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Edição de junho de 2007

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Cotidiano

Os pequenos aborrecimentos do dia-a-dia em sua real dimensãoTragédia e feliCidade

Estava eu no banheiro secando os cabelos quando minha fiel escudeira bateu à porta. Abri e encontrei Clair com os olhos marejados, dizendo: “Dona Martha, aconteceu uma tragédia”. Desliguei o secador e o coração desligou junto. O telefone deve ter tocado quando eu estava secando os cabelos e não ouvi: ela atendeu e recebeu alguma notícia horrível. Qual? Quem se acidentou? Quem está no hospital? Quem morreu? Fala, mulher!!

– Queimei uma camisa sua.Só então reparei que ela estava com algumas roupas

na mão. Estava passando uma camisa bacana que eu recém havia comprado e nunca havia usado, e, num descuido, queimou a manga.

A minha cara não devia estar nada boa, porque ela logo se pôs a pedir desculpas. Mas eu não a desculpei.

– Queimar uma camisa é uma tragédia? Pelo amor de Deus, nunca mais me dê um susto destes.

Aliviada, fui dar uma espiada no estrago e nem era tanto assim, ainda dá pra usar a camisa com as mangas arre-gaçadas, um truquezinho para que a perda não seja total. Clair voltou para seu trabalho e meu coração voltou a bater. Uma camisa queimada significa que joguei um dinheiro fora, o que faz de mim uma pessoa extremamente afortunada. Enquanto perder apenas dinheiro, estarei rindo à toa.

Eu poderia listar mil coisas desagradáveis – nada além de desagradáveis – que acontecem conosco no dia-a-dia, como não conseguir vaga para estacionar ou ter uma camisa

queimada. Poderia listar umas cem coisas sérias que podem nos acontecer – ser traído por um sócio, ser injustiçado num processo. Poderia listar umas 10 coisas quase trágicas, todas ligadas a doença, à perda de pais ou de um grande amor. Mas tragédia, mesmo, só conheço uma: perder um filho. Conhecer é maneira de dizer, nunca passei por isso, mas conheço quem já tenha passado, e nada, nada, nada pode ser mais doloroso. A vida perde todo o sentido. A beleza do mar, uma notícia no telejornal, se vai chover ou não, quem separou, como serão os jogos do Pan, o que vai ter para o jantar. Nada importa. Fica-se blindado contra tudo o que vem de fora. Não há espaço para mais nada além da saudade, e só com o tempo e com alguma espiritualidade é que será possível retomar o que uma vez ouvi chamarem de “imitação de vida”. Buscar um copo d’água na geladeira, escovar os dentes, atender um telefonema. Pequenos gestos que demandam uma força quase inexistente, até que se acostume de novo.

Pois pois. Nada disso é com você? Sorte sua, sorte nossa. Quando a garrafa escapar da sacola e explodir no chão do supermercado, solte um palavrão e em seguida uma garga-lhada. Quando amanhecer chovendo bem no dia da festa ao ar livre, resmungue dois segundos e depois vá para o meio da sala dançar. Quando sua empregada queimar uma camisa que você nunca usou, respire fundo e vista outra, dá no mesmo. Tragédia é não perceber o quanto você é feliz.

M a r T h a M e d e i r O s

MarTha MedeirOs é esCriTOra

10 Estilo Zaffari

O sabor e o saberF e r n a n d O l O k s c h i n

O fogo afasta a fera e atrai o homem. Mais do que a das plantas ou animais, a principal domesticação humana foi a do fogo, e, entre tantos usos, o maior foi alimentar – tornar outros seres mais palatáveis e digeríveis. Nossa digestão se inicia pelo amadurecimento no calor do sol e cozimento no calor do fogo.

O macaco manipula ferramentas e o golfinho emprega linguagem, mas não há animal que cozinhe. O animal come, o homem cozinha; muito além de sapiens, loquaz ou abilis, um homo coquus. Os romanos respeitavam tanto o ofício que diziam: ‘O erro do cozinheiro quem paga é o flautista’. Comida é cultura, culinária é civilização, o fruto do eterno confronto entre criatividade e necessidade.

E a necessidade impera. Não faz tanto tempo, em 1951, a escassez do pós-guerra fez com que 53 mil cavalos trotassem aos açougues ingleses. Num mês de sítio prussiano à Paris de 1870, um povo famoso pelo amor aos bichos de estimação comeu seus gatos, cachorros, cavalos e até as literalmente maiores atrações do Zoológico: os elefantes Castor e Polux. Também não foram poucas as crianças que, arriscando-se longe dos pais, terminaram fritas na caçarola.

Aliás, esta foi a ‘Modesta Proposta’ de Swift para ate-nuar a miséria irlandesa: “Uma criancinha com um ano de idade é o alimento mais delicioso, benéfico e nutritivo que existe, seja cozida, grelhada, assada ou aferventada...”. E lamentava Diógenes, o cínico, há 2.400 anos, não ser fácil abolir a fome por esfregar a barriga como é masturbar-se.

Tudo se presta à criatividade para abolir a fome. No banquete de Cambacéres, chanceler de Napoleão, quando os copeiros desfilavam exibindo aos convidados um esturjão grelhado de 90 kg, tropeçaram deixando cair no chão a iguaria. Frente ao desespero geral, a um sinal do anfitrião, ao toque de trombetas, uma nova comitiva adentrou o salão carregando um esturjão maior ainda. A queda do primeiro apenas criava o clima para a recepção ao segundo.

Hábito dos estudantes portugueses, imitado com es-cândalo em Porto Alegre dos anos 30, era o ‘jantar às aves-sas’: primeiro o café e licor, depois a sobremesa, logo o prato principal seguido da entrada e, para terminar, o aperitivo. E tem gosto e gasto para tudo: em 1890, Mrs. Stuyvesant

cebOla, a deusa da hOrtaFish promoveu um banquete canino em sua mansão nova--iorquina; a cadelinha da anfitriã recepcionava 100 cães convidados ostentando sua gargantilha, coleira cravejada de diamantes no valor de 15 mil dólares.

É preciso fome e criatividade para descobrir o alimento na cebola crua. A cebola íntegra exala um odor sutil, mas reage à mordida com ácidos que queimam a língua e alicina, gás sulfuroso que causa lacrimejamento e dor ocular. Por sorte, basta um leve cozimento ou simples mergulho na água quente para que tais compostos dêem lugar a moléculas 50 vezes mais doces que a sacarose e que conferem a cor e sabor caramelados.

Cebola, nabo, radite e flores bulbosas constituíam a base nutricional do homem pré-histórico. O código de Hamurabi previa uma cesta básica ao necessitado: pão acebolado. Os pobres, fossem egípcios, judeus, gregos ou romanos, tinham na cebola um dos seus sustentos. Na única menção bíblica, não era a presença da cebola, mas sua falta que fazia os judeus chorarem ao comer maná no deserto: “Lembremo-nos... dos melões, cebolas e alhos”...

A cebola é o vegetal mais representado na arte egípcia, um bulbo tão divino só podia ser reproduzido em ouro. Nas palavras de Juvenal, nas hortas egípcias cresciam deuses: cebolas. Os construtores das pirâmides recebiam rações de cerveja, alho e cebola, e talvez não seja coincidência que as bandagens das múmias tenham semelhança com as camadas da cebola. Ramsés IV trazia os olhos e genitais cobertos e os ouvidos e nariz recheados por cebolas – o odor estimularia a volta da respiração no além-túmulo. Já a tradição turca percebia este odor como um chulé satânico: quando Lúcifer caiu à Terra, onde pisou o pé esquerdo teria brotado alho, onde pisou o direito, nascido cebola.

De sabor penetrante e odor adstringente, a cebola não condiz com pureza espiritual, sendo então interditada aos sacerdotes brâmicos e viúvas hindus.

Faz sentido supor que um alimento forte traga força. Os atletas gregos e gladiadores romanos não só comiam réstias inteiras como massageavam a musculatura com caldo de cebola. Alexandre alimentava seus exércitos com cebola,

e ficou famoso o telegrama do General Grant ao Estado Maior: “Sem cebolas não marcho minhas tropas” – preci-sava tanto do alimento como do tratamento para as feridas.

A planta é irmã do alho, aspargo, cebolinha e alho-poró e parente dos lírios e tulipas, flores comestíveis que nem todos apreciam: nas aventuras de Alice no País das Maravilhas, o Sete de Espadas quase foi decapitado por levar ao cozinheiro raízes de tulipas em vez de cebolas. De estrutura afim às gra-míneas, a cebola é folha e caule ao mesmo tempo; forma-se das bases das folhas do ano anterior inchadas pelas reservas energéticas que mantêm a germinação. Sua terra natal se estende desde a Índia até Israel, onde já era cultivada há 5 mil anos. É o vegetal de uso mais abrangente na culinária, e, mesmo a casca, antes usada para tingir tecidos e ovos de Páscoa, continua um precioso ingrediente para dourar brodos, molhos e sopas.

Sucessivas esferas concêntricas sobre um botão de renas-cimento, a cebola é metáfora para o ser e o universo. O símbolo transparece na Igreja Ortodoxa cujas catedrais de abóbadas arredondadas e pontiagudas imitam perfeitamente bulbos, as ‘domas de cebolas’ tão marcantes nas arquiteturas russa e turca.

A cebola, você chora, mas come; além de sofrimento, alimento, além de dor, prazer. A ação lacrimogênea sempre foi enfatizada: “Só a cebola tem o poder de fazer chorar ao jovem herdeiro ou a bela viúva”... Trata-se de um vegetal meteorológico; quanto mais camadas na casca, maior o rigor do inverno vindouro, como se a planta pressentisse o frio e se agasalhasse. Para Apicus, era mais condimento que alimento; seu livro interrompe uma monótona listagem de receitas para salientar que a cebola teria forte ação afrodisíaca induzindo à “procura dos lábios de Vênus”. Talvez por isto, nas ruínas de Pompéia, o local onde as cebolas estão mais representadas é no bordel.

Já no mercado de Roma, as cebolas eram expostas em réstias trançadas de seu próprio caule, da forma que ainda se faz no mundo inteiro. O pior lugar para conservar cebolas é sob a pia, local sombrio e abafado. Guardada junto à batata, a cebola tem vida abreviada: a batata umedece o ar e libera um gás que acelera a deterioração.

sOpa de cebOla, em prOl dO OtimismO

laminar Finamente quatrO cebOlas. bOrriFar pitada de açúcar e Farinha. caramelizar na manteiga.

ir adiciOnandO caldO diluídO de galinha (1,5l). Ferver pOr 1 hOra. temperar cOm sal, pimenta

e vinhO brancO. ajustar cOnsistência cOm Farinha. passar alhO em Fatias de pãO e tOstar nO

FOrnO. dispOr a sOpa em terrines individuais. cOlOcar as Fatias de pãO nO tOpO. recObrir cOm

queijO raladO (ementhal Ou gruyÈre). gratinar em FOrnO já aquecidO e servir.

32 Estilo Zaffari

Fonte de vitaminas, os marinheiros gregos preve-niam-se do escorbuto comendo cebolas, e o Cap. Cook não levantava âncora antes que cada membro da tripulação tivesse consu-mido pelo menos 10 kg de cebolas. O teor de água e o cres-cimento em solo arenoso fizeram da cebola um recurso para saciar a sede no deserto. Na medicina chinesa é tratamento para a disenteria, febre e cefaléia, e Plínio relata que a ‘Escola de Esculápio’ preconizava rechear o reto de cebolas a fim de ‘dissolver’ as hemorróidas.

A palavra latina para ‘cebola’ é a mesma de ‘pérola’: onion (F. oignon; I. onion) e brotou do L. unus, ‘um’, como a enfatizar a unidade e união de suas camadas. Já a nossa cebola (L. cepulla) é o diminutivo do L. cepa, ‘planta horten-se’; assim cebolinha é o diminutivo de um diminutivo. Para Dumay, o escritor do comer e beber, a cebola traz à cozinha a campanha, traz ao inverno a primavera armazenada. Num passado recente os ‘oniomen’ franceses atravessavam o canal da Mancha para – de bicicleta – vender cebolas na Inglaterra: o último teria se aposentado em 1994.

As inúmeras variedades fizeram com que no inglês surgisse know your onions (saiba os teus assuntos) e o uso cotidiano cunhou no francês occupes toi de tes oignons (cuida de teus assuntos). Se temos o bife acebolado, os ingleses criaram as cebolas recheadas, e os franceses, a torta, o purê e, principalmente, a sopa de cebolas, a ‘sopa das sopas’.

A sopa de cebolas sempre teve popularidade, princi-palmente entre os pobres e boêmios, e era tradicionalmente oferecida no fim de noite das tavernas do séc. XVIII como um ‘restoratif ’ para um novo dia, daí restaurante. No con-selho de MFK Fisher: “Coma sempre entre 3 e 4 horas da manhã em prol do otimismo”.

Como não somos sacerdotes brâmicos ou viúvas hindus, antes de marchar as tropas, levantar as âncoras e procurar os lábios de Vênus, o restoratif da sopa de cebola, a deusa da horta. Em prol do otimismo: o preparo da sopa das sopas é sopa, mas se não sair boa, a culpa é do flautista.

FernandO lOkschin é médicO e gOurmet [email protected]

O sabor e o saberF e r n a n d O l O k s c h i n

O fogo afasta a fera e atrai o homem. Mais do que a das plantas ou animais, a principal domesticação humana foi a do fogo, e, entre tantos usos, o maior foi alimentar – tornar outros seres mais palatáveis e digeríveis. Nossa digestão se inicia pelo amadurecimento no calor do sol e cozimento no calor do fogo.

O macaco manipula ferramentas e o golfinho emprega linguagem, mas não há animal que cozinhe. O animal come, o homem cozinha; muito além de sapiens, loquaz ou abilis, um homo coquus. Os romanos respeitavam tanto o ofício que diziam: ‘O erro do cozinheiro quem paga é o flautista’. Comida é cultura, culinária é civilização, o fruto do eterno confronto entre criatividade e necessidade.

E a necessidade impera. Não faz tanto tempo, em 1951, a escassez do pós-guerra fez com que 53 mil cavalos trotassem aos açougues ingleses. Num mês de sítio prussiano à Paris de 1870, um povo famoso pelo amor aos bichos de estimação comeu seus gatos, cachorros, cavalos e até as literalmente maiores atrações do Zoológico: os elefantes Castor e Polux. Também não foram poucas as crianças que, arriscando-se longe dos pais, terminaram fritas na caçarola.

Aliás, esta foi a ‘Modesta Proposta’ de Swift para ate-nuar a miséria irlandesa: “Uma criancinha com um ano de idade é o alimento mais delicioso, benéfico e nutritivo que existe, seja cozida, grelhada, assada ou aferventada...”. E lamentava Diógenes, o cínico, há 2.400 anos, não ser fácil abolir a fome por esfregar a barriga como é masturbar-se.

Tudo se presta à criatividade para abolir a fome. No banquete de Cambacéres, chanceler de Napoleão, quando os copeiros desfilavam exibindo aos convidados um esturjão grelhado de 90 kg, tropeçaram deixando cair no chão a iguaria. Frente ao desespero geral, a um sinal do anfitrião, ao toque de trombetas, uma nova comitiva adentrou o salão carregando um esturjão maior ainda. A queda do primeiro apenas criava o clima para a recepção ao segundo.

Hábito dos estudantes portugueses, imitado com es-cândalo em Porto Alegre dos anos 30, era o ‘jantar às aves-sas’: primeiro o café e licor, depois a sobremesa, logo o prato principal seguido da entrada e, para terminar, o aperitivo. E tem gosto e gasto para tudo: em 1890, Mrs. Stuyvesant

cebOla, a deusa da hOrtaFish promoveu um banquete canino em sua mansão nova--iorquina; a cadelinha da anfitriã recepcionava 100 cães convidados ostentando sua gargantilha, coleira cravejada de diamantes no valor de 15 mil dólares.

É preciso fome e criatividade para descobrir o alimento na cebola crua. A cebola íntegra exala um odor sutil, mas reage à mordida com ácidos que queimam a língua e alicina, gás sulfuroso que causa lacrimejamento e dor ocular. Por sorte, basta um leve cozimento ou simples mergulho na água quente para que tais compostos dêem lugar a moléculas 50 vezes mais doces que a sacarose e que conferem a cor e sabor caramelados.

Cebola, nabo, radite e flores bulbosas constituíam a base nutricional do homem pré-histórico. O código de Hamurabi previa uma cesta básica ao necessitado: pão acebolado. Os pobres, fossem egípcios, judeus, gregos ou romanos, tinham na cebola um dos seus sustentos. Na única menção bíblica, não era a presença da cebola, mas sua falta que fazia os judeus chorarem ao comer maná no deserto: “Lembremo-nos... dos melões, cebolas e alhos”...

A cebola é o vegetal mais representado na arte egípcia, um bulbo tão divino só podia ser reproduzido em ouro. Nas palavras de Juvenal, nas hortas egípcias cresciam deuses: cebolas. Os construtores das pirâmides recebiam rações de cerveja, alho e cebola, e talvez não seja coincidência que as bandagens das múmias tenham semelhança com as camadas da cebola. Ramsés IV trazia os olhos e genitais cobertos e os ouvidos e nariz recheados por cebolas – o odor estimularia a volta da respiração no além-túmulo. Já a tradição turca percebia este odor como um chulé satânico: quando Lúcifer caiu à Terra, onde pisou o pé esquerdo teria brotado alho, onde pisou o direito, nascido cebola.

De sabor penetrante e odor adstringente, a cebola não condiz com pureza espiritual, sendo então interditada aos sacerdotes brâmicos e viúvas hindus.

Faz sentido supor que um alimento forte traga força. Os atletas gregos e gladiadores romanos não só comiam réstias inteiras como massageavam a musculatura com caldo de cebola. Alexandre alimentava seus exércitos com cebola,

e ficou famoso o telegrama do General Grant ao Estado Maior: “Sem cebolas não marcho minhas tropas” – preci-sava tanto do alimento como do tratamento para as feridas.

A planta é irmã do alho, aspargo, cebolinha e alho-poró e parente dos lírios e tulipas, flores comestíveis que nem todos apreciam: nas aventuras de Alice no País das Maravilhas, o Sete de Espadas quase foi decapitado por levar ao cozinheiro raízes de tulipas em vez de cebolas. De estrutura afim às gra-míneas, a cebola é folha e caule ao mesmo tempo; forma-se das bases das folhas do ano anterior inchadas pelas reservas energéticas que mantêm a germinação. Sua terra natal se estende desde a Índia até Israel, onde já era cultivada há 5 mil anos. É o vegetal de uso mais abrangente na culinária, e, mesmo a casca, antes usada para tingir tecidos e ovos de Páscoa, continua um precioso ingrediente para dourar brodos, molhos e sopas.

Sucessivas esferas concêntricas sobre um botão de renas-cimento, a cebola é metáfora para o ser e o universo. O símbolo transparece na Igreja Ortodoxa cujas catedrais de abóbadas arredondadas e pontiagudas imitam perfeitamente bulbos, as ‘domas de cebolas’ tão marcantes nas arquiteturas russa e turca.

A cebola, você chora, mas come; além de sofrimento, alimento, além de dor, prazer. A ação lacrimogênea sempre foi enfatizada: “Só a cebola tem o poder de fazer chorar ao jovem herdeiro ou a bela viúva”... Trata-se de um vegetal meteorológico; quanto mais camadas na casca, maior o rigor do inverno vindouro, como se a planta pressentisse o frio e se agasalhasse. Para Apicus, era mais condimento que alimento; seu livro interrompe uma monótona listagem de receitas para salientar que a cebola teria forte ação afrodisíaca induzindo à “procura dos lábios de Vênus”. Talvez por isto, nas ruínas de Pompéia, o local onde as cebolas estão mais representadas é no bordel.

Já no mercado de Roma, as cebolas eram expostas em réstias trançadas de seu próprio caule, da forma que ainda se faz no mundo inteiro. O pior lugar para conservar cebolas é sob a pia, local sombrio e abafado. Guardada junto à batata, a cebola tem vida abreviada: a batata umedece o ar e libera um gás que acelera a deterioração.

sOpa de cebOla, em prOl dO OtimismO

laminar Finamente quatrO cebOlas. bOrriFar pitada de açúcar e Farinha. caramelizar na manteiga.

ir adiciOnandO caldO diluídO de galinha (1,5l). Ferver pOr 1 hOra. temperar cOm sal, pimenta

e vinhO brancO. ajustar cOnsistência cOm Farinha. passar alhO em Fatias de pãO e tOstar nO

FOrnO. dispOr a sOpa em terrines individuais. cOlOcar as Fatias de pãO nO tOpO. recObrir cOm

queijO raladO (ementhal Ou gruyÈre). gratinar em FOrnO já aquecidO e servir.

32 Estilo Zaffari

Fonte de vitaminas, os marinheiros gregos preve-niam-se do escorbuto comendo cebolas, e o Cap. Cook não levantava âncora antes que cada membro da tripulação tivesse consu-mido pelo menos 10 kg de cebolas. O teor de água e o cres-cimento em solo arenoso fizeram da cebola um recurso para saciar a sede no deserto. Na medicina chinesa é tratamento para a disenteria, febre e cefaléia, e Plínio relata que a ‘Escola de Esculápio’ preconizava rechear o reto de cebolas a fim de ‘dissolver’ as hemorróidas.

A palavra latina para ‘cebola’ é a mesma de ‘pérola’: onion (F. oignon; I. onion) e brotou do L. unus, ‘um’, como a enfatizar a unidade e união de suas camadas. Já a nossa cebola (L. cepulla) é o diminutivo do L. cepa, ‘planta horten-se’; assim cebolinha é o diminutivo de um diminutivo. Para Dumay, o escritor do comer e beber, a cebola traz à cozinha a campanha, traz ao inverno a primavera armazenada. Num passado recente os ‘oniomen’ franceses atravessavam o canal da Mancha para – de bicicleta – vender cebolas na Inglaterra: o último teria se aposentado em 1994.

As inúmeras variedades fizeram com que no inglês surgisse know your onions (saiba os teus assuntos) e o uso cotidiano cunhou no francês occupes toi de tes oignons (cuida de teus assuntos). Se temos o bife acebolado, os ingleses criaram as cebolas recheadas, e os franceses, a torta, o purê e, principalmente, a sopa de cebolas, a ‘sopa das sopas’.

A sopa de cebolas sempre teve popularidade, princi-palmente entre os pobres e boêmios, e era tradicionalmente oferecida no fim de noite das tavernas do séc. XVIII como um ‘restoratif ’ para um novo dia, daí restaurante. No con-selho de MFK Fisher: “Coma sempre entre 3 e 4 horas da manhã em prol do otimismo”.

Como não somos sacerdotes brâmicos ou viúvas hindus, antes de marchar as tropas, levantar as âncoras e procurar os lábios de Vênus, o restoratif da sopa de cebola, a deusa da horta. Em prol do otimismo: o preparo da sopa das sopas é sopa, mas se não sair boa, a culpa é do flautista.

FernandO lOkschin é médicO e gOurmet [email protected]

(con)vivências

Cada amigo tem uma vocação, por isso é preciso cultivar váriosAmigos pArA todAs As horAs

“Quem tem amigos tem tudo”, é a crença da maioria das pessoas. Já os pessimistas acham que “Ninguém é amigo de ninguém”. Os menos radicais têm alguma esperança. Pelo menos no cachorro. Vinicius de Moraes simplificou o assunto garantindo: “O uísque é o melhor amigo do homem. É o ca-chorro engarrafado”. Mas que horror! Na minha opinião, não precisamos apelar nem para a bebida nem para os bichos de es-timação. Bons amigos ainda são em forma de gente. Encontrei muitos, vida afora, e acho que fui aprendendo a conhecê-los, reconhecê-los e poupá-los. Amizade não é tarefa para uma única pessoa, e temos de ter competência para montar uma equipe de amigos. Isso mesmo. Não vá sobrecarregando uma única criatura, tornando-a responsável solitária por toda sua “Amizade”. Ela haverá de se cansar, pois ninguém é louco de nos carregar sozinho nas costas.

E tem mais: cada um tem uma vocação. Tem aqueles amigos dos momentos difíceis, que gostam de ouvir desgraça. Quando estamos com vozinha feliz, eles se irritam. “Não tem novidades? Tá tudo bem, mesmo? Então te ligo outra hora.” E tem amigo que só gosta de alegria, festa, prosperidade, passeio astral e comida boa. O assunto é depressão? Falta de dinheiro? Morte na família? Carro estragado? Não telefonem pra ele. Alguém pode até dizer: ah, uma criatura assim não pode ser amiga! Pode, sim. E bem importante, porque não é fácil arru-mar companhia pra se viver momentos bons. Sabem por quê? Porque na tristeza tudo que se deseja é uma vítima pra ouvir nossas mazelas, porque deprimidos não vamos mesmo muito longe. O ombro amigo só precisa entender um pouquinho de fossa (e quem não entende?), pois a única programação será

lamber nossas feridas. Já na alegria, exigimos compatibilidade. Queremos pessoas com o mesmo tipo de humor, o mesmo gosto e a mesma disponibilidade de agenda. Experimentem planejar uma viagem para a Costa Malfitana, por exemplo, e observem o tempo que se leva até encontrar quem queira e que possa nos fazer companhia. Nós mesmos não somos boa parceria para tudo e para todos. A emergência e o compromis-so nos mobilizam mais do que a programação festiva, quando só o prazer está em jogo e nos sentimos à vontade para dizer não. Portanto, sejamos contemporâneos, desobrigando nossos amigos a terem por nós uma amizade universal, pois este pode ser um grande equívoco.

Porém, de acordo com uma rápida pesquisa feita antes de fechar a coluna, existem coisas intoleráveis vindas de um amigo ou amiga, não importando qual seja sua categoria:

Apresentar a gente para pretendente nada a ver (e sem avisar) Roubar da gente pretendente tudo a ver Sumir quando arruma um pretendente Fazer fofoca da desgraça que ouviu a gente contar Pedir dinheiro emprestado e não devolver

Minha crença em amizade faz eu afirmar com segurança: até quem não acredita em amigos os tem. Não nos livraremos deles facilmente. E não sou eu quem diz, é Nelson Rodrigues: “A perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real”. Falou...

r u z A A m o n

ruzA Amon é jornAlistA

52 Estilo Zaffari

Perfil

P O R R E J A N E M A R T I N S F O T O S L E T Í C I A R E M I Ã O

Ela quer ser comum: vai ao supermercado, caminha,

faz exercícios, cozinha, come, trabalha, ama, educa...

A vida poderia ser simples se ela não se chamasse

Márcia Tiburi: filósofa, professora, apresentadora de

TV. Uma menina nascida em Vacaria, no Rio Grande do

Sul, que cresceu em meio a inquietações existenciais e

que na adolescência encontrou nos livros a companhia

segura para enfrentar as mudanças, as diferenças.

Hoje, aos 37 anos, ela esbanja tranqüilidade e instiga

o exercício do pensar. Tudo é motivo para reflexão.

Márcia Tiburi pensa seu mundo onde quer que esteja,

seja em sala de aula, na tela da TV, escrevendo,

desenhando e faz disso um ato natural, como se a

vida realmente fosse simples.

MarciaSimplesmente

Perfil

P O R R E J A N E M A R T I N S F O T O S L E T Í C I A R E M I Ã O

Ela quer ser comum: vai ao supermercado, caminha,

faz exercícios, cozinha, come, trabalha, ama, educa...

A vida poderia ser simples se ela não se chamasse

Márcia Tiburi: filósofa, professora, apresentadora de

TV. Uma menina nascida em Vacaria, no Rio Grande do

Sul, que cresceu em meio a inquietações existenciais e

que na adolescência encontrou nos livros a companhia

segura para enfrentar as mudanças, as diferenças.

Hoje, aos 37 anos, ela esbanja tranqüilidade e instiga

o exercício do pensar. Tudo é motivo para reflexão.

Márcia Tiburi pensa seu mundo onde quer que esteja,

seja em sala de aula, na tela da TV, escrevendo,

desenhando e faz disso um ato natural, como se a

vida realmente fosse simples.

MarciaSimplesmente

Perfil

VOCÊ NASCEU EM VACARIA. SUA ORIGEM GAÚCHA SE REFLE-TE EM ALGUM CANTINHO DA MÁRCIA FILÓSOFA CONHECIDANACIONALMENTE?

Eu acho que existem, no mínimo, duas cidades onde agente nasce. Eu nasci geograficamente em Vacaria, cidadedos campos de cima da serra gaúcha, cuja cultura é bemdiferente das cidades de colonização italiana e alemã daregião. Ali você é um gaúcho, por viver no pampa, a maisgaúcha das paisagens, que vive nas alturas da serra, a maisestrangeira das paisagens gaúchas. E, por isso, quem vivenos “campos de cima da serra” é sempre meio deslocado. Arigor, você, como gaúcho, devia estar na fronteira, mas estáali. É como um brasileiro no sul, sempre meio deslocado.Lembro que, na minha infância, me marcava muito a alti-tude de 950 metros acima do nível do mar. Eu pensava quevivia nas montanhas, no ermo inatingível do Rio Grandedo Sul. E o frio? Guimarães Rosa dizia que o sertão moravanele, é certo que o frio mora em mim. Eu tenho frio, carre-go o frio que, penso, já virou uma metáfora.

Mas nasci também na narrativa que recebi, sobretudodo meu nono, que era nascido em Flores da Cunha, antigaNova Trento, e filho de imigrantes italianos. Ele contava omodo como eu o olhei quando ele foi me visitar onde nas-ci. Durante anos da minha vida eu demorei a perceber abeleza desta história. Sabe aquelas histórias fundadoras dasubjetividade, do que você é, que os adultos contam às cri-anças? Pois a minha era essa: eu era alguém curiosa e capazde olhar com uma atenção incomum para as coisas. Pensoisso agora respondendo esta sua pergunta sobre o momen-to em que eu descobri que existia. Isso é o nascimento quenos ocorre várias vezes na vida.

Acho que ninguém pode negar sua própria história. Oque se pode fazer é tentar fugir dela. Infelizmente, ou não,as cidades pequenas, do interior, expulsam seus filhos, poisnão há nelas oferta suficiente de vida e trabalho ou mesmoespaço de aconchego. Quem tem que lutar pela vida vailutar por ela onde pode. É o que acontece comigo sempre.

Além disso, posso dizer, sou gauchíssima. Aprendi bemo que é a província para poder reconhecê-la na megalópo-le, aqui também há a província, e posso por isso olhar mais

para minha província e saber que ela também tem muitode anti-província.

A FILOSOFIA, DE UM MODO GERAL, FOI BANIDA DAS ESCOLAS,MAS HOJE TALVEZ ATÉ POR NECESSIDADE DE RECUPERAÇÃODE VALORES E PRINCÍPIOS ÉTICOS PODE-SE PERCEBER UMMOVIMENTO DE RESGATE DA QUALIDADE DO PENSAMENTO.VOCÊ ACHA QUE A FILOSOFIA PODERIA SER UMA SAÍDA PARA APOLÍTICA BRASILEIRA?

Nenhuma sociedade, assim como nenhum indivíduopode evoluir em sua subjetividade, psicologicamente oupoliticamente sem pensar em si mesmo sem desenvolveruma habilidade de raciocínio e reflexão que o leve a pon-derar sobre sua vida e a vida da sociedade onde vive. Afilosofia é este pensamento qualificado que nos ajuda naprodução da ação justa, da vida honesta e decente. Paraisso é preciso cuidar do que se pensa, analisar o que se co-nhece e se busca conhecer, o que é consciente ou não.

É claro que se fôssemos mais “elaborados” em nossasautoconsciências, se vivêssemos o valor filosófico do diálo-go verdadeiro, teríamos um Brasil diferente. Onde a éticaseria uma possibilidade da política. O descaso, a maldadedos políticos no Brasil é fruto de uma cultura que se repro-duz na inconsciência.

VOCÊ SE INTERESSOU POR FILOSOFIA AINDA NA ADOLESCÊN-CIA, UM PERÍODO EM QUE SE QUESTIONA TUDO E DIFICILMEN-TE SE ENCONTRA ALGO QUE SATISFAÇA TANTAS INDAGAÇÕES. AFILOSOFIA TE AJUDOU A AMADURECER?

Acho que qualquer profissão, ou mesmo a paternidadeou a maternidade, ou qualquer obrigação que se tenha navida, ajuda a amadurecer, ainda mais quando não há outraalternativa à sobrevivência. Falo de limites. Ou você cresceou você não tem mais jeito, pode ser engolido pelas imposi-ções, leis, ordens. Mas a filosofia nunca foi isso para mim.Nunca foi limite e sim libertação dos limites. Acho que é porisso que eu fui e sou tão feliz com ela. Eu sempre a vi comoliberdade do pensar, nunca fiquei esperando que ninguémme explicasse como se faz. Tive que inventar meu jeito.

É certo que a filosofia foi meu caminho de amadureci-

QUEM NÃO CONSEGUE PARAR PARA PENSAR ÉPORQUE ESTÁ COM O ESPÍRITO OCUPADO.

Perfil

VOCÊ NASCEU EM VACARIA. SUA ORIGEM GAÚCHA SE REFLE-TE EM ALGUM CANTINHO DA MÁRCIA FILÓSOFA CONHECIDANACIONALMENTE?

Eu acho que existem, no mínimo, duas cidades onde agente nasce. Eu nasci geograficamente em Vacaria, cidadedos campos de cima da serra gaúcha, cuja cultura é bemdiferente das cidades de colonização italiana e alemã daregião. Ali você é um gaúcho, por viver no pampa, a maisgaúcha das paisagens, que vive nas alturas da serra, a maisestrangeira das paisagens gaúchas. E, por isso, quem vivenos “campos de cima da serra” é sempre meio deslocado. Arigor, você, como gaúcho, devia estar na fronteira, mas estáali. É como um brasileiro no sul, sempre meio deslocado.Lembro que, na minha infância, me marcava muito a alti-tude de 950 metros acima do nível do mar. Eu pensava quevivia nas montanhas, no ermo inatingível do Rio Grandedo Sul. E o frio? Guimarães Rosa dizia que o sertão moravanele, é certo que o frio mora em mim. Eu tenho frio, carre-go o frio que, penso, já virou uma metáfora.

Mas nasci também na narrativa que recebi, sobretudodo meu nono, que era nascido em Flores da Cunha, antigaNova Trento, e filho de imigrantes italianos. Ele contava omodo como eu o olhei quando ele foi me visitar onde nas-ci. Durante anos da minha vida eu demorei a perceber abeleza desta história. Sabe aquelas histórias fundadoras dasubjetividade, do que você é, que os adultos contam às cri-anças? Pois a minha era essa: eu era alguém curiosa e capazde olhar com uma atenção incomum para as coisas. Pensoisso agora respondendo esta sua pergunta sobre o momen-to em que eu descobri que existia. Isso é o nascimento quenos ocorre várias vezes na vida.

Acho que ninguém pode negar sua própria história. Oque se pode fazer é tentar fugir dela. Infelizmente, ou não,as cidades pequenas, do interior, expulsam seus filhos, poisnão há nelas oferta suficiente de vida e trabalho ou mesmoespaço de aconchego. Quem tem que lutar pela vida vailutar por ela onde pode. É o que acontece comigo sempre.

Além disso, posso dizer, sou gauchíssima. Aprendi bemo que é a província para poder reconhecê-la na megalópo-le, aqui também há a província, e posso por isso olhar mais

para minha província e saber que ela também tem muitode anti-província.

A FILOSOFIA, DE UM MODO GERAL, FOI BANIDA DAS ESCOLAS,MAS HOJE TALVEZ ATÉ POR NECESSIDADE DE RECUPERAÇÃODE VALORES E PRINCÍPIOS ÉTICOS PODE-SE PERCEBER UMMOVIMENTO DE RESGATE DA QUALIDADE DO PENSAMENTO.VOCÊ ACHA QUE A FILOSOFIA PODERIA SER UMA SAÍDA PARA APOLÍTICA BRASILEIRA?

Nenhuma sociedade, assim como nenhum indivíduopode evoluir em sua subjetividade, psicologicamente oupoliticamente sem pensar em si mesmo sem desenvolveruma habilidade de raciocínio e reflexão que o leve a pon-derar sobre sua vida e a vida da sociedade onde vive. Afilosofia é este pensamento qualificado que nos ajuda naprodução da ação justa, da vida honesta e decente. Paraisso é preciso cuidar do que se pensa, analisar o que se co-nhece e se busca conhecer, o que é consciente ou não.

É claro que se fôssemos mais “elaborados” em nossasautoconsciências, se vivêssemos o valor filosófico do diálo-go verdadeiro, teríamos um Brasil diferente. Onde a éticaseria uma possibilidade da política. O descaso, a maldadedos políticos no Brasil é fruto de uma cultura que se repro-duz na inconsciência.

VOCÊ SE INTERESSOU POR FILOSOFIA AINDA NA ADOLESCÊN-CIA, UM PERÍODO EM QUE SE QUESTIONA TUDO E DIFICILMEN-TE SE ENCONTRA ALGO QUE SATISFAÇA TANTAS INDAGAÇÕES. AFILOSOFIA TE AJUDOU A AMADURECER?

Acho que qualquer profissão, ou mesmo a paternidadeou a maternidade, ou qualquer obrigação que se tenha navida, ajuda a amadurecer, ainda mais quando não há outraalternativa à sobrevivência. Falo de limites. Ou você cresceou você não tem mais jeito, pode ser engolido pelas imposi-ções, leis, ordens. Mas a filosofia nunca foi isso para mim.Nunca foi limite e sim libertação dos limites. Acho que é porisso que eu fui e sou tão feliz com ela. Eu sempre a vi comoliberdade do pensar, nunca fiquei esperando que ninguémme explicasse como se faz. Tive que inventar meu jeito.

É certo que a filosofia foi meu caminho de amadureci-

QUEM NÃO CONSEGUE PARAR PARA PENSAR ÉPORQUE ESTÁ COM O ESPÍRITO OCUPADO.

Perfil

mento profissional, mas me liguei imediatamente ao seuconteúdo e forma porque ela diz do meu modo de ser. Naminha adolescência a filosofia era para mim um jeito decombater a violência simbólica que todos adolescente vive,seja com a escola, a família, ou a sociedade como um todo.Eu vivia só, ainda que tivesse irmãos e colegas, mas os li-vros eram meus mais íntimos companheiros. Eu não faziaidéia do que aquilo poderia significar além do prazer queleituras e estudos me davam. Não sei se eu já não era ma-dura, provavelmente não, mas é certo que já buscava averdade ao meu modo e acreditava que o caminho dos li-vros era o mais apropriado a seguir.

A EXPOSIÇÃO GERADA PELA TV CHEGOU A MUDAR TUA VIDA?Pragmaticamente sim, pois mudei de cidade. Mas só. A

exposição em certo grau pode incomodar, mas não a mim,pois não me sinto fortemente exposta em algum aspecto queeu não possa sustentar emocionalmente. Vou aonde preci-sar, seja ao shopping ou à padaria, vestida de qualquer jeito.Não me preocupo que as pessoas venham falar comigo e seassustem com o abismo entre a produção que aparece naTV e eu real, eu-vizinha, eu-professora, eu-palestrante. Achoaté bom que certas pessoas se assustem e percebam que TVé representação, algo separado da realidade com pretensãode realidade. Com a TV aprendi o que eu já sabia, que sercomum é divino e possível. Imagino que as tais “celebrida-des” tenham vidas bem difíceis.

QUAL A TUA AVALIAÇÃO DA INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA VIDA DASPESSOAS HOJE?

Daria para escrever um livro sobre esta questão, ouvários. Na verdade, estou elaborando um trabalho sobrefilosofia e televisão que deverá sair em livro. Posso, nesteespaço, apenas sustentar a tese de que em principio, a mí-dia ocupa a vida inteira das pessoas. Que se perde a cadadia o interesse pela vida concreta, a vida em seu sentidoexistencial, e focam hoje suas atenções nas imagens e naforma-mercadoria destas. A idéia de uma sociedade do es-petáculo de Guy Débord, que apareceu nos anos sessenta,

ainda é plenamente atual. O que é esta sociedade? Aquelaque vive como uma imitação da imagem que ela mesmainventa. Ou seja, imitamos os modelos que nós mesmosforjamos, mas esquecemos que foram nossas criações. Cria-mos uma ilusão e acreditamos nela. Acreditamos em nos-sas mentiras. A conseqüência é que, no mínimo, deixamosde ser livres. Viramos escravos de simulacros.

A FILOSOFIA EXIGE A REFLEXÃO E ISSO TOMA TEMPO. COMOVOCÊ CONCILIA ISSO COM A CORRERIA HABITUAL DE NOSSOCOTIDIANO ONDE TUDO É PRA ONTEM?

Filosofia também é para ontem em certo sentido. Vejaas urgências de nossa sociedade e poucos pensando nosrumos do futuro. Mas é claro que este tempo do pensa-mento tem mais a ver com ócio do que com hiperativida-de. Quando dizemos “preciso parar para pensar” isto é ab-solutamente correto. O pensamento exige atenção e estasó nasce do foco que exige concentração. Se bem que eutenho várias idéias quando estou correndo na esteira. Eisso me faz pensar que a parada é mesmo apenas do espíri-to. Por isso, quem não consegue parar para pensar é por-que está com o espírito ocupado.

TRABALHAR COM O PENSAMENTO NÃO CRIA UM ESTEREÓTIPODE UMA MÁRCIA INABALÁVEL QUE DEVE TER SEMPRE RES-POSTA PARA TUDO? AS PESSOAS NÃO TE COBRAM SEMPREUMA POSTURA DE “SER SUPERIOR”?

Tem quem cobra, claro. Sou professora e isso aparecebem na exigência de uma postura. É absurdo e eu nuncacombinei com isso. Nunca me dei bem com quem faz pose.Um filósofo é um ser que sabe que nada sabe. E sabe que épreciso evitar o ridículo de querer ser o que não se é.

VOCÊ É DO TIPO “FAÇA O QUE EU DIGO, MAS NÃO FAÇA O QUEEU FAÇO”?

Não. Talvez seja, mas acho que não. Eu sou tão simplese tão comum que o que eu faço não é nada demais. O queeu falo? Nada demais também. Nem faz mal a ninguém. Es-pero que faça bem também a mim. Ando tão preocupada

em falar sobre filosofia e, hoje em dia, em ética. Mas faloporque acho meu dever intelectual levantar a bandeira dadiscussão coerente. Do contrário eu deveria ter seguido ou-tra profissão, outra atividade. Acho que não é tão difícil serético, é preciso avaliar o que isso significa e colocá-lo emtermos políticos, ou seja, fazer sair do mero âmbito pessoal eíntimo e chegar à sua importância social. Para ser ético épreciso começar tentando fazer o que se diz. Eu tenho a in-tenção de juntar as duas coisas. Não me parece nada difícil.

E QUEM É A MÁRCIA TIBURI NA INTIMIDADE?Sou um bicho-preguiça que gosta de ficar lendo, es-

crevendo, conversando, tomando vinho e cozinhando.Nada interessante demais. Adoro ficar com minha filha,meu marido, meus irmãos. Ir ao cinema às vezes. Como umser humano qualquer: em paz e com sonhos na cabeça.

O QUE TE DÁ MEDO HOJE?O crescente poder dos maus, dos prepotentes que não

percebem que a natureza é cada dia mais ameaçada e, nela,também o ser humano. Acho que não se preocupam comeste fato, esqueceram que são humanos (?). Acho que tudoisso tem como corolário o elogio e a prática da ignorâncianos meios de comunicação e na política, nos contextos devida privada e pública, nas instituições em geral, com suasraras exceções.

COMO É SUA ROTINA COTIDIANA? VOCÊ FAZ COMPRAS, CUIDADO CORPO, DA CASA?

Sim, eu sou a mais simples de todas as donas de casa,daquelas que tem o mapa do supermercado na cabeça, dasque levam cachorro para tomar banho, das que fazem mui-to esforço na academia porque sabem que a serotonina nãosurge do nada, que a idade tem, sim, seu lado cruel, dasque se preocupam se os filhos comeram frutas, se o médicoacertou o diagnóstico. É possível que as pessoas imaginemque alguém que aparece na televisão seja um E.T diferen-te dos outros em nem sei que aspectos. Teria angústias di-ferentes? Talvez pensem que alguém que trabalha intelec-

SOU UM BICHO-PREGUIÇA QUE GOSTA DE FICAR LENDO, ESCREVENDO...

Perfil

mento profissional, mas me liguei imediatamente ao seuconteúdo e forma porque ela diz do meu modo de ser. Naminha adolescência a filosofia era para mim um jeito decombater a violência simbólica que todos adolescente vive,seja com a escola, a família, ou a sociedade como um todo.Eu vivia só, ainda que tivesse irmãos e colegas, mas os li-vros eram meus mais íntimos companheiros. Eu não faziaidéia do que aquilo poderia significar além do prazer queleituras e estudos me davam. Não sei se eu já não era ma-dura, provavelmente não, mas é certo que já buscava averdade ao meu modo e acreditava que o caminho dos li-vros era o mais apropriado a seguir.

A EXPOSIÇÃO GERADA PELA TV CHEGOU A MUDAR TUA VIDA?Pragmaticamente sim, pois mudei de cidade. Mas só. A

exposição em certo grau pode incomodar, mas não a mim,pois não me sinto fortemente exposta em algum aspecto queeu não possa sustentar emocionalmente. Vou aonde preci-sar, seja ao shopping ou à padaria, vestida de qualquer jeito.Não me preocupo que as pessoas venham falar comigo e seassustem com o abismo entre a produção que aparece naTV e eu real, eu-vizinha, eu-professora, eu-palestrante. Achoaté bom que certas pessoas se assustem e percebam que TVé representação, algo separado da realidade com pretensãode realidade. Com a TV aprendi o que eu já sabia, que sercomum é divino e possível. Imagino que as tais “celebrida-des” tenham vidas bem difíceis.

QUAL A TUA AVALIAÇÃO DA INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA VIDA DASPESSOAS HOJE?

Daria para escrever um livro sobre esta questão, ouvários. Na verdade, estou elaborando um trabalho sobrefilosofia e televisão que deverá sair em livro. Posso, nesteespaço, apenas sustentar a tese de que em principio, a mí-dia ocupa a vida inteira das pessoas. Que se perde a cadadia o interesse pela vida concreta, a vida em seu sentidoexistencial, e focam hoje suas atenções nas imagens e naforma-mercadoria destas. A idéia de uma sociedade do es-petáculo de Guy Débord, que apareceu nos anos sessenta,

ainda é plenamente atual. O que é esta sociedade? Aquelaque vive como uma imitação da imagem que ela mesmainventa. Ou seja, imitamos os modelos que nós mesmosforjamos, mas esquecemos que foram nossas criações. Cria-mos uma ilusão e acreditamos nela. Acreditamos em nos-sas mentiras. A conseqüência é que, no mínimo, deixamosde ser livres. Viramos escravos de simulacros.

A FILOSOFIA EXIGE A REFLEXÃO E ISSO TOMA TEMPO. COMOVOCÊ CONCILIA ISSO COM A CORRERIA HABITUAL DE NOSSOCOTIDIANO ONDE TUDO É PRA ONTEM?

Filosofia também é para ontem em certo sentido. Vejaas urgências de nossa sociedade e poucos pensando nosrumos do futuro. Mas é claro que este tempo do pensa-mento tem mais a ver com ócio do que com hiperativida-de. Quando dizemos “preciso parar para pensar” isto é ab-solutamente correto. O pensamento exige atenção e estasó nasce do foco que exige concentração. Se bem que eutenho várias idéias quando estou correndo na esteira. Eisso me faz pensar que a parada é mesmo apenas do espíri-to. Por isso, quem não consegue parar para pensar é por-que está com o espírito ocupado.

TRABALHAR COM O PENSAMENTO NÃO CRIA UM ESTEREÓTIPODE UMA MÁRCIA INABALÁVEL QUE DEVE TER SEMPRE RES-POSTA PARA TUDO? AS PESSOAS NÃO TE COBRAM SEMPREUMA POSTURA DE “SER SUPERIOR”?

Tem quem cobra, claro. Sou professora e isso aparecebem na exigência de uma postura. É absurdo e eu nuncacombinei com isso. Nunca me dei bem com quem faz pose.Um filósofo é um ser que sabe que nada sabe. E sabe que épreciso evitar o ridículo de querer ser o que não se é.

VOCÊ É DO TIPO “FAÇA O QUE EU DIGO, MAS NÃO FAÇA O QUEEU FAÇO”?

Não. Talvez seja, mas acho que não. Eu sou tão simplese tão comum que o que eu faço não é nada demais. O queeu falo? Nada demais também. Nem faz mal a ninguém. Es-pero que faça bem também a mim. Ando tão preocupada

em falar sobre filosofia e, hoje em dia, em ética. Mas faloporque acho meu dever intelectual levantar a bandeira dadiscussão coerente. Do contrário eu deveria ter seguido ou-tra profissão, outra atividade. Acho que não é tão difícil serético, é preciso avaliar o que isso significa e colocá-lo emtermos políticos, ou seja, fazer sair do mero âmbito pessoal eíntimo e chegar à sua importância social. Para ser ético épreciso começar tentando fazer o que se diz. Eu tenho a in-tenção de juntar as duas coisas. Não me parece nada difícil.

E QUEM É A MÁRCIA TIBURI NA INTIMIDADE?Sou um bicho-preguiça que gosta de ficar lendo, es-

crevendo, conversando, tomando vinho e cozinhando.Nada interessante demais. Adoro ficar com minha filha,meu marido, meus irmãos. Ir ao cinema às vezes. Como umser humano qualquer: em paz e com sonhos na cabeça.

O QUE TE DÁ MEDO HOJE?O crescente poder dos maus, dos prepotentes que não

percebem que a natureza é cada dia mais ameaçada e, nela,também o ser humano. Acho que não se preocupam comeste fato, esqueceram que são humanos (?). Acho que tudoisso tem como corolário o elogio e a prática da ignorâncianos meios de comunicação e na política, nos contextos devida privada e pública, nas instituições em geral, com suasraras exceções.

COMO É SUA ROTINA COTIDIANA? VOCÊ FAZ COMPRAS, CUIDADO CORPO, DA CASA?

Sim, eu sou a mais simples de todas as donas de casa,daquelas que tem o mapa do supermercado na cabeça, dasque levam cachorro para tomar banho, das que fazem mui-to esforço na academia porque sabem que a serotonina nãosurge do nada, que a idade tem, sim, seu lado cruel, dasque se preocupam se os filhos comeram frutas, se o médicoacertou o diagnóstico. É possível que as pessoas imaginemque alguém que aparece na televisão seja um E.T diferen-te dos outros em nem sei que aspectos. Teria angústias di-ferentes? Talvez pensem que alguém que trabalha intelec-

SOU UM BICHO-PREGUIÇA QUE GOSTA DE FICAR LENDO, ESCREVENDO...

Perfil

tualmente só pensa em livros (isso é quase verdade, aliás).Tenho compromissos familiares e afetivos e, é claro, muitoprazer nisso. Agora, não me chame para fazer compras emshopping, nem para ir a um salão fazer unhas, a isto eu menego mesmo. Para dar tempo de escrever e estudar vocêtem que saber driblar um pouco o cotidiano. Você tem quefocar no que importa e dá alegria e não perder tempo.

VOCÊ TEM UMA FILHA DE SEU PRIMEIRO CASAMENTO. QUE IDA-DE ELA TEM? NATURALMENTE, NEM QUE SEJA POR OSMOSEVOCÊ DEVE TÊ-LA INSTIGADO A REFLETIR E ANALISAR. VOCÊ APERCEBE COMO UMA CRIANÇA DIFERENTE DAS DEMAIS PORTER UMA MÃE FILÓSOFA?

Maria Luiza tem 10 anos e lê mais que eu. Está, comoé comum à idade, numa fase bem conceitual. Não é dife-rente de outras crianças que conheço. Diz que quer sercineasta. Há uns dois anos, indagada sobre se seria filósofaquando crescesse, ela apenas respondeu que “não comete-ria um disparate desses”. Não é possível saber exatamenteo que ela queria dizer com isso, mas bons entendedorespodem se divertir. Eu acho ótimo que ela já tenha manifes-tado seu próprio caráter, que tenha esse anseio de autono-mia que, em geral, envolve poder negar os pais. Somosamigas demais e conversamos demais, mas sei que ela nãome segue simplesmente. Ela debate comigo. Ainda bem.

COMER É UM ATO PENSADO? O QUE VOCÊ GOSTA DE COMER?Seria interessante alguém escrever uma filosofia para

isso. Há um livro de Michel Onfray chamado “O ventredos filósofos” (Ed. Rocco) que investiga o que os filósofoscomiam e porque pensavam o que pensavam. É mais di-vertido que real, mas discute o dito curioso de que “você éo que você come”. Isso é lógico. Porém, é lógico tambémque você não é só o que você come. A arte culinária é amais nobre de todas as artes? A concordar com a poetaCora Coralina, autora da frase, a descoberta será sublime.

Eu gosto de comer tudo.

VOCÊ SABE COZINHAR? TEM ALGUMA RECEITA SUA?Eu adoro cozinhar, mas sou péssima de cozinha cotidia-

na. Aquela comida de mãe, de avó, não é comigo. Durante

muito tempo eu disse que teria sido cozinheira com prazer.Em geral, eu invento na hora, nunca faço planos. Mas játive as fases das massas, dos risotos, sou super especialistaem molhos e nada modesta. Minha última receita foi umfrango no champagne (muito, uma garrafa toda) com shi-meji que é meu cogumelo preferido.

O QUE VOCÊ JAMAIS COMERIA?Muitas coisas. Fui vegetariana por anos e nem me pas-

sava pela cabeça a idéia de voltar a comer carne, coisa deque eu nunca gostei (imagine que sendo gaúcha isso sem-pre foi problema). Hoje consigo até comer um churrascobem passado, sem aquela cara de “boi assado”. Eu nuncacomeria as coisas que me inspiram a fazer meus desenhos:miúdos de qualquer animal (imagine moelas!!!), insetos,gorduras, bacon, peles. Coisas de comer que, sempre digo,não foram exatamente feitas para serem comidas.

O QUE NÃO PODE FALTAR EM SUA CESTA BÁSICA?Pão italiano, alcachofra em conserva e vinho tinto.

O QUE MAIS TE FAZ FALTA HOJE?Uma amiga tão amiga que fosse como uma irmã gê-

mea, daquelas que mesmo sendo uma pessoa cheia de de-feitos, você não pode se separar. Como eu me separei geo-graficamente das minhas amigas de Porto Alegre, eu tenhomuita saudade delas.

O QUE VOCÊ CONSIDERARIA UMA SAIA JUSTA EM UMA ENTRE-VISTA?

Você já me colocou em várias...

QUAIS SÃO SEUS PLANOS PARA MÉDIO E LONGO PRAZO?Continuar fazendo as mesmas coisas de sempre, escre-

ver, falar com as pessoas. Atuar mais no espaço público pro-movendo o pensamento lúcido. Para mim filosofia é a pro-moção do encontro com as pessoas em nome da lucidez.Quero acompanhar a adolescência da minha filha de per-to e pensar mais filosoficamente este tempo de intervaloentre a infância e a idade adulta. E, se sobrar tempo, ficarum pouco mais em paz com meus fracassos.

PARA SER ÉTICO É PRECISO TENTAR FAZER O QUE SEDIZ. EU TENHO A INTENÇÃO DE JUNTAR AS DUAS COISAS

Perfil

tualmente só pensa em livros (isso é quase verdade, aliás).Tenho compromissos familiares e afetivos e, é claro, muitoprazer nisso. Agora, não me chame para fazer compras emshopping, nem para ir a um salão fazer unhas, a isto eu menego mesmo. Para dar tempo de escrever e estudar vocêtem que saber driblar um pouco o cotidiano. Você tem quefocar no que importa e dá alegria e não perder tempo.

VOCÊ TEM UMA FILHA DE SEU PRIMEIRO CASAMENTO. QUE IDA-DE ELA TEM? NATURALMENTE, NEM QUE SEJA POR OSMOSEVOCÊ DEVE TÊ-LA INSTIGADO A REFLETIR E ANALISAR. VOCÊ APERCEBE COMO UMA CRIANÇA DIFERENTE DAS DEMAIS PORTER UMA MÃE FILÓSOFA?

Maria Luiza tem 10 anos e lê mais que eu. Está, comoé comum à idade, numa fase bem conceitual. Não é dife-rente de outras crianças que conheço. Diz que quer sercineasta. Há uns dois anos, indagada sobre se seria filósofaquando crescesse, ela apenas respondeu que “não comete-ria um disparate desses”. Não é possível saber exatamenteo que ela queria dizer com isso, mas bons entendedorespodem se divertir. Eu acho ótimo que ela já tenha manifes-tado seu próprio caráter, que tenha esse anseio de autono-mia que, em geral, envolve poder negar os pais. Somosamigas demais e conversamos demais, mas sei que ela nãome segue simplesmente. Ela debate comigo. Ainda bem.

COMER É UM ATO PENSADO? O QUE VOCÊ GOSTA DE COMER?Seria interessante alguém escrever uma filosofia para

isso. Há um livro de Michel Onfray chamado “O ventredos filósofos” (Ed. Rocco) que investiga o que os filósofoscomiam e porque pensavam o que pensavam. É mais di-vertido que real, mas discute o dito curioso de que “você éo que você come”. Isso é lógico. Porém, é lógico tambémque você não é só o que você come. A arte culinária é amais nobre de todas as artes? A concordar com a poetaCora Coralina, autora da frase, a descoberta será sublime.

Eu gosto de comer tudo.

VOCÊ SABE COZINHAR? TEM ALGUMA RECEITA SUA?Eu adoro cozinhar, mas sou péssima de cozinha cotidia-

na. Aquela comida de mãe, de avó, não é comigo. Durante

muito tempo eu disse que teria sido cozinheira com prazer.Em geral, eu invento na hora, nunca faço planos. Mas játive as fases das massas, dos risotos, sou super especialistaem molhos e nada modesta. Minha última receita foi umfrango no champagne (muito, uma garrafa toda) com shi-meji que é meu cogumelo preferido.

O QUE VOCÊ JAMAIS COMERIA?Muitas coisas. Fui vegetariana por anos e nem me pas-

sava pela cabeça a idéia de voltar a comer carne, coisa deque eu nunca gostei (imagine que sendo gaúcha isso sem-pre foi problema). Hoje consigo até comer um churrascobem passado, sem aquela cara de “boi assado”. Eu nuncacomeria as coisas que me inspiram a fazer meus desenhos:miúdos de qualquer animal (imagine moelas!!!), insetos,gorduras, bacon, peles. Coisas de comer que, sempre digo,não foram exatamente feitas para serem comidas.

O QUE NÃO PODE FALTAR EM SUA CESTA BÁSICA?Pão italiano, alcachofra em conserva e vinho tinto.

O QUE MAIS TE FAZ FALTA HOJE?Uma amiga tão amiga que fosse como uma irmã gê-

mea, daquelas que mesmo sendo uma pessoa cheia de de-feitos, você não pode se separar. Como eu me separei geo-graficamente das minhas amigas de Porto Alegre, eu tenhomuita saudade delas.

O QUE VOCÊ CONSIDERARIA UMA SAIA JUSTA EM UMA ENTRE-VISTA?

Você já me colocou em várias...

QUAIS SÃO SEUS PLANOS PARA MÉDIO E LONGO PRAZO?Continuar fazendo as mesmas coisas de sempre, escre-

ver, falar com as pessoas. Atuar mais no espaço público pro-movendo o pensamento lúcido. Para mim filosofia é a pro-moção do encontro com as pessoas em nome da lucidez.Quero acompanhar a adolescência da minha filha de per-to e pensar mais filosoficamente este tempo de intervaloentre a infância e a idade adulta. E, se sobrar tempo, ficarum pouco mais em paz com meus fracassos.

PARA SER ÉTICO É PRECISO TENTAR FAZER O QUE SEDIZ. EU TENHO A INTENÇÃO DE JUNTAR AS DUAS COISAS