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Revista ESMAFE Escola de Magistratura Federal da 5a. Região TRF 5a. Região Recife – Pernambuco Nº 14 – 2007

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Revista

ESMAFEEscola de MagistraturaFederal da 5a. Região

TRF 5a. Região Recife – Pernambuco

Nº 14 – 2007

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EDITORIA

Humberto Vasconcelos – EditorElaine Pereira – Coordenadora da ESMAFE - 5ª

Creuza Maria Gomes Aragão

IMPRESSÃOIndústrias Gráficas Barreto Limitada

Av. Beberibe, 530 - Encruzilhada - CEP 52041-430 - Recife - [email protected]

TIRAGEM500 exemplares

CAPAAndré Gonçalves Garcia

REVISTA ESMAFE – 5a.

ESCOLA DE MAGISTRATURA FEDERAL DA 5ª REGIÃORUA DO BRUM, 216 – BAIRRO DO RECIFE

50030-260 – RECIFE – [email protected]

REVISTA ESMAFE: Escola de Magistratura Federal da 5ªRegião. Recife: TRF 5ª Região, nº 14. Março 2007. 294p.

1. PODER JUDICIÁRIO – BRASIL. 2. LIMA, EVERARDODA CUNHA, 1923 – COMEMORAÇÕES. 3. JUÍZES –PROFISSÃO. 4. DIREITO CONSTITUCIONAL – BRASIL.5. DIREITO INTERNACIONAL. 6. DIREITOS HUMANOS.7. CÓDIGO FISCAL – BRASIL. 8. IMPOSTO SOBRESERVIÇOS. 9. DIREITO PROCESSUAL – BRASIL.

ISSN 1807-6203PeR-BPE 07-0346

CDU 34 (81)CDD 340

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ESCOLA DE MAGISTRATURAFEDERAL DA 5a. REGIÃO

DIRETORIAMARGARIDA DE OLIVEIRA CANTARELLI - Diretora

Desembargadora Federal

MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS - Vice-DiretorDesembargador Federal

CONSELHO EDITORIAL

Des. Federal Ridalvo CostaDesa. Federal Margarida de Oliveira CantarelliDes. Federal Marcelo Navarro Ribeiro Dantas

Juiz Federal Carlos Rebêlo Júnior

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TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5a. REGIÃO

DESEMBARGADORES FEDERAIS

FRANCISCO DE QUEIROZ BEZERRA CAVALCANTIPresidente

PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMAVice-Presidente

LUIZ ALBERTO GURGEL DE FARIACorregedor

RIDALVO COSTA

PETRUCIO FERREIRA DA SILVA

JOSÉ LÁZARO ALFREDO GUIMARÃES

JOSÉ MARIA DE OLIVEIRA LUCENA

FRANCISCO GERALDO APOLIANO DIAS

UBALDO ATAÍDE CAVALCANTE

MARGARIDA DE OLIVEIRA CANTARELLI

JOSÉ BAPTISTA DE ALMEIDA FILHODiretor da Revista

NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO

PAULO DE TASSO BENEVIDES GADELHA

FRANCISCO WILDO LACERDA DANTAS

MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS

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Editorial ...................................................................................................... 7Dr. Everardo da Cunha Luna:O Jurista, o Poeta, o Homem de Bem .................................................... 9Everardo Luna – Em Prosa e Verso ...........................................................11Advogado Licínio BarbosaA Importância da Obra de Everardo Luna na Construçãodos Tipos Penais Atuais ............................................................................ 27Juiz Federal Ivan Lira de CarvalhoO Erro no Direito Penal ............................................................................ 55Procuradora de Justiça Eleonora de Souza LunaARTIGOS .............................................................................................. 63A Formação de Magistrados ..................................................................... 65Desembargadora Federal Margarida de Oliveira CantarelliPor Que Controle Misto? ......................................................................... 81Juiz Federal Marco Bruno Miranda ClementinoUniversalismo Versus Relativismo Cultural: A Afirmação Universal dosDireitos Humanos no Âmbito do Direito Constitucional Internacional ........113Juiz Federal Frederico Wildson da Silva DantasHierarquia dos Tratados Internacionais em Face do OrdenamentoJurídico Interno: Um Estudo Sobre a Jurisprudência do STF .................... 145Juiz Federal Frederico Augusto Leopoldino KoehlerA Capacidade do Estado-Membro da Federação para CelebrarTratados Internacionais ........................................................................... 165Procuradora Estadual Luciana Santos Pontes de MirandaIncorporação Imobiliária e o ISS ............................................................ 195Advogada Maria Elza Bezerra CirneA Reforma do Processo de Execução e os Reflexos na “Execuçãopor Quantia Certa Contra Devedor Solvente” ......................................... 235Advogado Julio Cezar Hofman

Sumário

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EDITORIAL

A Revista da ESMAFE-5ª Região chega ao número 14, atingindo, deforma integral, os objetivos para os quais foi instituída, entre eles o de registrar,passo a passo, a trajetória da Escola de Magistratura Federal desta Região,desde a sua criação em outubro de 1999 até os dias presentes. É a memóriaescrita da Escola e a peça que, ao longo de suas 14 edições, vem revelando oitinerário daquele centro de formação e aperfeiçoamento a serviço da JustiçaFederal. A análise desse conjunto de publicações noticia a consolidação de doisempreendimentos: a Escola e a Revista.

Justo salientar a parceria com a Caixa Econômica Federal que permitiu aregularidade desta publicação, a evidenciar que uma estrutura de apoio serásempre uma via de mão dupla, quando construída com a determinação de aten-der ao interesse público.

Ilustra esta edição um nome que integra a crônica dos notáveis êxitos doeixo Olinda-Recife na área do conhecimento jurídico e da prestação jurisdicio-nal no Brasil: Doutor Everardo da Cunha Luna. Suas lições e seu labor jurídicosão fontes de inspiração permanente para quem se dedica ao Direito Penal,dentro ou fora das hostes acadêmicas. O leitor encontrará três artigos sobre ogrande mestre, assinados por figuras eminentes de nosso mundo jurídico: suafilha, Professora e Procuradora de Justiça Eleonora de Souza Luna; um de seusdiscípulos e fiéis seguidores, o Doutor Licínio Barbosa; e o Juiz e Professor IvanLira de Carvalho. A leitura dessas peças revelará ao leitor o jurista, o poeta e ohomem de bem que foi o Dr. Everardo da Cunha Luna.

Mais uma vez, em coerência que tem marcado a trajetória desta Revista,seu conteúdo editorial apresenta uma evidente riqueza temática. A Desembarga-dora Margarida Cantarelli, que dirigiu a Escola de Magistratura neste últimobiênio, oferece uma lúcida interpretação do papel das escolas judiciais, em tra-balho apresentado no XIX Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado emCuritiba, em novembro de 2006.

Três contribuições de grande peso dedicam-se ao Direito Internacional,tocando aspectos de relevante interesse: a capacidade jurídica de representa-ção internacional dos estados-membros; a delicada questão dos direitos huma-

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nos como tema preferencial de um Direito Constitucional que se sobrepõe aoslimites dos ordenamentos nacionais; e as repercussões nos ordenamentos inter-nos dos tratados internacionais.

Mais uma vez a função do operador jurídico como elo que procura dareficácia à norma escrita, na linha de tantas outras contribuições semelhantes queesta Revista tem publicado, é examinada por um ilustre magistrado e freqüentecolaborador deste periódico. Completam a edição, dois trabalhos voltados paraa área dos negócios jurídicos: um relacionado com a função tributária do muni-cípio e o outro, de jurista ligado à Caixa Econômica Federal, sobre um temarecorrente nas assessorias especializadas dessa instituição financeira: a execu-ção por quantia certa contra o devedor solvente.

Este número encerra, com esse elenco de tantos trabalhos de notóriointeresse jurídico e cultural, mais uma etapa administrativa da ESMAFE-5ª.

Recife, março de 2007.

A Editoria.

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Dr. Everardo da Cunha LunaO jurista, o poeta, o homem de bem

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EVERARDO LUNA – EM PROSA E VERSO

Licínio BarbosaAdvogado

1. DOS CAMINHOS DE SAN TIAGO À ROMARIA DE SANTO EVERARDO

O insigne agrarista Juan José Sanz Jarque, catedrático de Direito nasUniversidades de Espanha, percorreu o Caminho de São Tiago, e, para perpe-tuar sua mística experiência, escreveu De Mar a Mar – Desde Tarragona aFinisterre, en el Jacobeo 93, por los Caminos y Lugares que Santiago abrióa la fé, edição da Asociación Católica de Propagandistas, Madrid, 1998, 467págs.

Convidado pela Doutora Margarida Cantarelli, ex-presidente do EgrégioTribunal Regional Federal, 5.ª Região, Recife (PE), e diretora da Escola Supe-rior da Magistratura da Justiça Federal, para proferir palestra sobre a vida e aobra de Everardo da Cunha Luna, seu ex-professor, no “Simpósio em Homena-gem a Everardo da Cunha Luna”, realizado em João Pessoa (PB), nos dias 9 a10 de março do ano em curso, abalei-me, com minha esposa, de Goiânia (GO)ao Recife (PE) e, de lá, a João Pessoa (PB), a fim de cumprir um ato de contri-ção a um dos santos de minha devoção, no âmbito das ciências penais. O con-vite foi como uma convocação. E como o tempo não permitia que se fizesse otrajeto a pé, outra alternativa não tive senão tomar o avião, a despeito das que-das freqüentes e escandalosos atrasos nos vôos. Sem falar nos fraudulentosoverbookings.

Percorri, assim, “o Caminho de Santo Everardo”, de Goiânia, no epicen-tro do Planalto Central, às cidades-irmãs Recife/João Pessoa, trazendo no far-nel alguns apontamentos para a celebração desse nume das letras jurídico-pe-nais que Paraíba, generosamente, doou ao mítico Pernambuco, donde espargi-ria, incandescente, luzes o todo o território nacional.

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2. AS ORIGENS CAMPINEIRAS NA PLANALTINA BORBOREMA

Na remansosa paz montês do nordestino planalto da Borborema, nascia,a 10 de dezembro de 1923, em Campina Grande, Paraíba, o maior expoente daDogmática Jurídico-penal de nosso País, o inolvidável EVERARDO DA CU-NHA LUNA, filho de Mauro da Cunha Luna e Augusta de Almeida Luna.

Em suas quase 7 décadas de gloriosa existência, percorreu longo périplode atividades administrativas, desde a cidade natal, onde foi Secretário da Pre-feitura, no remoto ano de 1948, aos 25 anos de idade; vice-presidente da Or-dem dos Advogados do Brasil, Seção de Pernambuco; Conselheiro do CNP-CP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério daJustiça; Correspondente Nacional para o Tratamento do Delinqüente e Preven-ção do Crime, das Nações Unidas (Viena); Membro Titular da Academia Per-nambucana de Letras Jurídicas, Membro da Academia Pernambucana de Ciên-cias, membro da Academia de Letras da sua Campina Grande, – Campina Gran-de que ele canta, em “Evocação da Infância”.

“Oh Campina, minha terra,Não sou filho ingrato não...Ao descer a tua terra,Fazia por tua mão!

“Para a emoção que me ferveE que no peito contenho,A prosa simples não serve,Poesia boa não tenho...

“Por isso, em rimas vulgares,Ponho agora minha voz,Preso que estou nos lugaresDe meus pais e meus avós...”

3. O TROPISMO DAS ARCADAS PERNAMBUCANAS

Atraído pelo centenário tropismo da legendária Faculdade de Direito deOlinda e Recife, ingressa na luminescente Casa de TOBIAS BARRETO, diplo-mando-se Bacharel em Direito na Turma de 1947.

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Vocacionado para o magistério, dois anos após o Curso de Direito inicia-se na docência, como professor de Português, no Curso Colegial da Faculda-de de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, ano de 1949. Simulta-neamente, lecionaria Técnica Jurídica Comercial, Sociologia e EconomiaPolítica, em vários colégios de sua estremecida Campina Grande.

De volta ao Recife, substituiria o ilustre Prof. Evandro Muniz Neto, naCátedra de Direito Penal Judiciário.

4. O MAGISTER

Mais tarde, seria titular da Teoria Geral do Direito Penal, no Curso deMestrado da Faculdade de Direito da UFPE; de Direito Penal Comparado, noseu Curso de Doutorado; e Direito Penal, no Curso de Especialização em Direi-to Público, e Direito Privado, na Faculdade de Ciências Sociais, da Universida-de Federal do Amazonas.

Para tanto, já se revelara a maior expressão da “Dogmática Jurídico-Penal”, quase deitando sombra sobre o grande mestre das Ciências Penais dePernambuco, Aníbal Bruno, Catedrático de “Direito Penal”, de “Língua Portu-guesa” e de “Medicina Legal”, – com o seu clássico Estrutura Jurídica doCrime, de 1958, trabalho com que conquistou, espetacularmente, a Livre-Do-cência de Direito Penal, onde enfoca, com clareza solar:

Na Introdução:A Teoria Jurídica do Crime, eA Estrutura Jurídica do Crime.

No Título I, Síntese do Crime:O Crime como Fato Jurídico (Cap. I), eO Crime com Fato Injurídico (Cap. II).

E, no Título II, Análise do Crime:O Crime como Fato Material (Cap. III), eO Crime como Fato Moral (Cap. IV).

Tese que a Universidade Federal de Pernambuco transformaria em livro,no ano subseqüente, várias vezes reeditado.

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Logo após, no ano de 1959, conquista a Cátedra de Direito Penal desua Faculdade, com a tese “O Resultado do Direito Penal”, mais tarde editada,em livro, pela Editora Bushatsky, com a seguinte estrutura:

• O Resultado e o Direito (Cap. I),• O Resultado e o Dano (Cap. II),• O Resultado e os Elementos do Crime (Cap. III), arrematando a tese

com a conclusão,• O Resultado e a Manifestação do Crime (Cap. IV).

Viria, depois, em estilo mais didático, destinado, mormente, aos alunosdo Curso de Graduação, a obra Capítulos de Direito Penal – Parte Geral,cobrindo toda a “Teoria Geral do Direito Penal”, e compreendendo: “As Ciên-cias Penais”, a “Natureza do Direito Penal”, as “Categorias Jurídico-Penais”, as“Tendências do Direito Penal Contemporâneo”, o “Alcance e os Limites doDireito Penal Hodierno”, o “Direito Penal Germânico”, a “Moderna Teoria doDelito”, a “Teoria Finalista da Ação”, a “Antijuricidade”, o “Bem Jurídico”, o“Crime na nova Parte Geral do Código Penal”, o “Crime Omissivo e a Respon-sabilidade Penal por Omissão”, a “Relação de Causalidade e a Responsabilida-de Penal Objetiva”, a “Culpabilidade”, “O Erro e Tipo e o Erro de Proibição”, a“Coação Irresistível e a Obediência Hierárquica”, o instituto da “Aberratio Ic-tus”, a “Aberratio Delicti”, o “Arrependimento Eficaz”, a “Pena e a crise pe-nal”, o “Exame Criminológico”, a “Carecteriologia Criminal”, a “Descriminaliza-ção e a Despenização”.

Nesses “Capítulos”, presente toda a teoria geral do Direito Penal moder-no.

Obra pouco divulgada, porém de grande significação na bibliografia eve-rardiana, uma outra obra, pouco mais que uma plaquette, Trabalhos de Direi-to Penal, publicada, em 1971, pela Editora da Universidade Federal de Per-nambuco, contendo “Pareceres” sobre: a “Apropriação Indébita”, o “Esteliona-to”, o “Livramento Condicional e a Segurança Nacional”, o “Pedido de Graçanos crimes de Homicídio Simples e Privilegiado”. Também aí se encontram en-trevistas sobre o “Anteprojeto do Código Penal”, e sobre o “Habeas Corpus ea Segurança Nacional”. Fecha essa obra a erudita argüição sobre a tese “TutelaPenal da Intimidade”, do Prof. Dr. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, dasArcadas Paulistas, ao todo 14 questionamentos.

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Parte importantíssima da contribuição everardiana à Dogmática Jurídico-Penal são as “Notas” ao Direito Penal, 2 volumes, de Giuseppe Bettiol, natradução vernacular de Paulo José da Costa Jr. (Doutor das Ciências Penais, noBrasil e na Itália), e Alberto Silva Franco, obra editada pela Revista dos Tribu-nais nos anos de 1996 (Vol. I) e 1971 (Vol. II).

Doutra parte, não se pode olvidar o contributo de Everardo à “TeoriaGeral do Direito”, com sua obra Abuso de Direito, hoje clássica, edição esgo-tada como quase todos os livros do gênio campineiro.

5. O EXAMINADOR

A despeito de sua intensa atividade docente, Everardo esteve presenteem inúmeras Comissões, dentre as quais:

a) Conselho Técnico-Administrativo, da FD-UFPE;b) Comissão Examinadora do concurso para Professor Titular de “Direi-

to Penal”, na sesquicentenária Faculdade do Largo São Francisco,argüindo o Prof. Doutor Paulo José da Costa Júnior;

c) Comissão de Admissão ao Curso de Pós-Graduação, da Faculdadede Direito da UFPE;

e) Comissão Examinadora do concurso para Professor Assistente deDireito Penal, da FD-UFPE;

f) Comissão Examinadora de Professor Assistente de Direito Penal, naFaculdade de Direito da UFCeará;

g) Comissão Examinadora para Professor Titular de Direito Penal, daFaculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,argüindo o Prof. Dr. HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, o Advogadoda “Resistência Democrática” durante os “anos de chumbo” da turvaDitadura Militar;

h) Comissão Examinadora para Professor Titular de Direito Penal junto àFaculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, argüindo oProf. Dr. RENÉ ARIEL DOTTI, o mais brilhante talento, das CiênciasPenais do País, na segunda metade do Séc. XX, e co-autor da petiçãode impeachment, do presidente Fernando Collor;

i) Comissão Examinadora para Professor Titular de Direito Penal junto àcentenária Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás,em que se consagrou como Titular o Prof. Dr. LICÍNIO LEAL BAR-BOSA, em 1985;

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k) Comissão Examinadora para Professor Titular perante a Faculdade deDireito da Universidade Federal do Pará, em que foi ungido o Prof.Dr. EDMUNDO DE OLIVEIRA, hoje Titular da Cátedra de DireitoPenal e Ciências Penais da prestigiosa Faculdade de Direito da Uni-versidade de Orlando, Estados Unidos da América;

l) Examinador da Produção Científica e Cultural da UNB, no concursode Professor Titular, do Prof. ELMANO CAVALCANTI DE FA-RIA;

m) Comissão Examinadora do concurso de Promotor de Justiça do Esta-do de Pernambuco;

n) Integrante da “Lista Tríplice” para a escolha de Desembargador juntoao Egrégio Tribunal de Justiça de Pernambuco.

6. O ADMINISTRADOR

Homem de pensamento, foi, Everardo, também operoso homem de ação.Eis, a propósito, alguns cargos por ele exercido:

a) Chefe do IV Departamento da Faculdade de Direito da UFPE, perío-do 1969-1972;

b) Coordenador do Curso de Doutorado, na Faculdade de Direito daUFPE;

c) Vice-Diretor da Faculdade de Direito da UFPE.

7. O ADVOGADO

A intensa atividade acadêmica não impediu Everardo de se dedicar, comsofreguidão, às lides advocatícias.

Como já se registrou, foi vice-presidente da OAB-PE.Sua atividade postulatória se iniciaria, em caráter permanente e ininter-

rupta, como Advogado de Ofício da Cidade do Recife (PE), a partir de 1958.Nessa condição, seria membro do Conselho Penitenciário de Pernambuco, nosidos de 1969. E participaria como Membro da Comissão de Elaboração doAnteprojeto de Regulamento Penitenciário de Pernambuco.

Integrou o Conselho do Instituto dos Advogados de Pernambuco, e doConselho Seccional da OAB-PE.

Como Advogado, representou a categoria, por 2 biênios consecutivos(1964-1968), junto ao Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.

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Foi, também, Procurador Adjunto dos Feitos da Fazenda Pública de Per-nambuco, e compôs Comissão Examinadora para seleção de “Advogados deOfício” do Recife, no ano de 1967. Também comporia Comissão Examinadorapara escolha de Auditor Militar de seu Estado adotivo.

8. EXPOENTE DO PARQUET

Igualmente, exerceu, com a sobriedade, que lhe era inerente, o cargo dePromotor de Justiça, na Paraíba, de 1951 a 1953; e, mediante concurso públi-co, cargo idêntico, em Pernambuco, de 1953 a 1956.

E, também, o cargo de Conselheiro do “Conselho Penitenciário do Servi-ço Social contra o Mocambo”, em Pernambuco, no ano de 1964.

9. O POLÍGRAFO

Instado a contribuir, com o seu imenso saber e sua vastíssima cultura paravárias publicações, eis alguns temas que abordou com a mais absoluta proprie-dade:

a) O dogma da reserva legal;b) O dogma do bem jurídico;c) O dogma da ação;d) O dogma da culpabilidade;e) A revisão criminal no Anteprojeto do Código de Processo Penal;f) O Direito Penal e as Ciências do Homem;g) O Direito Penal em Portugal;h) A disciplina jurídica do transplante;i) Estudo sobre a deformidade permanente;j) O crime de corrupção de menores;k) A extinção da punibilidade e sonegação fiscal;l) O instituto da prova no Anteprojeto do Código de Processo Penal.

Especial menção ao primoroso trabalho “A Arte e o Obsceno”, separatada Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, apresentado, origi-nariamente, ao “VI Congresso Brasileiro de Teoria e Crítica Literárias”, e “IISeminário Internacional de Literatura”, realizados em Campina Grande (PB), de19 a 25 de setembro de 1982.

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Na oratória acadêmica, destacam-se:

a) “Saudação aos Novos Bacharéis”, separata da Revista Acadêmica,LXV, da Faculdade de Direito da UFPE, dirigida aos novos Solicita-dores e Advogados, ao prestarem juramento perante o Conselho daOAB-PE, a 9 de maio de 1969;

b) “Aníbal Bruno, o Homem e a Obra”, panegírico publicado pelo Con-selho Municipal de Cultura, em dezembro de 1977, Recife (PE);

c) “Afonso Campos”, conferência proferida na Associação Comercialde Campina grande, nas homenagens pelo Cinqüentenário da mortedo ilustre público paraibano;

d) “Epitácio Pessoa, o Homem e o Direito”, separata da Revista Acadê-mica, LXIV, Recife (PE);

e) “Phaelante da Câmara”, separata da Revista Acadêmica, ano LXIII,1966-1967, Recife, 1967, panegírico do Prof. Francisco Phaelanteda Câmara Lima, nas festividades de seu Centenário.

E tantas outras contribuições, nos campos do “Direito”, das “CiênciasPenais”, da “Vida Acadêmica” e da “Literatura”.

Especial contributo prestou, Everardo, ao aprimoramento do sistema pe-nal de nosso País, além desses artigos, conferências, argüições, – com sua lumi-nosa participação nos Seminários realizados em Goiânia (GO), v. g. no Seminá-rio de 1973, – quando foi proclamada a “Moção de Goiânia I” –, e, mais tarde,no Seminário de 1981, – quando foi regida a “Moção de Goiânia II”. E, no “ICongresso Brasileiro de Ciências Penais”, – quando se editou a “Moção deGoiânia III”, sua presença espiritual foi sentida e programada, pois, seus ensina-mentos foram uma das colunas mestras desse documento.

10. O POETA

Seria inimaginável identificar naquele homem sisudo, mas de ameno trato,aparentemente mais preocupado com a Dogmática-Jurídico-Penal, um poetade vastos recursos, de profunda sensibilidade, e de elevada inspiração.

Everardo poeta, – eis uma das faces que poucos conhecem no DefensorPúblico, no Advogado, no Catedrático.

Ei-lo!E, por admitir sê-lo, pede, antecipadamente, “Perdão aos Poetas”, nas

duas quadras homônimas:

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“Por cometer o pecadoDe versejar um instante,Arrependido já brado:– Perdão, ó filhos de Dante!

“E por vencer a canseira,Busco logo o meu descansoNa minha velha cadeira,A cadeira de balanço!” (Recife, 1964)

Ao cantar o Amor, considera-o o “Carro de Fogo” que teria arrebatadoElias, o Profeta que anteviu a vinda do messias.

“O amor, no mundo,É o carro de fogoQue levou EliasPara outras alturas.É nela que sentimosPelos compassos da vidaComo as idéias são simplesE como as coisas são puras” (Praia do Janga, 1983)

De Dante, vai a Goethe, o ponto culminante da literatura germânica, aquem dedica uma oitava:

“Se todo velho é um rei Lear,Forjado na tempestadeNa febre e na noite fria.– Esgotada a humanidadeNão o louve em fantasia,Não lhe tenha piedade:– Tem o que foi, cada dia,Na paz da tranqüilidade.” (Recife, 1985)

Além da quadra e do “Soneto de Dante”, mais duas quadras (“Para LerDante”):

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“Para ler Dante?Em qualquer instante.Saber florentino?Basta neo-latino.

“Ser italiano?Apenas humano.Católico? Não!Um simples cristão.” (Recife, 1983)

Do autor da Divina Comédia, passa ao mágico de A Comédia Huma-na, a quem dedica o soneto “Balsac”:

“Alheio aos pesadelos da fadiga,A reviver magicamente o dia, Penetra-se daquela voz antiga,Na solidão da última agonia:

“– Que augusto espírito, ou palavra amiga,A chama te acendeu da fantasia,O compassar da tormentosa intriga,No estilo perenal da poesia?

“– Na estranha caminhada florentina,Presente esteve o sábio mantuanoE a sagrada visão da peregrina...

“Mas, na minha Comédia, o insano e o sano,Senti, em cada sala, e em cada esquina,Só pelo encanto e o desencanto humano.” (Recife, 1985)

Fascinado pela música clássica, dedica ao maior compositor de todos ostempos, Mozart, dedica-lhe 5 quadras, das quais destaco as duas últimas:

“Corações sempre escondidosNo turbilhão do viver,Assomam pelos sentidosDesde as origens do ser.

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“Aragem de luz, agora,Movendo as sombras do dia,Desperta a graça de outrora,Na limpidez da magia.” (Recife, 1986)

Na simbologia bíblica dos “Reis Magos”, celebra o “Ouro”, o “Incenso”e a “Mirra”:

“Esse ouro, que enriquecia,E agora ilumina a fé,Pleno de graça em Maria,É graça de São José.

“O incenso que cobre o mal,Pela fé que o homem alcança,Sal da vida, é sempre o salDa promessa e da esperança.

“Da mirra, as sagradas rosas,Que ungiram Cristo na dor,Anunciam, perfumosas,A consolação do amor.” (Recife, 1986)

Em louvor de Keats, o grande vate da poesia romântica da Inglaterra,proclama:

“Pressenti, na natureza,Vendo a noite e vendo o dia,Que o vero e o bem, com certeza,No que é belo se anuncia:– Uma essência de belezaÉ uma eterna alegria.” (Recife, 1990)

Nos momentos tristes, uma ode à “Depressão”, que assim define:

“São dolorosos caminhos,Desnudando os corações,Deserto imenso de espinhos,Loucura das emoções.

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“Ardência desesperada,Desejo de não viver,Procura do ser, o nada,E até ação de morrer!” (Recife, 1990)

Projetado aos píncaros da glória, Everardo não olvidou jamais sua queri-da Campina Grande, relembrando o “relógio da Matriz”, “a Geninha, mãe pre-tinha”, “corridas de carrocel / na festa da Conceição...”, os “banhos alegres noaçude”, os “meninos de Oliveira”, “o escritório colorido / do velho HortênsioRibeiro...”, “o primeiro grande amor”, “A sedução do tormento / E a escravidãoque liberta!”

E conclui o poema “Evocação da Infância”:

“E agora, longe da terra,Adulto, guardo a lição,Mas o menino da serraMora aqui no coração!” (Recife, 1980)

Sintonizado com o futuro, Everardo deixou-se empolgar pela “Amazô-nia”, – mais uma vez, celebrada, agora, na minissérie “De Galvez a Chico Men-des”, na mágica dramaturgia de Glória Perez –, como já acontecera a GastãoCrulz e a Euclides da Cunha, Everardo dedica-lhe um soneto:

“Céu tranqüilo, a espessura consagrandoRio e floresta à esplendidez solar,Seguia o corpo, ao passo, entremeandoMares na terra e terras com o mar.

“E na extensão de força rebentando,A luz buscava a escuridão sem par,Ao mole corpo, as almas animando,Floresta e rio em direção do mar.

“Lentos veios dos olhos se estendiam,Descoberta de amor e fortaleza,Pela oferta do bem que recebiam.

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“E na visão do verde da aspereza,Os astros da esperança prometiamA consciência em prol da natureza.” (Recife, 1982)

11. O HOMEM

Casado com Heloíza, – para nós, Dona Heloíza Luna –, ela foi, paraEverardo, o que Beatriz para Dante.

Por isso mesmo, Everardo lhe dedica o soneto “Versos à Heloíza”:

“Se na ausência do bem o mal consiste,Como afirmam os claros pensadores,Escuridão que põe minh’alma tristeÉ privação da luz de teus amores.

“Existes e és um bem que longe existe,Um bem aonde eu for e aonde fores,Que por Eros e Ágape nos uniste,Dos que negam a vida vencedores.

“Pressentimento de abrandar as doresÉ promessa que esplende, na enxovia,Que após os cardos brotarão as flores,

“É vaticínio de afastar o diaDe brumas cheio e cheio de temores,É prenúncio de Paz e de Alegria.” (Recife, 1964)

Dessa ditosa união, nasceriam Eleonora, Heitor, Hermano e Eduardo deSouza Luna.

A Eleonora, hoje Mestra em Direito, e Procuradora de Justiça de Per-nambuco, o pai dedica as 4 quadras de “No Hospital Português”, de que desta-co as duas primeiras.

“Neste lugar de combate,Travado entre vida e morte,Uma lembrança me abateE uma outra me torna forte.

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“Se nele, com dor atroz,Vi meu pai deixando a vida,Também nele, anos após,Nasceu-me a filha querida!” (Recife, 1956)

E ao caçula, Eduardo, dedica o soneto “A Manhã de um novo Dia”:

“Cada dia é a manhã de um novo dia,Nauta nas vagas de alongada vela,Que a presença do viver constelaOs destinos da vida fugidia.

“Pelo ritmo solar da fantasiaE na força sombria da procela,Desvelos de concórdia e de querelaVão e vêm na manhã de um novo dia.

“Querê-lo assim, no mar dos desenganos,Em convívio da fonte criadora,Ou sedução do corpo apetecida,

“É transcender o perpassar dos anos,Como se instantes o viver não fora,E de mortal não se fizesse a vida.” (Recife, 1983)

12. O GÊNIO

Everardo foi um gênio. E, como todo gênio, um ser agitado por forçastelúricas e cósmicas. Ver-lhe a vida, e sentir-lhe o estro, lembra o poema “Ahas-verus e o Gênio”, com que CASTRO ALVES abre as Espumas Flutuantes, nacoletânea de Homero Pires, para celebrar o Centenário do Poeta dos Escravos,cujas estrofes ainda reboam nas Arcadas da Faculdade de Direito de Olinda eRecife, nas tertúlias com Tobias Barreto:

“O Gênio é como Ahasverus... solitárioA marchar, a marchar no itinerário

Sem termo do existir.Invejado! A invejar os invejosos,Vendo a sombra dos álamos frondosos...E sempre a caminhar... sempre a seguir...

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“Pede u’a mão de amigo – dão-lhe palmas:Pede um beijo de amor – e as outras almas

Fogem pasmas de si.E o mísero de glória em glória corre...Mas quando a terra diz: – ‘Ele não morre’,Responde o desgraçado: ‘Eu não vivi!...’”

(S. Paulo, 1868, in: Poesias Escolhidas de Castro Alves, seleção, pre-fácio e notas de Homero Pires, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1947, p. 33)

Todavia, a despeito do dramático poema de “O Poeta dos Escravos”,Everardo amou e foi amado. Teve mão e ombro de amigo, juntamente com osaplausos onde proferiu suas sábias conferências.

Por tudo isso, Everardo, a despeito do evento de 1991, não morreu.Porque seus ensinamentos continuam com todos aqueles que, como nós, opera-dores do Direito, colaboradores na missionária distribuição da Justiça, a todomomento sentimos sua presença inspiradora, quer no recôndito da biblioteca,na oficina de trabalho, nos pretórios, na tribuna forense.

Everardo vive, eternamente!Suas lições como consagrado jurista, sua sensibilidade como poeta de

sublime inspiração, sua retidão de caráter, seu extremado apego à família, sualealdade inexpugnável aos amigos, – tudo faz dele uma referência perene comoaqueles avatares da humanidade que figuram, cintilantes, na galeria dos Varõesde Plutarco, como faróis inextinguíveis para guiar os navegantes nas tormentas enas procelas do mar revolto de nossa existência.

Pois esta é a existência! A nossa existência!

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A IMPORTÂNCIA DA OBRA DE EVERARDO LUNANA CONSTRUÇÃO DOS TIPOS PENAIS ATUAIS

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Ivan Lira de CarvalhoJuiz Federal - 5ª Vara / RN

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Mudanças no cenário jurídicoimpulsionadas pelos fatos sociais e persistências de obras doutrinári-as de consistência; 3. A obra de Everardo Luna marcada pela ousa-dia e a importância política transcendente ao Direito formal; 4. Oestudo do crime em sua estrutura e em sua manifestação; 5. Seleta,mais que pontual, das opiniões de Everardo Luna; 6. Subsunção dealguns aspectos da chamada Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605,de 12 de fevereiro de 1988) à doutrina de Everardo Luna; 7. A contri-buição de Everardo Luna ao Anteprojeto de Código Penal de 1983.Paralelismo com tipos criados recentemente ou em vias de criação;8. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO

Em sede de Direito Penal, mercê do dogma da legalidade e, especifica-mente, da anterioridade, é curial que surjam as leis tipificando condutas para queao seu reboque venham os doutrinadores, com comentários ou com a constru-ção de doutrina em torno do que já está vigente.

Essa regra, aparentemente cômoda para os que se apresentam como pro-dutores intelectuais do Direito Penal, há que ceder espaço, em nome da serieda-

1 Elementos da palestra homônima, proferida pelo autor durante o Ciclo de Estudos em homenagem aoProfessor Everardo da Cunha Luna, realizado em João Pessoa-PB, de 08 a 10 .03.2007, sob os auspíciosda Escola Superior de Magistratura Federal da 5ª Região.

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de científica desse ramo jurídico, aos pesquisadores que oferecem o seu saber eo seu trabalho para uma análise conjuntural mais sólida, na maioria das vezesapurada mesmo antes da iniciativa legislativa, dês que o bem jurídico já esteja areclamar alguma providência no campo penal. E em alguns casos, a sensibilida-de do jurista é tamanha, que mesmo antes do bem jurídico ser posto à prova dosmais diversos setores da sociedade, já está ele a lucubrar propostas para evitarque danos ou perigos venham a macular esses bens quando eles estiverem sen-do fruídos na sua plenitude.

Também de inegável importância a abordagem teórica feita nos sítios doDireito Penal sobre o crime e a pena (principalmente estes, pois do criminosocuidarão com maior perfeição a criminologia, a antropologia criminal e a socio-logia criminal), objetivando dirigir os estudos e a aplicação dos tipos criados ouem processo de criação.

Everardo da Cunha Luna, lente que irradiou desde a cátedra da Faculda-de de Direito do Recife, elementos teóricos e práticos para a consolidação deum Direito Penal sério e útil, decerto não se enquadra no rol dos intelectualmen-te frágeis que colhem da oportunidade de mudanças legislativas (às vezes esta-pafúrdias) para galgarem notoriedade e ganho fácil com a mercancia de livrosefêmeros.

O fito maior deste trabalho é pedir a atenção dos que hoje manejam oDireito Penal (a as ciências que lhe são afins) para a consistência da obra deEverardo Luna, mesmo que já passados tantos anos do seu falecimento.

2. MUDANÇAS NO CENÁRIO JURÍDICO IMPULSIONADAS

PELOS FATOS SOCIAIS E PERSISTÊNCIAS DE OBRAS

DOUTRINÁRIAS DE CONSISTÊNCIA

Um aluno de universidade pública nordestina reclama ao professor deDireito Processual Civil acerca da possível inservibilidade de determinado livrodoutrinário, mercê das constantes e pontuais reformas que estão sendo impos-tas ao CPC. Responde-lhe o mestre, com simplicidade e agudeza: “Eu só con-firmo que uma obra é boa se, realizadas modificações no texto da lei por elacomentada, mesmo assim permanecer atual.”. É mais ou menos como a certezade que ainda que desapareçam as flores o jardim permanecerá belo, pois lhessão adequadas as novas plantas.

Mas nem todas as obras da literatura jurídica cabem na afirmação doprofessor acima referido, como nem todos os jardins se eternizam para acolher

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novos espécimes da flora. Existem, e são muitas, as peças doutrinárias tão des-cartáveis como as leis às quais se unem, formuladas para atender a interessesdos poderosos do dia, quer no campo político, quer no terreiro da economia oumesmo – pasmem – no pântano da ilicitude e da imoralidade.

Não é o caso, decerto, da obra de Everardo da Cunha Luna, capitaneadapelo estudo sobre a “Estrutura Jurídica do Crime”2, pelos “Capítulos de DireitoPenal – Parte Geral”3, por “O Erro de Direito e o Concurso de Pessoas, noanteprojeto do Código Penal de 19814 , pelos “Trabalhos de Direito Penal”5

por “A causalidade na omissão no anteprojeto de Código Penal”6, por “Oscrimes contra a fé pública e o Código Penal de 1969”7 e muitos outros contribu-tos às ciências criminais. O pensamento do penalista em apreço continua atual,mesmo que superado pontualmente pelos novos rumos das ciências que se ocu-pam dos delitos e das penas. Paradoxal? De modo algum! As idéias, quandoconstruídas e divulgadas com convicção e fundamentos, não se deixam arrasarcom o tempo. Servem, pelo menos, de referência histórica ou contraponto paraas novas formulações gizadas para alcançar os emergentes reclamos sociais.

No conjunto de opiniões de Everardo da Cunha Luna estão presentesmais do que elementos históricos ou nostálgicos de uma época em que, porexemplo, as condutas de informática ainda não estavam tão preponderantemen-te postas a serviço do crime e nem o meio ambiente reclamava uma tutela penaltão acentuada como nos dias atuais. Mas a visão adiantada do referido doutri-nador alcançava essa evolução dos fatos e já cuidava de fornecer elementos quevisassem colocar o Direito Penal a serviço da prevenção ou da repressão acondutas voltadas contra bens jurídicos sem tão difundida importância à épocaem que ele viveu e teve fértil produção intelectual.

2 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura Jurídica do Crime. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva. 1993.

3 LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva. 1985.

4 LUNA, Everardo da Cunha. O Erro de Direito e o Concurso de Pessoas, no anteprojeto do Código Penalde 1981. Vox Legis, vol. 154. São Paulo: Sugestões Literárias. out/1981.

5 LUNA, Everardo da Cunha. Trabalhos de Direito Penal – Coleção Jurídica, vol. IV. Recife: BibliotecaUniversitária Pernambucana. 1971.

6 LUNA, Everardo da Cunha. A causalidade da omissão no anteprojeto de Código Penal. Revista Acadêmi-ca, a. LXIII – 1966 – 1967. A causalidade na omissão, no anteprojeto de Código Penal. , p. 77-103.Recife: Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito. 1967.

7 LUNA, Everardo da Cunha. Os crimes contra a fé pública e o Código Penal de 1969. Justitia. São Paulo:Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, 1º trim/1974.

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Nesse agrupamento de idéias não precisa arte de garimpagem para quesejam encontrados fundamentos e orientações para a construção e a compreen-são de tipos penais da mais acendrada atualidade, conforme se pretende fazerneste artigo. Seleção se faz necessária, no entanto, para a escolha de apenasalgumas das contribuições do mencionado autor para a otimização do cenáriodo Direito Penal atual, pondo-as na vitrine das publicações especializadas, commiras a evitar o infortúnio do esquecimento, ao roldão dos holofotes novidades-cos.

3. A OBRA DE EVERARDO LUNA MARCADA PELA OUSADIA E AIMPORTÂNCIA POLÍTICA TRANSCENDENTE AO DIREITO FORMAL

Um traço sociopolítico e cultural que não pode ser olvidado na realidadebrasileira é o da tentativa de estabelecimento de uma fronteira de prestígio entreas regiões onde floresceu o governo do conquistador português pós-quinhentis-ta e os outros cantões do país, a exemplo do Nordeste e da Amazônia. Fundou-se a idéia – equivocada, diga-se – de que somente as pessoas próximas da sedegovernamental (Rio de Janeiro ou Brasília) ou com maior contato com as matri-zes européias (São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul...) dispunham de conhe-cimento acadêmico para ditar os rumos da produção intelectual brasileira. Con-quanto essas páginas da história social nacional estejam sendo viradas em ritmocrescente, ainda vagueiam enganos desse jaez no nosso universo pensante, in-clusive no meio jurídico. A realidade do trespasse dessa vesguice de avaliaçãotem dupla paternidade: o mea culpa dos intelectuais originários ou sediadosnessas regiões política e economicamente mais aquinhoadas e a insistência dosprovenientes dos outros locais em provar que a inteligência e o esforço nãoescolhem torrão para brotar.

Assim, num período em que os grandes vultos das letras penais estavamno centro-sul do país, com cintilações esparsas vindas da metade norte do Bra-sil, a exemplo de Aníbal Bruno – agora lembrado como emblema de tantosoutros de igual valor, atreveu-se Everardo da Cunha Luna a ir de encontro avetustas teorias defendidas por personalidades cercadas de aparente intocabili-dade, como Antolisei e Bettiol, apenas para exemplificar, como será visto adian-te.

A ousadia de Everardo Luna não se circunscreve apenas às tertúlias dosiluminados que estudam a ciência jurídica. Há que ser vista, também, como um

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elemento da demolição dessa etérea barreira entre “colonizador” e “coloniza-do”. Dês que um Nordestino impôs, com argumentos, novos olhares sobre ins-titutos jurídico-penais havidos por cristalizados, tais como na abordagem dosfundamentos da tentativa8, só por exemplo.

Quando aqui se invoca o arrojo de Everardo da Cunha Luna na discussãode assuntos sacralizados nos vetustos meios científicos do Direito Penal, desta-cando o color sociopolítico dessas investidas, não se pode deixar ao largo ocomponente histórico que divide (ou insiste em dividir) este país continental emduas grandes porções populacionais, sob o sinete da “melhor situação”. Assim,desde a virada do Império para a República, essa demarcação de terrenos cres-ce em vida e só não se espalha mais em razão daqueles impeditivos já acimareportados (o reconhecimento dos próprios leste-sul-centristas e a insistênciados povos da outra metade).

Antonio Jorge de Siqueira, em “Nação e região: seus discursos fundado-res”9, situa a expansão desse mito da distorção regional a partir do segundoimpério, rumando ao final do Século Dezenove, mesclando elementos econômi-cos e políticos, estes carregando aqueles. Apoiado em José Antonio Gonsalvesde Mello, resgata trecho do editorial do Diário de Pernambuco, edição de29.08.1959, que assim diz:

“E como poucas vezes sucede que as Províncias do Norte sejam repre-sentadas no gabinete por algum filho seu, os seus interesses, por mais queeles importem à prosperidade geral, raras vezes são atendidos devida-mente. Ao passo que Províncias do Sul são largamente dotadas de toda asorte de melhoramentos, as do Norte só por um favor especial recebemde tempos em tempos um escasso subsídio que por minguado deixa mui-tas vezes de lhes aproveitar.”.

Nesse contexto, até Euclides da Cunha – quem diria – cometeu o quehoje chamam de “ato falho” em “À margem da história”, componente da sua“Obra completa”10, onde aborda o Brasil com a exclusão dos nordestinos po-

8 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura Jurídica do Crime. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva. 1993. p. 6.

9 SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Nação e região: seus discursos fundadores. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/obte025.pdf. Acesso em 07.03.2007.

10 CUNHA, Euclides. Obra completa.. vol. 1, 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 276.

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bres que ciganeavam em busca do eldorado da borracha, bandas do Acre con-flagrado. Veja-se:

“Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 fla-mejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam empoucas semanas de uma população adventícia, de famintos assombrosos,devorados das febres e das bexigas – a preocupação exclusiva dos po-deres públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões debárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às car-reiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte.”.

Flui do texto de Euclides da Cunha que o Brasil-nação, asséptico, pode-roso e rico, não se confunde e não contém o contingente populacional pobre,“bárbaros moribundos”. Estes infestavam negativamente aquele, do qual nãoeram parte, mas sim parasitas.

Essa cisma econômica, política e cultural rendeu muitas manifestações derebeldia, algumas delas investindo até mesmo contra o ideal da unidade nacio-nal, chantado inclusive no pórtico da Constituição Federal, logo no seu primeiroartigo. É o caso, por exemplo, da composição “Nordeste independente”11, au-toria de Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova12, clamando pela formatação jurídi-ca daquilo que entendem já existir no mundo dos fatos.

11 Letra de “Nordeste independente”, gravada por Elba Ramalho: “Já que existe no sul esse conceito/ Queo nordeste é ruim, seco e ingrato/ Já que existe a separação de fato/ É preciso torná-la de direito/ Quandoum dia qualquer isso for feito/ Todos dois vão lucrar imensamente/ Começando uma vida diferente/ De quea gente até hoje tem vivido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordeste ficar independente. // Dividindoa partir de Salvador/ O nordeste seria outro país/ Vigoroso, leal, rico e feliz/ Sem dever a ninguém noexterior/ Jangadeiro seria o senador/ O cassaco de roça era o suplente/ Cantador de viola o presidente/ Ovaqueiro era o líder do partido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordeste ficar independente // Em Recifeo distrito industrial/ O idioma ia ser nordestinense/ A bandeira de renda cearense/ “Asa Branca” era o hinonacional/ O folheto era o símbolo oficial/ A moeda, o tostão de antigamente/ Conselheiro seria oinconfidente/ Lampião, o herói inesquecido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordeste ficar independen-te // O Brasil ia ter de importar/ Do nordeste algodão, cana, caju/ Carnaúba, laranja, babaçu/ Abacaxi e osal de cozinhar/O arroz, o agave do lugar/ O petróleo, a cebola, o aguardente/ O nordeste é auto-suficiente/ O seu lucroseria garantido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordeste ficar independente // Se isso aí se tornarrealidade/ E alguém do Brasil nos visitar/ Nesse nosso país vai encontrar/ Confiança, respeito e amizade/Tem o pão repartido na metade,/ Tem o prato na mesa, a cama quente/ Brasileiro será irmão da gente/ Vaipra lá que será bem recebido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordeste ficar independente/ Eu não quero,com isso, que vocês/ Imaginem que eu tento ser grosseiro/ Pois se lembrem que o povo brasileiro/ É amigodo povo português/ Se um dia a separação se fez /Todos os dois se respeitam no presente/ Se isso aí já deucerto/ antigamente/ Nesse exemplo concreto e conhecido/ Imagina o Brasil ser dividido/ E o nordesteficar independente.”.

12 TAVARES, Bráulio. VILLANOVA, Ivanildo. Nordeste independente. In: Long-play nº , 823 030-1 -“Do jeito que a gente gosta”, Elba Ramalho. São Paulo: Ariola, 1984.

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Assim, a sã birra acadêmica de Everardo da Cunha Luna, conforme aci-ma foi pontuado, transcende, em muito, os domínios do puramente jurídico –onde já tem o seu devido e elevado valor – e alcança o domínio político daafirmação nordestina perante os destinatários da sua obra.

4. O ESTUDO DO CRIME EM SUA ESTRUTURAE EM SUA MANIFESTAÇÃO

Para que se construa um tipo penal, muito há que se analisar em termos deestrutura e manifestação dessa norma criada. Não basta apenas a vontade dolegislador nem a obediência cega aos parâmetros da política criminal instituídacom vistas ao processo legislativo. É necessário que se cubra de cientificidadeesse fruto do querer social (e não somente da vontade estatal), desde a escolhado bem jurídico timbrado de dignidade penal até a própria estrutura – aí numsentido de arcabouço mesmo – e a exteriorização do tipo.

Desse assunto ocupou-se Everardo da Cunha Luna no correr da sua obra,notadamente no livro “Estrutura Jurídica do Crime”13, trabalhando o fato punívelem sua estrutura e em sua manifestação. Diz o Professor da Escola do Recifeque na análise da estrutura considera-se o crime sob a ótica do seu próprioconjunto – aí a síntese do crime – e em seus elementos, é dizer, a análise docrime. E o fato punível, visto como um todo se expõe como fato jurídico e fatoantijurídico. Já visto pelas suas partes, mostra-se como fato material e fatomoral.

Pelo prisma da manifestação do fato punível, tinha o crime consideradoem circunstâncias e em formas, sendo aquelas os elementos acidentais do delitoe estas últimas a representação da tentativa, da consumação, da autoria, daparticipação, do concurso formal e do concurso material.

Uma abordagem aparentemente presa aos domínios da teoria estéril, tem,em verdade, grande importância na construção dos tipos penais, independente-mente do tempo em que se processe tal confecção.

No quesito antijuridicidade, por exemplo, é esta de tão vital importânciapara a formação e a formatação do delito, que Cláudio Roberto C. B. Bran-dão14 reforça a essencialidade do instituto nestes termos: “Faz prova de ser a

13 op. cit., p. 3.

14 BRANDÃO. Cláudio Roberto C. B. A importância da conceituação da antijuridicidade para a compreen-são da essência do crime. Revista de Informação Legislativa. a. 34. n. 133. Brasília: Senado Federal. 1997.p. 23.

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antijuridicidade a essência do crime o fato de todos os elementos do crime sóadquirirem significação jurídico-penal à luz da antijuridicidade.”.

O próprio Everardo da Cunha Luna15 elege a antijuridicidade como aessência do crime, estremando essa classificação da idéia-comum de que é elauma mera contrariedade ao direito. E não receia contestar a doutrina italiana:

“Dizer que a antijuridicidade é o elemento jurídico do crime (Petrocelli,Pricipi di diritto penalle, cit. p. 257) é, a nosso ver, incidir em um erro ecair numa tautologia: em erro, porque a antijuridicidade não é elemento;em tautologia, porque todos os elementos do crime, que é um ente jurídi-co, são, necessariamente, jurídicos. Elementos são fatos, fato material efato psíquico, como elemento do crime. A antijuridicidade não é fato, nãopode ser elemento. A antijuridicidade é juízo, não podendo, por isso,figurar, ao lado do fato material e do fato psíquico, como elemento docrime. É manifesta a heterogeneidade dos termos (Carnelutti, Teoria Ge-nerale del reato, cit., p. 82-3, nota 2). Depois de verificar-se que umdeterminado fato é contrário ao direito, isto é, depois de verificada a an-tijuridicidade do fato, passa-se à decomposição do crime em seus ele-mentos constitutivos (Antolisei, Problemi penali odierni, cit. p. 122-3).

Em suma muitíssimo apertada, pode ser sintetizado o pensamento de Eve-rardo da Cunha Luna, acerca da matéria em foco, na assertiva de que a teoriajurídica do crime estuda o fato punível desde a sua estrutura (conjunto do cri-me, integrado pela síntese e pelos elementos) e da sua manifestação, integradapelas circunstâncias (elementos acidentais do fato punível) e pelas formas (ten-tativa e consumação; autoria e participação; concurso material e concurso for-mal).

Já especificamente sobre a estrutura do crime, a formulação conceitual deEverardo Luna se bifurca em síntese e análise. A síntese do crime subdivididaem fato jurídico e fato antijurídico. A análise do crime em fato material e fatomoral.

5. SELETA, MAIS QUE PONTUAL,DAS OPINIÕES DE EVERARDO LUNA

Delineada e firme foi a opinião de Everardo da Cunha Luna sobre o em-bate teórico (mas com inegáveis reflexos no campo prático) de ser o crime um

15 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura jurídica do crime, cit., p. 49.

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ato ou um fato jurídico. No seu entender, o crime é fato e é, ao mesmo tempo,um fato jurídico, pois assim é definido pelo direito, e um fato antijurídico, dêsque contrário ao ordenamento jurídico.

Só não aceitava o argumento de que o crime é um ato jurídico, comoqueria Pontes de Miranda16 ao justificar que “atos jurídicos não são somente osatos conforme o direito, os atos (lícitos) sobre os quais a regra jurídica incide,regulando-os; são também os atos ilícitos sobre os quais incidem regras penais”.Preferiu Everardo Luna acatar a doutrina de José Frederico Marques17, queafirmou ser o delito “um fato jurídico voluntário, não possuindo, porém, apesardo elemento volitivo, os traços específicos do ato jurídico. É que a ação delitu-osa se prende a um ato de vontade, enquanto, seus efeitos jurídicos, consubs-tanciados nas sanções punitivas, não decorrem do querer do agente.”.

Já a propósito das circunstâncias do crime, declarou Everardo Luna quenão existem delitos sem elas. Não há um crime exclusivamente nuclear; é impos-sível esse isolamento absoluto do crime, que só se sustenta como ocorrência(anti)social nos outros fatos e influências que o rodeiam. Diz o Professor18: “Porserem as circunstâncias elementos acidentais do crime, não se pode falar em umcrime incircunstanciado. Todos os crimes são circunstanciados, o que significaque todos os crimes são acompanhados dessa ou daquela circunstância.”. Nes-sa linha, por exemplo, o homicídio será sempre o tipo fundamental e as circuns-tâncias de tempo e lugar podem criar tipos privilegiados ou qualificados.

No estudo do crime a partir da sua forma, lembra o autor em destaqueque não existe uma divergência ontológica entre crime tentado e crime consu-mado. Ao seu pensar, para ambos existe um só fundamento: “O fundamento datentativa é o mesmo do crime consumado. Não há por que procurar outro fun-damento: o crime tentado é o fato determinado e concreto, cuja sanção eficaz éa adequada pena criminal.”19.

Também interessante é a visão deixada por Everardo Luna acerca daautoria e da participação. Focando o problema a partir da teoria da equiva-lência das causas, com mitigação, adotada no nosso Direito Penal e estampada

16 MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado de Direito Privado, v. 1. Rio de Janeiro: Forense. 1954. p.80.

17 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, v. 2. São Paulo: Saraiva. 1967. p. 34.

18 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura..., cit. p. 5.

19 LUNA, Everardo da Cunha. ob. cit., pp. 5 e 6.

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no Código Penal em vigor, art. 2920, afirma que entre autoria e participaçãoexiste uma diferença apenas quantitativa e não qualitativa. Assim, cada par-ticipante do fato plurissubjetivo deve ser castigado conforme a sua própria cul-pabilidade, sem importar a dos demais.

O objetivo desta parte do presente artigo outro não foi senão o de joeirarpoucas – porém emblemáticas – opiniões de Everardo da Cunha Luna a propó-sito de elementos da teoria do delito, mostrando como permanecem atuais ecomo servem à construção de novos tipos criminais, bem como à interpretaçãoe à aplicação das suas normas de regência.

6. SUBSUNÇÃO DE ALGUNS ASPECTOS DA CHAMADA LEI

DOS CRIMES AMBIENTAIS (LEI 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1988)À DOUTRINA DE EVERARDO LUNA

A comunidade jurídica ligada às questões ambientais, refletindo o restanteda sociedade, rejubilou-se com a edição da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de1998, que trouxe para o campo infraconstitucional a regulamentação do que jáestatuíra a Carta Magna de 1988, no art. 226, § 3º, em termos de proteçãopenal do meio ambiente. Esse diploma, embora não seja exclusivamente de ín-dole penal, já que contempla também aspectos administrativos, tem a maioriado seu corpo dedicado à matéria penal ambiental.

Obviamente, na elaboração de um diploma de elevada importância comoé a Lei 9.605/98, não pode descurar o legislador de dar olhos para o amparocientífico firmado a partir de idéias claras e bem fundamentadas preexistentes nomundo da teoria do crime, a exemplo daquelas profligadas por Everardo daCunha Luna. Isso é afirmado tanto no sentido de acatamento dessas idéias,como no sentido de descarte das mesmas, sendo que nesta última acepção,mercê da própria respeitabilidade, servem de contraponto para opções diver-gentes bem justificadas, como veremos adiante.

Veja-se o que ocorre com o art. 2º do diploma em apreço, que assimdispõe:

20 “Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medidade sua culpabilidade.§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essapena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”.

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“Art. 2º. Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimesprevistos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da suaculpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conse-lho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário depessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar deimpedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.”.

Tem-se aí, de forma clara, a presença da teoria da equivalência dascondições, consagrada no Código Penal, art. 29 e repetida na legislação espe-cial. Assim, a afirmação de que aquele que “de qualquer forma, concorre para aprática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, namedida da sua culpabilidade”, consagra, em termos legislativos, o posiciona-mento de Everardo Luna no que diz respeito à existência de mera diferençaquantitativa – e não qualitativa – entre autoria e participação, conforme já foiantes alinhado neste trabalho.

Outro aspecto interessante, no corpo do mesmo artigo de lei acima trans-crito, diz da omissão penalmente relevante ao rol de pessoas que poderiam edeveriam agir para evitar a prática do crime ambiental. Cada um desses agentesque, “sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática,quando podia agir para evitá-la”, incide nas penas previstas. Boa, neste particu-lar, a opinião de Everardo Luna21: “Ação e omissão representam as formas deconduta humana que corporificam o ilícito penal, ora consideradas, por lei edoutrina, como entes autônomos, ora unidas numa superior categoria, sob adenominação comum de atividade, ação, conduta, comportamento, fato. So-mos partidários (...) do conceito unitário, o que não impede, é evidente, deacolhermos as formas, variadas e ricas, com que a ação se manifesta na realida-de social e jurídica.”.

Eivado de previsível vocação para polêmicas, veio a lume no art. 225, §3º, da Constituição Federal a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, dis-ciplinada ordinariamente na Lei 9.605/98, assim posta:

“Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civile penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração

21 LUNA, Everardo da Cunha. Revista Acadêmica, a. LXIII – 1966 – 1967. A causalidade na omissão, noanteprojeto de Código Penal. Recife: Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito. 1967,p. 77.

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seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou deseu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui adas pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.”.

Os argumentos dos que contestam a possibilidade de a pessoa jurídicaser penalmente responsável têm as mais diversificadas origens, indo desde ainutilidade da intervenção estatal em casos tais, até a curiosa interpretação divi-dida do art. 225, § 3º do texto constitucional, numa singular ligação entre res-ponsabilidade administrativa (somente sanções administrativas para pessoas ju-rídicas) e responsabilidade penal (somente sanções penais stricto sensu para aspessoas físicas). Everardo Luna, embora escrevendo antes mesmo da vigênciada Carta Política de 1988, abordou o tema com temperança. De início, afirma22:“Cousas, animais e pessoas jurídicas, portanto, não podem ser sujeito ativo docrime.”. E mais adiante contemporiza23: “Quanto às pessoas jurídicas, o assuntoainda não está inteiramente pacificado, havendo mesmo quem, na doutrina, afir-me a capacidade penal dessas entidades coletivas, num esforço para contrariaro princípio societas delinquere non potest, tão arraigado na consciência jurídi-co-penal moderna quanto o princípio da reserva legal nullum crimem, nullapoena sine lege.”. Depois define a sua posição: “As medidas, portando, a se-rem tomadas contra a atividade subversiva das pessoas jurídicas, não são medi-das de natureza jurídico-penal, mas administrativas, medidas de polícia.”.

Como já dito, a questão da responsabilidade criminal das pessoas jurídi-cas ainda hoje, passados tantos anos da sua inserção formal no mercado legis-lativo brasileiro, desperta oposições e defesas consistentes. Na linha de contes-tação a essa responsabilidade filiam-se, em pleno acordo com a opinião deEverardo Luna, doutrinadores da estirpe de Luiz Vicente Cernicchiaro24, JoséCarlos de Oliveira Robaldo25, René Ariel Dotti26, Cezar Roberto Bitencourt27,

22 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura..., cit., p. 19.23 op. cit., pp. 19 e 20.24 Direito Penal na Constituição, 2ª edição. São Paulo: Editora RT, 1991.25 ROBALDO, José Carlos de Oliveira. A responsabilidade penal da pessoa jurídica: Direito Penal nacontramão da história. In: GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidasprovisórias e Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 95-103.26 DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica (Uma perspectiva do direito brasileiro),Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 3, nº 11,São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, julho-setembro de 1995, ps. 184 a 207.27 BITENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GO-MES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.51-71.

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Luiz Regis Prado28 e José Henrique Pierangelli29, exemplificativamente. No ladooposto, em defesa dessa mesma responsabilização estão Toshio Mukai30, PauloAffonso Leme Machado31, Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos deFreitas32, Fernando Antonio Nogueira Galvão da Rocha 33, Klauss Tiedemann34,Ada Pellegrini Grinover35, João Marcello de Araújo Júnior36, Maria CelesteCordeiro Leite dos Santos37, Sérgio Salomão Shecaira38, William Terra de Oli-veira39, Luiz Antonio Bonat40, Tupinambá Pinto de Azevedo41, Walter ClaudiusRothemburg42 e Artur Migliari Júnior43, entre outros.

28 Direito Penal Ambiental (Problemas Fundamentais). São Paulo: Editora RT, 1992, p. 84.29 PIERANGELLI, José Henrique. A Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas e a Constituição, emRevista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, vol. I, nº 28, Porto Alegre, 1992, p. 56.30 Direito Ambiental Sistematizado, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 79.31 Direito Ambiental Brasileiro, 4a. edição. S. Paulo: Malheiros, 1992, p. 35.32 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8a. edição. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006. p. 66.33 ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. BeloHorizonte: Del Rey, 2003.34 TIEDEMANN, Klauss. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em el Derecho compa-rado. In: GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias eDireito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.25-45.35 GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In:GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.46-50.36 ARAÚJO JÚNIOR, João Marcelo de. Societas delinquere potest. In: GOMES, Luiz Flávio. Responsabi-lidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1999, p.72-94.37 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES,Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.104-130.38 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Editora RT, 1998.39 OLIVEIRA, William Terra. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e sistema de imputação. In:GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.160-174.40 BONAT, Luiz Antonio. Pessoa Jurídica: das penas aplicadas e dosimetria. Revista Brasileira de DireitoAmbiental, São Paulo: Editora RT, ano 11, n. 42, p. 75-100.41 AZEVEDO, Tupinambá Pinto. Crime ambiental: anotações sobre a representação, em juízo, da pessoajurídica e seu interrogatório. Revista Brasileira de Direito Ambiental, São Paulo: Editora RT, ano 11, n.42, p. 208-240.42 ROTHEMBURG, Walter Claudius. A responsabilidade jurídica da pessoa criminosa. Curitiba, JuruáEditora. 1997.43 MIGLIARI JÚNIOR, Arthur. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo/Campinas: LexEditora e CS Edições Ltda, 2002.

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O autor destas linhas, por exemplo, filia-se ao rol dos que entendem pelacompatibilidade constitucional dessa responsabilização, fundado no afastamen-to do elemento culpabilidade, integrante do crime, para substituí-lo pelo risco epela disfunção. Sobre o assunto, em tese apresentada para o seu doutoramentoem Direito44, assim foi dito:

“Repisa-se, nesta quadra, que a culpabilidade continua a ser um elementodefinidor da responsabilidade penal da pessoa individual (ou física). Es-teia-se, na construção do delito, na conduta (positiva ou negativa) desen-volvida pelo autor ou partícipe direto do crime. Mas também não é menoscerto que esse elemento, a culpabilidade, é plenamente dispensável quan-do se perquire a responsabilização penal das pessoas jurídicas. Aí a cul-pabilidade cede lugar ao risco e à disfunção. Aliás, ainda com a atribuiçãoà culpabilidade do status de dogma, em termos de construção do delitoformal clássico (aquele atribuído exclusivamente à pessoa física), é certodizer que esse vem sendo relativizado há tempos, conforme lembra Eve-rardo da Cunha Luna45 46, ao registrar que muitos autores têm como deresponsabilidade objetiva os crimes insertos no Código Penal como pre-terintencionais ou qualificados pelo resultado47. No meio desses autoresestá o próprio Everardo da Cunha Luna48, porém afirmando que essasocorrências são excepcionais, uns tipos anômalos de delito, que comoexceptio não podem justificar a destruição de uma doutrina edificada paraa grande maioria dos crimes como fundamento na culpabilidade, rema-tando assim: “Quando muito, poder-se-ia conceber uma doutrina particu-lar da exceção, se destas os casos se impusessem pelo número e pelo

44 CARVALHO, Ivan Lira de. Proteção penal do ambiente: eficácia, efetividade e eficiência do conjuntonormativo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2006. pp. 165 a 166.

45 Ob. cit., p. 89.

46 Deve ser lembrado, para fins de contextualização, que a argumentação aqui reproduzida foi traçada porEverardo da Cunha Luna no ano de 1958, quando da apresentação da sua tese de livre-docência à Faculdadede Direito do Recife, posteriormente transformada no livro acima citado, cujo texto foi revisto em 1991,pouco antes da morte do referido autor.

47 A lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, § 7º), a omissão de socorro seguida de morte (CP, art.135, parágrafo único) e o latrocínio (CP, art. 157, § 3º)

48 Ob. cit., pp. 89-90.

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valor (Nunes, La culpabilidad en el Código Penal, Buenos Aires, 1946,p. 24-6), o que não acontece na matéria de que nos ocupamos.”.Há que ser indagado: e a proteção penal do ambiente, da ordem consu-merista e da ordem econômica não pode ser arrolada como essa “exce-ção” lembrada por Everardo Luna, de sorte a desafiar a responsabiliza-ção penal das pessoas jurídicas? Parece-nos razoável que sim, especial-mente se for tomado em conta que toda a teoria clássica da estruturaçãodo crime foi edificada em uma época em que os problemas sociais nãoeram tão destacados nas mencionadas áreas (meio ambiente, consumo eordem econômica) e a macrocriminalidade apenas engatinhava. O queera exercício de futurologia à época da publicação da obra do destacadopenalista da Escola do Recife, atualmente é realidade e objeto de preocu-pação de juristas e de outros responsáveis pela consecução de remédiosoficiais para os males impostos aos citados bens jurídicos.”.

A excelência de posicionamentos como o de Everardo Luna acerca daresponsabilidade penal da pessoa jurídica serve até mesmo para qualificar asidéias que lhe são antagônicas e mantêm acesas as chamas do debate, paraaperfeiçoamento do instituto ou mesmo o seu banimento – hipótese remota – douniverso jurídico nacional.

Outro ponto da Lei 9.605/98 que agradece o contributo de EverardoLuna para a vivificação da norma diz respeito às regras específicas para a apli-cação da pena nos crimes ambientais. Estatui o diploma ambiental:

“Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade compe-tente observará: I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suasconseqüências para a saúde pública e para o meio ambiente;II - os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação deinteresse ambiental;III - a situação econômica do infrator, no caso de multa.”.

Estabeleceu-se, nesse artigo, a necessidade de o aplicador do Direitosubsumir os fatos criminosos ao crivo da essencialidade e da circunstancialida-de, para fins da imposição e da gradação da pena. Aí entra a importante afirma-

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ção de Everardo Luna49, destacando as circunstâncias como indispensáveis paraa realização e para a caracterização dos delitos, bem como para a modulaçãodas penas. É enfático, definindo o papel desse elemento: “As circunstânciasgraduam a pena, não o crime.”50.

Outro aspecto que tem merecido discussões acerca da Lei 9.605/98 dizrespeito à possível infidelidade do art. 54 ao princípio da legalidade estrita, maisespecificamente ao subprincípio da lex certa. Assim é o caput do artigo emreferência:

“Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resul-tem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem amortandade de animais ou a destruição significativa da flora:”.

É criticada a redação do artigo, por usar expressões vagas, como “dequalquer natureza”, “em níveis tais” e “destruição significativa”, o que, em pri-meiro olhar, tem o apoio da doutrina de Everardo Luna51, assim exposta: “Areserva legal e o tipo penal constituem uma garantia para o cidadão, mas areserva legal não alcança os tipos demasiado abertos (...). Desse modo não secompadecem, como conceito moderno da reserva legal e da certeza jurídica,descrições como estas: violar a ordem democrática, violar o regímem políticoetc.”.

Como dito em ponto anterior, até mesmo para ser contrariada a doutrinade Everardo da Cunha Luna tem grande importância. Com efeito, a ampliaçãodos fatos anti-sociais e o crescimento da necessidade de que o Direito Penaladquira maior flexibilidade – sem esquecer as garantias individuais básicas –para rebatê-los, tem exigido do criador e do manejador dessa rama do DireitoPúblico uma plasticidade mais consentânea com a proteção do bem jurídicotutelado. Assim, sendo o bem jurídico meio ambiente portador de inequívocafragilidade, é razoável a exceção que se abre à rigidez do sub-princípio da lexcerta. Em trabalho acadêmico acima já reportado, defendi a seguinte posição52:

49 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura..., cit., p. 5.

50 LUNA, Everardo da Cunha. Capítulos de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva. 1985. p. 24.

51 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura..., cit., p. 36.

52 CARVALHO, Ivan Lira de. Proteção penal do ambiente: eficácia, efetividade e eficiência do conjuntonormativo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2006. p. 159 a 160.

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“Volvendo ao cerne da problemática dos tipos abertos, lembra Franciscode Assis Toledo53 que a exigência de lei certa diz respeito à clareza dostipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem “abusar do empregode normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.”. Vê-se, da lição de Assis Toledo, que não devem ser tolerados o “abuso doemprego” de normas “muito gerais” e de tipos incriminadores “genéricos”e “vazios”. Pois, mesmo com o autorizativo ético de flexibilizar o fecha-mento dos tipos penais respeitantes ao meio ambiente, o legislador de1988 assim não agiu – pelo menos nos dispositivos acima comentados –dês que sobre eles não cabem os qualificativos de “muito gerais”, “gené-ricos”, “vazios” ou abusivos.Outro que assim explica a matéria tipos penais abertos é René Ariel Dot-ti54, quando diz: “A opinião dominante rechaça a teoria dos tipos abertose reprova o abuso que o legislador comete ao se exceder na previsão detais normas”. Novamente o esclarecimento de que o reprovável é o abusoe o excedimento na produção de normas com essa característica. Porsinal, sem imputar-lhes a pecha de inconstitucionais ou de imprestáveis,René Ariel Doti arrola como casos de tipos penais abertos no vigenteordenamento penal brasileiros, os seguintes: a) crimes culposos (CP, art.18, II; art. 121, § 3º; art. 129, § 6º; art. 180, § 1º; e 250, § 2º, dentreoutros); b) os crimes comissivos por omissão (CP, art. 13, § 2º); c) doscrimes cujo preceito se refere à ilicitude “com o emprego de expressõesou vocábulos como ‘contra a vontade expressa ou tácita de quem dedireito’ (CP, art. 150); ‘indevidamente’ (CP, arts 151; 151, § 1º, I e II);‘sem justa causa’ (CP, arts. 153 e 154); ‘sem consentimento de quem dedireito’ (CP, art. 164); ‘sem a necessária autorização’ (Lei nº 6.453/77,art. 20), etc.”.É de ser repetido que o chamado Direito Penal “clássico” admite, commoderação, o uso de tipos penais flexibilizados (ou “abertos”, conformenomina a maioria da doutrina). Com maior razão, portanto, tendo emvista as peculiaridades do bem jurídico que protege, que esses tipos flexí-veis sejam acolhidos, com normalidade, no âmbito do Direito Penal Am-biental, desde que não configurem prática abusiva.”.

53 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 4a. edição. São Paulo, Saraiva. 1991.p. 29.

54 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro, Forense, 2002. pp. 60 a 61.

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Portanto, no exemplo em foco, é permitida a flexibilização da rigidez dotexto da norma penal, em homenagem à fragilidade do bem jurídico protegido,isto é, do meio ambiente.

7. A CONTRIBUIÇÃO DE EVERARDO LUNA AO ANTEPROJETO

DE CÓDIGO PENAL DE 1983. PARALELISMO COM TIPOS

CRIADOS RECENTEMENTE OU EM VIAS DE CRIAÇÃO

O Código Penal brasileiro, vigente desde 1º de janeiro de 1942, temreclamado sucessivas modificações, ora pontuais ora de forma mais abrangente.Assim foi que se operou a grande reforma da Parte Geral, implementada pelaLei 7.209, de 11 de julho de 1984 e assim também acontece nas reformassetoriais levadas a efeito por leis esparsas, principalmente na Parte Especial.

Uma dessas investidas reformadoras do Código Penal foi materializadaatravés da Portaria nº 518, de 06 de setembro de 1983, do Ministério da Justi-ça, designando - para o mister de elaborar um anteprojeto da Parte Especial -uma comissão formada por Francisco de Assis Toledo, Luiz Vicente Cernicchi-aro, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, Manoel Pedro Pimentel, Everardoda Cunha Luna, Jair Leonardo Lopes, Ricardo Antunes Andreucci, Sérgio Mar-cos de Moraes Pitombo e José Bonifácio Diniz de Andrada. Fruto de profícuasdiscussões entre os membros, restou um texto consentâneo com a realidadesocial e política do Brasil de então, contendo também previsões bem avançadaspara a época, antevendo assuntos até então ainda não perfeitamente delineadosnas relações da sociedade, mas já despertando preocupações, como é o exem-plo dos temas ambientais, de bioética e de informática.

A 27 de outubro de 1987, o Ministro da Justiça fez publicar a Portaria nº790, dando divulgação ao texto em apreço, bem como a fundada exposição dopenalista Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, fazendo um apanhado do conteú-do do anteprojeto em referência. Um trabalho plúrimo, sem conhecida reservade assuntos para este ou aquele membro, demonstra a sensibilidade de todos ede cada um para os problemas sociais com reflexos criminais que já afligiam ouameaçavam as relações interpessoais e interinstitucionais. Destarte, os pontosque adiante serão comentados têm a autoria creditada à comissão, não se po-dendo escolher um ou outro membro como donatário da idéia. Mas é certo quepelo assentimento ou pela efetiva colaboração de todos pode-se homenagear –pelo menos neste artigo – o contributo de um dos seus integrantes para o des-cortino de assuntos até bem polêmicos na área penal.

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O anteprojeto, ao cuidar dos crimes contra a vida, contemplou a ortota-násia55, que é justamente a possibilidade de exclusão de ilicitude quando se fazcessar a vida de um moribundo sem comprovadas chances de restabelecer avida com um mínimo de dignidade. O assunto tem levado ao embate opiniões asmais diversas. Exemplo disso é a opinião de Edílson Miguel da Silva Júnior56,para quem “o direito à vida não pode ser aplicado para se exigir tratamento inútile doloroso de doente terminal porque nega o valor que busca realizar, isto é: adignidade da pessoa humana.”. E arremata57: “Submeter doente terminal, contravontade consciente e esclarecida, a tratamento que apenas prolonga artificial-mente o seu sofrimento, viola sua condição de pessoa humana para transformá-lo, na hora da morte, em mera coisa – algo sem direitos. Por isso, a ortotanásianão é um crime, mas procedimento médico de cuidado e respeito à pessoahumana na hora certa da sua morte.”.

Com referência ao aborto, ampliou a exclusão de ilicitude, contemplandoa hipótese de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas oumentais58. Mesmo de lege ferenda o tema foi discutido no âmbito do SupremoTribunal Federal, como no caso do habeas corpus 8425, originário da Comar-ca de Teresópolis, Relator Ministro Joaquim Barbosa, onde uma gestante tenta-va interromper a gravidez, em razão do diagnóstico de acrania (ausência decrânio) do feto. O assunto está sempre na pauta do parlamento brasileiro e temade diversos fóruns especializados, com prós e contras.

O anteprojeto em comento deu larga importância à pessoa jurídica59 nocampo penal, deixando claro a possibilidade desta ser sujeito passivo de crimes

55 “Art. 121 - § 4º. Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, sepreviamente atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consenti-mento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.”.

56 SILVA JÚNIOR, Edílson Miguel da. Consultor Jurídico. Ortotonásia não é crime. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/54046,1. Acessado em 04.03.2007.

57 op. cit.

58 “Art. 127. Não constitui crime o aborto provocado por médico, se:I - não há outro meio de salvar a vida ou preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante;II - a gravidez resulta da prática de crime contra a liberdade sexual;III - há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves eirreversíveis anomalias que o tornem inviável.§ 1º. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I, o aborto deve ser precedido deconsentimento da gestante ou, se menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representantelegal, do cônjuge ou companheiro.”.

59 “Art. 140- Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de abalar o conceito ou o crédito de pessoajurídica: Pena – Detenção, de sete meses a dois anos e multa.

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contra a honra, protegendo o seu crédito de abalos infundados. Reflexo dessearrojo na inserção da pessoa jurídica como sujeito do Direito Penal, de modo aque não mais se questionasse a estrita legalidade desse albergamento, foi a che-gada, para o nosso sistema penal, da figuração da pessoa moral como respon-sável criminal, a exemplo do que dispõe o art. 225, § 3º, da Constituição Fede-ral de 1988, regulamentado no art. 3º da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

Também ousou o anteprojeto ao deitar proteção à vida privada, tutelandonão apenas a casa, mas também a intimidade e a imagem, enfeixando o abusode informática60. Anteviu, pois, a importância que as comunicações virtuaisteriam na vida social vindoura, tanto para esta trazendo benefícios como oportu-nizando condutas distanciadas da ética, ensejadores de resposta penal. Nessalinha foi que surgiram diversos projetos de lei criminalizando condutas reprová-veis perpetradas por meios informáticos, a exemplo do PL 84-1999, subscritopelo Deputado Luiz Piauhylino e a PEC 407-2005, subscrita pelos DeputadosJosé Ivo e outros.

No que tange aos crimes contra o patrimônio, o anteprojeto contem-plou a fraude de publicidade enganosa61 que veio a ser materializada anosdepois no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de1990), artigos 66 a 68.

Buscando proteção para o trabalho humano, o anteprojeto foi avançadoaté na sua omissão: deixou de criminalizar a greve. Ocupou-se, tão-somente, dagarantia da liberdade de trabalhar e de assegurar a organização do labor (arts.208 a 219).

Tutelando penalmente a propriedade imaterial, antecipou-se o antepro-jeto, nos artigos 197 a 207, à cruzada contra a chamada “pirataria” que infelici-ta os meios fabris hodiernos, com reflexos negativos inclusive na arrecadação de

60 “Art. 155. Violar, mediante processo técnico ou qualquer outro meio, o resguardo sobre fato, imagem,escrito ou palavra, que alguém queira manter na intimidade da vida privada de alguém: Pena – detenção,de um mês a um ano, e multa.Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, indevidamente, revela ou divulga fato, imagem, escrito oupalavra, obtidos por ele ou por outrem, ainda que deles tenha participado.Art. 156 – Fornecer ou utilizar, indevidamente, dado da vida privada de alguém, constante de fichárioautomatizado: Pena – Detenção, de três meses a um ano.”.

61 “Art. 184 – Enganar, no exercício de atividade comercial, o adquirente ou consumidor: I – vendendo,como verdadeira ou perfeita, mercadoria danificada ou deteriorada; II – entregando uma mercadoria poroutra: Pena – reclusão, de sete meses a dois anos e multa.Parágrafo único: Incorre na mesma pena quem, mediante publicidade, induz ou mantém em erro sobre anatureza, a qualidade e a quantidade de bens ou serviços.

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tributos e na empregabilidade da mão-de-obra nacional, circunstâncias que exi-giram a modificação do Código Penal de 1940 através da Lei 10.695, de 1º dejulho de 2003, com incidência nos artigos 184 e 186.

Ao cuidar dos crimes contra os costumes, o anteprojeto eliminou a pre-sunção absoluta de violência, esta ainda formalmente em vigor no art. 224 doCódigo Penal de 1940. Com a extirpação de um instituto que não condiz comum Direito Penal da culpabilidade, o anteprojeto antecipou-se ao posiciona-mento do Supremo Tribunal Federal62, ainda claudicante, mas já sinalizandoprogresso nesse sentido.

Nos crimes contra a família, o anteprojeto descriminalizou o adultério,buscando livrar o sistema jurídico-penal brasileiro dessa fonte de chacota, jáque o nosso país era um dos poucos ditos “civilizados” e, principalmente, laicos,que ainda mantinha essa risível figura criminal. Com o advento da Lei 11.106, de28 de março de 2005, foi revogado o art. 240 do Código Penal.

Novamente vanguardista foi o anteprojeto ao criar o tipo de abuso deradiação63, o que depois veio a ser materializado, ainda que de forma maisabrangente, através do art. 54 da Lei 9.605/98.

Inovador foi o anteprojeto ao cuidar dos crimes contra a administraçãoda justiça, indo da coação indireta no curso do processo até a violação deprerrogativa legal de advogado. Sensibilidade demonstrada por Everardo Lunae seus parceiros na empreitada reformadora do Código Penal para os gravesproblemas enfrentados para que sejam implementadas, de fato e de direito, asdecisões judiciais64.

62EMENTA: ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO- VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NA-TUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ougrave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos,é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos aaparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusãosobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea “a”, do CódigoPenal. (Habeas Corpus n.º 73.662 - MG, Relator Ministro Marco Aurélio, D.J.U. 20.09.96)

63 “Art. 266 – Usar radiação ionizante ou substância radioativa, expondo a perigo a vida, a integridadecorporal, a saúde ou o patrimônio de outrem: Pena – reclusão de um a quatro anos e multa.Parágrafo único – Se o crime é culposo: Pena – Detenção, de três meses a um ano.”

64 A propósito, em artigo que publiquei sob o título “O descumprimento de ordem judicial por funcionáriopúblico”, publicado na Revista dos Tribunais, vol. 83, nº 709, 1994, págs. 295 a 301, assim me expressei:“Afirma, preocupado, FÁBIO BITTENCOURT DA ROSA: ‘Se a desobediência a ordem judicial nãotipifica o crime do artigo 330 do Código Penal, quando praticado por servidor público, outra solução temque ser estabelecida em nível legislativo.’65. E tem razão o juiz gaúcho em clamar por um remédio que sirvaa coartar procedimentos como o acima referido, já que a prisão por desatenção a ordem judicial não estáprevista na legislação nacional com força executiva, como ocorre aos inadimplentes de pensão alimen-tícia e aos depositários infiéis.”.

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Ainda do trato das questões ambientais, o anteprojeto ocupou-se, nosartigos 401 a 414, de deitar tutela penal a bens jurídicos da maior relevância,criminalizando condutas poluidoras da água, do ar e do solo, além de atentadoscontra a flora, a fauna e a paisagem, bem como punindo os que favorecem oscrimes contra o meio ambiente e os que investem contra a memória nacional.Como é de fácil conferência, todos esses temas foram versados, anos após, naLei 9.605/98.

Visto assim, em rápida abordagem, o contributo de Everardo da CunhaLuna e dos demais membros da Comissão de Revisão do Código Penal para aformulação de novos tipos penais, alguns deles ainda estando em processo le-gislativo, bem como a influência das idéias veiculadas no citado anteprojeto naconstrução da jurisprudência moderna.

8. CONCLUSÕES

Abordados aspectos pontuais do pensamento e da obra de Everardo daCunha Luna, é possível a formulação das seguintes conclusões:

A. Mesmo que o cenário jurídico sofra mudanças, especialmente emrazão da reformulação das leis, as obras doutrinárias de sabido con-forto teórico se protraem no tempo, não perecendo a sua utilidadecom a derrogação ou com a ab-rogação das leis.

B. Um traço fundamental da obra de Everado Luna foi o de veicular oseu inconformismo com o establishment das idéias formatadas nosgrandes centros culturais ou por nomes já consagrados das CiênciasPenais. Quando não concordava com a visão ou com o emprego dedeterminados institutos jurídicos, formulava a sua própria doutrina,em sede de respeitosa oposição.

C. O estudo do crime, como fenômeno social e como insumo para aelaboração de tutela normativa, não prescinde de uma análise da suaprópria estrutura, bifurcada em síntese e análise do fato punível,bem assim de uma abordagem a propósito da sua manifestação,esta última considerada em circunstâncias e em formas.

D. O crime é, a um só tempo, um fato jurídico (definido pelo direito) eantijurídico (contrário ao ordenamento jurídico).

E. Não existem delitos sem circunstâncias, diante da impossibilidadedo isolamento absoluto do crime dos outros elementos que influenci-aram a sua ocorrência ou que defluem da sua perpetração.

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F. Não há diferença ontológica entre crime tentado e crime consumado,mercê da unicidade de fundamento para ambas as formas (ou fases)do fato punível.

G. Entre autoria e participação existe apenas uma diferença qualitati-va e não quantitativa, de modo que cada participante do fato pluri-subjetivo deve ter resposta penal de conformidade com a sua própriaculpabilidade, sendo desimportante a culpabilidade dos demais ato-res do quadro delitivo.

H. Embora Everardo Luna tenha recusado, em primeiro momento, aresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, hoje regulamentadano art. 3º da Lei. 9.605/98, findou por fornecer argumentos que hojeservem para sustentar essa possibilidade, quando admitiu a mitigaçãoda presença da culpabilidade na construção do crime, especifica-mente nos delitos preterintencionais ou qualificados pelo resultado.

I. Também está na obra de Everardo Luna o contributo para a imposi-ção e gradação da pena, antevista no art. 6º da Lei 9.605/98, a partirdo destaque que o autor deu às circunstâncias, tendo-as como indis-pensáveis para a realização e para a caracterização dos delitos, assimcomo para a modulação das penas.

J. É de inegável importância para o enriquecimento do debate, a posi-ção Everardo Luna em prol do princípio da estrita legalidade, quese contrapõe à flexibilidade do art. 54 da Lei 9.605/98.

K. A participação de Everado da Cunha Luna na Comissão que elabo-rou o Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal outorgou ine-gável contribuição para a construção de muitos tipos penais que vie-ram a lume mesmo após o seu falecimento. Igualmente para a discus-são de idéias penais rodeadas de controvertibilidade, a exemplo daortotanásia, do aborto eugenésico, do abuso de informática, dafraude de publicidade enganosa, da greve, da propriedade imate-rial, da presunção de violência nos crimes sexuais, do adultério,do abuso de radiação, dos crimes contra a administração da jus-tiça e tantos mais assuntos de índole ambiental, como poluição dosolo, do ar e da água, bem assim atentados contra a flora, a fauna,a paisagem e a memória nacional.

Pouco foi exposto do muito que poderia ser dito acerca da considerávelcontribuição de Everardo da Cunha Luna na constituição ou na consolidaçãodos tipos penais atualmente em vigor ou em fase de gestação legislativa.

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Entretanto, crê-se ter sido resgatado o objetivo primaz deste trabalho,que é justamente despertar no meio acadêmico e profissional dos que labutamcom o Direito Penal atualmente, a necessidade de investigar as idéias e os suple-mentos dos que, em passado recente ou remoto, deram lastro para a formata-ção de um Direito Penal equilibrado, eficiente e eficaz. E assim é que pode servista a obra de Everardo da Cunha Luna.

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O ERRO NO DIREITO PENALO erro sobre a ilicitude no Código Penal,

interpretado pelo Professor Everardo da Cunha Luna

Eleonora de Souza LunaProcuradora de Justiça

O tema a ser analisado – a interpretação do erro sobre a ilicitude noCódigo Penal, na visão do Professor Everardo da Cunha Luna – obriga-nos,primeiramente, a apresentar de forma superficial o seu entendimento dos princi-pais institutos da teoria do crime, a fim de melhor compreender um tema especí-fico - o erro sobre a ilicitude do fato.

Nas obras Estrutura Jurídica do Crime1 e Capítulos de Direito Penal2,Professor Everardo da Cunha Luna expôs a sua interpretação dos institutosessenciais e especiais da teoria do crime. Na Estrutura Jurídica do Crime, cujaprimeira edição remonta ao ano de 1958, apresentada no concurso para LivreDocente da Faculdade de Direito do Recife, elabora uma SÍNTESE e umaANÁLISE do Crime, compreendendo no primeiro o CRIME COMO FATOJURÍDICO e O CRIME COMO FATO ANTIJURÍDICO; no segundo, oCRIME COMO FATO MATERIAL e o CRIME COMO FATO MORAL.

No capítulo do CRIME COMO FATO JURÍDICO aborda o conceitode crime, os sujeitos, o objeto e o bem jurídico. No capítulo do CRIME COMOFATO ANTIJURÍDICO estuda a ANTIJURIDICIDADE. Nos capítulos doCRIME COMO FATO MATERIAL e COMO FATO MORAL, estuda, res-pectivamente, A AÇÃO e A CULPABILIDADE.

Busca captar, no estudo do crime, o aspecto real e o aspecto jurídico. Oaspecto real do crime, por ser um fenômeno humano, é valorativo, é cultural. E

1 LUNA, Everardo da Cunha. Estrutura Jurídica do Crime. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. 127 p.

2 ______.Capítulos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1985. 403 p.

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no enfoque jurídico do crime, apresenta-o como fato jurídico e fato antijurídico- jurídico, porque definido pelo direito e antijurídico, porque contrário ao orde-namento jurídico.

Na 4ª e última edição da Estrutura Jurídica do Crime, nas Anotações aalguns capítulos, publicada pela Saraiva em 1994, incompleta em razão do fale-cimento do autor, explica a afirmação da juridicidade e antijuridicidade do crimefundamentando-se em MAX SCHELER, assim discorrendo: “bem observada arealidade, não existe um antijurídico puro, um mal puro, um erro puro, porquetodos eles fazem parte de um conceito superior, os quais, como espécies de ummesmo gênero, atingem um ponto de convergência infinitesimal”. Acrescenta:“em todo bem, há algo de mal; em toda beleza, há algo de feio; em toda verda-de, há algo de erro. Em contrapartida, em todo mal, existe algo de bem; em todofeio, há algo de belo; em todo erro, há algo de verdade”. E, ainda: “Dessemodo, o lícito e o ilícito devem subordinar-se um ao outro, e, como contrários,conciliarem-se. Em toda desgraça está presente, e isto não só na economiadivina, como também no plano do homem, uma graça, muito embora escondi-da, e muitas vezes imperceptível. Mozart, “o maior gênio da música”, morto hámais de duzentos anos, compôs, sob a pressão da febre corporal, transfiguradaem febre espiritual, a Flauta Magia, a Clemência de Tito, o Réquiem e outrasobras que acrescem à medida que os tempos vão passando (Consulte-se H. C.Robbins Landon, 1791 – O último ano de Mozart, trad. Newton Goldman, erev. Laura Rónai, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990). Beethoven, completa-mente surdo, compôs a mais perfeita de suas obras: Os últimos quartetos. EMilton, cego, ditou para as suas filhas O paraíso perdido”.

Partindo de uma visão de que tudo que é humano é valorativo, é cultural,baseando-se em filósofos a partir de EDMUND HUSSERL, o Professor en-tende que o conceito de crime deve captar o real e o jurídico, desprezando-seassim os conceitos reais extrajurídicos, pois apresentam o fenômeno do crimecom definições de natureza sociológica e interpreta o fato humano com o méto-do das ciências naturais, falhando em apresentar o real jurídico que deve conteruma definição do crime, bem como os conceitos formais analíticos: crime comoação típica, antijurídica e culposa, acrescentando-se a punibilidade em cer-tas definições, por entendê-los pleonásticos, utilizarem na definição fenômenosda realidade - a ação e a vontade - e produtos de abstrações - a tipicidade,antijuridicidade e punibilidade. Segundo o Professor Everardo da Cunha Luna,apenas os conceitos real jurídico (crime é o fato do homem que reproduz a

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hipótese criminosa formulada na lei) e formal sintético (crime é o fato dohomem proibido por ele sob ameaça de uma pena) captam o real e o jurídico.

Buscava nesses conceitos não a separação da realidade dos produtos daabstração, mas visava a não “entificar os produtos da abstração”. Afirmava quena definição “crime é o fato do homem proibido por ele sob a ameaça de umapena” pode-se identificar dois aspectos: “no fato do homem, está a realidadeproibida; no proibido por lei sob a ameaça de uma pena, a proibição darealidade. A proibição valora a realidade: o crime é uma realidade valorada. DizBettiol que “o delito não está no fato, mas no juízo sobre o fato”. Ora, se está nojuízo sobre o fato, também está no fato sob o juízo: síntese de realidade evalor. Diz Petrocelli, citando Grispigni, que “o jurista teórico não estuda o fatoregulado pela norma, mas sim a norma que regula o fato”. Ora, o estudo danorma que regula o fato implica o estudo do fato regulado pela norma: odireito está na norma e no fato”.

Partindo dessa premissa metodológica, a ação não é um conceito puro,isento de valor, nos moldes do conceito naturalista, mas “realidade contida pornorma, é naturalista e normativa a um tempo”. Ação, sob o aspecto normativo,“é causal e finalista; às vezes, somente causal; outras vezes, somente finalista.Naturalista, porque é um fato fenomênico; normativa, porque é um fato jurídico.Causal, porque se enraíza no mundo da realidade; finalista, porque advém darealidade humana. Mas como o jurídico compreende, implicitamente, o huma-no, e, no humano, se contém, implicitamente, o fenomênico, não vemos a ne-cessidade de fazer a análise da ação, grata a Petrocelli (Principi di diritto pe-nale, cit., v. 1, p. 270 e s.), em naturalista, finalista e normativa, sendo de nossapreferência dizer, em síntese, à maneira de Pannain (Manuale di diritto penale,cit., v.1, p. 212), que a ação é normativa”.

Na definição de culpabilidade, segue o mesmo método, preferindo a teo-ria psicológica da culpabilidade, sob o seguinte fundamento: “a culpabilidadenão é um juízo, e negamos a presença, nela, de elementos normativos, comocontrariedade ao dever, desobediência etc. A nossa posição é contrária ao nor-mativismo, seja o genuíno, seja o atenuado ou psicológico, porque, para nós, aculpabilidade, assim como a ação, é um fato, fato psicológico, simplesmentetratado pelo direito. Normativismo implica juízo, juízo de valor, de censura, comsede própria na doutrina da antijuridicidade. Psicologismo quer dizer fato, fatopsíquico, moral, elemento enfim. O fato, como objeto do juízo; juízo como sig-nificação do fato: se o reproche é o conteúdo da culpabilidade, conforme oensinamento de Asúa (Tratado de drecho penal, cit., t. 5, p. 163), o juízo de

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um objeto está contido no objeto, o que é impossível”. Bem claro fica que não éadepto da concepção psicológica da culpabilidade entendida como concepçãonaturalista. A culpabilidade é normativa porque tratada juridicamente e é um fatoda realidade, por ser um fato psicológico.

A vontade é entendida pelo Professor como o núcleo da culpabilidade. Avontade, como fundamento de exclusão da ação e da culpabilidade, pode sercompreendida como ausente (causa de exclusão da ação); presente, mas inca-paz (nos inimputáveis por doença mental ou por desenvolvimento mental incom-pleto ou retardado); presente, capaz, mas viciada (no erro, porque anulado oconhecimento sobre o qual se funda a vontade; na coação moral, porque anula-da as condições normais de liberdade, em que a vontade se manifesta).

Já no trabalho Estrutura Jurídica do Crime defendia que o erro de direitodevia ter tratamento idêntico ao erro de fato, títulos de acordo com o CódigoPenal de 1940, sustentando que ao primeiro devia ser concedido valor escusan-te, tal como no erro de fato. Assim, preferia a teoria estrita ou extremada dodolo, por conferir tratamento isonômico ao erro, embora não aceitasse a idéiade que o dolo para configurar-se exigisse a consciência da antijuridicidade, queratual quer potencial.

Defendia a unificação do erro, por não existir diferença substancial entreo chamado erro de fato e de direito, existindo tão só para atender certas finali-dades práticas: “Como o crime, fato jurídico que é, compreende fatos e valores,estabeleceu-se, para o desconhecimento desses fatos e valores, a milenar distin-ção entre erro de fato e erro de direito. E, por força da tradição, o princípio deque o erro de fato exclui e o erro de direito não exclui a culpabilidade”. Con-cluía: “uma vez que fatos e valores são incindíveis, porque gravitam dentro darealidade jurídica, que é a um tempo direito e realidade, conclui-se que a distin-ção entre erro de fato e erro de direito não era uma distinção substancial, exis-tindo apenas para o atendimento de certas finalidades práticas”.

Com a reforma da Parte Geral do Código Penal, pela Lei n°ð. 7209, de11/07/1984, e a admissão do erro sobre a ilicitude do fato, ainda na análise doartigo 21 do anteprojeto de Reforma da Parte Geral, pugnava por uma redaçãomais simplificada, tomando como exemplo o Código Penal Alemão, modelo doanteprojeto. Para ele, a redação ideal deveria ser a seguinte: no título: ERRODE DIREITO, por tradição histórica e por se tratar de expressão rica de con-teúdo. Aceitava a redação ‘o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável isenta depena’. Admitia a atenuação da pena, quando evitável o erro. Defendia a supres-são do parágrafo único, por não constar no Código Penal Alemão. Discordava

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da previsão da possibilidade de consciência da ilicitude, como possibilidade deconsciência da anti-socialidade da ação, por entender a consciência da ilicitudecomo consciência atual da contrariedade ao direito.

Com a entrada em vigor do atual artigo 21 do Código Penal, bem comoda previsão da circunstância atenuante do artigo 65, inciso II, do mesmo diplo-ma legal, lamentou o abandono do título ERRO DE DIREITO. Manteve o en-tendimento da desnecessidade do parágrafo único. Mas, o essencial, segundo oProfessor, “inovação corajosa e merecedora dos melhores aplausos, é o con-teúdo do caput do referido art. 21”.

Professava o entendimento mais amplo do erro sobre a ilicitude do fato.Para ele, “em rigor de justiça, ou seja, conforme uma política criminal plena, sódeve ser punido criminalmente quem sabe que praticou um crime, um fato quea lei sanciona, em abstrato, com uma pena criminal. A doutrina foi defendidapor Feuerbach, que, além de teórico do direito penal, foi legislador e foi juiz.Sucede que nossa época não está amadurecida para tal plenitude”.

Assim, estranhou a primeira parte do artigo 21 do Código Penal: o desco-nhecimento da lei é inescusável em confronto com a segunda frase: o errosobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena.

Com fundamento na doutrina alemã, especialmente em Maurach, o errosobre a ilicitude do fato pode apresentar-se em três formas distintas: a)o errosobre a existência da norma (o agente desconhece a norma e julga o seu agircomo indiferente ao Direito); b)o erro sobre uma causa de justificação; c)o errosobre uma causa de exclusão da responsabilidade (o agente crê que a obser-vância da norma não lhe é exigível). Para distinguir o erro de proibição do errode tipo, o citado autor alemão, afirmava o Professor, refere-se ao primeiro comoum erro relativo ao mandato normativo (o erro também poderia referir-se àvigência material de uma norma (o agente considera inconstitucional uma lei for-malmente existente ou ao imaginar que uma lei foi derrogada).

Interpretou o desconhecimento da lei como inescusável como o desco-nhecimento da antijuridicidade especial, o desconhecimento da punibilidade dofato. O desconhecimento da lei, inescusável, é o erro sobre a existência da nor-ma proibitiva.

Diverso é o desconhecimento sobre a ilicitude do fato. Este, se inevitável,isenta de pena, e se refere à antijuridicidade geral.

O conhecimento da antijuridicidade especial, segundo o Professor, impli-ca no conhecimento da antijuridicidade geral, mas o conhecimento da segunda

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(da antijuridicidade geral) não implica o conhecimento da primeira. Se o agentesabe que o fato é ilícito, é irrelevante saber se é um ilícito penal. Se não conheceo fato como ilícito, menos ainda conhecerá a ilicitude penal. Daí, o desconheci-mento da norma proibitiva (da antijuridicidade especial) ser irrelevante. Assim, odesconhecimento da ilicitude do fato (antijuridicidade geral), se inevitável, é queisenta de pena.

Ocorre que o artigo 65, inciso II, do Código Penal, prevê como circuns-tância atenuante o desconhecimento da lei. Para o Professor, há a obrigatóriaatenuação legal no caso de conhecimento da antijuridicidade geral e desconhe-cimento da antijuridicidade especial, que é como deve ser interpretado o preci-tado artigo.

Citando a doutrina alemã, informa que essa admite que a pena pode seratenuada quando o agente age com consciência da antijuridicidade e sabe queestá praticando um crime. Dessa maneira, o Professor esclarece que, no CódigoPenal pátrio, a interpretação deve ser a seguinte: se o agente não sabe que o fatoé criminoso (desconhecimento da antijuridicidade especial), há aplicação da cir-cunstância atenuante prevista no artigo 65, inciso II, do Código Penal. Na hipó-tese do agente saber que o fato é criminoso, pode-se considerar a aplicação deuma atenuante, mas judicial (do artigo 59, do Código Penal) e não legal (doartigo 65, inciso II, do Código Penal).

Concluindo, no quadro abaixo, está sintetizado o entendimento do Pro-fessor Everardo da Cunha Luna a respeito da interpretação dos artigos 21 e 65,II, do Código Penal:

Conhecimento da Antijuridicidade

• Desconhecimento da antijuridicidade geral: isenção de pena (artigo 21,caput, do CP)

• Possibilidade do conhecimento da antijuridicidade geral: diminui-ção especial da pena, obrigatória nos limites legais (artigo 21, caput,do CP)

• Conhecimento da antijuridicidade geral e desconhecimento daantijuridicidade especial: pena aplicável com obrigatória atenuantelegal (artigo 65, II, do CP)

• Conhecimento da antijuridicidade geral e especial: pena aplicá-vel com possível agravante ou atenuante judicial (artigo 59, do CP)

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Ao dedicar-se a esse tema, externou a sua preocupação com a dificulda-de de interpretação do artigo 21 do Código Penal, especialmente para quemprincipia a profissão de julgador, porque o primeiro período pode levar ao des-prezo do segundo e, neste, no segundo, reside a grande inovação da reformapenal.

O tema permanece atual e, quanto à aplicação do referido artigo 21, doCódigo Penal, poucos são os julgados que a ele se referem, em especial nosTribunais Superiores, o que ratifica a dificuldade de interpretação antevista peloProfessor Everardo da Cunha Luna.

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A FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS1

Margarida de Oliveira CantarelliDesembargadora Federal

Gostaria de iniciar agradecendo o convite para participar do XIX Con-gresso promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros e, de modoespecial, pela oportunidade de fazer uma reflexão sobre tão relevante tema – AFormação de Magistrados. Ao mesmo tempo, desejo total êxito ao evento quecongrega, nesta cidade de Curitiba, num clima fraterno, mais de 2000 magistra-dos de todos os rincões deste país, empenhados todos nas grandes questões doJudiciário de hoje.

A AMB tem desempenhado um papel importante neste difícil momentoda vida nacional e, especificamente, do Poder Judiciário. A voz dos magistradosdeve se fazer ouvir e, nesta tarefa, a AMB não arrefece, está sempre presente epronta para se posicionar na defesa da magistratura, sobretudo, nos temas mai-ores relativos ao Poder Judiciário, este tão importante num Estado democráticode Direito.

I - Li e refleti bastante sobre os resultados da “Pesquisa AMB 2006 apalavra está com você”,2 que será divulgada durante este XIX Congresso, e anós distribuída reservada e antecipadamente, para que pudéssemos analisá-la

1 Texto integral da participação no “XIX Congresso Brasileiro de Magistrados – Desenvolvimento umaquestão de Justiça”, promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros, de 15 a 18 de novembro de2006, em Curitiba/PR

2 A “Pesquisa AMB 2006 a palavra está com você” é a continuação dos estudos realizados em 2005,coordenados pela Profa. Maria Tereza Sadek, professora de Ciência Política da Universidade de São Pauloe pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej).

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nesta oportunidade. Detive-me, em razão do tema que me foi proposto, no quediz respeito à formação dos magistrados e às Escolas de Magistratura, constan-tes nos itens X, XI, XII e XIII e que serão abordados nesta nossa participação.

Entendo e devo afirmar, preliminarmente, com relação à formação domagistrado, que é uma tarefa relevantíssima, pois nenhuma democracia poderásobreviver sem juízes éticos, independentes, competentes e cumprindo comdedicação a sua missão, garantidora maior dos direitos do cidadão. A EmendaConstitucional nº 45, de dezembro de 2004, destaca as Escolas de Magistraturae dá especial relevância ao seu papel de modo que, sem dúvida, passarão acontribuir de forma mais eficaz na melhoria dessa formação.

A ética é fundamental no exercício da magistratura, pois o Judiciário é oúltimo bastião que a sociedade busca quando lhe são fechadas todas as portas –públicas ou privadas – para ver assegurado o direito que tem ou pensa que militaa seu favor. Sem um juiz ético não se pode falar na boa aplicação da lei, e muitomenos na concretização da Justiça.

A independência do magistrado, falo especialmente da Justiça Federal,que integro, também exige fortaleza, pois não raro se vê o particular sem condi-ções financeiras para promover a defesa dos seus direitos recorrendo à justiçagratuita e às Defensorias Públicas, estas por sua vez já assoberbadas pelo ele-vado número de processos e com precárias estruturas materiais. Do outro lado,estão as Procuradorias dos grandes Órgãos Públicos, hoje devidamente instru-mentalizadas, com Procuradores aguerridos, utilizando todos os meios proces-suais que acarretam um alongamento dos processos no tempo - realidade in-contestável, além do que as leis já as favorecem, como prazos maiores, intima-ções pessoais, etc. É preciso que o juiz independente tenha, também, sensibili-dade social e esteja atento aos excessos que muitas vezes são cometidos contraos menos favorecidos (como, por exemplo, contra os segurados da PrevidênciaSocial).

A competência técnica é aferida ao longo dos exames e provas a que sesubmetem para ingresso na carreira e é gratificante ver o elevado nível de co-nhecimento jurídico demonstrado pelos aprovados nos concursos públicos, ondea concorrência é enorme. Mas, se à competência não estiver aliada uma grandedose de compromisso com a missão a que se propuseram, com a disposiçãode vencer a grande carga de trabalho que os esperam, certamente os resultadosserão acanhados e, às vezes, inexpressivos. Tal desempenho é bem avaliado aolongo do processo de vitaliciamento.

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II - Temos consciência de que a formação do magistrado é um complexoprocesso, com etapas bastante distintas e que, algumas delas, estão fora daspossibilidades de atuação dos órgãos destinados a tal formação, sem se tercomo interferir diretamente, pois tudo começa muito cedo. Refiro-me:

1) À família e à escola (ensino fundamental e médio): aí se inicia a for-mação do caráter do cidadão, quer venha ele a ser magistrado ou a ter qualqueroutra atividade profissional. Prepará-lo dentro da ética, da responsabilidadepessoal e social, do compromisso com o trabalho, será um primeiro e relevantepasso. Só um verdadeiro cidadão (pena que esta palavra esteja hoje um tantogasta, mas a tomemos no seu verdadeiro sentido) poderá vir a ser um bommagistrado. Também é lá, mas especificamente com relação à escola, que de-vem ser fincados os pilares para as bases de algumas disciplinas, cujo domínioserão indispensáveis ao exercício profissional futuro, como: o domínio do nossoidioma, a língua portuguesa; atualmente o da informática, entre outras; bem comoos fundamentos para os conhecimentos humanísticos e o descortino para acultura.

Creio que um caminho (alguns magistrados já o fazem) talvez seja o doPoder Judiciário, juntamente com os órgãos de classe, como a AMB, a AJUFEe outros, se aproximarem das Secretarias de Educação, promovendo palestras,abrindo os Tribunais ou o Fórum da cidade para visitação de alunos, explicar-lhes o papel da Justiça e do magistrado. Vemos, cotidianamente, a imagem dojuiz e da Justiça ser atingida por matérias veiculadas que, muitas vezes, dizemrespeito a um único ou a poucos membros da Magistratura, mas que atingem atodos que ficam maculados pela mesma pecha da improbidade.

2) Os Cursos de Direito e o bacharelado. A proliferação de Faculda-des de Direito em todo o país, talvez em número superior às possibilidades deoferecer currículos adequados e bons professores (algumas pagando hora-aulaem valor ínfimo), superlotando as salas de aulas, sem oferecer boa prática, alémde tantos outros problemas, levaram a que a Ordem dos Advogados do Brasil -OAB passasse a exigir pesados exames para permitir o ingresso naquele órgão,a fim de reconhecer ao bacharel graduado a condição de advogado. Hoje os jáassustadores “Exames de Ordem” como são chamados. E isso leva a uma dis-torção, pois, pelas leis do mercado e da concorrência, aquelas Faculdades quetêm melhores índices de aprovação no exame da Ordem atraem mais alunos, e,conseqüentemente, procuram adaptar o ensino, os currículos e a prática profis-

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sional para a advocacia. As peças solicitadas aos estudantes são próprias deadvogados – iniciais para ações cíveis, reclamações trabalhistas, contestações,apelações, etc., etc. Não tenho conhecimento de nenhuma prova de estágio emque se pedisse a elaboração de uma sentença, nem também de uma denúncia.

Se o vestibular já leva o aluno a marcar com “x” a resposta que consideracorreta, agora a primeira prova da OAB também é objetiva (marcar com “x”) ea prova de redação de peças é voltada (óbvio) para a advocacia, isto deixacada vez mais deficiente a contribuição do curso de bacharelado para aquelesque pretendam ingressar na magistratura ou no Ministério Público, tendo querecorrer a cursos particulares nem sempre accessíveis financeiramente a todosos estudantes. Temos que pensar num processo instalado de elitização, pois oseconomicamente menos favorecidos terão dificuldades bem maiores de apro-vação dos concursos para magistratura.

É preciso uma urgente modificação na grade curricular das Faculdades deDireito, não só, mas também por isto. Para tanto, sugiro encontro dos órgãosrepresentativos da classe dos Magistrados, juntamente com os diretores dasEscolas de Magistratura, com o Ministério da Educação e o Conselho Nacionalde Educação (Comissão de Ensino Jurídico), para levar sugestões, apontandoas lacunas que são sentidas quando cuidamos da formação dos novos magistra-dos (ex.: ausência nos currículos de disciplinas fundamentais ao exercício não sóda magistratura, mas do Ministério Público, entre outras).

III - Com essas observações preliminares, passemos a apreciar o papeldas Escolas no ingresso na carreira e na formação permanente do magistrado àluz da pesquisa promovida pela AMB, com alguns complementos fruto da nossaexperiência pessoal.

Devo dizer que há algumas diferenças a considerar entre as Escolas deMagistratura Estaduais e as Escolas Federais. Uma delas decorre da divisãogeográfica da Justiça Federal. As Escolas estaduais, em princípio, correspon-dem uma a cada estado da Federação. Como todos sabem, a Justiça Federalestá dividida em cinco regiões, cada uma abrangendo diferente número de esta-dos. A região à qual pertenço, a 5ª Região, engloba seis Estados: Alagoas, Ce-ará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. A primeira Região,por exemplo, abrange 14 Estados, da Bahia ao Acre, enquanto a 2ª Região écomposta pelo Rio de Janeiro e pelo Espírito Santo. A 3ª Região é São Paulo eMato Grosso do Sul e a 4ª Região, o sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grandedo Sul. Como conseqüência, muitas ações de treinamento e capacitação tor-

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nam-se difíceis e caras para serem desenvolvidas, inviabilizando alguns proje-tos, em razão do elevado custo de deslocamento aéreo, diárias, afastamento dajurisdição, etc.

O primeiro ponto, dentro do nosso tema, que foi consultado pela pesqui-sa (item X) diz respeito à natureza jurídica das Escolas – se vinculadas aosTribunais, às Associações ou Independentes? Transcrevo a Tabela para melhorcompreensão:

Vinculadas aos Tribunais: 33,9% - Sim 66,1% - NãoVinculadas às Associações: 37,2% - Sim 62,8% - NãoIndependentes: 40,7% - Sim 59,3% - NãoFonte: Pesquisa AMB 2006

Interessante observar os resultados. Cerca de 2/3 dos entrevistados achamque as Escolas não devem ser vinculadas aos Tribunais (66,1%), nem às Asso-ciações (62,8%), nem Independentes (59,3%), enquanto pouco mais de 1/3entendem que devem ser vinculadas aos Tribunais (33,9%), às Associações(37,2%) ou Independentes (40,7%). O que eu deduzo destas respostas, espe-cialmente pelas negativas, é que os três modelos propostos não satisfazem aosmagistrados. É de se perguntar, e há outra possibilidade? Creio que sim, depen-dendo inclusive do papel que cada uma venha a assumir, ou que as Instituiçõesdefinirem para as mesmas.

Para chegarmos a um “modelo alternativo”, precisamos adentrar numponto extremamente delicado, qual seja o da preparação para o ingresso namagistratura, que está no item XI, o qual questiona sobre as prioridades dasEscolas.

1) Preparação (antes do ingresso)Propriedade Alta ........................................................... 42,2%Propriedade Média........................................................ 22,8%Indiferente ....................................................................... 3,8%Propriedade Baixa ......................................................... 12,9%Não Deveria Ser Feito ................................................... 13,2%Sem Opinião ................................................................... 5,2%

2) FormaçãoPropriedade Alta ........................................................... 62,0%Propriedade Média........................................................ 22,9%

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Indiferente ....................................................................... 1,8%Propriedade Baixa ........................................................... 3,3%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 3,6%Sem Opinião ................................................................... 6,5%

3) Aperfeiçoamento (formação continuada)Propriedade Alta ........................................................... 76,1%Propriedade Média........................................................ 16,3%Indiferente ....................................................................... 0,8%Propriedade Baixa ........................................................... 1,1%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 1,6%Sem Opinião ................................................................... 4,0%

4) Pós-graduaçãoPropriedade Alta ........................................................... 42,6%Propriedade Média........................................................ 31,3%Indiferente ....................................................................... 7,1%Propriedade Baixa ........................................................... 7,4%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 5,7%Sem Opinião ................................................................... 5,9%

5) Treinamento de ProfessoresPropriedade Alta ........................................................... 28,4%Propriedade Média........................................................ 28,0%Indiferente ..................................................................... 12,3%Propriedade Baixa ......................................................... 13,1%Não Deveria Ser Feito ................................................... 10,4%Sem Opinião ................................................................... 7,8%

6) Administração JudiciáriaPropriedade Alta ........................................................... 33,1%Propriedade Média........................................................ 31,7%Indiferente ....................................................................... 9,2%Propriedade Baixa ......................................................... 10,7%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 7,7%Sem Opinião ................................................................... 7,6%

7) Criação de um Centro de PesquisasPropriedade Alta ........................................................... 43,0%

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Propriedade Média........................................................ 31,7%Indiferente ....................................................................... 7,6%Propriedade Baixa ........................................................... 8,7%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 3,5%Sem Opinião ................................................................... 5,6%

8) Cursos regionais de aperfeiçoamento e capacitaçãoPropriedade Alta ........................................................... 65,5%Propriedade Média........................................................ 24,0%Indiferente ....................................................................... 2,0%Propriedade Baixa ........................................................... 2,6%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 1,5%Sem Opinião ................................................................... 4,4%

9) Convênios com Instituições para mestrados e doutoradosPropriedade Alta ........................................................... 56,9%Propriedade Média........................................................ 25,1%Indiferente ....................................................................... 4,0%Propriedade Baixa ........................................................... 5,9%Não Deveria Ser Feito ..................................................... 3,7%Sem Opinião ................................................................... 4,5%

9) Outra ........................................................................... 75,3%

Fonte: pesquisa AMB 2006

O que mais deve ser destacado no resultado obtido e exposto na tabelasupra é o de que todos os itens submetidos à consulta foram considerados como“Prioridade Alta”. No primeiro deles (Preparação antes do Ingresso), 42,2%dos entrevistados respondeu que seria alta prioridade. Se somarmos os 42,2%antes citado aos que acham prioridade média (22,8%), encontramos o expres-sivo percentual de 65 %, contra 35% resultante da soma dos que são indiferen-tes (3,8%), os que vêem baixa prioridade (12,9%), os que pensam que nãodeveria ser feito (13,2%) ou os que não têm opinião (5,2%). Há, sem dúvida,pelo resultado da pesquisa, uma forte manifestação dos que entendem que asEscolas devam, também, cuidar dos cursos preparatórios à carreira.

Devo dizer que nada tenho contra os cursos preparatórios oferecidospelas Escolas; vejo até alguns pontos positivos, quais sejam: o de poder suprir

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eventuais deficiências da formação inicial a que já me referi, debitadas à contri-buição da família e da escola (formação ética, cultural, técnica, etc.) dos candi-datos à magistratura, além da qualidade do ensino que, enquanto Escolas deMagistrados, sem fins lucrativos, podem imprimir às aulas e na seleção dos pro-fessores. A dificuldade está em encontrar a melhor natureza jurídica para elas,onde e como localizá-las.

Os cursos independentes, como a própria expressão esclarece, não de-pendem de nós e podem ser oferecidos livremente, de acordo com as regras domercado (oferta/procura, concorrência, qualidade). Logo nos restam as duasformas: vinculadas aos Tribunais ou às Associações, ambas com os maiorespercentuais de desaprovação.

Em termos estaduais, entendo que, ou as Escolas passam a gozar de au-tonomia em relação aos Tribunais, podendo, legalmente (sem artifícios poucorecomendáveis), receber mensalidades, fazer pagamentos, contratar professo-res e servidores, etc., com regras próprias, tornando-se, por exemplo, uma Fun-dação ou devem ficar com as Associações, que têm possibilidade para gerirrecursos. Todavia, é primordial que uma Escola de Magistratura não deva, ja-mais, priorizar os cursos preparatórios em detrimento das funções que, constitu-cionalmente, tem a cumprir. Para o desempenho das obrigações impostas pelaConstituição, não devem os Tribunais se omitir deste papel, sob pena de des-cumprimento dos preceitos da Carta Maior.

Na Justiça Federal se torna muito difícil o oferecimento direto de cursospreparatórios ao ingresso na carreira. Se, como exemplo, a Escola da 5a Região– ESMAFE, desejasse promover um, seria de se perguntar, em qual dos seisEstados? Não se estaria privilegiando os candidatos de uma unidade da Fede-ração? Na 5a Região, embora se tenha Núcleos da Escola nas Seções Judiciá-rias, estes têm pequena estrutura, apenas promovem encontros, seminários ecursos de curta duração, especialmente via teleconferências. Assim, só na sededo Tribunal que fica no Recife, haveria espaço físico próprio e outras condiçõespara oferecer um curso preparatório – e aí estaria a Escola privilegiando umaunidade da Federação. Além do que, pela sua colocação no organograma doTribunal, não poderia receber mensalidades, nem fazer gastos com qualificaçãode pessoas que não integrassem os seus quadros (clientela particular). Podemosabrir algumas vagas para não servidores em cursos sobre temas específicos quesão oferecidos mediante convênios com outros órgãos públicos e instituições deensino, mas não um curso completo para não integrantes da Instituição.

É um momento de opção para as Escolas que mantêm cursos preparató-rios ante as novas atribuições recebidas pela EC-45. É possível servir a tantos

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senhores? Não estariam deixando a um segundo plano as obrigações constituci-onais em face das velhas práticas de preparação?

O que a pesquisa demonstrou claramente, aliás, o que seria de se esperar,é que os entrevistados dão maior importância à Formação inicial (62% altaprioridade+ 22,9% média prioridade = 84,9%); à Formação continuada (76,1%+ 16,3% = 92,4%); à pós-graduação (42,6 + 31,3% = 73,9%); à criação doscentros de pesquisa (43% + 31,7% = 74,7%); aos cursos regionais (65,5% +24 % = 79,5); à possibilidade de convênios com outras instituições (56,9% +25,1%= 82,0%) e, com menor destaque, à administração judiciária (33,1% +31,7% = 64,8) e ao treinamento de professores (28,4% + 28% = 56,4).

Observe-se que, de todos os itens pesquisados, os cursos de preparação(antes do ingresso) só obtiveram percentual mais alto de indicação pelos entre-vistados que a administração judiciária (com – 0,2%) e o treinamento dos pro-fessores. Neste último, pode-se interpretar que a resposta dos entrevistadossignifica que já consideram os professores bem treinados (tecnicamente compe-tentes para o mister). Logo, se houver necessidade de optar entre a preparaçãopara concurso (pré-ingresso) e a formação (pós-ingresso), o pensamento dosentrevistados pendeu para a segunda alternativa. As prioridades estão bem de-finidas na pesquisa.

Os resultados apresentados no item XI dão um bom norte à definição dopapel das Escolas, bem como ajudam no planejamento de suas ações.

IV - Para chegarmos ao curso de Formação inicial, temos que recorrer àanalise do item XII da pesquisa, que trata do ingresso na magistratura.

1) Concurso é a melhor forma de seleçãoConcorda Inteiramente .................................................. 82,4%Concorda em Parte ....................................................... 13,5%Discorda em Parte ........................................................... 1,8%Discorda Inteiramente ...................................................... 0,5%Não Respondeu / Sem Opinião........................................ 1,8%

2) Deveria haver uma seleção prévia nacional antes do concursode ingresso estadualConcorda Inteiramente .................................................... 9,0%Concorda em Parte ....................................................... 11,8%Discorda em Parte ......................................................... 40,8%

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Discorda Inteiramente .................................................... 30,7%Não Respondeu / Sem Opinião........................................ 7,7%

3) O concurso de ingresso nos moldes atuais é insuficiente paraselecionar os melhores quadros, devendo ser completado porum teste vocacional aplicado por entidade profissionalConcorda Inteiramente .................................................. 26,0%Concorda em Parte ....................................................... 33,3%Discorda em Parte ......................................................... 21,9%Discorda Inteiramente .................................................... 15,0%Não Respondeu / Sem Opinião........................................ 3,8%

4) O conteúdo das provas de seleção não é capaz de aferir as habi-lidades necessárias para um bom juizConcorda Inteiramente .................................................. 28,0%Concorda em Parte ....................................................... 49,6%Discorda em Parte ......................................................... 13,6%Discorda Inteiramente ...................................................... 5,8%Não Respondeu / Sem Opinião........................................ 3,0%

5) Escola da magistratura em tempo integral e com salário no pro-cesso de formaçãoConcorda Inteiramente .................................................. 48,2%Concorda em Parte ....................................................... 31,2%Discorda em Parte ......................................................... 12,0%Discorda Inteiramente ...................................................... 4,5%Não Respondeu / Sem Opinião........................................ 4,2%

Fonte: Pesquisa AMB 2006

O ponto principal, e que a grande maioria concorda, é que o concursopúblico ainda é a melhor maneira de seleção. Na realidade, apenas 0,5% dis-corda inteiramente. Visitei um Estado membro de uma Federação estrangeiraonde há eleição para juízes pelo voto direto dos eleitores, do mesmo modo quepara governador ou membro do legislativo (a escolha de juízes não segue omesmo processo em todo o país); noutro Estado em que também estive, a con-vite, os presidentes dos Tribunais são escolhidos e nomeados pelo executivo

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como presidentes vitalícios (até a aposentadoria). Respeito muito a opção quecada povo escolhe como o melhor modelo para si de acordo com as suas insti-tuições. Apenas, entendo que a seleção pelo critério do conhecimento, dos mé-ritos, da apreciação curricular e da vida pessoal do candidato, ainda é a melhorforma. Isto, contudo, não quer dizer que não devamos aprimorar o concurso, oconteúdo das provas, o modo de aplicá-las, entre outras possíveis inovações. Jáfui presidente de Comissão de Concurso e acompanho com interesse cada umque se realiza na 5ª Região. Creio que a participação das Escolas no processode seleção para ingresso na Magistratura foi uma das boas coisas da EC-45; épreciso apenas que seja cumprida.

Todavia, por mais aperfeiçoado que vier a ser o concurso, o Curso parainício das atividades na magistratura é de suma importância. Não se pode, nemse deve, após duríssima seleção, largar um (ou uma) jovem com todas as res-ponsabilidades de uma Vara sem que tenha recebido uma boa preparação ofe-recida pelo Tribunal. Este curso, embora não deva ser completamente padroni-zado, há de incluir conteúdos básicos que, necessariamente, devem integrar osprogramas, especialmente no que chamo “a prática no real”.

As cinco escolas federais promoviam os cursos com duração, conteúdo eformas de execução diferentes. Trabalhamos juntos (os cinco diretores) no sen-tido de melhorá-los. Uma dificuldade que havia era a de que, em algumas regi-ões, os cursos tinham caráter obrigatório, mas eram oferecidos antes da nome-ação. Assim, mesmo que o Tribunal viesse a pagar as despesas (hotel, alimenta-ção, transporte, etc.) dos candidatos aprovados, estes ainda estariam vincula-dos aos seus órgãos de origem, como também quase todos são provenientes dediversos Estados da Federação, poucos é que são locais. É interessante obser-var que dos candidatos aprovados nos últimos concursos da 5ª Região, nenhumestava desempregado ou sem um vínculo empregatício certo (eram Procurado-res de Autarquias, Promotores, Advogados da União, etc.,etc.). Assim, sem anomeação e, conseqüentemente, sem salário de magistrado, precisarão da boavontade do então chefe (na iminência de perder um bom funcionário), para libe-rá-los por um tempo que não poderia ser muito longo, pois causaria problemasao órgão ao qual pertencem e também com relação aos seus colegas de traba-lho. Exigir que peçam exoneração antecipadamente também seria oneroso parao candidato e nem todos podem arcar com as despesas particulares não cober-tas pelo Tribunal.

Algumas Regiões já promovem o curso com o candidato nomeado, masainda não localizado em Vara. Mas, já aconteceu, em razão da carência de

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Juízes, que antes da conclusão do curso houvesse necessidade de o interrompere designar os nomeados para suas localizações. Um curso interrompido deixainúmeras disciplinas sem serem ministradas e, muitas vezes, é pior do que ummais concentrado.

Os estudos realizados pelos cinco diretores das Escolas Federais (dentreos quais dois ex-presidentes e um ex-vice-presidente de Tribunais Federais)foram acolhidos pelo Ministro Fernando Gonçalves, então Coordenador-Geralda Justiça Federal e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho daJustiça Federal, que constituiu um grupo de trabalho mais amplo, culminandocom a Resolução que foi aprovada pelo Conselho da Justiça Federal.

A Resolução instituiu o Plano Nacional de Aperfeiçoamento e Pesquisapara Juízes Federais da Justiça Federal, tendo o Centro de Estudos Judiciáriosdo CJF como órgão central e as Escolas de Magistratura (Federais) como ór-gãos setoriais responsáveis pelo plano Nacional.

O Plano Nacional compõe-se do programa de ingresso, de vitaliciamentoe de aperfeiçoamento (conforme o disposto no art. 93, II, c e IV do CF) com osrespectivos subprogramas nas três áreas mencionadas. Além disso, também seincluiu, no Plano Nacional, o programa de pesquisa, de editoração e de inter-câmbio. Estão previstos subprogramas de fomento à pesquisa, editorial, com apossibilidade mais ampla de publicações produzidas pelos próprios integrantesda JF e o de intercâmbio institucional, com o objetivo de trocar experiências,como também atender algumas áreas não cobertas nos programas regulares(especialmente na pós-graduação).

A partir da sua aprovação pelo CJF, estão sendo detalhados os subpro-gramas à luz da experiência já colhida, buscando ampliar as possibilidades deformação dos nossos magistrados.

Ainda não é possível detalhar os subprogramas, porque estão em elabo-ração por Comitês especialmente designados com representantes da 5a Região.

V - Muito se tem falado sobre a “juvenilização” da magistratura brasileira,ou seja, a idade cada vez mais baixa dos candidatos aprovados nos concursos,o que leva a algumas preocupações e atenções. Entendo que esta realidade nãodeva ser vista como algo negativo, ao contrário. Mas deve conduzir a algumasatenções especiais, tais como incluir na preparação inicial alguns temas, além datécnica jurídica. Sabe-se que a aprovação em dificílimo concurso, como disseanteriormente, já demonstra que os novos juizes têm um bom domínio do Direi-to, faltando a alguns uma maior aproximação com o dia-a-dia do seu novo mis-ter, ou seja, a “prática no real”. Montar um curso que leve um suporte prático

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não terá maiores dificuldades. Mas, achamos importante incluir também outrostópicos:

1. Cuidar do lado emocional, psicológico, destes jovens que, de um diapara outro, se transformam em “excelências”, com uma caneta na mãoque os permite condenar, absolver, conceder ou negar liminares, en-fim, uma situação de tensão e pressões, ainda não vivenciada por eles.Temos ouvido depoimentos de jovens, brilhantemente aprovados, eque sentiram o peso da responsabilidade na solidão de uma Vara (ouComarca), muitas vezes distante da família, dos amigos, dos professo-res, com funcionários de cartórios desconhecidos, alguns velhos servi-dores com experiência (evidentemente bem maior do que a deles),advogados hábeis, em síntese, um mundo desconhecido e cheio deperigos. Isto pode levar a condutas diversas, ou trancarem-se temero-so dos estranhos, evitando contatos com advogados ou mesmo en-contros puramente sociais, ou tornarem-se aparente ou realmente pre-potentes (as crises de “juizite”), além de muitas outras possíveis rea-ções ante a situação que passam a vivenciar. Um suporte psicológicopode ser de grande valia para apoiá-los emocionalmente, dando-lhesum maior conforto pessoal e evitando-se problemas de relacionamen-tos futuros.

2. Outro aspecto também correlacionado com a juventude refere-se aolado cultural. Muitos jovens se concentram desde bem cedo, obsti-nadamente, no seu projeto pessoal de alcançar a magistratura e sededicam ao estudo dos diversos ramos do Direito que estão incluídosnos programas dos concursos. Direito e só Direito, e sabem muitoespecialmente o direito positivo. Por falta de tempo (pela juventude epela ocupação), por falta de meios financeiros ou mesmo de motiva-ção fora do universo jurídico, alguns dos jovens juízes podem vir aprecisar de um suporte de sociologia, de filosofia, de artes, de literatu-ra, de música, enfim, dos contornos da própria sociedade e que vêmdentro dos processos com as contingências humanas e que não selimitam à aplicação da letra fria da lei. Assim, as Escolas não podemdescurar desta importante parte de complementação intelectual, poisestão nas circunstâncias da vida cotidiana.

Verdade que experiência e cultura não se transferem em embalagens pré-prontas, mas é possível abrir horizontes, despertá-los para um outro lado enri-

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quecedor para eles próprios e que lhes permitam uma análise mais realista doscasos sob a sua apreciação.

3. A gestão judiciária: na formação do bacharel, nos cursos de gradua-ção e mesmo na pós-graduação acadêmica, não se leva em conta apossibilidade de o profissional do Direito (advogado, promotor, juiz,etc.) vir a gerir um setor da sua atividade. O advogado, o seu escritó-rio: os processos, os prazos, as intimações e, ao mesmo tempo, osseus empregados, os colegas, as despesas fixas, o pagamento dostributos, taxas, em resumo, o seu dia-a-dia. O Juiz, na sua Vara, oDesembargador, no seu Gabinete, com milhares de processos, cujofluxo deve ser acompanhado; uns com poucos servidores, relativa-mente ao volume de trabalho, além da parte cartorial executada pelasecretaria. Se o Juiz é nomeado para exercer a direção ou subdireçãodo Foro, tem que conhecer de orçamento, da aplicação das verbas demanutenção, da execução de projetos, das despesas, da concessãode diárias, de passagens, etc.; se integra a Mesa Diretora de um Tribu-nal, também está às voltas com orçamento, licitações, contratos, asobrigações de ordenador de despesas, gerindo pessoal, formandoequipes e sabendo ou não conduzi-las, entre muitas outras formas degestão.

Não vou, evidentemente, debitar a morosidade do judiciário à falta deconhecimento em gestão, mas o domínio nesta área ajuda e muito o desempe-nho e o desenvolvimento dos trabalhos. Tenho um exemplo, o da Escola da 5a

Região, que está promovendo um MBA em Administração Judiciária, em con-vênio com a Fundação Getúlio Vargas. Já ultrapassamos a metade do curso e osresultados são de entusiasmar. Não é fácil, nem barato deslocar 45 pessoas dosseus Estados para Fortaleza, onde está sendo ministrado o curso, quinzenal-mente, todos sacrificando os seus fins-de-semana. Mas a satisfação dos partici-pantes é completa.

VI - Quanto à formação continuada, esta não é menos importante. Emtodas as profissões liberais há a preocupação com a atualização de técnicas,pesquisas, a utilização e a busca do mais moderno para superar os competido-res. Isto é uma exigência da qualidade e da concorrência. No caso das ativida-des decorrentes de funções públicas, igual preocupação deve estar presente.

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Pelo fato de não haver, digamos, concorrência, mas exclusividade naquela pres-tação de serviço, não se pode prescindir da qualidade. Serviço público não éfavor que o Órgão presta aos que o procuram, mas um dever para com o pos-tulante individualmente e para com a sociedade que o mantém através dos im-postos que paga. E isto vale para o Judiciário. Daí a necessidade de uma forma-ção continuada, mantendo a magistratura informada através das publicaçõesperiódicas, dos congressos, dos encontros, dos cursos, de mensagens eletrôni-cas, etc.

As Escolas Federais desempenhavam com mais eficiência a tarefa da for-mação continuada, com o apoio do Centro de Estudos do CJF, ou através depatrocínios e por seus próprios meios. Para nós, este último, na 5a Região muitoexcessos.

Um entrave que encontramos reside nas distâncias geográficas e nos cus-tos dos eventos que exigem os deslocamentos, já referidos. Assim, na 5a Re-gião, temos usado equipamentos de transmissão a distância – as teleconferênci-as. Foram adquiridos aparelhos para cada uma das Seções Judiciárias, para oTribunal e para a Escola. Dessa forma, oferecemos cursos regionais com salasde recepção com monitores. Isto permite o aumento considerável no númerode participantes sem aumento de custos. Num curso presencial dispondo deuma sala que comporte 50 inscritos, com mais 7 salas de recepção a distância,pode-se multiplicar o número inicial, permitindo até 350 alunos. Esta experiên-cia ainda está se consolidando, engatinhando mesmo, não só no uso da tecnolo-gia, para nós nova, tanto para os setores técnicos (informática e de imagem)como no de apoio, além da adequação dos professores e dos alunos aos novosmeios.

Dentro da Formação continuada muito se fala sobre os cursos de pós-graduação.

1) Mestrado AcadêmicoMuito ............................................................................ 47,4%Pouco ........................................................................... 39,1%Nada............................................................................... 8,8%Sem opinião .................................................................... 4,8%

2) Mestrado ProfissionalMuito ............................................................................ 66,0%Pouco ........................................................................... 23,1%

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Nada............................................................................... 4,5%Sem opinião .................................................................... 6,4%

Fonte: Pesquisa 2006

A pesquisa, no item XIII nos mostra o grande interesse pelos mestradosprofissionais (66,0%), bem maior do que pelos mestrados acadêmicos (47,4%).Concordo inteiramente com a opção dos entrevistados e, na Justiça Federal, osubprograma de intercâmbio institucional poderá desenvolver linhas nesse senti-do. Esperemos que haja a concordância dos setores competentes do Ministérioda Educação (CAPES), pois tivemos o dissabor de aprovar um projeto deMestrado Profissional no Conselho da Justiça Federal, alocar os recursos ne-cessários e nunca obter resposta da CAPES.

VII - Enfim, eram estas, colegas Magistrados de todo o Brasil, algumasobservações que gostaria de trazer para reflexão de todos, no intuito de atender,da melhor forma, às determinações constitucionais e, acima de tudo, ao nossopróprio compromisso de oferecer à sociedade brasileira magistrados cada vezmais bem formados não só tecnicamente, mas capazes de conceder a prestaçãojurisdicional que ela espera de nós, com celeridade e justiça.

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POR QUE CONTROLE MISTO?

Marco Bruno Miranda ClementinoJuiz Federal - 19ª Vara / PE

1. INTRODUÇÃO

É lugar comum que o direito positivo brasileiro tem suas complicações,suas complexidades, fruto da estruturação estatal deficiente e, sobretudo, daimaturidade política dos centros de poder atuantes na sua concepção, emborase reconheça, quanto a isso, um significativo avanço nos últimos anos. Essesfatores terminam por gerar uma produção normativa repleta de vicissitudes ecarente de uma orientação filosófica estável que possa imprimir racionalidade aosistema. Daí ser comum a importação indiscriminada de categorias e institutosjurídicos do direito estrangeiro, sem a devida verificação de compatibilidade(formal e muito menos sociológica). Nunca se compreendeu a mensagem damúsica de Milton Nascimento, de que “ficar de frente para o mar e de costaspara o Brasil não vai fazer desse lugar um bom país”.

Alijado desse processo criativo, não resta ao operador jurídico senão aatividade de sistematizar o direito posto, de efetuar o exame crítico das figurasjurídicas concebidas pelo sistema e, a partir dessas conclusões, de contribuirformulando proposições voltadas ao seu aprimoramento, ousando abandonar odiscurso dogmático, sob uma reflexão mais crítica.

O título é sugestivo: por que controle misto? É possível ir mais adiante:para que controle misto? A referência se volta ao controle misto de constitucio-nalidade adotado no Brasil e pouco visto no direito comparado, ao mesmo tem-po concentrado e difuso, abstrato e concreto, com características tão comple-xas que tornam sua compreensão difícil não apenas para o leigo, senão tambémpara os próprios operadores jurídicos.

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De onde surgiu a idéia de se instituir um controle misto? Por que assim seestabeleceu? Qual modalidade de controle prevalece? É possível simplificar osistema? Essas são algumas das indagações que se pretende discutir, sob umdiscurso não apenas dogmático, mas igualmente dogmático. Referências de cu-nho sociológico e filosófico serão suscitadas de modo a subsidiar a reflexão, quenem de perto se propõe a esgotar o debate sobre a temática.

O interesse pelo objeto de discussão se justifica. O controle de constitu-cionalidade da produção normativa geral e abstrata constitui a pedra de toquedo funcionamento estrutural do Estado sob competências, por se tratar do pon-to de convergência do princípio da separação dos poderes. Ao viabilizar a fisca-lização quanto ao exercício abusivo da função pública na concepção das fontesprimárias de funcionamento do Estado, o círculo se fecha, possibilitando o con-trole recíproco dos poderes entre si, inclusive na produção legislativa na qual seconstroem os padrões normativos a serem aplicados por todos eles.

Daí por que se exige uma sistemática estável, eficiente, segura e legítimade exercício da fiscalização da constitucionalidade. E isso, infelizmente, o direitopositivo brasileiro não está oferecendo aos destinatários, com uma dupla siste-mática de atuação, com distinções quanto às competências, à legitimação ativa,aos efeitos. Trata-se literalmente de duas sistemáticas paralelas que convivementre si, com sensíveis dificuldades de intercomunicação.

Assim, a pretensão neste texto é a de elucidar essas questões, partindo dadescrição e reflexão sobre o objeto, focado na premissa de que é necessáriauma sistemática que atenda minimamente a padrões de estabilidade, eficiência,segurança e legitimidade.

2. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO

GARANTIA DA CONSTITUIÇÃO

Para Canotilho, “a defesa da constituição pressupõe a existência de ga-rantias da constituição, isto é, de meios e institutos destinados a assegurar aobservância, aplicação, estabilidade e conservação da lei fundamental”. Maisadiante, o autor as designa como “garantias de existência da própria constitui-ção (cfr. A fórmula alemã: Verfassungsbestandsgarantien)” ou “constituiçãoda própria constituição” (2003, p. 887-888).

Característico das constituições rígidas, o controle da constitucionalidadeconstitui um dos meios de garantia da constituição, o que não se confunde com

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as garantias constitucionais, terminologia mais propriamente empregada paraindicar os instrumentos constitucionalmente estabelecidos como meios de defe-sa dos direitos fundamentais declarados (BONAVIDES, 1996). No sistemagarantista, as declarações relevam o caráter histórico da conquista por direitos(BOBBIO, 1992); as garantias, por outro lado, trazem em si uma maior dinami-cidade, expressa na finalidade de assegurar a efetividade daqueles no sistema.

A referência às constituições rígidas é importante. O controle de constitu-cionalidade como garantia da constituição só faz sentido nas constituições paracuja reforma se exija quorum mais elevado do que o previsto para alteração dalegislação em geral. Supremacia (constituição material) e superlegalidade (cons-tituição formal) são conceitos próprios de regimes dessa natureza, que se assen-tam na distinção entre poderes constituintes e poderes constituídos.

Assim, o controle da constitucionalidade, como garantia da constituição,atende ao objetivo de assegurar a prevalência da constituição material (supre-macia da constituição), justificada logicamente, na pirâmide normativa, pela su-perioridade hierárquica da constituição formal (superlegalidade). Como diz Ca-notilho (2003, p. 889),

“a fiscalização da constitucionalidade tanto é uma garantia de ob-servância da constituição, ao assegurar, de forma positiva, a dina-mização de sua força normativa, e de forma negativa, ao reagiratravés de sanções contra a sua violação, como uma garantia pre-ventiva, ao evitar a existência de actos normativos, formal e subs-tancialmente violadores de normas constitucionais” (sic).

2.2. REFERENCIAL HISTÓRICO

Embora o constitucionalismo constitua um movimento de certo modo re-cente na história do direito, remontando sua consolidação teórica ao fim da eramoderna, a idéia de controle de constitucionalidade tem suas raízes em temposmais antigos. Cappelletti, por exemplo, afirma a existência, na Antigüidade, defiguras jurídicas muito semelhantes ao atual controle de constitucionalidade. Comoprecedente, exemplifica com o direito ateniense, em que se distinguia

“entre o nómos, isto é, a lei em sentido estrito, e o pséfisma, ouseja, para usar um termo moderno, o decreto. Na realidade, osnómoi, ou seja, as leis, tinham um caráter que, sob certos aspec-

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tos, poderia se aproximar das modernas leis constitucionais”. (1992,p. 49)

Cappelletti finda por apontar elementos que sustentam, já naquela época,a possibilidade de invalidação do decreto por contrário à lei, do pséfisma porcontrário ao nómos, concluindo que

“os juízes atenienses, portanto, não obstante fossem obrigados apor solene juramento a julgar “Kata toùs nómous Kaí Katà psefís-mata” (“segundo a lei e segundo os decretos”), não podiam, po-rém, ser obrigados a julgar segundo os psefísmata, a menos queestes não fossem contrários aos nómoi”. (1992, p. 51)

Também é possível identificar rudimentos de controle de constitucionali-dade durante o predomínio do pensamento jusnaturalista, iniciado ainda nostempos medievais e percorrendo praticamente toda a Idade Moderna, atravésda predominância do jus naturale em relação ao jus positum, sob a idéia dedireito natural como norma superior, insuscetível de derrogação pelo direitopositivo. Entretanto, como o direito natural e o positivo compreendiam ordensjurídicas distintas, enquanto não se estabelecia, mais adiante, uma possibilidadede comunicação entre ambas, não se tornava facilmente viável que o juiz deixas-se de aplicar o direito positivo em favor do direito natural. Cappelletti então citaa doutrina da heureuse impuissance, criada pelos Parlements franceses, “doRei de violar as leis fundamentais – a impotência, portanto, melhor, ‘feliz’ impo-tência do soberano legislador de promulgar aquelas que hoje chamaríamos deleis constitucionais” (1992, p. 56).

É inegável que a consolidação dessa articulação entre duas ordens jurídi-cas outrora concebidas como distintas, conduzindo posteriormente à positiva-ção do direito natural, contribuiu de certa maneira para a formação do constitu-cionalismo em si, mas isso apenas reforça o argumento acerca da importânciado controle de constitucionalidade no sistema de constituições rígidas desde assuas raízes históricas.

O interessante é que o direito natural também serviu de fundamento, nodireito inglês, para anular leis contrárias à common law (POLETTI, 1995). Areferência remonta ao século XVII, por Sir Edward Coke, que preconizava a“autoridade do juiz como árbitro entre o Rei e a nação e como guardião dasupremacia da common law sobre a autoridade do Parlamento e mesmo do

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soberano” (CLÈVE, 2000, p. 59). É verdade que, mais tarde, com a RevoluçãoGloriosa, a tese de Sir Edward Coke cedeu espaço ao princípio da supremaciado Parlamento (parliamentary supremacy), até hoje predominante, mas cons-titui importante precedente para a consolidação, séculos depois, em 1803, dajudicial review, no direito norte-americano, com o case Madison vs. Mar-bury, conduzido com maestria pelo Juiz John Marshall, da Suprema Corte dosEstados Unidos.

Esse precedente se tornou célebre, na história do direito constitucional,como marco do surgimento do controle de constitucionalidade tal como conce-bido até os dias de hoje. Sabe-se que mesmo na jurisprudência americana, an-tes de 1803, havia antecedentes em que se aplicara a doutrina da judicial revi-ew. Para Poletti, o precedente não se tornou célebre pelo conteúdo da idéia,que já era corrente na jurisprudência, senão porque “Marshall foi original nalógica imbatível de sua decisão” (1995, p. 25), além de politicamente hábil parafortalecer, naquele momento, a autoridade da Suprema Corte.

2.3. MODELOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

A partir da consagração da figura do controle da constitucionalidade comogarantia das constituições rígidas, cada Estado, paulatinamente, adotou um mo-delo de justiça constitucional mais afinado com as peculiaridades de seu sistemajurídico, influenciado, evidentemente, por fatores históricos, sociais e políticos.O paradigma de análise para concepção do modelo a ser adotado, como nãopoderia deixar de ser, foi o modelo dos Estados Unidos da América, em cujoâmbito, por obra da jurisprudência, se consagrou a sistemática de controle deconstitucionalidade.

Construída pela jurisprudência, sob a prática do judge-made-law, ca-racterístico da tradição jurídica do sistema norte-americano de common law, ajudicial review consiste em modelo de controle jurisdicional difuso de constitu-cionalidade. Nesse modelo, a fiscalização acerca da constitucionalidade é exe-cutada por qualquer membro do Poder Judiciário, porém com a característicade que a declaração de inconstitucionalidade, por força do princípio do staredecisis, vincula as decisões dos juízes das cortes inferiores (“a decision by thehighest court in any court jurisdiction is binding on all lower courts in thesame jursdiction”). Assim, o julgamento por inconstitucionalidade pela Supre-me Court, em função da incidência desse princípio, indiretamente adquire eficá-cia erga omnes e, como esclarece Cappelletti, “não se limita então a trazer

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consigo o puro e simples efeito da não aplicação da lei a um caso concreto compossibilidade, no entanto, de que em outros casos a lei seja, ao invés, de novoaplicada” (1992, p. 81).

Como diz Favoureu, em análise do modelo europeu, “a maioria dos paí-ses atualmente dotada de um Tribunal Constitucional ficaram, em um certo mo-mento, tentados a adotar o sistema estadunidense e finalmente o rejeitaram – senão aberta ao menos implicitamente” (2004, p. 18). Entretanto, como explica opróprio autor, as tentativas fracassaram nos sistemas europeus de justiças, sejaem virtude de uma excessiva sacralização da lei, enfraquecendo o caráter derigidez da constituição, seja da falta de qualificação específica do juiz ordináriopara a função, seja da ausência de uma unidade jurisdição. Por isso, no conti-nente europeu, o modelo norte-americano foi implantado em apenas poucosEstados, com destaque para os escandinavos.

Há convergência de modelos entre alguns Estados europeus, porém semuniformidade. Na França, por exemplo, foi adotado um modelo de controlepolítico1 predominantemente preventivo, executado pelo Conseil Constitutio-nnel, constitucionalmente situado fora da estrutura de qualquer dos poderes2.Na maioria dos Estados (Alemanha, Áustria, Espanha, Itália), sob inspiraçãokelseniana (FAVOUREU, 2004), optou-se pela estruturação de um controlejurisdicional e repressivo, porém concentrado, exercido com exclusividade porcortes constitucionais criadas para essa finalidade.

Segundo Favoureu, “o modelo europeu é muito diferente. O contenciosoconstitucional, que distinguimos do contencioso ordinário, é da competênciaexclusiva de um Tribunal especialmente constituído para esse fim e que podeestabelecer preceitos, sem que possamos falar propriamente de litígios, por meioda provocação desse Tribunal pelas autoridades políticas ou jurisdicionais e atémesmo por particulares, com decisões que têm efeito absoluto de coisa julgada”(2004, p. 17-18). Ao contrário do modelo norte-americano, em que a fiscaliza-

1 Frise-se que há autores que enquadram o sistema francês também na classificação dos controles jurisdi-cionais, embora protagonizado por instituições não judiciais (CLÈVE, 2000, p. 61; CAPPELLETTI,1992, p. 30).

2 É importante salientar que, na França, a desconfiança em relação aos juízes, fruto dos acontecimentoshistóricos que antecedem à Revolução Francesa, remontando, portanto, ao Ancien Régime, que a estru-tura constitucional do Judiciário terminou sendo bem mais tímida, sem sequer os elementos necessáriospara que se configure de fato um Poder. Basta dizer, no sistema francês, o monopólio da jurisdição nãopertence ao Judiciário, em virtude da existência do Conseil d’État, espécie de jurisdição administrativaconcebida no seio do próprio Pode Executivo, com competência para julgamento das demandas queenvolvam o poder público.

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ção ocorre de forma indireta, a fim de conferir certeza à relação jurídica referen-te ao caso concreto, no modelo de controle concentrado o controle se dá emabstrato, constituindo em si a finalidade do exercício da função definida pelacompetência.

Dados esses elementos empíricos extraídos de realidades normativas nodireito comparado, é possível eleger pelos menos dois critérios de classificaçãodos modelos, preventivos (a priori) ou repressivos (a posteriori), entre políti-cos e jurisdicionais. Outrossim, no que se refere aos modelos jurisdicionais, aatribuição de competências pode ser difusa, como no exemplo norte-america-no, ou concentrada, como predominante nos modelos europeus. Por fim, o con-trole jurisdicional pode ser classificado ainda em concreto, efetuado incidental-mente ou por via de exceção, ou abstrato, em que a fiscalização da constitucio-nalidade constitui objeto do exame em si.

3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

No direito positivo brasileiro, diante do arraigado formalismo e conse-qüente dificuldade de simplificação de institutos e procedimentos, existe hoje emvigor, sob a ordem jurídica instituída pela Constituição Federal de 1988 e frutode um processo histórico, um controle misto que abrange todos os critérios declassificação mencionados, com hipóteses de incidência e competências dife-renciadas. Há previsão de controles preventivo e repressivo, político e jurisdici-onal, concentrado e difuso, todos imbricados num mesmo sistema.

O controle preventivo é predominantemente político, executado pelo Con-gresso Nacional e pelo presidente da República, respectivamente pelas comis-sões de constituição e justiça (art. 85 da CF e Regimentos Internos das CasasLegislativas) e através do veto (art. 66, § 1º, da CF). É predominante e nãoexclusivamente político pelo fato de existir uma hipótese de controle preventivojurisdicional de constitucionalidade, defendida pela doutrina (MORAES, 2000)e admitida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Essa espé-cie, bastante restrita, tem por objeto o controle do devido processo legislativo eé efetuada via mandado de segurança impetrado apenas por parlamentares. Arestrição no tocante à legitimação ativa é ressaltada de forma bastante categóri-ca em precedentes da jurisprudência do STF, em que se afirma

“a legitimidade do parlamentar – e apenas do parlamentar – paraimpetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos

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praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucio-nal incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinamo processo legislativo.”(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 24667 AgR/DF. Tribunal Ple-no. Rel. Min. Carlos Velloso. Brasília, 04 dez 2003).

No controle repressivo ocorre justamente o inverso. Tem predominânciao controle jurisdicional e a Constituição Federal prevê duas hipóteses, bastanterestritas, de controle político, executado pelo Poder Legislativo, prescritas nosartigos 49 e 62, com atribuição de competências, respectivamente, para susta-ção de atos normativos que exorbitem os limites do poder regulamentar e dedelegação legislativa, assim como para fiscalização da constitucionalidade dasmedidas provisórias editadas pelo Poder Executivo.

O controle repressivo jurisdicional de constitucionalidade, executado peloPoder Judiciário, é o de maior expressão no direito brasileiro. Esse controle,que se cinge mais propriamente à temática proposta, é efetuado sob dois gran-des referenciais distintos: o controle concentrado e abstrato, de competênciaexclusiva do STF, e o controle difuso e concreto, efetuado por qualquer unidadejudiciária com competência jurisdicional. Pontualmente, é possível identificar nosistema jurídico brasileiro figuras que fogem um pouco dessa combinação con-centrado-abstrato e difuso-concreto, mas se trata de situações bem específicasàs quais, em vista do objeto proposto e da falta de uniformidade na doutrina,não convém se ater na análise3.

A construção desse controle misto, de pouca articulação entre suas espé-cies, decorre de vários fatores que se conjugam entre si:

i) de um processo histórico de instabilidade constitucional do país;ii) do excessivo formalismo na formação jurídica dos profissionais do

direito, que insistem em interpretar as categorias e institutos da jurisdi-ção constitucional de maneira conceitualista e sob paradigmas de di-reito privado;

iii) da importação indiscriminada de categorias e institutos do direito es-trangeiro, sem a devida verificação de compatibilidade com a tradiçãojurídica brasileira;

3 Apenas para exemplificar, há autores que enquadram a ação direta interventiva como hipótese decontrole concentrado e concreto (CLÈVE, 2000).

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iv) de uma indefinição filosófica na aplicação das modalidades de contro-le, especialmente na difusa e concreta, talvez por uma certa rejeiçãoao direito norte-americano, fruto de uma idolatria acadêmica ao direi-to continental europeu.

3.1. REFERENCIAL HISTÓRICO NO BRASIL

Ao contrário dos Estados Unidos, cuja enxuta constituição data de maisde duzentos anos, evidentemente que com as emendas necessárias a que seadapte às exigências de evolução do processo histórico, no Brasil nunca seconseguiu obter a mesma estabilidade constitucional que possibilitasse o ama-durecimento das instituições. Daí por que, mais de quinhentos anos depois desua conquista por Cabral, o Brasil ainda é um país institucionalmente jovem,uma democracia em amadurecimento e consolidação.

Assim, o poder constituinte instituído para conceber a então futura Cons-tituição Federal de 1988, sob os anseios de abertura democrática impulsionadapelos protestos que antecederam a Nova República, instituiu um modelo decontrole de constitucionalidade que aproveitou praticamente todas as experiên-cias anteriores, mais preocupado em democratizar o acesso à justiça (o que nãose restringiu a essa questão) e menos com a estruturação de um perfil maisracional.

O controle misto resulta de uma acumulação de experiências paulatina-mente implementadas de modo assistemático na história constitucional brasilei-ra. Como não houve, nesse processo, a postura de imprimir uma sistematizaçãoentre as figuras que eram criadas e as que já vigoravam, findou que duas grandesvertentes paralelas se estabeleceram e se incorporaram à tradição. Assim, ocontrole de constitucionalidade surgiu inicialmente apenas difuso e concreto, masadquiriu feição mista com a introdução de outras estruturas, próprias da moda-lidade concentrada e abstrata, sem a conseqüente perda de legitimidade dasanteriores.

O controle difuso e concreto foi instituído inicialmente na Constituição de1891, sob os auspícios de Ruy Barbosa e inspiração na experiência norte-ame-ricana da judicial review, consolidada pelo leading case que se tornou célebre,Madison vs. Marbury. O problema é que, como não se adotou, concomitante-mente, a doutrina do stare decisis, o sistema gerou a proliferação de açõesidênticas e em grande quantidade, cujas pretensões não recebiam julgamentouniforme em função da não vinculação dos juízes de instâncias superiores à ju-risprudência do STF.

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Para sanar esse inconveniente, a Constituição de 1934, promulgada apósa Revolução de 1930, veio instituir a competência do Senado Federal parasuspender, no todo ou em parte, a execução de lei ou ato declarado inconstitu-cional pelo Poder Judiciário, possibilitando a atribuição de efeito geral às deci-sões de inconstitucionalidade, procedimento que permanece em vigor, emboraparcialmente modificado, no âmbito do controle difuso e concreto, nos termosdo artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988. Ainda na Constituição de1934, instituiu-se a representação interventiva (semelhante à hoje prevista noartigo 36, I, da Constituição Federal de 1988), que viabilizava a argüição peloprocurador-geral da República, da incompatibilidade de atos normativos esta-duais com os princípios constitucionais sensíveis.

A Constituição de 1937, “para utilizar a tipologia de Loewenstein, umaConstituição semântica” (CLÈVE, 2000, p. 85), outorgada pelo então presi-dente Getúlio Vargas na instituição do Estado Novo, teve como finalidade pri-mordial legitimar formalmente o regime ditatorial que se instaurava. Daí ter sidoconcebida de modo a atenuar a supremacia do Judiciário e fortalecer o poderdo Executivo no controle de constitucionalidade. Essa característica se refletepela competência atribuída ao presidente da República, no artigo 96, parágrafoúnico, de submeter ao Parlamento novamente, que podia, sob determinado qu-orum de confirmação, tornar sem efeito a decisão judicial.

A Constituição de 1946 praticamente restabelecia o sistema anterior a1937. É restaurada a judicial review, com a concomitante competência doSenado Federal para suspender, no todo ou em parte, a execução de ato nor-mativo declarado inconstitucional, desde que pelo STF e não mais pelo PoderJudiciário em geral. Mantém-se a representação interventiva, porém com modi-ficações quanto ao procedimento.

Em 1965, com a Emenda Constitucional nº 16, foi introduzida a represen-tação por inconstitucionalidade, que viabilizava o controle abstrato, via açãodireta, com maior amplitude em relação à representação interventiva, porquedesvinculada dos fins de intervenção federal. A iniciativa dessa representaçãoera de exclusividade do procurador-geral da República, que dispunha de mar-gem de discricionariedade sobre a plausibilidade quanto ao ajuizamento da ação.A decisão proferida pelo STF tinha efeitos gerais ou erga omnes, já que nãoenvolvia o interesse de partes em litígio, mas a coletividade como um todo. Oexame acerca da constitucionalidade era efetuado no plano abstrato e sem umconflito de interesses subjacentes.

O conteúdo da Emenda Constitucional nº 16 foi absorvido pelo texto daConstituição de 1967, sendo que, com a Emenda Constitucional nº 07/77, ins-

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tituiu-se a hipótese de controle, via representação, também para interpretaçãode lei ou ato normativo federal ou estadual, assim como a possibilidade de oprocurador-geral da República postular, nesse procedimento, a determinaçãode medidas cautelares.

Esses antecedentes históricos deram origem ao controle misto hoje emvigor. O processo evolutivo reflete, até pela ordem cronológica de criação dosinstitutos, o fortalecimento do controle concentrado e abstrato, porém sem aderrocada do controle difuso e concreto, já consolidado na tradição jurídicabrasileira, que de certo modo delimita a abrangência do próprio exercício dafunção jurisdicional no país4.

A ampliação do controle concentrado e abstrato não se esgota com aentrada em vigor da Constituição Federal de 1988. Não bastasse ter o textooriginário previsto novas espécies para essa modalidade de controle5, foi intro-duzida, pela Emenda Constitucional nº 03/93, a ação declaratória de constituci-onalidade e, posteriormente, foram editadas as Leis nº 9.868/99 e 9.882/99, aprimeira regulando o procedimento das ações direta de inconstitucionalidade edeclaratória de constitucionalidade e a segunda, a argüição de descumprimentode preceito fundamental, até então em absoluto desuso.

É importante que se esclareça, todavia, que as últimas inovações de maiorimportância no sistema de controle de constitucionalidade, instituídas pela EmendaConstitucional nº 45/2004, ocorreram no âmbito da modalidade difusa e con-creta, através da adoção da súmula vinculante e do exame da repercussão geralda questão constitucional no âmbito do recurso extraordinário. É verdade quese fixaram, no uso do poder de reforma, requisitos muito rígidos para a incidên-cia dos efeitos desses institutos, mas, do ponto de vista político, sua incorpora-ção no direito positivo demonstra, de um lado, o interesse na manutenção docontrole difuso e concreto e, de outro, a preocupação em, finalmente, imprimirmaior articulação entre as modalidades de controle, esvaziando o julgamentoreiterado de matérias repetitivas pelo STF, que tanta irracionalidade tem impos-

4 A afirmação é corroborada pelo aprimoramento das ações constitucionais, valorizadas no texto daConstituição Federal de 1988 até sob o ponto de vista topográfico, enumeradas entre as garantiasconstitucionais no artigo 5º, antecedendo inclusive a atribuições de competências no exercício do poderpolítico. A criação de novos remédios constitucionais, como o mandado de injunção (posteriormentesepultado na prática por força do conservadorismo da jurisprudência do STF), reforça o argumento.

5 Constituem exemplos da afirmação a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 102, § 2º, da CF)e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, parágrafo único, da CF em sua redaçãooriginal).

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to ao sistema judiciário, seja do ponto de vista da eficiência, seja do ponto devista da efetividade6.

3.2. CONTROLE DIFUSO E CONCRETO

Inspirado na common law norte-americana e incorporado ao direito bra-sileiro pela primeira vez no texto da Constituição de 1891 por obra de RuyBarbosa, o controle difuso e concreto é o efetuado como pressuposto do pró-prio exercício da função jurisdicional. Executado por via de exceção, implica averificação da compatibilidade da lei aplicável com a constituição no caso con-creto, como condição prévia indispensável ao julgamento do mérito de um de-terminado conflito de interesses por uma pretensão resistida ou insatisfeita.

Com efeito, estando a ordem jurídica instituída sob os dogmas de unida-de, coerência e completude (BOBBIO, 1990) e concebida hierarquicamentecom a constituição como Grundnorm situada no topo da pirâmide normativa(KELSEN, 1995), não é possível ao juiz, no equacionamento do conflito deinteresses, determinar a aplicação de uma norma em desconformidade, materialou formal, com o texto constitucional que legitima, na estrutura formal que é odireito positivo, toda a normatização inferior.

Assim, o controle é difuso porque deve ser executado por qualquer agen-te público no exercício da jurisdição e em função das peculiaridades que a nor-teiam; é concreto, de outra parte, pelo fato de ser efetuado por via de exceção,como pressuposto à solução de conflitos de interesses por pretensões resistidasou insatisfeitas. Nessa modalidade, enfim, o controle não constitui a finalidadeprimordial em si da função pública exercida, senão meio para resolver litígios emobservância da constituição, permanecendo a lei válida no sistema em relação aterceiros não abrangidos pela coisa julgada.

O controle difuso e concreto encontrou nos Estados Unidos da Américaum terreno fértil do ponto de vista sócio-político para consolidação, depois deprecedentes históricos bastante rudimentares que remontam à Antigüidade e à

6 Em Portugal, por exemplo, a Lei nº 28, de 15 de novembro de 1982, que dispõe sobre a organização,funcionamento e processo do Tribunal Constitucional português, prevê no artigo 82 procedimento que seafigura bem mais eficiente para viabilizar a comunicação entre as modalidades de fiscalização concreta eabstrata: “Artigo 82 (Processo aplicável à repetição do julgado). Sempre que a mesma norma tiver sidojulgada inconstitucional ou ilegal em 3 casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa dequalquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópiasdas correspondentes decisões, o qual é concluso ao presidente, seguindo-se os termos do processo defiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da ilegalidade previstos na presente lei.”

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Idade Média. Avessos à interferência da lei emanada do Parlamento inglês, osnorte-americanos se rebelaram contra a dominação e, ao declararem sua inde-pendência, instituíram um novo tecido social e político calcado na supremacia deuma constituição, identificada como o marco de conquista das liberdades. Aconstituição era a Law of the Land dos norte-americanos.

Já em 1787-1788, cerca de quinze anos antes do leading case Madisonvs. Marbury, Alexander Hamilton escrevia, no artigo LXXVIII, de “O Federa-lista”, que

“a completa independência dos tribunais de justiça é peculiarmen-te essencial numa Constituição limitada. Por Constituição limitada,entendo uma que contenha certas exceções especificadas ao poderlegislativo, como, por exemplo, a de que não aprovará decretos deperdas de direitos civis, leis ex post facto, ou coisas semelhantes.Na prática, limitações desse tipo não podem ser preservadas se-não por meio dos tribunais de justiça, cuja missão deverá ser de-clarar nulos todos os atos contrários ao sentido manifesto da Cons-tituição. Sem isto, todas as restrições a direitos ou privilégios par-ticulares equivaleriam a nada”. (MADISON, 1993)

É importante ressaltar a circunstância de que o Judiciário dos EstadosUnidos, ao contrário do ocorrido no processo histórico europeu, sempre foidotado de enorme prestígio, pelo fato de figurar como contraponto às imposi-ções do Parlamento inglês. O Parlamento, que para o povo inglês era expressãoda liberdade popular, para os norte-americanos era sinônimo de opressão colo-nialista. O Judiciário norte-americano, nesse contexto, sempre desempenhoupapel fundamental de coragem no fortalecimento da constituição americana, quesimbolizava a consagração da liberdade diante da dominação colonial.

Esse prestígio se revela até os dias atuais, o que pode se verificar facil-mente na ampla discussão que põe na sociedade civil norte-americana quandoda indicação dos justices para a Supreme Court. Evidentemente que esse pres-tígio foi obtido num longo período de tempo e o case Madison vs. Marbury étido como o primeiro constitucional test case de consolidação dos poderes daSuprema Corte.

O case, como já salientado, adquiriu relevância menos pelo ineditismo emais em função da habilidade política do então e recentemente nomeado chiefjustice John Marshall, ex-integrante do Partido Federalista que acabara de dei-

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xar o cargo de secretário de Estado, no governo Adams, derrotado por Jeffer-son nas eleições presidenciais (POLETTI, 1995). Derrotados, os federalistasaproveitaram para proceder a um vendaval de nomeações para vários cargospúblicos, notadamente do Judiciário. O próprio Marshall foi beneficiado com ocargo de presidente da Suprema Corte.

O problema é que não foi possível, até a posse do novo presidente, entre-gar os títulos das nomeações a todos os beneficiados, dentre os quais WilliamMarbury, indicado a juiz de paz no Condado de Washington. Assim, quandoJefferson assumiu o poder, determinou a seu secretário de Estado, James Madi-son, que não entregasse o título da comissão a Marbury, entendendo que anomeação somente se aperfeiçoava com a entrega do documento. Marburyentão, alegando prejuízo, provocou a jurisdição sob um writ of mandamus.Notificado, Madison silenciou na apresentação de contra-razões, tendo Mar-bury, na terminologia brasileira, postulado a execução da ordem.

A Suprema Corte demorou certo tempo para julgar a causa, num silêncioeloqüente. Brilhantemente, Marshall, ao apreciar a pretensão, primeiramentedecidiu o mérito da causa, reconhecendo a contrariedade à constituição no atoadministrativo praticado, porém, ao final, acolheu uma preliminar e deixou deconceder a ordem. Era um momento de tensão e se temia o desrespeito à deci-são pelo Poder Executivo, em virtude da ausência de instrumentos ao PoderJudiciário para fazer cumprir, por si só, suas decisões. A genialidade do prece-dente reside na habilidade política em não desmoralizar institucionalmente a Su-prema Corte e fixar os limites para sua atuação futura.

O argumento de Marshall é de uma lógica irrefutável, sob premissa darigidez constitucional:

“Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medidalegislativa, que a contrarie, anuir em que a legislatura possa alte-rar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dile-ma. Entre as duas alternativas não se descobre meio-termo. Ou aConstituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meioscomuns; ou se nivela com os atos da legislação usual, e, como es-tes, é reformável ao sabor da legislatura.” (apud POLETTI, 1995,p. 33-34)

Essa sistemática foi importada para o direito brasileiro, até acompanhadade alguns outros institutos, como a cláusula de reserva de plenário, inspirada no

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full bench norte-americano, porém sem a devida adaptação para que pudesseoperar com eficiência e efetividade. Assim é que, a despeito da adoção do con-trole difuso e concreto, não se incorporou ao direito brasileiro a categoria doprecedente vinculante, orientada pela doutrina do stare decisis. Mantendo emvigor categorias próprias da civil law incompatíveis com a modalidade de con-trole difuso e concreto, o resultado foi a criação de um modelo irracional, dedecisões divergentes sobre a mesma matéria, além da multiplicação de casosrepetitivos.

Cappelletti alerta que

“a introdução, nos sistemas de civil law, do método ‘americano’ decontrole, levaria à conseqüência de que uma mesma lei ou disposi-ção de lei poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucionalpor alguns juízes, enquanto poderia, ao invés ser aplicada, porquenão julgada em contraste com a Constituição, por outros. Demais,poderia acontecer que o mesmo órgão judiciário que, ontem, nãotinha aplicado uma determinada lei, ao contrário, não a aplique hoje,tendo mudado de opinião sobre o problema de sua legitimidadeconstitucional. Poderiam, certamente, formar-se verdadeiros ‘con-trastes de tendências’ entre órgãos judiciários de tipo diverso.”(CAPPELLETTI, 1992, p. 77)

No Brasil, em vez de se prover o sistema da adaptação necessária, prefe-riu-se, em vista dos inconvenientes surgidos, instituir o procedimento hoje pre-visto no artigo 52, X, da Constituição Federal, de comunicar o STF ao SenadoFederal o julgamento pela inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em con-trole difuso para que este lhe determine a suspensão, no todo ou em parte. Oproblema é que essa comunicação não vincula o Senado Federal, que exercediscricionariamente a competência instituída pelo artigo 52, X, conforme prece-dente do próprio STF e posicionamento daquele (MORAES, 2000, p. 254), decerto modo transpondo a apreciação jurisdicional já conclusiva para o plano daconveniência política.

O posicionamento constitui uma aberração tanto do ponto de vista institu-cional quanto lógico-formal, inclusive subvertendo o argumento irrefutável deMarshall. Em outras palavras, no Brasil se criou, sim, o meio-termo, de umPoder Legislativo que, num sistema de constituição rígida, pode se recusar asuspender a execução de lei ou ato normativa já declarada inconstitucional. O

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mais grave é que o posicionamento conta com a aquiescência do STF, queterminou por anular materialmente o exercício de sua própria competência decontrolar, em caráter repressivo, a constitucionalidade.

Isso decorre de interpretação equivocada do princípio da separação dospoderes, sob uma visão mais formalista e menos institucional, como se nenhumdeles pudesse ser jamais obrigado a agir ativamente sob interferência de outrem.Ora, o princípio da separação dos poderes permanece, em evolução à teoriaque se tornou célebre em Montesquieu, justamente com o objetivo de se pro-mover o checks and balances, o necessário equilíbrio na função pública. Daíporque, no exercício desta, os poderes se controlam reciprocamente, interferin-do, sim, entre si, no outro, cada um no seu espaço institucional. E, no que serefere ao controle repressivo e jurisdicional de constitucionalidade, esse espaçoinstitucional é do Judiciário e não do Legislativo, cabendo a este apenas forma-lizar a decisão.

Esse respeito institucional é facilmente visível em Estados de democraciaconsolidada. Na Inglaterra essa verificação se torna ainda mais interessante,porque, ao contrário do Brasil, a democracia se expressa mais material do queformalmente. Na Inglaterra, não se identifica a figura do Estado, senão a daCoroa, sendo o poder político exercido para o povo, porém em nome de SuaMajestade. O interessante é que se trata de um sistema que opera sem a exis-tência de um direito público formal, mas apenas sob convenções constitucionaiscuja coercitividade decorre apenas de uma força cultural intrínseca. Basta dizerque, na história da Inglaterra, desde a instituição do Parlamento, jamais o mo-narca recusou o nome indicado para Chefe do Gabinete, o Primeiro Ministro,embora lhe seja assegurada formalmente essa prerrogativa. É que, materialmen-te, essa constitui uma convenção constitucional democrática de respeito institu-cional à escolha do Parlamento.

3.3. CONTROLE CONCENTRADO E ABSTRATO

Muito antes de Cappelletti, percebeu-se que o modelo norte-americanode controle difuso e concreto não se adaptaria muito bem ao modelo europeu.Daí porque, por muitos anos, o direito da civil law ou europeu continental per-maneceu sem um modelo de controle de constitucionalidade devidamente siste-matizado. O fenômeno, conforme já demonstrado, se explica filosófica e histo-ricamente.

A primeira dificuldade se impõe pela legitimidade social e política queadquiriu o Parlamento, na Europa, como instituição destinada a impor limites

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aos demandos dos governantes. Fruto do pensamento filosófico contratualista,a lei ganhou enorme prestígio como expressão da vontade geral, fortalecendo oParlamento como expressão dessa vontade. Por outro lado, o contexto era deum Judiciário extremamente fragilizado e carente da confiança da população,até pelas ligações muito estreitas com a monarquia absolutista, ao ponto de, emalguns Estados, o Judiciário não ter sido contemplado com o monopólio dajurisdição, o que constituía uma segunda dificuldade. Nesse contexto se punhaainda uma terceira dificuldade: faltava aos juízes ordinários, por força da estru-tura obsoleta e atemporal do Judiciário, a qualificação específica para exerceressa competência.

A conjugação desses fatores ensejou um espaço institucional pouco pro-pício a uma tentativa de forjar, como se fez nos Estados Unidos, uma situaçãode confronto do Judiciário com os demais poderes e sobretudo com a possibi-lidade de êxito por aquele. Assim, diante da impossibilidade de os juízes ocupa-rem esse espaço, optou-se por construir um modelo distinto de fiscalização daconstitucionalidade, exercitado por cortes constitucionais com competência es-pecial para essa finalidade.

Esse modelo, concebido a partir dos escritos de Hans Kelsen, foi implan-tado inicialmente na Áustria, por meio da Constituição de 1920. Sob premissaepistemológica distinta da preconizada pela judicial review, não entendia elecomo nula ou inexistente a lei contrária à constituição, senão que essa lei perma-neceria válida enquanto não revogada por outra (lex posteriori revogat priori)ou excluída do sistema jurídico mediante um procedimento especial instituídonaquela (CLÈVE, 2000). Como em Kelsen a legitimidade decorre do conceitode autoridade, somente a manifestação, pelo órgão competente, reconhecendoa invalidade da lei, possibilitaria a exclusão desta do direito positivo, estruturan-do o seu pensamento a partir do sistema jurídico como um todo.

Sob essa premissa, não faria sentido a instituição de um controle difuso,porque somente concentrando esse procedimento num único órgão seria possí-vel determinar a retirada da lei inconstitucional do sistema jurídico. É que a mo-dalidade difusa, dessa forma, teria a rigor o inconveniente de possibilitar quequalquer juiz efetuasse o controle de constitucionalidade, invalidando em si umalei e, ao excluí-la do sistema jurídico, vincular inclusive as instâncias superiores.Assim, pensou Kelsen na instituição de cortes constitucionais para exercer deforma concentrada essa competência (Verfassungsgerichtshof).

Kelsen pensou num modelo incompatível com a fiscalização concreta deconstitucionalidade, exercida em conflitos de interesses específicos e com a fi-

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nalidade de equacioná-los. Essa circunstância lhe exigiu, concomitantemente, aconcepção de um modelo também abstrato de fiscalização, com procedimentosdistintos do processo tradicional de solução de litígios entre sujeitos.

Assim, na modalidade abstrata, o controle de constitucionalidade se dámediante processo objetivo, distinto do subjetivo pela inexistência de uma lidesubjacente e tampouco de partes. Pelo caráter abstrato, esse procedimento pres-cinde de contraditório (a regra audi altera parte não tem sentido pela simplesausência de teses contrapostas) e a eficácia das decisões transcende o conceitode limite subjetivo da coisa julgada, operando-se erga omnes.

A instituição do controle concentrado e abstrato no Brasil, dentro do pro-cesso histórico, decorreu de uma deficiência em como se estruturou o controledifuso e concreto, que desde o início careceu de um instrumento semelhante aostare decisis com a finalidade de imprimir estabilidade ao sistema, evitando quedecisões divergentes sobre idêntica matéria se propagassem, gerando insegu-rança e desigualdade. Não custa lembrar que a preclusão constitui importanteinstituto na dinâmica do direito processual civil e a perda de um prazo pararecurso (preclusão temporal), por exemplo, pode ensejar uma situação de ex-trema injustiça material, o que é perigoso no plano da constitucionalidade.

Assim, pela estrutura judiciária brasileira, concentrou-se no STF a com-petência para exercer a fiscalização direta da constitucionalidade, através devários institutos estabelecidos no texto constitucional: a ação direta de inconsti-tucionalidade (genérica), a ação declaratória de constitucionalidade, a ação deinconstitucionalidade por omissão, a argüição de descumprimento de preceitofundamental e a ação direta de inconstitucionalidade interventiva.

Ainda se trata de um modelo em evolução, com muitas de suas questõessem uma orientação mais precisa pelo STF. A argüição de descumprimento depreceito fundamental, por exemplo, é um instituto cuja abrangência permanecebastante indefinida (NOBRE, 2004), especialmente quanto ao conceito de pre-ceito fundamental e ao seu âmbito de aplicação, inclusive quanto aos limites dasubsidiariedade imposta pela Lei nº 9.882/99, semelhante ao recurso de ampa-ro espanhol que, no entanto, tem incidência apenas na defesa de direitos funda-mentais.

A questão do efeito vinculante também causa bastante perplexidade, in-clusive porque o STF, sob a mesma interpretação formalista do princípio daseparação dos poderes que permitiu ao Senado Federal exercer discricionaria-mente a competência que lhe é atribuída pelo artigo 52, X, da ConstituiçãoFederal, permanece com o posicionamento de que aquele não alcança a função

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legislativa, senão apenas os demais poderes (BRASIL. Supremo Tribunal Fe-deral. Rcl 2617 AgR/MG. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cézar Peluso. Brasília, 23fev 2005), gerando absurdamente a possibilidade de julgamento repetitivos e,dependendo da composição do STF, possivelmente divergentes mesmo no con-trole concentrado e abstrato.

Se isso não bastasse, como se trata de um modelo em fase de consolida-ção, imperfeições empiricamente constatadas têm exigido o constante aprimo-ramento dos institutos, tal como ocorreu não há muito com a Emenda Constitu-cional nº 45/2004. Sempre que isso acontece, constata-se um dado sociológicoimportante: a resistência às mudanças é tamanha, na doutrina e em alguns seto-res corporativos de algumas carreiras jurídicas, com o detalhe de que, em mui-tas situações se estabelecem premissas relativas a conceitos de direito privado,originários da legislação complementar e ordinária. Um dos focos de extremaresistência, até hoje, é o caráter vinculante no controle concentrado e abstrato,que muitos entendem inclusive insuscetível de emenda, sob o fundamento deviolação da independência do juiz.

É possível verificar também absoluta incompreensão quanto à necessida-de de se instituir mecanismos de comunicação entre os dois modelos constituci-onalmente admitidos, que não devem permanecer desarticulados e estanques.Como o controle misto é fruto de um processo histórico, a providência que seafigura mais correta é a de aprimorar o que foi construído e não de abolir o quese obteve nessa evolução para, incorrendo no mesmo erro do passado, impor-tar outros novos modelos do direito estrangeiro que não se adaptem à realidadeconstitucional brasileira.

Moraes cita Jorge Miranda para ressaltar a importância de manutençãoda tradição jurídica de um país para, de forma contextualizada, defender a ne-cessidade de aprimoramento do sistema brasileiro e não a importação de figurasdo direito estrangeiro ou extinção de modalidades existentes, com ênfase, nesseponto, quanto ao controle difuso e concreto que, para ele, deve ser “preservadoe incentivado, uma vez que a idéia de afastar a aplicação de uma lei inconstituci-onal é ínsita aos magistrados brasileiros” (MORAES, 2000, p. 304).

4. O PROBLEMA DA FORMAÇÃO JURÍDICA

Os estudos de sociologia jurídica de há muito mostram, com preocupa-ção, a deficiência do ensino no Brasil, seu excessivo formalismo e seu reflexosocial bastante prejudicial ao aprimoramento das instituições democráticas e à

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busca do desenvolvimento, pelo menos naquilo em que o Poder Judiciário e asfunções essenciais à Justiça podem contribuir para essa finalidade (SOUTO,2003). Assim, o jurista recebe uma formação mais dogmática e conceitualista emenos zetética e substantiva, o que dificulta o exame da ordem jurídica de ma-neira mais coerente e sistemática, torna reducionista a análise do direito posto einviabiliza qualquer construção interpretativa efetivamente publicista. Na lingua-gem coloquial, o jurista brasileiro se preocupa mais com o varejo do que com oatacado.

Esse formalismo, no direito público, tem conseqüências extremamentepreocupantes, pois torna o jurista brasileiro inapto para um correto exame dodado da realidade antes da determinação da norma jurídica aplicável. A normase transforma num fim em si, aplicada num plano excessivamente abstrato, resul-tando que as instituições brasileiras não conseguem equacionar a contento osconflitos sociais que surgem em seu seio, a ponto de se instituírem ordens para-lelas (e ilícitas), à margem do Estado, de solução de conflitos, especialmente nosbolsões de pobreza, em prejuízo da estabilidade social.

Essa característica está tão arraigada à formação do jurista brasileiro que,a despeito da existência de inúmeros estudos em que se expõe essa preocupa-ção e são elencados instrumentos para rompimento desse paradigma, ele nãoconsegue se desvencilhar desse padrão cognoscitivo. Daí porque, no Brasil, aquestão da força normativa dos princípios e sua aplicação através do critério daponderação, embora apregoado aos quatro cantos, em decisões judiciais, emartigos doutrinários e em peças processuais produzidas pelas diversas carreirasjurídicas, ainda sofre algum preconceito quando aplicada a casos concretos.Nos Estados Unidos da América, com o pragmatismo característico da filosofiajurídica e a atenção sempre voltada aos anseios da sociedade (legal realism), aforça normativa dos princípios se incorporou naturalmente à sistemática da judi-cial review, sendo aplicada de há muito pelo Judiciário, mesmo na determina-ção positiva de condutas aos jurisdicionados (case Brown vs. Board of Educa-tion).

Essa característica do direito brasileiro se agrava no controle de constitu-cionalidade das leis, em que é impossível, não apenas pelo caráter publicísticocomo pela forte conotação política, aplicar meramente o critério subsuntivo tra-dicional de aplicação da norma. O interessante é que, na Europa, como já sedisse, o controle concentrado e abstrato foi instituído, dentre outras razões, pelafalta de qualificação dos juízes ordinários para a fiscalização da constitucionali-dade. No Brasil, no entanto, essa característica de formalismo curiosamente é

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vista com mais freqüência principalmente nos tribunais superiores, especialmen-te no STF, um dos tribunais mais conservadores do país.

Já foi mencionado aqui o problema da abrangência do princípio da sepa-ração dos poderes, com reflexos importantes na efetividade do controle de cons-titucionalidade. A interpretação reducionista do princípio, conforme já demons-trado, configura desserviço ao aprimoramento do modelo de controle de cons-titucionalidade, possibilitando, por exemplo, que o Senado Federal se recuse,sob critérios políticos de conveniência e oportunidade, a suspender a execuçãode lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF em controle difusoe concreto, assim como que, na declaração de inconstitucionalidade em contro-le concentrado e abstrato, o efeito vinculante não atinja a função legislativa.

Para demonstrar que a análise é reducionista, basta retomar o argumentode Marshall sobre o meio-termo: se não se confere efetivo cumprimento, numcaso ou em outro, à declaração de inconstitucionalidade pelo STF, é porque aconstituição não está em posição hierárquica de superioridade em relação às leisem geral, ou então simplesmente porque não se a observa, ou porque não serespeita a autoridade do STF. Ressalte-se que, para Kelsen, é o princípio daautoridade que determina a validade e a invalidade de uma lei diante da consti-tuição. No caso, então, o que substancialmente ocorre não é a preservação daindependência do Legislativo, que fundamentalmente não se justifica, senão aanulação indireta da competência do STF.

O formalismo está arraigado na própria estruturação do sistema. Nãofosse ele, sequer haveria a necessidade de um controle misto, bastando que seaprimorasse o controle difuso e concreto inicialmente instituído. É verdade queo dogmatismo decorre de certo modo do normativismo dos sistemas da civillaw, influenciados pela ampla propagação da filosofia positivista na Europa.Entretanto, a característica do dogmatismo, do normativismo formalista, é bemmais presente no Brasil.

É com base nesse formalismo que se procura justificar racionalmente aexistência de um controle (misto) em que, dependendo apenas do procedimentoaplicável, uma determinada decisão proferida rigorosamente pelo mesmo cole-giado terá efeitos distintos, sem qualquer possibilidade de articulação entre osdois procedimentos. No sistema brasileiro, a jurisdição constitucional está a ser-viço do processo, e não o contrário, numa absurda inversão de valores.

Com efeito, sob qualquer raciocínio a partir de postulados de direito pú-blico, em que, pela abrangência coletiva de suas categorias e institutos, o con-teúdo das decisões, mesmo no processo individual, normalmente transcende a

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esfera de interesse das partes litigantes, não se justifica filosoficamente que oplenário do STF declare a inconstitucionalidade (ou constitucionalidade) de umalei ou ato normativo e os efeitos sejam fixados apenas conforme o procedimentoaplicado, mesmo em sistemas de controle misto.

Ainda que se trate de um controle misto, um mecanismo de comunicaçãoentre as duas modalidades, tal como no direito português, é absolutamente ne-cessária, não apenas por questões de coerência interna do sistema, mas tambémpor questões de isonomia e segurança jurídica, assim como para que, simples-mente, os órgãos jurisdicionais não se obriguem a perder seu tempo com ques-tões já amplamente discutidas, em evidente desperdício de recursos públicos,materiais e humanos.

5. IMPORTAÇÃO INDISCRIMINADA DO DIREITO ESTRANGEIRO

O problema do formalismo se alia ao da importação indiscriminada decategorias e institutos jurídicos do direito estrangeiro. É que o jurista, deparan-do-se com eles, imprime-lhes a mesma análise reducionista e nada substantiva,sem a percepção de que seu enquadramento no direito positivo brasileiro de-pende de algumas sistematizações. Essa postura assistemática, como enfatiza-do, resultou na formação de duas modalidades paralelas e não intercambiantes,ensejando o controle misto atualmente em vigor.

Um exemplo bastante elucidativo dessa afirmação deu-se na incorpora-ção do controle difuso e concreto, através da Constituição de 1891, sem ne-nhum mecanismo semelhante ao stare decisis, por absoluto e injustificado pre-conceito contra o precedente vinculante, sob o falso fundamento de violação àindependência do juiz, que diz respeito à interpretação do caso concreto e avinculação a teses jurídicas. O raciocínio, em última instância, conduziria ao ab-surdo de que a independência implicaria decidir o caso concreto segundo seulivre convencimento e independentemente de referencial normativo previamenteconcebido. Mesmo nos dias de hoje, em que algumas figuras afins ao staredecisis já podem ser encontradas no direito positivo e na jurisprudência brasilei-ra, o preconceito injustificadamente ainda persiste.

É um equívoco pensar que o juiz decide por livre convencimento. Se as-sim fosse, sequer a norma lhe imporia amarras. O juiz decide os conflitos deinteresses segundo padrões normativos previamente determinados que lhe sãoimpostos, embora uns com maior abertura interpretativa, motivadamente, demodo a que se possa verificar justamente a compatibilidade da decisão com o

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direito posto. A necessidade de motivação, uma exigência democrática paraevidenciar a impessoalidade no exercício da função pública, deve ser observadapelo juiz inclusive no exame da prova, sem que isso implique violação a suaindependência.

A independência do juiz no exercício da função é, portanto, limitada àsimposições do direito positivo e à necessidade de fundamentar suas decisões.Do contrário, implicaria opressão, e não função pública. Assim, da mesma for-ma em que seu convencimento se limita às normas gerais e abstratas editadas nafunção legislativa, a atribuição de efeito vinculante ao precedente judicial, sejaou não em questão constitucional, não lhe implica violação à independência.Trata-se de uma função pública, em que não se justifica, sob pena de excessivapessoalidade, o comprometimento com teses jurídicas. A escolha da respostacorreta a determinada questão não passa pelo espírito do pensamento individualdo juiz. É uma escolha do sistema, exercida sob competências.

Assim, do mesmo modo em que hoje se aceita o efeito vinculante nocontrole concentrado e abstrato, a despeito de permanecerem teses em sentidocontrário, não existe nem jamais existiu obstáculo constitucional à adoção demecanismos semelhantes ao stare decisis norte-americano, que, aliás, se prati-ca por lá sem qualquer previsão legal, por uma postura pragmática de entenderde que o juiz exerce uma função estatal, de que se trata da resposta do Estadoa uma determinada questão, e não uma atividade científica de aplicar aquilo quelhe parece a verdade. Para o juiz norte-americano, é mais fácil separar, no dis-curso, a lógica deôntica da lógica alética.

Assim, o problema da importação indiscriminada de institutos do direitoestrangeiro remonta à origem do controle de constitucionalidade no Brasil. Ointeressante é que, quando da entrada em vigor da Constituição de 1891, se-quer o Código Civil de 1916 era vigente e, além do Código Comercial de 1850,as relações de direito privado eram reguladas pelas Ordenações Filipinas, quejá estavam revogadas até em Portugal (MAZZEI, 2004). O Brasil então aindadiscutia como sistematizar o direito privado sob a égide do individualismo, o quedemonstra como o contexto de importação da idéia não era favorável a umamelhor sistematização.

A questão é que os anos se seguiram e o conservadorismo permaneceuimpedindo o avanço até do direito público, quiçá do modelo de controle daconstitucionalidade. Isso, infelizmente, predomina até hoje, porque a reforma doensino ainda não conseguiu contemplar por completo, apesar da evolução, amudança de paradigmas, assim como porque as universidades, e especialmente

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os cursos de direito, permanecem herméticos e alijados dos reclamos da socie-dade, preocupados mais com a produção intelectual voltada para uma satisfa-ção de cunho subjetivo.

Há exemplos recentes de importação de figuras do direito estrangeiro quetêm gerado perplexidade por um falta de adaptação às estruturas do direitointerno. Um deles é a regulação da argüição de descumprimento de preceitofundamental, com a Lei nº 9.882/99. Inspirada em institutos afins do direitoestrangeiro, como a queixa constitucional alemã, o recurso de amparo espanhole o amparo mexicano (NOBRE, 2004), a argüição de descumprimento de pre-ceito fundamental permanece indefinida e quase incompreensível. Primeiro, nãohá previsão segura quanto ao conceito de preceito fundamental, que o STF temdelimitado caso a caso (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 1 QO/RJ.Rel. Min. Néri Da Silveira. Tribunal Pleno. Brasília, 03 fev 2000). Depois, emfunção do veto do artigo 2º, II, da Lei nº 8.882/99, a aplicação do instituto setornou bastante restrita, considerando o caráter da subsidiariedade, abrangendopraticamente apenas o controle concentrado e abstrato pelo STF de leis e atosnormativos municipais e pré-constitucionais, previstos na lei ordinária que regulao procedimento, porém não no texto da Constituição Federal7.

7 O inciso II previa a legitimidade de “II - qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público”para ajuizar a argüição de descumprimento de preceito fundamental. O curioso é que o presidente daRepública, inexplicavelmente, deixou de vetar também o § 1º, que constituía norma subsidiária em relaçãoao inciso II (“§ 1º Na hipótese do inciso II, faculta-se ao interessado, mediante representação, solicitar apropositura de argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República,que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo”). Asrazões de veto foram as seguintes: “A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito eindividual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por“qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público”. A admissão de um acesso individual eirrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade emque se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisitoespecífico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazempresumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal,sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida nãohá de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípioimplícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normasinfraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato denormas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada dasquestões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de repre-sentação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em suafunção precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes dedecisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidadede entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – semprejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se oexcesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual aoSupremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure suarelevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do SupremoTribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público”.

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6. INDEFINIÇÃO FILOSÓFICA E INCOERÊNCIA DO SISTEMA

O formalismo e a importação assistemática de institutos do direito estran-geiro ensejaram, no direito brasileiro, situações não apenas de absoluta falta decoerência no sistema, especialmente das modalidades de controle entre si, mastambém de verdadeira contradição entre proposições, indo de encontro, pois,até mesmo a postulados da lógica formal. Essa característica parece mais evi-dente no âmbito do controle difuso e concreto, até por uma histórica aversãoacadêmica ao direito norte-americano, de perfil mais pragmático e menos raci-onal, cujo processo criativo é protagonizado mais propriamente pelos juízes napráxis. O direito norte-americano é menos concebido como ciência e mais comofenômeno social.

A primeira indefinição no controle difuso remonta à própria origem, naConstituição de 1891. O preconceito em relação ao precedente vinculante oualguma categoria ou instituto que se lhe assemelhasse terminou por criar ummodelo irracional de repetição de julgamentos sem absolutamente nenhuma pre-ocupação com a uniformidade. Se existem ressalvas à adoção de figura similar,mais adequado teria sido abandonar o controle difuso e concreto e incorporarapenas o concentrado e abstrato, isso após sua consolidação na Europa a partirda primeira metade do século XX.

Entretanto, a mesma indefinição, agora no controle concentrado e abstra-to, impediria que se resolvesse o problema. É que a resistência à previsão doefeito vinculante, que ainda hoje ocorre nos mais diversos foros de debates,conduziria ao mesmo círculo vicioso, porque o juiz poderia determinar, da mes-ma forma, a aplicação da lei declarada inconstitucional. O efeito vinculante é danatureza do controle concentrado e abstrato, pela circunstância da validade.Declarada inválida uma lei, na perspectiva de Kelsen, não haveria como se de-terminar posteriormente sua aplicação, pois, em sua teoria, os conceitos de inci-dência e validade terminam se confundindo. Assim, se o efeito vinculante é in-constitucional, também o é o próprio controle concentrado e abstrato.

Em função das particularidades respectivas, o argumento não se trans-porta diretamente ao controle difuso e concreto, mas serve como premissa paraafastar o fundamento de que a independência do juiz impediria o precedentevinculante. Desse modo, não existe nenhuma razão para entender inconstitucio-nal o instituto da súmula vinculante criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, mediante acréscimo da Constituição Federal, do artigo 103-A.

No controle difuso e concreto, como a fiscalização da constitucionalidadenão constitui propriamente o objeto da atividade jurisdicional, sendo efetuada

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por via de exceção, o efeito primordial é reconhecer incidentalmente a nulidadeda lei ou ato normativo contrário à constituição e afastar a respectiva incidênciano caso concreto, sem que se determine, em caráter abstrato, a respectiva inva-lidação e conseqüência retirada do sistema jurídico. O efeito se restringe aoconflito de interesses a ser solucionado. Todavia, embora o efeito vinculante nãolhe constitua traço essencial, pela circunstância de permanecer a lei ou ato nor-mativo formalmente no sistema jurídico, não existe óbice a que seja adotado.

De fato, como dito, se a independência do juiz consistisse em impedimen-to à adoção do efeito vinculante, também o seria em relação ao controle con-centrado e abstrato, que, de uma forma ou de outra, implica, tal como no difusoe concreto, o exercício material da jurisdição constitucional pelo STF, ou seja, oexercício da mesmíssima competência, apenas sob procedimentos distintos.Repita-se, o procedimento não pode ser a pedra de toque como fator de discri-minação, sob pena de, depois de tantas advertências, invocar-se mais uma vez odiscurso formalista.

É interessante ressaltar que, mesmo no processo civil, com a evolução dateoria da ação e sua crescente publicização, culminando com a incorporação dateoria abstrata na Constituição Federal de 1988, não mais se vincula a preten-são deduzida a um determinado procedimento específico (CINTRA, 1997), daía predominância cada vez maior no foro de ações sob o procedimento ordinárioou sob procedimentos especiais assim caracterizados por pressupostos alheiosà natureza da pretensão. Mesmo no direito inglês, cujo sistema de common lawse estruturou sob os writs e não sobre os direitos materiais por estes tutelados,posteriormente se verificou a necessidade de buscar instâncias alternativas paraequacionamento de conflitos insolvíveis por aquela, ganhando relevo, em virtudedessa exigência social, o sistema de equity law (DAVID, 2000).

Por outro lado, a indefinição ultimamente tem se tornado bastante visívelna própria legislação ordinária. O exemplo é um enunciado instituído pela Medi-da Provisória nº 2.180-35/2001, em vigor por força do artigo 2º da EmendaConstitucional nº 32/2001, que acrescentou ao Código de Processo Civil oartigo 741, parágrafo único, dispondo que se considera “também inexigível otítulo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais peloSupremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompa-tíveis com a Constituição Federal”.

O enunciado é bastante incisivo e literalmente estabelece um efeito vincu-lante indireto no âmbito do processo executivo, mediante o reconhecimento dainexigibilidade do título judicial e conseqüente nulidade da execução, e o interes-

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sante é que não há restrição quanto à modalidade de controle, caracterizando oinstituto como bastante assemelhado ao stare decisis. Desse modo, por umlado, existe a previsão legal de um controle indireto na execução, mas de outro,ao adotar a súmula vinculante, instituiu-se um requisito extremamente rígido parasua determinação no caso concreto. O sistema não se define em suas diretrizes.

Não há sentido, sob pena de se recair novamente no formalismo, em sesubmeter a aplicação do preceito à dependência do procedimento em que atuaro STF no exercício da jurisdição constitucional, concentrado-abstrato ou difu-so-concreto. Esse é um importante instituto, tal qual a súmula vinculante, paraviabilizar a comunicação entre as duas modalidades de controle, de modo que amanifestação do STF quanto a questão constitucional deve ser preservada emambos os casos, por segurança jurídica e isonomia.

Mais um exemplo dessa indefinição de diretrizes reside no entendimentode que a súmula nº 343 do STF8 não se aplica quando a matéria de fundo tivercunho constitucional, isto é, quando decorrer do exercício da jurisdição consti-tucional. Assim, a jurisprudência do STF relativizou a hipótese de incidênciamais restrita da súmula, para dela excetuar a questão constitucional, de modo aampliar a abrangência do controle. O fundamento suscitado pelo STF é o deque “a manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da inter-pretação constitucional revela-se afrontosa à força normativa da Constituição eao princípio da máxima efetividade da norma constitucional” (BRASIL. Supre-mo Tribunal Federal. RE 328812 AgR/AM. Segunda Turma. Rel. Min. GilnarMendes. Brasília, 10 dez 2002). Utiliza-se, no precedente, um argumento mera-mente processual, mas, substancialmente, trata-se também de uma espécie deefeito vinculante indireto numa demanda com trânsito em julgado e sem enqua-dramento direto na hipótese de incidência da rescisória, porque, evidentemente,o STF somente julgará procedente o pedido se a violação constitucional efetiva-mente existir, conforme seu próprio posicionamento.

Por fim, mais um enorme problema de falta de articulação e incoerênciaentre as modalidades decorria de um posicionamento do STF segundo o qualsomente os legitimados para a ação direta, enumerados no artigo 103 da Cons-tituição Federal, poderiam ajuizar reclamação constitucional para fazer valerdecisão proferida em controle concentrado e abstrato (BRASIL. Supremo Tri-bunal Federal. Rcl 518 QO/BA. Tribunal Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. Bra-

8 Súmula 343. Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindendase tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

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sília 14 ago 1997). O problema é que os beneficiários da decisão, pela eficáciageral, normalmente eram terceiros não legitimados para o controle por via deação. Assim, a decisão do STF muitas vezes resultaria sem efetividade e obriga-ria o interessado a mover ação individual para discutir a mesma questão, com aprévia tramitação em todas as instâncias inferiores. Felizmente, o STF, posteri-ormente, modificou o posicionamento (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl2143 AgR/SP. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso De Mello. Brasília, 12 mar 2003),hoje entendendo que o interessado referido na Lei nº 8.038/90 pode ser qual-quer particular lesado pelo descumprimento.

São muitos os exemplos de indefinição filosófica e incoerência do siste-ma, cujo estudo exigiria um trabalho bem mais aprofundado, decorrentes doformalismo e do simples preconceito – cientificamente injustificado e logicamen-te inconcebível – dos juristas brasileiros em relação a algumas estruturas e inter-pretações. É verdade que os exemplos expostos mostram que a indefiniçãodecorre da relação dialética entre avanço e resistência, gerando, no plano legis-lativo e jurisdicional, posturas e diretrizes que se chocam entre si, o que constituiindício de que os paradigmas conservadores podem estar se rompendo.

7. CONCLUSÃO

Sintetizando, enfim, as provocações suscitadas na introdução, é possívelafirmar, sob a fundamentação desenvolvida neste trabalho, que a instituição deum controle misto decorre de um processo histórico de construção desarticula-da de duas modalidades paralelas de controle de constitucionalidade. Introduzi-da inicialmente a modalidade difusa e concreta, esta, por não se ter atentadoquanto à necessidade de figuras afins ao stare decisis norte-americano, termi-nou insuficiente diante da circunstância da repetição de matérias constitucionaisno foro, a receberem muitas vezes tratamento desigual, em prejuízo da seguran-ça jurídica e da isonomia.

No entanto, em vez de procurar aprimorar o controle difuso e concreto, odireito positivo passou a incorporar, de forma assistemática, figuras em voga nodireito continenal europeu, tão apreciado pelos cientistas do direito no Brasil.Findou-se instituindo um controle misto de constitucionalidade, com categoriase institutos tanto da modalidade difusa e concreta quanto da concentrada e abs-trata. Portanto, o controle misto não surgiu como uma estrutura pensada racio-nalmente. Surgiu da acumulação de experiências, às quais, aos pouco, se temprocurado imprimir um perfil mais sistematizado, mais racional.

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Nenhuma das modalidades prevalece diante da outra. Ambas coexistemno sistema, cada qual no seu espaço material de incidência. O grande problemaé que, para que os sistemas convivam sem prejuízo da efetividade, é absoluta-mente necessário que se estabeleça sua intercomunicação, o que viabilizaria asimplificação do sistema, com respostas mais efetivas e menos onerosas parasoluções dos tantos reclamos da sociedade brasileira.

A crescente adoção do efeito vinculante nas decisões proferidas pelo STF(inicialmente no controle concentrado e abstrato, mas, aos poucos, também nodifuso e concreto) é um bom exemplo de racionalização, pois constitui impor-tante instrumento para coibir a multiplicação de demandas repetitivas, nas quaisa cognição é praticamente nula, porque já incessantemente apreciadas pela ju-risprudência, abarrotando o serviço judiciário, que se torna ineficiente econômi-ca e socialmente.

O estudo demonstrou dialeticamente como se encontra esse processoevolutivo, a partir da tensão entre avanços pontuais e a resistência muito forte desetores conservadores de várias esferas. Essa tensão tende a ser importantepara suscitar o debate e definir os limites de interpenetração entre as duas mo-dalidades. Lamentavelmente, esse processo termina sendo mais lento em funçãoda deficiência na formação, mas, gradualmente, os obstáculos vêm sendo supe-rados.

Demonstrou-se, assim, que não é necessário romper com o modelo vi-gente. Basta que se o aperfeiçoe. O rompimento ensejaria novamente instabili-dade. O modelo deve ser endogenamente eficiente e exogenamente seguro,operando da maneira menos onerosa e focado na excelência do serviço a serprestado à população. Dessa forma, o sistema estará finalmente apto a recupe-rar a legitimidade social e política. O aprimoramento da sistemática de vincula-ção de precedentes do STF, reduzindo o tempo de tramitação de processos econferindo segurança à resposta estatal, parece ser um bom caminho na buscapor um controle (misto) de constitucionalidade mais legítimo.

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UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO CULTURALA afirmação universal dos direitos humanos no âmbito do

Direito Constitucional Internacional*

Frederico Wildson da Silva DantasJuiz Federal - 7ª Vara / AL

Efetivamente, não se pode visualizar a humanidade comosujeito de direito a partir da ótica do Estado; o que se impõe éreconhecer os limites do Estado da ótica da humanidade. E aojurista encontra-se reservado um papel de crucial importância naconstrução deste novo “jus gentium” do século XXI, o direito uni-versal da humanidade. (Antônio Augusto Cançado Trindade, “Me-morial por um novo Jus Gentium, o Direito Internacional da Humani-dade”. A Humanização do Direito Internacional)

1. INTRODUÇÃO: PROPOSTA DE TRABALHO, OBJETIVOS E METODOLOGIA

O objeto deste estudo é o problema do universalismo dos direitos huma-nos no âmbito do Direito Internacional, em contraste com o relativismo cultural.A pesquisa foi inspirada pelas lições de A. A. Cançado TRINDADE na obra“Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Além disso, merecemmenção especial, dentre outras fontes bibliográficas, o trabalho de André deCarvalho RAMOS “Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacio-nal” e a tese de Flávia PIOVESAN “Direitos Humanos e o Direito Constitucio-nal Internacional”.

Tomando como ponto de partida a fundamentação ético-política dos di-reitos do homem, e sua afirmação histórica nas primeiras declarações de direi-tos, projetou-se uma pesquisa que analisasse o universalismo no âmbito do Di-

* Monografia apresentada como requisito para conclusão da disciplina Tratados Internacionais e Consti-tucionalização, do Curso de Doutorado da UFPE, ministrada pela Professora Dra. Margarida Cantarelli.

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reito Internacional dos Direitos Humanos. Durante a elaboração do trabalhochamou atenção a corrente relativista que tece várias críticas ao caráter univer-sal dos direitos humanos. Reconhecida a importância da discussão, optou-sepor dedicar um item específico para a sistematização dos obstáculos que sepõem à tese do universalismo.

A problemática central do trabalho está na compreensão dos fundamen-tos da universalidade dos direitos humanos. São objetivos: delinear a concep-ção universal dos direitos humanos e suas características, acompanhar o pro-cesso histórico que culminou na sua consolidação no plano do Direito Internaci-onal, e analisar a dialética entre a corrente do relativismo jurídico e a defesa douniversalismo dos direitos humanos na atualidade.

O estudo das várias formulações teóricas a respeito do universalismo dosdireitos humanos adotou critério histórico, seguindo das primeiras concepçõesacerca do tema até os trabalhos mais modernos com as implicações que elessuscitam na atualidade.

O primeiro item trata da elaboração do conceito universal dos direitoshumanos no plano teórico e no processo histórico de sua afirmação, por inter-médio das primeiras declarações de direitos. Em seguida, analisa-se a consoli-dação do universalismo dos direitos humanos no plano internacional, inicialmen-te a partir da Declaração dos Direitos do Homem (1948), passando pela Con-ferência de Teerã (1968) e por fim com a Conferência de Viena (1993).

A segunda parte do trabalho suscita os problemas e obstáculos que sãocolocados em sentido contrário à universalidade dos direitos humanos, buscan-do-se fazer um inventário dessas críticas principalmente através das obras deCançado TRINDADE e de André RAMOS. Conclui-se com o exame dos ar-gumentos lançados em defesa do universalismo.

Todas as citações em língua estrangeira foram livremente traduzidas parao português, com o objetivo de tornar a leitura mais fluída e agradável, mas semperder o sentido original do texto. Não se utilizou notas de rodapé optando-sepelo estilo de citação autor-data.

2. O UNIVERSALISMO NA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICO-POLÍTICA DOS

DIREITOS HUMANOS E EM SUA AFIRMAÇÃO HISTÓRICA

O caráter universal dos direitos humanos é elemento constante de suafundamentação ético-política e se encontra bem delineado no processo de suaafirmação histórica, nomeadamente nas primeiras declarações de direitos, im-

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portantes documentos que marcaram a formação do pensamento constitucional.Sem embargo, o problema do reconhecimento dos direitos humanos surgiu noinício da era moderna, com a divulgação das doutrinas jusnaturalistas e a evolu-ção das Declarações dos Direitos do Homem que acompanharam o constituci-onalismo clássico ou liberal (BOBBIO, 1992, p. 49).

A origem do termo “direitos fundamentais” vem de droits fondamentauxque remonta ao movimento político e cultural que resultou na Revolução Fran-cesa e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A expressão,posteriormente, alcançou relevo na doutrina para designar o estatuto de defesados indivíduos contra o Estado que está no fundamento da ordem jurídica (SO-ARES, 2000, p. 28).

Sabe-se que a doutrina dos direitos humanos nasceu da filosofia jusnatu-ralista, a qual procura justificar a existência de direitos pertencentes ao homemenquanto tal, idependentemente do Estado. O pensamento das escolas jusnatu-ralistas ou jusracionalistas admite a existência de normas de validade universalque antecedem e condicionam a institucionalização do poder político, na qualdireitos e deveres inerentes ao ser humano podem ser reconhecidos por inter-médio de um processo racional de dedução de leis naturais ou práticas (MÖL-LER, 2006, 109).

A corrente do jusnaturalismo tomista ou religiosa encontra um de seusprincipais ícones em São Tomás de Aquino, para quem a lex humana deveobedecer a lex naturalis, que é fruto da razão divina, mas pode ser percebidapelos homens. Já o jusnaturalismo de cunho racionalista tem como um de seusfundadores Hugo Grotius, o qual defendia a existência de um conjunto de nor-mas ideais deduzidas da natureza a partir da razão humana. Além de ser um dosfundadores do Direito Internacional Grotius, já no século XVI, defendia a exis-tência de uma lei natural, imutável e eterna, revelada pela razão do homem esuperior à lei positiva.

A relação entre o universalismo dos direitos humanos e sua fundamenta-ção ético-política se evidencia na forte influência do Racionalismo e do Iluminis-mo no processo histórico de formação da doutrina dos direitos do homem; oRacionalismo de Descartes e de Galileu serviu de inspiração para o Iluminismo,cuja tendência universalizante se apresenta como nota característica (SALDA-NHA, 2000, p. 41). A tendência universalizante pode ser identificada tambémno pensamento racionalista do Direito Natural (jusracionalismo) que admite aexistência de normas jurídicas de validade universal, cujo conhecimento obtém-se através da razão.

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A ideologia do Iluminismo traz subjacente a idéia de que seria possívelrealizar um Direito unitário a ser presidido pela razão, uma espécie de ciência dolegislador que seria apta a estabelecer as leis universais e imutáveis que deveri-am regular a conduta humana. A propósito disso é muito significativa disposiçãoconstante do artigo I do projeto preliminar para o Código Civil francês, o qualfoi posteriormente suprimido na redação definitiva, estatuindo que “existe umdireito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas, não é outro senão arazão natural, visto esta governar todos os homens”.

É bem verdade que hoje em dia a fundamentação jusnaturalista de cunhoracionalista que inspirou a elaboração da doutrina dos direitos humanos não émais aceita de forma unívoca como meio de legitimar esses direitos. Com oadvento do positivismo jurídico passou-se a identificar o fundamento dos direi-tos humanos na lei positiva, não mais em princípios de Direito Natural, ao passoque para alguns autores sequer seria possível identificar uma fundamentaçãoabsoluta para os direitos humanos. A discussão acerca da fundamentação dosdireitos humanos repercute em seu âmbito de eficácia, na medida em que podeimplicar a negação do universalismo que lhe é característico.

Entre aqueles que negam a existência de um fundamento absoluto para osdireitos humanos está Norberto BOBBIO, o qual pondera que o problema fun-damental em relação aos direitos do homem não seria tanto o de justificá-los,mas o de protegê-los, mesmo porque a fundamentação dos direitos humanosseria impossível. BOBBIO argumenta que há divergências na definição do queseria o conjunto de direitos humanos; que esses direitos constituem uma classevariável, sendo impossível fundamentá-los de modo unívoco, pois cada contex-to histórico possui sua própria fundamentação; e, por fim, que os direitos huma-nos são uma categoria heterogênea, contendo pretensões muitas vezes confli-tantes, de maneira que a busca de um fundamento absoluto para os direitos dohomem pode representar um obstáculo à introdução de novos direitos, total ouparcialmente incompatíveis com aqueles já estabelecidos (BOBBIO, 1992, p.15-24).

De outro lado, o positivismo jurídico sustenta a tese de que não existe umoutro Direito senão o Direito positivo estatuído pelo Estado através da lei, noseu sentido formal, contestando a idéia de um Direito natural de caráter univer-sal. O fundamento dos direitos humanos, portanto, estaria em seu reconheci-mento formal pelo Direito positivo, cujo pressuposto de validade vem de suaconformidade com as regras estabelecidas na Constituição. A vinculação dofundamento dos direitos humanos à ordem política estatal conduz à impossibili-

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dade de se lhes atribuir caráter universal, na medida em que não se trataria dedireitos inerentes ao ser humano, mas sim de prerrogativas atribuídas pela or-dem jurídica a indivíduos de determinada nacionalidade (COMPARATO, 2005,p. 58-59).

Uma das características mais importantes na doutrina positivista é o cha-mado formalismo jurídico, que importa numa separação conceitual entre o Di-reito e a Moral. O princípio é o de que a “lei é a lei”, significando que toda lei éválida apenas por ser lei e, consequentemente, deve ser obedecida; quer-secom isto dizer que a validade da lei prescinde de qualquer fundamento exteriorao próprio sistema jurídico, fazendo-se uma identificação entre o legal e o jurídi-co. Essa qualidade do positivismo jurídico é muito bem analisada por FranciscoLAPORTA, segundo o qual, para o positivismo, a existência de um sistemajurídico se produz por alguma prática social que define os critérios de juridicida-de, de modo que as conexões entre a ordem jurídica e a ordem moral, emborasejam históricas e empíricas, não são necessárias do ponto de vista lógico (LA-PORTA, 1995, p. 30).

Atualmente tem-se observado uma tendência de superação dessa con-cepção formalista do Direito, principalmente em face da positivação de princípi-os e do fortalecimento do constitucionalismo. O argumento fundamental dessaconcepção é de que os princípios constitucionais são dotados de normatividadeo que leva à incorporação de valores à ordem jurídica, com dimensão superiorde norma constitucional. Essa mudança se pode imputar em grande monta àsidéias de Ronald DWORKIN, para quem não existe uma separação rígida entreo Direito e a Moral. Essa mudança de concepção dirige-se à superação dadicotomia entre jusnaturalismo e positivismo, com o reconhecimento de que oDireito inclui tanto princípios quanto regras, dando origem a uma compreensãodo Direito por princípios.

O sentido dessa mudança pode ser resultado de uma busca de legitimida-de. Nesse quadrar, Francisco LAPORTA afirma que, ao longo de um processohistórico, o sistema jurídico vem numa crescente incorporação de princípiosmorais para justificar seu conteúdo, aplicando-se um esquema de controle dasnormas jurídicas mediante critérios éticos, um controle que se estende por todoo ordenamento, numa tarefa complexa e diversificada que se denomina de mo-ralização do Direito (LAPORTA, 1995, p. 64).

Ronald DWORKIN defende o conceito de direitos morais, os quais seri-am originados diretamente de valores contidos em princípios, independente-mente da existência de prévias regras postas. Assim, os direitos do homem não

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fundamentam sua validade em leis positivas, mas em valores éticos incorpora-dos à própria civilização humana. A fundamentação dos direitos humanos comodireitos morais corresponde à tentativa de conciliar o fundamento ético dos di-reitos humanos e sua concepção como direitos positivados, no sentido de que“há uma fundamentação ética dos direitos humanos, que consiste no reconheci-mento de condições imprescindíveis para uma vida digna que se entroniza comoprincípio vetor do ordenamento jurídico” (RAMOS, 2005, p. 46).

Essa tendência de reaproximação entre o Direito e a Moral se revelaprincipalmente na doutrina que prega a internacionalização dos direitos huma-nos, movimento que surgiu após a Segunda Guerra, nomeadamente a partir daDeclaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, comoreação aos abusos cometidos pela Alemanha nazista antes e durante a GuerraMundial. A traumática experiência histórica do exemplo nazista demonstrou paraalém de qualquer discussão o quanto é insuficiente a fundamentação dos direitoshumanos com base tão-somente no Direito positivo, sobrelevando a importân-cia de encontrar fundamentos para a vigência dos direitos humanos além daorganização estatal. Leia-se, a propósito disso, a opinião de Fábio KonderCOMPARATO:

“... é irrecusável encontrar um fundamento para a vigência dos direitoshumanos além da organização estatal. Esse fundamento, em última instân-cia, só pode ser a consciência ética coletiva, a convicção, longa e larga-mente estabelecida na comunidade, de que a dignidade da condição hu-mana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância,ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentosnormativos internacionais.” (COMPARATO, 2005, p. 59).

A busca de uma fundamentação ético-política dos direitos humanos paraalém da lei positiva contribui para renovar sua característica universalizante. Aidéia é a de possibilitar a justificação de direitos humanos dotados de validadeuniversal “fundada em uma base intersubjetiva e intercultural organizada sob aforma de sociedade mundial” (MÖLLER, 2006, p. 151 ss.). Releva notar que abusca de um paradigma de validade universal para os direitos humanos temfortes repercussões no campo do constitucionalismo, designadamente nos tradi-cionais conceitos de cidadania e soberania.

Nesse toar, Valério MAZZUOLI defende que a prevalência dos direitoshumanos e do valor democrático constitui a tônica do novo paradigma global,

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enfatizando-se os direitos dos indivíduos e os direitos dos Povos como umadimensão da Soberania universal, o que tem provocado alterações profundasnas idéias de Soberania e Cidadania vigentes no mundo ocidental desde a Re-volução Francesa (MAZZUOLI, 2005, p. 332).

A filosofia jusnaturalista que deu origem à doutrina dos direitos do homemtem presença marcante nas Declarações de Direitos das revoluções liberais,estas declarações representam a conclusão da primeira fase da história dos di-reitos humanos e o primeiro passo rumo à sua afirmação histórica. As declara-ções de direitos “emergiram da filosofia liberal e do movimento espiritual doséculo XVII, consistindo em princípios axiomáticos necessários à fundamenta-ção de organização política justa e racional, sendo recepcionados e proclama-dos solenemente pelos constituintes dos primeiros textos constitucionais libe-rais” (SOARES, 2000, p. 32).

As declarações de direitos representam marcos do processo histórico deformação da teoria constitucional, originado com o movimento e a doutrina libe-ral. As declarações inglesas, dos séculos XVI e XVII, são antecedentes históri-cos da idéia de Constituição como instrumento de organização política do Esta-do. As idéias de um sistema de poderes divididos e em equilíbrio em que seatribui a titularidade do poder constituinte e da soberania nacional ao povo têmorigem no chamado movimento constitucional, consolidado pelas revoluçõesamericana e francesa, processo histórico analisado por Nelson SALDANHAem sua obra Formação da Teoria Constitucional. Dentre os vários documen-tos de relevância no processo de formação do pensamento constitucional inglêsdestacam-se a Magna Carta (1215) e o Bill of Rights (1689).

A Magna Carta foi uma declaração solene do rei da Inglaterra, conheci-do como João Sem Terra, assinada em 51 de junho de 1215, perante o altoclero e os barões do reino. Existe um consenso de que esse documento constituium pacto entre os barões feudais e o monarca pelo qual se reconhecia certosprivilégios especiais aqueles. Sua importância decorre também do fato de que aMagna Carta deixa implícito pela primeira vez na história que o rei está vincula-do pelas leis que edita. A cláusula 39 normalmente é apontada como a partemais importante da Carta e serve de precursora do princípio do devido proces-so legal do constitucionalismo americano, incorporado pela Constituição Fede-ral brasileira de 1988. Segundo dispõe: “nenhum homem livre será detido oupreso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, preju-dicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízolegal de seus pares ou segundo a lei da terra”.

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Por sua vez, o Bill of Rights resultou um movimento revolucionário queresultou na abdicação do monarca Jaime II. O rei foi sucedido pelo PríncipeGuilherme de Orange e sua mulher, Maria de Stuart, a convite de um grupo denobres de dois partidos políticos. A fim de serem consagrados monarcas, am-bos aceitaram o Bill of Rights, umaDeclaração de Direitos votada pelo Parla-mento, que a partir de então tornou-se uma das Leis Fundamentais do reino. Odocumento tem a importância de consolidar a monarquia constitucional inglesa,porque institucionalizou a separação de poderes no Estado. Embora não sejauma declaração de direitos humanos, criou uma estrutura de organização doEstado que tem a finalidade de proteger os direitos fundamentais. O seu conteú-do essencial está na consolidação da monarquia constitucional e da separaçãode poderes, com o reconhecimento do Parlamento como um órgão encarrega-do de defender os súditos contra o soberano (cf. SÁNCHEZ, 2004, p. 175).

As declarações inglesas estão nas origens das declarações de direitosnorte-americanas, que sofreram grande influência do Bill of Rights inglês e dopensamento filosófico de Locke, Montesquieu e Rousseau. Nos Estados Uni-dos da América encontramos alguns dos documentos históricos mais importan-tes no processo de positivação dos direitos humanos como a Declaração deIndependência (1776) e a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia. Osamericanos foram além das declarações inglesas ao transformarem os direitosnaturais em direitos positivos, isso por que através das Emendas Constitucionaisde 1791 os direitos humanos foram incorporados ao ordenamento jurídico cons-titucional, com prevalência sobre as leis. Daí se dizer que a concepção formalmoderna de Constituição é uma criação do constitucionalismo norte-americano.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos diz respeito às anti-gas treze colônias britânicas, reunidas em 1776 sob a forma de confederação econstituídas em Estado Federal em 1787. A importância da Declaração de In-dependência vem do fato de inaugurou a institucionalização dos princípios de-mocráticos na história política moderna. Realmente, trata-se do primeiro docu-mento político que reconhece a existência de direitos humanos inerentes a todosindependentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posiçãosocial (cf. COMPARATO, 2005, p. 103).

A Declaração de Independência tem uma finalidade legitimadora que tomapor base idéias e fundamentos jusnaturalistas, invocando as leis da natureza eDeus como princípios de direito natural. Essa assertiva pode ser verificada doque consta de seu preâmbulo: “Consideramos estas verdades como evidentesde per si, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Cria-

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dor de certos direitos inalienáveis; que, entre estes, estão a vida, a liberdade e abusca da felicidade”. Como se vê, essas notas de evidência e inalienabilidadesão próprias de um Direito Natural jusracionalista, e estão relacionadas com aideologia de um direito natural superior à lei positiva e que lhe serve de funda-mento de validade.

Juntamente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789, as declarações ame-ricanas representam a emancipação do indivíduo através da afirmação de suaautonomia, doutrina que vinha se afirmando na consciência européia desde finsda Idade Média. Há, no entanto, traços característicos que distinguem as decla-rações americanas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão daRevolução Francesa. Os americanos estavam voltados para o estabelecimentode sua independência e a elaboração de seu regime político, ao passo em que osrevolucionários franceses acreditavam ter a função de anunciar uma nova era deliberdade a outros povos, daí o estilo abstrato e universalizante da Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão. A idéia é a de que os direitos humanossão universais, eternos e invariáveis. Fábio Konder COMPARATO mencionaque em razão desse espírito de universalismo militante o espírito da RevoluçãoFrancesa foi difundido por todo o mundo desencadeando a supressão das desi-gualdades entre indivíduos e grupos sociais (COMPARATO, 2005, p. 130-132).

As primeiras declarações de direitos foram marcos importantes do pro-cesso de afirmação histórica dos direitos do homem e apresentam forte caracte-rística universalizante, especialmente a Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão, já que os revolucionários franceses assumiram a tarefa de divulgaremo ideário liberal com um fervor quase religioso. É importante notar que o pensa-mento jurídico contemporâneo acerca dos direitos humanos aproxima-se e mui-to de suas origens nas declarações de direitos do constitucionalismo clássico. Abusca por um Direito Natural fruto da razão humana tem a mesma base ideoló-gica da concepção, hoje difundida mundialmente, de que esses direitos são pro-venientes de imperativos éticos superiores vinculados a uma consciência jurídicacoletiva, retirando daí sua qualificação de princípios transcendentes de Direitosupranacional, já que transcendem as fronteiras nacionais e assumem a caracte-rística da universalidade (MIRANDA, 2002, p. 107).

A esse respeito, CANOTILHO observa que o Poder Constituinte dosEstados e, consequentemente, das respectivas Constituições nacionais, está hojecada vez mais vinculado a princípios e regras de Direito Internacional; como se

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o Direito Internacional fosse transformado em parâmetro de validade das pró-prias Constituições nacionais, cujas normas passam a ser consideradas nulas sevioladoras das normas do jus cogens internacional, destacando-se, ainda a ten-dencial elevação da dignidade da pessoa humana como pressuposto ineliminá-vel de todos os constitucionalismos (CANOTILHO, 2003, p. 826 ss.). Nomesmo sentido Francisco Javier Quel LÓPEZ observa que os Estados possuemuma obrigação geral de proteção e respeito de determinados direitos fundamen-tais, especialmente a proteção contra a prática da escravidão e a discriminaçãoracional, decorrente de normas imperativas do Direito Internacional geral con-temporâneo: “... resulta claro que existem normas imperativas no setor da prote-ção dos direitos humanos cuja violação pode por em questão os princípios bá-sicos de coexistência entre Estados” (In ROMANI, 2003, p. 95).

3. O UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS NO

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

O universalismo dos direitos humanos possui vários significados, impli-cando que seus titulares são todos os seres humanos, sem distinção de qualquerordem; que esses direitos são atemporais, porque os homens possuem direitoshumanos em qualquer época e que os direitos humanos permeiam todas as cul-turas humanas, em qualquer parte o globo. O universalismo é uma tese que gozade acatamento generalizado no âmbito do Direito Internacional dos DireitosHumanos, fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos quesurgiu a partir do pós-guerra, nomeadamente a partir da Declaração Universaldos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, como parte da reação aoscrimes cometidos pelo nacional-socialismo antes e durante a Segunda GuerraMundial (PÉREZ LUÑO, 1996, p. 97 s.). Juntamente com a regionalização e aglobalização econômica, o “cosmopolitanismo ético”, decorrente do desenvol-vimento de um sistema universal de direitos humanos, é um dos fatores que maisinfluencia o realinhamento e rearticulação do constitucionalismo contemporâneo(SUNDFELD, 1999, p. 29).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é o ponto de par-tida da moderna sistemática de proteção internacional dos direitos do homem,mas já encontra precedentes históricos no Direito Humanitário, na Liga dasNações e na Organização Internacional do Trabalho. O Direito Humanitárioconstitui o conteúdo de direitos humanos no Direito da guerra, estabelecido coma finalidade de limitar a atuação do Estado na observância da proteção humani-

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tária, designadamente para proteger os militares postos fora de combate e aspopulações civis. A Convenção da Liga das Nações de 1920 reforçou a con-cepção do Direito Humanitário e da proteção dos direitos do homem ao preversanções de caráter econômico e até mesmo militar a serem impostas pela comu-nidade internacional nas hipóteses de comprovada violação desses direitos, abrin-do a discussão pertinente à necessidade de relativizar a soberania estatal. Porsua vez, a Organização Internacional do Trabalho contribuiu para a consolida-ção do Direito Internacional dos Direitos Humanos em sua atuação dirigida aoestabelecimento de padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar (cf. PIOVESAN, 2006, p. 109 ss.).

A despeito da importância desses antecedentes, o fato é que somenteapós a Segunda Guerra Mundial se chegou a um amplo consenso no sentido deque a comunidade internacional deveria zelar pela proteção aos direitos do ho-mem, de maneira que essa questão não mais poderia ser tida como uma compe-tência exclusiva dos Estados, mas devia ser assumida por todas as nações. Se-gundo Karl-Peter SOMMERMANN, embora essa afirmação possa parecersurpreendente em face das declarações de direitos do homem americanas efrancesas, até o início do Século XX a doutrina internacionalista “partia do pres-suposto de que só podiam ser objeto do Direito Internacional os direitos e de-veres dos Estados, e que, portanto, os indivíduos, que carecem de personalida-de jurídica internacional, só podiam ser protegidos de maneira indireta ou refle-xa por normas internacionais” (PÉREZ LUÑO, 1996, p. 98). Assim, a Declara-ção Universal dos Direitos Humanos é o primeiro texto jurídico internacionalque estabelece um catálogo de direitos humanos destinado a valer universal-mente.

A Declaração Universal, entretanto, tendo sido aprovada sob a forma deresolução pela Assembléia Geral das Nações Unidas, não apresenta a normati-vidade própria dos tratados ou acordos internacionais, logo, o propósito daDeclaração é apenas o de promover o reconhecimento universal dos direitoshumanos e das liberdades fundamentais. Sucede que muito embora não assumaa forma de tratado internacional a Declaração Universal de 1948 se consolidouna prática internacional como uma espécie de modelo com inegável valor jurídi-co como “interpretação legítima das normas da Carta (das Nações Unidas)relativas à obrigação jurídica dos Estados de promover a observância dos direi-tos humanos”; assim, a despeito do debate doutrinário acerca de sua força jurí-dica “a Declaração foi se integrando no Direito das Nações Unidas como parteda estrutura constitucional da comunidade internacional” (cf. SALCEDO, 2004,

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p. 70). A normatividade da Declaração Universal dos Direitos Humanos ganharelevo em virtude de se tratar de um documento jurídico internacional extrema-mente relevante e que tem sido reconhecido como Direito Internacional costu-meiro.

O universalismo dos direitos humanos proclamado na Declaração Uni-versal dos Direitos do Homem de 1948 foi objeto de debates na I ConferênciaMundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Teerã, de 22 de abril a13 de maio de 1968, que avaliou as duas primeiras décadas de experiência daproteção internacional dos direitos humanos na era das Nações Unidas. Segun-do A. A. Cançado TRINDADE, a grande contribuição da Conferência de Tee-rã consistiu no tratamento e reavaliação globais da matéria, sendo que “algumasresoluções adotadas referem-se à promoção da observância e gozo universaisdos direitos humanos, tomam os direitos civis e políticos e econômicos e sociaise culturais em seu conjunto, e avançam assim um enfoque essencialmente globa-lista da matéria” (TRINDADE, 1993, p. 1).

A Proclamação de Teerã sobre Direitos Humanos, adotada na Conferên-cia, é considerada um marco na evolução da sistemática de proteção internaci-onal dos direitos humanos, por abrir caminho para a consolidação da tese dainterrelação ou indivisibilidade dos direitos humanos, merecendo destaque o seuparágrafo 13: “Uma vez que os direitos humanos e as liberdades fundamentaissão indivisíveis, a realização plena dos direitos civis e políticos sem o gozo dosdireitos econômicos, sociais e culturais, é impossível”. Foi muito importante nes-se sentido a atuação de ex-colônias emancipadas que suscitaram discussõesrelativas à problemática da miséria, das doenças endêmicas e da discriminaçãoracial.

A Conferência de Teerã (1968) foi sucedida pela II Conferência Mundialde Direitos Humanos de Viena (1993), que teve como temáticas principais apobreza, a democracia e os instrumentos legais e jurídicos de efetivação dosdireitos humanos. Nos trabalhos preparatórios da Conferência de Viena a Co-missão de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou que o ComitêPreparatório mantivesse em mente o tema da interrelação entre direitos huma-nos, democracia e desenvolvimento, assim como a igual importância e indivisibi-lidade de todas as categorias de direitos humanos, tendo sido assinalado peloSecretário-Geral da Conferência Mundial de Direitos Humanos a importânciada formulação de programas concretos no campo da educação em direitos hu-manos, insistindo na “ratificação universal dos tratados de direitos humanos, eexortando os Estados a que lograssem um maior grau de cooperação internaci-onal em favor dos direitos humanos” (cf. TRINDADE, 1993, p. 7).

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A Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos ocorreu num mo-mento histórico bastante significativo uma vez que a guerra fria tinha terminado ea Alemanha havia sido reunificada, de maneira que as circunstâncias eram favo-ráveis à construção de um amplo consenso a respeito dos direitos humanos.Durante a Conferência de Viena os esforços se concentraram no fortalecimentodas instituições nacionais para a vigência dos direitos humanos na mobilizaçãode todos os setores das Nações Unidas em prol da promoção dos direitoshumanos e o resultado foi a elaboração de uma Declaração e um Programa deAção para a promoção e proteção dos direitos humanos.

A importância da Conferência de Viena de 1993 decorre principalmenteda consolidação definitiva da noção de indivisibilidade dos direitos humanos,cujos preceitos devem se aplicar tanto aos direitos civis e políticos quanto aosdireitos econômicos, sociais e culturais, enfatizando também direitos de solidari-edade, como a paz, o direito ao desenvolvimento e o a proteção ao meio-ambi-ente. Já quanto ao tema do universalismo dos direitos humanos houve muitacontrovérsia, tendo sido ressaltada a questão da diversidade cultural que torna-ria os princípios de direitos humanos não aplicáveis ou relativos, segundo osdiferentes padrões culturais e religiosos. Apesar de haver clara resistência à no-ção de universalidade dos direitos humanos, o primeiro artigo da Declaraçãoestabeleceu que “a natureza universal desses direitos e liberdades não admitedúvidas”. Já no seu parágrafo 5º reconheceu-se a universalidade como caracte-rística marcante do regime jurídico internacional dos direitos humanos, afirman-do que “todos os direitos humanos são universais”.

Essas resistências não representaram nenhuma surpresa uma vez que, se-gundo A. A. Cançado TRINDADE, já durante os trabalhos preparatórios daConferência houve sinais de que a noção do universalismo dos direitos do ho-mem seria objeto de polêmicas. O jurista, que participou de todo o processopreparatório da Conferência Mundial, inclusive da Reunião Regional Preparató-ria da América Latina e do Caribe (San José de Costa Rica, janeiro de 1993)como Consultor do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, observa quea manifestação mais notória nesse sentido veio “de alguns círculos de paísesasiáticos e de Estados membros da Organização da Conferência Islâmica, queresistentemente identificam no movimento internacional dos direitos humanosum suposto produto do ‘pensamento ocidental’ que não tem levado em conta aschamadas ‘particularidades regionais’, razão pela qual ainda não há Conven-ções regionais de direitos humanos em seus espaços geográficos respectivos”(TRINDADE, 1993, p. 28).

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Posteriormente, ao tratar do tema no seu Tratado de Direito Internaci-onal dos Direitos Humanos, o autor reconheceu que o tema da universalidadedos direitos humanos e dos “particularismos culturais” tem sido objeto de deba-tes prolongados e inconclusos nos foros internacionais tanto acadêmicos quantopolíticos. Segundo afirma:

“A suposta contraposição dos “particularismos” culturais à universalidadedos direitos humanos foi uma das questões centrais dos debates da IIConferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), seguidos dosda Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cai-ro, 1994). A questão foi retomada com eloqüência na IV ConferênciaMundial sobre a Mulher (Beijing, 1995). No plano regional interamerica-no, os travaux préparatoires da Convenção Interamericana para Pre-venir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Be-lém do Pará de 1994) reconheceram que a violência de gênero existe emgrande parte porque a estrutura legal, econômico-social e cultural dassociedades da região “a permitem e até a fomentam”, cabendo assim com-batê-las.” (TRINDADE, 2003, p. 304).

A despeito da controvérsia suscitada a respeito do tema, a Declaração deViena foi clara ao estabelecer o universalismo dos direitos humanos, admitindotão-somente que as particularidades culturais locais deveriam ser consideradas,bem como os diferentes contextos históricos, culturais e religiosos, sendo deverdo Estado promover e proteger todos os direitos humanos, independentementede seus sistemas, políticos, econômicos e culturais. Todavia, há ainda dúvidas ecríticas em relação à universalidade dos direitos humanos, que é vista por muitoscomo um pretexto para a intromissão de países ocidentais em assuntos internosdos Estados, resultando na imposição de uma pauta de valores unilateral emprejuízo da diversidade cultural.

Ainda que não venham a ser acolhidas em sua totalidade, as críticas opostasao universalismo dos direitos humanos ao menos têm o mérito de chamar aten-ção para uma questão digna de reflexão: o universalismo não pode ser imposto.Com efeito, constata-se que é inviável a busca de um ideal de universalidadecunhado exclusivamente a partir de padrões valorativos ocidentais, tidos comoparâmetro de todos os povos e nações. Pelo contrário, existe um razoável con-senso no sentido de que o projeto de uma civilização humana universal é contra-ditória com a própria idéia de cultura, pois a cultura é intrínseca e essencialmente

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uma questão de diferenças, de maneira que a busca de uniformização deve-sedar com base no consenso, respeitadas as particularidades de cada nação.

Não significa dizer que toda universalização seja boa ou ruim em si mesa,mas tão-somente que o universalismo dos direitos humanos não deve servir depretexto a uma aculturação das nações, sendo importante privilegiar as unifor-mizações pautadas no comum acordo. Nesse sentido as observações deTOMLINSON: “a modernidade global implica várias formas de universalidade,mas a universalidade não é em princípio má. Ao reconhecer suas formas noci-vas, temos de evitar tirar o trigo bom com o mal, posto que ... a conectividadecomplexa da globalização faz com que algumas perspectivas universalizadorasbenignas – na forma de políticas culturais cosmopolitas – sejam cada vez maispertinentes” (TOMLINSON, 1999, 77-82).

Com efeito, é preciso atentar para a necessidade de um diálogo intercul-tural que possibilite a busca de um consenso nas políticas de proteção aos direi-tos humanos, sem que se possa aventar uma injustificável imposição unilateral devalores pelos países ocidentais, principalmente no que diz respeito à valorizaçãodo mercado em detrimento do ser humano. Vale mencionar a esse respeito areflexão de Ahmet DAVUTOGLU, professor turco, no sentido de que “O falsouniversalismo, no sentido da consciência do consumismo na globalização eco-nômica e da exclusão geopolítica na ordem mundial, é uma barreira real para odiálogo e a cooperação entre civilizações. O consumismo, voltado à padroniza-ção dos estilos de vida, cria uma pseudoglobalização sem qualquer esforço paradesenvolver um sistema de valores que funcione como referência maior de uni-versalidade” (In BALDI, 2004, p. 135).

Isso conduz à necessidade de se abordar a questão do universalismo deuma perspectiva multicultural, reconhecendo-se que os valores universais so-mente podem ser produzidos a partir da diversidade cultural. Em outras pala-vras, nenhuma cultura pode ser tomada como padrão ou verdade absoluta, pelocontrário, deve-se abrir a ampla aceitação para as diversas culturas e, ao mes-mo tempo, dirigir esforços no sentido de fazer com que as culturas aceitemdeterminados valores básicos próprios aos direitos humanos. Nesse contexto, adiversidade não funciona como obstáculo à universalidade dos direitos huma-nos, mas constituem verdadeira premissa para esse universalismo ao contribuirpara a busca de valores universais básicos do gênero humano.

Do que se vem de ver, o reconhecimento do universalismo dos direitoshumanos esteve presente na elaboração de sua fundamentação ético-política eno seu processo de afirmação histórica, nomeadamente nas declarações de di-

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reitos dos homens que permearam as revoluções liberais. Todavia, no planojurídico essa universalidade somente foi reconhecida definitivamente através doprocesso de internacionalização dos direitos humanos, no pós-guerra, consoli-dando-se na Declaração de 1948 que, nos mais de cinqüenta anos de sua vigên-cia, alcançou um altíssimo grau de aceitação em todas as civilizações, o que foipossível apesar das diferenças culturais. Ocorre que as resistências identificadasna Conferência de Viena de 1993 demonstram que existe uma corrente de pen-samento que opõe críticas à aplicação de determinados direitos que seriam con-trários a práticas culturais ou opções legislativas locais. Daí por que é importanterefletir sobre esse importante tema da universalidade dos direitos humanos, en-frentando com desassombro o discurso relativista.

4. RELATIVISMO CULTURAL E OUTRAS OBJEÇÕES AO

CARÁTER UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Já se asseverou alhures que o tema atinente ao relativismo cultural é doscapítulos mais difíceis do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Para osobjetivos dessa pesquisa afigura-se importante identificar e sistematizar as prin-cipais críticas opostas ao universalismo dos direitos humanos, o que se fará apartir das relevantes observações de A. A. Cançado TRINDADE, André deCarvalho RAMOS e Flávia PIOVESAN.

Para Cançado TRINDADE os aspectos mais importantes da contraposi-ção entre universalismo e relativismo dizem respeito à diversidade cultural; àproteção dos direitos das minorias; à evolução dos direitos dos povos; à amea-ça da idolatria do mercado; à contraposição dos particularismos regionais, so-bretudo nas relações de direito privado; aos direitos humanos da mulher; aosvínculos entre os vivos e os mortos e ao legado universal das religiões.

Em termos de diversidade cultural se identificam divergências sobre pon-tos como a liberdade de religião e problemas atinentes à adoção de menores.Observa-se também que alguns direitos fundamentais podem se afigurar maisrelevantes em um determinado meio social do que em outro. Assim, o relativis-mo cultural seria conseqüência do fato de que cada cultura possui uma identida-de e valores próprios.

No campo da proteção dos direitos das minorias (culturais, étnicas, lin-güísticas, religiosas, dentre outras), importa gizar que há direitos que são maisbem protegidos através do grupo ou comunidade a que pertencem, designada-mente a salvaguarda da identidade cultural; assim, a preocupação manifestada

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na proteção dos direitos das minorias dirige-se contra a imposição de modelos,a insensibilidade e a uniformização, “um alerta em relação aos dogmas, por de-finição absolutos e excludentes ... em relação à recusa de considerar o modusvivendi dos demais, como se a verdade pudesse prestar-se ao apanágio de unspoucos detentores da mesma” (cf. TRINDADE, 2003, p. 311 ss.).

No item dedicado à “ameaça da idolatria do mercado” o autor sustentaque a globalização da economia tem gerado um paradoxo na medida em que oaumento da competitividade econômica vem aumentando a pobreza e o endivi-damento, e diminuindo a capacidade dos Estados de proteger os direitos dosseres humanos sob suas jurisdições. A abertura das fronteiras aos capitais temsido acompanhada pelo fechamento das fronteiras a milhões de seres humanos,que tentam fugir da miséria em busca de melhores condições de sobreviver.Segundo afirma:

“... as disparidades crescentes em escala global dão mostra de um mundoem que um número cada vez mais reduzido de ‘globalizadores’ tomamdecisões que condicionam as políticas públicas dos Estados quase sem-pre em benefício de interesses privados, – com conseqüências nefastaspara a maioria esmagadora dos ‘globalizados’. Só a firme determinaçãode reconstrução da comunidade internacional com base na solidariedadehumana poderá levar à superação deste trágico paradoxo” (cf. TRIN-DADE, 2003, p. 330-331).

Trata-se, na realidade, de uma posição compartilhada por boa parte dadoutrina nacional dedicada ao estudo dos direitos humanos. Relativamente àsituação brasileira, no que diz respeito ao reconhecimento e à implementaçãodos direitos humanos universais em face da globalização, vale mencionar traba-lho de Yolanda CATÃO que examinou detidamente os avanços e retrocessosdos direitos humanos no Brasil, demonstrando grande preocupação com a ques-tão. Segundo essa autora, as conquistas da globalização só alcançam as elitesbrasileiras e, em contrapartida ao avanço da informática e das telecomunica-ções, o Brasil perdeu posições no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), oque demonstra que não estão ocorrendo avanços suficientes nos problemas dadiminuição da desigualdade de renda e do desenvolvimento humano. Em suaopinião enquanto o processo de globalização privilegiar os interesses de corpo-rações multinacionais haverá uma divisão entre os privilegiados incluídos nosbenefícios da globalização e os excluídos desse processo (In ARNAUD, 2005,p. 378-379).

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Essa também a opinião de António José Avelãs NUNES, crítico mordazdo processo de globalização, o qual sustenta que o desenvolvimento econômicodeve necessariamente passar por caminhos que respeitem a dignidade humana.Segundo defende, o desenvolvimento econômico desacompanhado do desen-volvimento humano é perverso, um modelo que atende aos interesses das multi-nacionais e das elites a quem “pouco importa que milhões de pessoas não te-nham poder de compra. Pura e simplesmente, não contam com elas, é como seelas não existissem”, sendo certo que “a exclusão social crescente (a ‘nadifica-ção do outro’, na expressão do cineasta brasileiro Walter Salles) é a outra facedeste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno” (cf. NUNES, 2003, p.107-109).

No que diz respeito, propriamente, à contraposição dos particularismos àuniversalidade dos direitos humanos Cançado TRINDADE explica que a mani-festação mais notória nesse sentido vem de alguns círculos de países asiáticos ede Estados membros da Organização da Conferência Islâmica. A crítica consis-te em identificar no movimento internacional dos direitos humanos um fruto dopensamento ocidental que não leva em consideração as chamadas particularida-des regionais. As resistências se manifestam principalmente no domínio das rela-ções privadas dos indivíduos, como o tratamento dispensado à condição damulher, ao direito de casar e divorciar, da escolha quanto ao planejamento fami-liar, da proteção das crianças e outras (TRINDADE, 2003, p. 346).

Outro ponto sensível na questão do universalismo dos direitos humanosconsiste nos direitos humanos da mulher em face das tradições e práticas secu-lares. Neste aspecto os particularismos culturais têm sido utilizados para justifi-car discriminações e atos de violência contra a mulher, como a prática baseadano costume, crenças religiosas ou origens étnicas de permitir casamentos força-dos, discriminações no direito de família e sucessões, circuncisão feminina, obs-táculos na educação além de atos de violência privada. A IV Conferência Mun-dial sobre a Mulher em Beijing (1995), insurge-se fortemente contra essas prá-ticas adotando um amplo programa para promover e emancipar a mulher, elimi-nando todos os aspectos, inclusive as práticas baseadas no costume e na cultu-ra, que a impedem de exercer um papel ativo em pé de igualdade em todos osdomínios da vida pública e privada, erradicando a discriminação (cf. TRINDA-DE, 2003, p. 355).

A questão da vinculação entre os vivos e os mortos é um dos temas quedenotam com mais clareza a questão da universalidade, uma vez que o respeitoaos mortos é cultivado nas mais diversas culturas e religiões e sua proteção visa

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preservar não só a memória do morto como também os sentimentos dos vivos.Disso decorre que o sentimento de harmonia entre os vivos e os mortos mereceser reconhecido como objeto de preocupação e tutela do Direito Internacionaldos Direitos Humanos, o que sobressai ainda mais nos casos de negligência edesrespeito aos restos mortais das vítimas de violações dos direitos humanos. Oconsenso existente acerca do respeito aos mortos assenta como demonstraçãoinequívoca de que a diversidade cultural não é obstáculo para o universalismodos direitos humanos, devendo-se distinguir o necessário pluralismo, que impli-ca o respeito às identidades culturais, do relativismo cultural, o qual abdica daprópria noção de valor ao rejeitar a possibilidade de sua objetivação.

No mais, questão relevante no que diz respeito à universalidade dos direi-tos humanos é aquela pertinente ao legado universal das religiões. As religiõesinfluenciaram muito na evolução do Direito Internacional exercendo papel im-portante nos esforços em busca da construção da paz mundial e da preservaçãodos direitos humanos, entretanto, o desvirtuamento das religiões pela intolerân-cia e pelo fanatismo leva a graves violações dos direitos humanos. Em comuni-cado apresentado durante a II Conferência Mundial de Direitos Humanos aComunidade Baha’i Internacional, em seu nome e no de diversas organizaçõesnão-governamentais, sustenta vários argumentos dentre os quais o de que “aintolerância não raro tem raízes nos antagonismos culturais e históricos associa-dos com tradições religiosas. Dado que os antagonismos nascem com freqüên-cia da ignorância e do conhecimento limitado, a educação pode revelar os valo-res espirituais comuns subjacentes a várias crenças e práticas e pode dessemodo fomentar a tolerância religiosa” (cf. TRINDADE, 2003, p. 378-379).

Ao tratar da questão do relativismo cultural André de Carvalho RAMOSse pronuncia de forma mais sistemática, ainda que se abstenha de abordar ques-tões pontuais importantes no debate entre o universalismo e o relativismo. Nes-se passo, o autor identifica seis argumentos fundamentais em prol do relativismo:a existência de cosmovisões inconciliáveis nas diversas culturas; a falta de ade-são formal à Declaração de Viena ou sua adesão apenas para fins de políticaexterna; o uso do discurso dos direitos humanos como instrumento para finseconômicos e políticos; as diferenças de relação do homem e sua comunidadeexistente na cultura ocidental e na cultura africana e asiática; a imposição devalores do pensamento ocidental e o argumento desenvolvimentista que justificao desrespeito a direitos humanos básicos, sob a alegação de falta de recursoseconômicos suficientes.

O primeiro argumento, de cunho filosófico, funda-se na existência de di-versas cosmovisões na comunidade humana. O autor menciona Raimundo PAN-

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NIKAR – “Is the notion of human rights a western concept?” – o qual argu-menta que “o conceito de direitos humanos é fundado na visão antropocêntricado mundo, desvinculada da visão cosmoteológica que ainda predomina em al-gumas culturas, o que contraria a sua alegada universalidade” (RAMOS, 2005,p. 184). Além disso, existem poucos elementos antropológicos e filosóficos co-muns para formar o conjunto de direitos humanos universais, como o direito àvida e à liberdade, o que torna o próprio universalismo desprovido de significa-do na maioria dos casos (RAMOS, 2005, p. 184).

O segundo argumento, atribuído a Adamantia POLLIS e Peter SCHWAB– “Human Rights: a western construct with limited applicability” –, é nosentido de que embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenhasido aprovada sem voto em sentido contrário sob a forma de resolução da As-sembléia Geral da ONU, houve oito abstenções e, na época, as potências oci-dentais possuíam colônias e diversos territórios dominados que não participa-ram de sua formulação. Além disso, a pretensa adesão dos Estados às declara-ções de direitos do homem não é prova do universalismo, porque muitas vezesessa adesão é mero instrumento de política externa que não se traduz em açõespráticas (cf. RAMOS, 2005, p. 185).

O terceiro argumento consiste em que vários Estados, especialmente osEstados ocidentais, utilizam do discurso dos direitos humanos como instrumentopara fins econômicos e políticos, mostrando-se incoerentes quando se trata dadefesa de seus interesses e descartando o discurso dos direitos humanos quan-do inconveniente. Um exemplo claro disso seria a condução das relações inter-nacionais dos Estados Unidos da América, seja no embargo econômico a Cubaou nas violações a direitos humanos na prisão de supostos terroristas na basemilitar norte-americana em Guatánamo, Cuba, e em Abu Ghraib, no Iraque, issosem mencionar o constante apoio norte-americano a Estados que violam siste-maticamente direitos humanos (cf. RAMOS, 2005, p. 186-187).

O autor menciona a crítica de BOAVENTURA DOS SANTOS ao quedenomina de supervisibilidade de certas violações de direitos humanos e totalopacidade de outras, a depender de critérios geopolíticos, a exemplo do casoOtto-Preminger Institut em que houve a censura e confisco de filme na Áustriaconsiderado ofensivo à Igreja Católica; além de outros para quem “a incoerên-cia está na defesa de direitos humanos universais no plano externo e na preser-vação, do plano interno, da margem de manobra dos Estados, como já visto naanálise da polêmica teoria da margem de apreciação no sistema europeu dedireitos humanos” (cf. RAMOS, 2005, p. 188).

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O quarto argumento refere-se às diferenças de relação do homem e suacomunidade existente na cultura ocidental e na cultura africana e asiática, issoporque, na maioria das sociedades africanas, os direitos da comunidade prece-dem os direitos individuais; as decisões são tomadas por meio do recurso aoconsenso do grupo e a riqueza também sofre formas de apreciação coletiva (cf.RAMOS, 2005, p. 189). De outro lado, as sociedades asiáticas possuem valo-res culturais de difícil assimilação com as normas de direitos humanos promovi-das pelo Ocidente, segundo NIARA SUDARKASA: “a complexa relação en-tre o indivíduo e sua comunidade, baseada em quatro obrigações: respeito, res-ponsabilidade, auto-restrição e reciprocidade, não sendo baseada, então, nanoção de direito oriunda da tradição ocidental” (cf. RAMOS, 2005, p. 189).

O quinto argumento é no sentido de que a doutrina dos direitos humanospossui um forte viés cultural ocidental o que gera o sentimento de que o pretensouniversalismo dos direitos humanos corresponderia, na realidade, a uma tentati-va de impor valores ocidentais às demais culturas. A doutrina dos direitos huma-nos opõe-se a várias práticas costumeiras e crenças de diversas culturas, comoa clitoridectomia, os direitos sucessórios desiguais no mundo mulçumano, o doteobrigatório das noivas, os casamentos combinados, entre outros casos (cf.RAMOS, 2005, p. 190).

Finalmente há o argumento, de grande importância paras os países latino-americanos, de que a proteção a alguns direitos humanos, nomeadamente osdireitos sociais e culturais, dependem do atingimento de um grau superior dedesenvolvimento econômico, de maneira que a falta de recursos materiais sufici-entes serve de pretexto para o inadimplemento de direitos humanos básicos.Segundo o autor, “os direitos sociais, com isso, são sistematicamente, violados,existindo, por exemplo, regiões no Brasil com índices de desenvolvimento quefariam corar Estados miseráveis da África” (RAMOS, 2005, p. 191).

Além dos argumentos delineados, merece destaque a “Teoria da Margemde Apreciação” – margin of appreciation – antes mencionada. Essa teoria éum dos instrumentos de interpretação dos direitos humanos adotados pela Cor-te Européia de Direitos Humanos. A tese se fundamenta no princípio da subsidi-ariedade da jurisdição internacional, argüindo que determinadas questões polê-micas relacionadas às limitações estatais impostas aos direitos humanos devemser discutidas pelas comunidades nacionais, pois em princípio caberia ao pró-prio Estado estatuir as condições e limites para o exercício desses direitos emface do interesse público (cf. RAMOS, 2005, p. 110-111).

A utilização dessa teoria é controlada pela Corte Européia com base noprincípio da proporcionalidade, mas para muitos críticos a sua aceitação tende

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ao relativismo dos direitos humanos ao admitir que práticas costumeiras possamservir de pretexto para impedir mudanças sociais, especialmente na esfera damoralidade pública, resultando na opressão e discriminação de minorias. Se-gundo André de Carvalho Ramos: “Essa perigosa aceitação do relativismo naproteção de direitos humanos é ainda mais dramática por advir de uma Corteespecializada de direitos humanos e não de um Estado autoritário qualquer oude membros dirigentes de uma comunidade religiosa opressora. É bom lembrarque o texto da Convenção Européia de Direitos Humanos não contém nenhumamenção à ‘margem de apreciação’ nacional: pelo contrário, há a expressa obri-gação dos Estados em garantir e respeitar os direitos humanos, sem ressalvas outitubeios” (RAMOS, 2005, p. 117).

Finalmente seguem as observações de Flávia PIOVESAN sobre o temaque traduzem em feliz síntese os principais argumentos do relativismo cultural àtese seguinte: “Na análise dos relativistas, a pretensão de universalidade dessesinstrumentos (Declaração Universal dos Direitos do Homem) simboliza a arro-gância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suaspróprias crenças. A noção universal de direitos humanos é identificada comouma noção construída pelo modelo ocidental. O universalismo induz, nessa vi-são, à destruição da diversidade cultural” (PIOVESAN, 2006, p. 144).

5. ARGUMENTOS EM DEFESA DA AFIRMAÇÃO

UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A busca de caminhos para a afirmação universal dos direitos humanosdemanda, antes de tudo, o enfrentamento de todas e cada uma das objeçõesantes mencionadas que põem em dúvida a legitimidade e a substância jurídicado universalismo. Como se vem de ver, ainda que o problema possa parecersuperado no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em virtudeda adesão maciça à Declaração de Viena (1993), do ponto de vista acadêmiconão se pode simplesmente ignorar a existência de teses contrárias à universali-dade dos direitos humanos. Seguem, a propósito disso, os argumentos apresen-tados pelos autores antes citados para rebater as críticas do relativismo cultural.

Além de ser uma das grandes autoridades no tema, A.A. Cançado TRIN-DADE é um dos maiores defensores do universalismo dos direitos humanos.Em seu Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos o autor fazvárias ponderações sobre o problema, as quais são explicadas em seguida, ain-da que em apertada síntese.

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Inicialmente, tratando das objeções de alguns círculos de países asiáticos,Cançado TRINDADE articula que conquanto tradicionalmente as concepçõesprevalecentes nesses países não prevejam limitações à autoridade estatal aindaassim tem-se notícia de protestos contra abusos do poder público, o que de-monstra que o reconhecimento do direito de resistência à opressão não é algoestranho à cultura asiática. Assim, a questão não seria tanto a de se opor acosmovisão ocidental à tradição oriental, mas sim de colocar a questão de saberse as elites governantes atendem ou não às necessidades básicas dos governa-dos. O autor menciona que “a própria Comissão Econômica e Social para aÁsia e o Pacífico, em documento apresentado à quarta sessão do Comitê Pre-paratório da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), assi-nalou as implicações para os direitos humanos da diversidade e heterogeneida-de dos países da região asiática” (cf. TRINDADE, 2003, p. 339-340).

Outro ponto relevante desenvolvido pelo autor é o de que a Convençãode Viena apenas tinha a intenção de desenvolver a legislação e de melhorar osmecanismos de proteção internacional dos direitos humanos, uma vez que aquestão dos particularismos culturais já parecia superada. Antes mesmo daConferência a questão do universalismo já tinha sido objeto de três Convençõesregionais, a européia, a americana e a africana, e em todas elas houve o reco-nhecimento de direitos universais do homem. O autor cita o exemplo da Con-venção Africana de 1981, que confirma o caráter universal dos direitos huma-nos, sem perder de vista os traços culturais especiais da região (TRINDADE,2003, p. 340).

Assim, é de se considerar que a questão do universalismo dos direitoshumanos não constitui nenhuma inovação, de forma que seria até mesmo desne-cessário seu reconhecimento na Conferência de Viena, já que os instrumentosglobais atuam de forma complementar aos instrumentos regionais. Em outraspalavras, carece de fundamento a oposição ao caráter universal dos direitoshumanos adotado na Declaração de Viena quando se sabe que os instrumentosde proteção desses direitos no níveis global e regional são complementares,conforme vasta prática internacional, de forma que interagem e se reforçammutuamente em prol dos seres humanos por eles protegidos.

Quanto à alegada vinculação da doutrina dos direitos humanos ao “pen-samento ocidental” o autor observa que esta na realidade é uma expressão mui-to vaga, uma vez que por tal pensamento podem-se identificar tanto as raízesgregas da democracia quanto o humanismo da renascença, o legado do iluminis-mo e o pensamento filosófico ocidental moderno. Ademais, muito do que se diz

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parte do pensamento ocidental tem um alcance muito mais amplo estando pre-sente em vários países de várias regiões do mundo; nas palavras do autor “muitodo que se atribuía àquele pensamento passava na atualidade a encontrar mani-festações em países de diferentes regiões do mundo, sobretudo no tocante adeterminados pontos básicos como as liberdades fundamentais, o direito departicipação na vida pública, e a igualdade de todos perante a lei; por outrolado, em relação a tantos outros aspectos tornava-se difícil reduzir aquele pen-samento a um todo homogêneo...” (TRINDADE, 2003, p. 341-342).

Igualmente, o argumento da diversidade cultural não pode ser utilizadocomo obstáculo para o universalismo, porque os valores universais resultam deum consenso elaborado a partir da diversidade do gênero humano, o que semanifesta em uma consciência jurídica universal; logo, as culturas ao invés deobstaculizar a universalidade dos direitos humanos. Em outras palavras “o argu-mento das ‘culturas regionais’ não há de ser exagerado ou levado a extremos.Tais culturas não são e nunca foram obstáculos à evolução dos direitos huma-nos; ao contrário, é perfeitamente possível a elas incorporar os valores dos di-reitos humanos, como passo rumo à cristalização de obrigações de direitos hu-manos, como o demonstram os avanços nos últimos anos, e.g., nos campos dosdireitos da mulher, da criança, e dos povos indígenas” (TRINDADE, 2003, p.342).

Para além disso, apesar de se valerem do argumento dos particularismosregionais, vários desses mesmos países efetivamente são partes em tratadosuniversais de proteção e ratificaram diversas convenções internacionais do tra-balho adotadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), de maneiraque não se pode ter esse posição como uma posição em bloco, mas sim como“um argumento pouco convincente avançado por alguns círculos em alguns da-queles países”, sendo mesmo que vários direitos humanos há se incorporaramao direito costumeiro, o que reforça seu caráter universal independentemente deuma adesão formal a tratados ou convenções (TRINDADE, 2003, p. 343).

Assim, na abalizada lição de A. A. Cançado TRINDADE, uma vez exa-minando-se a universalidade dos direitos humanos em perspectiva adequadanão se verifica fundamento para a crítica relativista. É importante, porém, envi-dar esforços no sentido de buscar um consenso mínimo entre as diversas cultu-ras que poderá ser ampliado mediante um cross-cultural dialogue, enriquecidopela legitimidade cultural universal dos direitos humanos. Em conclusão, cumpreregistrar um excerto da obra em análise bastante significativa da posição susten-tada pelo autor acerca do tema:

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“Nos últimos anos, vêm-se envidando esforços meritórios no sentido de,a partir da diversidade cultural, buscar um denominador comum mínimoentre as distintas culturas do mundo, para então ampliá-lo mediante umcross-cultural dialogue, enriquecido pela legitimidade cultural universaldos direitos humanos. Este enfoque da matéria, cujo propósito é o deampliar e aprofundar o consenso universal sobre os direitos humanos,pressupõe que os indivíduos, assim como as sociedades que integram,compartilham certos interesses e preocupações e valores básicos, des-vendando o quadro geral para a conformação de uma cultura comum dosdireitos humanos universais. A busca da universalidade dos direitos huma-nos requer a identificação e o cultivo de suas cross-cultural foundati-ons.” (TRINDADE, 2003, p. 310).

Insista-se nesse ponto. A universalidade, ora perseguida, não consiste emaplicar a todos os povos as idênticas normas de direitos humanos sem nenhumaadaptação nem, por outro lado, permite que se deixe a proteção dos direitoshumanos ao capricho de cada Estado, sem que se eleja um critério objetivo. Aidéia defendida é a de que se possam construir valores universais a partir devalores particulares, numa espécie de processo de abstração em que se respei-tam as identidades culturais e se aprende com a experiência coletiva, num diálo-go intercultural que conduz ao consenso (cf. BEUCHOT, 2005, p. 65 ss.).

Veja-se agora a posição de André de Carvalho RAMOS que tambémrebate as críticas do relativismo, enfrentando cada um dos seis argumentos quemenciona em sua obra e já relacionados anteriormente.

Às objeções filosóficas o autor responde com base em Shashi THARO-OR – “The universality of human rights and their relevance to developingcountries” –, especialista de direitos humanos indiano, para quem “é razoávelafirmar que conceitos de justiça e Direito, legitimidade do governo, dignidadedo ser humano, proteção contra a opressão ou arbítrio, participação na vida dacomunidade, são encontrados em qualquer sociedade”. Com base nessa refle-xão o autor pondera que os direitos humanos não pretendem substituir os valo-res ou a cosmovisão das sociedades, apenas oferecendo um substrato jurídico-normativo para a tutela da liberdade (cf. RAMOS, 2005, p. 192).

Relativamente ao suposto caráter ocidental da doutrina dos direitos hu-manos André de Carvalho RAMOS argumenta que o fato de que os direitos dohomem têm origem no jusnaturalismo europeu e nas primeiras declarações dedireitos é meramente um dado histórico, porque os direitos humanos são uma

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conquista que não pertence a determinada tradição cultural. Pelo contrário, tra-ta-se de um objeto de constante disputa política, durante a qual tradições cultu-rais e religiosas podem se modificar e novas leituras dessas tradições podemsurgir (cf. RAMOS, 2005, p. 193).

Realmente, os direitos humanos hoje se contrapõem a tradições religiosase culturais como já o fizeram no passado, inclusive em relação a tradições oci-dentais, sendo exemplo disso a necessidade de mudanças da Igreja Católica emrelação à liberdade religiosa. O autor conclui que não se trata de buscar umadenominação mínima dos valores culturais, mas de afirmar a pluralidade de cul-turas com o reconhecimento da liberdade e participação com direitos iguaispara todos. Em boa verdade, as justificativas culturais a condutas contrárias adireitos humanos têm forte traço totalitário ao implicar a possibilidade e discri-minar as minorias que não se identificam com os valores da comunidade (cf.RAMOS, 2005, p. 192-193).

No que toca à questão geopolítica, identificada com o uso seletivo dodiscurso dos direitos humanos para camuflar interesses econômicos ou políti-cos, ou mesmo a hipocrisia de defender algo externamente e não aplicar interna-mente, o autor argumenta que a mesma crítica vale para qualquer outro aspectodo Direito Internacional. Em suas palavras, “... não é somente o Direito Interna-cional dos Direitos Humanos que sofre com o uso seletivo e politicamente orien-tado de suas normas. A história do Direito Internacional mostra que o direito dostratados, a teoria da responsabilidade internacional, entre outros temas, já so-freram interpretações de modo a justificar o atingimento de fins políticos e eco-nômicos por parte de Estados (em geral, os mais poderosos), da mesma formaque o Direito Internacional dos Direitos Humanos” (RAMOS, 2005, p. 195).

Com essas razões conclui que a crítica não deve se aplicar ao DireitoInternacional dos Direitos Humanos, mas sim às próprias características da so-ciedade internacional, designadamente quando no campo dos direitos humanosexistem mecanismos coletivos aptos à averiguação de violações de direitos hu-manos, dado que demonstra o significativo avanço no sentido de extirpar a sele-tividade antes criticada. Aliás, relativamente à teoria da margem de interpreta-ção nacional, além de não registrar que não há nada parecido com essa constru-ção na Corte Interamericana de direitos humanos, deve-se mencionar que exis-tem precedentes na própria Corte Européia em que foram rejeitadas essas ale-gações do Estado embasadas nessa teoria, para se reconhecer a universalidadedos direitos do homem (cf. RAMOS, 2005, p. 196).

Ainda nesse tema há a registrar o argumento do autor de que a subsidia-riedade da jurisdição internacional não pode importar na redução da competên-

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cia dos órgãos internacionais na avaliação de eventuais violações de direitoshumanos, porque os mecanismos de proteção internacional dos direitos huma-nos foram elaborados justamente para fornecer uma garantia dos indivíduos contrao Estado, quando esgotados os recursos internos. Dessa forma, o caráter polê-mico de determinada questão não poderia justificar o afastamento da jurisdiçãointernacional sob pena de esvaziar-se a sua própria razão de existir (cf. RA-MOS, 2005, p. 120).

Afinal, no que pertine à crítica “desenvolvimentista” contra a universalida-de dos direitos humanos, o autor observa que o acatamento desse argumentoem última análise importa em negligenciar uma determinada classe de direitossob o falso argumento de sua realização progressiva que é indefinidamente adi-ada. Tal argumento seria falho porque desmentida pela realidade, segundo ale-ga, “o Brasil, com uma das maiores economias industriais do mundo, é amostraevidente que o aumento da riqueza não leva a maior proteção de direitos huma-nos. Muito pelo contrário: a lógica da postergação da proteção de direitos hu-manos e em especial dos direitos sociais faz com que o desenvolvimento econô-mico beneficie poucos, em geral àqueles que circundam a elite política dominan-te” (RAMOS, 2005, p. 197).

Do exposto, na opinião do autor as objeções ao caráter universal dosdireitos humanos não devem ser acolhidas, pelo contrário, impende prevalecer aexigência de garantia da plena e universal realização dos direitos humanos queconsta do preâmbulo da Declaração de Viena de 1993, sendo importante pros-seguir na supervisão internacional dos direitos humanos com a finalidade de ga-rantir um mínimo de garantias a todos em cada comunidade humana.

Concluindo essa análise, importa trazer as importantes reflexões de FláviaPIOVESAN acerca do tema.

Após indicar resumidamente a crítica relativista ao universalismo dos di-reitos humanos a autora traz o argumento contrário dos universalistas, o sentidode que “a existência de normas universais constitui uma exigência do mundocontemporâneo” e que “se alguns Estados optaram por ratificar instrumentosinternacionais de proteção dos direitos humanos, é porque consentiram em res-peitar tais direitos, não podendo isentar-se do controle da comunidade interna-cional na hipótese de violação desses direitos e, portanto, de descumprimentode obrigações internacionais” (PIOVESAN, 2006, p. 146). A autora defende aposição de que a abertura do diálogo entre as culturas que respeite a diversida-de cultural é condição para a obtenção de um consenso e a formação de umacultura universal dos direitos humanos que observe um mínimo irredutível alcan-çado por um universalismo de confluência (cf. PIOVESAN, 2006, p. 148).

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6. CONCLUSÕES: A AFIRMAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS

HUMANOS NO ÂMBITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

O universalismo dos direitos humanos é um legado do Iluminismo no pro-cesso histórico de formação da doutrina dos direitos do homem e do processode sua afirmação através das primeiras declarações de direitos emitidas nasrevoluções liberais. A ideologia do Iluminismo traz subjacente a idéia de queseria possível realizar um Direito unitário a ser presidido pela razão, uma espéciede ciência do legislador que seria apta a estabelecer as leis universais e imutáveisque deveriam regular a conduta humana.

A despeito do positivismo jurídico e de sua concepção formalista do Di-reito, que reduz a fundamentação dos direitos humanos ao seu reconhecimentopelas leis positivas, há uma tendência atual no sentido de buscar fundamentosjurídicos para os direitos humanos além da organização política estatal. Nessepasso é importante a concepção de direitos morais de Ronald DWORKINsegundo a qual é possível identificar um fundamento ético-político para os direi-tos humanos independentemente de sua positivação.

A adoção de fundamentos jurídicos supra-estatais para o reconhecimentodos direitos humanos é amplamente aceita no âmbito do Direito Internacionaldos Direitos Humanos, principalmente em se considerando que o movimento deinternacionalização da proteção dos direitos humanos deveu-se em grande me-dida a uma reação contra os abusos cometidos pelo regime nazista durante aSegunda Guerra Mundial. Essa experiência histórica, por mais hedionda queseja, produziu um grande bem para a humanidade ao assentar definitivamente anecessidade de se reconhecer e tutelar um mínimo de direitos inalienáveis ine-rentes ao ser humano independentemente do reconhecimento interno do Esta-do.

O consenso acerca da responsabilidade da comunidade internacional paracom a proteção dos direitos humanos é um marco histórico de enorme relevân-cia para o progresso da humanidade, daí decorrendo mudanças significativasem conceitos tradicionais como a cidadania e a soberania. Isto porque o indiví-duo passa a ser titular de direitos no plano internacional o que implica a limitaçãoda soberania dos Estados, vez que estes ficam obrigados perante a comunidadeinternacional envidar esforços no sentido de respeitar e garantir a efetivaçãoplena desses direitos, sob pena de responsabilização.

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A existência de direitos humanos universais e inalienáveis é um fato incon-testável no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo emvista a força normativa adquirida pela Declaração Universal dos Direitos doHomem (1948) como princípio geral de Direito Internacional, e por força daConferência de Viena (1993) que assentou irrevogavelmente a indivisibilidade eo universalismo dos direitos do homem.

Nesse contexto, as discussões travadas acerca do caráter universal dosdireitos do homem, embora relevantes, tendem a desaparecer naturalmente emvirtude do fato inegável de que o universalismo já foi incorporado à ordem jurí-dica internacional. Não obstante isso, as críticas opostas à universalidade dosdireitos humanos têm o mérito de ressaltar a necessidade se ter uma adequadaperspectiva dessa característica dos direitos do homem.

Quer-se dizer com isso que o universalismo não se pode confundir com ounilateralismo nem muito menos com a imposição de valores da cultura ocidentalàs demais civilizações. Os valores não são entes ideais e objetivos que podemser deduzidos da Natureza através da razão humana, como defendiam os ilumi-nistas. Apesar de bem intencionada essa construção peca em negligenciar osparticularismos e diversidades das culturas, além das diferenças de cosmovisõese de valores.

A definição de direitos humanos universais não se opera em um processointelectual de descoberta, demandando uma atividade muito mais elaborada quenão prescinde da tolerância e do diálogo, nem dispensa o respeito pelas váriasidentidades culturais nessa busca de uma pauta mínima de direitos reconhecidosuniversalmente a partir de valores particulares. Isso porque, na lição de Norber-to BOBBIO, embora os direitos do homem não sejam ideais e objetivos elessão podem ser reconhecidos a partir do consenso, quando então se tornamreferência objetiva dotada de caráter universal a partir do seu acatamento gene-ralizado e pela prática do costume internacional.

Tem razão, portanto, Cançado TRINDADE, em considerar que é possí-vel alcançar um denominador comum mínimo entre as distintas culturas do mun-do, que pode então ser ampliado através de um diálogo intercultural legitimadopela cultura universal dos direitos humanos. Não se trata de uma utopia, mas simde uma possibilidade real e concreta, não é apenas um sonho, mas um desafioatual para a humanidade para que, ao lado do progresso científico e tecnológi-co, possa alcançar o desenvolvimento humano em busca da paz e em prol de umfuturo melhor para nossos filhos.

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HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAISEM FACE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

INTERNO: UM ESTUDO SOBRE AJURISPRUDÊNCIA DO STF

Frederico Augusto Leopoldino KoehlerJuiz Federal - 2ª Vara / PE

Sumário: 1. Intróito; 2. Disposições da Carta Magna sobre amatéria; 3. A problemática do conflito entre normas internas e trata-dos ou convenções internacionais; 4. Posicionamento do STF quan-to à questão; 4.1. Entendimento do STF até 1977; 4.2. Entendimentofirmado pelo STF após o RE 80.004-SE, em 1977; 5. Críticas ao en-tendimento do STF; 6. Reflexões sobre o §3º do art. 5º da Constitui-ção Federal; 7. O Pacto de San José da Costa Rica; 8. Conclusão; 9.Referências bibliográficas.

1. INTRÓITO O presente artigo tem por objeto a realização de um estudo sobre o en-

tendimento do Supremo Tribunal Federal, ao longo do tempo, acerca do nívelhierárquico em que os tratados e convenções internacionais são recepcionadosno ordenamento jurídico interno brasileiro.

A questão tem extrema relevância, na medida em que o nível hierárquicodos tratados é o que vai determinar qual norma deve prevalecer na hipótese deconflito entre tratado e lei ordinária ou entre tratado e a Constituição Federal. Anecessidade de uma pesquisa desse jaez torna-se premente quando se percebeo elevado nível de integração entre Estados e entre blocos de Estados atingidono presente momento histórico, o que é demonstrado pelo número crescente detratados internacionais firmados.

Procederemos a uma análise das diversas teorias referentes à matéria e,então, selecionaremos alguns casos que espelhem a evolução do pensamento

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do Excelso Pretório sobre o tema. Observaremos, no ponto, as mudanças tra-zidas pela Reforma do Poder Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2004),com a inclusão do §3º no art. 5º da Constituição Federal de 1988.

Posteriormente, faremos as nossas críticas à visão atual do STF relativa-mente à problemática em estudo e remataremos com as nossas conclusões.

Após essa breve introdução, passemos ao estudo do tema.

2. DISPOSIÇÕES DA CARTA MAGNA SOBRE A MATÉRIA

A Reforma do Poder Judiciário, veiculada através da EC nº 45/2004,

incluiu o §3º no art. 5º da Constituição Federal de 1988, com o seguinte texto: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que fo-rem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentesàs emendas constitucionais.” Daí deflui que a Carta Magna trouxe disposições especiais referentes ape-

nas aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, criandodiscrímen entre estes e os demais tipos de tratados e convenções internacionais.

Antes de tudo, cabe registrar que uma parte da doutrina defendia – enten-dimento este com o qual manifestamos integral concordância –, desde antes doadvento da EC nº 45, que a CF/88, em seu art. 5, §2º, já conferia aos tratadosde proteção dos direitos humanos o status de norma constitucional. Nesse sen-tido, peço vênia para transcrever ad litteram os ensinamentos de Antônio Au-gusto Cançado Trindade, lançados no belo prefácio escrito para a obra de Ge-orge Galindo1:

“A disposição do artigo 5º, §2º, da Constituição Brasileira vigente, de1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressos não excluemoutros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil é Parte,representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitoshumanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os di-

1 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constitui-ção Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, prefácio de Antônio Augusto Cançado Trindade, p. XX-XXIII.

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reitos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil sejaParte incorporam-se ipso jure ao elenco dos direitos constitucionalmenteconsagrados. (...).O referido artigo 5º, §2º, de nossa Constituição Federal, resultou de pro-posta que apresentei, na época como Consultor Jurídico do Itamaraty, àAssembléia Nacional Constituinte, em audiência pública no dia 29 de abrilde 1987, tal como consta das Atas das Comissões da Assembléia Naci-onal Constituinte.(...).O propósito do disposto nos §§2º e 1º do artigo 5º da Constituição Fe-deral não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direta pelo PoderJudiciário nacional da normativa internacional de proteção, alçada a nívelconstitucional.(...).A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação in-fraconstitucional – tal como ainda seguida por alguns setores em nossaprática judiciária, - não só representa um apego sem reflexão a uma pos-tura anacrônica, já abandonada em vários países, mas também contrariao disposto no artigo 5º, §2º, da Constituição Federal brasileira.(...).O problema – permito-me insistir – não reside na referida disposição cons-titucional, a meu ver claríssima em seu texto e propósito, mas sim na faltade vontade de setores do Poder Judiciário de dar aplicação direta, noplano de nosso direito interno, às normas internacionais de proteção dosdireitos humanos que vinculam o Brasil. Não se trata de problema dedireito, senão de vontade (animus).” Corroborando o referimento entendimento, trago à colação a lição de

Flávia Piovesan, in verbis2: “O valor da dignidade humana – imediatamente elevado a princípio fun-damental da Carta, nos termos do art. 1º, III – impõe-se como núcleobásico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e

2 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 44- 48.

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parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sis-tema constitucional inaugurado em 1988.(...).É nesse contexto que há de se interpretar o disposto no art. 5, §2º dotexto, que, de forma inédita, tece a interação entre o Direito brasileiro e ostratados internacionais de direitos humanos.(...).Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz opção por um sistemamisto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicávelaos tratados de direitos humanos e um outro aplicável aos tratados tradi-cionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos hu-manos – por força do art. 5º, §§1º e 2º - apresentam hierarquia de normaconstitucional e aplicação imediata, os demais tratados internacionais apre-sentam hierarquia infraconstitucional e se submetem à sistemática da in-corporação legislativa.” Essa posição foi defendida na seara jurisprudencial pela Desembargado-

ra Federal Margarida Cantarelli, no julgamento proferido por unanimidade pelaPrimeira Turma do TRF-5ª Região, na AC 238.842-RN (2000.05.00.057989-2), julgado em 30/08/2001, quando a eminente relatora afirmou que3:

“não poderia deixar de mencionar que os princípios acima elencados es-tão presentes em diversos Tratados internacionais sobre direitos humanosnos quais o Brasil é parte, como o Pacto Internacional sobre DireitosCivis e Políticos (ONU – 1966), a Convenção Americana de DireitosHumanos (San Jose, 1969), ambos em vigor entre nós, desde 1992. Es-tes e muitos outros textos internacionais estão, nos termos da pró-pria Constituição, à mesma equiparados, na melhor interpretaçãodada ao §2º do seu art. 5º.” (grifos nossos) Outro não é o posicionamento de Fernando Luiz Ximenes Rocha4, que

defende a:

3 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível nº 238.842-RN (2000.05.00.057989-2). Primeira Turma. Decisão unânime. Relatora: Desembargadora Federal Margarida Cantarelli. Origem:5ª Vara Federal-RN. Recife, 30 de agosto de 2001. Disponível em: <http://www.trf5.gov.br/archive/2002/03/200005000579892_20020313.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2006.4 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. A incorporação dos tratados e convenções internacionais de direitoshumanos no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília-DF: Senado Federal, a. 33,n. 130, p. 81, 1996.

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“posição feliz do nosso constituinte de 1988, ao consagrar que os direitosgarantidos nos tratados de direitos humanos em que a República Federa-tiva do Brasil é parte recebe tratamento especial, inserindo-se no elencodos direitos constitucionais fundamentais, tendo aplicação imediata noâmbito interno, a teor do disposto nos §§º1 e 2º do art. 5º da Constitui-ção Federal”. Interessante referir, ainda, a posição manifestada pelo Ministro Sepúlve-

da Pertence no julgamento do RHC 79.785/RJ (DJ 10.04.2000), do qual foirelator, no sentido de que os tratados de direitos humanos teriam nível suprale-gal, mas infraconstitucional, ou seja, estariam acima das leis federais mas abaixoda Constituição Federal5.

Por outro lado, nota-se que a Constituição Federal de 1988 não foi ex-pressa com relação à posição hierárquica dos tratados internacionais não refe-rentes a direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro6. Tal questão res-tou, desse modo, delegada à jurisprudência e à doutrina pátrias, o que causouimensa polêmica, cujo relato será procedido adiante.

3. A PROBLEMÁTICA DO CONFLITO ENTRE NORMAS

INTERNAS E TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

Há quatro possíveis níveis hierárquicos que se pode atribuir aos tratados

e convenções internacionais7: 1) hierarquia supraconstitucional8; 2) hierarquiaconstitucional; 3) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; 4) paridade hie-rárquica entre tratado e lei federal. Destarte, o problema do conflito entre trata-dos internacionais e leis internas infraconstitucionais será resolvido de forma di-versa em cada Estado, de acordo com o nível hierárquico que cada ordenamen-to atribua aos tratados.

5 A título de registro, essa mesma qualificação é expressamente consagrada nas Constituições francesa,holandesa e grega, conforme indicam André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros apud MENDES, Gilmar.A Justiça Constitucional nos Contextos Supranacionais. Revista Direito Público, a. II, n. 8, abr./mai./jun. 2005, p. 80.

6 No sentido do texto, vide Celso de Albuquerque Mello apud MENDES, Gilmar. Op. cit., p. 68.

7 Consoante classificação criada por Flávia Piovesan. PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 48, nota 25.

8 Exemplo dessa hipótese é a Constituição holandesa posterior à revisão de 1956, o qual permite, napresença de certas circunstâncias, que tratados internacionais derroguem seu próprio texto.

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Imprimindo prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitu-cional, temos os exemplos das constituições francesa de 1958 (art. 55), gregade 1975 (art. 28, §1º) e peruana de 1979 (art. 101). Neste caso, o tratado vaiprevalecer sobre leis infraconstitucionais posteriores. Noutras Constituições,adota-se o tratamento paritário com as leis infraconstitucionais. Utiliza-se nessahipótese o critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou o critério daespecialidade (lex specialis derogat generalis) para definir se prevalecerá nocaso concreto o tratado ou a lei.

O Brasil, segundo vem entendendo o STF desde 1977, enquadra-se nacorrente que atribui paridade hierárquica entre tratados/convenções internacio-nais e a lei federal, corrente esta conhecida como monismo nacionalista modera-do9.

4. POSICIONAMENTO DO STF QUANTO À QUESTÃO

Enfrentaremos, neste ponto, o tema central do trabalho, isto é, qual a

posição hierárquica que o STF atribui aos tratados e convenções internacionaisfrente à Constituição Federal e às leis ordinárias.

4.1. ENTENDIMENTO DO STF ATÉ 1977

Antes de 1977, o STF posicionava-se no sentido da primazia do tratado

internacional quando em conflito com norma infraconstitucional. Com efeito,Philadelpho Azevedo, então Ministro da Excelsa Corte, publicou, em 1945,comentário em que demonstrava a convicção unânime da Suprema Corte, àquelaépoca, quanto à prevalência dos tratados internacionais sobre o direito internoinfraconstitucional10. Tal situação, contudo, não prevaleceu após o julgamentodo RE 80.004-SE, em 1977.

4.2. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO STF

APÓS O RE 80.004-SE, EM 1977 O hodiernamente clássico RE 80.004-SE (Rel. Min. Cunha Peixoto, jul-

gado em 1º/06/1977), foi o leading case que veio modificar o ponto de vista

9 Cf. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A opção do Judiciário brasileiro em face dos conflitos entreTratados Internacionais e Leis Internas. Revista CEJ, Brasília-DF, n. 14, mai./ago. 2001, p. 113.

10 Nesse sentido, conferir: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional: Tratados e DireitosHumanos Fundamentais na Ordem Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001, p. 131.

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anterior do STF. A partir de então, o Excelso Pretório tem adotado o sistemaparitário ou monismo nacionalista moderado, segundo o qual, tratados e con-venções internacionais têm status de lei ordinária. Faz-se mister proceder-se àtranscrição da doutrina de Francisco Rezek sobre o tema11:

“De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se no plenário do Su-premo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004,em que assentada, por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflitoentre o tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontadedo legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela Justiça –sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado, no pla-no internacional.(...).Admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasilgarantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre as leis doCongresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade damais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamentojurídico.” Tratava-se de conflito envolvendo a Lei Uniforme de Genebra sobre Le-

tras de Câmbio e Notas Promissórias, que entrou em vigor com o Decreto nº57.663 de 1966, e uma lei interna posterior, o Decreto-lei nº 427/69. O conflitorelacionava-se à obrigatoriedade ou não de existência do aval aposto na notapromissória – uma exigência formal para a validade do título que não constavano texto internacional. Prevaleceu, ao final do julgamento, o Decreto-lei nº 427/69, valendo-se o STF da regra lex posterior derogat priori12. A partir de en-tão, passou a predominar na Suprema Corte a paridade entre lei interna e trata-do internacional, com a utilização do critério cronológico – i.e., da regra lexposterior derogat priori – para a resolução dos conflitos entre leis internas etratados internacionais.

11 REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva,1996, p. 106-107.

12 Para examinar o extenso inteiro teor do acórdão referido, consultar: BRASIL. Supremo TribunalFederal. Recurso Extraordinário nº 80.004-SE. Pleno. Decisão por maioria. Relator: Min. CunhaPeixoto. Recorrente: Belmiro da Silveira Góes. Recorrido: Sebastião Leão Trindade. Brasília, 1º de junhode 1977. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?SEQ=175365&PROCESSO=80004&CLASSE=RE&cod_classe=437&ORIGEM=IT&RECURSO=0&TIP_JULGAMENTO=M&EMENTA=1083>.Acesso em: 08 dez. 2006.

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O STF continua com esse mesmo entendimento até o momento atual. NaADIn 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (j. em 04/09/1997), que tinha porobjeto a Convenção nº 158 da OIT, o Pleno do STF decidiu que todos ostratados internacionais estão subordinados à CF, que tem irrestrita precedênciahierárquica sobre eles. Há, portanto, uma relação de paridade normativa entre alei ordinária e os tratados. Em eventual conflito entre leis e tratados, deve serutilizado o critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabí-vel, o critério da especialidade (lex specialis derogat generalis).

Outros precedentes interessantes em que o Pleno do STF corroborou aparidade normativa entre leis ordinárias e tratados internacionais são a Ext. 662-2/Peru, julgada em 28/11/1996, e a ADIn 1.347-DF, julgada em 05/09/1995,ambas relatadas pelo Min. Celso de Mello.

Portanto, para o STF, após 1977 e antes da EC nº 45, a posição é de quetodos os tratados (de direitos humanos ou não) seriam recebidos como lei ordi-nária13, posição seguida pelo STJ14.

Por essa razão, entendeu o STF, no HC nº 72.131-RJ e no HC nº 75.306-RJ, que a prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária é constitucio-nal. Nesses julgados, o Pleno do Excelso Pretório entendeu pela constituciona-lidade da prisão referida, uma vez que o Pacto de San José de Costa Rica terianatureza geral em face das normas especiais previstas em lei ordinária sobre aprisão civil do depositário infiel. A propósito, foi a partir desses julgamentos queo STF passou a aceitar a adoção do critério da especialidade (lex specialisderogat generalis) para a resolução dos conflitos entre leis internas e tratadosinternacionais, uma vez que, antes desses julgados, adotava-se apenas o critériocronológico (lex posterior derogat priori). Em suma, a partir do HC nº 72.131-RJ, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que nem todo tratado novorevoga lei anterior que com ele conflite. Exige-se que além de novo, esteja otratado apto a revogar a lei anterior, e isso apenas acontece quando ambas as

13 O entendimento do STF, de que os tratados, uma vez recepcionados, têm status de lei ordinária, é bemdemonstrado na lição de Carlos Mário da Silva Velloso. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O direitointernacional e o Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro-RJ:Renovar, n. 229, p. 5-25, jul./set. 2002.

14 Conforme nos informa Carlos Henrique Gasparoto, que indica como fundamento de sua afirmação osjulgados proferidos pela Terceira Turma do STJ, no REsp 74.376-RJ e no REsp 58.736-MG. Ver GASPA-ROTO, Carlos Henrique. Controle de Constitucionalidade dos Tratados Internacionais. Revista Jurídi-ca da Universidade de Franca, Franca-SP, a. 8, n. 14, 1º semestre 2005.

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espécies normativas sejam gerais ou ambas sejam especiais. É o primado da lexposterior generalis non derogat legi priori speciali, ou seja, a norma de cará-ter especial, mesmo que mais antiga, prevalece sobre a norma de caráter geral.

Necessário esclarecer que o entendimento da paridade é justificado poralguns doutrinadores com base na interpretação do art. 102, inciso III, alínea“b”, em que está disposto que compete ao STF julgar, mediante recurso extra-ordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisãorecorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Nesse senti-do, observe-se o afirmado por Flávia Piovesan e Valério Mazzuoli, cujas liçõestranscrevo a seguir:

“Enfatize-se que, enquanto os demais tratados internacionais têm forçahierárquica infraconstitucional, nos termos do art. 102, III, “b” do texto(que admite o cabimento de recurso extraordinário de decisão que decla-rar a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados em tratadosinternacionais de proteção dos direitos humanos detêm natureza de nor-ma constitucional.”15

“Assim é que, quando a Carta de 1988 diz competir ao STF julgar, medi-ante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última ins-tância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidadede tratado ou lei federal, estaria ela igualando em mesmo grau de hierar-quia os dois diplomas legalmente vigentes.” 16 (grifos no original) Assim, a interpretação destes doutrinadores é no sentido de que a con-

junção alternativa “ou” tornou claro o entendimento de que lei infraconstitucionale tratado internacional de caráter geral encontram-se num mesmo patamar hie-rárquico. Destaco, no entanto, que, enquanto Flávia Piovesan adota tal posicio-namento, Valério Mazzuoli apenas refere ser essa a opinião do STF e de outrosdoutrinadores, com a qual manifesta sua discordância, uma vez que entende queos tratados internacionais têm caráter infraconstitucional, mas supralegal, situan-do-se em um nível hierárquico intermediário, abaixo da Constituição e acima dalegislação infraconstitucional, como veremos adiante.

15 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 46.

16 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A opção do Judiciário brasileiro em face dos conflitos entre TratadosInternacionais e Leis Internas. Revista CEJ, Brasília-DF, n. 14, mai./ago. 2001, p. 114.

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5. CRÍTICAS AO ENTENDIMENTO DO STF A crítica principal à paridade normativa instaurada após o julgamento do

RE 80.004-SE funda-se nas conseqüências danosas que o descumprimento dotratado, com a chancela do STF, traz para o Estado no plano internacional,revelando um desrespeito e desconsideração em relação aos acordos feitosvoluntariamente com os demais Estados-contraentes. Nesse diapasão, trans-crevo a abalizada lição de Flávia Piovesan17:

“Acredita-se que o entendimento firmado a partir do julgamento do Re-curso Extraordinário 80.004 enseja, de fato, um aspecto crítico, que é asua indiferença às conseqüências do descumprimento do tratado no planointernacional, na medida em que autoriza o Estado-parte a violar disposi-tivos da ordem internacional – os quais se comprometeu a cumprir deboa-fé. Esta posição afronta, ademais, o disposto pelo art. 27 da Con-venção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que determina não podero Estado-parte invocar posteriormente disposições de direito interno comojustificativa para o não-cumprimento de tratado. Tal dispositivo reitera aimportância, na esfera internacional, do princípio da boa-fé, pelo qualcabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado, com oqual livremente consentiu. Ora, se o Estado no livre e pleno exercício desua soberania ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seucumprimento. Além disso, o término de um tratado está submetido à dis-ciplina da denúncia, ato unilateral do Estado pelo qual manifesta seu dese-jo de deixar de fazer parte de um tratado. Vale dizer, em face do regimede Direito Internacional, apenas o ato da denúncia implica a retirada doEstado de determinado tratado internacional. Assim, na hipótese de ine-xistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade do Estado naordem internacional.” Ademais, se o Congresso Nacional confere sua aquiescência ao conteú-

do do compromisso firmado, é porque implicitamente reconhece que, se ratifi-cado o acordo, está impedido de editar normas posteriores que o contradigam.É a teoria do venire contra factum proprium non valet, plenamente aplicável

17 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3. ed. São Paulo:Max Limonad, 1997, p. 83-84.

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nessa seara, segundo a qual não se pode ir contra um fato praticado por sipróprio, sob pena de prática de má-fé internacional.

Até porque, como afirma Valério Mazzuoli18: “Seria fácil burlar todo o pactuado internacionalmente se por disposiçõeslegislativas internas fosse possível modificar tais normas. Se um Estado seobriga livremente a cumprir um acordo internacional, como explicar pos-sa ele editar leis contrárias a todo o pactuado? Qual o valor de um tratadose por meio de lei interna se pudesse deixar de aplicá-lo?(...).Aprovando um tratado internacional, o Poder Legislativo se comprometea não editar leis a ele contrárias. Pensar de outra forma seria admitir oabsurdo.” Por fim, cabe acrescer ao tema a lição de Mirtô Fraga, in verbis19: “Afirmar, como muitos, que o Poder Executivo não pode, pela celebra-ção do tratado, limitar a competência e a liberdade do Poder Legislativoseria válido, se ocorresse no século XVIII. (...). A manifestação obrigató-ria do Poder Legislativo sobre os tratados assinados pelo Chefe de Esta-do surgiu, justamente, como resultado da democratização do poder. Naépoca atual, admitir-se possa o Legislativo, por lei, contrariar o tratado,que aprovou, é, em suma, reconhecer o predomínio das Assembléias, emfranca oposição a dispositivo constitucional que declara harmônicos e in-dependentes os Poderes do Estado, se não há, para tanto, expressa auto-rização da Lei Maior.” Assim, após a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional e a sua

ratificação pelo Presidente da República, devem os três Poderes cumprir a par-te que lhes cabe no processo, nomeadamente: ao Legislativo cabe aprovar asleis necessárias à concretização do tratado, abstendo-se de votar as que lhesejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentar os

18 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A opção do Judiciário brasileiro em face dos conflitos entre TratadosInternacionais e Leis Internas. Revista CEJ, Brasília-DF, n. 14, mai./ago. 2001, p. 115.

19 FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno: estudoanalítico da situação do tratado na ordem jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 83-84.

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tratados e cumpri-los no que lhe competir; ao Judiciário, por sua vez, incumbe opapel de aplicar os tratados internamente, bem como as leis e os regulamentosque lhe dão concretude, afastando-se da aplicação de leis nacionais que lhessejam contrários.

Por essas razões, Mazzuoli criou a seguinte posição crítica – com a qualconcordamos – em face do entendimento do STF20:

“os tratados internacionais ratificados pelo Brasil situam-se em um nívelhierárquico intermediário: estão abaixo da Constituição e acima da legis-lação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior,posto não se encontrarem em situação de paridade normativa com asdemais leis nacionais”.

6. REFLEXÕES SOBRE O §3º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Como afirmado adrede, a Reforma do Poder Judiciário incluiu o §3º no

art. 5º da Constituição Federal de 1988, ad litteram: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos queforem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tur-nos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equiva-lentes às emendas constitucionais.” (grifos nossos) Observa-se logo na primeira leitura do dispositivo constitucional referido,

que o processo legislativo nele previsto é idêntico ao processo legislativo dasemendas constitucionais21.

O dispositivo dispõe sobre os tratados e convenções internacionais sobredireitos humanos “que forem aprovados”, referindo-se a um tempo futuro. Ecomo fica a situação dos tratados antigos? Outra questão: é possível aprovar umtratado sobre direitos humanos por um quorum menor do que 3/5 (três quintos)e ter hierarquia de lei ordinária ou é imprescindível a aprovação pelo quorum de

20 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. cit., p. 118.

21 Hudson Luís Viana Bezerra chama atenção para esse fato. BEZERRA, Hudson Luís Viana. Classificaçãodos Tratados e Convenções no Ordenamento Jurídico Brasileiro após a Emenda Constitucional nº 45/2004. Repertório de Jurisprudência IOB, São Paulo-SP, n. 9, v. I, p. 349, 1ª quinzena de mai. 2006.

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3/5? Esses questionamentos estão gerando uma grande polêmica doutrinária,que em breve chegará ao STF. Vejamos.

Alexandre de Moraes22 entende que a Emenda Constitucional nº 45 con-cede ao Congresso, somente na hipótese de tratados e convenções que versemsobre direitos humanos, a possibilidade de incorporação com status ordinário(com base no art. 49, inciso I, da CF) ou com status constitucional (com espe-que no §3º do art. 5º da CF/88), caso se adote, respectivamente, o quorumnormal ou o quorum de emenda constitucional.

Então, para o referido autor, a regra é que os tratados de direitos huma-nos sejam recebidos como atos normativos infraconstitucionais, salvo na hipóte-se de aprovação com o quorum qualificado do art. 5º, §3º, o que, faz-se misterdizer, será uma opção discricionária do Congresso Nacional. É o que se depre-ende de sua lição, a seguir transcrita23:

“As normas previstas nos atos, tratados, convenções ou pactos internaci-onais devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas peloPresidente da República, inclusive quando prevêem normas sobre direi-tos fundamentais, ingressam no ordenamento jurídico como atos norma-tivos infraconstitucionais, salvo na hipótese do §3º, do artigo 5º, peloqual a EC nº 45/04 estabeleceu que os tratados e convenções internacio-nais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa doCongresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos res-pectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.(...).A opção de incorporação de tratados e convenções internacionais sobredireitos humanos, nos termos do art. 49, I, ou do §3º do art. 5º, serádiscricionária do Congresso Nacional”. Esse também é o entendimento de José Levi Mello do Amaral Júnior24.

Inclusive, esse último autor acrescenta que, em função do caráter disjuntivo do

22 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 460.

23 MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 461-462.

24 Cf. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos: comoficam após a Reforma do Poder Judiciário. Revista Jurídica Consulex, Brasília-DF, ano IX, n. 197, p.39, mar. 2005.

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novo dispositivo constitucional, não há que se cogitar em novação automáticada força dos tratados preexistentes. Segundo ele, nada impede que um tratadojá recepcionado antes da EC nº 45 seja novamente deliberado na forma do §3ºdo art. 5º, passando a ter status constitucional. Transcrevo o entendimento su-pra-referido25:

“O §3º do artigo 5º da Constituição de 1988 faculta a recepção dostratados e convenções internacionais sobre direitos humanos por intermé-dio de uma emenda constitucional e não exclui a recepção pelo mecanis-mo tradicional, por meio de um decreto legislativo. Claro: nada impedeque um tratado, já recepcionado quando da Emenda nº 45 (a ela preexis-tente), seja novamente deliberado na forma do §3º do artigo 5º combina-do com o artigo 60, ambos da Constituição de 1988, passando, então, ater status constitucional. Em função do caráter alternativo do novo dis-positivo constitucional, não há que cogitar em novação automática da for-ça dos tratados preexistentes.”

7. O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

Faz-se mister frisar-se que, para o STF, após 1977 e antes da EC nº 45,

a posição é de que todos os tratados (de direitos humanos ou não) são recebi-dos como lei ordinária.

Por esse motivo, o STF entendeu, nos HC’s 72131-RJ, 73.044-SP e75306-RJ, dentre outros, que a prisão civil do depositário infiel em alienaçãofiduciária é constitucional. Nesses julgados, o Pleno do STF entendeu pela cons-titucionalidade da prisão referida, uma vez que o Pacto de San José de CostaRica teria natureza geral em face das normas especiais previstas em lei ordináriasobre a prisão civil do depositário infiel.

Relevante observar-se que o Ministro aposentado Carlos Mário da SilvaVelloso já sustentava que26:

25 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Op. cit., p. 39.

26 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Tratados internacionais na jurisprudência do SupremoTribunal Federal. Seminário “O Direito na era da globalização: tratados internacionais na ordemjurídica”. Palestra proferida em 12.05.2003, em São Paulo-SP, na Universidade Presbiteriana Mackenzie,na Comissão de Relações Internacionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e HarvardLaw School Association do Brasil.

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“No caso de tratar-se de direito e garantia decorrente de Tratado firmadopelo Brasil, a incorporação desse direito e garantia, ao direito interno, dá-se com status constitucional, assim com primazia sobre o direito comum.É o que deflui, claramente, do disposto no mencionado §2º do art. 5º daConstituição da República. O Supremo Tribunal Federal, todavia, nãoacolheu essa tese.” Na verdade, quanto ao Pacto de San José de Costa Rica, há duas cor-

rentes no momento atual: 1) a convenção possui natureza de lei ordinária, umavez que não houve os requisitos de aprovação de emenda constitucional, previs-tos no art. 5º, §3º, da CF, e o pacto é anterior à vigência da EC nº 45; 2) aconvenção possui natureza jurídica de emenda constitucional, pois trata de di-reitos humanos, e a questão do preenchimento do quorum qualificado não érelevante, uma vez que tal processo legislativo inexistia à época da aprovaçãodo pacto. O raciocínio, para essa corrente, deve ser o mesmo que se aplicou aoCTN e à CLT, que foram alçados à condição de leis complementares, mesmosem votação com quorum de lei complementar27. O autor que indica as duascorrentes existentes é Hudson Luís Viana Bezerra, que, no entanto, não se vin-cula a nenhuma das duas28.

O antigo entendimento do STF sobre o Pacto de San José da Costa Ricaestá sendo superado agora na votação do RE 466.343/SP (Rel. Min. CezarPeluso). No recente informativo nº 449 do STF consta que sete Ministros jávotaram pela inconstitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduci-ária. O Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando que“os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuemstatus normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstituci-onal com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação eque, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internaci-onal dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobreDireitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há maisbase legal para a prisão civil do depositário infiel”29. Votaram com o relator os

27 Como será adiante explicado, o voto do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343/SP foi nesse sentido.

28 BEZERRA, Hudson Luís Viana. Op. cit., p. 348.

29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343-SP. Pleno. Relator: Min. CezarPeluso. Brasília, 22 de novembro de 2006. Informativo do STF nº 449. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/noticias/informativos/anteriores/info449.asp>. Acesso em: 09 dez. 2006.

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Ministros Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Bar-bosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, sendo que o processo encontra-se atual-mente com vista ao Min. Celso de Mello.

A propósito, acresça-se que, caso a corte brasileira determine pela inob-servância do conteúdo de tratado internacional, há a possibilidade de a parteinteressada corrigir o imbróglio e reaver seu direito via decisões arbitrais ou decortes internacionais, as quais, segundo interpretação do art. 105, I, alínea “i”,da CF, não demandam homologação por parte do STF ou STJ para a execuçãodas ordens manifestadas.

8. CONCLUSÃO

Por fim, enumeremos as conclusões atingidas no presente trabalho: 1) o RE 80.004-SE (Rel. Min. Cunha Peixoto, julgado em 1º/06/1977),

foi o leading case que veio modificar o ponto de vista anterior doSTF. A partir de então, o Excelso Pretório tem adotado o sistemaparitário ou monismo nacionalista moderado, segundo o qual tratadose convenções internacionais possuem status de lei ordinária, devendoos conflitos entre ambos serem resolvidos através do critério cronoló-gico combinado com o da especialidade (lex posterior generalis nonderogat legi priori speciali), ou seja, a norma de caráter especial,mesmo que mais antiga, prevalece sobre a norma de caráter geral;

2) a crítica principal à paridade normativa instaurada após o julgamentodo RE 80.004-SE funda-se nas conseqüências danosas que o des-cumprimento do tratado, com a chancela do STF, traz para o Estadono plano internacional, revelando um desrespeito e desconsideraçãoem relação aos acordos feitos voluntariamente com os demais Esta-dos-contraentes. Ademais, se o Congresso Nacional confere sua aqui-escência ao conteúdo do compromisso firmado, é porque implicita-mente reconhece que, se ratificado o acordo, está impedido de editarnormas posteriores que o contradigam. É a teoria do venire contrafactum proprium non valet, plenamente aplicável nessa seara, se-gundo a qual não se pode ir contra um fato praticado por si próprio,sob pena de prática de má-fé internacional;

3) o §3º do art. 5º da CF/88 dispõe sobre os tratados e convençõesinternacionais sobre direitos humanos “que forem aprovados”. Discu-

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te-se se é possível aprovar um tratado sobre direitos humanos por umquorum menor do que 3/5 (três quintos) e ter hierarquia de lei ordiná-ria ou é imprescindível a aprovação pelo quorum de 3/5. Essa questãoestá gerando uma grande polêmica doutrinária e já há voto do Min.Gilmar Mendes no RE 466.343-SP (Relator o Min. Cezar Peluso),entendendo que os tratados internacionais de direitos humanos subs-critos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, sejam elesposteriores ou anteriores à EC nº 45/04, como o Pacto de San Joséda Costa Rica, apreciado no indigitado julgado;

4) os tratados internacionais possuem forma própria de revogação, qualseja, a denúncia, não se podendo defender que a legislação interna,pelo critério cronológico ou da especialidade, tem poder para revogarou derrogar tratado internacional.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A CAPACIDADE DO ESTADO-MEMBRO DAFEDERAÇÃO PARA CELEBRAR TRATADOS

INTERNACIONAIS

Luciana Santos Pontes de MirandaProcuradora Estadual

Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Capacidade para cele-brar tratados internacionais; 3. O Estado no cenário jurídico inter-nacional; 4. Federação e princípio da subsidiariedade; 5. A paradi-plomacia como alternativa; 6. A paradiplomacia institucionalizada.6.1. Alemanha; 6.2. Áustria; 6.3. Bélgica; 6.4. Suíça; 6.5. Argentina;7. A paradiplomacia não institucionalizada; 8. A atividade paradi-plomática no Brasil; 9. Conclusão; 10. Referências bibliográficas.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A contingência da noção de sujeito de direito internacional, a revisão do

conceito de soberania e a necessidade de atender aos anseios de comunidadeslocais/regionais em busca de uma posição na sociedade global, tornam insufici-ente a tradicional concentração do exercício das relações internacionais pelosgovernos centrais.

O objetivo do presente trabalho é contribuir para a compreensão dasconexões entre a dimensão federativa do Estado e a atribuição de capacidadepara celebrar tratados internacionais, analisando, em especial, o caso brasileiro.

Para tanto, desenvolver-se-á, primeiramente, um estudo sobre a capaci-dade internacional, com a posterior análise da inserção do Estado como sujeitode direito.

Em seguida, será procedido exame da forma federativa de Estado, e dosproblemas enfrentados pelos Estados-membros e município na efetivação desuas políticas sociais, para então se referir ao fenômeno da paradiplomacia.

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Após breve menção à existência da paradiplomacia institucionalizada, ede alguns Estados em que assim se manifesta, observar-se-á o caráter extra-dogmático do fenômeno em outros países.

Por fim, com observação mais detida de sua ocorrência no Brasil, serãoapresentadas conclusões sobre sua incidência e disciplina.

2. CAPACIDADE PARA CELEBRAR TRATADOS INTERNACIONAIS

Tratado internacional, consoante a lição de Francisco Rezek, “é todo acor-

do formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado aproduzir efeitos jurídicos” 1 (grifou-se).

Nessa linha de pensamento, as partes, em todo tratado, são necessaria-mente pessoas jurídicas de direito internacional público, a saber, os Estadossoberanos (aos quais de equipara a Santa Sé) e as organizações internacionais,conforme a doutrina tradicional2.

Entretanto, deve-se ter em vista que o direito é manifestação da vida so-cial. Desta forma, o Direito Internacional de hoje corresponde a uma determina-da sociedade internacional, que se encontra em constante transformação.

Nesse contexto, Celso de Albuquerque Mello afirma que a noção de su-jeito de direito internacional apresenta uma dimensão histórica, uma sociológicae uma lógico-jurídica3.

Conforme a perspectiva sociológica, inexistem sujeitos de direito a prio-ri, devendo-se sempre observar quais os poderes decisórios na vida internacio-nal em um determinado momento histórico. Assim, sujeitos de direito são asforças sociais realmente influentes e atuantes no cenário internacional.

Por outro lado, sob a dimensão histórica, constata-se a efetiva alteraçãoda composição da sociedade internacional ao longo da história.

Por fim, a dimensão lógico-jurídica se caracteriza pela circunstância deque não pode haver ordem jurídica sem destinatários, uma vez que a normajurídica deve se dirigir sempre a um ente.

1 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9. ed., São Paulo: Saraiva,2002, p. 14.

2 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 17-18.

3 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Vol. I, 15. ed., Rio deJaneiro: Renovar, 2004, p. 346-347.

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Destarte, enquanto em Roma o jus gentium orientava suas normas maisao indivíduo que ao Estado, no período medieval a comunidade política ingressano plano jurídico internacional de forma definitiva.

Na verdade, conforme ressalta Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, aordem internacional européia, entre o final do século XV e as últimas décadasdo século XVIII, foi essencialmente um sistema de poderes monárquicos abso-lutos, tendo o Direito Internacional por sujeitos os reis e não os Estados4.

William Blackstone, em seus Commentaries on the Laws of England(1761), afirmou que:

Também é prerrogativa do Rei fazer tratados, ligas e alianças com Esta-dos e Príncipes estrangeiros. Segundo o Direito das Nações, é essencialpara a excelência de uma liga que ela seja efetuada pelo poder soberano;só então obrigará a comunidade inteira: e, na Inglaterra, o poder sobera-no, quoad hoc, é conferido à pessoa do Rei5. Pode-se afirmar, então, que, até o início da Revolução Francesa, a Euro-

pa era governada por monarcas, que incluíam a condução da política externaentre seus privilégios pessoais. Essa personalização era tão evidenciada, que emalguns casos a vigência dos acordos era condicionada ao tempo de vida dosmonarcas responsáveis por sua celebração.

Neste ponto, oportuno distinguir, como o faz Antônio Paulo Cachapuz deMedeiros6, a capacidade para a celebração dos tratados (treaty-making capa-city), um dos predicados da capacidade internacional, da competência dos po-deres constituídos do Estado para formar e declarar a vontade do Estado deassumir compromissos internacionais (treaty-making power) 7.

4 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados. Competência dos poderesconstituídos para a celebração de tratados, à luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e doDireito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 27.

5 BLACKSTONE, William. Commentaries on the Laws of England apud MEDEIROS, Antônio PauloCachapuz de. Op. Cit., p. 28.

6 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op. Cit., p. 136.

7 Nesse mesmo sentido, cf. José Francisco Rezek (Op. Cit., p. 34-35): “Tanto quanto possível convémevitar o uso da expressão inglesa ‘treaty-making power’, já que não oferece segurança conceitual à alturade sua popularidade, visto que experimentada, às vezes em doutrina, e freqüentemente em linguagemdiplomática, para significar três coisas diversas. Num primeiro extremo, cuida-se da capacidade que têm

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os Estados, e outras personalidades jurídicas de direito das gentes, para convencionar sob o pálio dessemesmo direito: a República do Peru e a Comunidade Econômica Européia ostentam o ‘treaty-makingpower’, não possuído pelas unidades federadas do Arizona ou da Bahia, nem pela Ordem de Malta, nempela United Fruit Corporation; e ficando casos como o da Organização de Libertação da Palestina acritério de cada co-pactuante potencial. No extremo oposto, trata-se da competência que pode revestircerto servidor do Estado para falar externamente em seu nome, comprometendo-o: neste sentido diz-se,por exemplo, que o presidente do conselho de ministros detém o ‘treaty-making power’ independente-mente da apresentação de uma carta de plenos poderes. O emprego correto da expressão há de correspon-der, todavia, a um plano intermediário, primordialmente afeto à ordem jurídica do Estado. A pesquisalógica do ‘treaty-making power’ não consiste, sob este prisma exato, em saber se o objeto de análise é ounão uma personalidade jurídica internacional, hábil para concluir tratados; e menos ainda em determinarquais as pessoas que falam em seu nome nos foros exteriores. Consiste, sim, em investigar o processo deformação da vontade do Estado quando ao comprometimento externo, e tem por domínio, em razãodisso, o seu direito constitucional. O ‘treaty-making power’ é, dessarte, aquela competência que a ordemjurídica própria a cada Estado costuma partilhar entre o governo e o Parlamento. Não é uma competêncianegocial: é o poder de determinar, em definitivo, a disposição do Estado em relação ao compromisso. Esteo sentido do ‘treaty-making power’ nas obras clássicas de Hans Blix e Paul de Vischer, como ainda emO’Connell (p. 219-220) e Rousseau (p. 33 e s.)”.

8 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op. Cit., p. 140.

Durante o Antigo Regime, vigorou a confusão entre as duas noções, de-corrente, sobretudo, da vinculação da idéia de capacidade internacional ao pre-dicado da soberania, e da inserção da competência para celebrar os tratadosdentre os privilégios pessoais do soberano.

Somente com a divulgação da obra de Samuel Von Pufendorf (De JureNaturae et Gentium Libri Octo – 1672), a doutrina passou a qualificar clara-mente a treaty-making capacity.

Destarte, conforme ensina Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, Pufendorf teve o mérito de demonstrar a natureza específica da capacida-de para celebrar tratados, como componente essencial do poder exteriordo Soberano.Seguindo os passos de Hobbes, insistiu Pufendorf na necessidade de umgoverno com dos os poderes soberanos concentrados em torno de umasó autoridade.Entre tais poderes soberanos, inseriu a potestas belli et pacis, idemquefoederum feriendorum (faculdade de fazer a guerra e celebrar a paz,bem como de concluir tratados).Assim, a partir da monumental obra de Pufendorf, os juristas passaram aseparar a faculdade de celebrar tratados (potestas foederum feriendo-rum) da faculdade do Soberano para fazer a guerra e celebrar a paz(potestas belli et pacis)8.

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Assim, não possuindo vontade própria, os Estados, dotados da capaci-dade internacional, manifestam-se por meio de órgãos, investidos, por sua vez,de competência para celebrar tratados ou acordos externos.

A confusão da capacidade e da competência na pessoa do soberano,entretanto, sofreu golpe decisivo com a declaração de independência dos Esta-dos Unidos da América (1776), que proclamou o direito dos povos de disporde si mesmos, substituindo o princípio da legitimidade dinástica pelo da legitimi-dade democrática, com o posterior respaldo da Revolução Francesa (1789)9.

A capacidade para a celebração de tratados passou, destarte, a ser prer-rogativa dos Estados, que consubstanciavam a autoridade suprema em torno daqual se organizava o povo.

Por outro lado, a história registrou, ao longo do tempo, um incremento dopapel monopolizador da figura estatal no mundo jurídico internacional, que “aca-bou por se reduzir, no século XIX, a uma ‘aristocracia de Estados’”, com aexclusão do indivíduo ou outros sujeitos de direito internacional, conforme ano-tou Celso de Albuquerque Mello10

Com efeito, consoante a observação de Celso Lafer, o Tratado de Wes-tfália (1648)

representou a consolidação de uma ordem mundial constituída exclusiva-mente pelos governos de estados soberanos. Estes teriam liberdade ab-soluta para governar um espaço nacional – podendo entrar em acordosvoluntários – tratados – para regular as relações externas e intraconexõesde variados tipos11. Não obstante, conforme acentuado pelo próprio ex-chanceler, verifica-

se a corrosão dos paradigmas da Lógica de Westfália, motivada, precipuamente, pela tensão entre a igualdade na teoria e a de-sigualdade de fato, o que se aprofunda, ainda mais, em razão de dois

9 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op. Cit., p. 190.

10 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op. Cit., p. 347.

11 BARBOSA, Salomão Almeida Barbosa. O poder de celebrar tratados no direito positivo brasilei-ro: a experiência prática do Brasil. Disponível em <http://www.mestrado.uniceub.br/revistamestra-do/pdf/Artigo%20Salomao%20Almeida%20Barbosa.pdf>. Acesso em 08 out. 2006.

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fenômenos que abalam o conceito tradicional de soberania: a necessidadeda cooperação intergovernamental e o transnacionalismo, aqui entendidocomo aquele conjunto de relações que não transitam necessariamente peloscanais diplomáticos do Estado, mas que têm o poder de influir nas socie-dades (cf. LAFER, 1982, p. 71-83)12

Assim, a sociedade internacional se deparou, especialmente a partir das

primeiras décadas do século XX, com uma nova modalidade de sujeito de direi-tos e obrigações: as organizações internacionais13.

Nesse contexto, a sociedade internacional do século XX foi marcada poruma profunda transformação, com a redução do domínio reservado aos Esta-dos, o retorno do homem ao cenário internacional como destinatário de direitose deveres, e, sobretudo, o fortalecimento das organizações internacionais, queassumem o papel de um dos principais e mais atuantes sujeitos no cenário jurídi-co internacional.

Oportuno transcrever, neste ponto, a análise de Francisco Rezek, in ver-bis:

Sujeitos de direito internacional público – ou pessoas jurídicas de direitointernacional público – são os Estados soberanos (aos quais se equipara,por razões singulares, a Santa Sé) e as organizações internacionais. Aínão vai uma verdade eterna, senão uma dedução segura daquilo que nosmostra a cena internacional contemporânea. Não faz muito tempo, essaqualidade era própria dos Estados, e deles exclusiva. Hoje, é certo que

12 BARBOSA, Salomão Almeida Barbosa. Op. Cit.

13 Conforme observa Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros (Op. Cit., p. 190), “hoje, está assentado queas organizações possuem personalidade internacional e, portanto, capacidade para celebrar tratados, masessa capacidade é limitada pelos propósitos e funções das próprias organizações, previstas em seusrespectivos tratados constitutivos, ou nas decisões de seus órgãos, uma vez que os referidos tratados nãopodem tudo prever.Evidentemente, a capacidade para celebrar tratados das organizações e dos Estados não tem a mesmaamplitude.Os Estados, sujeitos primordiais do Direito Internacional, podem celebrar tratados de toda a índole,enquanto as organizações só podem celebrar aqueles tratados que forem necessários para a consecução dassuas finalidades específicas.As diferenças entre a capacidade dos Estados e a das organizações internacionais ficam evidenciadas atépela elaboração recente, sob a égide da ONU, de suas convenções distintas sobre o Direito dos Tratados:a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (só se aplica aos tratados entreEstados); e a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internaci-onais ou entre Organizações Internacionais, de 21 de maio de 1986”.

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outras entidades, carentes de base territorial e de dimensão demográfica,ostentam também a personalidade jurídica de direito das gentes, porquehabilitadas à titularidade de direitos e deveres internacionais, numa rela-ção imediata e direta com aquele corpo de normas. A era das organiza-ções internacionais trouxe à mente dos cultores dessa disciplina uma re-flexão já experimentada noutras áreas: os sujeitos de direito, num deter-minado sistema jurídico, não precisam ser idênticos quanto à natureza ouàs potencialidades14. Assim, constatou-se a existência de certos problemas cuja solução não se

efetivaria somente com a atuação do Estado, demandando auxílio de outrosatores da sociedade internacional. Por esta razão, conforme observa Celso deAlbuquerque Mello15, a época atual caracteriza-se pelo associacionismo in-ternacional, que se manifesta não apenas com a criação de organizações inter-governamentais, mas igualmente com a formação de entidades não-governa-mentais, falando-se, inclusive, no surgimento de uma paradiplomacia.

3. O ESTADO NO CENÁRIO JURÍDICO INTERNACIONAL

Cabe indagar, neste ponto, que Estado pode ser considerado sujeito de

direito internacional.A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de

1969, em seu art. 6 º, prescreve que “todo Estado tem capacidade para concluirtratados”.

Ora, afirma-se ser originária a personalidade jurídica do Estado no direitointernacional, e derivada a das organizações internacionais. Com efeito, confor-me observa José Francisco Rezek, além de sua precedência histórica, o Estadoé “uma realidade física, um espaço territorial sobre o qual vive uma comunidadede indivíduos”16. A organização internacional, por sua vez, não possui essa dupladimensão material, caracterizando-se como uma formação decorrente da von-tade conjugada dos Estados que a compõem.

14 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 145

15 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op. Cit., p. 53.

16 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 145.

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Não obstante, os elementos território, população e governo são insufici-entes para identificar o Estado enquanto pessoa jurídica de Direito Internacio-nal, uma vez que sua presença pode ser verificada em outras circunscriçõesadministrativas (províncias, municípios etc.). Exige-se, pois, a soberania, conso-ante o ensinamento de José Francisco Rezek:

Identificamos o Estado quando o seu governo – ao contrário do que su-cede com o de tais circunscrições – não se subordina a qualquer autori-dade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhumpoder maior de que dependam a definição e o exercício de suas compe-tências, e só se põe de acordo com seus homólogos na construção daordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partirda premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordena-ção no interesse coletivo. Atributo fundamental do Estado, a soberania ofaz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordemjurídica internacional, não são ilimitadas; mas nenhuma outra entidade aspossui superiores17. Ressalte-se, por oportuno, que atualmente a soberania não deve ser en-

tendida em sentido absoluto, como ausência de subordinação a qualquer outraesfera de poder. Assim, o Estado soberano não é aquele que detém poder in-condicionado, mas sim o que se encontra subordinado direta e imediatamente àordem jurídica internacional.

Os Estados soberanos, quanto à sua estrutura, podem ser classificadosem simples ou compostos18. Os Estados simples constituem um todo homogê-neo e indivisível, sem divisão de autonomias no tocante às relações internas.

De outro lado, colocam-se os Estados compostos por coordenação oupor subordinação. No primeiro grupo se enquadram os constituídos pela asso-ciação de Estados soberanos ou pela associação de unidades estatais que, empé de igualdade, conservam apenas uma autonomia de ordem interna, restandoo poder soberano investido em um órgão central, como é o caso da união pes-soal, da união real, da confederação e da união federal.

17 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 216.

18 SILVA, G. E. Nascimento e & ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público.14. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 70-74.

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Na segunda categoria, hoje inexistente, inseriam-se as uniões de Estadosem que os integrantes não se achavam em pé de igualdade, não apresentavamplena autonomia, ou se achavam despidos do gozo de determinados direitos,conferidos a outros. Era o caso dos Estados vassalos, protetorados ou clientes.

Conforme visto anteriormente, o Estado é dotado de soberania quandoinexiste qualquer ente interposto em sua relação com a ordem jurídica internaci-onal. Sob essa perspectiva, os chamados Estados-membros das federações ouconfederações não podem ser considerados soberanos, uma vez que se encon-tram subordinados a uma ordem central.

Desta forma, gozam os Estados-membros (e no caso do Brasil, os Muni-cípios) de autonomia, consubstanciada no poder de autodeterminação, exerci-do de forma independente, porém dentro das limitações impostas por lei estatalsuperior.

Ora, seguindo a concepção tradicional acerca da capacidade para cele-brar tratados internacionais, aos Estados e Municípios, carentes de soberania,seria negado o jus tractuum, atribuído somente à unidade consubstanciada noEstado soberano, representado, no cenário internacional, pela União19. Tal ne-gativa, entretanto, é destituída de fundamento, conforme será visto a seguir.

4. FEDERAÇÃO E PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

Com o advento do Estado social, fortaleceu-se a assunção de atividades

econômicas e sociais pela Administração. O Estado intervencionista se empe-nhou no controle do processo produtivo, visando à distribuição dos bens soci-ais. Tal postura, todavia, mostrou-se ineficiente após algum tempo.

Com efeito, o Estado, diante da escassez de recursos e da diversidade deinteresses da população, enfrenta sérias dificuldades para alcançar o bem-estarsocial, sobretudo em razão do fortalecimento de uma estrutura de poder centra-lizada, burocratizada e hierarquizada.

Tais falhas acabam por gerar espaço para a atuação de outros entes (or-ganizações não-governamentais, entidades religiosas, associações comunitárias,

19 Ressalte-se, por oportuno, como o fez Carlos Alberto Simões de Tomaz, que a União não é soberana. Naverdade, a soberania é atributo do Estado federal, podendo-se tributar esse equívoco ao fato de que, nasfederações, está resguardada à União (governo central) a competência internacional, como o fez aConstituição Brasileira, em seu art. 21, incisos I a IV (TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Alopoiese dasrelações internacionais. Validação de procedimentos extradogmáticos em decorrência de novos para-digmas nas concepções de Direito e de Soberania. Disponível em http://www.mestrado.uniceub.br/pdf/CarlosAlbertoSimoes DissertacaoFinal.pdf#search=%22legitimidade%20celebra%C3%A7%C3%A3o%20%22tratados%20internacionais%22%22. Acesso em 08 out. 2006, p. 79-80).

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empresas, organizações da sociedade civil etc.), mais próximos e, por isso, maisidentificados com as necessidades locais e regionais.

Fala-se, então, em um princípio da subsidiariedade, assim referido porCarlos Alberto Simões de Tomaz:

É sob o influxo desse novo eixo que começa a formulação teórica doprincípio da subsidiariedade.(...)Obviamente, o florescimento do princípio da subsidiariedade pressupõeum espaço público alçado no pluralismo político, onde o Estado passa adensificar, coordenar e viabilizar os interesses dos variados segmentos.Isso significa que o Estado transforma-se em propulsor de uma liberda-de-participação contrafática da antiga liberdade-autonomia do liberalis-mo, o que adquire conotação sob o influxo da versão democrática.(...)Nessa linha, a expansão do poder ascendente, sem dúvida, processa-seem maior extensão numa federação, onde deixando o poder político maispróximo da realidade local, enseja tomada de decisão com maior rapidez,além de erigida, sem dúvida, num maior conhecimento da situação20. Destarte, o mencionado princípio consubstancia não só a transferência de

atividades do Estado para a sociedade civil, mas também do governo centralpara a administração pública local/regional, consoante ressaltou Fabrizio GrandiMonteiro de Tancredo:

O conteúdo essencial do princípio está em que uma entidade superior nãodeverá realizar os interesses da coletividade quando ela tiver meios desupri-los, por si mesma, de maneira mais eficaz. E, numa perspectiva po-sitiva, que a subsidiariedade apenas autorizará o ente maior a atuar nasmatérias que não possam ser assumidas de maneira mais adequada pelosgrupos sociais menores.A subsidiariedade traz em si a idéia de supremacia da sociedade (10)sobre o Estado, tomando-se como referência um poder público situadono topo do processo decisório. A esse último, na distribuição política esocial das Competências, caberá a missão de encorajar, estimular, co-

20 TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Op. Cit., p. 81-83.

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ordenar e, somente em último caso, substituir a ação dos indivíduos e dosgrupos21.

5. A PARADIPLOMACIA COMO ALTERNATIVA Nesse contexto, insere-se a paradiplomacia como uma das práticas alter-

nativas que permitem uma releitura do Estado, objetivando promover melhorinteração entre a esfera de poder central e o regional/local, bem como umamaior efetivação das políticas sociais.

Sob essa perspectiva, a paradiplomacia (diplomacia não central, relaçõesinternacionais de entes sub-estatais ou diplomacia paralela) consiste no irrompi-mento de relações internacionais por governos locais ou regionais, que buscamimplementar de forma mais efetiva suas políticas sociais, diante da impotênciados governos centrais22, constituindo, como ressalta Carlos Alberto Simões deTomaz, em uma “opção para a resistência diplomática”23.

A expressão, noticia José Vicente da Silva Lessa24, “foi trazida ao centrodo debate acadêmico pelo basco Panayotis Soldatos para designar a atividadediplomática desenvolvida entre entidades políticas não-centrais situadas em di-ferentes Estados”.

Tradicionalmente, o exercício das relações internacionais se restringia aosgovernos centrais. Entretanto, a partir das últimas duas décadas do século XX,

21 TANCREDO, Fabrizio Grandi Monteiro de. O princípio da subsidiariedade: as origens e algumas mani-festações. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. 46, n. 1, 2005,Disponível em <http://gi.fd.ul.pt/biblioteca/revista_fdl/XLVI-1-P.%20169%20a%20214.pdf>. Acesso em28 jan. 2007, p. 172.

22 Carlos Alberto Simões de Tomaz (Op. Cit., p. 12) se refere, inclusive, a uma paradiplomacia judiciária,que consistiria na “possibilidade de relacionamento visando à prática de atos processuais entre órgãosjudiciários locais sem o crivo do órgão judiciário central e sem intermediação da Chancelaria do Estado”.

23 Segundo esse autor, “(...) o implemento do princípio da subsidiariedade tornou-se pedra angular para ainstitucionalização da paradiplomacia e nas federações modernas tem invertido a tendência antidemocrá-tica da ordenação do poder do vértice para a base, permitindo se divisar um novo paradigma na concepçãodo Estado federal quando, a par do contorno constitucional tradicionalmente delineado na esfera dacompetência internacional, propugna pela possibilidade de governos não-centrais irromperem relaçõesinternacionais ao escopo de implementar suas políticas públicas suprimindo a escassez de disponibilidadefinanceira , o que, observe-se, não se perfaz apenas mediante financiamentos externos, mas igualmentepor meio de acordos de cooperação científica e cultural, de troca de experiências, de aperfeiçoamento derecursos humanos, entre outros” (Op. Cit., p. 84).

24 LESSA, José Vicente da Silva. A Paradiplomacia e os Aspectos Legais dos Compromissos InternacionaisCelebrados por Governos Não-Centrais. In: XLIV Cursos de Altos Estudos. Brasília: Ministério dasRelações Exteriores (Instituto Rio Branco), 2002 apud TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Op. Cit., p. 77

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os governos locais ou regionais iniciaram uma série de contatos com outrosgovernos não centrais, e inclusive com governos soberanos de outros Estados.A prática se fortaleceu, sobretudo, na região Basca (Espanha) e na Baviera(Alemanha), difundindo-se, então, para o resto do mundo.

O fenômeno, entretanto, não é tão recente. Segundo dados do Institutode Ciencias Políticas, Sociales y Económicas para el Desarrollo Bonaeren-se – INDEB25, dentre as regiões de maior êxito na cooperação binacional, des-taca-se o Distrito de Steinfurt, região fronteiriça entre Alemanha e Holanda, emque a celebração de tratados ocorre há mais de quarenta anos, oriunda da ne-cessidade de integrar as regiões naturais que se encontravam isoladas por limitesnacionais, e visando à flexibilização dos acordos referentes ao mercado de açoe carvão.

Conforme noticia José Francisco Rezek26, em razão de situações dessetipo, a Comissão do Direito Internacional havia projetado, para a conferênciade Viena sobre o direito dos tratados, um dispositivo assim concebido: “Estadosmembros de uma união federal podem possuir capacidade para concluir trata-dos se tal capacidade for admitida pela constituição federal, e dentro dos limitesnela indicados”.

Não obstante, o referido texto, que seria o §2º do art. 5º, foi afastado nasessão de 1969, após debates que evidenciaram certa indiferença dos Estadosunitários acerca da questão. Com efeito, à exceção do grupo soviético, as de-mais federações (aí incluídas a Alemanha e a Suíça) contestaram a conveniênciade que a Convenção exprimisse semelhante norma.

Colacione-se, por oportuno, trecho do pronunciamento emitido na oca-sião pelo Embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, então represen-tante da delegação brasileira, para quem era como Estados a título pleno, e nãocomo estados-membros, que as repúblicas socialistas soviéticas da Ucrânia eda Bielo-Rússia vinham exercitando o relacionamento internacional, afigurando-se

“inconcebível que um país que já havia assinado a Carta das NaçõesUnidas, e participava de conferências internacionais em pé de igualdade

25 Instituto de Ciencias Políticas y Sociales para el Desarrollo Bonaerense. Investigaciones. Los nuevosejes de la discusión regional. Disponível em <http://www.indeb.com.ar/investigacion01b.htm>, Acesso em17 jan. 2007.

26 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 225.

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com os demais Estados, pudesse ser considerado como componente deuma união federal (...) com direitos limitados. Províncias ou unidades deuma união federal não podem ser membros de organizações internacio-nais ou assinar tratados”27. Tal conclusão, entretanto, não constituiu óbice ao exercício da paradiplo-

macia, conforme será visto a seguir.

6. A PARADIPLOMACIA INSTITUCIONALIZADA Atentos às circunstâncias antes referidas, alguns Estados já consagraram

em suas constituições a possibilidade de celebração de tratados por governosnão centrais, a exemplo da Alemanha, Áustria, Bélgica, Suíça e Argentina.

6.1. ALEMANHA

A Constituição alemã, em seu art. 32, disciplina as relações internacio-

nais, prescrevendo que: Artigo 32 [Relações internacionais](1) As relações com os Estados estrangeiros devem ser conduzidas pelaFederação.(2) Antes da conclusão de um tratado que afete particularmente um Esta-do, esse deve ser consultado com a devida antecedência.(3) No âmbito de sua competência legislativa, os Estados federados po-dem, com o consentimento do Governo Federal, concluir acordos comEstados estrangeiros28. Assim, os Estados federados podem, mediante autorização do governo

central, celebrar tratados internacionais, no âmbito de sua competência legislati-

27 REZEK, José Francisco. Op. Cit., p. 225-226.

28 “Article 32 [Foreign relations](1) Relations with foreign states shall be conducted by the Federation.(2) Before the conclusion of a treaty affecting the special circumstances of a Land, that Land shall beconsulted in timely fashion.(3) Insofar as the Länder have power to legislate, they may conclude treaties with foreign states with theconsent of the Federal Government” (Disponível em http://www.legislationline.org/upload/legislations/1f/42/bc2d658ded2190a1e81ae196eda7.pdf. Acesso em 27 jan. 2007).

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va. Ademais, ressalte-se a exigência de consulta prévia ao Estado-membro quandoa matéria possa lhe afetar.

Sob o manto dessa moldura normativa, os länder alemães têm desenvol-vido intensa atividade paradiplomática.

Com efeito, conforme ressalta Klaus Dirscherl29, o Estado Livre da Ba-vária foi o primeiro a sinalizar a necessidade de incorporar o princípio da subsi-diariedade na base da construção da Comunidade Européia. Assim, por inicia-tiva bávara, o referido princípio foi adotado na Declaração de Munique da Con-ferência Ministerial de outubro de 1987, sendo conhecidas, ademais, as listas deesferas de competência das instituições centrais da Comunidade que a Baváriapropõe sejam limitadas.

A Bavária também iniciou a Conferência sobre “a Europa das Regiões”de 1989, que abriu caminho para a criação do Comitê das Regiões no Tratadode Maastricht, com a exigência da presença necessária das regiões nos órgãosde decisão quando se tratasse de assuntos de seu interesse.

Para o referido autor, o desenvolvimento das novas tecnologias na Bavá-ria prova o que o federalismo pode alcançar ao deixar que o poder político maispróximo às realidades regionais tome decisões com rapidez e conhecimento dasituação. Com efeito, a Bavária, que tinha uma economia de tradição agropecu-ária secular, transformou-se em algumas décadas em um dos länder pioneirosem alta tecnologia, referindo-se a essa região, inclusive, como um “Vale do Silí-cio” europeu. Além da menor taxa de desemprego na Alemanha, apresenta,depois de Berlim, os mais altos preços no mercado imobiliário e índices de custode vida.

Tal não significa, entretanto, que os outros länder não se façam notar narepresentação de seus interesses, como é o caso do Baden-Würtemberg ou daRenânia do Norte-Palatinado.

6.2. ÁUSTRIA

Por outro lado, a Constituição da Áustria, em seu art. 16, dispõe que: Art. 16. (1) Nas matérias compreendidas no seu âmbito de atividade au-tônoma, os Estados podem celebrar tratados internacionais com Estadoslimítrofes da Áustria ou com partes dos referidos Estados.(2) O Governador do Estado deve informar o Governo Federal, antes de

29 DIRSCHERL, Klaus. A paradiplomacia de Bavaria. In Tempo Exterior, n. 3, segunda época, jul.-dez.,2001, Disponível em <http://www.igadi.org/index.html>, Acesso em 17 jan. 2007.

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iniciadas as negociações, sobre os referidos tratados internacionais. Aaprovação do Governo Federal deve ser obtida pelo Governador do Es-tado antes de sua conclusão. Considera-se concedida a aprovação se oGoverno Federal não se manifestar em oito semanas, contadas a partir dodia em que o requerimento foi recebido pela Chancelaria Federal. A auto-rização para o início das negociações e conclusão do tratado compete aoPresidente da República, após recomendação do Governo do Estado ecom a assinatura do Governador.(3) Os tratados concluídos por um Estado em conformidade com o §1ºserão denunciados mediante requerimento do Governo Federal. Se oEstado não cumprir essa obrigação, a competência acerca da matéria étransferida para a Federação.(4) Os Estados estão obrigados a adotar as medidas que, dentre de suaesfera autônoma de competência, sejam necessárias para a implementa-ção dos tratados internacionais; caso o Estado falhe no cumprimento des-sa obrigação, a competência para a matéria, inclusive para a edição dalegislação necessária, transfere-se para a Federação. As medidas toma-das pela Federação em atendimento a esse dispositivo, em especial leisou regulamentos, perdem a vigência assim que o Estado realizar a açãorequisitada30.

30 “Art. 16.(1) In matters within their own sphere of competence the Laender can conclude treaties with states, ortheir constituent states, bordering on Austria.(2) The Governor must inform the Federal Government before the initiation of negotiations about sucha treaty. The Federal Government’s approval must be obtained by the Governor before their conclusion.The approval is deemed to have been given if the Federal Government has not within eight weeks fromthe day that the request for approval has reached the Federal Chancellery told the Governor thatapproval is withheld. The authorization to initiate negotiations and to conclude the treaty is incumbenton the Federal President after the recommendation of the Land Government and with the countersigna-ture of the Governor.(3) Treaties concluded by a Land in accordance with para. 1 above shall be revoked upon request by theFederal Government. If a Land does not duly comply with this obligation, competence in the matterpasses to the Federation.(4) The Laender are bound to take measures which within their autonomous sphere of competencebecome necessary for the implementation of international treaties; should a Land fail to comply punc-tually with this obligation, competence for such measures, in particular too for the issue of the necessarylaws, passes to the Federation. A measure taken by the Federation pursuant to this provision, in particularthe issue of such a law or the issue of such an ordinance, becomes invalid as soon as the Land has takenthe requisite action.(5) In the same way the Federation is in the case of implementation of international treaties entitled tosupervision also in such matters as belong to the Laender’s own sphere of competence. The powers vestedin the Federation as against the Laender are in this instance the same as in matters pertaining to indirectFederal administration (Art. 102)” (Disponível em http://www.legislationline.org/upload/legislations/7d/0e/9533b7bfafda8e640a82346ab246.pdf, Acesso em 27 jan. 2007).

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Ressalte-se, primeiramente, que a Constituição austríaca limitou as rela-ções internacionais dos Estados-membros à chamada paradiplomacia transfron-teiriça. Exige-se, ademais, autorização (expressa ou tácita) do governo central,que pode requerer aos Estados a denúncia dos tratados.

Por fim, destaque-se que, em caso de omissão dos Estados na execuçãodos tratados, cabe ao governo central implementar as medidas necessárias paratanto, podendo, inclusive, editar legislação que tenha por objeto matéria de com-petência estadual.

6.3. BÉLGICA

A Constituição da Bélgica igualmente se preocupou com a institucionali-

zação da paradiplomacia, conforme previsão de seu art. 167: Art. 167§ 1. O Rei dirige as relações internacionais, sem prejuízo da competênciadas Comunidades e das Regiões para a cooperação internacional, inclu-indo a assinatura de tratados, para aqueles assuntos que sejam da suacompetência, de acordo com a Constituição ou em virtude desta.(...)§ 3. Os Governos de Comunidades e Regiões enunciados no Artigo 121concluem, nas matérias a eles concernentes, tratados sobre questões queestejam dentre as responsabilidades de suas Câmaras.§ 4. Lei aprovada pelo voto majoritário previsto no Artigo 4, último pará-grafo, especifica a forma de conclusão dos tratados enunciados no § 3, esobre os tratados que não se referem, exclusivamente, a matérias da com-petência das Comunidades e Regiões, segundo a Constituição ou em vir-tude da mesma31.

31 “Art. 167§ 1. The King manages international relations, without prejudice to the ability of communities andregions to engage in international co-operation, including the signature of treaties, for those matterswithin their responsibilities as established by the Constitution and in virtue thereof.The King commands the armed forces, and determines the state of war and the cessation of hostilities. Henotifies the Chambers as soon as State interests and security permit and he adds those messages deemedappropriate. Territorial transfers, exchanges, and additions may take place only by virtue of a law.§ 2. The King concludes treaties, with the exception of those described in § 3. These treaties may takeeffect only following approval of the Chambers.

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Constata-se, assim, que além do governo central, os demais entes federa-

dos podem celebrar tratados cujo objeto se situe dentre as matérias de suacompetência.

Carlos Alberto Simões de Tomaz vincula essa institucionalização da para-diplomacia ao caráter multinacional do Estado belga:

Efetivamente, existem na Bélgica três grandes comunidades: a comunida-de francesa, a comunidade flamenga e a comunidade germânica. O sin-cretismo destas três comunidades é o elemento caracterizador do Estadobelga e, por isso, no estabelecimento do pacto federativo não poderia serquestão olvidada. E assim o foi até mesmo em defesa do princípio unitárioem nome da existência e manutenção da própria federação.

6.4. SUÍÇA

A Constituição da Suíça, em seu art. 54, dispõe que as relações internaci-

onais são matéria de competência federal (§1º), porém estabelece a obrigaçãode considerar os poderes dos Cantões, e de proteger seus interesses (§3º)32.

O art. 56, por sua vez, trata especificamente da possibilidade de estabe-lecimento de relações entre os Cantões e os países estrangeiros:

§ 3. Those Community and Regional Governments described in Article 121 conclude, in matters thatconcern them, treaties regarding matters that are in the scope of the responsibilities of their Councils.These treaties may take effect only following approval by the Council.§ 4. A law adopted by majority vote as described in Article 4, last paragraph, specifies the terms forconclusion of treaties described in § 3, and for those treaties not exclusively concerned with issues withinthe competence of regions or communities or by virtue of the Constitution.§ 5. The King may denounce treaties concluded before May 18th, 1993 and covering matters describedin § 3, of common accord with those community or regional governments concerned.The King denounces these treaties if the community or regional governments concerned invite him to doso. A law adopted by majority vote as described in Article 4, last paragraph, establishes the procedure inthe event of disagreement between the community or regional governments concerned” (Disponível emhttp://www.fed-parl.be/gwuk0012.htm#E11E12. Acesso em 27 jan. 2007).

32 “Art. 54 Foreign Relations1 Foreign Relations are a federal matter.2 The Confederation shall strive to preserve the independence of Switzerland and its welfare; it shall, inparticular, contribute to alleviate need and poverty in the world, and to promote respect for humanrights, democracy, the peaceful coexistence of nations, and the preservation of natural resources.3 It shall take into consideration the powers of the Cantons, and shall protect their interests” (Disponívelem http://www.legislationline.org/upload/legislations/3a/be/06208f224b343c06d51d5c4d887a.pdf. Acessoem 27.jan. 2007)

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Art. 56 Relações entre os Cantões e os Países Estrangeiros1 Os Cantões podem celebrar tratados com países estrangeiros no âmbi-to de seus poderes.2 Esses tratados não devem contrariar a lei ou os interesses da Confede-ração, nem as leis de outros Cantões. Antes da conclusão do tratado, osCantões devem informar a Confederação.3 Os Cantões podem negociar diretamente com autoridades estrangeirasde hierarquia inferior; nos demais casos, as relações dos Cantões com ospaíses estrangeiros serão conduzidas pela Confederação em favor da-queles33. Registre-se, outrossim, que a Constituição suíça, além de prever a cele-

bração de tratados pelos Cantões, disciplina sua participação e manifestaçãonas negociações de acordos que afetem seus interesses, ainda que não constitu-am matéria de sua competência:

Art. 55 Participação dos Cantões em Decisões de Política Internacional1. Os Cantões participarão dos preparativos de decisões de política es-trangeira que afetem seus poderes ou interesses essenciais.2. A Confederação informará os Cantões tempestiva e integralmente, con-sultando-os.3. A posição dos Cantões terá peso especial quando seus poderes foremafetados. Nesses casos, os Cantões participarão das negociações inter-nacionais de forma apropriada34.

33 “Art. 56 Relations between the Cantons and Foreign Countries1 The Cantons may conclude treaties with foreign countries within the scope of their powers.2 These treaties may not be contrary to the law nor to the interests of the Confederation nor to the lawsof other Cantons. Before concluding a treaty, the Cantons must inform the Confederation.3 The Cantons may deal directly with lower ranking foreign authorities; in other cases, the relations ofthe Cantons with foreign countries shall be conducted by the Confederation acting on their behalf”(Disponível em http://www.legislationline.org/upload/legislations/3a/be/06208f224b343c06d51d5c4d887a.pdf. Acesso em 27.jan. 2007)

34 “Art. 55 Participation of the Cantons in Decisions of Foreign Policy1 The Cantons shall participate in the preparation of decisions of foreign policy which concern theirpowers or their essential interests.2 The Confederation shall inform the Cantons timely and fully, and consult them.3 The position of the Cantons shall have particular weight when their powers are concerned. In thesecases, the Cantons shall participate in international negotiations as appropriate” (Disponível em <http://www.legislationline.org/upload/legislations/3a/be/06208f224b343c06d51d5c4d887a.pdf>. Acesso em27.jan. 2007)

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Constata-se, assim, que à semelhança da Constituição alemã, o texto cons-titucional suíço consagrou a subsidiariedade como princípio informativo da fe-deração, afastando qualquer tendência centralizadora e burocratizante, de modoa abrir espaço para a expressão democrática da vontade local na condução dapolítica externa.

6.5. ARGENTINA

Oportuno colacionar, por fim, a disciplina da Constituição da Argentina

acerca da celebração de relações internacionais por governos regionais: Artículo 124.- Las provincias podrán crear regiones para el desarrolloeconómico y social y establecer órganos con facultades para el cumplimi-ento de sus fines y podrán también celebrar convenios internaciona-les en tanto no sean incompatibles con la política exterior de laNación y no afecten las facultades delegadas al Gobierno Federalo el crédito público de la Nación; con conocimiento del Congreso Na-cional. La Ciudad de Buenos Aires tendrá el régimen que se establezca atal efecto.Corresponde a las provincias el dominio originario de los recursos natura-les existentes en su territorio.Artículo 125.- Las provincias pueden celebrar tratados parcialespara fines de administración de justicia, de intereses económicos ytrabajos de utilidad común, con conocimiento del Congreso Fede-ral; y promover su industria, la inmigración, la construcción de fer-rocarriles y canales navegables, la colonización de tierras de pro-piedad provincial, la introducción y establecimiento de nuevas in-dustrias, la importación de capitales extranjeros y la exploraciónde sus ríos, por leyes protectoras de estos fines, y con recursospropios.Las provincias y la Ciudad de Buenos Aires pueden conservar organis-mos de seguridad social para los empleados públicos y los profesionales;y promover el progreso económico, el desarrollo humano, la generaciónde empleo, la educación, la ciencia, el conocimiento y la cultura.Artículo 126.- Las provincias no ejercen el poder delegado a la Na-ción. No pueden celebrar tratados parciales de carácter político; niexpedir leyes sobre comercio, o navegación interior o exterior; ni estable-

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cer aduanas provinciales; ni acuñar moneda; ni establecer bancos confacultad de emitir billetes, sin autorización del Congreso Federal; ni dictarlos códigos Civil, Comercial, Penal y de Minería, después de que el Con-greso los haya sancionado; ni dictar especialmente leyes sobre ciudadaníay naturalización, bancarrotas, falsificación de moneda o documentos delestado; ni establecer derechos de tonelaje; ni armar buques de guerra olevantar ejércitos, salvo en el caso de invasión exterior o de un peligro taninminente que no admita dilación dando luego cuenta al Gobierno Fede-ral; ni nombrar o recibir agentes extranjeros35.- grifou-se - A Constituição argentina segue a linha das constituições européias acima

referidas, condicionando, porém, a celebração dos tratados à ciência do parla-mento e à inexistência de imposição de gravame ao crédito público da Nação.

7. A PARADIPLOMACIA NÃO INSTITUCIONALIZADA

Saliente-se, entretanto, que o exercício da paradiplomacia não se limita

aos Estados em que, a exemplo dos acima estudados, permitem-na expressa-mente. Com efeito, em diversas hipóteses, os governos locais/regionais agem àrevelia de autorização constitucional ou legal, falando-se, então, em uma paradi-plomacia não-institucionalizada.

Ressalte-se, primeiramente, o caso dos Estados unitários, nos quais, adespeito da impossibilidade de existência de previsão autorizativa, inerente ànatureza dessa forma de Estado (unicidade do núcleo de decisão jurídico-polí-tica), pode-se verificar a prática da diplomacia paralela.

Destarte, conforme salienta Carlos Alberto Simões de Tomaz36, nessamodalidade de Estado, a ausência de auto-governo “sufoca uma latente vontadedecisória a nível local”, que se apresenta mais evidenciada quanto maior a forçada unidade de vínculos (cultural, econômico, financeiro, turístico) que se mani-festam na comunidade local. E “(...) a não satisfação integral dos interesses mes-clados nesses vínculos pelo poder centralizado dá ensejo a uma atuação local àmargem desse poder, abrindo espaço, assim, para a atividade paradiplomáticapor províncias ou departamentos que sequer gozam de autonomia”.

35 Disponível em <http://www.direito.adv.br/constitu.htm>. Acesso em 27 jan. 2007.

36 TOMAZ, Carlos Alberto da Silva. Op. Cit., p. 97.

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Nesse contexto, José Vicente da Silva Lessa37 indica a atividade desen-volvida pelas regiões fronteiriças da França com as congêneres da Suíça, assimcomo pelas autoridades locais e provinciais do Japão, sob forte estímulo dogoverno japonês, resultando inclusive na criação do Council of Local Authori-ties for Internactional Relations (CLAIR), com sede em Tóquio, de agênciasregionais nas principais cidades japonesas e de escritórios espalhados pelo mun-do.

No que pertine à paradiplomacia nos Estados federados, impende desta-car, dentre outros, os Estados Unidos, o Canadá, a Espanha, a Itália e o Brasil.

Conforme levantamento de José Vicente da Silva Lessa38, na década de1980, os Estados Unidos se converteram nos maiores receptores de investi-mentos estrangeiros, e em conseqüência desse surto econômico-comercial, osgovernadores dos Estados desenvolveram interesse direto nas relações econô-micas internacionais. Por esta razão, tornou-se cada vez mais crescente o núme-ro de escritórios de representação abertos pelos Estados norte-americanos noexterior, passando esses a desenvolver, outrossim, intensa paradiplomacia trans-fronteiriça com as províncias canadenses, em defesa de seus interesses comuns.

No Canadá, por seu turno, é igualmente crescente o número de escritóri-os de representação no exterior, abertos pela província de Ontário.

Já na Espanha e na Itália, mesmo sem autorização normativa, a paradiplo-macia expande-se também sob o influxo dos interesses comuns das regiões fron-teiriças, mas ultrapassando esse âmbito de atuação.

Com efeito, a região Basca, na Espanha, tem projetado sua participaçãono Comitê das Regiões da União Européia, registrando-se, fora deste âmbito,conforme assinala Alexander Ugalde Zubiri39, viagens e visitas pelas autoridadesgovernamentais a outros governos não centrais; intercâmbios financeiros, cultu-rais; atividades promocionais visando à promoção da região no âmbito cultural,comercial, financeiros, tecnológico, turístico, em eventos como feiras e congres-sos; contatos com corpos diplomáticos, além de acordos de cooperação firma-dos com os länder da Baviera, a província italiana de Emilia-Romagna, o can-tão helvético de Jura e, ainda, com regiões da República Russa.

37 LESSA, José Vicente da Silva. Op. Cit. apud TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Op. Cit., p. 97.

38 LESSA, José Vicente da Silva. Op. Cit. apud TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Op. Cit., p. 95.

39 ZUBIRI, Alexander Ugalde. La acción exterior del Gobierno Vasco hacia Europa. Disponível emhttp://www.euskonews.com/0139zbk/gaia13904es.html. Acesso em 29 jan. 2007.

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Ressalte-se, entretanto, como o faz Carlos Alberto Simões de Tomaz,que a paradiplomacia desenvolvida pela região Basca, na verdade, vincula-seao seu ímpeto separatista, podendo-se falar, muitas vezes, no exercício de umaatividade protodiplomática, entendida como “a prática mediante a qual um go-verno não-central atua de forma a pavimentar o caminho para sua independên-cia, preparando a opinião pública internacional e estabelecendo relações exter-nas de amizade com países e regiões que possam apoiá-lo em seu projeto se-cessionista”40.

Assim, deve-se distinguir a paradiplomacia não institucionalizada, proce-dimento extradogmático mediante o qual o governo local/regional desenvolverelações internacionais no âmbito de seus interesses e competências, da chama-da protodiplomacia, caracterizada pela usurpação da competência do governocentral e efetivada no intuito de romper, e não de fortalecer o pacto federativo.

8. A ATIVIDADE PARADIPLOMÁTICA NO BRASIL

O art. 21, da Constituição Federal de 1988, estabelece que compete à

União, “manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizaçõesinternacionais” (inciso I); “declarar a guerra e celebrar a paz” (inciso II); “asse-gurar a defesa nacional” (inciso III); e “permitir, nos casos previstos em lei com-plementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele per-maneçam temporariamente” (inciso IV)41.

O art. 84, inciso VIII, por sua vez, dispõe que compete ao Presidente daRepública celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a refe-rendo do Congresso Nacional42.

Ressalte-se, ademais, o disposto no art. 49, inciso I, segundo o qual é dacompetência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobretratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos gravosos aopatrimônio nacional”43.

40 KEATING, Michael. Paradiplomacy and Regional Networking apud TOMAZ, Carlos Alberto Simõesde. Op. Cit., p. 96.

41 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 30jan. 2007.

42 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 30jan. 2007.

43 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 30jan. 2007.

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Por fim, o art. 52, inciso V, dispõe que compete ao Senado Federal auto-rizar as operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dosEstados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios44.

Entretanto, a despeito da inexistência de autorização constitucional (disci-plina vigente desde a Constituição de 1891), verifica-se a expansão da paradi-plomacia no Brasil. Nesse sentido, José Flávio Sombra Saraiva ressalta que

Ganha força no Brasil, a diplomacia de múltiplas camadas, exercida emdiferentes níveis do processo decisório. A high politics, encaminhada peladiplomacia estatal clássica no Itamaraty, aceita e acata, mas também rea-ge e convive de forma cooperativa, com a diversidade da low politics,espaço natural dos entes subnacionais. Na acepção de Barros Leal Fari-as, que estudou de forma pioneira o caso brasileiro, a paradiplomaciafederativa vem crescendo, ainda que de forma discreta45. Com efeito, os entes federativos não-centrais do Estado brasileiro não

poderiam ficar à margem do processo que irrompe em outras federações.Na verdade, no Brasil, além da tendência centralizadora do governo fe-

deral, que atrai para Brasília as tomadas de decisão, reforçando o déficit deconsulta institucional e engajamento das secretarias estaduais e municipais nasquestões afetas aos governos regionais/locais, e do extenso território e diversi-dade cultural brasileiros, evidencia-se a ilusória autonomia dos entes federados,que desprovidos de recursos suficientes para implementar suas políticas sociais,partem para uma atuação internacional em busca de auxílio, intercâmbio de ex-periências, tecnologias e aprimoramento humano.

Oportuno recorrer, neste ponto, à pesquisa efetuada por José Vicente daSilva Lessa46, em que esse registrou a existência de 65 (sessenta e cinco) ocor-rências de atividade paradiplomática no Brasil, sendo 53 (cinqüenta e três) comEstados (Alemanha, Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, China, Costa Rica, Espa-

44 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 30jan. 2007.

45SARAIVA, José Flávio Sombra. A busca de um novo paradigma: política exterior, comércio externo efederalismo no Brasil. In Revista Brasileira de Política Internacional, a. 47, n. 2, jul.-dez., 2004,Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Brasília, p. 131-162. Disponível em <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/358/35847205.pdf>. Acesso em 17 jan. 2007, p. 139.

46 LESSA, José Vicente da Silva. Op. Cit. apud TOMAZ, Carlos Alberto Simões de. Op. Cit., p. 98-99.

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nha, Estados Unidos, França, Israel, Itália, Japão, Noruega, Paraguai, Polônia,Suíça e Ucrânia), 7 (sete) com Municípios e 5 (cinco) com outros agentes.

Os acordos abrangeriam as seguintes áreas: geral, comércio, indústria(pequena e média empresa, joint-ventures, infra-estrutura, energia, construçãonaval, zonas francas), agroindústria (pesca e agricultura), turismo, serviços (trans-portes e portos), meio ambiente, administração pública (planejamento urbano,segurança pública e legislação), governo (processo legislativo, processo eleito-ral, políticas sociais e finanças públicas), educação, esporte e cultura, saúde esaneamento, ciência e tecnologia (informática) e integração regional.

Os objetivos, por sua vez, compreenderiam a cooperação técnica, cientí-fica e tecnológica, a promoção de intercâmbio, informações recíprocas, investi-mentos e capacitação.

Esses dados, entretanto, são apenas os oficiais (fornecidos pelas unida-des federadas e pelo Itamaraty). E, tratando-se de procedimento extradogmáti-co, realizado à margem da Constituição, é legítimo presumir que os númerosultrapassam os referidos.

Não obstante, a pesquisa apresenta extrema relevância, por revelar aocorrência do fenômeno no Brasil. Constata-se, outrossim, pelas matérias men-cionadas, que, em regra, a atuação paradiplomática dos entes federados noBrasil se encontra voltada para a realização da competência material prevista naConstituição Federal.

Dentre as formas de atuação dos entes subnacionais, pode-se destacar:1) pressão política direta dos governadores na direção do Poder Executivo fe-deral ou do Congresso Nacional vem sendo a forma mais explícita de agir dasunidades subnacionais; 2) utilização de viagens ou escritórios internacionais paraintervenção direta nas fontes financiadoras do comércio internacional; 3) cria-ção de agências, assessorias e secretarias de governo com atribuições no cam-po da internacionalização de suas estratégias de desenvolvimento, cabendo res-saltar o grau de competência técnica média que se observa nessas operativas.Assim, conforme observa José Flávio Sombra Saraiva, “governadores viajam,muitas vezes, com mais objetividade e mais bem preparados para a negociaçãode interesses comerciais, que membros do governo central em suas diligênciasinternacionais”47.

Atento a tais circunstâncias, porém ainda preocupado com a descentrali-zação do exercício da capacidade internacional, o governo central abriu Escri-

47 SARAIVA, José Flávio Sombra. Op. Cit., p. 150.

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tórios de Representação Regional do Ministério das Relações Exteriores emBelo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio deJaneiro e São Paulo, visando a colocar-se mais perto dos entes federados, via-bilizando os caminhos julgados corretos, ao menos sob a perspectiva do Minis-tério das Relações Exteriores, para a satisfação dos interesses regionais e locais.

Entretanto, afigura-se insuficiente essa atuação do governo central, quedeve evidenciar, de forma mais efetiva, a vontade de construção de um novoparadigma, apto a promover melhor articulação e maior fortalecimento do fede-ralismo brasileiro.

Nesse contexto, José Flávio Sombra Saraiva sugere posturas que devemser imediatamente adotadas pelos entes envolvidos:

A primeira refere-se ao reforço que se faz necessário no acompanhamen-to de experiências subnacionais que demonstram êxito na operação ex-terna.(...)Em segundo lugar, a diplomacia dos governadores necessita operar emmaior consonância com a diplomacia do Estado federal e vice-versa. Áreasensível, animadora de crises permanentes do federalismo inconcluso doBrasil, este é um campo em que será necessária maior coordenação polí-tica. Uma medida imediata nesta direção seria a incorporação, no pro-cesso negociador externo do Estado Nacional, de representantes dos entesfederativos.Em terceiro e último lugar, será necessário aparelhar melhor o Itamaraty eos entes subnacionais com operadores para estes novos marcos das rela-ções externas federativas. O conservadorismo cooperativo do Itamaraty,embora muito positivo no que se refere aos grandes temas de interesseexterno do Brasil, não tem demonstrado capacidades operativa e coope-rativa para as novas possibilidades que se ensaiam. Burocracia excessivae centralismo, nesta matéria, são nefastos48. Oportuna, por outro lado, a institucionalização da paradiplomacia, que

pode ser efetivada por meio da edição de uma emenda constitucional que con-sagre a extensão aos Estados e Municípios do poder de celebrar tratados noâmbito de sua competência material e legislativa.

48 SARAIVA, José Flávio Sombra. Op. Cit., p. 157-159.

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E tal não configuraria ofensa à forma federativa de Estado, mas sim forta-lecimento da federação, na medida em que, em consonância com o princípio dasubsidiariedade, proporcionaria aos Estados-membros e Municípios o efetivoexercício de sua autonomia, diversas vezes prejudicado pela escassez de recur-sos e por uma atuação centralizadora e burocrática da União.

Com efeito, conforme salientado em parecer de Hildebrando Accioly, entãoConsultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, datado de 24 de maiode 1954,

É princípio geralmente reconhecido o de que a capacidade para celebrartratados pertence aos chamados Estados soberanos. Nada deve impedir,porém, que esta capacidade possa ser estendida por quaisquer destes,aos seus territórios dependentes. (...) Lauterpacht, na qualidade de mem-bro da Comissão do Direito Internacional das Nações Unidas, redigiunotável relatório sobre o direito dos tratados, no qual diz que: ‘O direitointernacional autoriza aos Estados a determinar a capacidade de suas sub-divisões políticas para fazer tratados’ (doc. A/CN. 463, de 24.3.1953,pg. 149/150), o que, a seu ver, se assemelha a uma delegação de poder ,pg. 151)49. Obviamente, a atividade paradiplomática estaria sujeita a limitações. As-

sim, eventual onerosidade não poderia ultrapassar a barreira da autonomia, ouseja, os entes federados regionais/locais não poderiam se obrigar externamenteem extensão maior do que aquela que internamente, em decorrência de suaautonomia, podem fazê-lo, sem que, para tanto, necessitem do aval do podercentral. Com feito, nas operações externas de natureza financeira, a Constitui-ção Federal exige a autorização pelo Senado (art. 52, inciso V), porque o endi-vidamento, neste caso, exige a presença da União como garantidora.

Desta forma, constata-se a inexistência de soluções simples, que se fa-zem, porém, necessárias para acompanhar as mudanças econômicas, políticas,sociais e tecnológicas das últimas décadas, que fizeram emergir novas realida-des, já presentes na realidade brasileira, a despeito do esforço do governo cen-tral em suprimi-las.

49 In Revista da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, n. 19-20, 1954, p. 126-130 apud BARBO-SA, Denis Borges. Capacidade do Município de Participar de Atos Internacionais de Caráter Não Vinculan-te com Entidades Infraestatais. Disponível em <http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/mais_artigos/capacidade_do_municipio.html>. Acesso em 08 out. 2006.

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9. CONCLUSÃO

A partir do estudo realizado, podem ser enunciadas as seguintes conclu-

sões: 1) O fenômeno jurídico não pode ser enfrentado sem a consideração dos

sistemas econômico, político e social, e de que, sob determinadas cir-cunstâncias, os paradigmas vigentes devem ser rompidos, por não maisatenderem aos problemas postos pela sociedade;

2) Nos Estados federados, diante da insuficiência da centralização doexercício das relações internacionais pelo governo central para o aten-dimento aos anseios da sociedade, em face de sua estrutura burocrá-tica e hierarquizada, incapaz de conviver com a diversidade dos inte-resses locais e regionais, faz-se necessário divisar novas perspectivasde atuação dos entes subnacionais, consagrando-se a capacidade paracelebrar tratados internacionais no âmbito de sua competência materi-al e legislativa;

3) Afigura-se como procedimento extradogmático, no Brasil, a intensacelebração de tratados internacionais pelos Estados-membros e Mu-nicípios (paradiplomacia não institucionalizada), uma vez que a Cons-tituição expressamente prescreve a competência da União para repre-sentar o Estado soberano no cenário jurídico internacional;

4) Diante da impossibilidade de negar ou impedir a ocorrência do fenô-meno, cabível sua institucionalização no Brasil, devendo-se ressaltar,por fim, a inexistência de óbice para a edição de emenda constitucio-nal nesse sentido, na medida em que a paradiplomacia, longe de ofen-der o pacto federativo, fortalece a federação, permitindo que os Esta-dos-membros e Municípios desenvolvam de forma mais efetiva suaspolíticas sociais.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O ISS

Maria Elza Bezerra CirneAdvogada

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, a chegada do século XX deu início ao processo de transferên-cia do homem do campo para a cidade e ocasionou uma demanda crescentepor imóveis nos centros urbanos, especialmente na periferia das grandes cida-des, levando o Presidente Getúlio Vargas a editar o Decreto-lei nº 58, de 10 dedezembro de 1937, como forma de disciplinar o loteamento e a venda de terre-nos para pagamento em prestações.

Na ocasião, os considerandos1 utilizados pelo então Presidente da Repú-blica para editar o referido Decreto-lei refletem a preocupação com a necessi-dade de disciplinar os negócios jurídicos imobiliários.

Vinte e sete anos depois, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Leinº 19/64, transformado na Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, quedispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, tam-bém com o objetivo de disciplinar, incrementar a ocupação do solo urbano eresguardar os direitos dos adquirentes.

1 Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante o pagamentodo preço em prestações; Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio aocomprador, uma vez que o art. 1.088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrepender-se antes deassinada a escritura da compra e venda; Considerando que êsse dispositivo deixa pràticamente semamparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e asolvabilidade das emprêsas vendedoras; Considerando que, para segurança das transações realizadas medi-ante contrato de compromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contrafuturas alienações ou onerações dos lotes comprometidos; Considerando ainda que a loteação e venda deterrenos urbanos e rurais se opera frequentemente sem que aos compradores seja possível a verificação dostítulos de propriedade dos vendedores.

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O cenário demográfico brasileiro mudou drasticamente desde a ediçãodas referidas normas. No início do século passado, a população concentrava-sebasicamente no campo. Atualmente, os números são inversamente proporcio-nais: segundo dados do IBGE, em 2000, mais de 81% (oitenta e um por cento)da população estava situada na zona urbana, com apenas 18% (dezoito porcento) dos brasileiros residindo na zona rural.

Essa transformação ocasionou sério déficit habitacional nas cidades, comreflexos importantes nas relações sociais, além de demandar do Estado umainfra-estrutura adequada ao novo perfil.

A preocupação do Presidente Getúlio Vargas permanece bastante atual eas normas supramencionadas ainda têm importante papel na regulação da ocu-pação urbana, a despeito dos planos diretores, do Estatuto da Cidade e dalegislação ambiental.

Em que pese a “longa” existência da Lei nº 4.591/1964, se confrontadacom as duas Constituições do período e as infindáveis Emendas Constitucionaisà Carta de 1988, o tratamento tributário da incorporação imobiliária apresentadivergências importantes na jurisprudência, sobretudo em relação à possibilida-de de incidência do ISS sobre tal atividade empresarial.

A matéria volta à tona, sempre que se verifica uma expansão urbana acen-tuada em municípios do nosso território, com a presença da incorporadora edi-ficando ou fazendo edificar novos condomínios especiais.

Os municípios, no anseio de incrementarem suas receitas e garantirem aautonomia financeira, terminam por tratar a incorporação imobiliária como sim-ples contrato de construção civil, fazendo incidir o ISS sobre essa atividade,desconsiderando a especificidade desse instituto jurídico.

O presente trabalho tem a pretensão de tentar fornecer subsídios paraaveriguar a possibilidade de incidência do ISS nos contratos de incorporaçãoimobiliária, a partir da análise da legislação, da doutrina e, sobretudo, dos pre-cedentes judiciais aplicáveis aos casos concretos.

Discorrendo sobre as diversas ações envolvidas nesse complexo negócioimobiliário, define-se a incorporação como atividade autônoma, instituto jurídi-co do direito privado, que não pode ser alterado pela legislação tributária, parafins de enquadrá-lo como prestação de serviços, hipótese de incidência do ISS,imposto sujeito à competência tributária dos municípios, conforme atribuiçãoconferida pela Constituição Federal.

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2. A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

2.1. ASPECTOS HISTÓRICOS

O final da Idade Média foi marcado pelo declínio do feudalismo, a ascen-são da burguesia e o surgimento do capitalismo. Nesse período, a populaçãoaglomerou-se em núcleos urbanos limitados por portas e uma muralha, com afinalidade de proteger-se das guerras.

Com o surgimento das cidades, além dos burgueses – representados porhomens de negócios e de lei, financistas, médicos de renomes –, os nobres,grandes senhores, príncipes e reis habitavam os palácios. O grupo mais repre-sentativo do meio urbano, formado pelos homens de ofício, habitava casas pri-vadas, servindo-lhes de residência, oficina de produção e local de venda deseus produtos. O habitat coletivo era habitualmente destinado às comunidadesreligiosas, de escolares, de doentes e de soldados.

Já na Idade Moderna, com o advento do Renascimento, as cidades de-senvolveram-se e surgiram os primeiros imóveis que serviam a mais de umaresidência, ocupando planos diferentes. Esse modo de moradia caracterizava-se por unidades habitacionais distintas dividindo áreas comuns, alterando o con-ceito de propriedade.

Com a Revolução Industrial, a concentração demográfica fez inchar ascidades, sem infra-estrutura adequada para o novo contingente populacional. Aintervenção do Estado fez-se necessária para organizar a ocupação, impor limi-tações ao direito de construir, dotar as cidades de infra-estrutura, reorganizar oespaço urbano.

No Brasil, respeitadas as particularidades de cada momento histórico,registrou-se e ainda se verifica fenômeno semelhante ao relato acima. A deman-da por unidades habitacionais nos grandes centros urbanos intensificou-se naregião Sudeste, no período de 1950 a 1970, sobretudo em razão do processode industrialização, e levou o Congresso Nacional a aprovar o Projeto de Lei nº19/1964, de autoria de Caio Mário da Silva Pereira, transformado na Lei nº4.591/1964, que disciplina o condomínio em edificações e as incorporaçõesimobiliárias.

Surgia uma nova espécie de negócio imobiliário – a incorporação – con-jugando contratos diversos numa espécie autônoma, voltada para atender a umafinalidade específica, qual seja, a constituição do condomínio especial ou edilí-cio.

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2.2. A LEI ESPECIAL

Ao dispor sobre a propriedade imóvel, o Código Civil de 1916 abriu umcapítulo para tratar do condomínio geral, ordinário ou tradicional, “caracterizan-do-se pela indivisão do objeto e divisão dos sujeitos”2, nas palavras do civilistaOrlando Gomes.

Com o advento da Lei nº 4.591/1964, introduziu-se no ordenamento ju-rídico o condomínio em edifícios, também denominado condomínio horizontal.Trata-se de um condomínio especial em que os condôminos detêm a proprieda-de exclusiva, individual, de uma unidade autônoma, mas agregada a uma partecomum, indivisa, utilizada por todos os comproprietários, representada por umafração ideal.

Estão incluídos na parte comum o terreno, as fundações, a fachada, otelhado, a estrutura de concreto, os muros e paredes divisórias, as escadarias,os elevadores, os vestíbulos, os corredores, a área de lazer e outras partes deutilidade comum para os condôminos e que não são suscetíveis de utilizaçãoexclusiva.

Até o advento do novo Código Civil, a Lei nº 4.591/1964 disciplinouintegralmente os condomínios especiais, ficando a cargo do Código Civil de1916 a regulação do condomínio ordinário. O Código Civil de 2002 introduziunovas regras aplicáveis aos condomínios edilícios, que se sobrepõem às normasda Lei nº 4.591/1964, quando incompatíveis.

Em relação à incorporação imobiliária, a Lei nº 4.591/1964 permanecesendo-lhe integralmente aplicável, com pouquíssimas alterações ao longo de suaexistência, sendo a mais significativa a introdução do patrimônio de afetaçãopela Lei nº 10.931/2004.

Embora a Lei nº 4.591/1964 utilize unicamente a expressão “condomí-nio”, identificado pela doutrina como condomínio especial, por estar disciplina-do em lei especial, o novo Código Civil preferiu adotar a nomenclatura “condo-mínio edilício”, resultado do ato de edificação, que se caracteriza pela existênciade uma edificação, com partes que são propriedade exclusiva e partes que sãopropriedades comuns dos condôminos.

A construção de unidades autônomas em planos horizontais distintos fezcom que parte da doutrina, a exemplo de Orlando Gomes, denominasse essecondomínio especial em edifícios de “propriedade horizontal”3.

2 GOMES, Orlando. Direitos reais. Atualizador: Humberto Theodoro Júnior. 18ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 2002, p. 211.

3 Ob. cit., p. 224.

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Entretanto, em razão da atual propagação dos condomínios horizontais,no sentido de diversas casas distribuídas em lotes de terrenos no plano horizon-tal, não sobrepostas às demais, adota-se no presente trabalho a denominaçãode condomínio edilício do novo Código Civil.

A sobreposição de unidades autônomas em planos horizontais distintostraz mais a idéia de um condomínio vertical, se analisarmos sob o ponto de vistado plano geométrico, do que propriamente de horizontalidade. Assim, adotare-mos a partir de agora a denominação de condomínio edilício, para evitar confu-sões na terminologia.

Independentemente da denominação utilizada, o importante para o pre-sente trabalho é fixar que a incorporação imobiliária foi criada por lei especialcomo forma de reduzir o déficit habitacional através da constituição de condo-mínios edilícios, que concentram mais unidades autônomas, sejam residenciaisou comerciais, em menor espaço físico.

Portanto, a Lei nº 4.591/1964 introduziu no ordenamento jurídico o con-domínio edilício e regulamentou uma atividade empresarial – a incorporaçãoimobiliária – voltada unicamente para a constituição desse novo direito de pro-priedade.

Nos itens seguintes, ao detalhar as características dessa atividade, de-monstrar-se-á a autonomia da incorporação imobiliária, envolvendo obrigaçõesde dar e de fazer, que deve ser tratada com sua identidade própria, evitando-sedestacar um ou outro contrato inerente à mesma, pois a sua existência dependeda utilização de todos os meios envolvidos na consecução de seu objetivo.

2.3. CONCEITO

A Lei nº 4.591/1964 tratou de conceituar a incorporação imobiliária noparágrafo único do art. 28, que assim dispõe:

Art. 28. As incorporações imobiliárias, em todo o território nacional, re-ger-se-ão pela presente Lei.Parágrafo único. Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobi-liária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a constru-ção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edifi-cações compostas de unidade autônomas.

Em primeiro lugar, a Lei nº 4.591/1964 considera a incorporação imobi-liária como uma atividade. Plácido e Silva designa atividade como “a soma de

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ações, de atribuições, de encargos ou de serviços desempenhados pela pessoa.É este o seu sentido genérico”.4

Apesar de a Lei referir-se à atividade, Orlando Gomes prefere considerara incorporação imobiliária como “o negócio jurídico de constituição da proprie-dade privada”.5

Entendemos, todavia, que a diferenciação está no ângulo de visão. A refe-rência da Lei à atividade é decorrente do negócio jurídico que não se esgota emuma única ação, mas numa sucessão de atos jurídicos, que têm por finalidade aconclusão da obra e a constituição definitiva do condomínio. Estaria a definiçãoda Lei a ressaltar a continuidade da ação até o objetivo final – negócio jurídicorealizado, na visão de Orlando Gomes.

A atividade envolve não só a construção, tratada mais adiante, mas asações de promoção dessa construção. Vale dizer, a procura do terreno adequa-do, o conhecimento do mercado, o estudo de viabilidade técnica e econômicada obra, a aprovação dos órgãos públicos competentes, o registro do memorialde incorporação, a oferta no mercado, a captação de adquirentes em númerosuficiente para viabilizar o projeto, a negociação de financiamento (se houver), acelebração dos contratos, a constituição do patrimônio de afetação (opcional),a entrega das unidades autônomas devidamente averbadas no Registro de Imó-veis e a constituição do condomínio, dentre outras atividades relacionadas.

Todas essas atividades são do incorporador, que poderão ser por eleexercidas, quando o caso, ou contratadas de terceiros, sem eximi-lo de suaresponsabilidade.

Nesse ponto, importa destacar que o incorporador tem a obrigação derealizar a construção para alienação das edificações. Por realizar, entenda-se apossibilidade de ele mesmo efetuar a construção ou contratar um construtorpara tal fim. A Lei ainda faculta aos adquirentes o direito de contratarem direta-mente o construtor.

Mesmo quando o incorporador não efetua a construção, ainda incorreem todas as atribuições a ele conferidas pela Lei nº 4.591/1964, que somente seesgota após o “habite-se”, a averbação das edificações no Registro de Imóveise a constituição definitiva do condomínio.

As ações desempenhadas pelo incorporador visam à alienação, total ouparcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidade autô-

4 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 92.

5 Ob. cit., p. 227.

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nomas, que nada mais são do que o próprio condomínio edilício, consoantedefinição dada pelo art. 1º da Lei nº 4.591/1964, a seguir transcrito:

Art.1º. As edificações ou conjuntos de edificações, de um ou mais pavi-mentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadasa fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienadas, no todo ouem parte, objetivamente consideradas, e constituirá, cada unidade, pro-priedade autônoma sujeita às limitações desta Lei.

Convém destacar que essa propriedade autônoma está encravada no ter-reno, cujo condômino tem direito apenas a uma fração ideal da parte comum,não dissociada da parte exclusiva, mas com ela formando um todo.

De Plácido e Silva define incorporação como: “derivado do latim incor-poratio, de incorporare (dar corpo, juntar, unir), em sentido geral e amplo quersignificar a inclusão, a união, a introdução ou a ligação de uma coisa no corpo deoutra, a que ficará pertencendo, ou a agremiação, congregação, agrupamentopromovido entre pessoa para a formação de um só corpo”.6

Justifica-se, portanto, a denominação dada a essa atividade.Ressalte-se que a incorporação imobiliária é formada por um plexo de

ações, formando um todo coeso na consecução do seu objetivo. Esta afirmaçãopode ser mais bem compreendida nas palavras do legislador ao dispor sobre adefinição do incorporador no art. 29 da Lei nº 4.591/1964, nos termos seguin-tes:

Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerci-ante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ouefetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação detais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ouem construção sob regime condominial, ou que meramente aceite pro-postas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a ter-mo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entre-ga, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.

6 Ob. cit., p. 423.

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A presunção de vinculação do terreno à construção da unidade autônomaem regime de condomínio edilício é expressa no parágrafo único do art. 29, inverbis:

Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das fraçõesdo terreno e o negócio de construção, se, ao ser contratada a venda, oupromessa de venda ou de cessão das frações de terreno, já houver sidoaprovado e estiver em vigor, ou pender de aprovação de autoridade ad-ministrativa, o respectivo projeto de construção, respondendo o alienantecomo incorporador.

A Lei nº 4.591/1964 estabelece no seu artigo 31 quais as pessoas quepoderão atuar como incorporador: o proprietário do terreno, o promitente com-prador, o cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça osrequisitos da alínea “a” do art. 32, o construtor ou corretor de imóveis.

As ações envolvidas na incorporação imobiliária trazem, como conseqü-ência, um número expressivo de contratos envolvidos, que merecem uma análi-se mais acurada, para se delimitar se eles podem ser tratados individualmente oudevem ser vistos como um todo, para fins de avaliação da incidência ou não deISS sobre os mesmos.

2.4. CARACTERÍSTICAS E NATUREZA JURÍDICA

A incorporação imobiliária é uma atividade complexa, que envolve con-tratos distintos, dentre os quais interessa, especialmente à finalidade do presentetrabalho, a construção das unidades autônomas.

Como uma sucessão de ações desenvolvidas numa seqüência lógica, aincorporação pressupõe, inicialmente, a existência do terreno disponível paraconstrução, dentro das exigências do ordenamento jurídico administrativo.

A propriedade do terreno pode ser do incorporador ou este contratarcom o proprietário uma permuta por unidades autônomas, por exemplo, ouainda, no caso de o incorporador ser o promitente comprador, o cessionáriodeste ou o promitente cessionário, estar devidamente imitido na posse, comexpressa autorização para demolir o prédio (caso existente), dividir o terreno ealienar as respectivas frações ideais.

Além dos contratos envolvidos na aquisição do terreno, podem existircontratos com corretora, agência de publicidade, engenheiros e arquitetos, den-

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tre outros, que não integram o contrato de incorporação propriamente dito, masque têm repercussão no valor da incorporação imobiliária como atividade comfinalidade lucrativa.

Nas palavras da professora Maria Helena Diniz, “economicamente, a in-corporação é um empreendimento que visa obter, pela venda antecipada dosapartamentos, o capital necessário para a construção do prédio”.7

Logo, o valor do contrato envolve o custo da fração ideal, da construção,das demais despesas envolvidas e o lucro do incorporador.

No que tange à venda da fração ideal do terreno, abre-se espaço parauma observação importante sobre a questão posta na Lei. O art. 28 da Lei nº4.591/1964, já mencionado anteriormente, refere-se ao incorporador, comosendo aquele que “compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terrenoobjetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificaçõesa serem construídas ou em construção sob regime condominial”.

Do enunciado acima, pode-se tirar as seguintes conclusões:

1) a venda de coisa atual – fração ideal do terreno – pode acontecer e fazparte do contrato de incorporação imobiliária. Todavia, para caracte-rizar tal instituto, a fração ideal do terreno deve estar vinculada à cons-trução de unidade autônoma em edificação, bem como representar afração ideal das partes comuns do condomínio – coisas futuras.

2) sendo unidades a serem construídas ou em construção, o objeto docontrato é coisa futura, prevista no art. 4838 do Código Civil;

3) a simples venda de fração ideal de terreno, sem estar vinculada à edi-ficação em condomínio, não se caracteriza como incorporação imobi-liária;

4) o mesmo pode-se dizer em relação à venda de unidade autônoma decondomínio já concluída, pois estaríamos apenas diante de uma com-pra e venda comum, que foge à definição jurídica do instituto.

Quanto à fase da construção, a legislação especial prevê a possibilidadede o incorporador promover diretamente a construção, contratar a construção,caso em que os serviços serão elaborados pelo construtor, mediante empreitada

7 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. 2º vol. São Paulo: Saraiva, 2002, p.11.

8 Art. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito ocontrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório.

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ou administração, ou os adquirentes contratarem diretamente com um constru-tor diferente do incorporador, conforme previsto no art. 48, da Lei nº 4.591/1964.

No primeiro caso, temos a incorporação a preço global, caracterizadapelo compromisso de o incorporador vender e entregar as unidades prontas, nopreço e prazo ajustado no contrato, compreendendo a quota do terreno e aconstrução.

Nos demais casos, o construtor, seja contratado pelo incorporador oupelos adquirentes, poderá efetuar a construção pelo regime de empreitada oupor administração.

Na empreitada, o preço da construção tem seu valor estabelecido nocontrato, podendo ser fixo ou reajustável, por índice previamente determinado.Na administração, também denominada incorporação a preço de custo, a cons-trução é contratada por estimativa e os adquirentes assumem o risco pelo au-mento do preço dos insumos e da mão-de-obra.

Qualquer que seja a forma de construção, após a sua conclusão, o incor-porador tem a obrigação de averbar as construções no Registro de Imóveis econstituir definitivamente o condomínio.

Extingue-se, então, a incorporação imobiliária que abrange os seguintesajustes, nas palavras de Orlando Gomes: “a) de alienação, ainda que potencial,da fração ideal do terreno; b) de construção do edifício; c) do condomínio a serconstituído”9.

Portanto, o contrato de incorporação imobiliária envolve obrigações dis-tintas, sendo tanto obrigação de dar – entrega da coisa –, quanto de fazer –construir a edificação nos moldes das especificações previstas no Memorial deIncorporação devidamente registrado no Registro de Imóveis, no prazo, no preçoe nas condições do contrato.

Todavia, tais obrigações não podem ser tratadas isoladamente, pois des-caracterizariam a incorporação imobiliária. Os ensinamentos de Melhim Na-mem Chalub sintetizam essas conclusões:

[...] Essa é a causa do negócio jurídico da incorporação: a formação dedireito de propriedade sobre edificação coletiva, em frações ideais, e so-bre as unidades imobiliárias integrantes dessa edificação, e, bem assim, a

9 Ob. cit., p. 446.

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atribuição do direito sobre essas unidades às pessoas que, nos termosdos respectivos títulos, vierem a adquiri-las.10

Convém observar que estamos tratando de um contrato sinalagmático,consensual, oneroso, formal e de execução diferida. Logo, a propriedade dasunidades autônomas somente se transfere aos adquirentes após a averbação daconstrução, a constituição do condomínio e o cumprimento das obrigações recí-procas, já que antes disso existe apenas o contrato de promessa de venda decoisa futura.

Quanto à natureza jurídica do contrato, transcreve-se a lição de OrlandoGomes:

Embora certas disposições legais deixem a impressão de que a venda dafração ideal do terreno, a construção do edifício e a instituição do condo-mínio conservam a independência como contratos distintos, tão interpe-netrados se acham como meios jurídicos para ser alcançada certa e inva-riável finalidade, que se não pode duvidar de sua unificação numa espéciecontratual de traços inconfundíveis. A incorporação imobiliária é hoje ob-jeto de contrato típico.11

Sendo assim, a incorporação imobiliária é um instituto jurídico com con-ceito, características e natureza jurídica próprios.

3. O ISS

3.1. A AUTONOMIA MUNICIPAL

Em que pese à discussão doutrinária sobre o município ser ou não umente federado, por motivo da ausência de representação no Congresso Nacio-nal, o certo é que a Constituição Federal de 1988 introduziu importante modifi-cação no pacto federativo, com a inclusão indiscutível dos municípios na organi-zação político-administrativa da República Federativa do Brasil.

O constituinte brasileiro colocou os municípios em um patamar nunca an-tes ocupado em nossas Constituições. Os artigos 1º, 18, 29 e 30 da Constitui-

10 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 139.

11 Ob. cit., p. 451.

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ção Federal atribuem-lhes autonomia política, normativa, administrativa e finan-ceira, garantidas pela cláusula pétrea inserta no seu art. 60, § 4º, inciso I, queveda a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativado Estado.

Dentre as diversas facetas da autonomia municipal, importa ao presenteestudo a autonomia financeira, decorrente da capacidade de instituir e arrecadartributos e aplicar suas rendas, conforme previsto no art. 30, inciso III, da Cons-tituição Federal.

Todavia, essa autonomia é limitada por regras e princípios constitucionais.A própria Constituição disciplinou o Sistema Tributário Nacional, estabelecen-do as competências dos entes políticos para instituírem os tributos necessários àgarantia de sua autonomia financeira, mediante a adoção do critério territorial ematerial para tal fim.

Esse sistema viabiliza o pacto federativo e tem como principais qualida-des, nas palavras do professor Ricardo Lobo Torres: “a) a equidade entre osentes públicos, com a distribuição equilibrada de recursos financeiros, em con-sonância com os serviços e gastos que também lhe sejam reservados; b) a auto-nomia dos entes públicos menores para legislar e arrecadar os seus tributos”.12

Há de se ressaltar que a competência para instituir tributos já nasce limita-da pela própria configuração do sistema e das regras e princípios lá inseridos.

A Constituição não cria tributo, ela outorga poderes à União, aos Esta-dos, ao Distrito Federal e aos municípios para o exercício de sua competênciatributária, dentro dos limites por ela traçados. Assim, se a própria Constituiçãoestabelece os limites para o exercício dessa competência, o legislador infracons-titucional deve se ater a eles, por estarem todos no ápice da pirâmide normativa,na mesma origem constitucional.

No caso do ISS, o art. 156, inciso III, da Constituição Federal, estabele-ce competência aos municípios para tributar serviços de qualquer natureza, nãocompreendidos no art. 155, inciso II, definidos em lei complementar.

Portanto, o legislador constituinte elegeu duas condições para os municí-pios instituírem o Imposto sobre Serviços: 1) os serviços não podem ser aquelesprevistos na competência dos Estados e do Distrito Federal, quais sejam osserviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; 2) e osserviços tributáveis devem estar previamente definidos em lei complementar.

12 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,p. 359.

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Essa última limitação provoca discussões na doutrina, pois diversos auto-res, dentre eles Paulo de Barros Carvalho13 e Roque Carrazza14, seguidores dopensamento de Geraldo Ataliba15, entendem que a definição dos serviços por leicomplementar nacional afronta a primazia da Federação e a autonomia munici-pal. Nessa visão dicotômica, a lei complementar, prevista no art. 146, da Cons-tituição Federal, tem as seguintes funções: a) dispor sobre conflitos de compe-tência nessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípi-os; e b) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Uma outra corrente doutrinária, representado no pensamento de Gilbertode Ulhoa Canto16 filia-se à visão tricotômica da lei complementar em matériatributária, dividida em três funções distintas: a) emitir normas gerais de direitotributário; b) dispor sobre conflitos de competência entre a União, os Estados, oDistrito Federal e os municípios; e c) regular as limitações constitucionais aopoder de tributar.

José Souto Maior Borges apresenta uma terceira alternativa, reduzindoas três funções a uma só: “dispor a norma geral sobre a legalidade tributária daspessoas constitucionais”.17 Nessa solução, a norma prevista no art. 156, incisoIII, seria uma espécie do gênero ‘norma geral’ do art. 146, inciso III, ambos daConstituição Federal de 1988.

A tese desse tributarista decompõe o preceito do art. 156, III, da Cons-tituição Federal, em duas normas distintas, melhor examinadas no item seguinte,ao tratarmos da lista de serviços do ISS.

Por enquanto, é suficiente saber que a Constituição adotou a correntetricotômica, consoante disposições do art. 146 e seus três incisos. Assim, noâmbito do ISS, a lei complementar que definirá os serviços sobre os quais inci-dirá o imposto tem por finalidade, sobretudo, afastar os conflitos de competên-

13 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 207 a209.

14 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 15ª ed. São Paulo: Malheiros,2000, p. 614 e 615.

15 GERALDO, Ataliba. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 89 a 101.

16 CANTO, Gilberto Ulhoa. Lei complementar tributária in Cadernos de Pesquisas Tributárias, Coordena-ção de Ives Gandra Martins, São Paulo, v. 15, p. 02 e 03.

17 BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais da Competência Municipal para instituir o ISS (doDecreto-lei nº 406/68 à LC nº 116/2003) (à memória de Geraldo Ataliba). in ISS na Lei complementar116/2003 e na Constituição / organizador Heleno Taveira Tôrres. Barueri, SP: Manoel, 2004, p. 30.

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cia, em matéria tributária, entre as entidades políticas que compõem o EstadoFederal brasileiro.

Além de afastar os conflitos de competência cabe-lhe, ainda, estabelecero fato gerador, a base de cálculo e o contribuinte do ISS, conforme disposto noart. 146, inciso III, alínea “a”; fixar as alíquotas máximas e mínimas do ISS;excluir da sua incidência exportação de serviços para o exterior; e regular aforma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão con-cedidos e revogados, com base no art. 156, § 3º, incisos I, II e III, todos daConstituição Federal.

3.2. A LISTA DE SERVIÇOS

O ISS foi introduzido no ordenamento constitucional, através da EmendaConstitucional nº 18/1965, que atribuía competência aos municípios para co-brar “o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos nacompetência tributária da União e dos Estados”, mediante edição de lei comple-mentar com a finalidade de estabelecer critérios para distinguir essas atividadesdaquelas previstas para o exercício da competência tributária dos Estados, atra-vés do ICM.

Já na vigência da Constituição Federal de 1967, o seu art. 25, inciso IIdispunha sobre a competência de os municípios decretarem impostos sobre ser-viços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária daUnião ou dos Estados, definidos em lei complementar.

Coube ao Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, definir a listade serviços tributáveis pelo ISS, sofrendo diversas alterações, promovidas, es-pecialmente, pelo Decreto-lei nº 834/1969, pela Lei Complementar nº 56/1987e pela Lei Complementar nº 100/1999.

Atualmente, vigora a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003,que estabelece como fato gerador do ISS a prestação de serviços constantes nalista anexa, contendo 40 itens, divididos em sub-itens, nem todos eles constitu-cionais.

As alterações promovidas na lista de serviços tributáveis têm por objetivoadequar as transformações verificadas nas relações jurídicas que originam aobrigação tributária, decorrentes da introdução de novos serviços no mundodos fatos, a exemplo dos criados pela globalização e desenvolvimento tecnoló-gico.

A lista dos serviços tributáveis tem por fundamento de validade a previsãoda 2ª parte do art. 156, inciso III, da Constituição Federal. Todavia, boa parte

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da doutrina nacional critica veementemente tal preceito, por suposta violação aoprincípio da autonomia dos municípios.

José Souto Maior Borges, no artigo mencionado no item anterior18, apre-senta uma solução interessante para o conflito, partindo da premissa que o art.156, inciso III, da Constituição Federal, engloba um único preceito com duasnormas distintas.

Para esse tributarista, a primeira parte do artigo, norma constitucional deeficácia plena, seria dirigida aos municípios, através da outorga para a instituiçãodo imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na com-petência dos Estados.

A segunda parte do artigo, norma constitucional de eficácia contida, seriadestinada à União para, mediante lei complementar, definir tais serviços. Nessecaso, como norma geral de direito tributário, a lei teria como finalidade estabe-lecer critérios parciais vinculantes para a legislação ordinária municipal instituir otributo, somente naquelas hipóteses em que poderia haver conflito de compe-tência com o ICMS.

Nos demais casos de prestação de serviços, excetuados, logicamente, osjá previamente atribuídos pela Constituição aos demais entes federados, osmunicípios teriam autonomia para instituir a cobrança do ISS, com fundamentona 1ª parte do art. 156, inciso III, da Constituição Federal.

Com base nessa tese, o tributarista pretende afastar de vez a discussãoem torno de a lista de serviços ser taxativa ou exemplificativa, propondo a taxa-tividade para as hipóteses de solução dos conflitos de competência com osEstados e nos demais casos a relação seria meramente exemplificativa, poden-do os municípios exercer a competência plena de tributar serviços de qualquernatureza.

Em que pese os ponderáveis argumentos dos doutrinadores, a jurispru-dência adotou entendimento contrário, defendendo a taxatividade da lista deserviços anexa à Lei Complementar.

Desde a edição do Decreto-lei nº 406/1968, o Supremo Tribunal Fede-ral19 decidiu pela taxatividade da lista de serviços, embora admitindo a possibi-lidade de uma interpretação ampla e extensiva de seus itens, sobretudo naquelesem que a lista referia-se aos serviços congêneres.

18 Idem.

19 RE 71.177/SP, Ministro Rodrigues Alckmin, RTJ 70/121; RE 77.183/SP, Ministro Aliomar Baleeiro,RTJ 73/490; RE 100.858/PE, Ministro Carlos Madeira, RTJ 117/214; RE 90.183/SP, Ministro Thomp-son Flores, RTJ 93/404; RE 105.477/PE, Ministro Francisco Rezek, RTJ 115/925.

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Ressalte-se que esse entendimento remonta ao tempo em que os municí-pios não detinham a autonomia conferida pela atual Constituição, nem faziamparte da Federação, possuindo apenas um governo próprio e competência ex-clusiva.

Todavia, mesmo após a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Fe-deral permaneceu com o entendimento sobre a taxatividade de lista de serviços,consoante decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário nº361.829/RJ20, julgado em 13 de dezembro de 2005.

Na parte relativa aos serviços definidos em lei complementar, transcreve-se as lições do Ministro Carlos Velloso, ao proferir seu voto como relator dorecurso extraordinário supramencionado:

O ISS é um imposto municipal. É dizer, ao Município competirá instituí-lo(CF, art. 156, III). Todavia, está ele jungido à norma de caráter geral,vale dizer, à lei complementar que definirá os serviços tributáveis, lei com-plementar do Congresso Nacional (CF, art. 156, III).(...)Os serviços que poderão ser tributados pelo ISS são, em princípio, todosos serviços, menos os que estão compreendidos no art. 155, II. Mas ocitado preceito constitucional, inciso III do art. 156, acrescenta a cláusula“definidos em lei complementar”. É dizer, todos os serviços definidos emlei complementar, menos os compreendidos no art. 155, II, poderão serobjeto do ISS.Dir-se-á que estamos fazendo interpretação gramatical. Não. A interpre-tação é sistemática e teleológica. É que a lei complementar, definindo osserviços sobre os quais incidirá o ISS, realiza a sua finalidade principal,que é afastar os conflitos de competência, em matéria tributária, entre aspessoas políticas (CF, art. 146, I). E isto ocorre em obséquio ao pactofederativo, princípio fundamental do Estado e da República (CF, art. 1º),erigido, pelo constituinte originário, em cláusula pétrea ou limitação mate-

20 EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. LEI COMPLEMENTAR: LISTA DE SERVI-ÇOS: CARÁTER TAXATIVO. LEI COMPLEMENTAR 56, DE 1987: SERVIÇOS EXECUTADOS PORINSTITUIÇÕES AUTORIZADAS A FUNCIONAR PELO BANCO CENTRAL: EXCLUSÃO. I. – Étaxativa, ou limitativa, e não simplesmente exemplificativa, a lista de serviços anexa à lei complementar,embora comportem interpretação ampla os seus tópicos. Cuida-se, no caso, da lista anexa à Lei Comple-mentar 56/87. II. – Precedentes do Supremo Tribunal Federal. III. – Ilegitimidade da exigência do ISSsobre serviços expressamente excluídos da lista anexa à Lei Complementar 56/87. IV. – RE conhecido eprovido. (RE 361.829-6/RJ. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ 24/02/2006).

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rial ao constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). A norma constitucionaltem por finalidade, portanto, afastando conflitos entre pessoas políticasque compõem o Estado Federal, garantir, no campo da repartição dacompetência tributária, estabilidade ao pacto federativo.

Depreende-se da lição do Ministro Carlos Velloso o entendimento doSupremo Tribunal Federal de que a definição dos serviços tributáveis pelo ISSnão afronta a autonomia municipal. Ao contrário, a lei complementar teria afunção de garantir, no campo da repartição da competência tributária, estabili-dade ao pacto federativo.

Neste ponto, é importante retomar a lição de José Souto Maior Borges,embora com algumas ressalvas. Na sua proposta, a primeira parte do preceitocontido no art. 156, inciso III, da Constituição Federal, contém uma norma deeficácia plena, ou seja, “desde a entrada em vigor da constituição, produz, outem possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos in-teresses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta ouindiretamente, quis regular”21, no dizer do constitucionalista José Afonso da Sil-va.

A referida norma está dirigida ao legislador infraconstitucional, determi-nando o critério material da incidência do imposto municipal sobre a prestaçãode serviços. Nunca é demais lembrar que a Constituição apenas outorga poderao município para instituir o tributo no exercício de sua competência tributária.

Entretanto, o critério material é insuficiente para gerar o fato jurídico tri-butário, faltando-lhe elementos essenciais à sua caracterização, dentre os quaiso critério quantitativo, reservado à lei complementar, por disposição do art. 146,inciso III, alínea “a”, da Constituição.

Para José Souto Maior Borges, a lei complementar teria a função de de-finir ou regular uma limitação constitucional ao poder de tributar, complementan-do a Constituição apenas nos casos de conflito de competência com o ICMS,classificando a norma contida na 2ª parte do art. 156, inciso III, da ConstituiçãoFederal como de eficácia contida.

No dizer do constitucionalista José Afonso da Silva, as normas constituci-onais de eficácia contida “são aquelas em que o legislador constituinte regulousuficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou mar-

21 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001,p. 101.

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gem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Pú-blico, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelasenunciados”22.

Em contra-ponto, a norma constitucional de eficácia jurídica limitada, im-positiva e de princípio institutivo, seria aquela em que “o legislador constituintetraça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ouinstitutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediantelei”.23 Em relação às condições gerais de aplicabilidade das normas constitucio-nais de princípio institutivo, o constitucionalista assevera “que elas são aplicá-veis, independentemente da lei prevista, enquanto possam, o que se percebepela configuração de elementos autônomos que contenham”.24

Diante da classificação apontada, discordamos do professor Souto Mai-or Borges, pois a hipótese de incidência do ISS não está plenamente reguladana Constituição. Portanto, a norma contida no art. 156, inciso III, da Constitui-ção Federal, seria de eficácia limitada, tendo em vista que o critério material nãofornece todos os elementos necessários à ocorrência do fato jurídico tributário.

A norma constitucional de eficácia jurídica limitada enquadra-se mais pre-cisamente na interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, pois o consti-tuinte teve o cuidado de atribuir competência ao legislador municipal para estru-turar definitivamente a instituição desse tributo, com todos os demais critériosnecessários à exação – temporal, espacial, base de cálculo, alíquota, mas to-mando por critério material os serviços definidos na lei complementar nacional,conforme lista que foi considerada taxativa.

A realidade dos municípios brasileiros justifica a posição do SupremoTribunal Federal. Se considerarmos que a lista prevista na Lei Complementar nº116/2003, editada pelo Congresso Nacional, contém inúmeras inconstituciona-lidades, ao relacionar atividades que não têm características de prestação deserviços, certamente haveria um caos se os mais de 5.000 (cinco mil) municípiosrelacionassem cada um os seus “supostos” serviços tributáveis, sem qualqueresquema geral de estruturação.

Daí a importância, em termos de política tributária, de lei complementardefinir os serviços tributáveis, mediante aprovação do Congresso Nacional,

22 Ob. cit., p. 116.

23 Ob. cit., p. 126.

24 Ob. cit., p. 135.

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dando uma certa uniformidade ao tratamento tributário da prestação de servi-ços.

3.3. SERVIÇOS TRIBUTÁVEIS

Embora a taxatividade da lista de serviços tributáveis pelo ISS tenha sidoreconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, não significa dizer que toda ativi-dade ali relacionada tenha a natureza jurídica de prestação de serviço.

O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a quem seserve, sem subordinação. É todo o esforço humano – fazer – desenvolvido emfavor de outrem, de forma que o prestador fornece uma utilidade ao tomador doserviço.

Serviço de qualquer natureza é um conceito utilizado pela Constituiçãosegundo as definições do direito civil, mas desde que possua efetivamente natu-reza jurídica de serviço, como conceituado anteriormente.

Todavia, nem todo serviço pode ser tributado por meio do ISS. Valelembrar que o serviço tributável é a prestação do esforço humano em favor deterceiro com conteúdo econômico, sem subordinação e dentro da demarcaçãoconstitucional – art. 156, inciso III, da Constituição Federal – e das demaislimitações constitucionais, incluindo o princípio da imunidade recíproca, quepermite excluir os serviços públicos, passíveis da incidência de taxas.

Além das limitações supramencionadas, deve-se abrir um parêntese paradiscorrer sobre o campo de incidência do ICMS como definido na ConstituiçãoFederal, a teor do seu art. 155, inciso II, que atribui competência aos Estados eao Distrito Federal para instituir impostos sobre operações relativas à circulaçãode mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações seiniciem no exterior.

Sendo assim, o ISS poderá ser instituído sobre serviços de qualquer na-tureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar, con-soante dispõe o art. 156, inciso III, da Constituição Federal.

A primeira distinção é fácil de se perceber. Sobre os serviços de trans-porte interestadual e intermunicipal e de comunicação incidirá o ICMS, de com-petência estadual. Os demais serviços serão tributados pelo ISS, desde quepreviamente definidos em lei complementar.

O problema surge quando há fornecimento de mercadoria com concomi-tante prestação de serviços. Nesse caso, o constituinte fornece a solução ao

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delimitar o campo de incidência do ICMS no art. 155, § 2º, inciso IX, alínea“b”, determinando que o imposto incidirá sobre o valor total da operação, quan-do mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na compe-tência tributária dos municípios. Nesse caso, o ICMS incidirá sobre a totalidadeda operação.

Estando definidos em lei complementar, os serviços prestados com con-comitante fornecimento de mercadorias sofrerão a incidência do ISS, destacan-do-se o valor da operação com mercadoria, que sofrerá a incidência do ICMS.

Conseqüentemente, o ISS incidirá somente sobre serviços de qualquernatureza que estejam relacionados na lei complementar, ao passo que o ICMS,além dos serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunica-ção, terá por objeto operações relativas à circulação de mercadoria, ainda queas mercadorias sejam acompanhadas de prestação de serviços, salvo quando oserviço esteja relacionado em lei complementar como sujeito à incidência doISS.

Ressalte-se que a tributação de serviços tem como hipótese de incidênciaou fato gerador tão-somente a obrigação de fazer, afastando-se os fatos gera-dores decorrentes de obrigações de dar.

Esse foi o entendimento do Pleno do Supremo Tribunal Federal para afastara incidência do ISS sobre locação, no julgamento do Recurso Extraordinário nº116.121/SP25, declarando inconstitucional o item 79 – locação de bens móveis– da lista de serviços anexa ao Decreto-lei nº 406/1964, com as redações pos-teriores.

Fundamenta tal decisão o fato de a locação constituir uma obrigação dedar, não caracterizada como uma obrigação de fazer, esta sim passível de inci-dência do ISS, pois não cabe à legislação tributária afastar o conceito de uminstituto de direito privado utilizado pela Constituição Federal, para delimitar acompetência dos municípios.

Por essa razão, o Presidente da República, usando de sua prerrogativaconstitucional, vetou a locação de bens móveis – subitem 3.01 – da atual lista deserviços da Lei Complementar nº 116/2003.

25 EMENTA: TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducentea glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS -CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objetoda tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato delocação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio,descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil,cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário Nacional. RE Nº116.121/SP, rel. Min. Octavio Gallotti, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio. DJU 25/05/2001).

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3.4. O ART. 110 DO CTN

O direito civil sedimentou-se, ao longo da história da humanidade, sem-pre voltado à defesa do indivíduo no campo das relações privadas, apresentan-do um caráter mais permanente e que remonta ao Império Romano.

O direito constitucional, ao contrário, é bem mais novo e sofre influênciabem mais direta das vicissitudes de cada momento histórico, percorrendo umcaminho mais curto do que o direito civil, até sedimentar o papel da constituiçãocomo “norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de nor-mas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas perten-centes a essa ordem normativa”, no dizer de Hans Kelsen.26

Nesse momento deu-se, então, o processo de constitucionalização dosprincípios fundamentais do direito civil ao plano constitucional. Todavia, seguin-do o ditado de que “antiguidade é posto”, ainda hoje alguns renitentes teimamem interpretar a Constituição segundo o Código Civil.

A interpretação correta do Código Civil segundo a Constituição é fenô-meno recente no Brasil, talvez decorrente da pouca legitimidade de nossas efê-meras Constituições.

Situado esse contexto, passa-se ao art. 110 do Código Tributário Nacio-nal, que remonta ao ano de 1966, fruto do Projeto nº 4.834, de autoria deRubens Gomes de Sousa, ainda na vigência da Constituição de 1946, alteradapela Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965.

O art. 110 do Código Tributário Nacional possui a seguinte redação:

Art.110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o al-cance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, ex-pressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituiçõesdos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos municí-pios, para definir ou limitar competências tributárias.

Segundo as palavras do tributarista Aliomar Baleeiro, “Para maior clarezada regra interpretativa, o CTN declara que a inalterabilidade das definições,conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas do Direito Privado é esta-belecida para resguardá-los no que interessa à competência tributária”.27

26 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 217.

27 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. atualizadora Mizabel Abreu Machado Derzi.Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 688.

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A regra do Código Tributário Nacional confirma a apreensão dos institu-tos milenares do direito civil no processo de constitucionalização. Se levarmosem conta o momento da elaboração do mencionado dispositivo legal, percebe-se a preocupação do legislador em garantir a interpretação do direito civil emface da Constituição, numa época em que prevalecia a interpretação da Consti-tuição segundo o direito civil.

Atualmente, a regra pode ser interpretada de outra maneira, direcionadaao legislador infraconstitucional, para fazer a vontade da norma fundamental noexercício da competência tributária, no que diz respeito aos institutos do direitocivil absorvidos pela Constituição.

Nas palavras do tributarista Luciano Amaro:

A matéria, claramente é de definição de competência, e, a nosso ver,enquadra-se nas atribuições que a Constituição outorga à lei complemen-tar para regular as chamadas ‘limitações constitucionais do poder de tri-butar’, que, em última análise, são normas sobre o exercício da compe-tência tributária. Cuida-se de explicitar, em suma, que o legislador nãopode expandir o campo de competência tributária que lhe foi atribuído,mediante o artifício de ampliar a definição, o conteúdo ou o alcance deinstitutos de direito privado utilizados para definir aquele campo.28

No caso do ISS, a Constituição outorga poderes aos municípios paratributar a prestação de serviços, tal como entendida no direito civil, já que acompetência tributária é exercida com base nesse critério material.

Conforme exposto no item 3.3, os serviços tributáveis pelo ISS são aquelesque envolvem uma obrigação de fazer, “é um esforço de pessoas desenvolvidoem favor de outrem, com conteúdo econômico, sob regime de direito privado,em caráter negocial, tendente a produzir uma utilidade material ou imaterial”, naspalavras de Aires Barreto.29

No atual Código Civil, a prestação de serviços é conceituada no art. 594,como “toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial ... contra-tada mediante retribuição”.

A matéria é importante ao presente estudo, pois a incorporação imobiliá-ria é, sem dúvida, um instituto do direito privado com natureza jurídica e carac-

28 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 216.

29 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2003, p. 62.

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terísticas próprias. Avaliar se ela pode ser caracterizada como prestação deserviço e, portanto, tributável pelo ISS, ou, tratando-se de um contrato comple-xo, se poderia ser desmembrado para ser tributado em cada etapa do processoou, por fim, se caberia a incidência do imposto sobre a totalidade da atividade,que envolve obrigação de dar e de fazer, é assunto para o próximo capítulo.

Ressalte-se que a análise das três possibilidades aventadas passa pelocotejo do art. 110 do Código Tributário, no que tange à competência tributáriados municípios.

4. A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O ISS

4.1. A COBRANÇA PELOS MUNICÍPIOS

Atualmente, a Lei Complementar nº 116/2003 dispõe sobre o Impostosobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos municípios e doDistrito Federal, cumprindo as funções previstas na Constituição Federal comonorma geral de direito tributário, bem como definindo os serviços tributáveispelo ISS.

A referida Lei contempla uma lista com a relação dos serviços sujeitos àincidência do ISS, dentre os quais se encontra o item 7, englobando “Engenha-ria, agronomia, agrimensura, arquitetura, geologia, urbanismo, paisagismo e con-gêneres”.

O subitem 7.02 detalha os serviços de engenharia e possui a seguinteredação:

7.02 – Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, deobras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras seme-lhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenageme irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação emontagem de produtos, peças e equipamentos (exceto o fornecimento demercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da pres-tação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS).

Muito embora a lista não relacione a incorporação imobiliária dentre osserviços tributáveis pelo ISS, alguns municípios estão cobrando o imposto, combase na dicção do referido subitem, enquadrando essa atividade específica nosserviços de execução por administração ou empreitada de obras de construção

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civil, sem qualquer distinção para os casos em que o incorporador também rea-liza, ele próprio, a construção.

Vimos anteriormente que a incorporação imobiliária tem por finalidade aconstituição de um condomínio edilício e o incorporador tem a obrigação derealizar a construção para alienação das edificações, mas tem as seguintes op-ções: a) ele mesmo realizar essa tarefa; b) contratar um construtor; e c) os ad-quirentes contratarem diretamente a construção. Essa tripla possibilidade trazreflexos diretos na hipótese de incidência do ISS.

Nas opções “b” e “c” é mais fácil visualizar a hipótese de incidência doISS. Quando o incorporador contrata uma construtora para realizar a obra, sejamediante empreitada ou administração, incidirá o ISS, pois o construtor estaráprestando um serviço ao incorporador, constante no subitem 7.02 da lista deserviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003.

O mesmo ocorre quando os adquirentes contratam uma construtora, di-ferentemente da incorporadora, para realizar a construção das edificações. Ocaso também recai no subitem 7.02 da lista de serviços tributáveis pelo ISS.

Nas duas opções, o construtor é uma pessoa física ou jurídica diferentedo incorporador. Ele estará prestando uma obrigação de fazer para o incorpo-rador ou para os adquirentes.

Traçando um paralelo com as outras ações envolvidas na incorporaçãoimobiliária, poderíamos dizer que é o caso de o incorporador contratar umaagência de publicidade para o lançamento do empreendimento – prestação deserviço prevista no subitem 17.06 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003. Ou quando contrata uma corretora imobiliária para negociar o empreen-dimento, prestação de serviço prevista no subitem 10.05 da referida lista.

Nos exemplos acima mencionados, o incorporador é o tomador do servi-ço, enquanto que os contribuintes do ISS serão os prestadores dos serviços,nos termos do art. 5º, da Lei Complementar nº 116/2003, salvo na hipótese desubstituição tributária prevista no art. 6º da mesma Lei.

A análise da incidência do ISS é bem mais complexa nos casos em que oincorporador é o próprio construtor das edificações e que vem recebendo trata-mentos distintos, por vezes conflitantes, por parte dos municípios e também dajurisprudência.

4.2. O INCORPORADOR COMO CONSTRUTOR E O ISS

Antes de adentrar nesse assunto, é importante registrar que os contratosde incorporação imobiliária nem sempre permitem caracterizar claramente a dis-tinção das opções antes expostas.

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Todavia, quando resta devidamente caracterizado que o incorpo-rador atua como construtor, a análise deve ser feita por três aspectosdistintos: a) a prestação de serviço para si próprio; b) a posição dajurisprudência sobre a taxatividade da lista; e c) a incorporação imobi-liária como um contrato típico, específico, com natureza jurídica pró-pria.

O incorporador que atua como construtor presta um serviço parasi próprio, pois o negócio jurídico de produção de um novo bem imóvele a constituição de direitos de propriedade sobre ele, elemento finalísti-co da incorporação imobiliária, somente se perfectibiliza após a conclu-são de todos os ajustes abrangidos em conjunto nesse instituto jurídico,quais sejam a alienação da fração ideal do terreno, a construção doedifício e sua averbação e a constituição definitiva do condomínio.

Antes disso, o adquirente possui apenas um contrato de promessade compra e venda, que engloba a fração ideal do terreno vinculada auma futura edificação, bem como da unidade autônoma a ser concluída.A transferência da titularidade da propriedade somente se consuma como registro do título translativo no Registro de Imóveis, conforme precei-tua o art. 1.245 do Código Civil, após cumpridas todas as obrigaçõesdevidas pelas duas partes contratantes.

Ressalte-se que o § 1º do art. 1.245, do Código Civil, determinaque “enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua aser havido como dono do imóvel”.

Nesse sentido a lição de Melhim Namem Chalhub, para quem:

Na configuração do contrato de promessa de compra e venda,verifica-se que o promitente vendedor transmite ao promitentecomprador os poderes inerentes ao jus utendi e ao jus fruendi,mas conserva para si a parte essencial dos poderes inerentes aojus disponendi, pois só depois que o promitente comprador com-plementa o pagamento do preço é que o promitente vendedor lheoutorga a escritura de compra e venda, viabilizando a transmissãodo domínio.30

30 Ob. cit., p. 177.

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O argumento exposto encontra respaldo na jurisprudência do EgrégioSupremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 78.927/RJ31, relatado pelo Ministro Aliomar Baleeiro.

No seu voto, o Ministro Aliomar Baleeiro destaca:

[...]II. O poder tributário de o Município decretar e cobrar imposto de servi-ço está limitado à lista que, em lei complementar, definirá quais as hipóte-ses taxativamente sujeitas ao tributo.Essa lista, atualmente, integra o Dec.-lei n. 834, de 8.9.69, que, no item19, contempla apenas a execução de construção civil etc. por “adminis-tração, empreitada ou subempreitada”. Não abrange, pois, a atividade daRecte. que compra terrenos, obtém financiamento do BNH ou de ou-trem, constrói por si mesma e para si mesma as casas que vende, ficandodiretamente responsável para com os financiadores.III. É um caso de integração, no sentido econômico da palavra, em que oempresário assume e acumula diferentes etapas do processo produtivo,como, por exemplo, a fábrica de açúcar que faz doces, ou a tecelagemque confecciona roupas prontas com os tecidos de sua lavra, etc.No caso, a lei complementar poderia tributar a fase da construção, - pen-so – mas não o fez. Limitou o I. S. à “empreitada, subempreitada ouadministração” de obra alheia.E não cabe interpretação analógica para estabelecer obrigação tributáriae definir fato gerador (Código Tributário Nacional, art. 97).

O Supremo Tribunal Federal afastou, no caso concreto, a incidência doISS sobre a incorporação imobiliária, sob o argumento de que o incorporadorcompra terrenos, obtém financiamento e constrói por si mesmo e para si mesmoas casas que vende. No voto proferido na ocasião, o Ministro Aliomar Baleeirotambém fez referência à possibilidade de a lei complementar tributar a fase daconstrução da incorporação, mas essa atividade não estaria definida nos servi-ços tributáveis pelo ISS e, portanto, obedecendo a taxatividade da lista, nãocaberia uma interpretação analógica para criar essa obrigação tributária.

31 EMENTA: IMPOSTO MUNICIPAL DE SERVIÇOS – CONSTRUÇÃO PARA A PRÓPRIA EMPRESA.I. O item 19, da Lista de Serviços tributáveis pelo Município, do Dec.-lei 834/69, nos termos do art., 24,II, da CF de 1969, só abrange as construções “por empreitada, subempreitada ou administração”. II. ALista do Dec-lei 834 é taxativa e não pode ser ampliada por analogia ex-vi do art. 97 do CTN. Não sãotributáveis as construções que a empresa imobiliária realiza para si própria, ainda que para revender.” (REnº 78927/RJ, Rel. Min. Aliomar Baleeiro. DJU 02/10/1974).

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O posicionamento dos tribunais em relação à taxatividade da lista de ser-viços impede a cobrança de ISS sobre a incorporação imobiliária, pois essaatividade não está incluída entre os serviços definidos na lei complementar, nempode ser caracterizada, exclusivamente, como serviço de execução, por admi-nistração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil.

Mesmo acatada a tese de José Souto Maior Borges – função única danorma geral tributária – ou a dúplice função da lei complementar, segundo adoutrina majoritária, ainda assim, seria impossível aos municípios incluírem aincorporação imobiliária como prestação de serviços, passível de incidência doISS, pois os contratos dessa espécie envolvem, indiscutivelmente, obrigação dedar – a entrega da unidade autônoma edificada em condomínio – e a obrigaçãode fazer – construção da edificação, predominando a primeira sobre a segunda.

Portanto, a cobrança de ISS pelos municípios nas atividades de incorpo-ração imobiliária em que o incorporador é o próprio construtor é inconstitucio-nal, devendo ser repelida pelo Poder Judiciário, para fazer prevalecer a normaconstitucional que escolheu a prestação de serviços como critério material paraa exação.

4.3. A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

A discussão sobre a incidência ou não do ISS na incorporação imobiliárianão possui uma posição unânime da jurisprudência, encontrando-se preceden-tes no Superior Tribunal de Justiça no sentido de afastar a exigência32, bemcomo no sentido de ser devido o referido imposto33.

32 EMENTA: ISS - CONSTRUÇÃO DE EDIFÍCIOS. Não fica sujeito ao ISS a parte que promove constru-ções em terrenos de sua propriedade por sua conta e risco, visto ser impossível falar-se em prestação deserviço. Recurso provido. (REsp nº.13.385/-RJ. Rel. Min.Garcia Vieira, DJ ). EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇO. I – Comprovado que a parte promovia asconstruções em terrenos de sua propriedade pelo sistema de incorporação, na qualidade de proprietária-incorporadora, não há falar-se em prestação de serviço, pois impossível o contribuinte prestar a sipróprio o serviço desvanecido, destarte, o fato imponível do ISS. Precedentes. Recurso desprovido. (REspnº 1.625/RJ, Rel. Min. Geraldo Sobral, DJ 25/03/1991).

33 EMENTA: TRIBUTÁRIO. ISS. DL 406/68. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS. INCIDÊNCIA. TABE-LA ANEXA AO DL 406/68. ITEM 32. Na incorporação, fundem-se dois contratos: Compra e Venda eEmpreitada. Assim, o construtor-incorporador é, também, empreiteiro. Sua atividade constitui execuçãopor administração, empreitada ou subempreitada, de construção civil, correspondendo ao tipo fiscaldescrito no item 32 da Tabela Anexa ao DL 406/68. ISS devido. Segurança denegada. (REsp nº 57.478/RJ,Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 15/05/1995).EMENTA: TRIBUTÁRIO. ISS. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS. INCIDÊNCIA. I – Na incorporaçãoverifica-se a presença de dois contratos: o de compra e venda e o de empreitada. Portanto, não há dúvidade que o construtor também é um empreiteiro, enquadrando-se na atividade descrita no item 32 da ListaAnexa ao Decreto nº 406/68. Sendo assim, deve incidir o ISS sobre essa atividade. II – Recurso especialimprovido. (REsp 746.861/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 10/04/2006).

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Os precedentes citados não adentram na questão do caráter autônomoda incorporação imobiliária. Nos casos em que o Superior Tribunal de Justiçaconsiderou indevida a incidência do ISS, filiou-se ao entendimento do MinistroAliomar Baleeiro, exposto no item anterior, sobre a impossibilidade de prestarserviço para si próprio. A outra corrente preferiu equiparar a incorporação imo-biliária à prestação de serviço de engenharia, esta sim sujeita à incidência doimposto, sem qualquer aprofundamento sobre a natureza jurídica daquele insti-tuto de direito civil.

Em duas ocasiões, o Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade dediscutir a divergência interna, mas, por questões processuais, não foram exami-nados os méritos dos recursos. A primeira ocorreu no julgamento dos Embargosde Divergência no Recurso Especial nº 57.478/RJ34, relatado pelo Ministro Al-dir Passarinho Júnior, em que a Primeira Seção não conheceu do recurso. Maisrecentemente, em julgamento proferido em 04/05/2006, a Primeira Turma co-nheceu parcialmente do Recurso Especial nº 619.122/MS35, mas negou-lhe pro-vimento.

34 EMENTA: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. ISS. INCORPORAÇÃO. PROMESSA DE COM-PRA E VENDA DAS UNIDADES NO CURSO DA OBRA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. SITUAÇÃOFÁTICA DESASSEMELHADA. NÃO CONHECIMENTO. I – A divergência somente se configura quan-do os órgãos do Tribunal dão a situações fáticas rigorosamente idênticas, interpretação jurídica diversa. II– Tal não acontece quando o acórdão embargado entendeu legítima a incidência do ISS sobre a incorpo-ração imobiliária em caso de venda das frações ideais com a obrigação de a empresa alienante edificar oprédio com suas unidades residenciais autônomas, enquanto o aresto paradigma examinou questão de fatodistinta, em que a construtora edificou em imóvel próprio, somente procedendo à venda a terceiros aofinal, após a conclusão da obra. III – Embargos de divergência não conhecidos. (EREsp nº 57.478/RJ, Rel.Min. Aldir Passarinho Júnior, DJ 30/11/1998).35 EMENTA: RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ISS. CONSTRUTORA-INCORPORADORA. TRI-BUNAL DE ORIGEM. ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DEREEXAME EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. RECURSO PARCIALMENTE CO-NHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. 1. À falta do indispensável prequestionamento, nãomerece ser conhecido o recurso especial, no ponto em que se alega violação dos arts. 1º da Lei 1.533/51e 97, IV, do CTN. Incidência dos enunciados das Súmulas 282 e 356/STF. 2. Não se conhece do recursoespecial em relação à alegada ofensa aos arts. 146, III, a, 150, I, e 156, III, da Constituição Federal,porquanto desvia-se da competência do Superior Tribunal de Justiça o exame de eventual violação dedispositivos constitucionais, ainda que para fins de prequestionamento. 3. A jurisprudência desta Corteconsagra entendimento no sentido de que “na incorporação fundem-se dois contratos: compra e venda eempreitada” (REsp 57.478/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 15.5.1995). Dessemodo, o construtor-incorporador é também empreiteiro, cuja atividade corresponde ao tipo fiscal descri-to no item 32 da tabela anexa ao Decreto-lei 406/68, incidindo, portanto, o Imposto sobre Serviços deQualquer Natureza – ISS. 4. Essa jurisprudência, no entanto, formou-se neste Tribunal ao lado de outra queexcluía a incidência de tal imposto quando a construção era promovida em terreno de propriedade dopróprio construtor-incorporador, por sua conta e risco. 5. O Tribunal de origem, com base no conjuntofático-probatório inserto nos autos, entendeu pela incidência do ISS nos serviços prestados pela constru-tora-incorporadora, sob o fundamento de que a atividade por ela empregada na construção da obra possuíanatureza de empreitada, portanto, prevista no item 32 da lista de serviços anexa ao Decreto-lei 406/68.Desse modo, a pretensão da recorrente em rediscutir os fatos e as provas em que se embasaram asinstâncias de origem para considerar devido o ISS é inviável em sede de recurso especial, por esbarrar noóbice da Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” 6. Recursoespecial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. (REsp nº 619.122/MS, 1ª Turma, Rel. Min.Denise Arruda, DJ 25/05/2006).

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Embora não haja uma discussão aprofundada em torno da autonomia doinstituto jurídico da incorporação imobiliária, alguns elementos colhidos dos jul-gados permitem retirar duas conclusões:

1) as decisões desfavoráveis à incidência do ISS têm como fundamento atitularidade do imóvel, sendo impossível a exigência do imposto quan-do o serviço é prestado para si próprio;

2) nas decisões favoráveis à incidência do ISS, o Superior Tribunal deJustiça tomou por fundamento a mera equiparação da incorporaçãoimobiliária à prestação de serviço de execução, por empreitada ouadministração, de obra de construção civil.

A fundamentação no primeiro caso é apenas um dos aspectos da presen-te análise, que afasta a incidência do ISS sobre a incorporação imobiliária nocaso do incorporador assumir a função de construtor.

Entretanto, discordando do entendimento do Superior Tribunal de Justi-ça, entendemos que a segunda conclusão não resiste a um aprofundamento jurí-dico sobre a questão, seja porque não há previsão na lista de serviços para aatividade de incorporação imobiliária, seja porque uma atividade tão complexanão pode ser equiparada a uma simples construção por empreitada ou adminis-tração.

Nesse caso, as decisões do Superior Tribunal de Justiça terminaram porcriar, por analogia, uma obrigação tributária, violando o princípio da legalidadetributária, bem como o § 1º do art. 108, do Código Tributário Nacional, queveda o emprego da analogia que resultar na exigência de tributo não previsto emlei.

Utilizando a lição de Noberto Bobbio36, pode-se dizer que a diferençaentre a analogia e a interpretação extensiva repousa no critério de seus efeitos.Na analogia, existe a criação de uma nova norma para casos não previstos poresta. Na interpretação extensiva, simplesmente se alarga o alcance da regradada, redefine-se um termo, mas a norma aplicada é sempre a mesma.

Portanto, mais acertadas parecem as decisões proferidas pelo Tribunalde Justiça do Rio Grande do Norte, nos julgamentos dos Agravos de Instru-

36 BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4ª ed. Brasília: Edunb, p. 155 e 156.

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mento n° 2001.000215-437 e n° 01.000307-038, relatados pela Desembarga-dora Célia Smith e pelo Desembargador Rafael Godeiro, respectivamente.

No primeiro precedente citado, a Relatora fundamentou sua decisão nofato de a lista de serviços anexa ao Decreto-lei n° 406/1968, modificada pelaLei Complementar n° 56/87, não incluir a construção de imóveis mediante in-corporação imobiliária entre os serviços listados.

Afastou, assim, o argumento do município, no sentido de que o ISS inci-diria sobre a execução da obra em regime de incorporação sempre que os imó-veis fossem alienados no decorrer da construção, pois nessa ocasião o incorpo-rador passaria a qualificar-se como empreiteiro dos novos adquirentes.

O julgamento do Agravo de Instrumento n° 01.000307-0, relatado peloDesembargador Rafael Godeiro também utiliza o mesmo argumento.

Os fundamentos citados utilizam a taxatividade da lista de serviços da leicomplementar prevista no art. 156, inciso III, da Constituição Federal, paraafastar a incidência do ISS sobre incorporação imobiliária, desvinculando-a daconstrução civil pura e simples. De qualquer forma é um reconhecimento daautonomia desse instituto jurídico.

Recentemente, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grandedo Norte reconheceu o caráter autônomo da incorporação imobiliária, com na-tureza jurídica própria, no julgamento do Agravo Regimental em Agravo de Ins-

37 EMENTA: PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTOCONTRA DECISÃO QUE DEFERIU MEDIDA LIMINAR EM AÇÃO CAUTELAR INOMINADA.PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO TRANSFERIDA PARA O MÉRITO.1. A Lei Complementar nº 104D 2001, alterou o inciso V, do art. 151, do CTN, passando a admitir comocausa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário a concessão de medida liminar em ação cautelar.2. Examinando a lista de serviços anexa ao Decreto–Lei nº 406, modificada pela Lei Complementar nº56D 87, é possível verificar que o imposto sobre serviços não incide sobre a construção de imóveis porincorporação. 3. Precedentes deste Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça. 4. Recurso conhecido eimprovido (Agravo de Instrumento nº 2001.000215-4. Rel. Des. Célia Smith, DJ 04/10/2002) 38 EMENTA: PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. Agravo de Instrumentointerposto contra decisão “a quo”, concessiva de liminar cautelar, determinando que a Agravante seabstenha em inscrever a Agravada na dívida ativa do Município, bem como que forneça as certidõesrequeridas, até o julgamento final da Ação Anulatória ou ulterior deliberação. Os tributos somente podemser instituídos ou aumentados através de lei (Art. 150, I, da CF). Inexistindo previsão legal para a cobrançade ISS sobre a construção de imóveis, através de incorporação imobiliária, não pode o Fisco Municipalexigir a sua incidência sobre tais empreendimentos. Configuração do “fumus boni iuris” e do “periculumin mora”, necessários à concessão da liminar cautelar. Decisão mantida. Agravo conhecido e improvido.(TJRN, 2ª Câmara Cível, AI nº 01.000307-0, rel. Des. Rafael Godeiro, j. 11D 05D 2001, v. u., DJ de 07D06D 2001)

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trumento nº 2005.006401-6/0001.0039, conforme voto do Relator, Desembar-gador Cláudio Santos, nos termos seguintes:

O agravante argumentou que a empresa agravada atuava administrandoobras sob o regime de empreitada, atividade essa que constitui fato gera-dor do ISS, razão pela qual requereu o prosseguimento dos processosadministrativos já instaurados, de forma a possibilitar a cobrança do im-posto devido.Em que pesem os argumentos delineados pelo agravante, não restou con-figurada a relevância da fundamentação, eis que inexiste o fato gerador daobrigação tributária.Conforme já ressaltado na decisão recorrida, são contribuintes do ISStodas as pessoas que prestam serviços, isto é, que forneçam trabalho,aluguem bens imóveis ou cedam direitos. Os pressupostos para a existên-cia do contribuinte estão consignados nos seguintes elementos: efetivaprestação de serviços, habitualidade da atividade e autonomia no seu exer-cício.No caso em tela, verifica-se que a construtora não está realizando qual-quer prestação de serviço, pois que, na verdade, sua atividade constitui aedificação, construção de unidades imobiliárias, com a posterior exposi-ção deste produto à venda, de forma que se o consumidor desejar adqui-ri-lo poderá efetuar a sua compra.Não existe, portanto, qualquer prestação de serviço, pois não há vínculode subordinação a futuro e eventual adquirente, até mesmo porque a figu-ra do comprador, por ocasião da construção do imóvel, muitas vezes éincerta e desconhecida. Ademais, o fato de a empresa agravada ter encontrado comprador paraseu produto antes de sua finalização, em hipótese alguma pode modificara natureza de sua atividade, pois o adquirente não contrata um serviço,não celebra um contrato para a construção de um imóvel, ele compra,adquire um produto devidamente individualizado, fato, inclusive, bastante

39 EMENTA: Processual Civil. Agravo Regimental. Decisão que negou efeito suspensivo ao Agravo deInstrumento. Decisão a quo que determinou a suspensão da cobrança de ISS e suspendeu a inscrição docontribuinte na dívida ativa municipal. Ausência de relevância da fundamentação. Inexistência de fatogerador do ISS. Empresa de construção civil em atividade de incorporação. Não configuração da prestaçãode serviço. Recurso conhecido e improvido. (Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº2005.006401-6/0001.00. Rel. Des. Cláudio Santos, DJ 11/03/2006)

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comum no ramo imobiliário, em que as construtoras lançam empreendi-mentos e iniciam as vendas de suas unidades antes mesmo do início daobra.Desta forma, impossível se torna a reforma da decisão recorrida, no intui-to de conceder-se o efeito suspensivo ao recurso, uma vez que inexiste arelevância da fundamentação.

Depreende-se dos argumentos utilizados que ao adquirir um imóvel sob oregime de incorporação imobiliária, o comprador não contrata um serviço, masadquire um produto devidamente individualizado, segundo as características pre-viamente definidas no memorial de incorporação.

Todavia, verifica-se no teor do voto uma referência ao aspecto temporalda venda que, por vezes, tem causado decisões conflitantes na jurisprudência,pois alguns intérpretes têm entendido que a incorporação imobiliária somente secaracteriza se a venda das unidades for efetuada após a construção, fato quejustificaria a utilização dos recursos próprios do incorporador-construtor.

Nesse ponto, convém abordar novamente o parágrafo único do art. 28,da Lei nº 4.591/1964, na parte em que estabelece que a incorporação imobiliá-ria tem o intuito de promover e realizar a construção de edificações em condo-mínio. Vale lembrar, aqui, as palavras de Maria Helena Diniz40, quando diz que aincorporação é um empreendimento que visa obter capital para a construção doprédio.

Ora, como o objetivo da Lei é reduzir o déficit habitacional através daconstituição de condomínio e a incorporação imobiliária encerra-se com a suaconstituição definitiva, qualquer venda de unidade autônoma após essa últimaetapa é simples compra e venda de imóvel sob regime de condomínio edilício.

A utilização de recursos do incorporador ou dos adquirentes, mediantefinanciamento ou não, também não desnatura a incorporação imobiliária, pois opróprio legislador ordinário prevê a possibilidade de financiamento, conformedisposição do § 11 do art. 31-A41, da Lei nº 4.591/1964, incluído pela Lei nº

40 Ob. cit. p, 11.41 Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, peloqual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a elavinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afeta-ção, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aosrespectivos adquirentes.[...]§ 11. Caso decidam pela continuação da obra, os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nosdireitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato definanciamento da obra, se houver.

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10.931/2004, que introduziu o patrimônio de afetação na incorporação imobili-ária.

5. UMA NOVA ABORDAGEM

O art. 110 do Código Tributário Nacional tem a função de relembrar aolegislador e ao intérprete que a legislação tributária não pode alterar a definição,o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado,utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, para definircompetência tributária.

Se o constituinte elegeu a prestação de serviço como critério materialpara a incidência do ISS, não há como desmembrar um instituto jurídico autô-nomo, para fazer prevalecer apenas uma das atividades envolvidas na sua con-secução.

Vale lembrar que a tributação tem conteúdo econômico, ou seja, o tributoincide sobre determinada atividade que expresse valor econômico. A opção porprivilegiar uma espécie do gênero afeta diretamente a base de cálculo do tributo.

Tomando-se um exemplo prático: a incorporação imobiliária envolve con-trato de compra e venda e de construção; se o incorporador for o construtor, opreço da unidade exposta à venda deve incluir os custos com a aquisição doterreno, a construção e todas as demais atividades envolvidas, inclusive o lucro.

Se a opção do legislador ou mesmo do intérprete for tributar unicamentea construção através do ISS, deveria excluir os demais elementos relacionadosà atividade de incorporação imobiliária, sob pena de descaracterizar o perfil daprestação de serviços. Todavia, essa não parece ser a alternativa adequada,pois se encontrariam dificuldades enormes em quantificar a base de cálculo,elemento integrante da regra-matriz constitucional do tributo.

Amílcar Falcão traz ensinamento aplicável a esse entendimento: “Essa basede cálculo tem de ser uma circunstância inerente ao fato gerador, de modo aafigurar-se como sua verdadeira e autêntica expressão econômica. [...] Nãoobstante, é indispensável configurar-se uma relação de pertinência ou inerênciada base de cálculo ao fato gerador: tal inerência ou pertinência afere-se, como éóbvio, por este último. De outro modo, a inadequação da base de cálculo poderepresentar uma distorção do fato gerador e, assim, desnaturar o tributo”.42

42 FALCÃO, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 78e 79.

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Além de desnaturar o tributo, a base de cálculo incluindo elementos nãopertinentes à prestação de serviço, pode levar, eventualmente, o município ainvadir a competência tributária de outro ente federativo.

Essa discussão relembra os conflitos sobre a incidência do ISS ou doICMS na prestação de serviços com concomitante fornecimento de mercado-ria, em que o próprio constituinte forneceu a solução na disposição do art. 155,§ 2º, inciso IX, alínea “b”, da Constituição Federal de 1988.

Todavia, a proposta de uma nova abordagem não estaria completa sem areferência à tese do professor Paulo de Barros Carvalho sobre a regra-matriztributária, desmembrada em hipótese de incidência – antecedente – e fato jurídi-co tributário – conseqüente.

A previsão legal da hipótese tributária, de âmbito abstrato, em relação àincidência do ISS é a prestação de serviços, excluídos os de competência dosEstados. No conseqüente, a ocorrência do fato jurídico tributário e a geraçãodos efeitos jurídicos somente ocorrerão se preenchidos todos os critérios parasua caracterização.

Os critérios presentes na regra-matriz tributária são classificados por Paulode Barros Carvalho em material, espacial e temporal – no antecedente – e pes-soal e quantitativo – no conseqüente.

Até o presente momento, o trabalho esteve restrito à análise da hipótesede incidência do ISS sobre a incorporação imobiliária, em termos de exercícioda competência tributária dos municípios, mas especialmente em relação ao cri-tério material, núcleo da descrição fática, que no caso do ISS é a prestação deserviços.

Entretanto, a análise do critério temporal pode oferecer importantes sub-sídios para a conclusão do presente estudo sobre a tributação da incorporaçãoimobiliária pelos municípios.

Paulo de Barros Carvalho compreende o critério temporal da hipótesetributária “como o grupo de indicações, contidas no suposto da regra, e que nosoferecem elementos para saber, com exatidão, em que preciso instante aconte-ce o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que amarra devedor ecredor, em função de um objeto – o pagamento de certa prestação pecuniá-ria”.43

43 Ob. cit., p. 258 e 259.

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O Código Tributário Nacional trata do critério temporal no art. 116, se-parando o momento de ocorrência do fato jurídico tributário com base na situ-ação de fato e na situação jurídica, nos termos seguintes:

Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido ofato gerador e existentes os seus efeitos:I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifi-quem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos quenormalmente lhe são próprios;II – tratando-se da situação jurídica, desde o momento em que estejadefinitivamente constituída, nos termos do direito aplicável.Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atosou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocor-rência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constituti-vos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem esta-belecidos em lei ordinária.

No caso da incorporação imobiliária, tem aplicação o art. 116, inciso II,do Código Tributário Nacional, pois se trata de uma situação jurídica reguladapor lei especial do direito civil. Sendo assim, o fato jurídico tributário somente sedá quando estiverem definitivamente constituídos e integrados todos os elemen-tos dessa atividade.

Nesse ponto, os estudos desenvolvidos pelo tributarista Amílcar Falcãofornecem elementos, que podem afastar a incidência do ISS sobre a incorpora-ção imobiliária, quando a construção for realizada pelo próprio incorporador.

Em sua obra “Fato gerador da obrigação tributária”, Amílcar Falcão clas-sifica os fatos geradores segundo vários critérios, assim sintetizados: estrutura,formação, integração ou constituição no tempo.

Analisando o fato gerador do ponto de vista estrutural, esse tributaristaclassifica-o em simples e complexo. “No primeiro caso, teremos um fato isola-do, único e singelo [...] No caso do fato complexo, ter-se-á em presença u’amultiplicidade de fatos congregados de modo a constituir, para repetir as ex-pressões de Mario Bracci, uma unidade teleológica objetiva. Se o fato geradorconsistir em um fato complexo ou, como o designamos na definição, em umconjunto de fatos, evidente é que a produção do efeito jurídico genetlíaco sobre

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a relação tributária somente se verificará quando estiverem integrados todos osseus elementos”44.

As palavras parecem encaixar-se como uma luva ao caso de incorpora-ção imobiliária, que envolve uma multiplicidade de fatos congregados pelo in-corporador, com a finalidade de constituição de um condomínio edilício.

Os diversos fatos, ações ou contratos envolvidos na busca dessa finalida-de somente podem dar origem a uma relação tributária, quando estiverem inte-grados todos os elementos, com a conclusão da obra, a averbação da constru-ção e a constituição do condomínio.

Fechada a cadeia produtiva, não se pode falar em relação tributária base-ada na incidência do ISS, pois a conclusão da incorporação imobiliária somentese opera com a obrigação de dar – entregar a unidade autônoma em regime decondomínio edilício, prevalecendo sobre a obrigação de fazer, que é apenas ummeio para esse fim.

Quanto à classificação do fato gerador em razão da integração ou forma-ção no tempo, Amílcar Falcão classificou-o em instantâneo e complexivo, tam-bém chamado de completivo, continuativo, periódico ou de formação sucessi-va, a despeito da crítica formulada por Paulo de Barros Carvalho, comentadamais adiante.

Nas palavras de Amílcar Falcão “Instantâneos são os fatos geradores –‘obrigações tributárias simples, no que respeita ao fato gerador’, no dizer deMerk – que ocorrem num momento dado de tempo e que, cada vez que sur-gem, dão lugar a uma relação obrigacional tributária autônoma. [...] Complexi-vos ou periódicos (fattispecie continuative, segundo Vanoni) são os fatos ge-radores – ‘obrigações tributárias complexas, no que respeita ao fato gerador’ –cujo ciclo de formação se completa dentro de um determinado período de tem-po (Zeitabschnitt, Steuerabschnitt, período d’imposta) e que consistem numconjunto de fatos, circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados”.45

O autor traz como exemplo o antigo imposto de lucros imobiliários, queincidia sobre a diferença entre o valor de aquisição e o de venda do imóvel e queera devido na venda deste, quando ocorresse a quitação do respectivo preço –o que atualmente ocorre na apuração do imposto de renda sobre ganho decapital – classificando-o como fato gerador complexivo, incidindo sobre um

44 Ob. cit, p. 68.

45 Ob. cit., p.70 e 71.

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valor global cujo ciclo de formação se inicia no momento da aquisição do imóvele só vai aperfeiçoar-se quando da alienação.

Paulo de Barros Carvalho critica essa classificação, pois, na sua visão, “oacontecimento só ganha proporção para gerar o efeito da prestação fiscal, mes-mo que composto por mil outros fatores que se devam conjugar, no instante emque todos estiverem concretizados e relatados, na forma legalmente estipulada”,para concluir que “antes dele, nada de jurídico existe, em ordem ao nascimentoda obrigação tributária”.46

Conjugando-se as duas teses e aplicando-se o art. 116, inciso II, do Có-digo Tributário, chega-se à conclusão da impossibilidade de ocorrência do fatogerador (fato jurídico tributário na visão de Paulo de Barros Carvalho) do ISSna atividade de incorporação imobiliária em que o incorporador é também oconstrutor, pois o fato complexo não permite desmembrar as várias etapas des-se instituto jurídico para tributar exclusivamente a prestação de serviços.

Tal raciocínio encontra guarida também no critério quantitativo do conse-qüente, conforme exposto no item 4.1 desse capítulo, pois a base de cálculo deum imposto não pode incluir elementos de outra hipótese de incidência, sobpena de distorção do fato jurídico tributário e descaracterização do tributo e,até mesmo, de invasão de competência tributária.

Impossível tributar isoladamente a etapa da construção prestada pelo pró-prio incorporador, pois o fato deve guardar absoluta identidade com o desenhonormativo da hipótese, especialmente quando se trata de uma situação jurídicaregulada por outro ramo de direito.

Nunca é demais relembrar os ensinamentos do professor Paulo de Bar-ros: “Para que seja tido como fato jurídico tributário, a ocorrência da vidareal, descrita no suposto da norma individual e concreta expedida pelo órgãocompetente, tem de satisfazer a todos os critérios identificadores tipificados nahipótese da norma geral e abstrata. Que apenas um não seja reconhecido, e adinâmica que descrevemos ficará inteiramente comprometida”.47

Portanto, desprezar as características da incorporação imobiliária paratributá-la como mera prestação de serviços é afastar a finalidade para qual olegislador pátrio instituiu-a, qual seja, a atividade destinada à constituição de

46 Ob. cit., p. 265.

47 Ob. cit., p. 244.

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condomínio edilício, conforme exposto no início deste trabalho e tão bem colo-cado na lição do advogado Melhim Namem Chalub.

Decompor um instituto jurídico meramente para efeito tributário é aban-donar a interpretação teleológica e sistêmica do direito, além de clara violaçãoaos arts. 150, inciso I, e 156, inciso III, da Constituição Federal, além dos arts.108, § 1º, 110 e 116, inciso II, todos do Código Tributário Nacional.

6. CONCLUSÃO

A incorporação imobiliária é um instituto jurídico do direito civil com ca-racterísticas e natureza jurídica próprias, criado pelo legislador ordinário parareduzir o déficit habitacional, através da constituição de condomínio edilício,com a concentração de unidades autônomas em menor espaço físico.

Para atingir tal objetivo, a incorporação imobiliária abrange três ajustesintegrados: a alienação, ainda que potencial, da fração ideal do terreno; a cons-trução do edifício; e a constituição do condomínio.

Em relação à construção, o incorporador poderá executar ele próprio,contratar um construtor ou este ser contratado diretamente pelos adquirentes.Por causa dessas diversas facetas do contrato de incorporação, verifica-se umacerta confusão na posição dos municípios, que passam a exigir o ISS sobre aconstrução, independente da forma de contratação, levando a discussão aostribunais, sem uma posição ainda definitiva sobre a questão.

Quando o construtor é contratado pelo incorporador ou pelos adquiren-tes, haveria incidência do ISS, pois o prestador do serviço seria pessoa distintado tomador – incorporador ou adquirentes.

No caso em que o incorporador assume também a função de construtor,não haveria incidência do ISS, pelos seguintes motivos: ocorrência de prestaçãode serviço para si próprio; posição da jurisprudência sobre a taxatividade dalista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003; e incorporação imobi-liária como um contrato típico, específico, com natureza jurídica própria.

A prestação de serviço para si próprio não é alcançada pelo ISS, postoque prestar serviço pressupõe o fazer algo em prol de outro. Não há que se falarem tributar uma atividade que o executor presta para si mesmo, pois, no caso daincorporação imobiliária, a titularidade do imóvel em edificação ou a ser edifica-do permanece com o incorporador até a constituição definitiva do condomínio eo registro do título translativo.

O argumento da taxatividade da lista de serviços da Lei Complementarrepousa na posição da jurisprudência e no entendimento do constitucionalista

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Jose Afonso da Silva, diante da eficácia limitada da norma contida no art. 156,inciso III, da Constituição Federal.

Por fim, o desmembramento da incorporação imobiliária em etapas dis-tintas, para efeito de tributação da construção pelo ISS, nos casos em que oincorporador é também construtor, afronta os arts. 108, § 1º, 110 e 116, incisoII, todos do Código Tributário Nacional. A análise da regra-matriz tributáriapermite finalizar tais conclusões, posto que um fato jurídico tributário somente seconcretiza quando todos os elementos do antecedente e do conseqüente estãopresentes.

Tratando-se de uma atividade que envolve uma obrigação de dar se so-brepondo à obrigação de fazer, não se pode adotar uma posição simplista, des-considerando toda a complexidade da matéria, para tributar unicamente a faseda construção em detrimento do todo, conforme argumentos expostos ao longodeste trabalho.

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A REFORMA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO E OSREFLEXOS NA “EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA

CONTRA DEVEDOR SOLVENTE”

Julio Cezar HofmanAdvogado

RESUMO: Dando seqüência às reformas que vêm sendo im-plementadas no livro II do CPC, que trata do processo de execução,foi editada em 06/12/2006 a Lei n° 11.382, a qual, após o fim da dicoto-mia dos processos de conhecimento e execução, decorrente da entra-da em vigor da Lei n° 11.282, de 22/12/2005, introduziu importantesalterações na sistemática da execução de título extrajudicial, em espe-cial na modalidade da “execução por quantia certa contra devedorsolvente”.

No presente trabalho, sem se pretender esgotar o tema - atéporque, considerando-se que algumas das alterações implementadaspor aquele diploma legal constituem inovações em nosso sistemaprocessual, que, seguramente, demandarão tempo para que a doutri-na e a jurisprudência as sedimentem – buscar-se-á analisar algunsdos aspectos mais relevantes da citada reforma, no tocante, especifi-camente, à modalidade da “execução por quantia certa, contra deve-dor solvente”.

Palavras-chaves: Execução Título Extrajudicial Reforma.

NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL

O direito positivo, de um modo geral, vivencia, hoje, uma forte tendênciaà descodificação, com o conseqüente surgimento de micro-sistemas (v.g.: Có-digo de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança de Adolescente, Lei dosJuizados Especiais, etc.) permeados de conceitos abertos, tratando tanto de

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direito material quanto processual, acompanhada da valorização da efetividadedo processo, decorrente, em grande parte, do fortalecimento dos direitos e ga-rantias fundamentais, em especial do direito a todos assegurado, no âmbito judi-cial e administrativo, à “... razoável duração do processo e os meios que garan-tam a celeridade de sua tramitação”, assumindo relevo a possibilidade de defe-rimento de tutelas satisfativas, baseadas em cognição sumária.

A par disso, o próprio processo de execução vem sofrendo profundastransformações, das quais cabe salientar a implementada pela Lei n° 11.232/2005, que rompeu definitivamente com o dogma da separação das atividadescognitiva e executiva, fazendo surgir no ordenamento jurídico uma nova fasedentro do próprio processo de conhecimento, denominada fase de “cumpri-mento de sentença”, destinada a dar efetividade às sentenças condenatórias,passando, a partir da entrada em vigor daquele diploma legal, o processo deexecução a ter por objeto apenas e tão somente os títulos executivos extrajudi-ciais, procedimento este que, por sua vez, há muito reclamava alterações estru-turais e principiológicas, a fim de imprimir-lhe maior efetividade.

Com a entrada em vigor da Lei n° 11.382/2006, espera-se que mais esteanseio seja, ao menos em parte, atendido, uma vez que o processo de execuçãosofreu substanciais alterações, não apenas procedimentais, mas também na suaprincipiologia e estrutura, de forma a amoldar-se às exigências de um processocada vez mais célere, eficiente e efetivo.

No presente trabalho, sem se pretender esgotar o tema, proceder-se-á àanálise das alterações implementadas pela Lei n° 11.382/2006, especificamenteno tocante à “execução por quantia certa contra devedor solvente”.

Contudo, para que se possa ter uma visão mais abrangente do real alcan-ce das reformas implementadas, far-se-á, a título de introdução, menção a algu-mas alterações que, conquanto não estejam diretamente inseridas no contextodo processo de “execução por quantia certa contra devedor solvente”, por setratarem de normas de caráter geral, sendo, portanto, aplicáveis a todas as es-pécies de execução, incidem sobre aquela modalidade executiva.

A fim de propiciar um entendimento sistemático do alcance das alteraçõesimplementadas, far-se-á a sua análise seguindo a mesma ordem das disposiçõesno Livro II do CPC, citando-se apenas os dispositivos legais que tenham sofri-do alguma alteração.

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Capitulo IIIDos Requisitos Necessários para Realizar Qualquer Execução

Seção IDo Inadimplemento do Devedor

Art. 580. A execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça aobrigação certa, líquida e exigível, consubstanciada em título executivo.(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

O art. 580 encontra-se inserido na Seção I, Capítulo III, do Livro II doCPC, que trata dos requisitos necessários para a realização de qualquer execu-ção.

E um dos requisitos apontados como necessário para realizar qualquerexecução, é o inadimplemento do devedor.

Na novel redação daquele dispositivo legal, ao contrário do anterior, evi-tou o legislador definir o inadimplemento, limitando-se a aludir à não satisfação,pelo devedor, de obrigação certa, líquida e exigível, consubstanciada em títuloexecutivo, como requisito do processo de execução.

Com isso, pôs-se fim à discussão acerca do ônus da prova do inadimple-mento, que na redação anterior gerou controvérsia doutrinária e jurisprudencial,especialmente no tocante à natureza da decisão que aprecia a presença de talrequisito, conforme bem o apontou Araken de Assis.

(...), a doutrina mais ortodoxa e fiel a Liebman se rendeu à realidade: oadimplemento é causa da extinção da obrigação e motivo de improce-dência da demanda (Cândido Dinamarco, Marcelo Lima Guerra).1

Como é notório, influenciado por Liebman, o CPC em vigor organizou otítulo executivo e o inadimplemento como requisitos necessários para re-alizar qualquer execução. No entanto, nenhum deles se relaciona com ascondições da ação executiva. O pronunciamento judicial sobre a existên-cia, ou não, de inadimplemento respeita ao mérito, tanto que cabe aoexecutado alegar pagamento mediante embargos. A falta de prova doimplemento do termo ou da condição ou do título, é que constituem re-

1 ASSIS, Araken. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VI, (Arts. 566 a 645), Rio de Janeiro.2000. pp. 118.

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quisitos de admissibilidade da demanda executiva. Eventual declaraçãode que o documento exibido não é título, porque refoge à tipologia legal,envolve julgamento de mérito. Desta maneira, conforme o grau de cogni-ção do juiz, o ato decisório, tendo por objeto o título e o inadimplemento,variará de natureza. Limitando-se o juiz à prova do título ou do inadimple-mento, há simples juízo de inadmissibilidade; declarando a inexistênciadesses elementos, ao invés, proverá o órgão judiciário sobre o mérito.2

Embora a designação de pressuposto, em realidade o inadimplemento,considerando o trinômio de questões – pressupostos processuais, condi-ções da ação e mérito – que, no processo brasileiro, ao juiz é dado co-nhecer, integra o objeto litigioso, ou mérito, da demanda.3

Com a reforma implementada, dúvidas não persistem de que ao credorbasta apenas e tão somente comprovar que o devedor não satisfez obrigaçãocerta, líquida e exigível, consubstanciada em título executivo, relegando-se oexame acerca de eventual adimplemento (causa extintiva ou modificativa daobrigação) ao exame de mérito a ser realizado quando do julgamento da açãode embargos à execução.

Este, aliás, já era o entendimento de Araken de Assis4, mesmo na vigênciado art. 580 em sua redação revogada:

A causa de pedir, no processo executivo, consiste na afirmação, realizadapelo credor, de que o obrigado não satisfez, espontaneamente, o direitode crédito reconhecido no título executivo.

Andou bem ainda legislador ao corrigir a deficiente redação do § únicodo art. 580, cujo teor foi deslocado para o caput daquele artigo, a qual conduziaao equivocado entendimento de que a obrigação é que teria força executiva,quando, em verdade, sabe-se que a força executiva independe da natureza daobrigação, estando afeita à existência de título formal que a represente e quepossua força executiva atribuída por lei.

2 Op. cit. pp. 319.

3 Op. cit. pp. 121.

4 Op. cit., pp.

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Seção IIDo Título Executivo

Art. 583. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais: (Redação dada pela Lei nº5.925, de 1º.10.1973) III - os contratos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução,bem como os de seguro de vida; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).IV - o crédito decorrente de foro e laudêmio; (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).V - o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel deimóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas decondomínio; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VI - o crédito de serventuário de justiça, de perito, de intérprete, ou detradutor, quando as custas, emolumentos ou honorários forem aprovadospor decisão judicial; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VII - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, correspon-dente aos créditos inscritos na forma da lei; (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).VIII - todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuirforça executiva. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 586. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre emtítulo de obrigação certa, líquida e exigível. (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).§ 1o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)§ 2o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

O art. 583, segundo o qual “Toda execução tem por base título executivojudicial ou extrajudicial” foi expressamente revogado, já que, desde a entradaem vigor da Lei n° 11.232/2005, não há mais que se falar em execução de títulojudicial.

O art. 585, que atribui, exemplificativamente, força executiva a algunsdocumentos que se consubstanciam no segundo requisito para o aviamento dequalquer processo de execução, que é o título executivo extrajudicial, sofreupequenas alterações em alguns de seus incisos.

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Os incisos I e II não foram alterados. No inciso III foi corrigida a deficien-te redação que fazia referência a “... contratos de hipoteca, de penhor, de anti-crese e de caução ...” (destaquei), quando em verdade se tratam de “... contra-tos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução ...” (destaquei), alémde ser suprimida a sua parte final, que atribuía força executiva aos contratos de“... seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapaci-dade; (destaquei)”, que tantas críticas recebeu, passando a fazer alusão apenase tão somente aos contratos de “...seguro de vida.”

O inciso IV foi desdobrado nos incisos IV, que passou a tratar somentedo foro e laudêmio e V, que passou a tratar do “... crédito, documentalmentecomprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessó-rios, tais como taxas e despesas de condomínio;”

É bom lembrar que este dispositivo atribui força executiva aos “... encar-gos, tais como taxas e despesas de condomínio”, apenas em relação ao inquilinoou fiador que tenha expressamente assumido tais ônus no contrato de locação enão aos débitos resultantes da relação proprietário-condomínio.

O inciso V foi apenas renumerado para VI, sem qualquer alteração. OVI, além de ser renumerado para VII, teve sua redação alterada apenas paracolocar no plural a referência aos territórios e municípios. O VII foi renumeradopara VIII, com a exclusão da excedente vírgula que existia em sua primeiraparte.

Foi corrigida ainda a deficiente redação do caput do art. 586, cujo teor, àexemplo do art. 580, § único, conduzia à equivocada ilação de que a obrigaçãoé que teria força executiva, o que, como visto, não é verdade. Foram revoga-dos, ainda, os §§ 1° e 2° daquele artigo, que tratavam do título executivo judi-cial ilíquido, por não haver mais que se falar em execução de título judicial,seja líquido, seja ilíquido, já que as sentenças condenatórias, desde a entradaem vigor da Lei n° 11.232/2005, são objetos de “cumprimento de sentença”, naforma dos artigos 475-I e seguintes, submetendo-se, se for o caso, à liquidaçãode que cuidam os artigos 475-A e seguintes.

Seção IIDo Título Executivo

Art. 587. É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provi-sória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dosembargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo (art.739). (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

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Segundo se colhe da nova redação do art. 587, é definitiva a execuçãofundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sen-tença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos comefeito suspensivo.

Conforme preceitua o art. 739-A, os embargos do executado não terãoefeito suspensivo. Excepcionalmente, porém, o juiz poderá, a requerimento doembargante, atribuir tal efeito aos embargos quando, sendo relevantes seus fun-damentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao exe-cutado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução jáesteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes (CPC, art. 739-A,§ 1º).

Pela interpretação conjunta dos artigos 587 e 739-A caput e § 1º, perce-be-se que a execução de título extrajudicial será em regra definitiva, já que osembargos à execução não mais possuem efeito suspensivo.

Será provisória, porém, quando, excepcionalmente, os embargos foremrecebidos no efeito suspensivo, desde que presentes os pressupostos a quealude o § 1° do art. 739-A. Neste caso, mesmo que a ação de embargos venhaa ser julgada improcedente, se o efeito suspensivo dos embargos não for revo-gado, a execução será provisória até o trânsito em julgado da sentença, inde-pendentemente de ter sido ou não atribuído efeito suspensivo ao recurso contraela aviado.

É o que se colhe da parte final daquele dispositivo: “... é provisória en-quanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do exe-cutado, quando recebidos com efeito suspensivo” (destaquei).

É que, enquanto na sistemática anterior a propositura da ação de embar-gos à execução, ipso facto, tinha o condão de suspender o andamento da exe-cução, na sistemática atual, para que tal efeito possa ser atribuído à ação deembargos, o juiz deverá antes, mediante requerimento do embargante, verificarse estão presentes os pressupostos a que alude o § 1° do art. 739-A, em segui-da decidindo fundamentadamente.

Logo, não mais decorrendo o efeito suspensivo de imposição legal, massim de decisão judicial, somente pela revogação desta, que, diga-se de passa-gem, poderá ser revogada a qualquer tempo, cessando as circunstâncias que amotivaram (art. 739-A, § 2°), tal efeito poderá ser afastado.

Não há que se confundir, portanto, a suspensividade atribuída aos embar-gos, com o efeito suspensivo do recurso, sendo certo que este, em se tratandode apelação contra sentença de improcedência daqueles, conforme dispõe oart. 520, V, não possui tal efeito.

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Ou seja, ajuizada execução fundada em título executivo extrajudicial enão sendo ela embargada ou ainda sendo embargada sem que, excepcional-mente, tenha sido atribuído efeito suspensivo aos embargos, a execução serásempre definitiva, o que implica dizer que prosseguirá sua marcha até a integralsatisfação do crédito exeqüendo, inclusive com a expropriação do patrimôniodo executado e a entrega do produto ao exeqüente, tanto é assim que na novasistemática os embargos devem ser autuados em apartado e não mais em apen-so como o era anteriormente (art. 736, § único).

Já na hipótese de ser atribuído efeito suspensivo aos embargos, a execu-ção será definitiva até o oferecimento destes, quando passará a ser provisória,assim permanecendo até o trânsito em julgado da sentença prolatada nos em-bargos ou a revogação do efeito suspensivo a eles atribuído (e não ao recurso),caso em que prosseguirá somente até os atos de apreensão e avaliação, quandoentão será suspensa, até o julgamento do recurso ou a revogação do efeitosuspensivo (art. 739-A, § 6°).

Deslocou-se, portando, para o juízo da execução o poder de decisãoacerca da suspensividade dos embargos, o que nos parece salutar, já que nin-guém melhor que o juiz que conduz o processo para avaliar se o prosseguimentoda execução poderá causar ao executado grave dano de difícil ou incerta repa-ração, o que, seguramente, não inibirá que se busque, por meio de agravo deinstrumento ou mesmo mandado de segurança, quando isto for possível, atri-buir-se tal efeito aos embargos, restando aguardar o comportamento da juris-prudência acerca da matéria.

Capítulo IVDa Responsabilidade Patrimonial

Art. 592. Ficam sujeitos à execução os bens:I - do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada emdireito real ou obrigação reipersecutória; (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).II – omissis

O art. 592 sofreu alteração em seu inciso I apenas para excluir a referên-cia à “... sentença proferida em ação fundada em direito real”, já que o livro IIpassou a tratar somente da execução fundada em título executivo extrajudicial,bem como para incluir em sua parte final a referência à obrigação reipersecutó-ria.

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Capítulo VDas Disposições Gerais

Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do execu-tado que: (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). IV - intimado, não indica ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais são e onde seencontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores. (Reda-ção dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

O art. 600, que elenca os atos considerados atentatórios à dignidade dajustiça, sofreu alteração no caput para ampliar a sua incidência a todos os exe-cutados e não mais apenas ao devedor.

Aliás, fica evidente a preocupação do legislador em se utilizar do termoexecutado ao invés de devedor, em todas as hipóteses em que este termo haviasido adotado de forma pouco técnica, como sinônimo de executado, que efeti-vamente não o é.

Já o inciso IV teve sua redação alterada a fim de adequá-lo ao que dispõeo art. 652, § 3°, considerando como ato atentatório à dignidade da justiça o fatodo executado, intimado, não indicar ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais são e ondese encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores.

Remanesce a crítica no sentido de que o legislador olvidou o fato de quetambém o exeqüente poderá, em determinadas circunstâncias, praticar atos emtese atentatórios à dignidade da justiça.

Título IIDas Diversas Espécies de Execução

Capítulo IDas Disposições Gerais

Art. 614. Cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação dodevedor e instruir a petição inicial:I - com o título executivo extrajudicial; (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006). Art. 615-A. O exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidãocomprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das par-tes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, regis-tro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

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§ 1o O exeqüente deverá comunicar ao juízo as averbações efetivadas, noprazo de 10 (dez) dias de sua concretização. (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).§ 2o Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor dadívida, será determinado o cancelamento das averbações de que trataeste artigo relativas àqueles que não tenham sido penhorados. (Incluídopela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o Presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bensefetuada após a averbação (art. 593). (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).§ 4o O exeqüente que promover averbação manifestamente indevida in-denizará a parte contrária, nos termos do § 2o do art. 18 desta Lei, pro-cessando-se o incidente em autos apartados. (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).§ 5o Os tribunais poderão expedir instruções sobre o cumprimento desteartigo. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006). Art. 618. É nula a execução:I - se o título executivo extrajudicial não corresponder a obrigação certa,líquida e exigível (art. 586); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). O art. 614 teve seu inciso I alterado apenas para adequá-lo à novel siste-

mática do Livro II do CPC, excluindo-se a alusão à sentença.Já o art. 615-A, introduzido pela Lei n° 11.382/2006, trouxe importante

inovação ao permitir que o exeqüente, munido de certidão comprobatória doajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, possapromover a averbação, no registro de imóveis, registro de veículos ou registrode outros bens sujeitos à penhora ou arresto, a indisponibilidade de bens doexecutado, suficientes à integral satisfação do débito em execução (CPC, art.615-A), caso em que, nos 10 dias seguintes deverá comunicar o juízo acerca detais averbações (CPC, art. 615-A, § 1°), sendo certo que uma vez efetivada apenhora ou o arresto sobre bens suficientes para cobrir a dívida, serão liberadosda indisponibilidade os bens que não forem penhorados ou arrestados (CPC,art. 615-A, § 2°).

A partir da averbação da indisponibilidade, qualquer alienação ou onera-ção dos bens objetos da averbação presumir-se-á efetuada em fraude à execu-ção, sendo, portanto, ineficaz em relação à execução (CPC, art. 615-A, § 3º),ficando o exeqüente que efetuar averbação manifestamente indevida, sujeito aindenizar o executado nos termos do § 2° do art. 18 do CPC, cujo valor seráapurado em incidente autuado em apenso (CPC, art. 615-A, § 4º).

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Conforme preceitua o art. 593, II, do CPC, a fraude à execução restacaracterizada quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o de-vedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.

Esta é a definição tradicional do marco inicial da fraude à execução, quetanta controvérsia gerou acerca da definição do momento em que se considerapendente a demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência.

Atualmente, no STJ, prevalece o entendimento de que “Só há fraude deexecução quando a alienação ocorre depois de consumada a citação.” (STJ -ADRESP 199700926729 - (160382 SP) - 3ª T. - Rel. Min. Humberto Gomesde Barros - DJU 17.12.2004 - p. 00512).

O art. 615-A, ao estabelecer que o exeqüente poderá, no ato da distri-buição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identi-ficação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imó-veis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arres-to, presumindo-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efe-tuada após a averbação (§ 3º), deslocou para o momento da averbação o mar-co inicial da fraude à execução quando tal faculdade for exercida, pondo fim àlonga controvérsia em torno da definição do momento em que restava caracte-rizada a litispendência para fins de incidência do instituto da fraude à execução.

Há ainda a vantagem adicional de que o ato de averbação, por si só, gerapresunção absoluta de conhecimento por terceiros (erga omnes), aplicando-sepor analogia o § 4º do art. 659. Já no caso do exeqüente não exercer tal facul-dade, somente após a ocorrência da citação do executado e do registro dapenhora é que haverá tal presunção (art. 659, § 4°).

Portanto, se o exeqüente utilizar-se da faculdade a que alude o art. 615-A, prevalece como marco inicial da fraude à execução o momento em que seder a averbação de que cuida o referido dispositivo legal. Contudo, caso oexeqüente não se valha da referida faculdade, permanecerá a necessidade de seindagar o momento em que se configura a litispendência para fins de caracteriza-ção da fraude à execução, cujo marco inicial, conforme entendimento do STJ, éa citação, sendo manifesto pois o prejuízo do exeqüente em tais circunstâncias,uma vez que eventuais alienações ou onerações ocorridas após o ajuizamento eantes da citação não serão consideradas em fraude à execução, mas sim emfraude contra credores, cujo ato, para ser anulado, carecerá da propositura deação pauliana, com todos os seus percalços, inclusive a difícil tarefa de se de-monstrar a presença do consilium fraudis, ao contrário da fraude à execução,cuja ineficácia do ato poderá ser reconhecida no próprio processo de execu-ção, sendo de todo recomendável, portanto, que o exeqüente se valha da facul-dade de que cuida o art. 615-A do CPC.

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A averbação, conforme se depreende do § 2° do art. 615-A, tem nature-za de ato constritivo (pré-penhora), já que se destina a assegurar a eficácia daprópria penhora, nela se convolando quanto aos bens suficientes à satisfação docrédito em execução, cancelando-a apenas em relação aos bens que excede-rem ao necessário.

Para tanto, deverá o exeqüente, nos dez dias seguintes à averbação, co-municar a sua ocorrência ao juízo da execução, possibilitando que sobre taisbens venha a incidir a penhora, bem como a análise de eventual alegação deexcesso.

Deve-se observar, contudo, que apesar do manifesto avanço que o art.615-A representa, permanece a dificuldade de se evitar que o executado sedesfaça de bens móveis como ações ao portador, saldos em contas bancárias,aplicações financeiras, etc., que podem ser facilmente transferidos para tercei-ros de boa ou má-fé com um simples click de mouse, acobertados, na maioriadas vezes, pelo sigilo bancário, tornando quase que impossível ao credor sequertomar conhecimento de tais transações a tempo de evitá-las. A penhora on-line,de que cuida o § 6º, do art. 659 do CPC, introduzido pela Lei n° 11.382/2006,sem dúvida é outro avanço, mas, diante da velocidade com que evolui a infor-mática e se integram os mercados, é cada vez mais fácil a transferência de vulto-sas quantias para os chamados paraísos fiscais, lesando mesmo aqueles credo-res mais precavidos.

Outra alteração que merece menção diz respeito ao depósito dos bensseqüestrados, arrestados ou penhorados, que na sistemática anterior eram de-positados, via de regra, em mãos do próprio executado, o que propiciava quemesmo tais bens, mantidos na posse do executado, como depositário, pudes-sem ser eficazmente alienados a terceiros de boa-fé. A alteração do art. 666 doCPC e em especial a introdução do § 1º àquele mesmo artigo tornam exceção odepósito de bens em mãos do próprio executado, o que, seguramente, contri-buirá para minimizar a possibilidade de alienação ou oneração fraudulenta detais bens a terceiros de boa-fé.

Ainda a respeito do tema, não descurou o legislador da possibilidade doexeqüente, ao exercer a faculdade a que alude o art. 615-A, promover “averba-ção manifestamente indevida”, razão pela qual, além da responsabilidade pelosdanos provocados pela execução injusta (art. 574), o exeqüente fica sujeito àreparação dos danos que vier a causar ao executado por eventual “averbaçãomanifestamente indevida”.

É o que estabelece o § 4º do art. 615-A: O exeqüente que promoveraverbação manifestamente indevida indenizará a parte contrária, nos termos do§ 2º do art. 18 desta Lei, processando-se o incidente em autos apartados.

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Trata-se, contudo, de responsabilidade subjetiva, já que fundada no art.18 do CPC, que cuida da litigância de má-fé, sendo os danos apurados emincidente autuado em apartado.

Diante disso, é de todo recomendável que o exeqüente que pretenda sevaler da faculdade do art. 615-A, já na petição inicial indique à penhora osmesmos bens que irá indisponibilizar, a fim de evitar excesso de constrição (aver-bação + penhora de bens diversos) e eventual alegação de “averbação manifes-tamente indevida”, com suas indesejáveis conseqüências.

Por fim, o § 5º do art. 615-A faculta aos Tribunais a expedição de instru-ções sobre o cumprimento deste artigo, instruções estas que, em relação aosveículos automotores, será imprescindível, a fim de que os DETRAN adotemprocedimentos uniformes e que não venham a tornar ineficaz tão benfazeja ino-vação.

A alteração implementada no inciso I do art. 618 visou apenas adequá-loao Livro II do CPC, que passou a ter por objeto apenas os títulos executivosextrajudiciais, bem como corrigiu a imprecisão técnica de sua redação, que iden-ticamente ao que ocorria com o art. 580, § único e o caput do art. 586, conduziaà equivocada ilação de que a obrigação é que teria força executiva, o que,como dito alhures, não é verdade.

Feitas estas breves observações sobre as alterações implementadas nasdisposições gerais relativas ao processo de execução de título extrajudicial, pas-sar-se-á em seqüência à análise das alterações implementadas naquele que é oobjeto do presente trabalho, qual seja, o processo de execução de título extra-judicial por quantia certa contra devedor solvente.

Capítulo IVDa Execução por Quantia Certa Contra Devedor Solvente

Seção IDa Penhora, da Avaliação e da Expropriação de Bens

(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Subseção I

Das Disposições Gerais

Art. 647. A expropriação consiste:I - na adjudicação em favor do exeqüente ou das pessoas indicadas no §2o do art. 685-A desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - na alienação por iniciativa particular; (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).

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III - na alienação em hasta pública; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).IV - no usufruto de bem móvel ou imóvel. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006). Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: II - os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a resi-dência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem asnecessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida; (Re-dação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado,salvo se de elevado valor; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proven-tos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebi-das por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor esua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de pro-fissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo; (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentosou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer pro-fissão; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VI - o seguro de vida; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essasforem penhoradas; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que tra-balhada pela família; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplica-ção compulsória em educação, saúde ou assistência social; (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).X - até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositadaem caderneta de poupança. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedi-do para a aquisição do próprio bem. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).§ 2o O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no casode penhora para pagamento de prestação alimentícia. (Incluído pela Leinº 11.382, de 2006).

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Art. 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e ren-dimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à satisfação de pres-tação alimentícia. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 651. Antes de adjudicados ou alienados os bens, pode o executado,a todo tempo, remir a execução, pagando ou consignando a importânciaatualizada da dívida, mais juros, custas e honorários advocatícios. (Reda-ção dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

O art. 647 teve seus incisos alterados, com a redefinição de institutos jáconsolidados, como a adjudicação, que passou a constituir o primeiro possívelato de expropriação, bem como a inserção de novéis modalidades de alienaçãodos bens penhorados, como a alienação por iniciativa particular e a alienaçãoem hasta pública, que passou ser o gênero que comporta diversas espécies,como se verá mais adiante, quando da análise dos respectivos dispositivos queos regulamentam.

O art. 649, que trata da impenhorabilidade absoluta, sofreu algumas alte-rações em seus incisos II a X. Nos incisos II e III, apenas se atualizou a suavetusta redação para a realidade de nossos dias; No inciso IV, foram agrupadosos incisos IV e VII, alargando-se a sua abrangência a quaisquer pessoas e nãomais apenas aos magistrados, com a inclusão expressa ainda dos ganhos detrabalhador autônomo e dos honorários de profissional liberal como verbas im-penhoráveis.

O inciso VI foi renumerado para V e passou a abranger os livros, asmáquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveisnecessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão; os incisos IX e VIIIforam renumerados para VI e VII; o X foi renumerado para VIII e teve a suaredação adequada ao texto constitucional; e o V foi revogado.

Como novidades, temos os incisos IX e X que passaram a tratar, respec-tivamente, da impenhorabilidade dos “recursos públicos recebidos por institui-ções privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistênciasocial;” e “até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositadaem caderneta de poupança”.

Das alterações implementadas, a que vem sofrendo maiores críticas é aconstante do inciso X, que estendeu a impenhorabilidade aos saldos existentesem contas de caderneta de poupança, até o limite de quarenta salários mínimos(R$ 15.000,00).

Tal disposição está na contramão da busca da efetividade do processo deexecução, que vem evoluindo exatamente no caminho oposto, qual seja, a via-

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bilização da penhora on-line de valores depositados ou aplicados em institui-ções financeiras como uma das formas mais rápidas e eficazes de satisfação docrédito do exeqüente.

O que mais preocupa é que o referido dispositivo deixa ampla margempara a prática de chicanas como, v.g., transferências de valores aplicados emoutras modalidades de conta ou mesmo de aplicações financeiras para contasde cadernetas de poupança, como forma de tornar impenhoráveis tais valores efrustrar a execução.

Note-se que não há qualquer limite temporal mínimo de permanência dosrecursos depositados nesta modalidade de aplicação para que incida a impe-nhorabilidade, o que possibilitará, v.g., que um valor depositado em conta cor-rente em um determinado dia, no dia seguinte ou quiçá até no mesmo dia, atra-vés de uma simples transferência eletrônica (on-line), se torne impenhorável porter sido transferido para uma conta de caderneta de poupança do executado.

Imagine as discussões que tais transferências irão gerar quanto à incidên-cia ou não do instituto da fraude à execução.

O fato é que além da ampla margem para a prática de atos destinados afrustrar a execução, o que se percebe é o efeito colateral consistente no involun-tário incentivo ao nefasto hábito de poupar para não pagar, não se vislumbran-do nenhuma razoabilidade que possa justificar tal infeliz novidade.

Foram incluídos ainda os §§ 1º e 2º ao art. 649, que estabelecem, res-pectivamente, que “A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do créditoconcedido para a aquisição do próprio bem”, bem como que “O disposto noinciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamen-to de prestação alimentícia”, os quais, pela sua clareza, dispensam maiores co-mentários.

O art. 650 teve seus incisos revogados e o caput foi alterado nele incluin-do-se parte do conteúdo do inciso I, passando a dispor que “Podem ser penho-rados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis,salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia.”

O art. 651 teve sua redação adequada ao novo modelo da execução porquantia certa contra devedor solvente, ampliando ainda a possibilidade de remira execução a todos que figurem no processo na condição de executado e nãomais apenas ao devedor.

É bom lembrar que somente foi mantido o direito do executado remir aexecução, pagando o débito ou consignando o seu valor, não mais subsistindo apossibilidade de os bens adjudicados ou arrematados serem remidos, como severá mais adiante.

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Subseção IIDa Citação do Devedor e da Indicação de Bens

(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 652. O executado será citado para, no prazo de 3 (três) dias, efetuaro pagamento da dívida. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Não efetuado o pagamento, munido da segunda via do mandado, ooficial de justiça procederá de imediato à penhora de bens e a sua avalia-ção, lavrando-se o respectivo auto e de tais atos intimando, na mesmaoportunidade, o executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o O credor poderá, na inicial da execução, indicar bens a serem pe-nhorados (art. 655). (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o O juiz poderá, de ofício ou a requerimento do exeqüente, determinar,a qualquer tempo, a intimação do executado para indicar bens passíveisde penhora. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 4o A intimação do executado far-se-á na pessoa de seu advogado; nãoo tendo, será intimado pessoalmente. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).§ 5o Se não localizar o executado para intimá-lo da penhora, o oficialcertificará detalhadamente as diligências realizadas, caso em que o juizpoderá dispensar a intimação ou determinará novas diligências. (Incluídopela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 652-A. Ao despachar a inicial, o juiz fixará, de plano, os honoráriosde advogado a serem pagos pelo executado (art. 20, § 4o). (Incluído pelaLei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. No caso de integral pagamento no prazo de 3 (três)dias, a verba honorária será reduzida pela metade. (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (Re-dação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição finan-ceira; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - veículos de via terrestre; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - bens móveis em geral; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - bens imóveis; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).V - navios e aeronaves; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).VI - ações e quotas de sociedades empresárias; (Redação dada pela Leinº 11.382, de 2006).

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VII - percentual do faturamento de empresa devedora; (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).VIII - pedras e metais preciosos; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal comcotação em mercado; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado; (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).XI - outros direitos. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Na execução de crédito com garantia hipotecária, pignoratícia ouanticrética, a penhora recairá, preferencialmente, sobre a coisa dada emgarantia; se a coisa pertencer a terceiro garantidor, será também esseintimado da penhora. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o Recaindo a penhora em bens imóveis, será intimado também o côn-juge do executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou apli-cação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à auto-ridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio ele-trônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado,podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indi-cado na execução. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o As informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ouaplicação até o valor indicado na execução. (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).§ 2o Compete ao executado comprovar que as quantias depositadas emconta corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649desta Lei ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o Na penhora de percentual do faturamento da empresa executada,será nomeado depositário, com a atribuição de submeter à aprovaçãojudicial a forma de efetivação da constrição, bem como de prestar contasmensalmente, entregando ao exeqüente as quantias recebidas, a fim deserem imputadas no pagamento da dívida. (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).Art. 655-B. Tratando-se de penhora em bem indivisível, a meação docônjuge alheio à execução recairá sobre o produto da alienação do bem.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

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Art. 656. A parte poderá requerer a substituição da penhora: (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - se não obedecer à ordem legal; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).II - se não incidir sobre os bens designados em lei, contrato ou ato judicialpara o pagamento; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - se, havendo bens no foro da execução, outros houverem sido penho-rados; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - se, havendo bens livres, a penhora houver recaído sobre bens jápenhorados ou objeto de gravame; (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).V - se incidir sobre bens de baixa liquidez; (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).VI - se fracassar a tentativa de alienação judicial do bem; ou (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).VII - se o devedor não indicar o valor dos bens ou omitir qualquer dasindicações a que se referem os incisos I a IV do parágrafo único do art.668 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o É dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicaronde se encontram os bens sujeitos à execução, exibir a prova de suapropriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus, bem como abs-ter-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da pe-nhora (art. 14, parágrafo único). (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o A penhora pode ser substituída por fiança bancária ou seguro garan-tia judicial, em valor não inferior ao do débito constante da inicial, mais30% (trinta por cento). (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o O executado somente poderá oferecer bem imóvel em substituiçãocaso o requeira com a expressa anuência do cônjuge. (Incluído pela Leinº 11.382, de 2006).Art. 657. Ouvida em 3 (três) dias a parte contrária, se os bens inicialmen-te penhorados (art. 652) forem substituídos por outros, lavrar-se-á o res-pectivo termo. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. O juiz decidirá de plano quaisquer questões suscitadas.(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).

A Seção II do Capítulo IV do Livro II do CPC, antes denominada “DaCitação do Devedor e da Nomeação de Bens”, foi renomeada para “Da Cita-ção do Devedor e da Indicação de Bens”.

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O art. 652 sofreu substancial alteração, passando o executado a ser cita-do para, no prazo de três dias efetuar o pagamento da dívida, não mais lheassistindo o direito à nomeação de bens.

Com efeito, na sistemática anterior o executado era citado para, no prazode vinte e quatro horas, pagar ou nomear bens à penhora, sob pena de não ofazendo serem penhorados tantos bens quantos bastassem à satisfação do débi-to, de sorte que somente após a citação e desde que não ocorresse a nomeaçãode bens à penhora é que o oficial de justiça poderia promover a penhora debens do executado.

No novo sistema, “Não efetuado o pagamento, munido da segunda viado mandado, o oficial de justiça procederá de imediato à penhora de bens e asua avaliação, lavrando-se o respectivo auto e de tais atos intimando, na mesmaoportunidade, o executado”, podendo o credor, “... na inicial da execução, indi-car bens a serem penhorados (art. 655)”, devendo observar o disposto no art.655, que estabelece a ordem preferencial em que deve se dar a penhora.

Nada obstante não mais assistir ao executado o direito de nomear bens àpenhora, persiste a sua obrigação de indicar os bens de sua propriedade susce-tíveis de serem penhorados, consoante estabelece o § 3° do art. 652, para oque será intimado na pessoa de seu advogado (§ 4º) e não o tendo pessoalmen-te.

Efetuada a penhora, do mesmo modo, a intimação do executado quepossuir advogado será a este dirigida.

Não possuindo advogado constituído, a intimação do executado deveráser pessoal, com a observância de que “Se não localizar o executado para inti-má-lo da penhora, o oficial certificará detalhadamente as diligências realizadas,caso em que o juiz poderá dispensar a intimação ou determinará novas diligên-cias.”

Esta é mais uma salutar inovação, que seguramente contribuirá para aceleridade do processo executivo, neutralizando eventuais manobras do execu-tado no sentido de se ocultar da intimação, dificultando a regular tramitação doprocesso.

Vale lembrar que com a introdução do art. 615-A ao CPC, o exeqüente,munido de certidão comprobatória do ajuizamento da execução, poderá pro-mover a averbação, no registro de imóveis, registro de veículos ou registro deoutros bens sujeitos à penhora ou arresto, da indisponibilidade de bens do exe-cutado, caso em que, a partir da averbação da indisponibilidade, qualquer alie-nação ou oneração dos bens objetos da averbação presumir-se-á efetuada em

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fraude à execução, sendo, portanto, ineficaz em relação à execução (CPC, art.615-A, § 3º).

É salutar, portanto, como dito alhures, que na hipótese de o exeqüentepretender utilizar-se de tal faculdade, indique desde logo à penhora, na petiçãoinicial, os mesmos bens que pretende indisponibilizar, a fim de evitar a possívelimputação de “alienação manifestamente indevida”, decorrente da indisponibili-dade de determinados bens e da penhora de outros, diversos daqueles, emmanifesto excesso de constrição, que poderá sujeitá-lo à reparação de eventu-ais danos que o executado venha sofrer (CPC, art. 615, 4º).

Com a inclusão do art. 652-A do CPC, ao despachar a inicial, o juizfixará, de plano, os honorários de advogado a serem pagos pelo executado, naconformidade do art. 20, § 4º do CPC (consoante apreciação eqüitativa do juiz,atendidas as normas das alíneas “a”, “b” e “c” do § 3º do art. 20 do CPC),sendo que no caso de integral pagamento do débito, no prazo de três dias apósa citação, a verba honorária será reduzida pela metade (art. 652-A, § único).

De acordo com o art. 745-A, no prazo para embargos (15 dias após ajuntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido), reconhecen-do o crédito do exeqüente e comprovando o depósito de 30% do valor emexecução, inclusive custas e honorários de advogado, poderá o executado re-querer seja admitido a pagar o restante em até 6 parcelas mensais, acrescidasde correção monetária e juros de 1% ao mês, sendo que na hipótese de serdeferida pelo juiz a proposta, o exeqüente levantará a quantia depositada e se-rão suspensos os atos executivos, importando o não pagamento de qualquerdas prestações, de pleno direito, o vencimento das subseqüentes e o prossegui-mento do processo, com o imediato início dos atos executivos, imposta ao exe-cutado multa de 10% sobre o valor das prestações não pagas e vedada a opo-sição de embargos. Indeferida a proposta, o depósito será mantido e seguir-se-ão os atos executivos.

Parece claro que na hipótese de o executado utilizar-se da prerrogativade que cuida o art. 745-A, os honorários advocatícios não sofrerão a redução aque alude o § único do art. 652-A, já que aquela hipótese faz alusão ao paga-mento integral, nos três dias após a citação.

Ainda no que concerne à citação, com a nova dicção do art. 738, é dajuntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido (e não daintimação da penhora) que começa a fluir o prazo de 15 dias para o executadoopor-se à execução por meio de embargos, sendo que quando houver mais deum executado, o prazo para cada um deles embargar conta-se a partir da junta-

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da do seu respectivo mandado citatório, salvo tratando-se de cônjuges (CPC,art. 738, § 1º), não se aplicando à hipótese o disposto no art. 191 do CPC(prazo em dobro quando os executados tiverem advogados distintos), por dis-posição expressa do § 3º do próprio art. 738.

Já na hipótese da execução processar-se por carta precatória, a citaçãodo executado deverá ser imediatamente comunicada pelo juiz deprecado ao juizdeprecante, inclusive por meios eletrônicos, contando-se o prazo para embar-gos a partir da juntada aos autos de tal comunicação (e não da carta precatória).

De acordo com o art. 655, tanto o oficial de justiça, ao penhorar os bensdo executado, quanto o credor ao indicar bens à penhora na petição inicial(CPC, art. 652, § 2º), deve observar, preferencialmente, a ordem estabelecidanos incisos daquele dispositivo legal quais sejam:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituiçãofinanceira;

II - veículos de via terrestre;III - bens móveis em geral;IV - bens imóveis;V - navios e aeronaves;

VI - ações e quotas de sociedades empresárias;VII - percentual do faturamento de empresa devedora;VIII - pedras e metais preciosos;IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com

cotação em mercado;X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;

XI - outros direitos.

Vale lembrar que na sistemática anterior a ordem de nomeação era dirigi-da essencialmente ao executado, que ao exercer o direito à nomeação de bens,estava adstrito à ordem legal de preferência, sob pena de ineficácia da nomea-ção, devolvendo-se o direito de nomear ao exeqüente.

Na sistemática atual, também o executado, quando intimado a indicarbens passíveis de serem constritos, deverá, preferencialmente, observar aque-la ordem. A diferença é que quando proceder à indicação de bens passíveis deserem penhorados não mais estará exercendo um direito, mas sim cumprindoobrigação legalmente imposta (art. 652, § 3º).

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Pela nova redação do § 1º do art. 655, a penhora do bem dado emgarantia passou a ser apenas preferencial e não mais impositiva, como o era porforça do art. 655, § 2º em sua antiga redação. A razão de ser de tal alteraçãonos parece ter sido a preocupação com a efetividade da execução, já que, mui-tas vezes, a penhora do bem ofertado em garantia não se mostrava a forma maiseficaz do credor ter seu crédito satisfeito.

O disposto no § único do art. 669 foi deslocado para o § 2° do art. 655,alterando-se ainda sua redação para fazer referência ao “cônjuge do executa-do” e não do “devedor”, como constava anteriormente.

Com a inserção do art. 655-A e do § 6º ao art. 659 do CPC, restouregulamentada a possibilidade do juiz, a requerimento do exeqüente, requisitar àautoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrô-nico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendono mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execu-ção, convalidando a penhora on-line de ativos em depósito ou aplicação finan-ceira. As informações solicitadas, contudo, devem limitar-se à existência ou nãode depósito ou aplicação até o valor indicado na execução (art. 655-A, § 1º),competindo ao executado comprovar que as quantias depositadas em contacorrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649 do CPC ouque estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade, como a decorrentedo inciso X do art. 649 (CPC, art. 655-A, § 2º).

A penhora on-line teve sua origem no processo de execução trabalhista,tendo o TST firmado, em março de 2002, um convênio com o BACEN, deno-minado Convênio BACEN JUD, que tinha por objetivo permitir aos juízes tra-balhistas encaminharem ofícios eletrônicos (através da Internet) ao BACEN,determinando o bloqueio e o desbloqueio de contas correntes ou aplicaçõesfinanceiras dos executados, limitadas ao valor em execução. Pelo fato do Con-vênio BACEN JUD possibilitar a penhora de créditos dos executados atravésda Internet, ou seja, de maneira virtual e imediata, convencionou-se denominartal modalidade de constrição judicial como “penhora on-line.”

Posteriormente, foi firmado Convênio de Cooperação Técnico Institucio-nal entre o BACEN e o STJ, para fins de utilização do Sistema BACEN JUDpela justiça comum estadual e federal, utilização esta que gerou acirrada discus-são jurisprudencial, entendendo alguns tribunais que somente poderia se darapós o “Esgotamento dos meios ao alcance do credor para encontrar bens pe-nhoráveis.” (1º TACSP - AI 7012830-6 - (59746) - São Paulo - Rel. Juiz RuiCascaldi - J. 18.05.2005), ou que “O bloqueio de contas bancárias, conhecido

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como penhora on line, por meio do Banco Central, assim como a determinaçãojudicial à Receita Federal e às instituições financeiras para prestar informaçõessobre a existência de bens penhoráveis, constitui medida excepcional a ser em-preendida pelo juízo da execução quando exauridas as providências ao alcancedo credor para realização da constrição.” (TJRO - AI 100.001.2003.015982-1 - C.Cív. - Rel. Des. Péricles Moreira Chagas - J. 04.10.2005), ou ainda que“O bloqueio de verbas constantes em saldo de conta corrente é uma faculdadeconferida ao magistrado singular, a qual depende de demonstração de fato con-creto que a justifique.” (TJMS - AG 2005.011303-4/0000-00 - Bela Vista - 3ªT.Cív. - Rel. Des. Paulo Alfeu Puccinelli - J. 26.09.2005), o que tornou escassaa aplicação de tal modalidade de penhora no âmbito da justiça comum federal eestadual.

Como o art. 655-A não estabelece qualquer restrição ao uso da penhoraon-line, como, v.g., o esgotamento dos meios ao alcance do credor para en-contrar bens penhoráveis, parece que não poderão os tribunais, ao regulamen-tar a operacionalização de tal modalidade de penhora, conforme lhes faculta o §6º do art. 659, estabelecer restrições à sua utilização, devendo apenas ser disci-plinado o procedimento operacional para a sua efetivação, esperando-se que aregulamentação possa ao menos reduzir a ojeriza dos magistrados ao uso de talmodalidade de penhora.

Em verdade, o que se percebe é que a resistência ao uso de tal modalida-de de penhora se deve, basicamente, à dificuldade de alguns magistrados dedistinguir com clareza a abrangência do denominado sigilo bancário, o qual, poróbvio, não foi instituído com a finalidade de propiciar a ocultação de ativospelos devedores a fim de se safar do pagamento de seus débitos.

A penhora on-line, na forma como concebida, não irá violar o sigilo damovimentação financeira do executado, já que as informações a serem solicita-das restringir-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valorindicado na execução.

Não deverá o juiz, por óbvio, requerer o detalhamento da movimentaçãofinanceira do executado, o qual é absolutamente irrelevante para a efetivação dapenhora on-line, a não ser a informação de eventual movimentação a débitoocorrida após a expedição da determinação judicial com o fito de frustrá-la.

Não se pode olvidar, por outro lado, que a via ordinária da quebra dosigilo bancário é exatamente a judicial, sendo incompreensível a resistência dosmagistrados à implementação da penhora on-line, mormente considerando-seque, via de regra, não há quebra do sigilo propriamente, já que as informaçõeslimitam-se à propriedade de ativos depositados em instituições financeiras.

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Outro ponto que não pode ser ignorado é o fato de a nova redação doart. 655 fazer menção, além do dinheiro, em espécie, ao depósito ou aplicaçãoem instituição financeira, situando-os no ápice da ordem de preferência parafins de penhora, em seu inciso I.

Aliás, é bom que se recorde o que foi dito quanto ao disposto no art. 649,X, acerca da janela que se abriu para a fraude e a ocultação de ativos deposita-dos em instituições financeiras, com a impenhorabilidade a que alude referidodispositivo legal, o qual seguramente trará reflexos negativos, diretos e imedia-tos na penhora on-line.

De todo modo, a inovação é importante e o que se espera é que restri-ções muitas vezes insustentáveis sob o ponto de vista jurídico, não venham atornar inócua tão importante ferramenta posta à disposição do Poder Judiciárioe dos jurisdicionados, como forma de dar maior efetividade ao processo deexecução.

O § 3° do art. 655-A regulamenta a penhora de percentual do faturamen-to da empresa executada, medida esta que já vinha sendo determinada por al-guns juízes antes mesmo da reforma.

Outra inovação importante foi introduzida pelo art. 655-B, ao estatuir que“Tratando-se de penhora em bem indivisível, a meação do cônjuge alheio àexecução recairá sobre o produto da alienação do bem.”

É mais um entendimento que já estava consolidado pela jurisprudência.Contudo, a sua positivação traz maior segurança jurídica e é de todo bem vinda.

Pela nova redação do art. 656, que anteriormente tratava da ineficácia danomeação de bens à penhora pelo devedor, cujo direito foi extinto, “A partepoderá requerer a substituição da penhora: I - se não obedecer à ordem legal; II- se não incidir sobre os bens designados em lei, contrato ou ato judicial para opagamento; III - se, havendo bens no foro da execução, outros houverem sidopenhorados; IV - se, havendo bens livres, a penhora houver recaído sobre bensjá penhorados ou objeto de gravame; V - se incidir sobre bens de baixa liquidez;VI - se fracassar a tentativa de alienação judicial do bem; ou VII - se o devedornão indicar o valor dos bens ou omitir qualquer das indicações a que se referemos incisos I a IV do parágrafo único do art. 668 desta Lei.”

A primeira observação que se faz é que o pedido de substituição pode serfeito tanto pelo exeqüente como pelo executado, já que o dispositivo refere-se àparte.

No mais, o que se verifica é que o legislador aproveitou as hipótesesanteriormente previstas como passíveis de ineficácia da nomeação efetuada pelo

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executado, para elencá-las como motivos ensejadores do direito de postular asubstituição dos bens penhorados tanto pelo exeqüente quanto pelo executado.

Com efeito, conforme se percebe pelo disposto no inciso I, v.g., con-quanto a ordem legal constante dos incisos do art. 655 seja preferencial, confor-me consta do seu caput, a não observância daquela ordem, aliada à discordân-cia da outra parte, poderá gerar o direito da parte adversa de pleitear a substi-tuição dos bens penhorados.

No caso do executado, entretanto, o direito à substituição por quaisquerdos motivos constantes dos incisos do art. 656 somente poderá ser exercido sefor observado quanto ao bem substituto o disposto nos §§ 1º e 3º daqueleartigo.

Poderá ainda o executado requerer que a penhora seja “substituída porfiança bancária ou seguro garantia judicial, em valor não inferior ao do débitoconstante da inicial, mais 30% (trinta por cento)”.

O art. 657 elenca as providências que devem preceder a substituição,determinando a oitiva da parte contrária, no prazo de três dias, devendo, após adecisão de plano das questões suscitadas, ser formalizada a penhora substitutivapor termo nos autos, a ser lavrado pelo escrivão.

Subseção IIIDa Penhora e do Depósito

Art. 659. A penhora deverá incidir em tantos bens quantos bastem para opagamento do principal atualizado, juros, custas e honorários advocatíci-os. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Efetuar-se-á a penhora onde quer que se encontrem os bens, aindaque sob a posse, detenção ou guarda de terceiros. (Redação dada pelaLei nº 11.382, de 2006).§ 4o A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo depenhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação doexecutado (art. 652, § 4o), providenciar, para presunção absoluta de co-nhecimento por terceiros, a respectiva averbação no ofício imobiliário,mediante a apresentação de certidão de inteiro teor do ato, independen-temente de mandado judicial. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 6o Obedecidas as normas de segurança que forem instituídas, sob crité-rios uniformes, pelos Tribunais, a penhora de numerário e as averbaçõesde penhoras de bens imóveis e móveis podem ser realizadas por meios

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eletrônicos. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 666. Os bens penhorados serão preferencialmente depositados: (Re-dação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - em mãos de depositário particular, os demais bens. (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Com a expressa anuência do exeqüente ou nos casos de difícil remo-ção, os bens poderão ser depositados em poder do executado. (Incluídopela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o As jóias, pedras e objetos preciosos deverão ser depositados comregistro do valor estimado de resgate. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).§ 3o A prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio pro-cesso, independentemente de ação de depósito. (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).Art. 668. O executado pode, no prazo de 10 (dez) dias após intimado dapenhora, requerer a substituição do bem penhorado, desde que compro-ve cabalmente que a substituição não trará prejuízo algum ao exeqüente eserá menos onerosa para ele devedor (art. 17, incisos IV e VI, e art.620). (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo, ao executado incum-be: (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).I - quanto aos bens imóveis, indicar as respectivas matrículas e registros,situá-los e mencionar as divisas e confrontações; (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).II - quanto aos móveis, particularizar o estado e o lugar em que se encon-tram; (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).III - quanto aos semoventes, especificá-los, indicando o número de cabe-ças e o imóvel em que se encontram; (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).IV - quanto aos créditos, identificar o devedor e qualificá-lo, descreven-do a origem da dívida, o título que a representa e a data do vencimento; e(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).V - atribuir valor aos bens indicados à penhora. (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).Art. 669. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

Conforme já mencionado e se depreende da nova redação do art. 659, odevedor não tem mais o direito de nomear bens à penhora, devendo o oficial de

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justiça, uma vez efetuada a citação e em não ocorrendo o pagamento nos 3 diasseguintes, promover desde logo a penhora de bens (CPC, art. 652, § 1º c/c659, caput).

Vale lembrar ainda que a reforma ensejou ao exeqüente a possibilidadede promover a indisponibilidade de bens do executado, na forma do art. 615-A,bem como de indicar na petição inicial os bens a serem penhorados, sendo detodo recomendável que a indicação recaia sobre os mesmos bens que se pre-tenda indisponibilizar, a fim de evitar os inconvenientes antes mencionados.

A redação do § 1º do art. 659 foi alterada para excluir a alusão de que“Efetuar-se-á penhora onde quer que se encontrem os bens, ainda que em re-partição pública; caso em que precederá requisição do juiz ao respectivo che-fe”, que se encontrava caduca, pela assertiva de que “Efetuar-se-á a penhoraonde quer que se encontrem os bens, ainda que sob a posse, detenção ou guar-da de terceiros.”

O § 4° teve sua redação corrigida apenas para fazer referência à averba-ção e não mais ao registro da penhora, como equivocadamente constava daredação anterior.

O § 6°, acrescido pela Lei n° 11.382/2006, na esteira da tendência àutilização dos meios eletrônicos como forma de agilizar a tramitação processual,trouxe importante novidade ao possibilitar que, “Obedecidas as normas de se-gurança que forem instituídas, sob critérios uniformes, pelos Tribunais, a penho-ra de numerário e as averbações de penhoras de bens imóveis e móveis podemser realizadas por meios eletrônicos.”

Sobre a penhora on-line, remete-se ao quanto foi dito quando da análisedo art. 655-A.

Já no que respeita à implementação da rotina de averbações de penhorasde bens móveis ou imóveis via on-line, por força do disposto no § 6º do art.659, só poderá ocorrer após a regulamentação pelos respectivos tribunais, naárea de sua competência. Contudo, a positivação de tal possibilidade mereceaplausos, restando torcer para que os tribunais façam a sua parte, regulamen-tando a matéria, com a brevidade que a sociedade espera. Essa forma de aver-bação terá especial eficácia em se tratando de veículos e bens imóveis.

Pela redação do art. 666, seus incisos e § 1°, verifica-se que ao contráriodo que se dava antes da reforma implementada pela Lei n° 11.382/2006, oexecutado não ostenta mais a condição de depositário preferencial dos benspenhorados, ainda que na sistemática anterior o depósito em suas mãos fossecondicionado à concordância do exeqüente.

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Com a nova redação do art. 666 e seu § 1°, somente não sendo o casodo depósito ser efetivado na forma do disposto nos incisos I (no Banco doBrasil, na Caixa Econômica Federal, ou em um banco, de que o Estado-Membro da União possua mais de metade do capital social integralizado;ou, em falta de tais estabelecimentos de crédito, ou agências suas no lugar,em qualquer estabelecimento de crédito, designado pelo juiz, as quantiasem dinheiro, as pedras e os metais preciosos, bem como os papéis de crédi-to), II (em poder do depositário judicial, os móveis e os imóveis urbanos) eIII (em mãos de depositário particular, os demais bens), é que, com a ex-pressa anuência do exeqüente ou nos casos de difícil remoção (CPC, art. 666,§ 1º), os bens poderão ser depositados em poder do executado.

Trata-se de mais um alteração que seguramente trará efeitos positivos,pois o depósito dos bens penhorados em mãos do executado, especialmenteem se tratando de bens móveis, deixava-o em uma situação bastante cômoda,pois podia continuar usufruindo a coisa até que finalmente ocorresse a aliena-ção, muitas vezes provocando a desvalorização pelo simples uso normal, quesequer ensejava indenização.

Basta que se cite o exemplo da penhora incidente sobre veículos, em queo executado fosse nomeado depositário, para que se possa avaliar da importân-cia da alteração.

Não sendo os bens penhorados depositados em mãos do executado,com a sua conseqüente remoção, privando-o do seu usufruto, seguramente terámaior interesse em regularizar sua situação de inadimplemento nos casos em quetenha condições de fazê-lo.

O § 3º do art. 666, inserido pela Lei n° 11.382/2006, veio positivar en-tendimento que já se encontrava sedimentado na jurisprudência (STF, Súmula619), no sentido de que a prisão civil do depositário infiel pode ser decretada nopróprio processo de execução, independentemente de ação de depósito.

O art. 668 teve sua redação alterada para limitar o pedido de substituiçãodo bem penhorado pelo executado, que antes podia ser postulada a todo tem-po, antes da arrematação ou da adjudicação, ao prazo de dez dias após serintimado da penhora, “desde que comprove cabalmente que a substituição nãotrará prejuízo algum ao exeqüente e será menos onerosa para ele devedor (art.17, incisos IV e VI, e art. 620)”, incumbindo-lhe, ainda, “I - quanto aos bensimóveis, indicar as respectivas matrículas e registros, situá-los e mencionar asdivisas e confrontações; II - quanto aos móveis, particularizar o estado e o lugarem que se encontram; III - quanto aos semoventes, especificá-los, indicando o

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número de cabeças e o imóvel em que se encontram; IV - quanto aos créditos,identificar o devedor e qualificá-lo, descrevendo a origem da dívida, o título quea representa e a data do vencimento; e V - atribuir valor aos bens indicados àpenhora.”

Desse modo, pretendendo o executado requerer a substituição do bempenhorado, deverá fazê-lo, nos dez dias que se seguirem à intimação da penho-ra, sob pena de não o fazendo, decair de tal direito.

Trata-se de mais uma importante alteração, que trará maior segurançapara o exeqüente, que ficará menos exposto a chicanas processuais consubs-tanciadas em pedidos de substituição manifestamente incabíveis, que, podendoser manifestados a qualquer tempo “... antes da arrematação ou adjudicação...”, acabavam tumultuando o trâmite da execução, retardando a satisfação docrédito do exeqüente.

O art. 669, que determinava que uma vez feita a penhora fosse o devedordela intimado para embargar a execução, no prazo de dez dias, foi expressa-mente revogado em razão da alteração implementada no Título III, do Livro II,do CPC, que trata dos embargos.

Subseção VIDa Avaliação

Art. 680. A avaliação será feita pelo oficial de justiça (art. 652), ressalva-da a aceitação do valor estimado pelo executado (art. 668, parágrafoúnico, inciso V); caso sejam necessários conhecimentos especializados, ojuiz nomeará avaliador, fixando-lhe prazo não superior a 10 (dez) diaspara entrega do laudo. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 681. O laudo da avaliação integrará o auto de penhora ou, em casode perícia (art. 680), será apresentado no prazo fixado pelo juiz, devendoconter: (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. Quando o imóvel for suscetível de cômoda divisão, oavaliador, tendo em conta o crédito reclamado, o avaliará em partes, su-gerindo os possíveis desmembramentos. (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).Art. 683. É admitida nova avaliação quando: (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).I - qualquer das partes argüir, fundamentadamente, a ocorrência de errona avaliação ou dolo do avaliador; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).

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II - se verificar, posteriormente à avaliação, que houve majoração ou di-minuição no valor do bem; ou (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).III - houver fundada dúvida sobre o valor atribuído ao bem (art. 668,parágrafo único, inciso V). (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 684. Não se procederá à avaliação se:I - o exeqüente aceitar a estimativa feita pelo executado (art. 668, pará-grafo único, inciso V); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 685. Após a avaliação, poderá mandar o juiz, a requerimento dointeressado e ouvida a parte contrária:Parágrafo único. Uma vez cumpridas essas providências, o juiz dará inícioaos atos de expropriação de bens. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).

De acordo com a nova redação do art. 680, a avaliação será feita, emregra, pelo oficial de justiça, ressalvada a aceitação do valor estimado pelo exe-cutado (art. 668, parágrafo único, inciso V). Para tanto, a Lei n° 11.382/2006fez incluir o inciso V ao art. 143, o qual atribui ao oficial de justiça “... efetuaravaliações ...”.

Somente quando forem necessários conhecimentos especializados, o juiznomeará avaliador, fixando-lhe prazo não superior a 10 (dez) dias para entregado laudo.

Pela nova redação do art. 681, o laudo da avaliação (e não mais doavaliador) integrará o auto de penhora ou, em caso de perícia (art. 680), seráapresentado no prazo fixado pelo juiz, sendo que, quando o imóvel for suscetí-vel de cômoda divisão, o avaliador, tendo em conta o crédito reclamado, oavaliará em partes, sugerindo os possíveis desmembramentos.

Os artigos 683 e 684, que tratam, respectivamente, das hipóteses de re-avaliação e de dispensa da avaliação, não trouxerem inovações que mereçammaiores comentários, a não ser a revogação do inciso III do art. 684, que dis-pensava a avaliação quando os bens fossem de pequeno valor, por ser manifes-tamente contraditório, na medida em que, para se saber se os bens eram depequeno valor, necessário que se procedesse à sua avaliação.

No que respeita à avaliação, merecem destaque as conseqüências para oexeqüente ante sua atitude no momento em que é intimado para manifestar-sesobre o requerimento de substituição do bem penhorado feito pelo executado.

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Se o exeqüente, aceitando o bem que foi oferecido em substituição, silenciarquanto ao valor a ele atribuído, terá aceito também a estimativa do valor, o quepoderá trazer sérias conseqüências por ocasião da arrematação ou em caso deadjudicação, por ocasião da alienação forçada, cujo lance, em primeira praçaou leilão, não poderá ser inferior ao valor da avaliação, sendo relevante ainda ovalor da avaliação quando da verificação de se tratar ou não de alienação porpreço vil.

Subseção VI-ADa Adjudicação

(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 685-A. É lícito ao exeqüente, oferecendo preço não inferior ao daavaliação, requerer lhe sejam adjudicados os bens penhorados. (Incluídopela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Se o valor do crédito for inferior ao dos bens, o adjudicante deposi-tará de imediato a diferença, ficando esta à disposição do executado; sesuperior, a execução prosseguirá pelo saldo remanescente. (Incluído pelaLei nº 11.382, de 2006).§ 2o Idêntico direito pode ser exercido pelo credor com garantia real,pelos credores concorrentes que hajam penhorado o mesmo bem, pelocônjuge, pelos descendentes ou ascendentes do executado. (Incluído pelaLei nº 11.382, de 2006).§ 3o Havendo mais de um pretendente, proceder-se-á entre eles à licita-ção; em igualdade de oferta, terá preferência o cônjuge, descendente ouascendente, nessa ordem. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 4o No caso de penhora de quota, procedida por exeqüente alheio àsociedade, esta será intimada, assegurando preferência aos sócios. (In-cluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 5o Decididas eventuais questões, o juiz mandará lavrar o auto de adju-dicação. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 685-B. A adjudicação considera-se perfeita e acabada com a lavra-tura e assinatura do auto pelo juiz, pelo adjudicante, pelo escrivão e, sefor presente, pelo executado, expedindo-se a respectiva carta, se bemimóvel, ou mandado de entrega ao adjudicante, se bem móvel. (Incluídopela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. A carta de adjudicação conterá a descrição do imóvel,com remissão a sua matrícula e registros, a cópia do auto de adjudicação

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e a prova de quitação do imposto de transmissão. (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).

A Lei n° 11.382/2006 fez inserir no Capítulo IV, Seção I, do Livro II, doCPC, a Subseção VI-A, que trata “Da Adjudicação.”

Segundo se colhe dos artigos 685-A e 685-B, a adjudicação, que podeser requerida pelo exeqüente imediatamente após a formalização da penhora erespectiva avaliação e intimações cabíveis, passou a ser o primeiro possível atode expropriação de bens do executado, precedendo as fases de “Alienação porIniciativa Particular” (CPC, art. 685-C) e “Alienação em Hasta Pública” (CPC,art. 686 e segs.).

De fato, invertendo a ordem vigente na sistemática anterior, a adjudicaçãode bens, que só podia ser requerida após a frustração das praças ou leilões,passou a ser o primeiro possível ato expropriatório dos bens penhorados, pre-cedendo a qualquer outra modalidade de expropriação.

Em assim sendo, uma vez efetivada a penhora e promovidas as respecti-vas intimações, poderá o exeqüente, desde que não ofereça preço inferior ao daavaliação, requerer a adjudicação dos bens penhorados, evitando que a execu-ção se prolongue com a adoção dos subseqüentes meios de expropriação, oque, seguramente trará maior efetividade ao processo executivo.

Tal direito, contudo, não é restrito ao exeqüente, podendo ser exercido,identicamente, pelo credor com garantia real; pelos credores concorrentes quehajam penhorado o mesmo bem; pelo cônjuge; e pelos descendentes ou ascen-dentes do executado.

Caso se trate de penhora de quota, procedida por exeqüente alheio àsociedade, esta será intimada, assegurando a preferência aos sócios. Do mesmomodo, não se efetuará a adjudicação ou alienação de bem do executado semque da execução seja cientificado, por qualquer modo idôneo e com pelo me-nos dez dias de antecedência, o senhorio direto, o credor com garantia real oucom penhora anteriormente averbada, que não seja de qualquer modo parte naexecução, sob pena de nulidade.

Havendo mais de um interessado na adjudicação, proceder-se-á entreeles à licitação, consoante prescreve o § 3º do art. 685-A, sendo de todo acon-selhável que o exeqüente, ao requerer a adjudicação manifeste-se, desde logo,sobre seu interesse em licitar no caso de haver mais de um interessado.

De acordo com o § 1º do art. 685-A, se o valor do crédito for inferior aodos bens, o adjudicante depositará de imediato a diferença, ficando esta à dis-

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posição do executado; se superior, a execução prosseguirá pelo saldo remanes-cente.

Resolvidos os incidentes decorrentes do pedido de adjudicação ou deeventual licitação em havendo mais de um interessado na adjudicação e uma vezlavrado o respectivo auto de adjudicação, expedir-se-á a respectiva carta, sebem imóvel, ou mandado de entrega ao adjudicante, se bem móvel.

O ato do juiz que resolve o incidente de licitação, decorrente da multipli-cidade de pretendentes à adjudicação, tem natureza de decisão interlocutória,desafiando recurso de agravo na sua forma de instrumento.

Subseção VI-BDa Alienação por Iniciativa Particular(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 685-C. Não realizada a adjudicação dos bens penhorados, o exe-qüente poderá requerer sejam eles alienados por sua própria iniciativa oupor intermédio de corretor credenciado perante a autoridade judiciária.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o O juiz fixará o prazo em que a alienação deve ser efetivada, a formade publicidade, o preço mínimo (art. 680), as condições de pagamento eas garantias, bem como, se for o caso, a comissão de corretagem. (Inclu-ído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o A alienação será formalizada por termo nos autos, assinado pelo juiz,pelo exeqüente, pelo adquirente e, se for presente, pelo executado, expe-dindo-se carta de alienação do imóvel para o devido registro imobiliário,ou, se bem móvel, mandado de entrega ao adquirente. (Incluído pela Leinº 11.382, de 2006).§ 3o Os Tribunais poderão expedir provimentos detalhando o procedi-mento da alienação prevista neste artigo, inclusive com o concurso demeios eletrônicos, e dispondo sobre o credenciamento dos corretores, osquais deverão estar em exercício profissional por não menos de 5 (cinco)anos. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).

Identicamente à Subseção VI-A, a Lei n° 11.382/2006 fez inserir noCapítulo IV, Seção I, do Livro II do CPC, a Subseção VI-B, que trata de umanova modalidade de expropriação de bens, denominada “Da Alienação por Ini-ciativa Particular”.

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De fato, o art. 685-C incluiu no processo de Execução por Quantia CertaContra Devedor Solvente uma nova modalidade de alienação dos bens penho-rados, denominada “Alienação por Iniciativa Particular”. Esta fase situa-se entreas fases de Adjudicação (CPC, art. 685-A e 685-B) e Alienação em HastaPública (CPC, art. 686 e segs.), de modo que não preferindo o exeqüente ounão requerendo as pessoas indicadas nos §§ 2° e 4º do art. 685-A a adjudica-ção dos bens penhorados, poderá o exeqüente requerer que o juiz lhe autorizealiená-los, por sua própria iniciativa ou através de corretor.

A Alienação por Iniciativa Particular é o ato de expropriação em que oórgão judicial autoriza o exeqüente, por sua própria iniciativa ou através de cor-retor, a alienar coativamente os bens penhorados, mediante recebimento do res-pectivo preço.

Tal modalidade de expropriação somente pode se dar mediante requeri-mento do exeqüente e autorização do juiz da execução (CPC, art. 685-C), quefixará o prazo em que a alienação deve ser efetivada, a forma de publicidade, opreço mínimo (art. 680), as condições de pagamento e as garantias, bem como,se for o caso, a comissão de corretagem.

Esta modalidade de alienação, conquanto tenha suas principais condiçõese formas de publicidade fixadas judicialmente, bem como seu preço mínimolimitado à avaliação judicial, em muito se assemelha a uma alienação particular,mormente havendo a intermediação de um corretor nomeado pelo juiz.

O executado deverá ser intimado do deferimento da alienação por inter-médio de seu advogado ou, se não tiver procurador constituído nos autos, pormeio de mandado, carta registrada, edital ou outro meio idôneo (CPC, art. 687,§ 5º).

Assim como na adjudicação, em se tratando de alienação de quota social,cuja penhora tenha sido procedida por exeqüente alheio à sociedade, esta de-verá ser intimada, assegurando-se o direito de preferência aos sócios. Do mes-mo modo, não se efetuará a Alienação por Iniciativa Particular sem que da exe-cução seja cientificado, por qualquer modo idôneo e com pelo menos dez diasde antecedência, o senhorio direto, o credor com garantia real ou com penhoraanteriormente averbada, que não seja de qualquer modo parte na execução.

Como regra geral, poderão adquirir os bens alienados por iniciativa par-ticular todos aqueles que estiverem na livre administração dos seus bens (CPC,art. 690-A), ou seja, os capazes, não falidos e não insolventes, à exceção da-queles que, mesmo capazes, se incluem em qualquer das hipóteses dos incisosdo art. 690-A.

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Conquanto não haja vedação expressa de que o próprio credor adquira obem submetido a esta nova modalidade de alienação, à primeira vista nos pare-ce estar impedido de fazê-lo, já que os artigos 685-A e 685-B reservam aoexeqüente o direito de Adjudicar os bens penhorados, em fase que precede aAlienação por Iniciativa Particular, aludindo o art. 685-C à circunstância de que“não realizada a adjudicação dos bens penhorados, o exeqüente poderá reque-rer sejam eles alienados por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretorcredenciado perante a autoridade judiciária”, donde se conclui estar ele impedi-do de adquirir por esta modalidade os bens penhorados, já que rege o processode execução o princípio de que esta deve dar-se pelo modo menos gravosopara o executado, e a adjudicação, dispensando a publicidade e eventual co-missão a ser paga ao corretor, é menos onerosa para o executado, razão pelaqual, não tendo o exeqüente requerido a adjudicação do bem penhorado, en-tendo que não poderá adquiri-lo por esta novel modalidade de expropriação.

O preço mínimo é o valor da avaliação (CPC, art. 685-C, § 1º), e, regrageral, deve ser pago em dinheiro, à vista, ou no prazo de quinze dias, medianteoferecimento de caução.

Entendo ser aplicável a esta modalidade de alienação o disposto no art.690, §§ 1º e 2º, segundo os quais, “tratando-se de bem imóvel, quem estiverinteressado em adquiri-lo em prestações poderá apresentar por escrito sua pro-posta, nunca inferior à avaliação, com oferta de pelo menos 30% (trinta porcento) à vista, sendo o restante garantido por hipoteca sobre o próprio imóvel”,caso em que, as propostas para aquisição em prestações, serão juntadas aosautos, indicando o prazo, a modalidade e as condições de pagamento do saldo.

O aperfeiçoamento dessa novel modalidade de expropriação se dá medi-ante termo nos autos, assinado pelo juiz, pelo exeqüente, pelo adquirente e, sefor presente, pelo executado, expedindo-se carta de alienação do imóvel para odevido registro imobiliário, ou, se bem móvel, mandado de entrega ao adquiren-te.

A carta de alienação do imóvel ou o mandado de entrega ao adquirentede bem móvel são expedidos para fins de instrumentalização da transferência dedomínio, objetivando, no caso de bem imóvel, a transcrição no registro imobili-ário (CPC, art. 703).

Através do § 3 do art. 685-C, o legislador atribuiu aos Tribunais a com-petência para expedir provimentos detalhando o procedimento da Alienaçãopor Iniciativa Particular, inclusive acerca da utilização de meios eletrônicos, bemcomo sobre o credenciamento dos corretores, os quais deverão estar em exer-cício profissional por mais de cinco anos.

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À vista de tal disposição, conquanto se deva aplicar supletivamente asregras atinentes à Alienação em Hasta Pública até a expedição do referido pro-vimento, a partir da normatização pelos Tribunais as regras por estes estabeleci-das é que deverão prevalecer.

Subseção VIIDa Alienação em Hasta Pública

(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 686. Não requerida a adjudicação e não realizada a alienação parti-cular do bem penhorado, será expedido o edital de hasta pública, queconterá: (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - a descrição do bem penhorado, com suas características e, tratando-se de imóvel, a situação e divisas, com remissão à matrícula e aos regis-tros; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - o dia e a hora de realização da praça, se bem imóvel, ou o local, diae hora de realização do leilão, se bem móvel; (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).§ 3o Quando o valor dos bens penhorados não exceder 60 (sessenta)vezes o valor do salário mínimo vigente na data da avaliação, será dispen-sada a publicação de editais; nesse caso, o preço da arrematação nãoserá inferior ao da avaliação. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o Atendendo ao valor dos bens e às condições da comarca, o juizpoderá alterar a forma e a freqüência da publicidade na imprensa, mandardivulgar avisos em emissora local e adotar outras providências tendentesa mais ampla publicidade da alienação, inclusive recorrendo a meios ele-trônicos de divulgação. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 5o O executado terá ciência do dia, hora e local da alienação judicialpor intermédio de seu advogado ou, se não tiver procurador constituídonos autos, por meio de mandado, carta registrada, edital ou outro meioidôneo. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 689-A. O procedimento previsto nos arts. 686 a 689 poderá sersubstituído, a requerimento do exeqüente, por alienação realizada por meioda rede mundial de computadores, com uso de páginas virtuais criadaspelos Tribunais ou por entidades públicas ou privadas em convênio comeles firmado. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. O Conselho da Justiça Federal e os Tribunais de Justiça,no âmbito das suas respectivas competências, regulamentarão esta mo-

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dalidade de alienação, atendendo aos requisitos de ampla publicidade,autenticidade e segurança, com observância das regras estabelecidas nalegislação sobre certificação digital. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 690. A arrematação far-se-á mediante o pagamento imediato do preçopelo arrematante ou, no prazo de até 15 (quinze) dias, mediante caução.(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Tratando-se de bem imóvel, quem estiver interessado em adquiri-loem prestações poderá apresentar por escrito sua proposta, nunca inferiorà avaliação, com oferta de pelo menos 30% (trinta por cento) à vista,sendo o restante garantido por hipoteca sobre o próprio imóvel. (Reda-ção dada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)II - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)III - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)§ 2o As propostas para aquisição em prestações, que serão juntadas aosautos, indicarão o prazo, a modalidade e as condições de pagamento dosaldo. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o O juiz decidirá por ocasião da praça, dando o bem por arrematadopelo apresentante do melhor lanço ou proposta mais conveniente. (Inclu-ído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 4o No caso de arrematação a prazo, os pagamentos feitos pelo arrema-tante pertencerão ao exeqüente até o limite de seu crédito, e os subse-qüentes ao executado. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 690-A. É admitido a lançar todo aquele que estiver na livre adminis-tração de seus bens, com exceção: (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).I - dos tutores, curadores, testamenteiros, administradores, síndicos ouliquidantes, quanto aos bens confiados a sua guarda e responsabilidade;(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).II - dos mandatários, quanto aos bens de cuja administração ou alienaçãoestejam encarregados; (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).III - do juiz, membro do Ministério Público e da Defensoria Pública, es-crivão e demais servidores e auxiliares da Justiça. (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).Parágrafo único. O exeqüente, se vier a arrematar os bens, não estaráobrigado a exibir o preço; mas, se o valor dos bens exceder o seu crédito,depositará, dentro de 3 (três) dias, a diferença, sob pena de ser tornadasem efeito a arrematação e, neste caso, os bens serão levados a nova

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praça ou leilão à custa do exeqüente. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).Art. 693. A arrematação constará de auto que será lavrado de imediato,nele mencionadas as condições pelas quais foi alienado o bem. (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. A ordem de entrega do bem móvel ou a carta de arrema-tação do bem imóvel será expedida depois de efetuado o depósito ouprestadas as garantias pelo arrematante. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).Art. 694. Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuárioda justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada eirretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargosdo executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o A arrematação poderá, no entanto, ser tornada sem efeito: (Renume-rado com alteração do paragrafo único, pela Lei nº 11.382, de 2006).I - por vício de nulidade; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - se não for pago o preço ou se não for prestada a caução; (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).III - quando o arrematante provar, nos 5 (cinco) dias seguintes, a existên-cia de ônus real ou de gravame (art. 686, inciso V) não mencionado noedital; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - a requerimento do arrematante, na hipótese de embargos à arrema-tação (art. 746, §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).V - quando realizada por preço vil (art. 692); (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).VI - nos casos previstos neste Código (art. 698). (Incluído pela Lei nº11.382, de 2006).§ 2o No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito ahaver do exeqüente o valor por este recebido como produto da arrema-tação; caso inferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também adiferença. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 695. Se o arrematante ou seu fiador não pagar o preço no prazoestabelecido, o juiz impor-lhe-á, em favor do exeqüente, a perda da cau-ção, voltando os bens a nova praça ou leilão, dos quais não serão admi-tidos a participar o arrematante e o fiador remissos. (Redação dada pelaLei nº 11.382, de 2006).§ 1o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

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§ 2o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)§ 3o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 696. O fiador do arrematante, que pagar o valor do lanço e a multa,poderá requerer que a arrematação Ihe seja transferida.Art. 697. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 698. Não se efetuará a adjudicação ou alienação de bem do execu-tado sem que da execução seja cientificado, por qualquer modo idôneo ecom pelo menos 10 (dez) dias de antecedência, o senhorio direto, o cre-dor com garantia real ou com penhora anteriormente averbada, que nãoseja de qualquer modo parte na execução. (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).Art. 699. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 700. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 703. A carta de arrematação conterá: (Redação dada pela Lei nº5.925, de 1º.10.1973)I - a descrição do imóvel, com remissão à sua matrícula e registros; (Re-dação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - a cópia do auto de arrematação; e (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).III - a prova de quitação do imposto de transmissão. (Redação dada pelaLei nº 11.382, de 2006).IV - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 704. Ressalvados os casos de alienação de bens imóveis e aquelesde atribuição de corretores da Bolsa de Valores, todos os demais bensserão alienados em leilão público. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de2006).Art. 706. O leiloeiro público será indicado pelo exeqüente. (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 707. Efetuado o leilão, lavrar-se-á o auto, que poderá abranger benspenhorados em mais de uma execução, expedindo-se, se necessário, or-dem judicial de entrega ao arrematante. (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).

A Lei 11.382/2006 corrigiu a impropriedade técnica que havia no nomeda Subseção VII, da Seção I, do Capítulo IV, do Livro II, do CPC, passando adenominar de “Alienação em Hasta Pública” (gênero) a referida Subseção, que

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antes era denominada “Arrematação”. Como espécies de Alienação em HastaPública elenca a referida Subseção a Praça, o Leilão e a novel modalidade dealienação realizada por meio da rede mundial de computadores, com uso depáginas virtuais criadas pelos Tribunais ou por entidades públicas ou privadasem convênio com eles firmado, cuja regulamentação estará a cargo do CNJ edos TJ’s.

Pela dicção do art. 686, percebe-se que a Alienação em Hasta Públicatem caráter supletivo em relação à Adjudicação e à Alienação por IniciativaParticular, já que só terá lugar quando não requerida a adjudicação e não reali-zada a alienação particular dos bens penhorados.

Nos incisos I a VI daquele artigo são relacionados os requisitos que de-verão constar do edital de Alienação em Hasta Pública, não tendo ocorridograndes alterações a não ser no inciso I que corrigiu a deficiente alusão à “trans-crição aquisitiva ou a inscrição” no registro imobiliário pela “remissão à matrícu-la e aos registros”. No inciso IV foi melhorada a redação anterior, clareando adistinção entre os requisitos que deverão constar do edital quando se tratar depraça (bem imóvel) ou de leilão (bem móvel).

No § 3° daquele artigo foi ampliada a dispensa da publicação de editaispara o caso da avaliação dos bens penhorados não exceder a 60 salários míni-mos, que antes não podia exceder a 20 salários mínimos.

A redação do § 2°, do art. 687 foi alterada para incluir a possibilidade deo juiz, atendendo ao valor dos bens e às condições da comarca, alterar freqüên-cia da publicidade, “inclusive recorrendo a meios eletrônicos de divulgação.”

Atualmente, o executado deverá ter ciência do dia, hora e local da aliena-ção judicial por intermédio de seu advogado ou, se não tiver procurador cons-tituído nos autos, por meio de mandado, carta registrada, edital ou outro meioidôneo (CPC, art. 687, § 5º).

Interessante novidade foi introduzida pelo art. 689-A e seu § único, con-sistente na substituição, a requerimento do exeqüente, do procedimento previs-to nos arts. 686 a 689 do CPC (Alienação em hasta pública), por alienaçãorealizada por meio da rede mundial de computadores, com uso de páginas virtu-ais criadas pelos Tribunais ou por entidades públicas ou privadas em convêniocom eles firmado.

Esta nova modalidade de alienação visa dar maior agilidade e transparên-cia à expropriação de bens penhorados, aproveitando as bem sucedidas expe-riências do pregão eletrônico e das páginas de vendas de bens móveis e imóveisexistentes na Internet.

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Contudo, a utilização da rede mundial de computadores para fins de alie-nação de bens penhorados, para ser implementada, carece de regulamentaçãopelo Conselho da Justiça Federal e pelos Tribunais de Justiça, no âmbito dassuas respectivas competências, atendendo aos requisitos de ampla publicidade,autenticidade e segurança, com observância das regras estabelecidas na legisla-ção sobre certificação digital.

Espera-se que o CNJ e os Tribunais de Justiça, nas suas respectivas esfe-ras de competência, regulem essa novel modalidade de alienação com a brevi-dade que a sociedade anseia.

O art. 690, em sua nova redação, ampliou de três dias para quinze dias oprazo para o arrematante promover a integralização do pagamento, quando aarrematação se der à vista, mediante caução.

A regra geral continua a ser a de que a arrematação ocorra à vista, cons-tituindo o prazo de quinze dias para a integralização do preço, desde que sejaprestada caução, exceção.

De acordo com os §§ 1º e 2º daquele mesmo art. 690, “Tratando-se debem imóvel, quem estiver interessado em adquiri-lo em prestações poderá apre-sentar por escrito sua proposta, nunca inferior à avaliação, com oferta de pelomenos 30% (trinta por cento) à vista, sendo o restante garantido por hipotecasobre o próprio imóvel”, caso em que, as propostas para aquisição em presta-ções, serão juntadas aos autos, indicando o prazo, a modalidade e as condiçõesde pagamento do saldo.

Oferecidos os lances e apresentadas as propostas, “O juiz decidirá porocasião da praça, dando o bem por arrematado pelo apresentante do melhorlanço ou proposta mais conveniente” (art. 690, § 3°), sendo que no caso de sedecidir pela arrematação a prazo, “... os pagamentos feitos pelo arrematantepertencerão ao exeqüente até o limite de seu crédito, e os subseqüentes aoexecutado.”

Como regra geral, poderão arrematar os bens alienados em hasta públicatodos aqueles que estiverem na livre administração dos seus bens (CPC, art.690-A), ou seja, os capazes, não falidos e não insolventes, à exceção daquelesque, mesmo capazes, se incluam em qualquer das hipóteses dos incisos do art.690-A.

Também o exeqüente poderá arrematar, consoante se vê do disposto no§ único do art. 690-A, não estando, em tal circunstância, obrigado a exibir opreço, a não ser que o valor dos bens exceda o seu crédito, caso em que deverá

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depositar, dentro de três dias, a diferença, sob pena de ser tornada sem efeito aarrematação e, neste caso, os bens serão levados a nova praça ou leilão à custado exeqüente.

Após a lavratura do auto de arrematação, que deverá se dar imediata-mente após concluída a arrematação e o depósito do preço ou a prestação dagarantia (art. 693, § único), a carta de arrematação ou a ordem de entrega serãoexpedidos para fins de instrumentalização da transferência de domínio, objeti-vando, no caso de bem imóvel, a transcrição no registro imobiliário (CPC, art.703).

Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiçaou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável, ain-da que sejam julgados procedentes os embargos do executado (art. 694), po-dendo, contudo, ser tornada sem efeito nas hipóteses elencadas nos incisos do §1° do art. 694.

No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haverdo exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; casoinferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença.

Se o arrematante ou seu fiador não pagar o preço no prazo estabelecido,o juiz impor-lhe-á, em favor do exeqüente, a perda da caução, voltando os bensa nova praça ou leilão, dos quais não serão admitidos a participar o arrematantee o fiador remissos (art. 695).

Assim como na adjudicação e na alienação por iniciativa particular, em setratando de alienação de quota social, procedida por exeqüente alheio à socie-dade, esta deverá ser intimada, assegurando-se o direito de preferência aossócios. Do mesmo modo, não se efetuará a adjudicação ou alienação de bemdo executado sem que da execução seja cientificado, por qualquer modo idô-neo e com pelo menos dez dias de antecedência, o senhorio direto, o credorcom garantia real ou com penhora anteriormente averbada, que não seja dequalquer modo parte na execução (art. 698).

Foram revogados ainda os artigos 697; 699 e 700 (que tratavam da hipo-teca de vias férreas).

Os incisos I a III do art. 703 receberam nova redação, devendo doravan-te a carta de arrematação conter “I - a descrição do imóvel, com remissão à suamatrícula e registros; II - a cópia do auto de arrematação; e III - a prova dequitação do imposto de transmissão.”, sendo excluída a exigência relativa aotítulo, que constava do inciso IV.

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Subseção IIDa Entrega do Dinheiro

Art. 713. Findo o debate, o juiz decidirá. (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).

O art. 713 recebeu nova redação para determinar que findo o debate, ojuiz decida e não mais sentencie, como constava na sua redação anterior.

Logo, a decisão que resolve acerca da preferência tem natureza jurídicade decisão interlocutória, desafiando recurso de agravo na modalidade de ins-trumento.

Os artigos 714 e 715 foram revogados, já que a adjudicação, na sua novaformatação, passou a ser tratada no Capítulo IV, Seção I, do Livro II, onde foiincluída a Subseção VI-A.

Subseção IVDo Usufruto de Móvel ou Imóvel

(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 716. O juiz pode conceder ao exeqüente o usufruto de móvel ouimóvel, quando o reputar menos gravoso ao executado e eficiente para orecebimento do crédito. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 717. Decretado o usufruto, perde o executado o gozo do móvel ouimóvel, até que o exeqüente seja pago do principal, juros, custas e hono-rários advocatícios. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 718. O usufruto tem eficácia, assim em relação ao executado como aterceiros, a partir da publicação da decisão que o conceda. (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 720. Quando o usufruto recair sobre o quinhão do condômino na co-propriedade, o administrador exercerá os direitos que cabiam ao execu-tado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 722. Ouvido o executado, o juiz nomeará perito para avaliar os fru-tos e rendimentos do bem e calcular o tempo necessário para o pagamen-to da dívida. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)II - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

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§ 1o Após a manifestação das partes sobre o laudo, proferirá o juiz deci-são; caso deferido o usufruto de imóvel, ordenará a expedição de cartapara averbação no respectivo registro. (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).§ 2o Constarão da carta a identificação do imóvel e cópias do laudo e dadecisão. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006) Art. 724. O exeqüente usufrutuário poderá celebrar locação do móvel ouimóvel, ouvido o executado. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. Havendo discordância, o juiz decidirá a melhor forma deexercício do usufruto. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 725. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 726. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 727. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 728. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 729. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

Algumas alterações foram implementadas, ainda, na Subseção IV (DoUsufruto de Móvel ou Imóvel), as quais, por tratarem da mera operacionaliza-ção da expropriação consistente no usufruto de móvel ou imóvel, não se farámaiores comentários.

Foi revogado ainda o Título V, do Livro II do CPC, que tratava da remi-ção de bens, passando o cônjuge, ascendente ou descendente, em situação deigualdade com o exeqüente, o credor com garantia real e os credores concor-rentes que hajam penhorado o mesmo bem, a ter apenas o direito de adjudicaro bem, sendo que na eventualidade de haver mais de um interessado na adjudi-cação, será procedida à licitação entre eles (art. 685-A, §§ 2° e 3º).

Trata-se de importante alteração que deve reduzir sensivelmente as chi-canas armadas para excluir da execução bens que tinham sido penhorados,mediante a utilização de ‘laranjas’ que, oferecendo lances mínimos, arremata-vam tais bens, possibilitando a remição pelo cônjuge, ascendente ou descen-dente do executado por aqueles mesmos valores, possibilitando a permanênciado bem na esfera patrimonial dos familiares do executado e frustrando a execu-ção.

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Título IIIDos Embargos do Devedor

Capítulo IDas Disposições Gerais

Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou cau-ção, poderá opor-se à execução por meio de embargos. (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).Parágrafo único. Os embargos à execução serão distribuídos por depen-dência, autuados em apartado, e instruídos com cópias (art. 544, § 1o, infine) das peças processuais relevantes. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).Art. 737. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 738. Os embargos serão oferecidos no prazo de 15 (quinze) dias,contados da data da juntada aos autos do mandado de citação. (Redaçãodada pela Lei nº 11.382, de 2006).I - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)II - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)III - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)IV - (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)§ 1o Quando houver mais de um executado, o prazo para cada um delesembargar conta-se a partir da juntada do respectivo mandado citatório,salvo tratando-se de cônjuges. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o Nas execuções por carta precatória, a citação do executado seráimediatamente comunicada pelo juiz deprecado ao juiz deprecante, inclu-sive por meios eletrônicos, contando-se o prazo para embargos a partirda juntada aos autos de tal comunicação. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).§ 3o Aos embargos do executado não se aplica o disposto no art. 191desta Lei. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 739. O juiz rejeitará liminarmente os embargos:I - quando intempestivos; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).II - quando inepta a petição (art. 295); ou (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).III - quando manifestamente protelatórios. (Redação dada pela Lei nº11.382, de 2006).§ 1o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)

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§ 2o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)§ 3o (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 739-A. Os embargos do executado não terão efeito suspensivo. (In-cluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspen-sivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o pros-seguimento da execução manifestamente possa causar ao executado gra-ve dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já estejagarantida por penhora, depósito ou caução suficientes. (Incluído pela Leinº 11.382, de 2006).§ 2o A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimentoda parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fun-damentada, cessando as circunstâncias que a motivaram. (Incluído pelaLei nº 11.382, de 2006).§ 3o Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeitoapenas a parte do objeto da execução, essa prosseguirá quanto à parterestante. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 4o A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por umdos executados não suspenderá a execução contra os que não embarga-ram, quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente aoembargante. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 5o Quando o excesso de execução for fundamento dos embargos, oembargante deverá declarar na petição inicial o valor que entende corre-to, apresentando memória do cálculo, sob pena de rejeição liminar dosembargos ou de não conhecimento desse fundamento. (Incluído pela Leinº 11.382, de 2006).§ 6o A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atosde penhora e de avaliação dos bens. (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).Art. 739-B. A cobrança de multa ou de indenizações decorrentes de liti-gância de má-fé (arts. 17 e 18) será promovida no próprio processo deexecução, em autos apensos, operando-se por compensação ou por exe-cução. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 740. Recebidos os embargos, será o exeqüente ouvido no prazo de15 (quinze) dias; a seguir, o juiz julgará imediatamente o pedido (art. 330)ou designará audiência de conciliação, instrução e julgamento, proferindosentença no prazo de 10 (dez) dias. (Redação dada pela Lei nº 11.382,de 2006).

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Parágrafo único. No caso de embargos manifestamente protelatórios, ojuiz imporá, em favor do exeqüente, multa ao embargante em valor nãosuperior a 20% (vinte por cento) do valor em execução. (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).

A reforma implementada pela Lei n° 11.382/2006, trouxe profundas alte-rações na ação de embargos à execução, que constitui o meio de defesa porexcelência, do executado.

O art. 736, caput, em sua nova redação, fulminou o pressuposto proces-sual da chamada segurança do juízo na ação de embargos à execução. De fato,na sistemática anterior, o executado somente poderia lançar mão da ação deembargos à execução após garantir o juízo pela penhora, na execução por quantiacerta ou pelo depósito, na execução para entrega de coisa. Doravante, o execu-tado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se àexecução por meio de embargos. A segurança do juízo, contudo, continua sen-do pressuposto para o caso de, excepcionalmente, ser atribuído efeito suspen-sivo aos embargos (CPC, art. 739-A, § 1º).

Doravante, o prazo para o oferecimento dos embargos à execução, queantes era de 10 dias contados da juntada aos autos da prova da intimação dapenhora; do termo de depósito; do mandado de imissão na posse, ou de buscae apreensão, na execução para a entrega de coisa; ou ainda do mandado decitação, na execução das obrigações de fazer ou de não fazer, passou a ser de15 dias, contados da data da juntada aos autos do mandado de citação devida-mente cumprido, já que, uma vez dispensado o requisito da segurança do juízo,não teria sentido que o executado somente pudesse se valer dos embargos apósa juntada aos autos da prova da intimação da penhora, do termo de depósito,etc.

Ou seja, uma vez citado, o executado terá o prazo de 15 dias após ajuntada aos autos do seu respectivo mandado de citação, para opor embargos àexecução, instruindo a inicial com cópia de todos as peças relevantes ao seujulgamento. Tal prazo, consoante estabelece o § 1º do art. 738, conta-se isola-damente, para cada executado, começando a fluir a partir da juntada aos autosdo seu respectivo mandado, independentemente de os demais permanecerempendentes de cumprimento, excetuando-se apenas quando se tratarem de côn-juges, quando o prazo somente começa a fluir a partir da juntada do último deambos os mandados devidamente cumpridos. Não se aplica aos embargos àexecução, do mesmo modo, a regra do art. 191 do CPC (prazo em dobro

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quando os executados possuírem advogados distintos), por disposição expres-sa do § 3º do art. 738 do CPC.

Outra inovação introduzida pelo § 2º do art. 738, diz respeito à contagemdo prazo para a oposição de embargos à execução, no caso da execução seprocessar por carta precatória, situação em que, a citação do executado, tãologo efetivada, deverá ser imediatamente comunicada pelo juiz deprecado aojuiz deprecante, inclusive por meios eletrônicos, contando-se o prazo para em-bargos a partir da juntada aos autos da execução, de tal comunicação.

Questão que pode gerar alguma indagação é a da necessidade ou não deque o executado seja intimado da juntada da comunicação a que alude o art.738, § 2°. Penso que a intimação é desnecessária, já que, no processo de co-nhecimento, uma vez citado, o réu é quem deve diligenciar o momento da junta-da do mandado ou da carta precatória aos autos, quando então começa a fluir oseu prazo para contestar, não vislumbrando nenhuma razão para que no proces-so de execução seja diferente. Resta saber qual vai ser o posicionamento dajurisprudência.

Antes da reforma, os embargos à execução eram autuados em apenso aoprocesso de execução. Com a nova dicção do art. 736 e a inserção do § único,àquele dispositivo legal, os embargos à execução passaram a ser distribuídospor dependência, autuados em apartado, e instruídos com cópias (art. 544, §1o, in fine) das peças processuais relevantes, o que deve amenizar os percalçosocasionados pela autuação em apenso, mormente levando-se em conta que osembargos, na nova sistemática, não suspendem o curso da execução (CPC, art.739-A), e o apensamento, em tais circunstâncias, perturbaria o processamentosimultâneo das duas ações. É de todo racional, portanto, que o legislador tenhaoptado pela autuação em apartado, para propiciar o curso normal de uma e deoutra.

Uma questão que suscitava dúvidas e restou disciplinada pelo art. 736 é ainstrução dos embargos, que na sistemática anterior, para alguns, era prescindí-vel, já que a autuação se dava em apenso e todos os elementos probatórios seachavam autuados no processo de execução. A situação se complicava quandoos embargos eram opostos sem instrução e eram julgados improcedentes, sen-do desapensados e remetidos ao tribunal ad quem no caso de interposição derecurso de apelação, muitas vezes, carente de elementos probatórios ao julga-mento do recurso, os quais ficavam no processo de execução, que era desapen-sado para propiciar o seu prosseguimento.

Com a inclusão do § único, ao art. 736, em especial pelo fato de osembargos, doravante serem autuados em apartado, devem ser instruídos com

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cópias (art. 544, § 1o, in fine) das peças processuais relevantes, a fim de propi-ciar o seu julgamento, independentemente da consulta aos autos do processo deexecução. Desse modo, cumpre ao embargante colacionar aos autos dos em-bargos cópias de todas as peças relevantes para o julgamento daquela ação,competindo ao embargado, da mesma forma instruir a impugnação com cópiasdas peças destinadas a fazer prova de suas alegações e que não tenham sidojuntadas pelo embargante.

O art. 739 disciplina as situações em que os embargos à execução deve-rão ser rejeitados liminarmente, a saber: quando intempestivos, quando inepta apetição inicial (art. 295); ou quando manifestamente protelatórios.

A natureza peculiar da ação de embargos à execução explica a primeira ea terceira hipóteses de rejeição liminar; a disciplina genérica da petição inicialcorrobora a segunda. O primeiro caso envolve a perda da faculdade de opor-seà execução, por força da preclusão. De fato, o prazo do art. 738 é preclusivo,eliminando, pelo seu decurso, a possibilidade do exercício da ação incidental aque se refere. O segundo concerne à inépcia da inicial que alcança, curialmente,a dos embargos à execução que ação é e cuja inicial está sujeita aos mesmosrequisitos das demais ações, além dos que lhe são específicos. O terceiro casoenvolve a utilização dos embargos à execução com fins meramente protelatóri-os, o que, com a dicção do art. 739-A caput (Os embargos do executado nãoterão efeito suspensivo) e seus §§, por si só, já deve restringir tais ocorrências,muito comuns na sistemática anterior, em que os embargos sempre suspendiamo curso da execução.

Com efeito, ao estabelecer o § 1º do art. 739-A que “O juiz poderá, arequerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando,sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifesta-mente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, edesde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou cauçãosuficientes” e o seu § 2º que “A decisão relativa aos efeitos dos embargos pode-rá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, emdecisão fundamentada, cessando as circunstâncias que a motivaram”, a possibi-lidade da utilização dos embargos com fins meramente protelatórios deve serbastante restringida, já que o juiz poderá, a requerimento do exeqüente e aqualquer tempo, revogar a decisão que, excepcionalmente, atribuiu efeito sus-pensivo aos embargos, mesmo que a execução se encontre garantida pela pe-nhora ou pelo depósito.

Demais disso, é bom lembrar que o § 6°, do art. 739-A, estabelece que“A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de pe-

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nhora e de avaliação dos bens” e o § único do art. 740 preceitua que “No casode embargos manifestamente protelatórios, o juiz imporá, em favor do exeqüen-te, multa ao embargante em valor não superior a 20% (vinte por cento) do valorem execução.”

A circunstância de o executado ter se valido da faculdade a que alude oart. 745-A e ter inadimplido com o pagamento de alguma parcela, fazendo inci-dir o § 2º daquele mesmo artigo, cuja parte final preceitua ser vedada a oposi-ção de embargos, também é causa de extinção liminar de eventuais embargosque venham a ser opostos pelo executado.

Do mesmo modo o § 5º do art. 739-A, ao estabelecer que “Quando oexcesso de execução for fundamento dos embargos, o embargante deverá de-clarar na petição inicial o valor que entende correto, apresentando memória docálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de não conhecimentodesse fundamento”, instituiu mais uma possibilidade de rejeição liminar dos em-bargos, a qual deve somar-se às hipóteses de que cuida o art. 739 e à de quecuida o art. 745-A, § 2º.

Contudo, cumpre observar que nesta última hipótese a rejeição liminarsomente ocorrerá quando o excesso for o único fundamento dos embargos, jáque, havendo mais de um fundamento, a subsistência de outro pode inviabilizara rejeição liminar com base no § 5º do art. 739-A, caso em que os embargosnão serão conhecidos por esse fundamento, restando, entretanto, ao juiz apreci-ar as demais questões deduzidas.

A sentença que rejeitar liminarmente os embargos, desafia o recurso deapelação do art. 513, com efeito meramente devolutivo, nos termos do dispostono art. 520, V.

O § 3° do art. 739-A apenas repetiu a regra que constava do § 2º do art.739 na sua redação original, o mesmo ocorrendo com o § 4° do art. 739-A emrelação ao § 3° do art. 739 na sua redação revogada.

A impugnação dos embargos tem caráter de contestação e deve ser ofe-recida no prazo de 15 dias após a intimação do exeqüente (CPC, art. 740).Contestados os embargos, os autos serão conclusos para que o juiz, versandoos embargos matéria, apenas, de direito, ou sendo comprovados, documental-mente, os fatos constitutivos da pretensão neles deduzida, promova o julgamen-to antecipado da lide, no prazo de 10 dias, a contar da conclusão dos autos(CPC, art. 740, 1ª parte).

Não sendo o caso de julgamento antecipado da lide, o juiz designaráaudiência de conciliação, instrução e julgamento, prolatando, em seguida, sen-tença, no prazo de 10 dias (CPC, art. 740, 2ª parte).

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Capítulo IIIOs Embargos à Execução

(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 744. (Revogado pela Lei nº 11.382, de 2006)Art. 745. Nos embargos, poderá o executado alegar: (Redação dadapela Lei nº 11.382, de 2006).I - nulidade da execução, por não ser executivo o título apresentado;(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).II - penhora incorreta ou avaliação errônea; (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).III - excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; (Incluí-do pela Lei nº 11.382, de 2006).IV - retenção por benfeitorias necessárias ou úteis, nos casos de títulopara entrega de coisa certa (art. 621); (Incluído pela Lei nº 11.382, de2006).V - qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processode conhecimento. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Nos embargos de retenção por benfeitorias, poderá o exeqüenterequerer a compensação de seu valor com o dos frutos ou danos consi-derados devidos pelo executado, cumprindo ao juiz, para a apuração dosrespectivos valores, nomear perito, fixando-lhe breve prazo para entregado laudo. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o O exeqüente poderá, a qualquer tempo, ser imitido na posse dacoisa, prestando caução ou depositando o valor devido pelas benfeitoriasou resultante da compensação. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 745-A. No prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exe-qüente e comprovando o depósito de 30% (trinta por cento) do valor emexecução, inclusive custas e honorários de advogado, poderá o executa-do requerer seja admitido a pagar o restante em até 6 (seis) parcelasmensais, acrescidas de correção monetária e juros de 1% (um por cento)ao mês. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Sendo a proposta deferida pelo juiz, o exeqüente levantará a quantiadepositada e serão suspensos os atos executivos; caso indeferida, seguir-se-ão os atos executivos, mantido o depósito. (Incluído pela Lei nº 11.382,de 2006).§ 2o O não pagamento de qualquer das prestações implicará, de plenodireito, o vencimento das subseqüentes e o prosseguimento do processo,

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com o imediato início dos atos executivos, imposta ao executado multa de10% (dez por cento) sobre o valor das prestações não pagas e vedada aoposição de embargos. (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).Art. 746. É lícito ao executado, no prazo de 5 (cinco) dias, contados daadjudicação, alienação ou arrematação, oferecer embargos fundados emnulidade da execução, ou em causa extintiva da obrigação, desde quesuperveniente à penhora, aplicando-se, no que couber, o disposto nesteCapítulo. (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 1o Oferecidos embargos, poderá o adquirente desistir da aquisição.(Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 2o No caso do § 1o deste artigo, o juiz deferirá de plano o requerimento,com a imediata liberação do depósito feito pelo adquirente (art. 694, §1o, inciso IV). (Incluído pela Lei nº 11.382, de 2006).§ 3o Caso os embargos sejam declarados manifestamente protelatórios, ojuiz imporá multa ao embargante, não superior a 20% (vinte por cento) dovalor da execução, em favor de quem desistiu da aquisição. (Incluído pelaLei nº 11.382, de 2006).

O Capítulo III, do Título III, do Livro II, do CPC, que era denominado“Dos Embargos do Devedor” passou a denominar-se “Os Embargos à Execu-ção”, em consonância com entendimento há muito sedimentado na doutrina e najurisprudência de que a legitimidade para opor “embargos do devedor” não serestringia somente ao devedor, mas também àqueles que ostentassem legitimi-dade para figurar no pólo passivo do processo de execução.

Em se tratando de execução por quantia certa contra devedor solvente,fundada em título executivo extrajudicial, o art. 745 do CPC elenca o rol dematérias que poderão ser argüidas pelo embargante, quais sejam: nulidade daexecução, por não ser executivo o título apresentado; penhora incorreta ou ava-liação errônea; excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; re-tenção por benfeitorias necessárias ou úteis, nos casos de título para entrega decoisa certa (art. 621); e ainda qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir comodefesa em processo de conhecimento.

De acordo com o disposto no art. 745-A, é facultado ao executado, noprazo para oposição de embargos, reconhecendo o crédito do exeqüente ecomprovando o depósito de 30% do valor em execução, inclusive custas ehonorários de advogado, requerer seja admitido a pagar o restante do débitoem até 6 parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e juros de 1% aomês.

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Trata-se de louvável iniciativa do legislador que visa propiciar aos execu-tados de boa-fé o adimplemento parcelado do débito, em até 6 meses, com aincidência de correção monetária + juros de 1% ao mês, que representam taxamódica em relação às praticadas pelo mercado financeiro, constituindo-se ematrativo para o adimplemento voluntário, com reflexos diretos na economia pro-cessual, já que a opção pode ser feita logo após a citação e uma vez admitida, erealizados todos os pagamentos, a execução será extinta sem maiores delongas.

Entretanto, considerando-se que o § 2° do mesmo art. 745-A estabeleceque o não pagamento de qualquer das prestações implicará, de pleno direito, ovencimento das subseqüentes e o prosseguimento do processo, com o imediatoinício dos atos executivos, imposta ao executado multa de 10% sobre o valordas prestações não pagas e vedada a oposição de embargos, o executado quepretenda se valer dessa faculdade de adimplemento deverá refletir muito bemsobre as suas reais condições de solver o débito confessado, já que o inadim-plemento de qualquer parcela ocasionará o vencimento antecipado das rema-nescentes e a imposição de multa de 10% sobre o saldo devedor, com a imedi-ata retomada da execução. Além disso, estará o executado impedido de utilizar-se da ação de embargos à execução, que constitui o meio processual adequadoà sua defesa.

Sem contar que na hipótese do executado ter requerido o parcelamentodo restante do débito, e seu requerimento ser indeferido, seguir-se-ão os atosexecutivos, mantido o depósito.

Como o requerimento de parcelamento não suspende o prazo para ainterposição de embargos e um dos seus requisitos é exatamente o reconheci-mento do crédito do exeqüente, concluí-se que a utilização de tal faculdade serárestrita aos casos em que o executado não pretenda embargar a execução, poiscaso contrário seria temerário optar pelo parcelamento para somente após even-tual decisão pelo indeferimento embargar, além do que, restaria um campo ex-tremamente restrito de matérias que poderiam ser articuladas nos embargos, jáque haveria o reconhecimento do débito.

Capítulo IVDos Embargos na Execução por Carta

(Renumerado do Capítulo V para o IV, pela Lei nº 11.382, de 2006)

Art. 747. Na execução por carta, os embargos serão oferecidos no juízodeprecante ou no juízo deprecado, mas a competência para julgá-los é

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do juízo deprecante, salvo se versarem unicamente vícios ou defeitos dapenhora, avaliação ou alienação dos bens. (Redação dada pela Lei nº8.953, de 13.12.1994)

O Capítulo V, do Título III, do Livro II, teve sua numeração alterada paraIV, mantendo-se a redação de seu único artigo.

A competência para o julgamento dos embargos, quando a execução seprocessar por carta precatória, portanto, continua disciplinada pelo art. 747 doCPC, segundo o qual “Na execução por carta, os embargos serão oferecidosno juízo deprecante ou no juízo deprecado, mas a competência para julgá-los édo juízo deprecante, salvo se versarem unicamente vícios ou defeitos da penho-ra, avaliação ou alienação dos bens.”

Ou seja, quando a execução se processar por carta precatória, os em-bargos podem ser ajuizados tanto no juízo deprecante como no juízo depreca-do. Contudo, a competência do juízo deprecado restringe-se unicamente aosvícios ou defeitos da penhora, avaliação ou alienação dos bens. Versando osembargos sobre tema diverso daqueles, se ajuizados perante o juízo deprecado,os autos devem ser encaminhados ao juízo deprecante para o seu processamen-to e julgamento.

É oportuno lembrar, contudo, que na nova sistemática, o prazo para oajuizamento dos embargos à execução começa a fluir da juntada aos autos domandado de citação devidamente cumprido, sendo que na hipótese dos embar-gos se processarem por carta precatória, a citação do executado será imediata-mente comunicada pelo juiz deprecado ao juiz deprecante, inclusive por meioseletrônicos, contando-se o prazo para oposição de embargos a partir da junta-da aos autos de tal comunicação.

CONCLUSÃO

Como dito inicialmente, não é pretensão do autor esgotar tão vasto eintrincado tema como o é o processo de execução de que cuida o Livro II doCPC, cujas alterações implementadas pela Lei n° 11.382/2006 seguramentelevarão juristas de peso a sobre elas se debruçarem por um bom tempo, a fim deextraírem de suas entranhas o máximo da efetividade que possam emprestar aoprocesso de execução, sem, contudo, descurar das garantias constitucionais tãovaliosas e cuja conquista demandou tão longa e penosa jornada trilhada na es-teira da evolução social e da repulsa aos sistemas autoritários e injustos quetanto sofrimento causaram a incontáveis gerações.

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Contudo, espera-se que este breve estudo, apesar de sua limitação, pos-sa trazer se não luz, ao menos algum lampejo que possa de algum modo auxiliarna ingrata tarefa daqueles que labutam na seara do direito em seu dia-a-dia, dedesvendar as facetas de uma reforma que veio como resposta a tão ingentesanseios de toda a sociedade brasileira.

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