art. 28. O formulário RRC deve ser apresentado com os seguintes documentos anexados ao CANDex: I - relação atual de bens, preenchida no Sistema CANDex; II - fotografia recente do candidato, inclusive dos candidatos a vice e suplentes, observado o seguinte (Lei nº 9.504/1997, art. 11, § 1º, inciso VIII): a) dimensões: 161 x 225 pixels (L x A), sem moldura; b) profundidade de cor: 24bpp; c) cor de fundo uniforme, preferencialmente branca; d) características: frontal (busto), trajes adequados para fotografia oficial e sem

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que caso não seja cumprida importa indeferimento do registro.Dado tal cenário, afere-se o porquê de afirmarmos a

existência das candidaturas provisórias. Uma alternativa viável para minorar os problemas advindos do sistema processual eleitoral que afere a situação de elegibilidade de candidatos seria ocorrer uma fase prévia de habilitação de candidatura, cuja proposição legislativa ocorreu no ano de 2017 e que, infelizmente, não restou levada a frente.

Quando do envio do projeto de lei que visava a alterar a legislação eleitoral para viger a partir do pleito de 2018, diversas foram as nomenclaturas atribuídas à ideia que pretendia estabelecer uma análise preliminar às condições de registrabilidade dos pré-candidatos: habilitação prévia, pré-registro, certidão de elegibilidade.

A proposta rejeitada previa a inserção do art. 5º-A na Lei das Eleições, assim redigido:

Aqueles que pretendam ser candidatos deverão requerer ao juiz eleitoral de seu domicílio eleitoral, entre 1º fevereiro e 15 de março do ano da eleição, o exame de sua situação eleitoral para fins de habilitação prévia de sua candidatura.

Ou seja, de acordo com o projeto de lei, a Justiça Eleitoral teria mais tempo para julgar a elegibilidade dos candidatos e candidatas, de modo que até a data da eleição todos os registros já estariam julgados, estando decididas todas as complexas questões alhures referidas, relativas às condições de elegibilidade, de registrabilidade e causas de inelegibilidade.

Diversos são os motivos para se lamentar a não inclusão

adornos, especialmente aqueles que tenham conotação de propaganda eleitoral ou que induzam ou dificultem o reconhecimento pelo eleitor; III - certidões criminais fornecidas (Lei nº 9.504/1997, art. 11, § 1º, inciso VII): a) pela Justiça Federal de 1º e 2º graus da circunscrição na qual o candidato tenha o seu domicílio eleitoral; b) pela Justiça Estadual de 1º e 2º graus da circunscrição na qual o candidato tenha o seu domicílio eleitoral; c) pelos tribunais competentes, quando os candidatos gozarem foro por prerrogativa de função; IV - prova de alfabetização; V - prova de desincompatibilização, quando for o caso; VI - cópia de documento oficial de identificação.

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deste novel instituto.Como referido outrora, com a redução drástica do tempo

de campanha a partir da eleição municipal de 2016, a Justiça Eleitoral se viu diante de um desafio: julgar todos os pedidos de registro de candidatura, suas impugnações e recursos no diminuto prazo de 45 dias.

O procedimento de pedido de registro obedece a um certo número de etapas, incluindo a publicação de editais, impugnação, contestação, diligências, conforme disposição do artigo 3º e seguintes da LC 64/90, as quais não podem ser abreviadas, o que faz com que a Justiça Eleitoral adentre em uma verdadeira corrida contra o relógio.

Ocorre que, consoante afirmado, a Lei das Eleições exige que, até vinte dias antes da eleição, todos os pedidos de registro de candidatos, inclusive os impugnados e os respectivos recursos, devem estar julgados pelas instâncias ordinárias, e publicadas as decisões a eles relativas13. Caso o candidato esteja com o pedido indeferido, mesmo que pendente de recurso, os votos atribuídos a ele na urna não são considerados válidos, o que causa espécie ao eleitor, constando nos resultados como pendentes de confirmação, com a nomenclatura “reservados”. Apenas no caso de posterior deferimento do registro, a votação entrará para o cálculo do candidato, do partido e da coligação, o que dá um caráter incômodo de provisoriedade para a eleição, além da evidente insegurança jurídica.

Toda a modernidade e rapidez conferidas pela utilização

13 Art. 16. Até vinte dias antes da data das eleições, os Tribunais Regionais Eleitorais enviarão ao Tribunal Superior Eleitoral, para fins de centralização e divulgação de dados, a relação dos candidatos às eleições majoritárias e proporcionais, da qual constará obrigatoriamente a referência ao sexo e ao cargo a que concorrem. § 1º Até a data prevista no caput, todos os pedidos de registro de candidatos, inclusive os impugnados e os respectivos recursos, devem estar julgados pelas instâncias ordinárias, e publicadas as decisões a eles relativas. § 2º Os processos de registro de candidaturas terão prioridade sobre quaisquer outros, devendo a Justiça Eleitoral adotar as providências necessárias para o cumprimento do prazo previsto no § 1o, inclusive com a realização de sessões extraordinárias e a convocação dos juízes suplentes pelos Tribunais, sem prejuízo da eventual aplicação do disposto no art. 97 e de representação ao Conselho Nacional de Justiça.

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da urna eletrônica, a hoje existente Máquina de Votar idealizada por Joaquim Francisco de Assis Brasil, no primeiro Código Eleitoral do país, de 1932, que transforma a apuração dos votos em um processo extremamente dinâmico, com a proclamação do resultado poucas horas após a abertura das urnas, é, muitas vezes, inútil, porquanto a validade dos votos apurados fica em suspenso, aguardando a decisão do Poder Judiciário.

No pleito de 2016, o primeiro ocorrido com o novo período de campanha de 45 dias, 8.440 candidatos a prefeito, vice-prefeito ou vereador concorreram com registro indeferido, com julgamento de recurso pendente14.

Não é por outra razão que se tem afirmado que as eleições brasileiras são disputadas em 3 turnos: os dois primeiros decididos pelos eleitores, o último pela Justiça Eleitoral.

Com a habilitação prévia, os candidatos e candidatas apresentariam logo no início do ano todos os documentos e certidões exigidos. A Justiça Eleitoral procederia da mesma forma como faz atualmente. No caso de alguma incorreção ou pendência (de quitação de multas eleitorais, p.ex.), poderia ser concedido prazo para regularização. Na sequência, a publicação de edital para impugnação ao pedido de registro.

Ao final, ainda que, evidentemente, a decisão desta fase de habilitação prévia não fosse decisiva, seria um indicativo para os candidatos, partidos e eleitores de quem realmente estaria apto para colocar seu nome e sua foto estampados na urna. As impugnações e recursos, quando do efetivo registro em agosto, estariam por evidência reduzidíssimos. O terceiro turno das Eleições não se implementaria no mais das vezes. A exceção ficaria, por óbvio, para casos de inelegibilidade superveniente.

Certamente, entre abril e a data do efetivo registro de

14 Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/resultados-da-eleicao-estao-sujeitos-a-mudancas-diz-tse/> Acesso em 02 de jul. 2018.

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candidatura, 15 de agosto, poderia surgir fato superveniente capaz de gerar ou afastar a inelegibilidade. Essa, contudo, é uma exceção que poderia – e somente ela poderia – ser examinada no momento do efetivo registro da candidatura.

As impugnações seriam reduzidas aos casos de inelegibilidade superveniente. Os registros seriam deferidos de forma quase automática.

Lamenta-se, portanto, não tenha vingado a ideia presente no projeto de lei que pretendia incluir a fase de habilitação prévia de candidatura, esperando-se, nas Eleições de 2020, tal tema possa ser retomado, com a inclusão da legislação eleitoral, conferindo-se maior legitimidade aos candidatos perante os eleitores, reduzindo-se custos com eventuais novas eleições, bem como ocorrendo uma maior segurança jurídica nos certames.

REFERÊNCIAS

MACEDO, Elaine Harzheim; SOARES, Rafael Morgental. O Procedimento do registro de candidaturas no paradigma do processo eleitoral democrático: atividade administrativa ou jurisdicional? Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=575770113bb5f93b> Acesso em 02 de jul. 2018.

PEREIRA. Rodolfo Viana. Condições de registrabilidade e condições implícitas de elegibilidade: esses obscuros objetos do desejo. In: Direito eleitoral: debates ibero-americanos/compilação. Curitiba: Ithala, 2014.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 6ª Edição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018.

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A GARANTIA DOS DIREITOS POLÍTICOS DIANTE DO DESCOMPASSO ENTRE O CONCEITO DE DOMICÍLIO ELEITORAL E A REVISÃO DE ELEITORADO

THE INCOMPATIBILITY BETWEEN THE CONCEPT OF VOTING RESIDENCE AND THE ELECTORAL “REVIEW” PROCEDURES AND THE GUARANTEE OF POLITICAL RIGHTS

Cristiano Rodrigues JamesJuliana Almeida Pereira

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RESUMO: O conceito impreciso de domicílio eleitoral empregado no Código Eleitoral Brasileiro e os instrumentos de controle do cadastro eleitoral (correição e revisão eleitoral) são analisados sob o prisma do choque entre normas legais e concretas, por afrontar os princípios da eficiência, economia e livre exercício de direitos políticos ativos e passivos. O método empregado é bibliográfico, notadamente artigos científicos. Com o avanço tecnológico do cadastro informatizado, e a evolução doutrinária do conceito de domicílio eleitoral mais elástico, observa-se que o procedimento de revisão do eleitorado encontra-se superado.

PALAVRAS-CHAVE: Domicílio eleitoral. Revisão do eleitorado. Direitos políticos. Direitos fundamentais.

ABSTRACT: The inaccurate concept of voting residence used on the Código Eleitoral Brasileiro (Brazilian Electoral Code) is in conflict with instruments that control voting registration (electoral “correction” and electoral “review” procedures). This occurs because they are analyzed from and understanding of the incompatibility between civil law and common law, as well as because they disrespect the following principles: efficiency, economy and free usufruct of active and passive political rights. The sources of this research are scientific articles related to the theme. Due to technological advances on digital voting registration, and a more flexible concept of voting residence, we can note that the electoral “review” procedure is no longer used.

Keywords: Voting residence. Electoral “review” procedure. Political rights. Fundamental rights.

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1. INTRODUÇÃO

A questão central abordada neste artigo é a possibilidade de se assegurar os direitos políticos na esfera dos direitos fundamentais diante do descompasso entre o amplo conceito de domicílio eleitoral, encontrado na jurisprudência das cortes eleitorais, e os instrumentos de controle do cadastro eleitoral (correição e revisão do eleitorado), presentes na legislação pré-constitucional.

A legislação eleitoral brasileira vem, ao longo de sua história, posicionando-se de forma variável em relação ao conceito de domicílio eleitoral. Esta inconstância criou raízes para um remansosa construção jurisprudencial. A imprecisão do conceito empregado no atual Código Eleitoral Brasileiro, já há tanto tempo sem atualização, tem ocasionado duas situações conflitantes: (i) por um lado, deve-se garantir o domicílio do eleitor cujo vínculo ele considerar mais relevante, a fim de assegurar o livre exercício de seus direitos políticos ativos e passivos; (ii) em contrapartida, os instrumentos de controle do cadastro eleitoral (correição e revisão eleitoral) são um dos indícios de que a liberdade individual para escolha do domicílio eleitoral, como adotada por grande parte da jurisprudência, facilita a ocorrência de fraudes e ameaça a lisura do pleito, sendo uma das ensejadoras da criação da própria Justiça Eleitoral.

A falta de definição legal clara e a coexistência dos permissivos jurisprudenciais provocam insegurança aos jurisdicionados, uma vez que as exceções se tornam regra, e o que é aceito em um local, pode não ser aceito em outro.

Um dos mecanismos legais para se evitar a fraude e os desvios no cadastro eleitoral é a revisão do eleitorado em que o cidadão deve comparecer perante a Justiça Eleitoral e comprovar o seu vínculo atual com aquela localidade. É importante destacar a necessidade de comprovação do vínculo de sua atualidade, pois, fora desse procedimento revisional, não há obrigatoriedade do eleitor

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acompanhar sua inscrição quando se muda de localidade com ânimo de residência.

Além de onerosos e ultrapassados, os procedimentos de correição e revisão do eleitorado, nos termos do artigo 92 da Lei 9.504, de 30/09/1997, ameaçam o pleno exercício dos direitos políticos ativos e passivos dos cidadãos, ao cancelar suas inscrições eleitorais caso estes não consigam comprovar o vínculo domiciliar no curto período de duração do procedimento.

Cumpre ressaltar do que trata José Jairo Gomes (2010, 113):

Os direitos políticos situam-se entre os direitos humanos e fundamentais, constituindo-se um subsistema. O desenvolvimento desse subsistema é sobremodo relevante, pois significa a institucionalização daqueles direitos e dos valores que expressam, e isso é essencial para otimizar a proteção deles.

Elevados a esse patamar, é impreterível assegurar o pleno gozo dos direitos políticos, diante da antinomia entre o amplo conceito de domicílio eleitoral e a revisão do eleitorado, sendo que este conflito merece destaque e vasta discussão de soluções para sua resolução.

Foi objetivado neste artigo demonstrar: que há um choque de normas legais (Lei 9.504/1997 e Resolução 21.538, de 14/10/2003, do Tribunal Superior Eleitoral - TSE) e normas concretas (construções pretorianas) na definição de domicílio eleitoral, devendo uma das duas ou ambas serem eliminadas; que a construção de uma definição clara (por lei ou súmula) do conceito de domicílio eleitoral - e sua forma de comprovação - faria com que os documentos exigidos paa sua comprovação não restringissem o exercício dos direitos políticos dos cidadãos onde possuíssem vínculos fortes o suficiente a revelar seu interesse na comunidade;

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que o procedimento de revisão do eleitorado, nos termos do artigo 92 da Lei 9.504/1997, vai de encontro aos princípios da eficiência e economia, e encontra-se superado pelo avanço tecnológico do cadastro eleitoral informatizado e unificado.

Cabe salientar que foi encontrado material doutrinário abordando os temas em tela pelo prisma dos direitos políticos, os quais acabam prejudicados pelo procedimento de revisão do eleitorado, norteado por um conceito de domicílio eleitoral absolutamente inseguro e que constitui verdadeira afronta aos direitos fundamentais do cidadão.

2. DOMICÍLIO ELEITORAL

O domicílio eleitoral apresenta a evolução histórica que vem da sua origem mais liberal para uma definição legal mais restritiva. As cortes eleitorais têm “temperado” o conceito, ampliando a definição deste ao abranger diversas hipóteses, como os vínculos patrimonial, familiar, comunitário e afetivo. Senão, veja-se o Acórdão no Recurso Especial 8.551 do TSE, de 08/04/2014

1. A jurisprudência desta Corte se fixou no sentido de que a demonstração do vínculo político é suficiente, por si só, para atrair o domicílio eleitoral, cujo conceito é mais elástico que o domicílio no Direito Civil (Brasil, 2014a)

E, ainda, o acórdão proferido no Recurso Especial 37.481, do TSE, de 18/02/2014:

Domicílio eleitoral. Abrangência. Comprovação. Conceito elástico. Desnecessidade de residência para se configurar o vínculo com o município. Provimento. 1) Na linha da jurisprudência do TSE, o conceito de domicílio eleitoral

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é mais elástico do que no Direito Civil e se satisfaz com a demonstração de vínculos políticos, econômicos, sociais ou familiares. (Brasil, 2014b)

Silma Leda Sampaio (2014), em artigo que trata sobre aspectos conceituais e aplicação jurisprudencial do domicílio eleitoral, traça um panorama histórico da evolução do conceito legal do domicílio eleitoral na legislação brasileira. Segundo ela, inicialmente, bastava residir na vila ou cidade para ter assegurado o direito de votar na localidade, na época do Brasil Colônia.

A autora destaca a Decisão 57 do Reino, de 19/06/1822, como a primeira lei genuinamente brasileira, que previu um conceito mais objetivo de domicílio eleitoral. Nessa, teria o direito de votar nas eleições paroquiais o cidadão que, além de outros requisitos, tivesse pelo menos um ano de residência na freguesia onde dera seu voto.

Em seguida, a Lei de 01/10/1828 estabeleceu a residência de no mínimo dois anos e aproximou o conceito de domicílio eleitoral ao de domicílio civil.

Já a primeira lei eleitoral da República (Decreto 200-A, de 08/02/1890) e o Decreto 3.029, de 09/01/1881, mantiveram a tendência de prazo para constituição do domicílio eleitoral.

De acordo com Vinícius de Oliveira (2014), em artigo sobre o conceito jurisprudencial de domicílio eleitoral e a obsolescência parcial da correição e revisão do eleitorado, as alterações supervenientes trouxeram à tona o viés liberal com enfoque na autonomia do eleitoral, como se observa no Decreto 21.076, de 24/02/1932, segundo o qual o domicílio eleitoral é o lugar onde o cidadão comparecer para se inscrever. A definição é clara ao permitir ao cidadão, no mesmo dispositivo legal, o exercício do voto em domicílio diferente de seu domicílio civil. Sendo assim, o eleitor tem ampla liberdade na decisão de onde exercerá seus direitos políticos (Ibidem).

Diante desse breve apanhado histórico, nota-se que não

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havia, ainda, os procedimentos de correição e revisão do eleitorado. Tais procedimentos surgiram com o advento do Código Eleitoral de 1965 (Lei 4.737, de 15/07/1965), o qual modificou o conceito de domicílio eleitoral. Tem em seu artigo 42, paragráfo único, que “para o efeito da inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considera-se-á domicílio qualquer delas.” (Brasil, 1965).

Assim, o eleitor passou a ter de exercer, obrigatoriamente, seu direito-dever ao sufrágio na circunscrição geográfica de sua residência ou moradia.

Os objetivos de tal mudança, na opinião de Oliveira (2014), justificavam-se ao argumento de que, dessa forma, o eleitor estaria mais próximo dos problemas que lhe interessavam mais diretamente; evitaria a escolha de outro local de votação com o simples intuito de apoiar determinado candidato; impediria que alguns candidatos obtivessem vantagem indevida ao realocar eleitores no local onde pretendessem se eleger; e evitaria que o candidato pudesse escolher um local para se inscrever pela facilidade de nele se eleger, sem que possuísse verdadeiros laços com a comunidade local.

Para garantir a obediência a essa nova diretriz, tem-se no artigo 71, §4º, da Lei 4.737/1965:

Quando houver denúncia fundamentada de fraude no alistamento de uma zona ou município, o Tribunal Regional poderá determinar a realização de correição e, provada a fraude em proporção comprometedora, ordenará a revisão do eleitorado obedecidas as Instruções do Tribunal Superior e as recomendações que, subsidiariamente, baixar, com o cancelamento de ofício das inscrições correspondentes aos títulos que não forem apresentados à revisão.

Entretando, a interpretação judicial, de acordo com Oliveira (2014), tratou de elastecer o conceito de domicílio eleitoral, ao fazer uma interpretação extensiva e teleológica; esta, ao buscar

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a real finalidade da norma, qual seja, o vínculo de interesse entre o eleitor e a comunidade; aquela, aceitando também a existência de vínculos patrimoniais, profissionais, familiares ou comunitários entre o eleitor e determinado município, ainda que o eleitor não resida de fato nele.

3. REVISÃO DO ELEITORADO

Independentemente do conceito aplicado a domicílio eleitoral, mais amplo ou mais restrito, a sua aplicação no contexto da revisão obriga que o cidadão comprove o vínculo atual. Entretanto, para todos aqueles que não possuem residência naquela localidade, mas que, no momento de sua inscrição ou transferência, o possuíam, serão alijados dos seus direitos políticos, com o cancelamento de sua inscrição. Esse eleitor não tem mais os vínculos com a localidade em que estava registrado, mas também não possui a comprovação necessária para a regularização no município onde reside atualmente. Frise-se que não há, em qualquer hipótese do quadro legal, obrigatoriedade da inscrição eleitoral acompanhar as mudanças de residência do cidadão.

Outro ponto que merece reparo é o da atualidade do vínculo. Ora, se não há obrigatoriedade da inscrição acompanhar as mudanças de residência ocorridas, o que deveria ser comprovado é o liame existente no momento da inscrição ou transferência, ou, em outras palavras, a ligação do eleitor com aquela residência naquele lapso temporal, e não no atual.

Do lado do procedimento da revisão do eleitorado, melhor sorte não nos assiste. A revisão teve sua origem como uma das formas de controle da lisura do cadastro eleitoral em uma época em que cada estado da Federação brasileira tinha seus próprios registros, e o eleitor recebia nova numeração em cada um deles. As

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formas de batimento para identificação de múltiplas inscrições eram muito limitadas.

Na época em que os eleitores eram identificados por fichas que ficavam nos cartórios eleitorais, não havia muita dificuldade para que a mesma pessoa possuísse mais de uma inscrição eleitoral em diferentes zonas eleitorais ou estados da Federação.

Com os avanços tecnológicos desse cadastro, a possibilidade de uma mesma pessoa possuir mais de uma inscrição reduziu-se significativamente. Hoje, o cadastro está informatizado e unificado, sendo que cada eleitor tem apenas uma inscrição no País, que o acompanha em qualquer estado da Federação, além de outros procedimentos de controle, como os batimentos que expurgam as eventuais multiplicidades de inscrição de uma mesma pessoa, e, por fim, o registro dos dados biométricos.

Verifica-se a necessidade de revisão do eleitorado no Código Eleitoral, artigo 71, §4º, e na Lei das Eleições, artigo 92.

Os critérios legais originalmente escolhidos pelo legislador para balizar o procedimento revisional não acompanharam a evolução social e tecnológica, esta já apontada alhures e aquela na constatação da velocidade da mobilidade humana atual. Enquanto no meio do século passado viagens internacionais ainda se davam de maneira demorada e difícil, a sociedade extremamente conectada e interdependente de hoje demanda profissionais em constante mudança. O filho da terra, que hoje faz sua inscrição como eleitor na cidade onde nasceu e cresceu, vai estudar em um polo regional e, depois, estabelece sua vida profissional muitas vezes distante de sua cidade natal, sem contudo querer cortar seus vínculos de origem.

Os resultados da revisão do eleitorado não se destacam no critério de eficiência como princípio constitucional dirigido à Administração Pública, já que temos o investimento de tempo e recursos públicos para uma limpeza dos registros eleitorais e, pouco tempo depois, as mesmas localidades “recuperam” o eleitorado, com

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novos ou os mesmos eleitores, os quais, mesmo após terem suas inscrições canceladas, podem novamente se inscrever na mesma localidade. Não há óbice.

Em levantamento no portal do Tribunal Superior Eleitoral de dados estatísticos sobre o eleitorado total dos municípios que passaram por procedimento de revisão do eleitorado em 2015, relacionados nos Provimentos 003 e 007/2015 da Corregedoria Regional Eleitoral de Minas Gerais, entre os meses de 07/2015 e 04/2016 (Tabela 1), têm-se claras tanto a diminuição do eleitorado com o cancelamento das inscrições após o procedimento revisional quanto a recuperação desse eleitorado em pouco tempo (Tabelas 2 e 3).

Tabela 1 - Relação dos municípios mineiros revisionadosRelação dos municípios a que se refere o Provimento nº 003-CRE/2015

ZONA ELEITORAL MUNICÍPIOS DATA INÍCIO DATA TÉRMINO

002ª - Abre Campo Pedra Bonita 26/08/2015 18/12/2015

006ª - Aiuruoca Seritinga 24/08/2015 18/12/2015

006ª - Aiuruoca Serranos 24/08/2015 18/12/2015

044ª - Bocaiúva Guaraciama 04/09/2015 18/12/2015

054ª - Buenópolis Joaquim Felício 31/07/2015 18/12/2015

128ª - Inhapim São Domingos das Dores 04/09/2015 18/12/2015

129ª - Ipanema Taparuba 10/09/2015 18/12/2015

136ª - Itambacuri Nova Módica 24/08/2015 18/12/2015

164ª - Machado Carvalhópolis 31/08/2015 18/12/2015

170ª - Mar de Espanha Chiador 21/08/2015 18/12/2015

170ª - Mar de Espanha Mar de Espanha 21/08/2015 18/12/2015

170ª - Mar de Espanha Senador Cortes 21/08/2015 18/12/2015

171ª - Mariana Diogo de Vasconcelos 24/08/2015 18/12/2015

181ª - Monte Carmelo Douradoquara 01/07/2015 18/12/2015

181ª - Monte Carmelo Iraí de Minas 01/07/2015 18/12/2015

181ª - Monte Carmelo Romaria 01/07/2015 18/12/2015

184ª - Montes Claros Claro dos Poções 17/07/2015 18/12/2015

217ª - Piranga Senhora de Oliveira 10/09/2015 18/12/2015

233ª - Resplendor Itueta 07/07/2015 18/12/2015

272ª - Três Corações São Thomé das Letras 02/07/2015 18/12/2015

320ª - Arinos Uruana de Minas 01/07/2015 18/12/2015

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325ª - Montes Claros Juramento 17/07/2015 18/12/2015

Relação dos municípios a que se refere o Provimento nº 007-CRE/2015

ZONA ELEITORAL MUNICÍPIOS DATA INÍCIO DATA TÉRMINO

001ª - Abaeté Cedro do Abaeté 04/11/2015 18/12/2015

013ª - Andradas Ibitiúra de Minas 13/10/2015 18/12/2015

014ª - Andrelândia Arantina 22/09/2015 18/12/2015

014ª - Andrelândia Madre de Deus de Minas 22/09/2015 18/12/2015

021ª - Bambuí Tapiraí 05/11/2015 18/12/2015

072ª - Caratinga Córrego Novo 29/09/2015 18/12/2015

079ª - Cataguases Santana de Cataguases 13/10/2015 18/12/2015

095ª - Corinto Santo Hipólito 14/09/2015 18/12/2015

100ª - Curvelo Morro da Garça 11/09/2015 18/12/2015

132ª - Itabira Passabém 12/11/2015 18/12/2015

147ª - Janaúba Nova Porteirinha 05/10/2015 18/12/2015

155ª - Juiz de Fora Chácara 29/09/2015 18/12/2015

169ª - Mantena Nova Belém 05/10/2015 18/12/2015

174ª - Matozinhos Prudente de Morais 13/11/2015 18/12/2015

178ª - Miraí São Sebastião da Vargem Alegre

24/09/2015 18/12/2015

212ª - Peçanha Frei Lagonegro 13/10/2015 18/12/2015

235ª - Rio Novo Piau 18/09/2015 18/12/2015

240ª - Rio Preto Santa Bárbara do Monte Verde

10/11/2015 18/12/2015

240ª - Rio Preto Santa Rita de Jacutinga 10/11/2015 18/12/2015

249ª - Santo Antônio do Monte

Pedra do Indaiá 06/10/2015 18/12/2015

253ª - São Gonçalo do Sa-pucaí

Cordislândia 14/09/2015 18/12/2015

275ª - Ubá Guidoval 11/09/2015 18/12/2015

290ª - Miradouro Vieiras 05/10/2015 18/12/2015

300ª - Cachoeira de Minas Conceição dos Ouros 16/09/2015 18/12/2015

Fonte: Brasil (2010)

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Tabela 2 - Evolução numérica do eleitorado mineiro no período por município MUNICÍPIOS out-15 nov-15 dez-15 jan-16 fev-16 mar-16 abr-16

Pedra Bonita 5.535 5.697 5.697 5.685 4.812 4.879 4.969

Seritinga 1.861 1.870 1.867 1.869 1.873 1.646 1.701

Serranos 1.997 2.023 2.019 2.044 2.048 1.854 1.878

Guaraciama 5.135 5.147 5.109 5.089 5.070 4.330 4.452

Joaquim Felício 3.679 3.713 3.698 3.711 3.723 3.061 3.124

São Domingos das Dores 5.157 5.231 5.240 5.226 5.264 4.629 4.745

Taparuba 3.195 3.255 3.296 3.361 3.365 2.976 3.062

Nova Módica 3.455 3.449 3.451 3.474 3.489 3.045 3.175

Carvalhópolis 3.275 3.271 3.260 3.258 3.260 2.922 2.946

Chiador 3.026 3.057 3.028 3.009 2.990 2.377 2.499

Mar de Espanha 9.747 9.875 10.008 10.012 8.725 9.064 9.266

Senador Cortes 2.542 2.516 2.472 2.450 2.121 2.136 2.250

Diogo de Vasconcelos 3.871 3.902 3.925 3.910 3.902 3.341 3.410

Douradoquara 1.953 1.950 1.944 1.946 1.950 1.724 1.808

Iraí de Minas 6.013 6.012 5.998 5.986 6.013 5.217 5.366

Romaria 3.407 3.407 3.406 3.389 3.381 2.736 2.833

Claro dos Poções 7.549 7.533 7.533 7.510 7.495 6.357 6.442

Senhora de Oliveira 5.593 5.603 5.606 5.617 5.058 5.174 5.320

Itueta 5.375 5.415 5.425 5.396 5.394 4.120 4.409

São Thomé das Letras 5.243 5.253 5.254 5.217 4.029 4.058 4.144

Uruana de Minas 3.415 3.420 3.411 3.408 3.407 2.907 3.060

Juramento 4.463 4.454 4.476 4.524 4.534 3.987 4.082

Cedro do Abaeté 1.391 1.391 1.395 1.390 1.386 1.220 1.221

Ibitiúra de Minas 3.242 3.277 3.295 3.282 3.301 2.871 2.994

Arantina 2.710 2.725 2.737 2.725 2.715 2.450 2.495

Madre de Deus de Minas 4.310 4.496 4.478 4.466 4.447 3.941 4.013

Tapiraí 2.150 2.161 2.116 2.077 2.068 1.441 1.537

Córrego Novo 3.686 3.666 3.801 3.800 3.789 2.855 3.066

Santana de Cataguases 3.240 3.265 3.284 3.262 3.265 2.875 2.945

Santo Hipólito 3.180 3.206 3.215 3.190 3.195 2.611 2.723

Morro da Garça 2.767 2.786 2.799 2.793 2.319 2.345 2.486

Passabém 1.839 1.871 1.891 1.886 1.879 1.607 1.656

Nova Porteirinha 6.103 6.139 6.082 6.022 4.657 4.810 4.956

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Revista do Tribunal Regional Eleitoral - RS 223

Chácara 2.683 2.700 2.729 2.744 2.744 2.382 2.497

Nova Belém 3.640 3.713 3.775 3.759 2.803 2.888 3.099

Prudente de Morais 7.913 8.046 8.278 8.267 8.261 6.992 7.155

São Sebastião da Vargem Alegre 2.754 2.770 2.755 2.739 2.724 2.338 2.385

Frei Lagonegro 3.281 3.307 3.332 3.332 3.340 2.704 2.947

Piau 2.918 2.952 3.011 3.011 3.005 2.582 2.632

Santa Bárbara do Monte Verde 3.309 3.450 3.438 3.412 3.406 2.838 2.883

Santa Rita de Jacutinga 4.562 4.588 4.770 4.721 4.706 3.988 4.056

Pedra do Indaiá 3.630 3.629 3.612 3.593 3.588 3.137 3.284

Cordislândia 3.096 3.120 3.118 3.117 3.104 2.537 2.588

Guidoval 6.346 6.377 6.409 6.396 6.400 5.505 5.628

Vieiras 3.598 3.633 3.623 3.609 3.604 3.124 3.211

Conceição dos Ouros 8.760 8.750 8.738 8.724 8.718 7.557 7.770

Fonte: Brasil (2010).

Tabela 3 - Evolução percentual do eleitorado mineiro no período por município MUNICÍPIOS População % início % término Estimativa % início % término

Pedra Bonita 6.673 82,39 74,46 7.051 77,97 70,47

Seritinga 1.789 103,63 95,08 1.865 99,41 91,21

Serranos 1.995 97,79 94,14 2.030 96,11 92,51

Guaraciama 4.718 107,80 94,36 4.962 102,50 89,72

Joaquim Felício 4.305 83,30 72,57 4.607 77,84 67,81

São Domingos das Dores 5.408 94,56 87,74 5.661 90,34 83,82

Taparuba 3.137 100,29 97,61 3.203 98,22 95,60

Nova Módica 3.790 85,86 83,77 3.792 85,81 83,73

Carvalhópolis 3.341 94,82 88,18 3.544 89,39 83,13

Chiador 2.785 107,36 89,73 2.807 106,52 89,03

Mar de Espanha 11.749 82,51 78,87 12.572 77,11 73,70

Senador Cortes 1.988 121,78 113,18 2.047 118,27 109,92

Diogo de Vasconcelos 3.848 99,27 88,62 3.923 97,37 86,92

Douradoquara 1.841 106,14 98,21 1.920 101,77 94,17

Iraí de Minas 6.467 87,32 82,98 6.886 82,01 77,93

Romaria 3.596 95,58 78,78 3.657 93,98 77,47

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Claro dos Poções 7.775 96,53 82,86 7.862 95,46 81,94

Senhora de Oliveira 5.683 94,32 93,61 5.879 91,17 90,49

Itueta 5.830 90,65 75,63 6.087 86,82 72,43

São Thomé das Letras 6.655 79,34 62,27 7.037 75,03 58,89

Uruana de Minas 3.235 105,84 94,59 3.336 102,64 91,73

Juramento 4.113 107,61 99,25 4.325 102,34 94,38Cedro do Abaeté 1.210 114,88 100,91 1.218 114,12 100,25Ibitiúra de Minas 3.382 95,92 88,53 3.520 92,16 85,06Arantina 2.823 94,30 88,38 2.880 92,43 86,63Madre de Deus de Minas 4.904 87,70 81,83 5.124 83,94 78,32Tapiraí 1.873 115,48 82,06 1.922 112,54 79,97Córrego Novo 3.127 117,81 98,05 3.032 121,50 101,12Santana de Cataguases 3.622 89,20 81,31 3.836 84,23 76,77Santo Hipólito 3.238 96,23 84,10 3.246 96,00 83,89Morro da Garça 2.660 103,72 93,46 2.630 104,90 94,52Passabém 1.766 103,91 93,77 2.112 86,88 78,41Nova Porteirinha 7.398 82,17 66,99 7.636 79,61 64,90Chácara 2.792 94,48 89,43 3.042 86,72 82,08Nova Belém 3.732 97,16 83,04 3.559 101,88 87,08Prudente de Morais 9.573 82,43 74,74 10.388 75,96 68,88São Sebastião da Vargem Alegre 2.798 98,39 85,24 2.973 92,60 80,22Frei Lagonegro 3.329 97,93 88,53 3.487 93,49 84,51Piau 2.841 102,64 92,64 2.868 101,67 91,77Santa Bárbara do Monte Verde 2.788 118,83 103,41 3.037 109,09 94,93Santa Rita de Jacutinga 4.993 91,51 81,23 5.065 90,21 80,08Pedra do Indaiá 3.875 92,59 84,75 4.021 89,23 81,67Cordislândia 3.435 89,69 75,34 3.573 86,23 72,43Guidoval 7.206 86,94 78,10 7.327 85,51 76,81Vieiras 3.731 95,95 86,06 3.765 95,09 85,29Conceição dos Ouros 10.388 80,52 74,80 11.262 74,27 68,99

Fonte: Brasil (2010).

A título de exemplo, o município de Senador Cortes, com 1.988 habitantes segundo dados do IBGE (2010b), possuía

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2.421 eleitores em julho de 2015, logo após a revisão 2.121, e em 04/2016 dispunha de 2.250 (Tabela 2). Continua com mais de 100% de eleitores em relação à população. No outro extremo, temos São Thomé das Letras, com 6.655 habitantes (IBGE, 2010a), que possuía 5.280 eleitores em 07/2015, 4.029 logo após a revisão e 4.144 em 04/2016 (Tabela 2), perfazendo apenas 62,27% de eleitores em relação à população.

Cumpre destacar que, dos dados levantados, em torno de dois terços dos municípios submetidos ao processo de revisão deveriam sê-lo novamente, em função da alta relação entre eleitorado e população.

Ainda sobre o princípio administrativo-constitucional da eficiência, ou a sua ausência, destacam-se os elevados gastos com os parcos recursos econômico-financeiros quando da realização dos procedimentos de correição e, principalmente, da revisão do eleitorado, por exemplo com treinamentos e deslocamento de servidores, disponibilização de kits biométricos em quantitativo extra, custo para a própria população ter que comparecer, entre outros.

Ao analisar a revisão do eleitorado pelo prisma dos direitos humanos fundamentais, tem-se verdadeira poda ao seu exercício.

Os direitos políticos integram a chamada primeira dimensão dos direitos humanos fundamentais na

concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e

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vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. (Piovesan, 2006, 8).

Nesse viés, o procedimento da revisão do eleitorado poderia, inclusive, ser considerado inconstitucional, por afrontar os dispositivos que fundamentam e alicerçam o Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º, II e III, da Constituição, nos quais destacam-se a cidadania e dignidade da pessoa humana.

Assim, é imperioso repensar a revisão do eleitorado, procedimento anterior à Constituição Cidadã e que hoje merece ocupar lugar de nota apenas como uma fase no desenvolvimento da lisura do cadastro eleitoral, que, graças aos avanços sociais e tecnológicos, encontra-se superada e resolvida.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas referidas ponderações, conclui-se que a definição clara e mais maleável, estabelecida por lei ou súmula, do conceito de domicílio eleitoral, nos moldes que vem sendo construído pela jurisprudência brasileira, seria uma solução viável para que não deixasse margem a arbitrariedades que possibilitassem a restrição de direitos políticos, ao exigir documentos para comprovação do domicílio do eleitor.

Nesse contexto, o procedimento de revisão do eleitorado vai de encontro aos princípios administrativo-constitucionais da eficiência e economia, e encontra-se superado pelo avanço tecnológico do cadastro eleitoral, afrontando a própria cidadania, ao suprimir o direito político em seus aspectos ativo e passivo, com o cancelamento

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das inscrições eleitorais não aprovadas em seu procedimento, pelo simples fato de o eleitor não conseguir comprovar seu vínculo de domicílio com o município.

REFERÊNCIAS

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OLIVEIRA, V. de. (2014). Considerações sobre o conceito jurisprudencial de domicílio eleitoral: legitimidade, insegurança jurídica e a obsolescência parcial da correição e da revisão do eleitorado. Revista Brasileira de Direito Eleitoral - RBDE, vol. 6, n. 10, p. 233-239.

PIOVESAN, F. (2006). Direito constitucional: módulo V. Porto Alegre: Emagis.

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PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL:REINVENÇÃO OU MORTE NAERA DA DEMOCRACIA DIGITAL EDA MODERNIDADE LÍQUIDA.

POLITICAL PARTIES IN BRAZIL:REINVENTION OR DEATH INTHE ERA OF DIGITAL DEMOCRACYAND LIQUID MODERNITY.

Daniel Borges de Abreu

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RESUMO: O artigo pretende esboçar, de maneira introdutó-ria, a ideia de necessidade de uma mudança de mentalidade dos partidos políticos do Brasil, sob pena de que, paulatina-mente, tal espécie de instituição seja cada vez menos deter-minante nos resultados das competições eleitorais. Para tanto, inicia-se com um relato do histórico descolamento entre as normas que regulam os partidos políticos, e suas existências reais. Na sequência, é traçado breve panorama de diálogo dos partidos com a sociedade, após o advento da Constituição da República de 1988, no qual predominou o uso do meio de comunicação de massa preponderante à época, a televisão, para veicular imagens de líderes pessoais em detrimento de programas partidários e alinhamentos ideológicos, o que colaborou para não criar partidos fortes, mas sim lideranças personalizadas. Muito embora se saiba que, historicamente, a política brasileira seja pautada por personalismos e cliente-lismos, são apontadas mudanças que, nos últimos anos, têm afastado ainda mais a necessidade do eleitorado analisar as agremiações políticas para a escolha do candidato preferido. Finalmente, sugere-se a liquidez das relações e a democracia digital, veiculada principalmente via redes sociais, como in-gredientes para a criação de um ambiente fértil para o declínio dos partidos políticos como atores de relevo nas eleições, mal-grado a dicção constitucional assim permaneça indicando, em um descolamento ainda maior da realidade social.

PALAVRAS-CHAVE: Partidos políticos. Constituição Fede-ral. Democracia digital.

ABSTRACT: The article intends to outline, in a introductory way, the idea of a need for a change in the mentality of the political parties in Brazil, otherwise it will gradually become

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less determinant in the results of the elections. To do so, it begins with an account of the historical detachment between the norms that regulate the political parties, and their real ex-istences. Following this, a brief overview of the dialogue be-tween parties and society was drawn up, following the advent of the 1988 Constitution, in which the use of the predominant means of mass communication at the time, television, was used to convey images of personal leaders in detriment of par-tisan programs and ideological alignments, which helped not to create strong parties but rather personalized leaderships. Al-though it is known that, historically, Brazilian politics is based on personalism and clientelismo, changes are recalled, which in recent years have further removed the need for the elec-torate to analyze the political associations for the candidate’s choice preferred. Finally, relationship liquidity anda digital democracy is suggested, mainly through social networks, as an ingredients for the creation of a fertile environment for the decline of political parties as important actors in the elections, despite the constitutional diction, thus indicating, in a detach-ment still social reality.

KEYWORDS: Political parties. Constitution. Digital democ-racy.

1. INTRODUÇÃO

Praticamente desde a independência, o Brasil contou com a presença de partidos políticos na dinâmica de poder estatal. Apenas durante o curto e crítico período do Primeiro Reinado, de 1822 a 1831, não se verificam partidos políticos relevantes, com personalidade à qual se poderiam atribuir direitos e obrigações ou

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baseados em uma estrutura grupal sistematizada; o que havia, e aos borbotões, eram os autoproclamados “movimentos”, frutos de pecu-liaridades regionais de um (fragmentado) país recém-criado, de di-mensões continentais e que nem de longe lembraria uma federação.

Tais movimentos consubstanciavam, enfim, heranças diretas do (frágil) ajuste de construção da nação, em um momento marcado por severas crises – social, financeira e, sobretudo, política. Entretanto, logo após esse breve período, e já prestes a iniciar a dé-cada de 1840, surgiu oficialmente o Partido da Ordem, derivado do movimento Regressista1.

Não à toa, e sobre o período, Raymundo Faoro (2008) leciona que:

A emergência dos partidos nacionais, estruturados no centro desde 1836, deu lugar a uma mudança na perspectiva tumul-tuária. O entrevero das facções locais obedecia, desde os pri-meiros passos de 1821, o cadinho provincial. O domínio da província, com a conquista do juiz presidente da mesa eleito-ral, definia o grupo vencedor. A heterogeneidade dos burgos se acomodava a um núcleo maior, politicamente valorizado pelo Ato Adicional de 1834, que, ao pretender federalizar o Império, queria congregá-lo numa coligação de províncias. Contra o esquema centrífugo operou o fortalecimento dos partidos nacionais, coincidentemente valorizados com a re-ação centralizadora, que culminaria na Lei de Interpretação (12 de maio de 1840) e não de 3 de dezembro de 1841, que se entrosam nas instruções eleitorais de 4 de maio de 1842. [..] O controle da Guarda Nacional, em 1850, fecharia o cír-culo de domínio de cima para baixo. Os partidos – já agora o liberal e o conservador – cobrem as facções locais, incor-porando-se ao seu mecanismo. As designações locais – os “cabeludos” em Alagoas, por exemplo, somem nos nomes dos partidos nacionais, não raro encampando as dissensões de família.

1 Para maior aprofundamento sobre o tema dos primeiros partidos brasileiros, vide “Partidos Políticos no Período Imperial”, acessível em www.mapa.an.gov.br - http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/297-partidos-politicos-no-periodo-imperial

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Após essa fase inicial, mesmo naqueles períodos em que a participação democrática foi reduzida – ou praticamente eliminada, as instituições partidárias, ainda que sob o viés formal e como instrumento de perpetuação de pequenos grupos no poder, permaneceram em funcionamento.

Prova de tal afirmação são tanto as idas e vindas da “Era Vargas”, de 1930-1945, quanto as diferentes fases do “Governo Militar”, 1964-1985, que se serviram, cada qual ao seu modo, de grupamentos políticos denominados formalmente como “partidos políticos”, ainda que com dissidências internas consideráveis: por exemplo, ao final do ano de 1965 foi exarado o Ato Institucional n. 2 que, regulamentado pelo Ato Complementar n. 4, instituiu o bipar-tidarismo: em seu art. 18, determinava que “ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros”.

E a nova arquitetura partidária surgiu em 1966: a Alian-ça Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foram os partidos criados a partir do Congresso Nacional – e não com gênese em ato que tenha partido da sociedade civil organizada. Tal movimento endógeno, por assim dizer, resultou em uma (previsível e exagerada) heterogeneidade interna em ambas as agremiações, as quais albergaram, por anos a fio, um sem número de células políticas que não guardavam relação direta entre si.

Ironicamente, na mesma época, movimentos políticos informais e até mesmo clandestinos, os quais não podiam levar o nome oficial de “partidos políticos”, eram indubitavelmente mais coesos sob o ponto de vista ideológico, se comparados aos partidos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, até então em nível de legis-lação não constitucional.

Contudo, a ironia não apenas persiste, mas se aperfeiçoa: o reconhecimento, pelo plano normativo constitucional, da existên-cia dos partidos políticos como integrantes do tabuleiro político brasileiro veio no ano de 1967, em pleno regime militar. As Cartas

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Constitucionais de 1824, 1891, 1934, 1937 é até mesmo a conside-rada inovadora Constituição de 1946 foram absolutamente omissas a respeito.

A Constituição Federal de 1967, assim, dois anos após o advento do Código Eleitoral, tratou dos partidos políticos em seu art. 149; a EC de 1969, no art. 152; a EC n. 2 de 1985, no art. 152, e a atual Constituição de 1988 trata no art. 17, como adiante será esmiuçado.

Ou seja, o caminhar histórico do constitucionalismo brasileiro demonstra o paradoxo de que em alguns dos momentos de prestígio substancial à democracia não houve espelhamento, no texto constitucional, via referência às agremiações partidárias, e em momentos de redução objetiva dos vetores democráticos, partidos políticos eram prestigiados expressamente na Constituição!

Tal estado de coisas permite demonstrar um intervalo significativo entre os textos constitucionais brasileiros e as alterna-das fases de protagonismo e ostracismos pelas quais passaram os partidos políticos no Brasil, nos últimos 170 anos.

Até mesmo porque a relação democracia/Constituição/partidos políticos, a ideia constitucional (sob os enfoques formal e material) de que os “partidos políticos são essenciais à democracia” surge apenas na Constituição Federal de 1988, sabidamente descri-tiva por uma série de motivos, mas sobretudo por ter sido elaborada sob o influxo de fortes anseios sociais represados durante duas déca-das, e espelhados no movimento “Diretas Já”.

Tais noções demonstrarão utilidade ao longo da presente exposição, sobretudo para dar suporte à hipótese central do presente estudo: a de que elementos surgidos nos últimos vinte anos reco-mendam aos partidos políticos brasileiros uma guinada na forma de dialogar com os cidadãos, sob pena de terem (cada vez mais) relati-vizadas e questionadas a suficiência ou necessidade de suas presen-ças para a efetivação da democracia representativa.

Ademais, os partidos políticos recebem atenção de estu-

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dos de Ciência Política desde o final da Segunda Guerra. Por um lado, a vantagem é uma literatura generosa, com categorizações utilizadas há décadas e algumas que adquiriram o rótulo de “clássicas”.

Sob aspecto diverso, contudo, a massiva análise sobre o mesmo conjunto de agremiações criou uma espécie de unicida-de conceitual um tanto anacrônica, um estereótipo partidário, pois praticamente todas as tipologias derivam de estudos de agremiações ocidentais europeias, de maneira que com frequência escapam das análises aspectos contextuais importantes, como o geográfico, o his-tórico e o cultural, por exemplo (GUNTHER e DIAMOND, 2003).

Ou seja, à expressão “partido político” foi aderida, com o passar do tempo, uma ideia baseada em linhas gerais estanques, uma espécie de constante de apreensão que se assemelha ao inconscien-te coletivo criado em torno do termo “nacionalidade”, como bem retrata o raciocínio sobre o túmulo do soldado desconhecido exis-tente na maioria dos países envolvidos em guerras: muito embora expressamente se admita que ele é desconhecido, na Argentina dirão ser argentino; nos Estados Unidos, norte-americano e, em França, francês2… Pouco importa se desconhecido; o soldado é, sempre, um nacional.

Assim, os partidos políticos. Muito se sabe, ou com fa-cilidade se conceitua o que é um partido político; contudo, esse “sa-ber” facilitado sobre o partido político, a conceituação sedimentada reproduzem o (acima narrado) descolamento entre existência fática e reconhecimento constitucional, sobretudo no momento atual brasi-leiro. Dito de outra maneira, partidos recentemente criados reprodu-zem modelos centenários.

De qualquer modo, o que se pretende fixar como premis-

2 “Nenhum impertinente se atreve a perguntar a respeito da “nacionalidade” do soldado desconhecido, pois é óbvio que seja françês, norte-americano ou argentino, conforme o país no qual esteja edificado o monumento”. (SALIBA, Elias Thomé. Reflexões sobre a nação e a memória, 1996).

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sa neste item inicial, é que o conceito do que venha a ser “partido político” tem uma “elasticidade” (GUNTHER e DIAMOND, 2003) que transportou a noção para o senso comum, para a opinião pública em geral, de modo que a moldura corrente sobre os partidos políti-cos é dificuldade que se acentua na era da denominada “democracia digital” e da “liquidez”.

E o melhor exemplo talvez seja, exatamente, a mais pres-tigiada categorização de partidos políticos (DUVERGER, 1951). A inegável contribuição priorizou a estrutura e o tipo de ligação do partido político com os estratos sociais – os “partidos de quadro” nitidamente ligados às classes mais abastadas, enquanto à classe tra-balhadora, o proletariado, restava a conexão com os denominados “partidos de massa”: ora, bem se nota (ainda que nesta simplificadís-sima análise da teoria, mesmo grosseira, com todas as escusas), que o critério de organização formal e o critério de ligação social pare-cem ser pouco úteis para classificar os partidos políticos contempo-râneos – principalmente aqueles que dominam as vitórias nas urnas, muito embora no sistema eleitoral brasileiro os derrotados também sejam muito importantes3.

O certo é que os países da Europa continental, sobretudo aqueles dos quais o Brasil tradicionalmente mais se abastece de ma-trizes jurídicas, tiveram experiências constitucionalistas com quatro décadas (Itália, 1947, e Alemanha, 1949) ou, pelo menos, uma déca-da (Portugal, 1976, e Espanha, 1978) de antecedência, situações que permitiram, com toda a certeza, um melhor diálogo entre o campo acadêmico com as realidades já postas dos partidos políticos, o que parece ter repercutido, nas décadas seguintes, no aperfeiçoamento de teorias conceituais mais adequadas àquelas realidades.

3 Na temática da geografia eleitoral, interessante estudo de Márcio Cunha Carlomagno demonstra que 45,2% do total de mais de 87 milhões de votos dados a candidatos proporcionais nas eleições de 2014 foram destinados a candidatos que alcançaram no máximo 999 votos. O contingente alcança mais de 39 milhões de votos.

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Acrescente-se que as quatro constituições citadas: Itália, Alemanha, Portugal e Espanha, determinaram o respeito aos direitos das minorias e a criação de tribunais constitucionais, com a reabilita-ção da argumentação jurídica e fortalecimento dos princípios. Nesse ambiente é que os partidos políticos daquelas nações se desenvolve-ram, estabeleceram relações com os eleitores, e puderam receber, já razoavelmente estruturados, a novidade midiática que modificaria a competição eleitoral nas derradeiras décadas do século XX.

A televisão.Todavia, no Brasil, o cenário de desenvolvimento dos

partidos políticos em ambiente democrático foi bem diverso e, em resumo, o seguinte: grandes anseios sociais, uma redemocratização tardia, uma infante Constituição altamente descritiva, a importação de conceitos acadêmicos forjados para agremiações de outros países, em outra época, e a existência de um meio de comunicação absolu-tamente avassalador, a já citada televisão, já estava absolutamente sedimentada.

Como consequência, a maioria dos partidos escolheu o caminho mais “fácil” para a vitória nas urnas: amealhar votos me-diante a exposição de personalidades na tela da televisão, no lugar de constituir quadros fortes de filiados e de militantes, mediante divul-gação de programas ideológicos claros, ao longo da década de 1990.

O personalismo da política brasileira vencia, mais uma vez, ensejando a terceira ironia: vitória em terreno democrático.

2. REGIME CONSTITUCIONAL DOS PARTIDOS POLÍTI-COS – E ALGUNS EFEITOS.

É certo que a redemocratização do país, a partir do ano de 1985, e a redação da Constituição de 1988, conformadora do sta-tus constitucional dos partidos políticos, repercutiram na importân-

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cia das agremiações para a democracia representativa.Também parece indiscutível que o art. 17 da CF/1988

reafirma a vocação (várias vezes demasiado) descritiva da Consti-tuição brasileira vigente, ao trazer contornos bem delineados sobre a estrutura e o funcionamento dos partidos políticos pois, para além do mero reconhecimento de existência, a Constituição Federal de 1988 cunhou um estatuto constitucional dos partidos políticos, erigindo--os a um prestígio normativo sem precedentes e potencializando a participação de tais atores no cenário político e eleitoral.

Nessa linha, a CF/1988 reconheceu a natureza jurídica dos partidos políticos – pessoas jurídicas de direito privado, e fixou o pluripartidarismo, ao nosso sentir como vetor intimamente relacio-nado com o pluralismo político consagrado no texto constitucional. Além disso, impôs o caráter nacional das agremiações partidárias, em correlação com o Pacto Federativo, de forma interna, ao mesmo tempo que, por razões de soberania e relações exteriores, impediu que os partidos políticos difundam em seus programas ideias que proponham submissão do Estado Brasileiro a outros estados ou orga-nismos internacionais, do qual decorre também a vedação de receber recursos financeiros ou de se subordinar a organismos estrangeiros.

E os partidos políticos também se tornaram protagonistas de batalhas jurídicas, pois nos termos do art. 103, VIII, da Constitui-ção de 1988, são legitimados a ajuizar demandas de cunho objetivo em ações de controle concentrado de constitucionalidade, desde que tenham representação no Congresso Nacional.

Nesse item, estudos demonstram que os partidos políti-cos passaram a ser, a partir da década de 1990, importantes players do exercício do controle de constitucionalidade concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, mediante o ajuizamento de Ações Di-retas de Inconstitucionalidade – ADINs, e Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADCs, na maioria das vezes pelas pequenas siglas partidárias ou agremiações componentes da minoria no Con-

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gresso Nacional, que utilizaram o órgão de cúpula do Poder Judiciá-rio para o exercício de papel contra majoritário, sobretudo em temas políticos polêmicos.

Em análise precedente (ABREU, 2012), afirmou-se que:

[...] partidos minoritários, durante as privatizações realizadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, ajuizaram diver-sas ações com a intenção de marcar posição ou demonstrar aos seus simpatizantes a posição contrária à da maioria parla-mentar, pois seria infrutífero trabalhar a reversão da posição majoritária na arena adequada, o parlamento.

Ou seja, ainda que haja a previsão de outros requisitos e vedações – dever de prestar contas à Justiça Eleitoral, funcionamento parlamentar, proibição de utilização de organização de caráter parami-litar, é certo que a tônica constitucional vigente pode ser condensada em um ponto principal: o da autonomia partidária pois, se de determi-nada maneira a redação constitucional foi lacônica na definição do se trata o “caráter nacional” ou o “funcionamento parlamentar” das greis partidárias, os congressistas constituintes deixaram clara a capacidade de autorregulamentação dos partidos políticos.

Ganharam força as matérias denominadas interna corpo-ris, tais quais a forma de estruturação, de organização e de funciona-mento, de hierarquia e de disciplina partidária, tendo como parâme-tro principal os princípios presentes no catálogo de direitos e garan-tias fundamentais – limites apenas na própria Constituição, portanto.

Ocorre que tal autonomia, ampla e legitimada constitu-cionalmente, parece ter obstaculizado, sobremodo nos grandes par-tidos, a efetivação de outra garantia constitucional, mas dos filiados partidários, qual seja, a de democracia interna.

Sistemas de “íngreme verticalidade interna” (MEZZA-ROBA, 2018) são comuns nos partidos políticos brasileiros, nos quais os filiados não dirigentes praticamente não participam da vida partidária, a não ser como cabos eleitorais, sendo posicionados à

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margem das instâncias decisórias.Note-se que DAHL (1997) alertara que a representação

política se molda em blocos de interesse, e que um quadro poliárqui-co se estabelece via pressões políticas, distanciando aqueles que não se filiam aos grupos majoritários. O fenômeno também ocorre no seio dos partidos políticos.

Daí, é bastante comum que conflitos internos aportem no Poder Judiciário, e a doutrina refere que determinados ambientes partidários podem ser bastante antidemocráticos (ARAS, 2011). As discussões jurídicas e políticas sob a expressão “fidelidade partidá-ria”, a propósito, criaram um cipoal de normas de precedentes judi-ciais de severa complexidade e dificílima aferição em determinados casos concretos.

Não é um caminho sem percalços portanto, pois rapida-mente se perceberam exageros verdadeiramente ditatoriais no seio daquelas organizações que deveriam exatamente, note-se o parado-xo, construir a redemocratização do país. Já em 1996, o Tribunal Superior Eleitoral firmou precedente que, a partir de então, pautou toda a jurisprudência da Justiça Eleitoral no que diz respeito à pos-sibilidade de interferência da Justiça Eleitoral no funcionamento dos partidos políticos:

a autonomia a que se refere o preceito constitucional diz res-peito ao estabelecimento de normas que tenham por escopo delinear a estruturação de seus quadros, o estabelecimento de órgãos partidários e seu funcionamento. [...] contudo, uma vez estabelecidas tais normas, delas decorrerão direitos subjetivos que uma vez violados poderão ser amparados pelo Poder Judiciário, a teor do art. 5, XXXV, da Cons-tituição Federal. E nisso não haverá qualquer vilipêndio ao princípio da autonomia partidária, ao contrário, cuidar-se-á de revelar o exato sentido das normas definidas pelo próprio partido, pois não seria possível caracterizar o partido polí-tico como um verdadeiro enclave, em que o único remédio deixado à disposição dos filiados desrespeitados em seus di-reitos seria o de abandonar a agremiação. [...] por ser célula

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fundamental no sistema democrático, o partido não pode se transformar em organização cuja vida seja regida à margem da lei. (Recurso Especial Eleitoral n. 13.750, de 12.11.1996). (Grifei)

Além disso, a criação desses verdadeiros estamentos fez perpetuar dificuldades que a redação constitucional de 1988 exata-mente visava a evitar: muito embora de caráter nacional persistem, em cada região brasileira, líderes locais, no mais das vezes forjados no seio de uma mesma família, sendo frequente que partidos reali-zem coligações diferentes pelo Brasil afora.

E o tema, aliás, chegou até o Poder Judiciário, causan-do uma batalha interessante: a obrigatoriedade de verticalização das coligações vigorou nas eleições do ano de 2002, a partir de uma in-terpretação do Tribunal Superior Eleitoral, e foi objeto de reação da classe política, pois o Congresso Nacional modificou a Constituição, via EC n. 52/2006, assegurando aos partidos políticos a possibilida-de de coligações multifacetadas, o que tem permitido uma série de situações inusitadas.

Sobre o arranjo dos diferentes interesses dos integrantes dos partidos políticos, ARAS (2016) resgata a discussão ocorrida na Itália dos anos 1960, os apontamentos de Bobbio sobre uma ine-vitável partidocrazia nas democracias de massa, bem como a deci-são da Corte Constitucional italiana na época, no sentido de que os partidos não poderiam criar normas de destituição do parlamentar de seu mandato, nos casos em que o mandatário manifestasse voto contrário à posição indicada pela grei.

E, a seguir, o autor faz uma advertência que merece transcrição:

Os riscos que a ditadura partidária oferece à democracia ser-vem de alerta sobre a urgente necessidade de superarmos um fenômeno que o antecede, consistente no totalitarismo inter-no, através da observância dos princípios constitucionais que

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estruturam o Estado, sem perder de vista que imprescindível equilíbrio para o regime está na preservação do fiel da balan-ça: o exercício da liberdade com a responsabilidade social.

Tais espécies de idiossincrasias apenas reforçam as per-cepções negativas acerca dos partidos políticos, tendo razão MOR-GENTAL (2018) ao afirmar, já na introdução de seu trabalho, que “Nenhuma instituição democrática sofre tanto com a falta de credi-bilidade quanto os partidos políticos. Embora o grau de confiança varie entre as agremiações, parece evidente que o sistema partidário como um todo é alvo de ceticismo, quando não de desprezo”.

Como um efeito desse paulatino “descolamento” dos partidos políticos, e visando a otimização de resultados nas urnas, notou-se um movimento interessante no final da década de 1990 e primeiros anos 2000: as agremiações passaram a utilizar pesquisas de opinião, e não apenas de intenção de voto, bem como grupos focais são empregados, tudo com vistas a customizar a publicidade em épocas eleitoral, lembrando que tais ações ocorrem em detrimen-to da divulgação das diretrizes ou do programa partidário. Dito de outro modo, os partidos procuraram agradar aos “clientes”, o eleito-rado, e não arregimentar cidadãos que simpatizem com as ideias da agremiação.

Ademais, modificações ocorridas no próprio tecido so-cial ao longo dos últimos vinte anos reduziu, e muito, a importância da pauta mais tradicional da maioria dos partidos políticos, a cliva-gem de classes, e novas questões passaram a influenciar as políticas partidárias: na Europa, por exemplo, as questões da imigração e da xenofobia ou, no Brasil, os exemplos dos direitos de gênero ou de sexualidade deslocaram-se para o patamar mais alto na gradiente de importância, como tópicos de discussão social.

Nessa mescla de circunstâncias: imagem desgastada e necessidade de posicionamento sobre novas pautas, é que os parti-dos políticos encontram momento absolutamente crítico da própria

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existência, sendo sistematicamente deixados de lado pelo eleitorado e, situação extrema, pelos próprios candidatos e detentores de cargos eletivos.

Situações pouco usuais anos atrás – um parlamentar votar em posição contrária à orientação da respectiva bancada, por exemplo, estão ganhando sensível banalização, sobretudo no “ecos-sistema” político que se desenha, de facilitado accountability per-manente de parte daquele que se deseja agradar, o internauta/eleitor.

Não se desconhece que, tradicionalmente, a política bra-sileira sempre foi fortemente arraigada na escolha pessoal, e não ideológica, talvez com raízes no voto de cabresto tão bem retratado em Coronelismo, Enxada e Voto (LEAL, 2012). O que se percebe, contudo, é que a reabertura democrática, com ingredientes como o monopólio partidário na efetivação da democracia representativa, somada à preponderância de um instrumento de comunicação como a televisão no diálogo (ou monólogo?) com as massas, parece ter agravado o caráter personalista de todos os partidos políticos brasi-leiros, em maior ou menor medida, inclusive dentre aqueles que se denominam ideológicos.

Ocorre que, com a alvorada do século XXI, veio também a grande guinada trazida pela Revolução Digital, na qual o acesso aos aparelhos de computação e à internet se popularizou exponen-cialmente, com grande impacto em toda a espécie de relações.

E, também, na competição eleitoral.

3. COMPETIÇÃO ELEITORAL, DEMOCRACIA DIGITAL E MODERNIDADE LÍQUIDA.

Foi um impacto colossal. Barack Obama tornou-se pre-sidente da nação mais poderosa do mundo alavancado pela internet. O lema “Yes, we can” e o financiamento da campanha ecoaram por

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toda a world wide web.Obviamente, o cenário partidário norte-americano é bem

diverso do brasileiro. Mas o ocorrido no ano de 2008 foi o sinal de-finitivo para todo o mundo, especialmente o Ocidente: nenhuma ou-tra decisão política passaria incólume à influência da internet, como bem demonstraram episódios posteriores como os de Trump e do Brexit.

De certa forma, a eleição de Barack Obama apenas con-cretizou um fenômeno que vinha sendo observado, ainda que de ma-neira difusa, pela Ciência Política. Estudos anteriores a 2008 (por exemplo DALTON e WATTENBERG, 2000) já indicavam a anemia de grupamentos “físicos” tradicionalmente vinculados aos partidos políticos – movimentos sindicais, por exemplo, e o fortalecimento de um comportamento ativista via internet, de maneira individuali-zada: solitariamente, em seu perfil cadastrado em alguma rede so-cial, o cidadão milita, opina e expõe preferências de voto.

No Brasil, o processo é visível e já há um considerável corpo de estudiosos debruçados sobre o tema. As eleições de 2012, 2014 e 2016 sofreram, em grau crescente, a influência das ferramen-tas digitais: Facebook e Twitter inicialmente, aos que se juntaram Whatsapp e Instagram.

Contudo, a maior parte dos exames, que partem geral-mente do “prognóstico de um declínio irreversível dos partidos como os conhecemos no século passado”, na feliz expressão de REIS (2018), volta os olhos para os efeitos dessa “ilusão de prota-gonismo difuso” no regime democrático em si mesmo, dada a opção direta que a internet e as redes sociais proporcionam aos cidadãos.

A televisão (ao menos em seu formato originário), lem-bremos, impõe passividade ao eleitor de forma que as campanhas eleitorais brasileiras, desde 1988, eram apresentadas à sociedade brasileira com caráter de dogmas pelo establishment, os partidos políticos, pouco importando a proposta veiculada. Eventuais con-

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testações ocorriam, sempre, apenas entre os competidores eleitorais. Tratava-se do “debate entre os candidatos”, agora ocorrente o tempo todo entre os eleitores, simpatizantes e, muitas vezes, entre eleitores e os próprios candidatos, no ambiente da internet.

Por óbvio, o esboço de uma grande “ágora” digital é se-dutor: o exercício da livre manifestação do pensamento político, a construção de soluções com a facilidade de informação e troca de opiniões.

Contudo, o novo panorama impõe também preocupa-ções. As redes sociais já comprovaram que não são meras repro-duções digitais de “mesas de bar”: opiniões e versões de fatos têm alcance imenso, em velocidade exponencial.

Note-se que os reflexos desse “giro dialético” da com-petição eleitoral são vários: afetaram, por exemplo, a ocorrência de propagandas eleitorais irregulares na internet, no decorrer das elei-ções do ano de 2018.

No campo da Ciência Política, sinaliza-se que manifes-tações difusas, individualizadas, tópicas, perdem coesão e organi-zação, de modo que um argumento válido é o de que a “democracia digital”, nos termos atuais, poderia inclusive colaborar para que o exercício do poder permaneça nas mãos daqueles grupos já domi-nantes, via poderio econômico – o lucro líquido (friso, lucro líquido) do Facebook no ano de 2018 ultrapassou os 22 bilhões de dólares.

REIS (2018), com razão, leciona que:

Por isso tenho sustentado que, malgrado aparências em con-trário, de fortalecimento da posição do cidadão desorganizado que se manifesta individualmente pelas redes, são os detentores de poder econômico os beneficiários da fragilização das associações e dos partidos na política (Reis 2015).De fato, porém, a crítica e a desconfiança em relação aos intermediários na política chegou para ficar. Uma vez viabi-lizada a manifestação descentralizada por todos, instala-se uma rejeição difusa, tecnologicamente condicionada, de toda burocratização da política, aprisionada não só no interior das

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instituições parlamentares — mas também nas associações for-mais, nos sindicatos e nos partidos. O desafio que se apresenta para a democracia é tremendo. Dispensar intermediários, mais do que promover o autogoverno, nos priva de cruciais instân-cias de responsabilização política, sem as quais nos veremos desprovidos de mecanismos de controle (precários que sejam) sobre elites que fatalmente se formarão.Essa conclusão talvez seja contraintuitiva, e mereça esclare-cimento. Como o noticiário sobre corrupção , mundo afora, invariavelmente implica fortemente as estruturas dos princi-pais partidos, hoje largas fatias de opinião se inclinam (e não apenas no Brasil) por se livrarem deles (nem que seja, inge-nuamente, apenas dos partidos “existentes”) como forma de combate à corrupção. Como partidos são mediadores entre organizações civis e as decisões políticas (e, nessa condição, tornam-se os principais corretores da barganha política junto ao público), sua mera existência realmente faz deles atratores de um esforço por atores interessados em cooptá-los. Ou seja, eles sempre, por definição, operam sob assédio sistemático de representantes de interesses econômicos distintos, uns inevita-velmente mais poderosos que outros, orientados para influen-ciar (e, se for possível, comprar) suas plataformas.

O mais alarmante, todavia, é perceber que tal “dispen-sa de intermediários” vem sendo praticada não apenas pelos elei-tores, mas também por candidatos, ainda que de forma velada. Nas eleições gerais do ano de 2018, houve casos de candidatos a cargos proporcionais – deputados estaduais e deputados federais, que não indicavam na respectiva propaganda eleitoral a sigla pela qual con-corriam, ou indicaram de maneira dificilmente visível, o que desobe-dece às normas de regência eleitorais, inclusive.

É sabido que o personalismo político brasileiro possui a característica de os candidatos a cargos proporcionais aderirem a causas específicas – direitos de minorias, dos animais, esporte ou cultura. Não é raro que personalidades ligadas a clubes de futebol ou, no Rio Grande do Sul, à cultura gaúcha, deem ênfase a temáticas específicas para lograr eleição.

Contudo, geralmente tais propostas vêm acompanhadas

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da propagação do partido político, somando-se a simpatia àquela cau-sa à militância partidária. Não foi o que ocorreu em alguns casos – e aqui vai o exemplo mais frequentemente identificado, o daqueles sim-patizantes do “Movimento Brasil Liberal”, o MBL. O movimento se autoproclama apartidário (circunstância que ironicamente parece lhe conferir um “certificado de idoneidade”), e teve a força de afastar os candidatos dos próprios partidos, em um cálculo de rendimentos elei-torais, dado o desgaste das siglas. Não foram poucos os candidatos que se identificavam como o candidato do “MBL”, em detrimento à vinculação partidária.

Mas não somente devido a outros movimentos organizados se percebeu o fenômeno da “candidatura envergonhada”: por diversos motivos (escândalos de corrupção, posicionamentos ultraconservado-res, utilização de candidatas mulheres como “laranja”, etc.) candida-tos pelo Brasil afora se esforçaram, ao máximo, desvencilharem-se das legendas às quais estão filiados, em um curioso confronto entre a Constituição Federal escrita, decorrente de uma decisão política do titular do poder constituinte (Carl Schmitt) que prestigia os partidos políticos, versus uma espécie de “Constituição das ruas” resultado de uma soma dos fatores reais de poder (Ferdinand Lassale) na qual mui-tas vezes o candidato entende prejudicial à sua eleição ser identificado como integrante das fileiras de uma agremiação.

Essas as circunstâncias do ápice desse descolamento nor-mativo/fático relativo aos partidos políticos, sobre o qual as agremia-ções deviam, certamente, ter maior atenção, sobretudo em tempos de liquidez.

É certo que, antes de BAUMAN (2005), Karl Marx e Frie-drich Engels já haviam definido a época moderna como aquela que realizaria a desconstrução de todas as anteriores, relativizando as ins-tituições construídas ao longo do século, como a família e a religião.

Mas BAUMAN vai além, ao genialmente cunhar o termo liquidez para retratar uma espécie de “lógica de conduta” que

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baseiam as relações, de todas as espécies, na contemporaneidade. Nesse contexto volátil, fluido e incerto, a insegurança abala referenciais culturais, religiosos, institucionais e morais. Instaura-se uma mentalidade do “agora” e da precariedade e artificialidade.

Foram, e estão sendo, contestados todos e quaisquer pontos de vista – também os políticos e as instituições que participam dessa arena; Bauman explica que a atual configuração difere daquela ocorrente até a década de 1970 (a qual denomina “modernidade sólida”) porque, no período anterior, a desconstrução se dava de modo criativo, propositivo.

Na modernidade líquida, ao contrário, os referenciais são, exatamente, a ausência de referência, liquefazem-se e, assim, são perdidos. A classe social, as instituições religiosas, o grupo familiar, a pátria ou nação e, com especial valor ao presente estudo, a ideologia política foram substituídos pelo consumismo desenfreado, à redução de valores (e pessoas, por que não?) em mercadoria, com reflexos nítidos em processos de perda de engajamento das coletividades e perda de força dos espaços públicos, dos códigos sociais.

É um tempo, portanto, de individualização de projetos, em um tecido social cada vez mais seletivo, de conexões.

Esse termo, conexões, é trazido por Bauman para demonstrar a natureza das atuais relações: é possível ter-se muitas conexões ao mesmo tempo, de maneira que a desconexão é sempre facilitada. A conexão mercantiliza, tem características de consumo, sempre dá opções, permitindo a análise de vantagens e desvantagens da desconexão. Tudo passa a ser o exercício de escolha da melhor opção para o projeto pessoal, sem a validação institucional de qualquer espécie.

Ora, se os imperativos de conexão, de consumo, de busca de projeto individual baseiam contemporaneamente todos os

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aspectos das vidas das pessoas (como afirma Bauman, até mesmo no sexo e no amor), por que não pautariam, também, a escolha dos candidatos, à margem da instituição correlata, o partido político?

4. CONCLUSÃO

A reabertura democrática foi generosa com os partidos políticos. Formalmente, fez constar na Constituição Federal de 1988 um estatuto com uma série de prerrogativas, e bastante autonomia, liberdade para auto determinação.

Ao mesmo tempo, os partidos brasileiros, ao contrário dos países dos quais herdou as mesmas diretrizes de constituciona-lismo, tiveram sua infância quando o principal meio de comunicação de massa, a televisão, já se encontrava absolutamente disseminado, de modo que o principal modo de fortalecimento dos grandes parti-dos políticos brasileiros não ocorreu nas ruas, na militância indivi-dualizada fazendo proliferar os ideais partidários, mas sim em frente às câmeras, sem pretender adesão ideológica, mas sim apenas a arit-mética da eleição, a contagem do voto.

Essa postura massivamente catch-all, ocorrida com for-ça no correr dos anos 1990 e 2000, gerou uma pasteurização parti-dária, no que colaborou a facilitada legislação brasileira relativa à criação e fusão de partidos, época em que se banalizou a expressão “partidos de aluguel”.

Sobreveio a revolução digital. De um cenário de monó-logo imposto, migrou-se para o diálogo (?) desenfreado, a ágora tec-nológica em que todos falam, ninguém escuta.

Por óbvio, atitudes internas como o sistemático bloqueio de minorias, talvez a mais nítida a relativa exatamente à participação efetiva das mulheres nas tomadas de decisão intrapartidárias e candi-daturas, acabam afastando dos partidos políticos, ainda mais, a aten-

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ção de uma nova geração que adquire direitos políticos, nativa de um ambiente permeado por tolerância e pautado pelo compartilhamento (de veículos, de hospedagem), e pela liquidez nas relações.

Nessa ordem de ideias, e antes mimados por estruturas midiáticas gigantesca (fácil lembrar dos “marqueteiros”), os partidos devem perceber que velhas fórmulas não são mais eficazes: o maior tempo de televisão e cifras astronômicas de gastos de campanha já não garantem vantagem – figura conhecida de partido importante de-teve, em 2018, o maior tempo de televisão na candidatura para o car-go de Presidente da República, com resultados pífios e, no decorrer da campanha houve debandada de candidatos (do mesmo partido) a outros cargos, para outra candidatura que se mostrava mais viável, alicerçada em baixo custo e repercussão nas redes sociais.

Portanto, a indiferença aos partidos políticos, antes pre-sente unicamente no eleitorado, surge, com a democracia digital e a liquidez das relações, também entre os próprios filiados (!) candida-tos a cargos eletivos.

Na busca do projeto pessoal, os candidatos podem se descolar, cada vez mais das agremiações às quais pertencem. Perten-cimento formal, frise-se.

Pois substancial e liquidamente, desconectam-se.O partido político, bem de consumo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EXPECTATIVA DEPARTICIPAÇÃO EM UMACOMUNIDADE DE PRÁTICAS DE UMA ORGANIZAÇÃO PÚBLICA

Rafael Fabiano Ravazolo

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RESUMO: O artigo analisa a expectativa de quatro fu-turos participantes de uma Comunidade de Práticas que será implantada em uma organização pública. O estudo de caso foi conduzido por meio de análise documental e de entrevistas e seus resultados indicam que, apesar da predisposição das pessoas em participar da comunidade, a organização possui alguns fatores culturais potencial-mente negativos que podem prejudicar o compartilha-mento de conhecimento e o funcionamento eficaz da comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: Gestão do conhecimento. Co-munidade de prática.

ABSTRACT: The article analyzes the expectation of four future participants of a Community of Practices that will be implemented in a public organization. The case study was conducted through documentary analysis and interviews and its results indicate that, despite people’s willingness to participate in the community, the organi-zation has some potentially negative cultural factors that may hamper knowledge sharing and the effective func-tioning of the community.

KEY-WORDS: Knowledge management. Community of practices.

1. INTRODUÇÃO

Gerenciar o conhecimento implica criar infraestruturas sociais e materiais que encorajem o compartilhamento, a aplicação

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e a criação de conhecimento1. Atualmente, as organizações são al-tamente dependentes de recursos baseados no conhecimento2, por isso a Gestão do Conhecimento (GC) passou a receber muita atenção de profissionais e acadêmicos. O número de publicações sobre GC cresceu exponencialmente desde a virada do século, ampliou-se o espectro de áreas de pesquisa3 e importantes trabalhos4 inspiraram a criação de tipologias, ferramentas, modelos e contextos férteis para o conhecimento.

Dentre as estruturas adotadas pelas organizações para capturar e espalhar conhecimento, podem-se citar times multifuncio-nais, unidades focadas em produtos ou clientes, portais corporativos, grupos de trabalho e comunidades de prática (CdPs).

As CdPs têm emergido como uma forma interessante de complementar as estruturas existentes e de estimular o compartilhamento, o aprendizado e a mudança no conhecimento or-ganizacional5. As CdPs são grupos de pessoas que compartilham uma preocupação ou uma paixão por algo e que interagem regularmente para aprender como fazê-lo melhor6. Em outras palavras, são pessoas que se unem e interagem em prol de um mesmo tópico ou interesse e que trabalham juntas (trocando experiências, desenvolvendo no-vas práticas e soluções) para achar meios de melhorar o que fazem. Tendo em vista as características dinâmicas e informais das CdPs, pesquisas têm sido conduzidas para entender seus benefícios e limi-tações em diferentes contextos organizacionais7: presencial, virtual,

1 DAVENPORT & PRUSAK, 2000.2 CHOI, POON, & DAVIS, 2008.3 RAGAB & ARISHA, 2013.4 HANSEN, NOHRIA, & TIERNEY, 1999; NONAKA, 1994; NONAKA & KONNO, 1998 E NONAKA & TAKEUCHE, 2008.5 WENGER & SNYDER, 2000.6 WENGER, MCDERMOTT, & SNYDER, 2002.7 HARVEY, COHENDET, SIMON, & DUBOIS, 2013; HSU, JU, YEN, & CHANG, 2007; LOYARTE & RIVERA, 2007; PLESSIS, 2008; SMITH & MCKEEN, 2002; SOUZA-SILVA, 2009.

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local, global, dinâmico, burocrático, privado, público etc.O foco deste artigo está no contexto do serviço públi-

co. Na esfera pública, histórica e culturalmente orientada de forma burocrática, as normas e a hierarquia rígida geram feudos de co-nhecimento, dificultando seu compartilhamento entre funcionários e departamentos8. Neste contexto, as CdPs promoveriam grandes melhorias, mas, ao mesmo tempo, enfrentariam fortes desafios em relação à sua implementação.

Há poucos exemplos documentados de organizações que deliberadamente criaram CdPs e, destes, nenhum oferece dados com riqueza suficiente para avaliar o processo9. A inspiração para este estudo surgiu da recente formalização, por parte de uma organização pública do estado do Rio Grande do Sul, de sua Política de Gestão do Conhecimento. Está prevista, como uma das ações incipientes da política, a criação de uma Comunidade de Prática. Tal fato gerou uma oportunidade ímpar para compreender:

1) qual é a expectativa dos potencias participantes de uma comunidade de prática em uma organização pública?

2) as características previstas para essa comunidade são condizentes com aquelas preconizadas na literatura?

O objetivo deste artigo, portanto, é responder esses dois questionamentos, e, para isso, o texto está estruturado da seguinte forma: a seção 2 traz a revisão teórica sobre CdPs, mostrando as mu-danças sofridas na sua definição ao longo do tempo e seus principais elementos. Na seção seguinte são descritos o contexto e o método adotado. Na seção 4 são apresentados os resultados obtidos e, por fim, conclusões, restrições e sugestões de pesquisas futuras.

8 OSBORNE & GAEBLER, 1998.9 HARVEY ET AL. 2013.

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2. REVISÃO TEÓRICA – COMUNIDADES DE PRÁTICA (CdPs)

CdPs são grupos de pessoas que resolvem se unir para realizar empreendimentos comuns com vistas ao desenvolvimen-to em um domínio de conhecimento vinculado a uma determinada prática10. Elas discutem suas situações, aspirações e necessidades, exploram ideias e ações, criam ferramentas, documentos, ou sim-plesmente desenvolvem um entendimento tácito daquilo que com-partilham. Com o passar do tempo, é formado um corpo comum de conhecimentos (tácitos e explícitos) e práticas, podendo se estabe-lecer relações pessoais e um senso de identidade no grupo. CdPs se diferenciam de outros tipos de grupos ou redes, como equipes de projetos e operacionais, por características como: aprendizagem como elemento-chave; adesão voluntária e confiança mútua; senti-mento de que aquilo que estão fazendo gera valor, mesmo sem uma agenda ou plano de ação definido11.

A efetividade de uma CdP depende da força de três pila-res: domínio, comunidade e prática12. Domínio é o foco da comuni-dade, o tópico; comunidade é o relacionamento dos membros, suas atividades e discussões que permitem o aprendizado mútuo; prática consiste no repertório de recursos (ferramentas, experiências, habili-dades) dos membros, é o “fazer” dentro do contexto.

O quadro a seguir sumariza elementos encontrados na literatura sobre Comunidades de Prática e os respectivos autores que os citam.

10 WENGER, 2004.11 SMITH & MCKEEN, 2002.12 WENGER & SNYDER, 2000.

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Elementos das CdP Autores

Domínio – foco da comunidade, área de interesse/conhecimento que une seus participantes.

Harvey et al. (2013); Hsu et al. (2007); Ples-sis (2008); Probst & Borzillo (2008); Souza-Silva (2009); Tarmizi, Vreede & Zigurs, 2006; Terra & Bax (2005); Wenger & Sny-der (2000); Wenger, McDermott & Snyder (2002); Wenger (2004).

Comunidade – relacionamento, ajuda mútua, interação, senso de identidade, compartilhamen-to e reconhecimento.

Todos os autores citados no artigo.

Prática - repertório de recursos (ferramentas, experiências, ha-bilidades) dos membros.

Todos os autores citados no artigo.

Infraestrutura adequada ao desenvolvimento da CdP – re-cursos e tecnologia, fornecidos pelas organizações, que favore-cem a cooperação.

Ardichvili, Page & Wentling (2003); Borzil-lo (2009); Cox (2005); Davenport & Prusak (2000); Harvey et al. (2013); Hsu, et al. (2007); Loyarte & Rivera (2007); Moura & Andrade (2006); Picchiai, Oliveira e Lopes (2007); Plessis (2008); Souza-Silva (2009); Terra & Bax (2005); Wenger & Snyder (2000); Wenger (2004); Zboralski (2009).

Patrocinador – membro da alta administração que apoia a CdP, provendo-a de tempo e recur-sos.

Ardichvili, Page & Wentling (2003); Borzil-lo, (2009); Harvey et al. (2013); Probst & Borzillo (2008); Wenger (2004); Wenger and Snyder (2000); Wenger, McDermott & Sny-der (2002); Zboralski (2009).

Líder – atua como coordenador, mas não é superior hierárquico na estrutura da CdP. Sua função é conectar as pessoas e acom-panhar o desenvolvimento das melhores práticas.

Borzillo (2009); Borzillo & Kaminska-Lab-bé (2011); Loyarte & Rivera (2007); Probst & Borzillo (2008); Terra & Bax (2005); Wenger (2004); Wenger, McDermott & Sny-der (2002); Zboralski (2009).

Facilitador – provê informa-ções, encoraja o grupo e busca criar um ambiente participativo. Alguns autores não distinguem o papel de facilitador e atri-buem ao líder suas funções.

Harvey et al. (2013); Moura (2009); Probst & Borzillo (2008); Tarmizi, Vreede & Zigurs (2006); Terra & Bax (2005); Wenger (2004); Zboralski (2009).

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Elementos das CdP Autores

Participantes – membros que aderem voluntariamente à CdP, de acordo com suas motivações.

Cox (2005); Harvey et al. (2013); Hsu et al. (2007); Moura (2009); Plessis (2008); Probst & Borzillo (2008); Souza-Silva (2009); Tarmizi, Vreede & Zigurs, 2006; Terra & Bax (2005); Wenger & Snyder (2000); Wenger, McDermott & Snyder (2002); Zboralski (2009).

Objetivos claros, metas – geram responsabilidade e motivam os membros a contribuir.

Borzillo (2009); Borzillo & Kaminska-Labbé (2011); Hsu, et al. (2007); Loyarte & Rivera (2007); Plessis (2008); Probst & Bor-zillo (2008); Terra & Bax (2005).

Medidas de avaliação do valor gerado pela CdP.

Borzillo (2009); Borzillo & Kaminska-Lab-bé (2011); Probst & Borzillo (2008); Wenger & Snyder (2000)

Ampliação dos vínculos além das fronteiras da CdP - en-gajamento dos membros em melhores práticas por toda a organização.

Cox (2005); Plessis (2008); Borzillo & Kaminska-Labbé (2011); Probst & Borzillo (2008); Wenger (2004); Wenger, McDermott & Snyder (2002); Zboralski (2009).

Confiança mútua entre os mem-bros - ambiente de liberdade e de segurança.

Ardichvili, Page & Wentling (2003); Borzil-lo (2009); Choi, Poon & Davis (2008); Cox (2005); Davenport & Prusak (2000); Harvey et al. (2013); Hsu, et al. (2007); Loyarte & Rivera (2007); Moura (2009); Picchiai, Oliveira e Lopes (2007); Plessis (2008); Probst & Borzillo (2008); Smith & McKeen (2002); Souza-Silva (2009); Tarmizi, Vreede & Zigurs (2006); Terra & Bax (2005); Zboralski (2009).

Quadro 1 – Elementos das comunidades de prática e pesquisas relacionadas.

CdPs acabam por reunir pessoas que, no curso normal de trabalho, jamais se encontrariam. Oferecem não uma alternativa às estruturas formais, mas um complemento às mesmas. Seu cará-ter voluntário, não hierárquico, de autogestão e, na maior parte dos casos, sem métricas bem definidas, representam um enorme desafio

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para implementação formal e para a necessidade latente de controle existente no corpo gerencial das organizações13. Por tais motivos, há pesquisadores céticos quanto ao uso de CdPs como ferramentas gerenciais. Para Moura e Andrade (2006), a gestão de CdP pelas or-ganizações é uma impossibilidade conceitual, resultando num para-doxo: devido à sua natureza de liberdade e autogestão, ao gerir-se externamente uma CdP ela deixa de existir. Na mesma linha, Harvey et al. (2013) concluem que as CdPs não servem para todos os tipos de organização e recomendam que elas sejam entendidas mais como fenômenos sociais e menos como ferramentas organizacionais.

Conquanto as críticas sejam pertinentes, Comunidade de Prática é um conceito recente e dinâmico. Deve-se considerar que, nas pesquisas seminais, como a de Ettiene Wenger no início da déca-da de 1990, as CdPs eram tratadas como sistemas sociais autônomos, informais e autoemergentes. Entretanto, alguns pesquisadores con-sideravam essa visão irrealista e contrária aos objetivos organizacio-nais básicos e, por isso, pesquisas mais recentes passaram a mostrar que, na prática, gestores tentam guiar e dar suporte à formação de CdPs. Atualmente, o próprio Wenger passou a adotar um nova vi-são14, na qual as relações podem ser canalizadas para atender aos interesses das organizações por meio do fornecimento de estruturas, incentivos e meios técnicos. Por tais motivos, talvez ainda sejam necessários mais estudos antes de se emitir uma opinião peremptória sobre os elementos de uma CdP e sua aplicabilidade como ferramen-ta gerencial nas organizações.

As CdPs, portanto, surgiram com um viés de sociali-zação em torno de uma prática e, nas pesquisas mais recentes, são vistas como uma ferramenta que pode ser patrocinada e gerenciada para criar conhecimento útil à organização. Como forma de iniciar

13 TERRA & BAX, 2005.14 WENGER & SNYDER, 2000; WENGER, MCDERMOTT & SNYDER, 2002.

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Revista do Tribunal Regional Eleitoral - RS 261as comunidades e também de sustentá-las com o passar do tempo, os gestores devem identificar comunidades potenciais capazes de acen-tuar as competências estratégicas da instituição e proporcionar-lhes a infraestrutura necessária para apliquem de forma eficaz os conhe-cimentos especializados. A liderança exigida em uma CdP é bem distinta, pois além de manter a comunidade com um alto nível de energia, líderes não podem ter uma atitude controladora ou voltada essencialmente para a realização de tarefas. Além disso, em CdPs a comunicação tende a ser ampla e a incluir tópicos que não estão ne-cessariamente relacionados de forma direta com a tarefa ou projeto de trabalho15.

Wenger, McDermott & Snyder (2002) prescrevem sete princípios para cultivar CdP:

1. Desenhar a CdP pensando na sua evolução, permitin-do que novas pessoas se envolvam e que novos interesses sejam ex-plorados;

2. Manter o diálogo e encorajar discussões entre as pes-soas de dentro e de fora da comunidade sobre os resultados espera-dos;

3. Respeitar os diferentes níveis de participação, tendo em mente que algumas pessoas serão bastante ativas, enquanto ou-tras parecerão passivas;

4. Desenvolver espaços abertos e fechados, formais e in-formais;

5. Focar no valor que a CdP pode gerar para a organiza-ção e dar feedback sobre o desempenho;

6. Combinar familiaridade e estímulos, mantendo as pes-soas confortáveis e engajadas;

7. Criar um ritmo para a comunidade, com eventos e es-tímulos regulares. Os próprios autores reconhecem que não é fácil sustentar CdPs e integrá-las ao resto da organização.

15 TERRA & BAX, 2005.

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Por fim, no que se refere a facilitadores da implementa-ção de uma CdP, cabe citar a importância de um ambiente fecundo à aprendizagem organizacional, ou seja, uma cultura organizacional favorável, com clima positivo para comunicação, suporte mútuo e compartilhamento, além da confiança e pré-disposição dos membros em compartilhar conhecimentos.

3. MÉTODO

O método empregado foi a pesquisa qualitativa por meio de um estudo de caso, o qual, segundo Yin (2010), é uma investiga-ção empírica de um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidos. O fenômeno a ser estudado é revelador, pois é pouco acessível à investigação: as expectativas dos potenciais participantes de uma comunidade de prática que será implementada em uma organização pública. Como a temática está imbricada com contexto do estudo – entender a apli-cação de uma ferramenta moderna em um ambiente altamente buro-cratizado –, justifica-se a utilização do estudo de caso.

3.1 Coleta de dados

A organização analisada pertence ao Poder Judiciário e conta com aproximadamente 1.200 servidores, dos quais um terço trabalha na Capital e os demais estão distribuídos em 142 cidades do interior. Historicamente pautada por uma gestão burocrática e por uma estrutura organizacional rígida, verticalizada e funcionalmente departamentalizada, recentemente vem buscando modernização por meio da implementação de mecanismos de governança e de gestão (estratégica, de riscos, de processos, do conhecimento etc.). A par-tir de pesquisas de clima organizacional e de estudos internos que

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demostraram recorrentes lacunas de comunicação e de compartilha-mento de conhecimento, a alta administração definiu uma política de Gestão do Conhecimento, cuja ação inicial prevê o investimento na formação de comunidades de prática.

Aproveitando o projeto-piloto da primeira comunidade (que tem foco na gestão de contratos), a coleta das informações foi feita, inicialmente, por meio de documentos fornecidos pela orga-nização, dentre os quais, a política de gestão do conhecimento, o projeto de criação da CdP e o formulário para criação de comunida-des. Após, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro futuros membros da CdP: o líder de comunidade, o facilitador e dois participantes. Como a comunidade ainda não existe, as pessoas fo-ram identificadas durante a análise documental do projeto de criação da CdP, o qual definiu o líder, o facilitador e o público da comunida-de (gestores de contrato e seus substitutos, fiscais de contrato, ser-vidores com conhecimento sobre o tema e servidores interessados). As perguntas da entrevista foram formuladas a partir dos elementos identificados na revisão teórica e buscaram verificar: 1) a existência de obstáculos e de antecedentes favoráveis ao compartilhamento de conhecimento e à CdP na organização: clima organizacional, con-fiança, costume e interesse das pessoas em compartilhar; 2) o conhe-cimento e as expectativas dos potenciais participantes: o que entende por CdP, que atividades acredita que ocorrerão, benefícios pessoais esperados e temores.

3.2 Análise de dados

Foi realizada a técnica de análise de conteúdo16 tanto para os documentos da organização quanto para as entrevistas transcritas. Nos documentos, buscou-se verificar a estrutura de CdP proposta pela organização e sua convergência com a literatura. Os elementos

16 BARDIN, 2004.

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identificados no Quadro 1 foram usados como base de comparação. Nas entrevistas, buscaram-se as expressões-chave que demonstram as expectativas dos potenciais participantes da CdP e suas percep-ções sobre o contexto organizacional (se favorável ou não ao com-partilhamento de conhecimento).

4. RESULTADOS

Dentre os três pilares preconizados por Wenger & Sny-der (2000) para efetividade de uma CdP – domínio, comunidade e prática –, somente o domínio está claro na documentação da orga-nização: o foco é a Gestão de Contratos. O resultado faz sentido, pois tanto o senso de comunidade quanto a realização de práticas só poderão existir após a implementação da CdP. Outro fator que só poderá ser avaliado no futuro é a ampliação dos vínculos além das fronteiras da CdP, ou seja, se houve engajamento dos membros em melhores práticas em outras áreas a organização.

Quanto à infraestrutura para o desenvolvimento da CdP, será criado um ambiente virtual específico na Central Virtual de Co-laboração (CVC). A CVC é uma plataforma online, disponível na intranet, usada para hospedar cursos a distância e grupos de trabalho virtuais, portanto suas ferramentas são familiares a todos os servi-dores. Nela, há possibilidade de criação de repositórios de arqui-vos, fóruns, wikis, videoconferências, chats, pesquisas, entre outras atividades. A principal forma de comunicação entre os membros, portanto, será virtual. Essa estrutura de hospedagem da CdP pare-ce adequada, entretanto outros recursos citados na literatura, como tempo, orçamento e materiais não estão previstos na documentação. Apenas ficou determinado que eventuais custos de implantação, bem como os relacionados à capacitação, serão abordados junto ao Comi-tê de Gestão do Conhecimento – grupo responsável pela condução de Política de Gestão do Conhecimento na organização. Novamente,

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a adequação dessa estrutura só poderá ser avaliada após sua devida implementação.

Há cinco papéis a serem desempenhados dentro da CdP de Gestão de Contratos, cujas atribuições são descritas a seguir. Os quatro primeiros são explicitados na literatura e suas atribuições condizem com estudos prévios; o quinto papel, apesar de não ser ci-tado diretamente em outras pesquisas, tem suas funções respaldadas, mas geralmente atribuídas a outros membros.• Patrocinador – membro da alta administração responsável pela área que esteja diretamente relacionada com a abrangência e a especificidade do tema da CdP. Suas funções incluem emitir parecer sobre a criação de comunidade, indicar o líder e o facilitador, acompanhar a execução das atividades e opinar pela manutenção ou extinção, se for o caso.

• Líder – designado pelo patrocinador, coordena reuniões e atividades aprovadas pelas comunidades. Ele deve identificar pessoas com competência para contribuir na comunidade e estimular a participação, mas não possui superioridade hierárquica em relação aos demais membros. Deve possuir bom conhecimento técnico sobre o tema da CdP e habilidade interpessoal. É o elo entre a comunidade, o patrocinador e o Comitê de Gestão do Conhecimento.

• Facilitador – designado pelo patrocinador, é um papel que pode ser acumulado pelo líder. Zela para que as discussões não se desviem do foco e pela civilidade das manifestações.

• Participante – membros voluntários, sem papel formal, que contribuem nas discussões e extraem valor por meio dos conteúdos, programas, conexões e conhecimento. Esse papel é o único que guarda a definição original de CdP, encontrada nos estudos seminais sobre o tema. A adesão é voluntária, de

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acordo com as motivações de cada indivíduo.

• Gestor de conteúdo – espécie de relator, responsável pela organização e disponibilização dos conteúdos produzidos pela comunidade. Na literatura, geralmente essa função não é um papel específico, e sim é acumulada pelo líder ou pelo facilitador.

A CdP de Gestão de Contratos possui alguns objetivos predefinidos, como: apresentar um diagnóstico sobre a situação atual da gestão de contratos na organização, nivelar o conhecimento de gestores e fiscais de contratos e criar um banco de boas práticas que, se possível, gere material de qualidade para a posterior formulação de um curso interno. Aqui reside um ponto crítico de bastante diver-gência entre os pesquisadores: afinal, a atribuição de objetivos espe-cíficos não acaba tolhendo o espírito de liberdade, que é a natureza da CdP? Os defensores do uso gerencial da CdP acreditam que não. A definição de alguns objetivos atuaria apenas como incentivo e não impediria a definição de outros objetivos pelos membros (além dos preestabelecidos), tampouco tornaria obrigatória a participação. Ca-beria ao líder incentivar os membros para a definição de indicadores e de metas condizentes com as necessidades da organização. Caberia ao patrocinador avaliar se o valor gerado pela CdP é positivo.

O último elemento identificado na revisão de literatura é a confiança mútua, ou seja, o ambiente de liberdade e de segurança percebido na CdP. Apesar da impossibilidade de se avaliar a coesão, a motivação, a confiança e o clima comunicativo de um ambiente que ainda não existe na prática, podem-se verificar seus anteceden-tes, afinal, esses elementos são influenciados pela cultura da organi-zação. Dentre os facilitadores da implementação de uma CdP, cabe citar a importância de um ambiente fecundo à aprendizagem orga-nizacional, ou seja, uma cultura organizacional favorável, com cli-ma positivo para comunicação, suporte mútuo e compartilhamento,

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além da confiança e de predisposição dos membros em compartilhar conhecimentos17. Esses fatores foram levados em conta durante as entrevistas com os futuros membros da CdP, e as respostas estão ta-buladas no Quadro 2, que mostra a comparação entre as percepções dos quatro entrevistados.

Líder Facilitador P1 P21. Costuma participar vo-luntariamente de ativida-des de compartilhamento

de conhecimento.

Sim Sim Não Não

2. Sente-se à vontade em compartilhar seu conhe-cimento com outras uni-

dades.

Sim Sim

Sim, mas nunca o fez na organi-

zação

Sim

3. Sente-se à vontade em buscar conhecimento em

outras unidades.Sim Sim Não Sim

4. Predisposição: tem intenção de participar da CdP de Gestão de Con-

tratos.

Sim SimSim, mas

não sabe se ativamente

Sim, mas não ativa-

mente

5. Temor em participar: críticas, conflitos etc. Não Não Não Sim

6. Acredita que a cultura organizacional incentiva a troca de conhecimentos entre as diferentes unida-des e níveis hierárquicos

Sim Sim Não Não

Quadro 2 – Percepções dos entrevistados.

Verifica-se, a partir os resultados tabulados, que os mem-bros que foram indicados para ocupar posições formais (Líder e Fa-cilitador) deram as mesmas respostas, as quais condizem com os

17 SOUZA-SILVA, 2009.

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aspectos positivos que, conforme a literatura, facilitam o comparti-lhamento do conhecimento e a implementação da CdP. Esse resul-tado era esperado, pois ambos foram escolhidos justamente devido a habilidades e conhecimentos prévios sobre Gestão do Conheci-mento. Os participantes voluntários (P1 e P2), entretanto, oferece-ram respostas variadas, demonstrando um comportamento menos corporativo e mais individualizado (típico de quem não possui obri-gações formais junto à CdP). A única unanimidade reside no fato de se sentirem à vontade para compartilhar o conhecimento com outras unidades. P1 foi o único que afirmou se sentir inibido em buscar conhecimento em outras unidades, devido a experiências negativas prévias, e P2 teme em participar da comunidade e “expor alguma questão que não seja bem-vista pela alta administração ou pelos ges-tores da comunidade”.

Quando perguntados sobre o significado de uma CdP e suas atividades, todos mostraram saber do que se trata. O Líder e o Facilitador deram respostas mais técnicas:

L) “são espaços para trocas de conhecimento sobre um tema (domínio) relevante para a organização [...]; discussões via fórum e chat, trabalhos em conjunto, definições de metas para a Comunidade”;

F) “é uma forma de os especialistas, ou quem trabalha com um determinado assunto, se reunirem informalmente para trocar conhecimento produzido pela vivência e experiência [...]; são geridas pelos participantes, mas servirão para facilitar e padronizar a atividade relacionada à comunidade”.

P1 e P2 são mais instintivos, mas sua opinião também é coerente com a doutrina:

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P1) “um ambiente virtual onde haverá troca de conhecimentos, procedimentos práticos, métodos e rotinas de trabalho [...]; compartilhamento das soluções relativas aos problemas, desenvolvimento de novos métodos [...]; fórum, estudos de casos, explanação de conteúdos, bate-papo”;

P2) “fórum organizado para compartilhar experiências, trocar conhecimento e esclarecer dúvidas [...]; espaço para buscar ideias que podem ser aplicadas no nosso dia a dia”.

Enquanto a predisposição de P1 e P2 em participar se dá exclusivamente por interesses de crescimento pessoal (P1: “visão dos procedimentos de gestão que são efetuados na instituição”; P2: “aumento do conhecimento a respeito de temas específicos que não domino”), o Líder e o Facilitador buscam, além de ganhos individu-ais, ganhos para a organização (L: “disseminação do conhecimento pessoal sobre o tema”; F: “agregar valor às atividades pela geração de conhecimento”).

O fato de P1 e P2 darem respostas idênticas para os itens 1, 4 e 6 (não têm o costume de participar voluntariamente em ati-vidades de compartilhamento; têm intenção de participar da CdP, mas não ativamente; e acreditam que a cultura organizacional não incentiva a troca de conhecimentos) é revelador de uma postura pas-siva por parte daqueles que, em teoria, deveriam ser o motor de uma CdP: os voluntários. Esse comportamento, provavelmente reflexo do clima negativo para compartilhamento, é crítico para o futuro fun-cionamento da comunidade. Para P1, “não há incentivo entre unida-des diferentes, até dentro da própria unidade vejo dificuldades em compartilhar conhecimentos comuns aos setores”. P2 também é bas-tante crítico: “creio, de forma pessimista, que no início haverá maior interação, com colegas trazendo dúvidas [...] mas não tenho expec-

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tativa de que seja um espaço de interação constante, nem de criação de base de conhecimento”. Ele também afirma: “não considero que comunidade de prática seja uma ferramenta de gestão do conheci-mento para a qual a instituição esteja preparada, principalmente pela questão da autoridade, hierarquia e sentimento de inequidade que predomina na força de trabalho”. O Líder, apesar de não perceber nenhuma restrição na troca de conhecimento, acredita que “é preciso criar mecanismos para que esse conhecimento seja melhor apropria-do e estocado pela organização”. O Facilitador, por sua vez, afirmou que sempre se sentiu estimulado a trocar informações.

As opiniões acima acabam refletindo nas respostas sobre as dificuldades que acham que a Comunidade enfrentará. O Líder e o Facilitador são mais otimistas. Para o primeiro, “o domínio Gestão de Contratos é complexo e existem muitos servidores aguardando a criação de um canal de comunicação que possa representar um cen-tro de aprendizado e disseminação de conhecimento nesta temática [...]; essa necessidade represada pode representar o impulso necessá-rio para o sucesso da CdP”. O Facilitador acredita que a dificuldade se resume a “implementar um projeto novo e cativar as pessoas para participarem efetivamente”. Entretanto, P1 e P2 são mais céticos: P1 prevê “dificuldades de mudar a cultura da gestão do conhecimento, de motivar e estimular os servidores a participarem e se envolverem no processo, de disseminar as melhores práticas, de se ter espaço para o desenvolvimento de novas ideias, processos e lideranças”; P2 acredita que “a maior barreira será proporcionar um ambiente de confiança, em que as pessoas se sintam à vontade para colocarem suas práxis e suas dúvidas”.

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5. CONCLUSÃO

As Comunidades de Prática representam uma aborda-gem interessante, mas, ao mesmo tempo, difícil para o compartilha-mento de conhecimento nas organizações. Seu caráter voluntário, informal, não hierárquico e de autogestão é rico em possibilidades de gerar valor. Entretanto, é de difícil captura por parte dos gestores. Moura e Andrade (2006) afirmam que é um paradoxo tentar geren-ciar formalmente algo que é, por natureza, informal. Outros autores prescrevem ações genéricas para tentar criar CdPs com sucesso. Esta pesquisa capturou, ao menos em parte, este comportamento contra-ditório. De forma geral, as opiniões dos membros formais (Líder e Facilitador) e dos informais (participantes) são bastante distintas. Os dois primeiros, além de ter maior conhecimento prévio e interesse no assunto, têm obrigações junto à CdP e serão responsáveis por sua implementação, ou seja, estão no papel de gestores da organização e querem que a comunidade alcance seus objetivos. Já os dois poten-ciais voluntários (P1 e P2) não têm obrigação alguma e dependem de motivações pessoais e de incentivos ambientais (como uma cultura organizacional positiva) para integrar a comunidade.

Alguns elementos não puderam ser avaliados neste mo-mento prévio à implantação da CdP, pois são típicos do pós-imple-mentação. Abre-se aqui a possibilidade de uma futura pesquisa in-dependente para medir esses fatores ou de um estudo de caso lon-gitudinal para verificar se as expectativas dos participantes foram concretizadas e se a comunidade funcionou como esperado pela organização. Outra limitação deste estudo se deve ao fato de estar restrito a apenas uma CdP de uma organização e a um grupo peque-no de entrevistados. Pesquisas futuras poderão ampliar o número de respondentes e de critérios de avaliação para captar melhor a re-alidade da organização, ou ampliar o número de organizações para realizar comparações.

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