revista harco #2

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harco [arte, cultura e meio ambiente] Ano1 #1 - Outubro de 2008 Guardião da imagem e do som memória [Após 50 anos, Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, renova suas pesquisas, agora também à frente do Museu da Imagem e do Som]

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Revista sobre artes, publicada em Fortaleza, diagramada por Edaurdo Freire

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harco[arte, cultura e meio ambiente] Ano1 #1 - Outubro de 2008

Guardiãoda imagem e do sommemória [Após 50 anos, Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, renova suas pesquisas, agora também à frente do Museu da Imagem e do Som]

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O segundo número da Harco consolida nossa

determinação. Fomos bem recebidos, mas continuamos desafiando as lógicas. Como o país, acreditamos que não podemos ficar esperando. Crises, mudanças... Vamos superá-las e contribuir para renová-las. Húmus. Como a floresta resiste, 20 anos após a morte de Chico Mendes. Como a Palestina, os herdeiros de Zumbi e o povo cubano resistem. Trilhos humanos. A língua é nossa pátria, e sua resistência também nos importa. A história, o jornalismo, em imagem e som: Nirez. Realidade e Bandeira. Heloísa Juaçaba. E João e Manoel. Rosário, Cascudo e Leota. Harco cresce.

harco

história [Revolução Cubana | 50 anos de um paradigma] página 26

cinema [Manoel de Oliveira | Centenário de um gênio português] página 22

arte de viver [Chico Mendes | 20 anos sem o homem da floresta] página 30

patrimônio [Igreja do Rosário | A tradição do esquecimento] página 31

expediente [ harco | Ano 1 #2 - dezembro de 2008 ] [Diretores | Vavá Azim | Nauer Spíndola | Vinicio Del Pinto ] [editor e jornalista responsável | Henrique Nunes - CE 01207 JP] [redatores | Aécio Santiago | Kélia Jácome] [colaboradores da edição | Síria Mapurunga | Gilmar de Carvalho |

Galeria Panorama | José Guedes | Roberto Galvão | Chico Gomes | Frei Hermínio Bezerra | Gervásio de Paula | Floriano Martins | Maristela Crispim | Jacob Klintowitz | Dilmar Miranda | Consiglia Latorre] [conselho editorial | Vavá Azim | Nauer Spíndola | Vinicio Del Pinto | Schubert Machado | André Spínola]

[projeto gráfico e diagramação | Eduardo Freire] [fotografia | Mauro Angeli] [tratamento de imagens | Vinicio Del Pinto] [tiragem | 2.000 exemplares] [contatos | 85 3081 0555 | Rua Gen. Eurico 25 - Varjota - Fortaleza - CE | [email protected] | www.revistaharco.com]

cultura popular [ciranda da tradição | Intérpretes do universo popular] página 34

fotografia [Chico Gomes | Uma viagem ferroviária] página 24

artes plásticas [Antonio Bandeira | O abstracionismo lírico em evidência] pagina 16

linguística [Acordo Ortográfico | caminhos e descaminhos] página 40

matéria de capa [ Nirez ecoa | Novo diretor do MIS resgata antigas rotações do seu arquivo pessoal ] página 2

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texto [Henrique Nunes]fotos [Mauro Angeli]

O historiador e jornalista Nirez é reconhecido nacionalmente pelo trabalho de preservação mantido há 50 anos Rotações da memória

Memória viva de uma cidade, um país, um mundo, Miguel Ângelo de Azevedo herdou o

talento investigativo de seu pai, o pintor, fotógrafo e escritor (autodidata) Otacílio de Azevedo

(1886-1978). As emoções delineadas em suas telas, em grande parte retratos e paisagens, e

ainda nas páginas de seus 12 livros de poesia e memórias, foram preservadas em família. No

caso do amor pela literatura, por outro filho, Sânzio, um dos mais importantes pesquisadores

das nossas letras. Mas elas também ultrapassaram as fronteiras do tempo e das linguagens, em

torno das pesquisas incansáveis do memorialista.

Da infância, resgatou o apelido que legou para um de seus filhos: Nirez, deturpação de Inglês,

como o chamavam na infância. Após décadas dedicadas a colecionar não apenas os discos de

cera que lhe deram notoriedade nacional, mas um pouco de muitos outros elementos da sua

devoção, Nirez, jornalista e historiador que é relações públicas do Instituto do Ceará, ao qual

sempre esteve próximo, assumiu, em 14 de janeiro, a direção do Museu da Imagem e do Som.

Um órgão que, efetivamente, ainda não cumpriu sua missão de difundir seu acervo ao público,

contrastando com a rotina de cinco décadas de seu atual gestor.

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Ao assumir o MIS, Nirez começa a dar forma a um processo com pelo menos 30 anos de atraso.

Sua arqueologia fonográfica já era, então, reconhecida em todo o país. Em 75, quando fundou a Associação dos Pesquisadores da Música Popular Brasileira – APMPB, Nirez entregou à Funarte 10 volumes de informações sobre as gravações em 78 Rotações por Minuto (RPMs), desde a Casa Edison, em um trabalho estimulado pelo MEC e feito em parceria com os pesquisadores Jairo Severiano e Gra-cio Barbalho. Anunciada, em 1977, a criação do Museu da Imagem e do Som do Ceará, pesquisadores como Ricardo Cravo Albim sugeriram o nome de Nirez para dirigi-lo. Descon-vidado, o pesquisador manteve sua atividade doméstica, no seu outrora chamado Museu Cearense da Comu-nicação (antes, Museu Fonográfico do Ceará), bancada com os cruzeiros ganhos no DNOCS e como redator do setor de pesquisas do jornal O Povo. Enfrentando agruras como a de uma gestão municipal que assoreou um riacho próximo de sua casa, invadida por suas águas e pelas muriçocas, o pesquisador viu perder-se uma série de documentos.

Nirez está no MIS. “Não tem uma pessoa mais qualificada para ocupar este cargo como o nosso querido Ni-rez”, declarou o governador em exer-cício, Fernando Ximenes, em sua pos-se. “É um dos maiores especialistas, conhecedores e colecionadores de peças importantes do nosso patrimô-nio material e imaterial”, ratificou o Secretário de Cultura Auto Filho. Na cerimônia, que contou com a presen-ça de outros intelectuais, ele confir-mou algumas declarações e retificou

outras, concedidas e publicadas na-quele dia no Diário do Nordeste. Pri-meiro, confirmando projetos como a criação de um estúdio onde fossem retomados os registros de depoimen-tos de personalidades cearenses e até de outros estados. Depois, com a anu-ência de Auto Filho, falando em uma nova sede para o Museu, que seria, paralelamente, sede do seu Arquivo. A maior divergência é que ele sina-lizou com a possibilidade de “trocar figurinhas” entre seu acervo e o do Museu. “Vamos completar um o acer-vo do outro, dependendo da dificul-dade ou da facilidade”, relatou ainda o site da Universitária FM. Quem ganha com isso é a comunidade cearense e a cultura brasileira em geral, desde que seja garantido o controle, a seguran-ça, total do acervo, a maior ressalva do jornalista e historiador cearense para não manter seu Arquivo sob a égide do Estado. Nirez declarou ain-da, segundo consta no mesmo site, a intenção de promover um festival de música de caráter nacional, incentivar manifestações folclóricas e publicar um periódico com artigos de interes-se popular relacionados à imagem e ao som, além de veicular um progra-ma de rádio do MIS.

Da imagem, da palavra e da cera

Nirez pretende, portanto, dar continuidade, oxalá de fato em grande estilo, a um processo até hoje desen-volvido individualmente por ele. Seu acervo de mais de 100 mil itens é com-posto por 22 mil discos de cera do pe-ríodo entre os anos 1902 e 1964. Além disso, uma gama variada de livros (oito mil exemplares), de objetos e de fotografias (15 mil relativas à Fortale-za de outrora) complementa sua cole-

ção, preservada com muita dedicação por ele e sua família em sua casa na rua João Bosco, 560, no bairro Rodolfo Teófilo. Tudo é mantido em extrema ordem, mesmo recebendo uma média de 300 visitantes por mês. Contíguo às estantes dos discos fica seu estúdio particular, onde grava o programa Ar-quivo de Cera, da Universitária FM, no ar aos domingos.

Em relação aos 78 RPMs, a cole-ção deve muito ao ex-senador e jorna-lista Cid Carvalho, quando da renova-ção do acervo da Emissora do Pássaro, (a Rádio Uirapuru) substituindo-os por LPs. Claro que todo o reconheci-mento de Nirez (por comendas como a Medalha do Mérito Cultural da Fun-

Nirez está no MIS. “Não tem uma pessoa mais qualificada para ocupar este cargo como o nosso querido Nirez”, declarou o governador em exercício, Fernando Ximenes, em sua posse.

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O novo diretor do MIS em pose para a

posteridade

dação Joaquim Nabuco, o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do IPHAN ou o Troféu Sereia de Ouro), está mais associado à sua pesquisa, registrada ao longo do seu cotidiano, em livros como Fortaleza - Ontem e Hoje, Cronologia Ilustrada de Forta-leza e Discografia Brasileira e no seu programa, no ar desde 1963. Mas sua “menina dos olhos” é mesmo a cole-ção de 22 mil discos de cera, mantida com o mesmo cuidado das demais e hoje já totalmente digitalizada, graças a um projeto da Petrobras.

As coleções começam por volta de 1954, devagarzinho, amealhando um disco aqui, outro ali. Tinha 20 anos. Depois é que veio a sistemati-zação de livros, recortes de jornais, revistas sobre a música brasileira, embalagens de cigarro, rótulos, câmeras fotográficas, foto-grafias, gramofones e, claro, mais discos. “Um pouco de um tudo”, como se diz. Seu acervo hoje é de peças raras, e sem preço, como ele gosta de ressaltar. Detém precio-sidades como um compacto de oito polegadas de uma só face com anedotas de Hans Fredy, gravado em 1897, na Alemanha. Entre as raridades nacionais, está a gravação de “Ai, Filomena”, de 1915, sátira de Carvalho Bulhões a Nair de Tefé, esposa do General Hermes da Fon-seca. Eram dele os originais da série Revivendo, lançada em LP e CD, reu-nindo de Anjos do Inferno e Augusto Calheiros a Mário Reis e Aracy de Al-meida cantando Noel Rosa.

Entre os livros, O Balanceio de Lauro Maia, de 1991, apresenta to-das as músicas do cantor e compo-

sitor cearense, além da descrição de sua curta trajetória, consagrada nas vozes do Quatro Ases e Um Coringa e do Vocalistas Tropicais e encerra-da pela tuberculose em 1950. Dados resumidos, mais recentemente, em perfil biográfico da Edições Demó-crito Rocha. “Era o maior com-positor cearense”, define. Já em entrevista ao jornalista Dalwton Moura, do Diário do Nordeste, Nirez comentara a assistência musical fortalezense, nos anos

30. “Os espaços para a música aqui eram as reuniões caseiras, de pes-soas aficionadas na música ou dos próprios músicos, recebendo outros

músicos”, diz, destacando o papel da Ceará Rádio

Clube, a legendária PRE-9, surgida em 1934 e que viveria seu auge até 1948, com o surgimento da Rádio Iracema e de uma concorrên-

cia que acabou privilegiando o pior, analisa o pesquisador. E por falar em Lauro Maia, Nirez recorda com orgu-lho a entrevista com Humberto Tei-xeira, cunhado e seu principal parcei-ro. Lauro, inclusive, foi responsável direto pela parceria entre Gonzaga e o Doutor do Baião. Feita em 1977, dois anos antes da morte de Teixeira, a entrevista seria publicada como Eu sou apenas Humberto Teixeira.

Importante que se lembre que, no segmento da memória cultural, contamos também com a determina-ção investigativa de pelo menos mais um colecionador, Christiano Câmara, merecedor até mesmo de um filme, o curta-metragem Rua da Escadinha, 162, do cineasta Márcio Câmara, seu sobrinho. “Christiano é um estudio-so, curioso, muito inteligente, e que se especializou em cinema. A coleção dele é muito boa, mas ele só não sabe matemática (risos). Ele diz que tem 18 mil discos, mas ele deve ter no mínimo uns 50 mil. Se eu tenho 22 mil...”, discorre Nirez. Internacionais, nenhum. “No começo eu tinha, mas não dá para abarcar o mundo com as pernas. Depois, a gente fez um trato, na década de 90: ele me arrumou os nacionais que eu não tinha, e eu lhe arrumei os internacionais tudinho”. E nacional, só até 1952. “Depois dis-so não tem nada. A Bossa Nova nem brasileira é”, diz, lembrando o crítico musical José Ramos Tinhorão e ain-da o jornalista cearense Themísto-cles de Castro e Silva, cuja foto teste-munhava a conversa em seu estúdio. Entre os muitos projetos de Nirez, não apenas à frente do MIS, falta pelo menos um: o filme em torno de todas as suas rotações por segundos, minutos, anos.

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Nirez em seu estúdio caseiro onde grava o programa Arquivo de Cera, no ar desde 1991, na Universitária FM

A aparelhagem continua em ple-na atividade, nas mãos de Ota-cílio Neto, filho de Dona Maria Zenita e de Miguel Ângelo de

Azevedo, o Nirez. Naquela casa de classe média do Rodolfo Teófilo, ele convive diariamente com as “coisas” do velho colecionador. Entre elas, as de seu avô, de quem ganhou o nome. Convive ainda com os pais, claro, e, quase sempre, com os outros irmãos: Terezinha, Nirez e Mário. Mas é com a tal aparelhagem, montada no estúdio de Nirez, o pai, que ele costuma pas-sar algumas boas horas do dia. Adqui-

rida pelo projeto apoiado pela Petro-bras, ela faz agora a digitalização de um disco recém-adquirido, contendo as marchas “Ti-Bum” e “Zizica, apaga a luz”, gravadas pelo carioca Francis-co Pezzi (também conhecido como Chico Rouxinol) em 1933, pelo selo Columbia.

Neste clima, chegamos ao es-túdio, logo à esquerda da entrada principal do Arquivo. “Eu só olho o número”, confessa o filho que foi um dos responsáveis pelo árduo traba-lho, desenvolvido ali mesmo, certa-mente lembrando que ficara diante

de alguns milhares de algarismos... Nirez fala dos registros anteriores, em rolos fonográficos, usados entre 1877 e 1924. O LP veio em 49, en-tão conviveu com a cera: lembrando, finda em 64. Bom, e os gramofones? Eles estão ali espalhados pela estreita sala principal do Arquivo, à espera de desempoeirar alguns daqueles discos guardados nas gavetas daquelas mes-mas estantes... Epa, quem disse que tem poeira? não vamos zangar o an-fitrião... Os gramofones: foram mais usados entre 1876 e o início do século XX, símbolo das Casas Edison, embo-

ra fabricados até os anos 60. “Símbolo do nosso trabalho”, declarou Nirez em 2005, ao ver desaparecido um deles, americano, “boca de ferro”, de 1903, já devidamente resgatado.

Tem muito mais, já falamos. Re-vistas, rádios, câmeras, livros e foto-grafias da memória cearense, milha-res, de que Terezinha e dona Zelita cuidam com esmero. A família é uma força desde sempre. “Meu pai aju-dou muito no Arquivo. Agora ocorre o seguinte: era literato, tinha boas amizades com os literatos, mas acon-tece que ele era modesto, era pobre.

Um mundo em casa

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E os intelectuais cearenses não eram. Ele sempre sofreu esta prevenção. Tanto que quem o saudou na Acade-mia Cearense de Letras foi o Jáder de Carvalho, assim: ‘Entra na Acade-mia, com 40 anos de atraso...’”, conta o atual diretor do Museu da Imagem e do Som. Hoje a cadeira de seu pai é ocupada pelo ex-prefeito e governa-dor Lúcio Alcântara. Família que, dos filhos que vingaram entre os cinco que morreram, seria formada com os irmãos (astrônomo) Rubens de Aze-vedo, (professora de espanhol) Maria Consuelo, Nirez e Sânzio (professor de literatura). Moraram em outros bairros, Nirez nasceu no Calçamento de Messejana, atual Visconde do Rio Branco.

Com o poeta, pintor, escritor e letrista, Nirez pode ter começado a nutrir o amor pela música. “Meu pai nunca teve um emprego. Fazia pin-tura de retrato sob encomenda. Ou então, quando se sentia aperreado, pintava uma paisagem, botava embai-xo do braço e ia vender. Voltava com dinheiro ou comida”. Quadros espa-lhados por órgãos públicos, retratos de políticos, intelectuais da Casa Ju-venal Galeno e de músicos como Bee-thoven e nosso Alberto Nepomuceno. Mas Otacílio também gostava de mú-sica. “Na juventude, ele fazia versos de modinhas e valsas compostas por Moreirinha, Raimundo Donizete Gon-dim e Raimundo Donizete Gondim Filho, Wagner Donizete e Antônio Mouda. Ficaram algumas partituras, mas ele nunca foi gravado”. Otacílio de Azevedo cantava em rodas boê-mias e dominicalmente ia aos saraus no Mata-Galinhas, atual Dimas Mace-do, onde conheceu Teresa Almeida de Azevedo, mãe de Nirez. “Ela canta-

va, tinha boa voz. Cantava as músicas dele e de outros cearenses”. A música continuou sempre em família.

Da infância, importante mencio-nar ainda a paixão pela fotografia, através da amizade com Chico Albu-querque. Quando menino, com oito anos, a mãe trabalhava retocando chapa, negativo e positivo, que ele le-vava para a Abafilm, onde seu Ademar e os filhos Tony e Chicão imperavam no reino das fotos. “O Chico gostava muito de mim, me dava o dinheiro do ônibus de volta e dava uma pal-mada na minha bunda (risos)”. Com a ida de Chico para o Sul, Nirez só manteve contato com Tony. “Só vim vê-lo de novo quando ele montou o departamento fotográfico do jornal O Povo”. Foi o velho amigo Chico quem interferiu para controlar uma praga de muriçoca desencadeada pelo asso-reamento de um riacho próximo à sua casa. Algo que lhe machucou profun-damente até hoje.

Amor pela música e pela história

O amor pela música, suas histórias e ferramentas é tamanho que Nirez de-tém inédito um livro em que simples-mente reúne todos os fatos narrados em forma de canção no Brasil“Dou mais ou menos um histórico do fato, aí falo como a música foi criada e transcrevo a letra. Gostaria de publicar e ilustrar com um CD”. O último nome é “A His-tória em 78 Rotações”, fruto de muitos anos de pesquisa, mas elaborado em apenas 12 meses. “É um assunto na-cional, então acho que precisa ter uma distribuição nacional”, sugere. Entram desde as gripes Espanhola e Asiática, a guerras que não atingiram diretamen-te o Brasil, mas foram aqui cantadas. A

parte relativa à Segunda Guerra Mun-dial ocupa praticamente um quarto do livro, estipulado em mais quatrocentas páginas. “Este aspecto cronista da mú-sica se perdeu”, lamenta.

Em 17 de dezembro de 1961, por exemplo, a música encontraria o triste mote para a realização de pelo menos quatro composições (duas to-adas, um cururu e outra de ritmo não identificado) que tentaram aliviar o terrível genocídio de 500 pessoas, durante um incêndio criminoso de um circo em Niterói. Parece um even-to fictício, mas a tragédia, a maior em ambientes fechados do mundo, se-gundo o próprio texto, deixou 2.500 feridos e ainda duas outras conse-quências históricas: a organização do Serviço de Queimados do Hospital Antônio Pedro, no Rio de Janeiro, por Ivo Pitanguy, e a mudança na vida do empresário José Datrino, que se transformou no Profeta Gentileza, um dos personagens mais carismáticos das ruas do Rio de Janeiro, após ver na tragédia um prenúncio do fim do mundo, segundo também consta no texto inedito de Nirez.

Entre rádios como a Dragão do Mar, Nirez entrevistou artistas como os que vieram do Rio para a posse de César Cals, no governo do Estado. “Aí entrevistei os Vocalistas Tropicais, 4 Ases e 1 Coringa, o Mário Alves, do Trio Nagô e o Gilberto Milfont, que fiz ao vivo”. E claro, ele também destaca a célebre entrevista com Humberto Tei-xeira, já mencionada. Tem muita gente que tem vontade de entrevistar? “Ago-ra tem poucas pessoas. O último que morreu foi Moreira da Silva. Quando inventarem a máquina do tempo, eu vou lá entrevistar”. E qual o maior pra-zer de conversar? “É quando eu sinto

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Nirez e sua Rolleiflex, imortalizada na Bossa que o pesquisador desgosta

No centro, visão da sala Descartes Selva Braga

prazer da parte do entrevistado, como foi o caso de Humberto Teixeira, de Altamiro Carrilho, que se emocionou, chorou. Diziam que Orlando Silva era besta, pernóstico. Mas eu fiz uma bela duma entrevista. No mês seguinte, che-gou aqui o Sílvio Caldas, um bonachão, mas ele me cobrou três mil cruzeiros (risos). Pra você ver, a fama é uma e o resultado é outro”.

Sem mágoas. A recente biografia de Silvio Caldas, O Seresteiro do Bra-sil, do pesquisador cearense Carlos Marques, foi feita, em grande parte, com consultas ao Arquivo. “Todos os livros sobre Luiz Gonzaga foram pes-quisados aqui”, cita. Em se tratando de fontes, de pessoas que lhe ajudam a seguir suas pesquisas, Nirez aprecia a feita pelo arquiteto Liberal de Cas-tro, “que fala sobre história em geral, um grande pesquisador. E tem outro, Assis Lima, um funcionário da RFF-SA que me ajuda quando o assunto é trem”. Voltando para a música, Nirez cita o carioca Humberto Franceschi quando o assunto é gravação mecâ-nica, da Casa Edison, de 1902 a 20. “Ele entende disso, não quer saber de outra coisa”. Já sobre Jaime Severiano, cearense radicado no Rio de Janeiro, diz se tratar de um pesquisador de gabinete. “Agora, existem os biógrafos que se tornam pesquisadores de um assunto, como o Ruy Castro. Por sinal, ele me cumprimentou, não sei de onde ele me conhece”, diz, considerando que apreciou o mais recente livro do jorna-lista carioca, sobre Carmem Miranda. “Gostei. Tudo o que eu li até agora está correto. Mas ele tem uma equi-pe, é como professor de universidade, que escreve uma tese em que metade é aluno que viu”. Nosso pesquisador também já foi tema de reportagens de

veículos do Sul. “Televisão não, nem o Faro, que é meu amigo”.

Quem sabe o cinema? “Não é a minha área. Primeiro que eu não fui cinéfilo. Assisti muito pouco. Ia mais com a namorada (risos). Mas de pale-tó”. Com tanto amor pela música bra-sileira, pré-bossanovista, que fique bem claro, Nirez deve ter suas prefe-rências, já mencionadas em torno de Lauro Maia, Humberto Teixeira, mas ele não admite, ao melhor espírito científico do historiador e do jorna-lista que é. “Um locutor esportivo não pode ter time. Se tiver preferência, nunca poderei analisá-lo”. A isenção não veio de qualquer manual de ética jornalística, mas da própria experiên-cia pessoal. “Cheguei a essa conclusão muito cedo. Se pego uma música lin-díssima cantada pelo Orlando Silva, outra pelo Sílvio Caldas, não vou ficar comparando um com o outro”.

Quando Nirez era meninote, o pai já não compunha, mas cantava, agora em seus próprios saraus com todos os ritmos sendo executados conforme a freqüência dos músicos. “Sim, é possível que isso tenha aju-dado meu gosto musical”. E a lite-ratura? “Não, eu nunca fui muito de literatura não. Eu lia pouco, sempre li pouco. Gosto de ler história, mas estória não (risos). Hoje em dia, pelo menos, pela idade em que estou, na função que eu exerço, ler romance é perda de tempo. Eu posso aprender mais vendo um documentário, um relato real sobre um assunto, sobre a história ou da música ou de Fortale-za, principalmente. Ainda tem muita coisa que ninguém sabe sobre estes temas, e nem tem onde aprender. O Arquivo Público, infelizmente, não é muito bem organizado. Pra achar um

documento é difícil. O encontro de um documento que clareia um fato histórico quase sempre é encontrado por acaso”. Mesmo com toda a sua fleuma e sua bagagem de pesquisa-dor - “tem deles que é chato mesmo”, diz - Nirez chega a ir pouco ao Arqui-vo. Quem sabe no Museu da Imagem e do Som sua missão frutifique tanto como em seu mundo caseiro.

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Muitos dos encantos dos primeiros registros fonográficos brasileiros

do século XX são reunidos pelo grupo Vozes da Cera, formado há pouco mais de um ano, a partir de pesquisas jun-to ao Arquivo Nirez. Myreika Falcão participava do processo de digitaliza-ção do acervo 22 mil alegrias sonoras do acervo. Então, ela e uma amiga, Daniele Bezerra, também musicista e que também fazia a digitalização, se perguntaram: por que não difundir estas formosuras através de um gru-po? Do gramofone e das vitrolas (com 78 RPMs) para os palcos cearenses, vieram sambas, lundus, modinhas,

choros, toadas. Alegrias hoje pratica-mente desconhecidas, entre clássicos lembrados pelos apreciadores da boa música, principalmente através do programa do Nirez e de seu colega de Rádio Universitária, Everardo Sobrei-ra e seu Antologia da Música Popular Brasileira, apresentado também aos domingos, algumas horas depois do Arquivo de Cera, programa levado ao ar desde 1963, nos últimos 18 anos na querida rádio da UFC.

O grupo estreou durante a expo-sição Fortaleza em Cartão Postal do Arquivo Nirez, no Museu do Ceará, em abril do ano passado. A mostra

reunia 10 imagens do acervo, trans-formadas em postais. Myreika e Da-niele se uniram a, Iara Pimenta, Gua-raciara Araújo e Silvana Garcia para constituir a parte vocal do grupo, tendo o acompanhamento de Mário (cavaquinho), Cleilton (flauta), Le-nine Rodrigues (violão) e Igor (pan-deiro). As apresentações geralmente se convertem em aulas-shows onde informações sobre os compositores, ritmos e intérpretes são devidamente contextualizadas. Foi assim no início de dezembro, quando o grupo abriu a exposição Fotografias de Músicos Cearenses, no Espaço Cultural dos

Correios, em cartaz até 17 de janei-ro. Em algumas ocasiões, o Vozes da Cera promove até mesmo debates so-bre este universo. “É muito bom, elas procuram manter as releituras o má-ximo possível próximas às gravações originais”, testemunha Nirez. Prin-cipal incentivador do grupo, ele res-salta: “faltava um grupo assim aqui em nossa cidade, onde o pessoal só sabe imitar americano”. Isto embora, em outras rotações, falando sobre um disco de releituras em torno de Lauro Maia, produzido no Ceará, Nirez já te-nha deixado claro - como em 2004, no tempo do lançamento da biografia de Lauro Maia - de que a melhor home-nagem a seus velhos discos de cera não seja propriamente a atualização da obra, mas sua valorização original. “Acho que descaracteriza”, declarou ao Diário do Nordeste.Formosuras além do arquivo

Criador e criatura: Nirez e o grupo Vozes da Cera durante

a abertura da exposição Fotografias de Músicos

Cearenses, no Espaço Cultural Correios

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Seja como for, além do Arquivo Nirez, as músicas que encantaram as pesquisadoras também sedu-zem milhares de pessoas desde o registro do lundu “Isto é bom”, de Xisto Bahia, cantado por Bahiano, em 1902. A identificação é tama-nha, que, superando as dificuldades em manter um grupo deste tipo em

uma cidade onde a memória sempre foi um artigo descartável, o Vozes da Cera pretende apresentar-se para-mentado, com roupas de época, um recurso que pode ser uma boa joga-da de marketing, mesmo correndo riscos de ser visto como algo artifi-cial. Se agradar a todos não é possi-vel, o grupo permite conferir outras

canções que estão entre as preferi-das de Nirez: o samba-choro “Bati na Porta”, de Lauro Maia, e o baião “Quixabeira”, de Humberto Teixeira, entre elas.

Enquanto o grupo não grava estas prendas, enquanto a acalen-tada digitalização do acervo de Ni-rez não ganha a internet, hoje seu maior desejo, o melhor é conferir o seu Arquivo de Cera, de 8h30 às 10h, aos domingos. Ou então cor-rer para ver a próxima exposição bolada por Nirez em seu estranho ofício de preservar e disseminar a memória musical brasileira, digno de um seminário como o promovi-do entre 10 e 14 de novembro, na comemoração de seus 50 anos de documentação. Assim poderemos ouvir maravilhas como o refrão “Oh, Ferdinando/Oh, Ferdinando/Não olhe assim pra mim/ Oh, Fer-dinando/Oh, Ferdinando/Vá chei-rar as flores do jardim”, da marcha “Ferdinando” (1939) ou o “Era duas caveira /que se amava/E à meia-

noite se encontrava/Pelo cemité-rio/Os dois passeava/E juras de amor então trocava”, da valsa com elementos aterrorizantes e hilários “Romance de uma Caveira”, ambas do programa dedicado ao mineiro Murilo Alvarenga e à dupla caipira Alvarenga e Ranchinho, em meados deste janeiro de 2009.

Nirez posa ao lado do retrato de seu pai, Otacílio de Azevedo, na exposição dos Correios em homenagem aos músicos cearenses

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As capas do designer Cesar Villela para a coleção de LPs da

Bossa Nova, da série Elenco de Aloysio de

Oliveira, tornaram-se ícones do design

gráfico dos anos 1960

Dilmar Miranda é professor adjunto

do curso de Filosofia do Instituto de Cultura e Arte

(ICA) da UFC. Consiglia Latorre

é cantora e professora assistente do curso de

Educação Musical do ICA da UFC.

Que artimanhas escondem certas artes fazendo com que suas criações aflorem tão particulares

em suas origens e se tornem tão universais no seu destino? Que segredo foi este da Bossa Nova? Se for verdade que, em cada época, cada classe social tem sua forma de se escutar, pode-se dizer que a Bossa Nova, em suas origens, foi música da classe média ca-rioca. Inicialmente tocada nos apartamentos ou em

pequenos palcos da zona sul do Rio de Janeiro, a partir de uma perfomance bastante sofisticada e camerística, ela se estrutura, ganha adeptos e o mundo. Lembrando o grande parado-xo cantado pelo poeta Vinícius de Moraes: a Bossa Nova é uma rica mistura de tradição e influências modernas. Durou pouco e nunca morreu. É o que sentimos ainda hoje, cinqüenta anos depois de seu aflorar.

Para seu surgimento, foi crucial o encontro de três grandes artistas, uma espécie de santíssima trin-dade do movimento, agentes

fundamentais para conso-lidar seus rumos, cada

um trazendo sua c o n -

tribuição para os elementos constitutivos da can-ção: a música, o verso e a voz. Tom Jobim, grande experimentador de efeitos harmônicos, vinha parti-cipando da renovação dos arranjos da moderna mú-sica popular brasileira, na fase pré-bossa, limpando os excessos de adornos então usuais. Deu-se então o encontro com o lirismo apaixonado das letras de Vinícius de Moraes, nascendo daí uma fecunda par-ceria. A eles somaram-se as inquietações de João Gilberto, intérprete original de velhas composições

e exímio criador de novas canções.Mas como e quando surgiu a Bossa

Nova? Com a recuperação do pós-guer-ra, na passagem da segunda metade

do século XX, abriu-se um longo ciclo de relativa expansão e estabi-lidade econômicas, em vários pa-íses, sob a hegemonia dos EUA, tanto no plano econômico como no cultural, propiciando um real aumento do poder aqui-sitivo e um maior consumo de bens culturais. O Brasil não fugiu a essa tendência. No de-correr nos anos 1940, o país intensificou seu processo de industrialização e urbaniza-ção, criando condições para a constituição das classes

médias, submetidas a uma intensa excitação de signos massivos da socialização urbana. Criou-se a partir daí uma ciranda vertiginosa de nexos: novos segmentos sociais/ novos gostos/novas demandas/novas estéticas, enfim, novos códigos elaborados no seio dessa moderna sociabilidade urbano-industrial. que sinalizavam para alguma realização pessoal, in-cluive no campo das artes. Incluia na trama dessa nova sociabilidade, a profissionalização de músicos da classe média do Rio de Janeiro, futuros bossano-vistas, rompendo com seus inícios amadorísticos.

Expressivas manifestações artístico-culturais, dentre elas, a música, configuravam-se como ex-pressivos codificadores de uma nova identidade só-cio-cultural, em sintonia com aquela estética. Nosso mercado cultural se viu impelido a acompanhar es-ses novos tempos, incrementando, sobretudo entre os jovens da classe média, o consumo de seus pro-dutos, (compra e aprendizagem de instrumentos como o acordeão e violão; compra de aparelhos de som e discos Long Play (LP); assídua freqüência a shows e espetáculos em boates, clubes e faculdades etc). O LP, com maior número de faixas, permitindo inclusive experimentos de peças mais longas e não os tradicionais três minutos do disco 78 rpm, e os aparelhos de alta fidelidade (hifi), melhoram sensi-velmente a qualidade da audição do som.

Uma nova sonoridade e inquietude pairavam no ar. Aqueles que fugiam do convencional desper-

Isso é Bossa Novatexto [Dilmar Miranda e Consiglia Latorre]

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A Bossa Nova criou um patamar de música urbana diferente de tudo que existia desde que se formou a música popular urbana, o samba no Rio de Janeiro e tudo que se criou nos tempos da Rádio Nacional”. José Miguel Wisnick

Surge a Bossa

Nova e morre o

botequim como lugar de criação

da música popular Lorenzo Mammì

Page 13: Revista Harco #2

tam, de um lado, a ira dos tradicionalistas e, de ou-tro, atraem jovens da classe média mais sensíveis ao novo. Após o fechamento dos cassinos, pelo governo de Eurico Gaspar Dutra, em meados dos anos 40, a vida noturna carioca passou a girar em torno das boates, com música ao vivo, sobretudo na orla sul da cidade, como Copacabana, título também de um samba-canção de Alberto Ribeiro/João de Barro (1946), cantado por Dick Farney, modernizan-do o chamado samba de meio-de-ano, com arranjo de Radamés Gnattali, visto como um marco da pré-bossa nova. O disco é lançado quando as big bands norte-americanas bem como Frank Sinatra faziam sucesso no país. A importância da voz de Dick Far-ney, apesar da influência de Sinatra, residia no fato de utilizar uma impostação menos dramática, mais

relaxada. O peso dos dois podia ser avaliado pelo Sinatra/Farney Fã-Clube, criado em 1949, reunindo jovens para audições de discos, palestras e sessões de música (espécies de jam sessions), freqüentadas por jovens músicos como Paulo Moura, Johnny Alf, João Donato, Luiz Eça, Doris Monteiro e outros. Aos poucos, para esses jovens e para tantos outros, a vida musical carioca exigia inovações.

A renovação do moderno samba urbano

Em setembro de 1956, exatos dez anos após o samba-canção Copacabana, o musical Orfeu da Con-ceição, visão carioca da divindade musical da mi-tologia grega, estréia no Rio de Janeiro, com várias canções do jovem Tom Jobim (letra do poeta/diplo-mata Vinicius de Moraes), já trazendo elementos melódico-harmônicos modernos reforçando o sopro de renovação. Aos poucos, foi se urdindo uma nova

escuta. Segmentos jovens da classe média antenados com a moderna música popular norte-americana, como o jazz e as perfomances cool (instrumental e

vocal) do trompetista Chet Baker e as interpre-tações da cantora Julie London, passam a ouvir com freqüência nos rádios, Foi a noite (Newton Mendonça/Tom Jobim) e Se todos fossem Iguais a

você da peça Orfeu da Conceição, na interpretação de Sylvia Telles. Com essa nova escuta, longamente construída, ficou mais fácil receber, em 1958, duas grandes novidades:

1) em duas faixas do Lp Canção do Amor Demais, com canções de Tom e Vinicius, acompanhando ao fundo o canto de Elizete Cardoso, ouvimos, em Chega de Saudade e Outra vez, uma estranha marcação rítmica: era o violão de João Gilberto;

2) em dois discos 78 rpm, ouve-se o próprio João cantando e tocando o mesmo Chega de saudade, e o baião Bim bom, de sua lavra, e, meses depois, Desafinado (Tom Jobim/Newton Mendonça) e Oba-lá-lá, de sua autoria. Nas duas gravações de Chega de saudade, o vio-

lão de João Gilberto, com a sua famosa batida, está presente, mas na segunda gravação, há algo a mais: a sua voz. Esta, integrada ao violão, impacta jovens se-quiosos de modernidade, como uma lufada vivifica-dora da nossa vida musical, perdida entre sambole-ros, mambos, rumbas, guarânias e versões tidas de gosto duvidoso. Na integração desses dois vetores, voz e violão, coesos em um só ente estético, irrom-pe a Bossa Nova. Ela investe-se como o índice musical mais flagrante de um Brasil que busca se modernizar, levado pelo ímpeto industrializante do presidente Juscelino Kubitschek, com seu Plano de Metas de 50

anos em 5, e João Gilberto, sua mais completa tradu-ção, torna-se uma das referências vocais mais fortes das últimas décadas de nossa vida musical.

Para alguns analistas a Bossa Nova estabeleceu no interior da moderna música popular brasileira, uma série de novas atitudes estéticas, como novos hábitos de compor, de executar, de cantar, provocan-do assim uma nova escuta, a partir da perspectiva da moderna classe média carioca, extensiva depois para a classe média brasileira, que passava, a partir do pós-guerra, como vimos anteriormente, por um ins-tante de prosperidade e afirmação. Conforme lemos na epígrafe acima de José Miguel Wisnick, “a Bossa Nova criou um patamar de música urbana diferen-te de tudo que existia desde que se formou a música popular urbana, o samba no Rio de Janeiro e tudo

que se criou nos tempos da Rádio Nacional”. Para Lo-renzo Mammì, a Bossa Nova: “deve muito pouco ao samba de morro, muito mais, [...], às lojas de discos importados [...]. Sua postura em relação às influên-cias internacionais é mais livre e solta, porque suas raízes sociais são mais claras e sua posição social mais definida. Bossa nova é classe média, carioca”. Em uma sugestiva síntese, Júlio Medaglia fala da re-volução estético-musical proposta pelo movimento: “Reduzir e concentrar ao máximo os elementos po-éticos e musicais. Evoluir no sentido de uma música

de câmara adequada à intimidade dos pequenos ambientes, característicos das zonas urbanas de maior densidade demográfica. Uma música volta-

da para o detalhe, e para uma elaboração mais refi-nada com base em uma temática extraída do próprio cotidiano: do humor, das aspirações espirituais e dos problemas da faixa social onde ela tem origem”.

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O violão de João Gilberto rompe com o uso do violão popular, para acompanhar, por exem-

plo, um seresteiro, para manter sua afinação, ou, nas rodas de choro, so-bretudo o violão 7 cordas, para fazer o contraponto com a flauta, bando-lim ou outro instrumento melódico. Com João Gilberto, o violão passa a

cumprir um papel harmônico-per-cussivo, cujo timbre, integrado ao da voz, cria um terceiro timbre de uma única voz. Sua batida original insinua pequenas sensações de po-lirritmos, graças à sua organização constituída por um bordão regular, feito com o dedo polegar, e o ataque não regular dos acordes feitos simul-taneamente com o indicador, médio e anular. A essa tensão permanente entre regularidade e não regulari-dade do bordão e dos acordes, João ainda sobrepõe, sua voz, ora em fase, ora em leve defasagem.

Amante das inversões e acordes de passagens, João Gilberto evita arpejos, ferindo as notas em bloco, gerando uma “impressão de certa instabilidade, como se a base har-mônica estivesse pairando no ar e não repousando,” conforme aprecia Zuza Homem de Mello. Esta é mes-ma sensação de Lorenzo Mammì ao descrever em uma bela metáfora, a leveza das progressões dos blocos de acordes do violão de João Gilber-to, ao imaginá-los como “acordes pendurados no canto como roupas

no fio de um varal”. Sua preocupação com detalhes, deixando perplexos os técnicos do estúdio, ao pedir dois mi-crofones (para a voz e o violão), para gravar Chega de Saudade, nos torna

claramente audíveis suas novidades harmônicas nos blocos compactos de acordes, realçando o balanço de seu violão. Suas exigências visam a um nível de qualidade durante um

recital: “Voz e violão precisam estar perfeitamente equilibrados, audíveis de qualquer ponto, com um retorno perfeito para sua própria perfor-mance” (Zuza de Mello).

O violão de João

texto [Dilmar Miranda e Consiglia Latorre]Ilustração [Vinício Del Pinto]

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O violão de João Gilberto sinteti-za as funções do trio muito comum na bossa nova: o contrabaixo é substituí-do pelo dedo polegar e o piano, pelos dedos indicador, médio e anular do bloco de acordes rítmicos e percussi-vos, que assim dispensa a bateria. Daí a rara presença do contrabaixo em suas gravações, uma vez que a canção se estrutura a partir da batida do vio-lão. Quando o contrabaixo é usado, sua função coadjuvante é apenas para amplificar o baixo regular e uniforme da batida.

Um dos efeitos mais interessan-tes da síncope do samba é sua impre-visibilidade. A rotina rítmica, provo-cada por uma síncope sempre regular no mesmo lugar, acaba por anular o efeito surpresa que se pretende bus-car: daí o balanço obtido por João Gil-berto, provocado pelo jogo entre fase e defasagem, conforme ele próprio reconhece. “Se colocarmos sempre o acento tônico sobre um mesmo tem-po, fica chato. É preciso sempre ima-ginar novas entonações para dar mais vida às palavras”.

Síntese

A canção Chega de saudade é apontada como indiscutível marco zero da Bossa Nova, mas João não criou do nada. Seu talento reside no fato de ter fixado boa quantidade de informações melódico-harmônicas que lhe precedem, vindas de compo-sitores como Johnny Alf, João Dona-to, Newton Mendonça e Tom Jobim, bem como o canto de Mário Reis e Orlando Silva, tudo adensado em um grande salto de qualidade. Para José Miguel Wisnick, a tradição musical vinda de Noel Rosa, Ary Barroso e Dorival Caymmi, passando pelo sam-

ba-canção, “tudo isso dá um salto na Bossa Nova, que faz uma releitura ra-dical dessa tradição por intermédio de João Gilberto, criando uma nova concepção harmônica que está liga-da a Debussy, assim como também ao jazz (por Tom Jobim). Portanto, formou-se um tipo de música popu-lar urbana dotada de uma nova con-cepção harmônica, poética, rítmica, vocal, e que teve enorme conseqüên-cia sobre as gerações seguintes”.

Seu encontro com Tom Jobim, como vimos, foi fundamental para enriquecer suas concepções meló-dico-harmônicas e, assim, conso-lidar os rumos da bossa nova. Tom Jobim vinha de um intenso convívio com o maestro Radamés Gnattali, cujos arranjos foram responsáveis por vestir a música popular brasi-leira com cores modernas, e com Newton Mendonça, seu parceiro morto precocemente, experimenta-dor também de novos efeitos har-mônicos. Somando a experiência de Tom, inovando os arranjos, com as inquietações e experimentos de João Gilberto, exímio criador de novas versões para velhas canções, foi sendo possível criar novas har-monias que dessem um colorido diferente e revolucionário à nossa canção popular.

Em suma, a criação de João Gil-berto é uma síntese de vários expe-rimentos. Seu uso diferenciado da voz/violão sustenta um cantar com pouco volume, com harmonias dis-sonantes e arranjos despojados, com um repertório mesclado de velhos sambas (ex: Bidê/Marçal, Ary, Geral-do Pereira e Caymmi), com a safra dos jovens compositores, colegas na criação de algo que estabelece um

antes e depois na moderna música popular brasileira.

Seu violão foi responsável pela redução da batida do surdo de mar-cação do samba batucado, herdeiro direto do samba geração de Ismael Silva da chamada turma do Estácio. O compromisso da batida regular de João Gilberto é com balanço, e o do surdo de marcação com a dança. O grande aporte de João Gilberto foi su-primir o lado dançante do samba, mi-nimalizando sua batida básica, para valorizar o conjunto indissociável voz/violão, obtendo um novo balanço pelo “desencontro” dessa batida (re-petida homogeneamente), com a sua forma peculiar de dividir o fraseado da canção, com grande plasticidade. Pode-se dizer que o samba batuca-do voltava-se mais para o público e a Bossa Nova para o privado. O sam-ba estaciano cumprira seu papel de publicizar a dança afro que ganhara cidadania, após décadas de implacá-vel perseguição das elites cariocas. A canção bossanovista reduz e concen-tra, em um movimento centrípeto, o samba batucado.

A Bossa Nova, com muito suin-gue e nenhum batuque, se prestava a outro papel social. Na sua inten-ção de fruição contemplativa em ambientes particulares dos aparta-mentos da zona sul do Rio, ou em pequenos palcos para pocket shows, a música bossanovista se estrutura, a partir de uma performance des-pojada, porém bastante sofisticada e camerística. Recorrendo a uma bela expressão de Chico Buarque, referindo-se a Tom Jobim, a Bossa Nova “despe-se do supérfluo, mas volta-se para o detalhe tornando-se ‘derramada para dentro’“.

[coda]

A Bossa Nova na contemporaneidadeDecorridas cinco décadas do surgimento da Bossa Nova, qual sua importância e de seu principal inventor para a música brasileira contemporânea? Para Luiz Tatit, João Gilberto passou a ser uma importante referência de triagem do nosso cancioneiro popular, pois, com ele, a Bossa Nova impregnou-se definitivamente em nossa cultura musical, desempenhando “funções indispensáveis na decantação do rico repertório brasileiro”. A partir de João, diz Tatit, a Bossa Nova passou a fazer contraponto com as misturas de gêneros e estilos que vêm se sucedendo no mundo da canção popular brasileira. Essa intenção de mistura, que teve seu momento marcante no tropicalismo, “é crucial”, afirma ainda Tatit, “para a fecundidade artística, mas só atinge seu melhor rendimento quando coexiste ou se alterna com o gesto herdado de João Gilberto”, pois precisamos igualmente “das triagens periódicas que nos levam ao âmago das composições e dos estilos”.Gostaríamos de finalizar este artigo, conforme o fizemos em uma matéria comemorativa aos 50 anos da Bossa Nova, saída em um órgão da imprensa cearense. Em diversas ocasiões, seja em oficinas de performance vocal/instrumental ou de história de nossa música popular, tivemos a oportunidade de perceber o deslumbramento e interesse das gerações mais jovens pela Bossa Nova. Assim, constatamos que o desvelamento do rico passado musical brasileiro, ocultado por uma influente produção contemporânea, voltada basicamente para o consumo massivo da música popular, e regulada exclusivamente por interesses de mercado, tem mostrado que, para estes jovens, a velha tradição, no caso a velha Bossa Nova, quando revelada, transmuda-se em grande novidade, e adquire uma importância e frescor, até então desconhecida para eles.

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Chorinho da alma cearenseUm dos caçulas dos grandes fes-

tivais de música do Ceará, o Mel, Chorinho e Cachaça não quer esperar a maioridade para tornar-se referência quando o assunto é Cho-ro e formação musical. Programada para acontecer de 18 a 20 de abril, em Viçosa do Ceará, a terceira edição do festival planeja lançar suas influ-

ências por toda a Serra da Ibiapaba, a 344 quilômetros de Fortaleza.

Para a edição 2009, a grande no-vidade do festival é a 1ª Mostra Com-petitiva de Chorinho, que busca valo-rizar ainda mais os talentos do choro. Dos inscritos sairão grupos de choro que vão se apresentar nos três dias do festival. Na última noite do evento, serão conhecidos os grupos vencedo-

res. A premiação será para Melhor Grupo de Choro, troféu, vio-

lão 7, violão 6, cavaquinho e pandeiro para o 1º

lugar. Já o segundo, conquista troféu,

violão e pan-deiro. O Músi-

co Revelação leva troféu e bandolim. As inscrições serão feitas pelo site do festival www.melchorinhocachaca.com.br até o fim de janeiro.

Credibilidade

Visando à antecipação de todo o planejamento que envolve a programa-ção, a feira de produtos e serviços e toda a promoção do evento, os organizadores provocaram uma audiência pública na Assembléia Legislativa do Ceará, onde mostraram às autoridades um balanço das duas primeiras edições.

Em 2008, o festival levou à Serra da Ibiapaba cerca de 13 mil pessoas, nos três do evento, realizado em maio último, contando com 12 apresenta-

ções, sendo duas do estado do Rio de Janeiro (Tira Poeira e Nó em Pingo D´água), uma do Rio Grande do Sul (Camerata Brasileira) e uma de São Paulo (As Choronas).

A audiência não foi causal. Para-lelo à programação musical, o festival movimenta toda a cadeia produtiva do mel e da cachaça artesanal da ser-ra. Em 2008, foram R$ 90 mil em ne-gócios, envolvendo cerca de 300 mi-cro empresas. O objetivo para 2009 é um incremento de cerca de 20%. A sessão na assembléia foi conduzida pelo presidente da Comissão de In-dústria, Comércio, Turismo e Serviços da Assembléia Legislativa, deputado Sérgio Aguiar (PSB), que destacou

texto [Kélia Jácome]fotos [Thiago Gaspar]

O curador Marcelo Leite e o grupo Tira Poeira, atrações do ano passado

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[Jam]a importância dos investimentos na Serra da Ibiapaba como forma de ga-rantir mais desenvolvimento para o turismo da região, através da cultura e do agronegócio.

De acordo com Reginaldo Lobo, representante do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-CE), o projeto entra numa fase desa-fiadora que é a de consolidação. “O festival passou as fronteiras de Viçosa e é importante que órgãos como a se-cretaria de Turismo percebam seu al-cance, apoiando e monitorando. Além disso, é fundamental a articulação dos prefeitos da região da Ibiapaba para que a terceira edição tenha uma nova dinâmica. O Sebrae contribuirá da fase do planejamento até a opera-cional”, falou Reginaldo durante a au-diência pública.

Na parte musical, o curador da programação, o flautista Marcelo Lei-te, reconhece que o sucesso do festival está no planejamento e na proposta ousada de valorizar e apresentar ta-lentos de um gênero cada vez mais em destaque. “Este ano, fizemos oficinas de choro em seis municípios da Ibia-paba. A carência de estrutura é gran-de, mas a receptividade e a vontade dos jovens de aprender e se integrar com os mais experientes superam tudo”, conta Marcelo, que participou desde a 1ª edição de todo o projeto de programação musical do evento. Ape-sar de não ter fechado a programação da 3ª edição, os organizadores garan-tem que o nível se mantém. E, depois de homenagearem Altamiro Carrilho e Francisco Soares de Souza, já está con-firmado que este ano as reverências choronas serão para o grupo carioca Época de Ouro, dando a linha mais “clássica” do festival em 2009.

Nota 10Os gaitistas Toots Thielemans e Pablo Fagundes, o pianista César Camargo Mariano, o bluesman Paulo Meyer, o baixista Arthur Maia, a cantora Ná Ozzetti, o Trio + 1 (Benjamin Taubkin, Zeca Assumpção, Sérgio Reze e Joatan Nascimento), o guitarrista Lanny Gordin, as bandas Dixie Square Jazz Quartet e Beale Streat, além do acordeonista Dominguinhos. Todos juntos, num grande festival. Onde, quando? Em Guaramiranga, no Festival Jazz & Blues, claro. Isto mesmo, aquele evento que há 10 anos tornou o Carnaval cearense mais próximo de

uma festa dos deuses da música. Pra quem ainda não sabe, este ano é entre 21 e 24 de fevereiro, com direito às tradicionais jam sessions e aos shows abertos, na sempre

bela Guará. E tem ainda os locais Luciano Franco e Nélio Costa (baixo), Ricardo Bezerra (canção), Lúcio Ricardo (blues), Artur Menezes (guitarra) e Projeto Timbral e banda Blues Label. Depois, de 26 a 28, a farra vem pra Fortaleza,

com direito a workshops. Também aqui, ainda em janeiro, tem o projeto Na Trilha do Jazz, preparando o terreno com shows às quartas e sábados, em bares e casas noturnas que serão divulgados no www.jazzeblues.com.br

Organização é isso aíE já estão abertas as inscrições para a oitava edição da Feira da Música de Fortaleza. Pois é, o evento dedicado à nossa cada vez mais tão prolífica cena independente é só entre 19 e 22 de agosto, mas instrumentistas, cantores e bandas de todos os cantos, do mundo, claro, já podem se inscrever até 20 de março. Claro, de todos os gêneros. Até espera-se uma maior diversidade na feira coordenada pelo competente produtor Ivan Ferraro, mas demasiadamente atenta ao universo pop. O resultado sai em maio. Então, até 20 de março, vale a pena que a galera do samba, do choro, da MPB e do forró, por exemplo, também faça sua inscrição pelo www.feiramusica.com.br. Contatos: (85)3262-5011 e [email protected].

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Antonio Bandeira: gênio abstracionista ganha sua mais importante

retrospectiva na Unifor

texto [Aécio Santiago]fotos [Mauro Angeli]

Seja numa versão versátil e inquieta ou no chamado abstracionismo líri-

co, Antonio Bandeira (1922-1967) é, na realidade, a expressão pura e sim-ples de uma arte que, notadamente, se expõe. Não tenta se explicar.

Isso ficou para os especialistas da posteridade que têm agora o tra-balho de remeter sua obra à contem-poraneidade. Contemporaneidade que pouco sabe sequer o que é uma galeria de arte. Para quem ainda não curtiu um espaço com um nome tão bonito assim, vale a pena conferir quem foi e o que fez Antonio Bandei-ra nos seus 20 e tantos anos de pro-dução artística.

A exposição vai até o dia 15 de março no Espaço Cultural Unifor e conta com a curadoria do editor e empresário Max Perlingeiro, 58 anos. Por telefone, a Harco conversou com o curador, que organizou diversas ex-posições de arte no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza,

Londres, Lisboa e Buenos Aires. Max criou, em 1980, a pri-

meira editora especializada em livros sobre arte brasileira no país, Edições Pinakotheke,

e atualmente integra o Conse-lho das Instituições Paço das Artes e Museu da Imagem e do Som, ligadas à Secretaria de Cultura do Estado de

São Paulo. Também faz parte do Conselho do Instituto Lina e Pietro Maria Bardi, também em São Paulo.

Sob a batuta do experiente curador, a exposição Antonio Bandeira foi premiada como a Melhor Retrospectiva de 2008 pela Associação Paulis-ta de Críticos de Arte (APCA).

“A APCA premia anualmente os grandes acontecimentos na área artís-tica e a exposição ganhou o reconheci-mento unânime. É sem dúvida a maior premiação nesta área”, explicou Max Perlingeiro.

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A exposição teve inicio em São Paulo, na sede da Pinakotheke Cultu-ral durante os meses de agosto a outu-bro de 2008, com um número recorde de visitantes e uma forte parceria na área de arte-educação com o progra-ma Amigos da Escola. Agora, chega à Unifor, onde, a exemplo de Rubens e outras mostras, tem recebido uma extraordinária visitação, tanto do pú-blico adulto como de visitas dirigidas para estudantes.

O ano de 2007 marcou os 40 anos de morte de Bandeira. De acordo com Max Perlingeiro, toda a exposição foi planejada durante dois anos com o ob-jetivo de apresentar a mais completa retrospectiva sobre o artista. Antonio Bandeira contempla obras do inicio da formação em Fortaleza, entre os anos de 1940 a 1945, passando pelo Rio de Janeiro entre 1945 e 1946, Paris 1946 a 1951, e alternando entre Europa,

Fortaleza e Rio de Janeiro até a sua morte prematura em Paris 1967, com apenas 45 anos de idade.

Predestinação

Bandeira sofisticou sua arte desde sua iniciação, quando ainda estudava com a professora Mundica utilizando o método figurativo. De toda a expo-sição, o visitante poderá apreciar, dos anos 1940, o Morro do Moinho, local comentado como uma das suas fontes de inspiração, Natureza-morta com flores, Porto com embarcações e Inte-rior de um bar (obra com a qual o ar-tista participa do III Salão Cearense de Pintura e ganha a medalha de ouro), todas executadas em Fortaleza.

Max esclarece que a obra Interior, executada no Rio de Janeiro, refletia uma solidão a que o artista não es-tava acostumado, onde morava num velho casarão da rua Paissandu com

o amigo Aldemir Martins. De Paris, uma coleção de desenhos produzidos na Academia de La Grande Chaumiè-re, em 1946, Mulher no bar, de 1948, pode ser considerada, conclui Max, um divisor de águas entre a figuração e a abstração.

A década de 1950 marca o iní-cio da sua maturidade como pintor abstrato e está representada por inú-meras obras denominadas Paysage executadas no Rio de Janeiro, Paris e Fortaleza e a pintura Town with children, produzida em Londres, em 1955. A década de 1960, período de maior produção do artista, represen-tada por Sol e paisagem azul, (trípti-co), pintada em Paris, em 1966.

Tipicamente nômade, como todo cearense, Bandeira conquistou seu espaço de maneira linear e concreta. Nada parecido com sua arte, que co-mete seus surtos criativos e vai de en-

contro ao indizível, como diria o can-tor e compositor Gilberto Gil. É assim nas obras da fase mais abstrata que podem ser encontradas na exposi-ção, composta por aproximadamente duas centenas de pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, objetos pesso-ais e documentos, de coleções públi-cas e privadas.

A mostra também conta uma pequena coleção de têmperas, as úl-timas obras encontradas na sua es-crivaninha e a pintura encontrada no cavalete no dia da sua morte. E ainda, são apresentados o filme Fazedor de Crepúsculo, de 1960, e os originais de Árvore da infância, romance autobio-gráfico, jamais publicado; gravuras e desenhos de Wols e Bryen; um núcleo de fotografias inéditas, documentos pessoais, catálogos de exposições históricas e inúmeros recortes de re-vistas e jornais.

Exposição Antonio Bandeira, no Espaço

Cultural Unifor ( Av. Wasghinton Soares,

1321, Bairro Edson Queiroz). De 28 de

outubro de 2008 a 15 de março de 2009. Das 10h

às 20h, de terça-feira a domingo. Entrada franca. As visitas guiadas devem ser agendadas pelo fone:

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Page 20: Revista Harco #2

Bandeira foi um artista iluminado por qua-tro sóis e que nos deixou uma obra na fronteira de vários rios submersos que, hoje, emergem nas principais questões

atuais da arte e da cultura. Visionário, de inten-sa atividade, a sua obra está no limiar, pertence à sua época, mas poucos, como ele, construíram uma iconografia tão projetada no vir a ser. Ele é o profeta das cidades de luz.

Bandeira fertilizou a arte brasileira, a partir do Ceará, criando novas vertentes para a arte moderna. O Ceará tem uma tradição cultural rica. Do grupo dele, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, destacaram-se nacionalmente o Aldemir Martins, o

Inimá de Paula e o Bandeira. Na Europa, junto com Wols, o Bandeira foi importante também na renova-ção de idéias, a partir de uma abstração lírica, com forte passado figurativo. Não apenas a gestualidade da abstração, mas a concepção de novas formas de marcado passado figurativo. Lirismo com título, o gesto e a poética verbal.

Ninguém, como ele, projetou a idéia de cidades contemporâneas feitas de luz. É uma visão anteci-padora, pois as cidades tendem para isto e serão, cada vez mais, menos fabris e mais conceituais. A vida humana não como produtora, mas como exer-cício do sonho. Antonio Bandeira foi um extraordi-nário pintor de vida curta, pois morreu numa mesa de operação, em Paris, de uma banal intervenção na garganta.

É um artista da luz, justamente quando o homem saía das trevas homicida. O pintor da cidade lírica geradora de idéias, conceitos e da construção de um novo homem impregnado de intuição estelar. É signi-ficativo isto, uma vez que ele é oriundo de uma região iluminada pelo sol, dotada de grande claridade. E que a sua vida transcorreu em duas outras cidades solares, o Rio de Janeiro e Paris, a própria Cidade Luz. O quarto sol de sua vida era a sua própria alma, manifesta num labor sem fim e na concretização de imagens únicas que marcam a utopia do século vinte.

A sua arte sempre foi impregnada de um alto lirismo. Pintor-poeta. Antonio Bandeira acreditou que a tradição pictórica era suficiente para expres-

sar o futuro. Não desejou outro veículo, outro su-porte, outra linguagem que não fossem a pintura e a arte. O artista da luz. O homem na fronteira, entre o passado e o futuro, o abstracionismo e a figuração. É uma abstração que nomeia! É, neste sentido, um artista de acentuada tendência espiritual.

A luz em Bandeira é interna, feita de visões, e não sabemos, seguidamente, se é dia ou noite na sua pintura. É um visionário na melhor tradição do século vinte, a de quem percebe a luz como mani-festação complexa da matéria e da metafísica. Nele o espiritual não está personificado no contorno da figura humana, mas na visão.

Com a chegada dos anos 50, Bandeira, em de-finitivo, deixa para trás figuras e paisagens mais expressionistas. Como um alquimista mistura pai-

texto [Floriano Martins e Jacob Klintowitz]fotos [Mauro Angeli]

Crônica de vislumbresAntonio Bandeira: uma árvore verde para o novo homem

Texto publicado na Revista Poesia Sempre, Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro,

2º semestre de 2008 e republicado com autorização

dos autores

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sagem, figura e abstração em uma mesma paleta e dali começa a expandir uma poética firmada essen-cialmente na mestiçagem. Ele próprio dirá:

Quero fazer um mundo novo, misturar o céu com a terra; dizer aos homens que eles são to-dos irmãos na batalha das raças, apontar a pai-sagem visionária das grandes massas urbanas; tirar uma pintura da natureza que já foi, que já se está elaborando, e que ainda vai prosseguir. Quero preparar o terreno para a minha huma-nidade que virá depois, a humanidade feia que hoje sofre, presenteando-a com uma paisagem digna, uma paisagem nova, uma árvore verde, um ser em germinação. Enfim, quero criar seres que não existem, misturar, falar ao homem numa nova linguagem, ou não falar língua nenhuma; enviar uma mensagem aos contemplativos.

Até sua morte, em 1967, são 17 anos de safras ininterruptas, estações perenes, desentranhando cidades das manchas e sombras do abstracionismo. Mistura igualmente suas classificações internas (lírico, binário, geométrico etc.). Bandeira tem um sentido extraordinário do humano em si. A tal pon-to que tamanha generosidade o conduz a um exces-

so de doação. Tinha a mais plena consciência de que não se produz grande arte de outra maneira. Foi ao desgaste de tudo. Levou uma vida de lúcida deriva.

Antes que a morte o surpreendesse rabiscou um roteiro desenhado do que viria a ser um filme autobiográfico. Em um dos quadros fala de Paris em um sentido que se aplica a qualquer espanto lúcido no convívio com uma cidade:

A imensa cidade do dia e da noite, entre ator-mentada e tranqüila, próxima e distante – para sofrimento e alegria nossas –, essa mesma ci-dade que às vezes de tão grande que é vira uma pequena província.

Fortaleza, Rio de Janeiro, Paris. As cidades re-ferenciais de Bandeira, embaralhadas ao ponto de constituírem uma só urbe visionária. Evidência de uma luminosidade que não se detinha diante de nada. Todos nos sentimos habitantes desta huma-nidade outra que Bandeira evoca com a mestria de seus traços e cores, sim, porém essencialmente com a convicção de sua utopia. Este pintor-poeta nos deu a todos uma pequena quimera que ainda não soubemos criar.

O homem está presente em todas as paisagens

de Bandeira, habitante primordial de sua utopia: vi-las, favelas, cais: cidades. As suas árvores estão plan-tadas em um contexto urbano: a grande cidade com seus campos queimados. A luz agindo sobre cores e formas como uma crônica de vislumbres. Mesmo a selva, o agreste, a marinha: poética povoada por sua humanidade contemplativa. Bandeira povoa o abs-tracionismo, dá a ele uma condição humana antes desconhecida. Apesar da morte prematura, a intensa obra deixada afirma que não se envolveria com algu-mas das tendências futuras das artes: não dissecava a cor e sim o homem em sua conflitante condição so-cial; não amontoava formas ou empilhava temas; era essencialmente um cronista da luz, do vislumbre, de sua ação sobre o tempo, um solitário agrimensor da alma humana.

Do que seria uma origem vista no Brasil com preconceito, de uma arte narrativa do Nordeste, ele transformou a estória em uma linguagem situada en-tre a intuição e a referência iconográfica. O seu rosto forte, marcado, a cabeça grande, os olhos negros, é um constaste maravilhoso com a delicadeza do trata-mento plástico. Visionarismo. Transposição poética. Esta era a mestria de Bandeira.

Floriano Martins é poeta, editor, ensaísta, tradutor. Pesquisador de literatura hispano-americana. Foi

curador da 8ª Bienal Internacional do Livro do

Ceará. Dirige a Agulha - Revista de Cultura.

Jacob Klintowitz é jornalista, crítico de arte,

escritor, editor de arte, designer editorial. É autor de 90 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Atualmente dirige

o MuBE – Museu Brasileiro de Escultura.

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[cronologia]

Antonio Bandeira (1922-1967)

1922 Pintor, desenhista e gravador que tem sua obra inserida além do cenário da arte brasileira do século

XX, no da arte internacional, Antonio Bandeira nasceu em 26 de maio, em Fortaleza

1940/1944 Participa, em 41, da fundação do Centro Cultural de Belas Artes e do I Salão

Cearense de Pintura. Em 43, participou do I Salão de Abril de Artes Plásticas e do 9º. Salão Paulista de Belas Artes (medalha de bronze). Medalha de Ouro no III Salão Cearense de Pintura, em 1944, quando nasce a Scap.

1945 Viaja ao Rio

com Jean Pierre Chabloz, Inimá de Paula e Feitosa. Tem obras adquiridas pelo Centro de Estudos Franceses, consagrando

Bandeira e preparando sua ida à França.

1946/1950 Primeira individual, na sede do Instituto dos Arquitetos no Rio de Janeiro, com

cerca de 40 desenhos, aquarelas, pastéis e óleos. Participa do 51º Salão Nacional de Belas Artes e embarca para a França em abril de 46. Permaneceria em Paris por cinco anos, desligando-se logo dos estudos acadêmicos, preferindo o grupo de artistas da Escola de Paris. Sobrevive da venda de telas. Cria com Camille Bryen (1907-1977) e Wols (1913-1951) o Grupo Banbryols, um dos pioneiros da abstração lírica européia. Participa de coletivas e salões. Individual em 1950, na Galerie du Siècle.

1951/1954 Reconhecido, volta ao Rio de Janeiro e faz individual no Museu de Arte

Moderna de São Paulo. Visita amigos e parentes em Fortaleza e faz uma individual no Instituto Brasil-Estados Unidos. Participa de Salões e da I Bienal de São Paulo. Volta a Paris para salões, expõe

novamente no MAM, voltando à Europa, Itália, em 54, com o prêmio da II Bienal de São Paulo, instalando-se em Paris novamente.

1955/1958 Entre o Brasil

e a França expõe em muitas galerias. III Bienal de São Paulo. Faz capas para Borboleta Amarela, de Rubem Braga, e Viola de Bolso, de Carlos Drummond de Andrade. Individuais em Londres, Paris e Nova York. Salões ao lado de Paul Klee, Picasso e outros.

1959/1961 Com Portinari, Lasar Segall, Frans Krajcberg e outros participou da

exposição de arte moderna brasileira em Munique, promovida pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Volta ao Rio em 59. Lina Bo Bardi o convida para a inauguração do Museu de Arte Moderna da Bahia. Ainda em 60, expõe no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, participa da XXX Bienal de Veneza. São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro: exposições. Lança o livro Poemalhitos e o filme Périphérie, de Flávio de Carvalho, contracenando com a atriz Maria Fernanda Meirelles. Em 61, expõe no Brasil, na Alemanha, Londres, participa da VI Bienal de São Paulo, inaugura, individualmente, o Museu de Arte da Universidade do Ceará.

1962 Festejado pela crítica carioca e paulista, produz

a série Cidades, e sobre a catedral de Notre Dame. Começam as filmagens de um curta sobre ele, terminadas em 64, pelo diretor Luiz Augusto Mendes. Organiza a exposição Oito Artistas do Mauc, com Aldemir Martins, Floriano Teixeira, Sérvulo Esmeraldo, Nearco Araújo, Heloísa Juaçaba, Zenon Barreto, Estrigas e ele próprio, para o Museu de Arte Moderna da Bahia.

1964 Na galeria do IBEU-RJ, participa da exposição O

nu como tema, ao lado de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Volpi, Pedrosa e Ceschiatti, Maria Leontina e Milton Dacosta, entre outros. Participou da XXXII Bienal de Veneza. Sai do país após o golpe militar e ilustrou o poema Canção para o mais triste maio, de Manuel Bandeira.

1965/1966 Exposições: Arte Brasileira Atual, em diversas cidades da Europa, Artistas

do Brasil, em Nova Orleans, L’Oeil de Boeuf, em Madri, e Artistas Latino-americanos no Museu de Arte Moderna de Paris.

1967 Faleceu em 6 de outubro, aos 45 anos de idade, vítima de uma anestesia após uma intervenção

cirúrgica nas cordas vocais. Foi sepultado em Paris e 19 anos após, transladado para Fortaleza e enterrado no cemitério Parque da Paz.

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Percorrendo mentalmente as últimas seis décadas da pro-dução artística cearense, vários são os momentos que, en-tre as imagens significativas da nossa arte, surgem obras de Heloísa Juaçaba. Sua contribuição ao desenvolvimento estético do Ceará tem sido permanente desde a década de 1950, quando desponta apresentando pinturas que rom-pem com a tendência de retorno à ordem (rétour à l’ordre), que marcou a arte internacional após o crise econômica de 1929 e se refletia na produção dos artistas da SCAP. Heloísa aparece com um cubismo não radical de suave e elaborado colorido, onde o elemento figurativo gerador da obra ainda se percebe, deixando elementos de legibilidade que possibilitam um nível de comunicabilidade acessível ao público comum.

Depois podemos ver a pintura da artista se aproximar mais da informalidade, quando toma por tema marinhas repletas de barcos, provavelmente pela vigorosa influência da exuberância artística do amigo Antônio Bandeira. Nes-se período, apesar da mudança temática, Heloísa mantém a suavidade do colorido e a pintura, mesmo espatulada em alguns pontos, apresenta uma composição fortemente marcada pelos mastros, denotando a existência de uma co-erência interna em sua produção que liga o inicial cubismo com um abstracionismo que navega entre a informalidade no gesto e o rigor na construção compositiva.

Estes sinais que podem ser encontrados em sua pro-dução: tendência para um abstracionismo não radical, pre-ocupação compositiva apoiada em estruturas e colorido sofisticado, parecem atingir sua plenitude de harmonia na série de obras onde a artista registra a paisagem de sua amada Guaramiranga. Nessa série, Heloísa consegue cap-tar toda a exuberância total dos verdes e terras da região e construir, com um significativo exercício de simplificação formal, paisagens de uma Guaramiranga que trafega entre o sonho e a fantasia e se consubstancia em arte, arte de grande qualidade.

Um outro momento de grande contribuição de Heloísa para a arte cearense está na “série branca”. Aparentemente

construtivista, essa série de obras não deve ser entendida como uma sintonia da artista com os movimentos da arte internacional. Acredito que a artista não tem essa postura. Ela é informada, sabe do mundo, sabe da história das ar-tes e sabe de si. Conhece nossas tradições populares e raí-zes culturais mais profundas. E é a partir desse amálgama de saberes, conhecimentos e vivências que elabora a sua arte. Como falei em outro momento: Heloísa usa em suas obras da “série branca” as tradições dos trançados e das cerâmicas indígenas, da nossa rica cultura artesanal e de toda uma gama de conhecimentos que teve a capacidade de colher no mundo moderno para fazer uma arte indiscu-tivelmente dela.

Heloísa, em suas mais de cinco décadas de contribui-ção às artes do Ceará, apresenta uma produção que tem profunda sintonia com a sua personalidade, com o seu jei-to simples de ser, e de forte coerência interna em termos de proposta estética.

Roberto GalvãoArtista plástico e curador

A coerência da simplicidade

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Aos cem anos completados no ultimo dia 11 de dezembro, o

cineasta português Manoel de Oliveira continua fazendo um filme por ano. Pode-se dizer sem ne-nhuma forçação de barra ou respeito subserviente a um ídolo, que este cineasta-filósofo está no auge de sua potência criativa. Como ele, no cinema atu-al, só Alain Resnais, Theo Angelopoulos e Godard. Os outros desse Olimpo já se foram: Bergman, Fellini, Ozu, Mizoguchi, Dreyer, Antonioni, Rosseli-ni; Pasolini; Welles, Leone, Eisenstein, Paradjanov,

Pabst, Murnau, Renoir, Lang, Ophuls, Paradjanov, Sjostrom... No momento, está finalizando Singu-laridades de uma Rapariga Loura, baseado num conto de Eça de Queiroz, e trabalhou nesta filma-gem até no dia de seu aniversário. “Há uma ne-cessidade imperiosa de filmar nesse dia para dar continuidade às filmagens e porque este filme tem um certo destino para ser apresentado no festival de Berlim, que decorrerá de 05 a 10 de Fevereiro, de maneira que temos muito pouco tempo para a montagem”, falou o cineasta numa conferência de imprensa para jornalistas de vários países, na qual anunciou um novo projeto: O Estranho Caso de Angélica, filme com o qual pretende retribuir a homenagem que lhe fizeram no último festival de Cannes. Oliveira nunca ganhou a Palma de Ouro (assim como outros de sua envergadura), e pare-ce irônico retribuir um reconhecimento tão tardio com um novo trabalho. Quando recebeu a Palma especial das mãos do ator Michel Piccoli, ele usou da ironia ao se referir ao fato de nunca ter rece-bido aquele prêmio, dizendo que estava “muito emocionado” por “finalmente” ser contemplado. Depois colocou que gostou de recebê-lo assim, sem ter que competir com nenhum colega.

Oliveira estreou em longa metragem de ficção com Aniki – Bobó, de 1942, cujo título foi tirado de uma canção infantil da época que identificava nas brincadeiras quem era ladrão e quem era policial. E esse filme, uma pequena e singela obra-prima, já trazia todas as características do neo–realismo (que marcaria a história do cinema na Itália logo depois), ao enfocar em cenários naturais o cotidia-no de um grupo crianças na cidade do Porto. De lá pra cá, o mestre cineasta, embora dono de uma ca-ligrafia forte; de uma escrita única, nunca se tornou

acadêmico de si mesmo. “Sempre que começo um trabalho, tenho a impressão de filmar pela primeira vez. Quer dizer, jamais farei a mesma coisa. Não vou fazer o que já fiz, mas buscar algo completamente diferente. De maneira que sempre estou a adentrar um outro campo. E, pisando um terreno pela primeira vez, vou, claro, cheio de dúvidas, topando com muitas surpre-sas, perguntando-me o que vai acontecer”.

O cinema de Oli-veira, por mais cultuado que seja por uma elite intelectual internacio-nal, talvez seja dos mais inacessíveis ao público, mesmos aos que se con-sideram cinéfilos. Algu-mas constantes detectadas em sua longa filmografia como os planos longos, os discretos movimentos de câmera e a ên-fase nos diálogos, tornam para

muitos seus filmes monótonos e mesmo chatos. Neste sentido o diretor nunca fez concessões. “A câ-mera fixa é uma chave extraordinária, pois se torna objetiva. Nos filmes falados, cujo diálogo é rico, a atenção é necessária e não se deve distrair o espec-tador do que diz o ator, porque o movimento distrai (...) dessa maneira, a presença do diretor não se faz sentir. Quando a câmera se move, logo se sente que alguém a fez mexer. O diretor deve apagar-se, não se deve fazer sentir no filme (...) Cinema é movimento, mas movimento é tempo”.

Obra-primaAmor de Perdição, de 1978, belíssi-

ma e fundamental adaptação da obra homônima de Camilo Castelo Branco, é para muitos, e nos incluímos aí, a maior

obra do diretor. É seu dicionário de ci-neasta. “É um diálo-

go entre o visível e o imaginário, entre o perceptível e o im-

perceptível (...), um verdadeiro workshop

de idéias acerca da in-cestuosa relação entre o romance e o cinema, acerca das várias pos-sibilidades de adap-tações literárias. Mui-tos dos ditos aspectos de vanguarda do filme

vêm precisamente dessa reflexão, graças à qual cada cena acaba por se tornar uma solução fílmica de um desafio literário” (Jonathan

O Fenômeno Manoel de Oliveiratexto [José Guedes]fotos [Divulgação]

José Guedes é artista plástico, cinéfilo e Diretor

do Museu de Arte Contemporânea do Centro

Dragão do Mar

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Rosembaum). Inácio Araújo descreve assim seu primeiro contato com a obra: “Havia na sala um misto de desconfiança e esperança. Um filme de quatro horas. Lá atrás, no fundo da Sala, estava Manoel de Oliveira de óculos escuros, ao lado de (Serge) Daney, sem aparentar nenhuma tensão diante daquela premiére”.

E continua o crítico de cinema da Folha. “À medida que as imagens de Amor de Perdição co-meçaram a se desenrolar, a tensão desapareceu rapidamente e de forma misteriosa. É como se toda a platéia fosse engolfada por aqueles planos longos, pelo andamento sossegado das idéias, por um tempo que, à medida que o filme transcorria, parecia cada vez mais contrastar com a desespe-rada história dos amantes adolescentes de Camilo Castelo Branco, e, no entanto, era nesse tempo tão particular que a história vinha se acomodar. Ao fi-nal da sessão, todos na sala tinham a impressão de ter visto algo muito especial se produzir.

As quatro horas transcorreram como minutos. O século XIX, seus costumes, seus sentimentos, eram constituídos de todo rigor. Em plena era dos hippies, das contestações, dos sonhos políticos, Oliveira não cedia um dedo sequer à moda. Mas a atualidade da-quele amor dava ao filme uma atualidade gritante. Era justamente a fidelidade a Camilo, a seu tempo, a seus personagens, que tornava o filmetão atual – como diria Eric Rohmer. Qualquer um naquela sala sabia que estava diante de um acontecimento e de um cineasta invulgares”.

Lamentavelmente, os filmes de Manoel de Oli-veira só são vistos em festivais e dificilmente são inseridos no circuito comercial. Quando isso acon-tece, deve-se mais à presença de algum astro como Marcelo Mastroianni, Catherine Deneuve, Michel Piccoli, Irene Papas, Stafania Sandrelli, Chiara Mastroianni, John Malkovich entre outros que participam de seus filmes por cachês simbólicos, conscientes que são da importância desse grande criador para a história do cinema ou da arte.

Assim como Camões, Camilo, Eça, Pessoa ou o Padrão dos Descobrimentos em Lisboa... Manoel de Oliveira é um monumento. De Portugal e do mundo.

[Filmografia] 2009 - Singularidades de uma Rapariga Loura (em produção)2007 - Cristóvão Colombo – O Enigma2006 - Belle Toujours2005 - Espelho Mágico2004 - O Quinto Império - Ontem Como Hoje2003 - Um Filme Falado2002 - O Princípio da Incerteza2001 - Vou para Casa2000 - Palavra e Utopia1999 - A Carta1998 - Inquietude1997 - Viagem ao Princípio do Mundo1996 - Party1995 - O Convento1994 - A Caixa1993 - Vale Abraão1992 - O Dia do Desespero1991 - A Divina Comédia1990 - Non, ou a Vã Glória de Mandar1988 - Os Canibais1986 - O Meu Caso1985 - Le Soulier de Satin1981 - Francisca1979 - Amor de Perdição1974 - Benilde ou a Virgem Mãe1972 - O Passado e o Presente1963 - Acto da Primavera (docuficção)1942 - Aniki-Bobó

Cena do filme “Amor de Perdição”, obra-prima de Manoel de Oliveira

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A Trilhos Urbanos, de Caetano, deu o mote para o grupo Olhar sem Fronteiras iniciar, há cinco anos, o ensaio. Com a extinção do grupo que presidia, Chico Gomes deu continuidade à sua busca pelo que transportam os usuários dos trens urbanos da cidade onde ele nasceu e co-meçara sua arte cinco anos antes, já premiada, reconhecida aqui e por outros horizontes. Chico transcende o tom documental. Magnetiza o vendedor de bombom. Prega o homem da Pa-lavra. Renova os fatigados das composições fer-roviárias. Embolado blues alencarino. Já, já vem o livro Gente do Delta, construído com Henrique Claudio, Sérgio Carvalho e Sérgio Nóbrega. Para 2010, Francisco de Canindé, outra parceria, ou-tros trilhos sob as bitolas da luz, das gentes, da sensibilidade do ver.

Trilhos humanos por Chico Gomes

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Dos rebeldes sem causa aos mais engajados, da academia ao bar da

esquina, em qualquer contexto, Cuba ainda é referência – para o bem ou para o mal. Os versos de Caetano, em nosso título, falavam de uma Cuba pós-revolução. Fulgencio Batista e seus aliados se retiravam do país, no mes-mo momento em que os guerrilheiros de Sierra Maestra eram a esperança de uma Cuba Libre da ditadura. Hoje, às vésperas dos 50 anos da conquista, relembramos aquele janeiro em que

um ban-

do de homens esfarrapados chegava à capital, Havana, liderados por Fidel Castro. As cinzas dos sonhos de liber-tação nacional teimam em resistir na memória dos cubanos, mesmo após o regime ter se tornado a revolução de um homem só. Se a ilha por muito tempo provou ao mundo que era uma alternativa ao modelo capitalista, não é por esse mérito que hoje mais é in-vocada.

Entre discursos anti-americanos e defesas calorosas de um socialismo

(?), o que hoje se questiona é: o regime de Fidel ainda tem razão de ser? Seja qual for a resposta, o fato é que aquela virada de ano de 1958 para 59 de alguma forma mexeu com o imaginário das pessoas, das mais descren-tes até as mais sonhadoras,

criando uma aura de espe-rança desmedida na possi-bilidade de construção de

uma sociedade mais justa. Segundo o cientista polí-

tico Manuel Domingos, “há muitos ingredien-

tes que fazem de Cuba um objeto

Mamãe, eu quero ir a Cuba... ...e quero voltar!

texto [Síria Mapurunga]fotos [Divulgação]

Síria Mapurunga é jornalista

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[Opinião]

Por quais feitos a revolução cubana é admirada?

A revolução cubana provocou um impacto profundo no ambiente político americano. Representou um desafio à hegemonia norte-americana e alimentou os sonhos da esquerda no continente. Há muitos ingredientes que fazem de Cuba um objeto intrigante de análise política, a começar por ser uma ilha quase encostada nos Estados Unidos. Foi o único movimento revolucionário a

tomar e se manter no poder na América Latina. O regime cubano sobreviveu enquanto o resto da América Latina vivia sob regimes militares e o controle norte-americano.

Manuel Domingos, cientista político

Culturalmente, o que a revolução trouxe de novo para o mundo?

A revolução cubana ampliou sua influência não por ela mesma, mas por seus personagens e sua trajetória pessoal. Falo de Che Guevara que deixa Cuba e tenta espalhar a idéia de revolução entre os camponeses da Bolívia. Do ponto de vista propriamente cultural, não diria que a revolução cubana tenha criado qualquer padrão estético novo. É só pensar que toda a produção cultural cubana é fortemente censurada e somente aquele artista que contar

com o apoio do Estado faz sucesso.Valmir Lopes, cientista político

intrigante de análise política, a come-çar por ser uma ilha quase encostada nos Estados Unidos”.

Predestinação? Isso ainda é mis-tério. Mas a pomba branca que sobre-voou a multidão e pousou sobre os ombros do líder Fidel, quando pro-nunciava o discurso da vitória, ficou para a história, encarnando já aí o que mais tarde viria a se concretizar em Che, o revolucionário mais lembrado e também, ironicamente, o mais explo-rado hoje pela publicidade. É a velha recorrência ao caráter contestador e transformador da juventude – que,

como se espera, “vive a vida perigo-samente” -, sem a qual o mundo per-maneceria o mesmo. Para completar, um desfecho como o do guerrilheiro só poderia torná-lo um verdadeiro mártir, quase um santo para aqueles que queiram assim elevá-lo. “O fim trágico de Che nas selvas bolivianas é alimentador das ilusões latino-americanas, principalmente entre os mais jovens”, explica o cien-tista político Valmir Lopes.

Hoje, a pérola do Caribe não vale o quanto pesa. Apesar de ter uma economia inexpres-siva e um território pequeno, seu real valor está associado ao espírito socialista e desafiador que acendeu. Ainda símbolos de rebeldia, os heróis da revolução foram transformados em mito e pairam sobre os céus como fan-tasmas que rondam um presente indigente de sonhos pelos quais se lutar.

Bem ou mal, mas falam da Ilha

Para além de toda a discussão política, fica evi-dente o véu de idealização

por trás do fenômeno. Se Caetano canta “Cuba seja aqui” na música, já há muito vemos nas telas do cinema o desejo em entender por que essa revolução e seus personagens des-pertam tanta curiosidade. Com o já premiado Che, do diretor americano Steven Soderbergh, com quatro horas de duração, a mitificação em torno da figura do guerrilheiro dá lugar ao que os próprios atores chamam de “o filme definitivo sobre Che Guevara”. Do brasileiro Walter Salles, Diários de Motocicleta, de 2005, já seguiu um ca-minho pouco convencional, ao retra-tar a viagem de Che e seu companhei-ro Alberto Granado na descoberta da América Latina, sete anos antes de explodir a Revolução.

Mas é com A culpa é do Fidel que o olhar atento e

nada ingênuo de uma me-

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Ela não perdeu o so-taque. Na verdade, é

como se ainda falasse em espanhol, mesmo vi-vendo em Fortaleza há 13 anos. “Não faço mui-to esforço para perder”, confessa. A arquiteta Li-dia Sarmiento, 54 anos, guarda lembranças for-tes do que ela chama de “triunfo” da revolução. Seu pai, um dos 25 mé-dicos que ficaram na capital Havana, foi um dos criadores da Nova Escola de Medicina e sempre esteve a favor do movimento. Ela, “sempre obedien-te e disciplinada”, foi filiada ao Parti-do Comunista praticamente durante toda a vida, só deixando de lado após a saída de Cuba.

Das memórias, a arquiteta res-sente não ter tido idade suficiente na época para participar de uma cam-panha de alfabetização. “Durante um ano, fecharam os colégios para que todos os jovens aprendessem a ler e a escrever”, recorda. Assim como Ana do A culpa é do Fidel (ver texto prin-cipal), estava bastante acostumada à vida cômoda com a família. A dife-rença é que, no caso de Lídia, ela fazia questão de participar da revolução e quem se “descabelava” era a mãe. “Eu e minhas irmãs passávamos alguns meses do ano no campo trabalhando, minha mãe não gostava muito, mas fazer o quê?”.

Fortaleza só apareceu em seu caminho depois de conhecer o arqui-teto cearense José Capelo durante o

doutorado na Espanha. O casamento foi feito por procuração, mas logo seu querido “Pepe” (como o nome José é carinhosa-mente chamado na língua espanhola) se mudou para Cuba. Lá, ficaram durante 10 anos, tiveram dois fi-lhos, e ela criou o grupo responsável pela restau-ração do Centro Histórico de Havana Velha. “Rece-

bemos condecoração de Fidel Castro pelo trabalho realizado”. Mas, com a crise econômica do país e a teimosia cearense de Pepe, o casal finalmente chegou a Fortaleza. “Ele disse: eu vou voltar, se quiser ir, vamos; se não, fi-que. Bem cearense”, afirma em tom de brincadeira.

No início, não foram os temperos, o clima, nem mesmo a gente daqui que fizeram Lidia se sentir como um peixe fora d’água. Um mundo completamen-te novo se ergueu diante de seus olhos, sim, mas quem poderia imaginar: foi um simples pedaço de papel que cau-sou tanta inadaptação de sua parte. “O problema não é o dinheiro em si, mas o que o dinheiro gera: diferença so-cial. Em Cuba, eu morava num bairro elitista, mas depois da revolução meu vizinho podia ser um pedreiro, um ca-minhoneiro. Essas coisas me deram muito trabalho a me acostumar aqui”. Por essas e outras, Lidia ainda se sente um soldado da revolução e sonha com o dia em que voltará para suas raízes, como se a Cuba da infância tivesse pa-rado no tempo.

“Soy un soldado de la revolución”nina ganha ares realmente revolucio-nários - em se tratando de um ponto de vista, digamos, bastante inovador da diretora Julie Gravas. A pequena francesinha Ana, de nove anos, mi-mada pelos avós, estava prestes a se tornar uma perfeita dama, isso se não fosse obrigada a mudar de rotina de-pois da chegada da tia e da prima, que fogem da ditadura de Franco na Espa-nha. Questionadora e vendo sua vida confortável de antes sumir, mostra-se

inquieta e disposta a convencer os pais de que nem eles mesmos sabem se estão certos ao le-varem adiante uma causa como a de Allende no Chile. Quem faz a cabeça de Ana é uma babá cubana, fugida de seu país após a re-volução, plantando na menina o mes-mo ódio que sente de Fidel. Com um humor inteligen-te sempre bem-

vindo, o filme é uma lição a mais para rever conceitos arraigados em nosso imaginário: o velho maniqueísmo do bonzinho e do malvado.

Nos quadrinhos, o super-herói Che também tem lugar cativo, como Batman, Superman, Homem-aranha e outros. Em Che – os últimos dias de um herói, é descrita a história da morte do guerrilheiro, pelo argentino Hec-tor Oesterheld. Lançada há 40 anos, a obra acaba de chegar ao Brasil, mas não sem um longo caminho contur-bado. A ditadura argentina proibiu o livro e perseguiu Oesterheld, que desapareceu junto com parte de sua família.

Hoje, morrer por revoluções por convicção? Só mesmo em história em quadrinhos. Se isso não é coisa do passado, ao menos os “guerrilhei-ros” engajados de hoje repetem como Raul Seixas: “Eu não sou besta pra tirar onda de herói/ sou vacinado eu sou cowboy/ cowboy fora da lei/ Du-rango Kid só existe no gibi/ e quem quiser que fique aqui/ entrar pra his-tória é com vocês”.

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Apesar da mediocridade triunfante internacional procurar desconhecer o valor da inteligência, fazendo-se de cega diante das conquistas dos idealistas e das vitórias sociais de resisten-tes povos antes subjugados, a realidade sócio-econômica da vida comprova ser possível um mundo mais humano e mais participativo. Uma das comprovações disso é a resistência do povo cubano que completou 50 anos de libertação política das impiedosas vontades norte-americanas. Embora, nesse meio século, tenha sofrido apenas perseguições e boicote econô-mico. Com todas essas adversidades, tem conseguido avançar em áreas como educação, saúde e esportes, de fazer inveja a alguns países do primeiro mundo.

Desde o triunfo dos líderes Che Guevara e Fidel Castro, conseguindo com seu povo derrubar uma ditadura corrup-ta de Fulgencio Batista, o anti-social e indiferente a uma imensa pobreza social - como a do Brasil, onde alcança um terço de sua população, em 1.793 municípios, dos quais 75% no Nordeste, segundo o IBGE, - que essa mediocridade triunfante não dor-me, diante das perspectivas de um mundo novo com poucos recursos econômico-financeiros numa pequena ilha, servindo de exemplo às demais sociedades.

Todos têm o direito de acusar Fidel Castro, um dos princi-pais líderes revolucionários cubanos, de sanguinário e de opres-sor das liberdades democráticas em seu País. Mas, não estariam repetindo a fábula do lobo e o cordeiro? Por que seus princi-pais acusadores não olham primeiramente para seus rabos de palha? A revista História, da insuspeita Editora Abril - já nas ban-cas com uma edição especial para colecionador, sobre os 50 anos de Revolução Cubana - vem denunciando as fracassadas 638 maneiras de matar Fidel Castro, constantes, entre outros meios, a utilização de charutos explosivos, cápsulas de veneno, sapatos radioativos, fungos letais e sprays alucinógenos. Tudo inventado pela CIA para eliminar, repito, seu adversário cubano.

Diante dessas “afetivas” maneiras de tratar o adversário, os inimigos da Revolução Cubana não teriam criado para Fidel um estado de legítima defesa, forçando-o a recorrer à política de “dente por dente e olho por olho”?

Se não se justificam o cerceamento da liberdade de expressão e a tortura física e psicoló-

gica - o que não se justifica mesmo! - estes diabólicos e me-dievais recursos de subjugar os seres humanos, fora da ilha, estão sendo empregados também contra a gente cubana pela potência econômica mais poderosa do mundo - os EEUU - a partir do momento em que negam até o direito de se vestir e se alimentar melhor, com o seu boicote econômico-financeiro. Um dos mais famosos filósofos universais, de origem francesa, Voltaire, diz em uma de suas obras: “não concordo com uma só palavra que dizei-vos, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las”. Se em Cuba não há liberdade de expressão para os adversários, fora dela também predomina a lei do silêncio que é tão torturante quanto as outras censuras. Sim... Porque as con-quistas sociais cubanas e até as ajudas aos países do Terceiro Mundo, com seus avançados métodos de saúde, de educação e de práticas esportivas, são silenciadas pelos meios de comunica-ção comprometidos com o bem estar do governo americano.

Agora mesmo, após a queda do muro do Berlim, da desa-gregação ideológica da ex-União Soviética, com a expansão da democracia nos quatro cantos do mundo - inclusive em Guan-tánamo, um gueto norte-americano para experiências desuma-nas dentro do território cubano - ainda negam, os inimigos de Fidel Castro e de seus irmãos caribenhos, a suspensão do blo-queio econômico à Pérola das Antilhas. Mesmo ocorrendo de, na Assembléia Geral da ONU de 2007, apenas quatro dos seus 188 membros não votarem contra as sanções, contra o embar-go unilateral.

Suspendendo o bloqueio, os norte-americanos só têm a ganhar. Porque, com a atual mídia, com os mais avançados me-canismos tecnológicos, o mundo não apenas se tornaria sim-pático à sua política externa legitimamente aberta aos demais povos, mas ganharia sem, guerra e sem genocídio, dos merca-dos universais.

Acabado o tempo das guerras convencionais, chegou o tempo das parcerias de mercados, dos jogos de inteligência no xadrez do vender e do comprar, embora o ser humano lute intensi-vamente para sobreviver, mas, aqui e ali, escorregue na lama instintiva da rebeldia sem causa, seja como simples cidadão, seja como Estado constituído de leis e de normas reguladoras de excessos perniciosos ao bem estar das sociedades.

[Opinão]

Cuba: 50 anos de resistênciaGervásio de Paula, é jornalista e colunista do Diário do Nordeste

Sim... Porque as conquistas sociais cubanas e até as ajudas aos países

do Terceiro Mundo, com seus avançados métodos de saúde, de educação e de práticas esportivas,

são silenciadas pelos meios de comunicação comprometidos com o

bem estar do governo americano.

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Page 32: Revista Harco #2

No dia 22 de dezembro de 2008 se vão 20 anos de um crime que ultrapassou fronteiras pela grande comoção que provocou, gerando novas

reflexões sobre o modelo de desenvolvimento e a inserção do ser humano na natureza. Francisco Al-ves Mendes Filho, ou simplesmente Chico Mendes, perdia a vida dando lugar ao avanço da agropecu-ária sobre a Amazônia. Ele lutava por um bem co-mum, pelo grande valor da floresta em pé.

O ideal, porém, não morreu. A tarefa de mostrar o melhor caminho permanece entre os defensores da floresta, diante de um “avanço” que insiste em dizer que pode haver um “uso sustentável” que não aquele, extrativista, comunitário, solidário, ecológi-co, proposto por esse visionário que pagou com a vida o preço de defender o valor da biodiversidade.

Acreano, nascido no seringal Porto Rico, em Xapuri, Chico Mendes tornou-se seringueiro ain-da criança, acompanhando seu pai. Iniciou a vida de líder sindical com a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, em 1975. No ano seguinte, participou ativamente das lutas dos serin-

gueiros para impedir desmatamentos por meio dos “empates“.

Em 1979, Chico Mendes transformou a Câmara Municipal num grande foro de debates entre lide-ranças sindicais, populares e religiosas, sendo por isso acusado de subversão e submetido a duros interrogatórios. Também foi um dos fundadores e primeiros dirigentes do Partido dos Trabalhadores no Acre. Em 1981, assumiu a direção do Sindicato de Xapuri, do qual foi presidente até o momento de sua morte.

Em 1985, liderou o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, quando foi criado o Conselho Nacio-nal dos Seringueiros (CNS), do qual foi a principal referência. A partir de então, sua luta começou a ganhar repercussão nacional e internacional, princi-palmente com o surgimento da proposta de “União dos Povos da Floresta”, que buscou unir os interesses de índios e seringueiros em defesa da floresta ama-zônica propondo a criação de reservas extrativistas, sua principal bandeira: áreas pertencentes à União com usufruto dos seringueiros, organizados em coo-

perativas e associações, sem títulos de propriedade, garantindo sustento a milhares de famílias e sua pre-servação para as gerações que estão por vir.

Ameaças e a floresta

Durante o ano de 1988, cada vez mais ameaçado e perseguido, principalmente por ações organizadas após a instalação da União Democrática Ruralista (UDR), no Acre, continuou sua luta, percorrendo vá-rias regiões do Brasil, participando de seminários, palestras e congressos, com o objetivo de denunciar a ação predatória contra a floresta e as ações vio-lentas dos fazendeiros da região contra os trabalha-dores de Xapuri.

Hoje, o imediatismo capitalista insiste em “fe-char os olhos” ou “fazer vista grossa” para um mo-delo de “crescimento” que avança irresponsavel-mente sobre a floresta, ignorando idéias brilhantes como essa da reserva extrativista. Como costuma dizer a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a Amazônia é uma reserva estratégica de potencia-lidades de desenvolvimento de um novo tipo, o que depende de mudanças estruturais de foco nas quais se precisa investir.

A sua destruição repercute, e muito, no aqueci-mento global, já que Brasil é o quarto maior emis-sor de carbono devido, principalmente, ao desmata-mento. No nível local, entre outros fatores, influi na manutenção da umidade em outras regiões do País, conforme estudos do Instituto Nacional de Pesqui-sas da Amazônia (Inpa). Dessa forma, ao evitar o desmatamento da Amazônia, previnem-se gravíssi-mos desequilíbrios climáticos em áreas com altas concentrações de população e de produção agríco-la, nas regiões, Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Preservar a Amazônia é promover a melhoria do padrão de vida de sua população, é um desafio civi-lizador para o Brasil e para o mundo, como um dia sonhou Chico Mendes. O sucesso depende da perse-verança dos agentes públicos em continuar amplian-do a governança ambiental e também da sustentação política na sociedade para que esse processo não se interrompa. A Amazônia deve ser compreendida, nesse sentido, como espaço privilegiado para alcan-çar também uma política sustentável.

O homem da floresta20 anos depois

texto [Maristela Crispim]ilustração [Vinício Del Pinto]

Maristela Crispim é jornalista e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC

texto [Maristela Crispim]Ilustração [Vinício Del Pinto]

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Page 33: Revista Harco #2

Orar era uma missão contraditó-ria no tempo dos escravos que construíram a capela do Rosário,

no Centro de Fortaleza: feita de esfor-ço e incerteza. Por motivos diferentes, ainda é assim hoje. O esforço não se materializa em suor, mas em ter que agüentar a sua condição de imundí-cie, comum a muitos logradouros do Centro de Fortaleza. A incerteza, em saber se é seguro realmente expres-sar sua fé naquele templo católico, e não mais por dúvidas à catequese mais sincrética promovida, entre os séculos XVIII e XIX, pela Irmanda-de de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ameaças de fecha-mento, assaltos, fedentina, gente que confunde a simplicidade histórica do prédio com seu abandono, seu desca-so, também histórico.

Afinal, quem quer saber daquela igrejinha velha, símbolo da escravi-dão dos pretos que aqui se jura que não houve? Mesmo que situada ao lado do inabalável Palácio da Luz, antiga sede de nosso governo e hoje a alumiar nossa “célebre” Academia Cearense de Letras... Não tem jei-to, é “modernidade”, “aquela região sempre foi assim”, dirão os infiéis, os descrentes no urbanismo e no pa-trimônio histórico que nos restam... Quem liga se ali perto fica o Museu do Ceará? O próprio Museu liga para

a sua vizinhança? Quem liga se a sem-pre festejada Praça do Ferreira po-deria dividir alguns eventos, os mais prosaicos, com aquele ainda bucólico logradouro, a Praça General Tibúrcio, em bom alencarino, para alvinegros e tricolores, Praça dos Leões? Praça do boticário que, apesar do CCBNB a al-guns quarteirões, tanto se ressente de um centro cultural, por que não ali na Caixa que abrigara o Palacete Ceará? Virou banco, mas, inexplica-velmente, em pleno século XXI, ainda não virou um centro cultural digno do Centro, tal como existe em qualquer grande cidade...

Bem, mas voltemos à i g r e j i n h a . Olha só a Ra-chel de Q u e i -

roz ali, sentadinha, meditando, qual a estátua de Carlos Drummond de An-drade em Copacabana... Quem liga? Se nem depois de toda a reforma do Pas-seio Público, outro símbolo da cidade desde o século XIX, isso se concreti-zou...? É, Caminha, a província ainda tem muito o quê aprender. Se hoje nos faltam os mártires, sobram os

arautos da cultura e da moder-nidade, como no seu tempo. Só

rezando, como se fazia, no seu tempo também, na Igreja do Carmo, na Cate-

dral ou na Igreja de São Bernardo. Ah, a Igreja, oficialmente capela do Rosário, é “um pouco” mais antiga que o Pas-seio, algo em torno de um sécu-lo... E

daí? Quem quer saber daqueles vín-culos simbólicos com os escravos, em grande parte porque o colar de rosas que a santa trazia em volta do pescoço assemelhava-se ao ifá da tradição re-ligiosa afro-brasileira? Foi assim que Sobral, no século XVIII, e ainda Crato e Barbalha, em meados do século se-guinte, também viram igrejas serem erguidas pela Irmandade, como, aliás, quase todos os estados do país, desde que, consta, o lendário Chico Rei a te-ria fundado ainda no século XVIII, em Ouro Preto. Inclusive, no Rio, onde ela

teve forte atuação em de-fesa de João Cândido, o Almirante Negro, na Re-volta da Chibata. E você

com tudo isso?

Construção iniciada pelos escravos em 1730 e cujo arcabouço se ergueu no século XIX, a capela (Igreja) do Rosário resiste às intempéries do dia-a-dia do Centro de Fortaleza

Rosário de históriastexto [Henrique Nunes]fotos [Mauro Angeli]

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Page 34: Revista Harco #2

Oitizeiro e reis negrosBom, caro leitor, desculpe tantas pro-vocações e informações derramadas acima. Procuramos apenas achar uma forma de despertá-lo quanto ao descuido por que passa toda aquela região do Centro, sempre associada a situações constrangedoras, na verda-de traços da condição histórica de de-sagregação que as vitrines e calçadas hoje tanto querem ocultar. Buscamos apenas alertá-los de que, antes de re-formas e construções megalômanas para os padrões da Província, pode-ríamos cuidar dos pequenos tesou-ros deixados por outras (distantes) administrações. Foi e é assim que muitas cidades ressignificaram seus patrimônios históricos tal como hoje se apregoa aos quatro cantos do mun-do. Esse é o sentido mais evidente do patrimônio, de torná-lo novamente apropriado pela sociedade.

Vejamos: a Praça dos Leões é de 1877. Então, a Igreja do Rosário es-tava lá, ainda que na forma de uma capelinha de taipa feita pelos fiéis da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, 147 anos antes. Está diretamente ligada às origens do maracatu no Estado, através do ritual de coroação do Rei do Congo. Refeita em pedra e cal em meados daqueles 1700, foi matriz da cidade de 1821 a 1854. Nessa época, seu ádrio, no cruzamento da General Bizerril com Guilherme Rocha, era or-namentado por uma árvore, um oiti-zeiro que então “servia de baliza para as jangadas” e ganhou fama de “cida-dão cearense”, até ser derrubado, em 1929, pelo prefeito Álvaro Weyne, em nome de um certo progresso que tar-da em chegar à região. Uma história contada no Fortaleza Velha, de João

Nogueira, e no Fortaleza Descalça, de Otacílio de Azevedo. Segundo este autor, pai do memorialista Miguel Ân-gelo de Azevedo, o Nirez, tratou-se de um “ato de vandalismo em favor dos bêbados de gasolina”, que lhe extir-pou a árvore em cujas raízes escreve-ra seus primeiros versos.

Após sua maior reforma, conclu-ída em 2004, o templo mais antigo de Fortaleza ainda em atividade con-vive com uma praça descuidada, em alguns dias fétida e ao mesmo tempo desumanizada como suas ruas pró-ximas: a do Rosário, propriamente, e ainda General Bezerril, São Paulo, Sena Madureira e a Floriano Peixo-to, mais acima. Aquele calçadão que leva o seu nome abriga os restos de uma história esquecida pela tal For-taleza Nova, entre os fiéis, o pároco e seus auxiliares e ainda a memória, o espírito, de 50 escravos adultos e quatro crianças. Mais uma vez foram estes que a reconstruíram: quando seus corpos foram achados, há alguns anos, eles impediram que a Igrejinha se tornasse mais um descaso forta-lezense, levando a seu tombamento

pelo Departamento de Audiovisual da Secretaria de Cultura do Estado. Quanta ironia. Agora, audiovisual?! Mas o mais lamentável, é que muito pouco se fez para sua real integração à memória da cidade.

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“A igreja é pobre. O movimento é pouco, de gente que vai traba-

lhar. Não temos uma população que more por perto. As missas são mais na Catedral, na Igreja do Patrocínio, que não são muito longe. Só algumas senhoras, antigas religiosas colabo-ram, além dos recursos da diocese, da Catedral. Dá para sustentar a igreja: luz, água, telefone, os três funcioná-rios. Depois da reforma, ela está bem conservada, mas agora que tudo se tornou patrimônio histórico é mais complicado para se mexer. À tarde o Padre Amorim celebrava, mas ele foi transferido. Abrimos até as 17h, com o recolhimento e a adoração do Santíssimo. A igreja foi construída por uma confraria escrava, mas hoje são poucos morenos que freqüentam, todos brasileiros”, considera o Padre Luís Alberto Peixoto, ali desde março do ano passado, após 25 anos na bem mais “badalada” Igreja de Fátima.

Em agosto, a situação se agravou, e a mídia deu destaque: a capelinha fe-chava por cinco dias, devido à insegu-

rança. Um auxiliar, sacristão, foi agredi-do. Alguns meses depois, o Padre Luís confirma que a segurança aumentou. “Não tenha dúvida, esse foi um aconte-cimento isolado, mas alguns fiéis vol-taram a freqüentar com a segurança”. A igreja continua abrindo às 7h20, de segunda a sexta, fechando sábado e re-abrindo domingo, às 7h30min. “Antes, no domingo, recebo cerca de 40 mora-dores de rua, que antes vinham aqui todo dia. Faço uma oração para eles”. A movimentação maior fica para acom-panhar os “terços”, meio-dia e às 15h. “Nossa missão é ajudar o pobre, então eu mesmo dou alguma merenda, uns cinqüenta centavos pro café destes moradores de rua, quando posso”, diz Padre Luís.

A situação física da capela é de aparente ordem, mas esconde pro-blemas. Agente pastoral da capela há quatro anos, Paulo César Martins mostra as infiltrações que atingem o reboco das paredes e o piso, interfe-rindo até nas folhas de ouro das ima-gens de São José, Nossa Senhora das

Dores ou a de Nossa Senhora do Rosá-rio. Ele confirma: “depois de acharem os ossos, é que ela foi tombada”. Mais evidente, no entanto, apenas a antiga cripta do Vice-Presidente da Provín-cia, Major João Facundo de Castro Menezes, assassinado em 1842... “As-sumimos a manutenção, se a Igreja não tiver condições, mas desde 2004 não recebemos qualquer solicitação”, comenta Otávio Menezes, historiador que responde pela coordenação de

Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura do Estado.

Numa cidade escrava do poder e da falta de memória, pouco mudou de fato após o tombamento. “Aqui não passa ninguém para fiscalizar nada desde 2004, e a segurança era precária. Até o fechamento, eu via os assaltantes dividindo os roubos aqui em frente à igreja. A limpeza tam-bém melhorou”, informa Padre Luís. Paulo César não se empolga e nos leva ao segundo andar onde alguns quadros em óleo sobre tela, uma Via-Crucis e alguns religiosos, estão ao Deus dará. Lá de cima, Paulo aponta a precariedade das caixas de som, a flor de lis pintada pelos escravos que a pintura da reforma deixou para o futuro. Quando, quem sabe, pairando entre as suas raízes, a Igrejinha e seu entorno respirem um cenário mais prosaico entre o olor das árvores e a plangência de um chorinho, de alguns versos, das loas de um maracatu.

Raízes e sonhos

Padre Luís Alberto Peixoto: desafios e rotinas à frente da Igreja dos Pretos

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Os folcloristas tentaram a seu modo compreender o Brasil. Foi um primeiro e

grande esforço para buscar na tradição as bases da construção do país, com todos os riscos que uma operação ideológica como essa traz.

Hoje, quando as identidades são contestadas, quando a “bra-silidade”, a “nordestinidade” ou a “cearensidade” são desmontadas, como artefatos ou estereótipos, podemos voltar aos folcloristas, sem pressa e sem preconceitos, e dizer da importância do papel que desempenharam para que chegás-semos ou ponto em que chegamos.

Interessante no percurso dos estudiosos da tradição, o caráter de dança de suas atividades, as idas e vindas, como se estivessem a en-saiar num salão de festas um grande minueto das cortes européias que, de repente, se fundisse com uma ci-randa das praias de Pernambuco.

A idéia de fusão perpassa o tra-balho desses explicadores do Brasil. A partir do que eles propuseram, che-

O eterno retorno da tradição

garam outros estudiosos, mais competentes, talvez, ou muni-dos de outros aparatos e de ou-tros referenciais teóricos, como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque e Gilberto Freyre e começaram a explicar o Brasil para valer.

Os folcloristas ficarão sem-pre na base, como iniciativa pioneira, com todos os aplausos pelos acertos e com todas as críticas pelos reducionismos, pelas generalizações e pelas conclusões precipitadas.

Podemos buscar as raízes dessa curiosidade na Alemanha dos Irmãos Grimm. A tradição foi importante para dar a liga que uma série de reinos e Esta-dos precisavam para se reunir na grande nação européia.

Buscava-se um espírito do povo que estava na legislação e na filosofia.

Podemos encontrar mar-cas desse espírito inquiridor nas

missões dos viajantes. Com outros objetivos, mais de acordo com o cientificismo do século XIX, Gardner,

Agassis, Langsdorf, Spix e Martius, dentre muitos outros, mapearam boa parte do Brasil.

A busca pelo exótico não abria mão do rigor nem da competência. Compreendemos melhor o Brasil a partir desses relatos. Enfatizava-se a terra, e o homem brasileiro continua-va sem uma reflexão mais densa.

Informações que parecem espar-sas ajudam a formar uma idéia de nos-sa cultura embrionária, num instante de prevalência do padrão europeu e de rejeição da contribuição indígena, dos africanos e de seus descendentes.

A Terrinha

O Ceará foi visitado, em tempos dife-rentes, por Koster, por Gardner, por Agassis e pela Comissão Científica de Exploração, em 1859. Essas pesquisas ecoaram nas elites locais que se pre-pararam para dar conta de explicar o que não parecia ser muito interessan-te para a maioria dois viajantes.

O Naturalista Feijó, o Dr. Thèber-ge, os Pompeu, os Studart, João Brígi-do, Antonio Bezerra, e intelectuais li-gados ao Instituto do Ceará tentaram

texto [Gilmar de Carvalho]xilogravuras [João Pedro]

Gilmar de carvalho é professor do curso

de Comunicação Social da UFCJoão Pedro é

xilogravurista em Juazeiro do Norte

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Page 37: Revista Harco #2

enfrentar uma realidade que precisa-va mesmo de muitos braços e muitos cérebros para ser levantada.

No que se refere à cultura, di-gamos, em sua base antropológica, voltando o foco para a atuação do homem e colocando a natureza em segundo plano, prática que posterior-mente se mostrou equivocada, tive-mos o registro, por meio de aquarelas da paisagem cearense por parte de Reis Carvalho, na chamada Comissão das Borboletas, que completará 150 anos em 2009.

O homem

Antonio Bezerra vai fazer da viagem ao norte do Ceará, publicado como folhetim, no jornal Constitucio-nal, em 1864, uma observação mais voltada para o homem. Ele vai falar de artistas, como o que pintou afrescos na igreja de Campo Grande (hoje Gua-raciaba do Norte), menciona a quei-ma de violas, pelos missionários fran-ciscanos, na porta da Matriz daquela mesma cidade e assim por diante.

José de Alencar vai pedir a cola-boração de alguns amigos, inclusive de Capistrano de Abreu, para levantar versões do Rabicho da Geralda, que comenta nas cartas publicadas pelo jornal O Globo, em 1874, enfeixadas no livro O Nosso Cancioneiro.

A história do boi de fama conhe-cido, que atemorizava pelas bandas de Quixeramobim, se inscreve como

narrativa mítica e fantástica daquela importante cidade do sertão central, fundada a partir de fazendas e do ci-clo do gado.

Pode-se considerar o Romanceiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho, publicado em 1903, como o primeiro trabalho totalmente voltado para es-sas questões do folclore.

O Ceará ganha espaço nessa pu-blicação. Aí estão citados violeiros, transcritos fragmentos de desafios, peças da tradição que se decompuse-ram ao longo do tempo.

Rodrigues de Carvalho abre es-paço para a atuação de Gustavo Bar-roso, figura polêmica pelas posições desastrosas que tomou na política, e que purga por isso um imerecido es-quecimento. Barroso vai trazer com o Ao som da viola, de 1921, uma im-portante compilação de parte de nos-sa memória que estaria perdida não fosse esse paciente trabalho de cata-logação.

Nesse mesmo ano, Leonardo Mota inicia com Cantadores uma pro-fícua contribuição que vai se expan-dir até sua morte em 1948.

Leonardo Mota participou de um tipo de evento em gosto àquela época, uma série de conferências na quais os temas levantados seriam levados a um público maior, quase na linha das “aulas espetáculo”, ministradas por Ariano Suassuna.

Entraram em cena Martinz de

Aguiar, mais conhecido como filó-

logo e gramático, que também se

voltou para o estudo das Cirandas

Infantis. Florival Serraine nos deixou

uma Antologia do Folclore Cearense. A

contribuição de Filgueiras Sampaio

se fez maior pelo alcance de levar es-

sas idéias para o universo dos livros

didáticos. J. de Figueiredo Filho veio

do Crato, com inegável competência,

lucidez e textos de grande valia, como

os Engenhos de Rapadura no Cariri, O

Folclore no Cariri, Folguedos infantis

caririenses e Patativa - Novos Poemas

Comentados.Por último a contribuição de Edu-

ardo Campos, com estudos sobre co-

mida, cordel, medicina popular, além

do clássico em que ouviu e transcre-

veu o Cego Aderaldo.Fecham o quadro Henriqueta Ga-

leno com seus Ritos Fúnebres; Nery

Camelo, também conferencista, com

a participação do Cego Aderaldo;

Valdelice Girão autora de um levanta-

mento sobre rendas de bilros; Nertan

Macedo que se ocupou de cangaço e

religiosidade popular e Mozart Soria-

no Aderaldo, viajante pelo universo

das velhas receitas das cozinhas nor-

destinas.A listagem seria exaustiva e esses

nomes e essas obras sinalizam uma

atividade intensa, a envolver pes-

quisadores, temas, visões de mundo

e apontando para um mapeamento,

ainda que incompleto.

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Page 38: Revista Harco #2

Poderíamos arriscar que boa parte dessa produção é deve-dora de Juvenal Galeno, marco de uma nova atitude em relação a uma sintonia com a voz do povo para o fazer poético que o imorta-lizou.

Depois de uma estréia com um livro fora de lugar, editado no Rio de Janeiro e trazido na bagagem do jovem das elites cearenses, mais um a tentar carreira literária na Corte, veio a Comissão Científica, a conver-sa com Gonçalves Dias e a mudança de rumo de uma produção que deixa-ria marcas fundas na cultura cearen-se e dialoga com Patativa do Assaré, muitos anos depois, por exemplo.Juvenal Galeno como que desen-cadeia e estimula esse ciclo com sua presença longeva e com seus poemas que tematizam e ecoam um sertão mítico e ancestral.

Esses estudos se beneficiam do trabalho profícuo do folclorista po-tiguar Luís da Câmara Cascudo. Ele vai atualizar parte dessas reflexões, com sua erudição, com a troca incan-sável de correspondências com meio mundo e com a viagem de Mário de

Aprendizes de feiticeiros

Andrade ao Norte e Nordeste, em 1927.

Mário passa, rapidamente, por Fortaleza e fotografa roupas nos varais. É no Rio Grande do Norte, de seu amigo e interlocutor Câ-mara Cascudo, onde ele vai ficar a maior parte do tempo.

Vale a pena insistir nesse ponto: eles eram amigos e interlo-cutores, trocavam correspondên-cia. Não vale colocar, como que-rem alguns, equivocadamente, Cascudo como o anfitrião que aprendeu tudo com o “turista aprendiz”. Essa é a visão dos centros hegemônicos e não corresponde à realidade.

Mário também tinha uma excelência de forma-ção que faz com que ele não apenas colha e se extasie diante do que viu, mas cata-logue, disseque e vá fundo dos cocos como danças dramáticas à recolha do cancioneiro que ele empreendeu, por conta da formação musical que deti-nha e da curiosidade pelo cordel, no

que foi ajudado por outro jo-vem “promissor”: Heitor Villa-Lobos.

Cultura popular

Tudo isso se dilui e se esgarça na composição de uma visão da tra-dição cearense até os anos de 1970, quando entra em cena o CERES – Centro de Referência Cultural.

A visada passou a ser marxista, superando o conservadorismo de direita da maior parte da reflexão feita até aqui. Apesar da ditadura militar, do Governo Adauto Bezerra (1975/1978) e do clima repressivo, as iniciativas no campo da tradição encontravam respaldo no Governo Geisel.

Os governos anteriores (Médici e César Cals) inauguraram o centro de artesanato, na antiga Cadeia Pública e trouxeram uma valorização do arte-sanato, por meio das feiras (Exanor).

Agora era a vez de uma interfe-rência mais consistente. Organizou-se uma verdadeira expedição que ma-peou o Ceará, por meio de fotografias, da entrevista a artistas e artesãos e estabeleceu-se uma base para oi lan-çamento dos dois volumes da Antolo-gia da Literatura de Cordel. O CERES era um grupo que tinha uma idade de atuação, impressa pelo ideário do PC do B. Pode parecer paradoxal, mas era uma opção pela atuação no cam-po da cultura, como infra-estrutura para mudanças e interferências mais fundas na cena política.

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O CERES rompeu com a idéia equivocada de que tradição era coisa de direita e colocou artistas e artesãos como possíveis artífices de mudanças e como agentes de uma resistência cultural.

Era um modo novo de compre-ender velhas manifestações, que se renovavam pelo aporte teórico e pe-las estratégias de mobilização que desencadeavam.

De certo modo, o velho CPC se atualizava em plena ditadura militar. As lideranças eram a vanguarda des-se movimento, sem a desenvoltura do Brasil antes do golpe, mas com uma atuação talvez mais consistente.

São filhos do CERES, Oswald Bar-roso, Edvar Costa, Roberto Aurélio Lustosa da Costa, irmão do Secretário de Planejamento do Governo Adau-to Bezerra e quem abriu portas para essa possibilidade de atuação. Depois veio Sylvia Porto Alegre, mas esse é um segundo instante do CERES.

Curioso como o Centro rendeu publicações. Oswald Barroso em par-ceria com Rosemberg Cariry criou o jornal Nação Cariri, desativado o CE-RES, no início dos anos de 1980. Os dois lançariam um livro seminal: Cul-tura Insubmissa, também em 1982. Sylvia Porto Alegre trouxe a contri-buição da antropologia e lançou Mãos de Mestre, em 1994.

Oswald continuou seu projeto de estudo dos grupos de folguedos, que lhe rendeu um mestrado com a disser-

tação, depois livro Reis do Congo e um doutorado na Sociologia da UFC sobre os brincantes do teatro popular de rua.

Cariry foi para o cinema e contri-bui para uma filmografia cearense, a começar pelos documentários, pre-miados pelo IPHAN e entrando na fic-ção com vários títulos.

Barroso foi convocado pela Se-cult, em 2006, para escrever Memória do Caminho, espécie de caderneta de campo de suas viagens para mapear o Ceará, agora sob a égide de um go-verno social-democrata (Lúcio Alcân-tara, 2003/2006).

No final dos anos de 1990, entram em campo outras visadas teóricas, como a Semiótica da Cultura, trazida da PUC de São Paulo por Tadeu Feito-sa, Wellington Jr, Kalu Chaves, Gabrie-la Reinaldo e Gilmar de Carvalho.

As pesquisas sobre a tradição ga-nham novo impulso com a antropo-logia de Sulamita Vieira e Ismael de Andrade Pordeus Jr, a etnomusicolo-gia de Elba Braga Ramalho, as teorias literárias por Martine Kunz e a visua-lidade de Aléxia Brasil.

Entra em atividade, em 2001, o LEO - Laboratório de Estudos da Ora-lidade, entidade que agrega professo-res da UFC e UECE.

Já não existe mais espaço para uma discussão mais globalizante ou totalizadora. É tempo de estudos mais recortados, de pesquisas com foco mais restrito e, talvez por isso

mesmo, mais apai-xonantes e impac-tantes.

Cultura de editais

Cascudo e Mário continuam a ser refe-rências. Os folcloris-tas nunca foram tão lidos, mas a prática é outra. Quebrou-se a ingenuidade de estar à frente, como o farol. Hoje, mais que nunca, se acredita na possibi-lidade dos movimentos sociais e dos novos ato- res em cena política saberem escrever seus “scripts”.

Vivemos tempos de cultura de editais. Os artistas precisam da es-trutura de empresas de captação e de treinamentos para o preenchimen-to de formulários e da prestação de contas. A idéia romântica de destruir o Estado de dentro de suas engrena-gens fez água. No final dos anos 1990, veio a valorização do chamado Patri-mônio Imaterial.

Hoje, se quer atuar de modo mais pontual e contundente. O artista po-pular não pode ser visto como um ser ingênuo. A tradição passa a ser enten-dida como o suporte das vanguardas, desde que Picasso falou das máscaras africanas para explicar o cubismo.

A ciranda da tradição ganha novo

ritmo. Ela continua a ser feita em espaços públicos, apela para a solidariedade entre os brincantes, mas a batida é outra, com a amplifi-cação do atabaque e com a entrada em cena de samplers, o que vai criar um som “fusion”, no melhor estilo do “mangue-beat”, que já virou, quem di-ria, tradição.

E assim, entre rabecas, perfor-mances, experimentações, bandas cabaçais, penitentes e visualidades outras, entre assimetrias e tensões, cria-se um novo instante dessas inter-seções da tradição com o mercado, do conflito entre criar e diluir ou copiar. O feito à mão tem espaço na excessiva globalização e passa a ser valorizado. Qual será o próximo capítulo dessa trama da cultura?

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Zumbi de cada dia

O mês de novembro último foi re-cheado por alguns marcos sim-bólicos que evidenciaram as

discussões em torno da tão almejada igualdade racial. No início do mês, a eleição do senador Barack Obama para presidente dos Estados Unidos fomen-tou ainda mais um debate que já tinha ganho a esfera internacional meses antes, durante a campanha presiden-cial americana. A vitória aconteceu no mês em que acontece, no Brasil, o Dia Nacional da Consciência Negra – 20 de novembro. A data é uma lembrança ao assassinato de Zumbi dos Palmares, em 1695, símbolo da luta dos movi-mentos negros por igualdade racial. Por todo o Brasil, registraram-se ações em torno da data, tanto por parte de esferas governamentais, quanto pela sociedade civil.

Em um país que se firmou e cres-ceu em cima de séculos de trabalho escravo e tráfico negreiro, os debates ainda circulam questões afirmativas sobre o que se acostumou a chamar raça negra. Não foi à toa que a Praça do Ferreira, encravada no Centro da cidade e por onde passam milhares de fortalezenses por dia, foi escolhida para ser o principal palco montado na Capital cearense para as festividades em alusão à Semana da Consciência Negra, de 14 a 20 de novembro. A in-tenção dos organizadores do evento, realizado pela Prefeitura de Fortaleza em parceria com entidades da socie-dade civil, segundo o Assessor para Políticas Públicas de Igualdade Racial do gabinete da prefeita, Luiz Bernar-do, era que os negros se aproprias-sem dos espaços públicos da cidade. “Ainda temos a idéia de que os negros são invisíveis e ainda existe o discur-so de que Fortaleza não tem negros.

Mas há sim. Os negros dessa cidade estão principalmente nas periferias. Queremos trazê-los para o centro do debate, onde as coisas acontecem”, frisa Bernardo.

Ouvir falar em políticas públicas voltadas para negros é algo recente, mas que vem tomando corpo. “Essa po-lítica é extremamente nova. A partir do governo Lula, ela passa a ter um novo peso com a criação da Secretaria Es-pecial da Igualdade Racial. Em âmbito local, a força chega com a gestão de Lui-zianne Lins. Está em fase de construção pelo executivo municipal a Coordena-doria de Políticas Públicas de Promo-ção da Igualdade Racial (Coppir). Essa foi uma demanda do Orçamento Parti-cipativo, o que mostra o envolvimento da população no processo de criação da Coopir”, enfatiza o assessor.

Para o presidente do Fórum Es-tadual de Entidades Negras do Ceará (Feeneci), que congrega 30 entida-des, Paulo Rogério Gomes de Sousa, mesmo em governos progressistas como os atuais, as boas iniciativas es-barram na burocracia que vigora no executivo, legislativo e judiciário. “Re-conheço que tivemos avanço, mas se estivesse tudo muito bem obrigado, não tinha porque o movimento negro existir. Mesmo com as leis criadas ao longo dos anos em uma tentativa de inclusão dos negros, a grande maio-ria da população continua excluída”, afirma, ressaltando que as políticas públicas podem ser novas, mas a re-sistência e a luta negra datam desde o início da escravidão no país.

Políticas afirmativas

Entre os inúmeros temas que es-tão em pauta e na fila para virar, na prática, política pública, está a inclu-

texto [Kélia Jácome]ilustração [Vinício Del Pinto]fotos [Gustavo Pellizzon e Rubens Venâncio]

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são da história e da cultura africanas e afro-brasileiras no sistema de ensi-no médio e fundamental, tanto na es-fera pública quanto privada. O reco-nhecimento de que a luta dos negros desde os primórdios do país merece figurar nos livros escolares virou lei, a Lei 10.639, promulgada em 9 de ja-neiro de 2003. Mas, apesar de estar prestes a completar seis anos de vida, ela ainda não saiu do papel. “Não dava para essa lei ser aplicada imediata-mente. Ela demanda formação de professores, entretanto as próprias universidades não estavam prepara-das para formar esses profissionais. Atualmente, temos 300 professores da rede pública municipal formados, inicialmente, em História e Geografia. Mas é importante frisar que o ensi-no da cultura e história afro será di-recionado para todas as disciplinas. Uma vez que o tema é transversal”, explica Bernardo. Já de acordo com o presidente da Feeneci, existe falta de

vontade política e um racismo insti-tucionalizado no governo e na socie-dade como um todo. “Mesmo quando conseguimos que uma lei como essa seja aprovada, ela não vira realidade. Temos que brigar muito para que isso aconteça. Ainda antes da aprovação, o texto sofre várias emendas que aca-bam desvirtuando a intenção origi-nal”, critica.

Apesar de haver projeções dando conta que a população negra e parda no Brasil é maioria, não existem da-dos concretos, nem estimativas segu-ras sobre esses números, já que, nos censos, é o pesquisado que auto defi-ne sua raça. O que acaba virando uma questão subjetiva. “A própria popula-ção não se reconhece negra porque não existem referenciais”, considera o assessor. Ele frisa que é preciso que esses negros sejam localizados. “Esta-mos lutando para que todas as fichas escolares e hospitalares tenham a raça como informação. Começamos a

usar dados do Cadastro Único do Pro-grama Bolsa Família para achar essas pessoas. Sem dados concretos fica mais difícil transformar as políticas públicas em realidade”, explica.

Articulações

Enquanto essas informações não chegam aos bancos de dados do po-der público, a Coordenadoria de Polí-ticas Públicas de Promoção da Igual-dade Racial (Coppir), mesmo em fase de construção, começou a se articular desde 2007. Todas as segundas-feiras, representantes de cerca de 32 entida-des ligadas ao movimento negro se encontram no prédio do gabinete da prefeita para discutir os rumos que a coordenadoria deve tomar. “Embora esses encontros aconteçam na prefei-tura e a Semana da Consciência Negra tenha sido promovida pela Prefeitu-ra, essa é uma temática que extrapola questões ideológicas. Tanto é assim, que pessoas que não são de partidos da base aliada participam das discus-sões”, assegura Luiz Bernardo.

Paulo Rogério concorda, mas com ressalvas. Ele diz que, embora toda iniciativa de debate sobre a te-mática seja válida e importante, há um certo modismo nas discussões promovidas em âmbito institucional. “O debate fica no academicismo e não desce para o mundo real. Falam como defensores da causa. Colocam o movi-mento como coadjuvantes e como se fosse uma benesse e uma concessão tratar da questão. Quando passam os eventos, tudo continua na mesma. O trabalho precisa ser diário”, contesta.

[Convivência]

Diálogo, conferência e projetosDescontentamentos à parte, o presidente do Fórum Estadual de Entidades Negras do Ceará admite que o diálogo entre a sociedade civil e o poder público municipal e estadual já foi iniciado. “Começamos uma interlocução com o Governo do Estado, através do Museu do Ceará, onde foi realizado o seminário Emi Yio Já Oro – Comerei seu Conhecimento, em comemoração à Semana da Consciência Negra. A nossa vontade é que seja criado o Museu do Movimento Negro, a partir desse diálogo. Com a Prefeitura de Fortaleza, a criação da própria Coopir foi demanda do movimento negro a partir do Orçamento Participativo”, afirma Paulo Rogério.

O próximo passo a ser dado pelo poder público, de acordo com Luiz Bernardo, é a construção, em janeiro ou fevereiro, da Conferência Municipal da Igualdade Racial. Até 30 de março, deve ser realizada a 2ª Conferência Nacional da Igualdade Racial. “A 1ª aconteceu em 2005. Com esse encontro nacional que se avizinha devemos dar início à criação de um Estatuto da Igualdade Racial, aos moldes do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. Em âmbito municipal, temos o grande sonho de trabalhar o Plano Municipal da Igualdade Racial. Vamos chegar lá”, conclui. Até lá, seminários de sensibilização voltados para profissionais da saúde, educação e esporte estão sendo realizados, visando à permanência do debate em pauta. Na esfera da sociedade civil, Paulo Rogério adianta que deverá ser produzido, em 2009, um projeto econômico, político e social para ser apresentado à população negra, a partir do Congresso de Negros e Negras do Brasil (Conneb).

O grupo mineiro A Quatro Vozes no Dia da Consciência Negra.

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texto [Frei Hermínio]Ilustração [Vinício Del Pinto]

Reformar uma língua não é fácil, mas é possível e factível. Línguas

como o alemão, o espanhol, o fran-cês e até o turco foram reformadas. Kemal Ataturk, em 1928, com um de-creto, trocou o alfabeto árabe da lín-gua turca pelo alfabeto latino. Uma geração sofreu as conseqüências.

Em princípio, quanto maior o número de países envolvidos, mais difícil é mudar algo numa língua, por causa das diferenças fonéticas, há-bitos lingüísticos... Há, porém, uma admirável exceção da regra: o espa-nhol, falado em mais de 20 países, com 22 Academias de Letras, o triplo dos países de língua portuguesa, é unificado do ponto de vista da grafia. O dicionário oficial da Real Academia Espanhola é reconhecido e aceito pe-las Academias de todos os países que participam anualmente de um Con-gresso Lingüístico em que são apre-sentados, discutidos e aprovados no-vos termos da língua.

A árdua caminhada para o Acordo

Todas as tentativas de organi-zar graficamente a língua portugue-sa e unificar a sua grafia ocorreram ao longo do século XX, entre 1910 e 1990. Só em 1990 conseguiu-se fazer um Acordo, embora com dificuldade e a duplicidade de grafia e acento, que impedem a real e plena unifica-ção da língua.

A organização e/ou a reforma de uma língua tem dois caminhos pos-

síveis: a fonética, que se atém à pro-núncia das palavras e a etimologia, intrinsecamente ligada à origem das palavras e por isso tenta conservar a grafia de suas raízes.

Uma olhada mesmo superficial na história das tentativas de organi-zação da nossa língua mostra que a discussão sobre “fonemas” e “grafe-mas” foi sempre o ponto nodal nas tratativas dos acordos de unificação. Em todas as comissões, o grupo sem-pre esteve dividido entre “foneticis-tas” e “etimologistas”, independente-mente de que nação provenham.

A organização da língua em 1911

Foi Portugal quem primeiro organizou a língua portuguesa, no-meando para isso uma Comissão em 1910. Após mais de um ano de acalorados debates, venceu a tese do conhecido lexicógrafo português Aniceto Reis Gonçalves Viana, que propunha a simplificação da gra-fia da língua com a eliminação dos grupos de consoantes: ct (exemplo: acto, facto, recta...); ph (exemplo: physica, phase, pharmácia, photo...); rh (exemplo: rheumatismo, rhinite, rhombo...); th (exemplo: theatro, thema, theoria, thermas, these...). Ele propunha, outrossim, a eliminação do y (de palavras como: lyrio, lágry-ma, mycose, thyreoide...) bem como supressão das consoantes não pro-nunciadas (como em: acção, sector, baptismo, factor...)

A proposta de Aniceto Reis foi vencedora, e Portugal oficializou – sob o protesto de muitos – a simplifi-cação do português em 01/11/1911. O Brasil, embora já tivesse desde 1897 a Academia Brasileira de Le-tras, só recebeu o comunicado sobre

Frei Hermínio Bezerra de Oliveira é tradutor da Língua

Portuguesa em Roma e autor do livro: Acordo

Ortográfico da Língua Portuguesa, que será

editado proximamente, e colunista do jornal

Diário do Nordeste.

O processo do acordo ortográfico

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Page 43: Revista Harco #2

essa organização da língua portu-guesa quando os trabalhos já esta-vam bem adiantados.

Não tendo participado dos tra-balhos de organização da língua – sendo a primeira legislação, não se pode falar propriamente em refor-ma – o Brasil recebeu as mudanças feitas, com relutância e resistência de muitos setores. Só em 1915, apro-vou, com dificuldade, as decisões de Portugal.

A oposição a essa organização da língua portuguesa, privilegiando a fonética em detrimento da etimo-logia, cresceu tanto no Brasil que, em 1919, o poeta Osório Duque Estrada, o autor da letra do Hino Nacional Brasileiro, através da Academia Bra-sileira de Letras, conseguiu a revoga-ção dessa reforma da grafia do por-tuguês, e voltamos à grafia vigente em 1910. Desde 1919, passamos a ter uma grafia em Portugal e outra no Brasil. No laboratório de línguas vivas da universidade de Lovaina, onde estudei, na relação das 26 lín-guas que se podia estudar ali consta-vam: brasileiro e depois português, duas línguas diferentes. Parafrase-ando o dramaturgo G. Bernard Shaw, podemos dizer: “O Brasil e Portugal são dois países separados pela mes-ma língua”.

O primeiro Acordo Ortográfico em 1931

A partir de 1929, começaram os entendimentos entre os dois países para estabelecer um modelo orto-gráfico aceito por todos, de modo a evitar a incômoda inconveniência de duas grafias para a mesma língua, existente desde 1919.

Após longas e difíceis tratativas, o Acordo de unificação da língua foi

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assinado em Lisboa em 30/04/1931. Na prática esse Acordo ratificava o que Por-tugal propusera em 1911, com pequenos ajustes. O Acordo tinha a resistência de diversos grupos em ambos os países.

Em 1932 deu-se no Brasil a chamada Revolução Constitucionalista com Getúlio Vargas. A nova Constituição lançada em 1934 extinguiu o Acordo de 1931 e res-taurou a ortografia vigente em 1891, sob os protestos da Academia Brasileira de Le-tras, professores, universidades, juristas...

O segundo Acordo Ortográfico em 1945

No início da década de 40, Portugal e Brasil decidiram tentar de novo o Acordo Ortográfico para unificar a grafia. Após anos de estudos e debates, organizou-se um vocabulário comum da língua. Mas na hora de assinar o Acordo, esse virou desacordo, pois o Brasil era partidário da organização da língua tal como fizera Portugal em 1911 e fora ratificado em 1931, que privilegia a fonética e Portugal era a favor da conser-vação das consoantes não pronunciadas, privilegiando a etimologia. Já em relação ao trema, era o contrário: Portugal queria retirar e o Brasil conservar.

O Acordo foi assinado em setembro de 1945, mas com uma cláusula de respeito mútuo às opções divergentes. Houve um Acordo assinado, mas não a tão desejada unificação da grafia da língua. Ou seja, en-quanto aqui se escreve ação, ativo, batis-mo, fator e ótimo, em Portugal escreve-se acção, activo, baptismo, factor e óptimo. E, em parte, continuarão, pois batismo/baptismo, fator/factor, ótimo/óptimo e numerosas outras palavras terão as duas grafias no atual Acordo.

Em 1971, no governo do General Emílio G. Médici, foi feita no Brasil uma pequena reforma em que se retirou o tre-ma de palavras como: saudade, vaidade... Foram eliminados acentos circunflexos

de palavras como: almoço, doce, ele, en-dereço, gosto... E caiu o acento grave dos advérbios terminados em “mente” e de diminutivos como “avozinha’... Mais tarde, em 1975, houve outra pequena alteração, que só foi aprovada pelo presidente José Sarney em 1986.

O terceiro Acordo Ortográfico em 1990

Em 12/10/1990, após longas e aca-loradas discussões, foi assinado por sete países de língua portuguesa (Timor Leste não tinha representante) o terceiro Acor-do Ortográfico da língua portuguesa e o primeiro que faz jus ao nome, embora li-mitadamente.

A partir das dificuldades constatadas no passado, o grupo logo admitiu o óbvio: é impossível legislar em termos de unifi-car as variações fonéticas de uma língua falada em quatro continentes.

Constatada a impossibilidade, a saída foi admitir da dupla grafia, sobretudo com relação às consoantes mudas (disso trata a Base IV do Acordo, por exemplo: afetar e afectar) e a dupla acentuação (assunto da Base XI, por exemplo, nós escrevemos e pronunciamos Antônio, e eles, António).

No entusiasmo da assinatura do Acor-do, a Comissão esqueceu a lentidão com que se aviam decisões em nossos países e previu que o Acordo entraria em vigor em 01/01/1994. Essa entrada em vigor não aconteceu em nenhum dos países. No Bra-sil, em 2006, foi anunciada para janeiro 2007, depois adiada para janeiro de 2008 e em seguida para janeiro de 2009.

Vantagens de desvantagens do Acordo

A unificação da língua é sempre uma vantagem para os que falam e, sobretudo, para os que por ela se interessarão. A uni-ficação, a meu ver, abre uma possibilidade de reivindicação de que seja uma das lín-guas oficias da ONU, o francês e o alemão,

duas delas, são menos faladas do que o português. A unificação também será fa-tor de maior aproximação e unidade da comunidade lusófona mundial.

As desvantagens são o incômodo de nos adaptarmos à mudança. Haverá, sim, um período de confusão, mas ele será su-perado. Os brasileiros e portugueses terão que se adaptar ao fenômeno da dupla gra-fia e aos homônimos que surgirão, como: conceção e concessão, pois concepção terá grafia dupla, com e sem o “p”; receção e recessão, pois recepção terá grafia dupla, com e sem o “p”.

Com o uso opcional do apóstrofo, os brasileiros, que quase não o usam, deve-rão aprender a usá-lo.

Outra desvantagem é a extinção do trema, ele tinha a importante função de ajudar à boa pronúncia de certas palavras, o que tornava a língua mais clara e elegan-te, embora, às vezes, fosse usado com pe-dantismo. Uma dificuldade: as quase 100 normas das XXI Bases, não atendem a to-dos os casos concretos. As Academias de Letras deverão emitir pareceres e normas complementares.

Não posso deixar de me referir a dois bravos lutadores em favor desse Acordo, mas, sobretudo, entusiastas da unificação de nossa bela língua, Júlio Dantas, escritor e dramaturgo português autor da famosa peça “A Ceia dos Cardeais”, que o grande Procópio Ferreira encenou muitas vezes. Ele foi embaixador de Portugal no Brasil de 1941 a 1949. Do lado do Brasil, lem-bro outro grande entusiasta da unificação de nossa língua que foi Antônio Houaïs, com quem uma vez, em 1989, conversan-do sobre o assunto, me disse: “A grande frustração de minha vida profissional é não termos conseguido unificar a nossa língua portuguesa”. Ele morreu em 1999, ainda na esperança de ver o Acordo posto em prática.

Page 45: Revista Harco #2

Noel Rosa foi contra o acordo or-tográfico de Getúlio, em 31: quis

saber do Picilone de Yvone, a irmã de um amigo. Não adiantou, o y caiu mesmo. Mas agora voltou. Estava cer-to o Poeta da Vila. Ou não. Vá saber. Ou você não tem ideia do quão incon-sequente pode ser este novo voo sem paraquedas que nos obrigará (...) a escrever assim a partir deste janei-ro, ainda tendo o trabalho extra de orientar nosso antes sábio corretor de texto digital? Pela Harco, tirando a broma do título deste comentário, as coisas ficam, por enquanto, como não mais estarão. Pelo menos até alguém nos convencer do contrário, quem sabe daqui a 2013, quando se esgota

o prazo de transição. Afinal, ainda nos parece quente a necessidade de man-ter um trema e um chapeuzinho neste vôo inconseqüente do Acordo Orto-gráfico da Língua Portuguesa. Afinal, não só navegar é preciso.

Ai, Brasil... Ai, Portugal. Quantas diferenças. Quantas semelhanças. A língua, a “última flor do Lácio”, uma delas. Sim, parecida, diferente, próxi-ma. Aprendi nos meus breves conta-tos com Saussure (sim, o velho Curso de Lingüística Geral) algo sobre fala, língua, variantes, escrita. “Na língua, só existem diferenças”, escreveu. E normas, arbitrariedades. Em nosso caso, vulgares desde sempre, talvez tentando nos reaproximar do belo latim clássico, deixando de ser os “in-

cultos”, ainda que também “belos”, segundo os versos de Olavo Bilac no parnasiano Língua Portuguesa. Sim a língua muda, poucos escrevem “nos-sa língua portuguesa” como Bilac ou Camões. Quantos escreverão corre-tamente essa nova norma culta? Por que devemos aceitá-la? Para demons-trar nossa atualidade ou mera sub-missão?

Discutido por intelectuais da en-vergadura de Cid Carvalho, Myrson Lima, Ítalo Gurgel e L.G. de Miranda Leão, entre outros, ainda em novem-bro do ano passado, em convocató-ria do professor Tarcísio Cavalcante, através da Academia Cearense da Língua Portuguesa, o Acordo sofreu

críticas até mais incisivas que as de Noel. Para a estupefação dos conser-vadores, que não toleram discutir sobre o que já está estabelecido, que não vêem nesta uma função do jor-nalismo, seremos impertinentes, no momento em que o Acordo Ortográ-fico da Língua Portuguesa se mostra inevitável. Assim, mesmo que tardio, coloco-me contra o acordo, estabe-lecido há 18 anos. Tempo suficiente para que houvesse uma maior de-mocratização de suas prerrogativas, mais discussão, ainda mais em tem-pos da internet. Mesmo assim, nada mudou. Os gabinetes decidiram, Lula assinou embaixo e agora teremos brasileiros, portugueses e demais membros da “comunidade lingüís-

tica” que engolir as transformações acordadas pelos sábios. Mesmo sa-bendo que muitos afro-portugueses resistem ao uso do Português.

Saramago, Cony e João Ubaldo fo-ram alguns dos que criticaram o acor-do, como Fernando Pessoa, em 1911. “Sobre as vantagens da uniformização ortográfica estamos, creio, todos de acordo; não o estamos sobre a orto-grafia que haja de ser a uniforme”, es-creveu o poeta português. Continuava Pessoa: “a ortografia é um fenômeno da cultura, e portanto um fenômeno espiritual. O Estado não tem direito a compelir-me a escrever numa or-tografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que

não aceito”. E ain-da: “No Brasil, a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de as-sente em acordo entre os governos

português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa que o Estado nada tem a um povo que a repugna”.

Estamos agora diante de um pro-cesso de reescrita incompleto e ana-crônico. Mesmo justificável em algum ponto pela etmologia, praticamente seremos estimulados a reaprender a escreveralterando formas consagra-das de acentuação, como as de alguns ditongos, ou regras de hifenização. Qual o sentido de, no caso brasileiro, deixarmos de lado o pára distinto da preposição? Portugal manifestou que a mudança integra uma internacio-nalização da língua. Aparentemente, ganharemos algo com isso, a longo prazo. Mas sob que riscos, que preju-ízos - materiais, lingüísticos? Quando se pensa que esta ciência avançou em direção à fala, ao respeito às prosó-dias, sotaques e até diferenças regio-nais de vernáculo, esta nova tentativa de uniformização retrocede não me-nos do que 509 anos. Para o cresci-mento da Flor.

O voo para a língua O professor Tarcísio Cavalcante explica aos acadêmicos da ACLP o novo acordo ortográfico: colonialismo ou internacionalização?

texto [Henrique Nunes]fotos [Mauro Angeli]

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Page 46: Revista Harco #2

[Música]

Embornal matreiroAutor de belas letras e harmonias identificadas com as coisas bonitas e verdadeiras da natureza e de outros aspectos da vida, o cantor e compositor Fernando Rosa lança seu segundo CD, Embornal do Tempo, dia 15 de fevereiro, no Mercado dos Pinhões. Deste embornal saem xotes e outras levadas nossas, um olhar bem mais regionalista que o da sua estréia (Guaramiranga), com arranjos de Tarcísio Sardinha e participação de músicos como Alves Nascimento

(sanfona), Renato Campos e Aroldo Araújo (baixo) e Hoto Júnior (percussão). O pernambucano Maciel Melo faz um duo no xote “Acredite, meu amor”. Xangai, no galope “Canto Sombreado”. A viola de Sardinha guia a toada “Invernada” e adorna a cantiga “Esteira de Flores”. Adelson Viana traz os tons menores da sua sanfona para os bonitos contornos trágicos de “Águas do Esquecimento”. A alegria flui brejeira no maracatu “Arco da Aliança”, parceria com Lenine Rodrigues, e na edublobiana “Coco de Embalo”, talvez a mais completa deste álbum que dignifica a música nordestina com o tradicional lirismo cearense e a sofisticação deste músico da nova geração com muita garra, talento e personalidade. Embornal do Tempo está à venda na escola de música Cante e Toque (Av. 13 de Maio, 2382, Benfica). Contatos: 85-8807-058709 e [email protected].

[Mídia]

Frágeis irmãosSob a inércia criminosa da ONU, o mundo assistiu à continuidade do genocídio de Israel contra os palestinos, mais uma vez sob a cumplicidade norte-americana. Desrespeito

à soberania palestina, a acordos humanitários, a muitos dos votos para Obama, inclusive. Israel usou armas devastadoras como o fósforo branco e o Explosivo de Metal Denso Inerte (DIME, em inglês). Harco rompe o silêncio da grande mídia e sugere que os leitores acompanhem este e outros temas que abalam o mundo ao nosso redor, em sites como http://www.idelberavelar.com/, www.cloacanews.blogspot.com e ainda www.luisnassif.com.br, www.paulohenriqueamorim.com.br e www.viomundo.com.br

Grande, irmãoE começa mais um Big Brother. Entre tantos filmes, livros, revistas, apresentações cênicas, entre tantos projetos interessantes por criar, o país se volta, por meses, ao sonambulismo estéril de um reality show recheado de apelos que não levam a lugar nenhum, valorizando estereótipos e, claro, muito merchandising. Tudo bem, você pode até ver uma ou outra vez. Mas continuar dedicando seu tempo a este tipo de programação... George Orwell que o perdoe, mano.

[Ambiente]

Acordo ambiental

Bombas de postos de Fortaleza, Belém e Recife receberão o diesel S-50, em maio. O novo combustível contém 50 partes de enxofre por milhão (ppms), enquanto o diesel do interior do país tem a absurda marca de 20 mil ppms e o das capitais, 500 ppms. Com o S-50, importado pela Petrobras, garante-se uma redução de até 10% da emissão de poluentes na atmosfera. Não é muito, mas é um começo. Pena que o prazo estipulado em 2002 pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para que a indústria automobilística criasse motores compatíveis, janeiro, não tenha sido cumprido. Mesmo assim, desde o início do ano, ônibus urbanos do Rio e de São Paulo minimizam este descaso, obedecendo a um Termo de Ajustamento de Conduta definido pelo Ministério Público Federal. Curitiba passa a adotar a medida em agosto. O novo prazo estipulado é 2012. Será que a indústria não poderia

antecipar este retorno social, ambiental? E as prefeituras, além de regulamentar a tempo o uso do S-50, não poderiam determinar um controle mínimo dos níveis de emissão de gases tóxicos, conforme a legislação?

[Patrimônio]

Apoio materialSaiu a relação dos projetos contemplados pela Secult, no II Edital de Apoio à Preservação do Patrimônio Material, nas categorias Edificações, Preservação de Acervos Museológicos e Educação Patrimonial. Dos 12 inscritos, foram selecionados: Um Novo Olhar na Terra da Poesia, da Fundação Balceiro de Cultura Popular, de Assaré; Tombamento e Inventário do Acervo da Associação de Amigos do Museu Nogueira Machado, da Associação de Amigos do Museu Nogueira Machadado, de Caririaçu; Restauro do Acervo do Museu Histórico do Crato, pela Prefeitura de Crato; Restauro e Requalificação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de ITANS, pela Prefeitura de Itapiúna e Nosso Patrimônio, Nossa História, da Prefeitura de Senador Pompeu. Os projetos serão implantados com recursos da ordem de R$ 300 mil, oriundos do Fundo Estadual de Cultura – FEC.

[Literatura]

O ano do forteEm 2009, a Academia Brasileira de Letras promoverá uma programação em homenagem a Euclides da Cunha, devido a seu centenário de morte. O Ano Euclides da Cunha coincide com o primeiro ano da gestão da nova diretoria que tem nomes como Ivan Junqueira, Evanildo Bechara e Nelson Pereira dos Santos. Euclides Vive! deverá ser o nome de uma exposição dedicada ao autor de Os Sertões. Que venham os concursos em torno de sua obra!

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