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Revista Pandora Brasil - Nº 31 Junho de 2011 - ISSN 2175-3318 “A Magia do Teatro” 1 Revista Pandora Brasil Índice Bunraku: Um Panorama Histórico do Teatro de Bonecos Japonês ___________________________________________________________________________ Higor Branco Gonçalves * Resumo: Já há um bom tempo o Oriente atrai a atenção do homem ocidental e povoa seu imaginário como sinônimo de exotismo. Relativamente pouco exploradas, as culturas orientais são com frequência alvo de desconhecimento e mistificação. Nesse sentido, o presente artigo visa traçar um conciso panorama histórico que abrange desde as formas rudimentares até a contemporaneidade do bunraku, uma arte de teatro tradicional do Japão e que até o momento conta com pouquíssimo material teórico escrito em língua portuguesa. * Tradutor nos pares de idiomas inglês-português e francês-português, revisor, professor das línguas supracitadas e autor do blogue carrolliano The Bloggerwocky, onde escreve não só análises sobre aspectos literários dos livros Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho como também a respeito de outros assuntos diversos que tenham relação com essas obras. Atualmente, é graduando em Letras Tradução pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (licenciatura inglês/português e bacharelado francês/inglês/português).

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  • Revista Pandora Brasil - N 31 Junho de 2011 - ISSN 2175-3318 A Magia do Teatro

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    Revista Pandora Brasil

    ndice

    Bunraku: Um Panorama Histrico do Teatro de Bonecos Japons

    ___________________________________________________________________________

    Higor Branco Gonalves*

    Resumo: J h um bom tempo o Oriente atrai a ateno do homem

    ocidental e povoa seu imaginrio como sinnimo de exotismo.

    Relativamente pouco exploradas, as culturas orientais so com

    frequncia alvo de desconhecimento e mistificao. Nesse sentido, o

    presente artigo visa traar um conciso panorama histrico que abrange

    desde as formas rudimentares at a contemporaneidade do bunraku,

    uma arte de teatro tradicional do Japo e que at o momento conta

    com pouqussimo material terico escrito em lngua portuguesa.

    * Tradutor nos pares de idiomas ingls-portugus e francs-portugus, revisor, professor das lnguas

    supracitadas e autor do blogue carrolliano The Bloggerwocky, onde escreve no s anlises sobre

    aspectos literrios dos livros Alice no Pas das Maravilhas e Alice Atravs do Espelho como tambm a

    respeito de outros assuntos diversos que tenham relao com essas obras. Atualmente, graduando em

    Letras Traduo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (licenciatura ingls/portugus e

    bacharelado francs/ingls/portugus).

  • Revista Pandora Brasil - N 31 Junho de 2011 - ISSN 2175-3318 A Magia do Teatro

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    O que o bunraku?

    Bunraku (literalmente prazeres literrios) o nome pelo qual

    conhecido o teatro de bonecos japons. O curioso que foi s a partir do

    sculo XIX que tal termo passou a ser empregado, em consequncia da

    importncia do trabalho desenvolvido por Uemura Bunrakuken, o responsvel

    por dar novo flego arte em um momento em que essa encontrava-se em

    decadncia; assim, a palavra bunraku (derivada de Bunrakuken) foi

    imortalizada como sinnimo do gnero tambm chamado ningy-jruri, ou

    simplesmente jruri. [1]

    O bunraku considerado uma das quatro grandes artes cnicas

    tradicionais do Japo, em conjunto com o bugaku (danas da corte imperial),

    com o ngaku (que abrange os teatros n e o kygen) e com o kabuki (forma

    de teatro germinada quase que mesma poca do bunraku e cujo elemento

    principal a habilidade de interpretao do ator). Trata-se de uma arte milenar

    composta por trs elementos bsicos: os bonecos, a narrativa jruri e o

    acompanhamento musical. Esses componentes so chamados sangyo, as trs

    artes, e cada um se desenvolveu de maneira independente at se unirem nos

    sculos XVI e XVII.

    Comparando Ocidente e Oriente, nota-se que o teatro de bonecos

    europeu tem as caractersticas de voltar-se geralmente para o pblico infanto-

    juvenil e de nunca apresentar temas com alto grau de dramaticidade; nele,

    frequente acontecer de o prprio manipulador narrar a histria, alm de a

    preocupao em esconder o titereiro ser bastante comum (como por exemplo

    nos teatros de marionetes e de fantoches), a fim de criar a iluso de que os

    tteres agem e falam por conta prpria. Em oposio, o bunraku destina-se a

    adultos, desenvolvendo um drama srio de alta qualidade tcnica e artstica,

    dramaticidade essa reforada pela grande percia com que os bonecos so

    manejados: seus movimentos parecem to naturais quanto os humanos;

    manipular, narrar e musicar so coisas feitas sempre por profissionais

    diferentes, especialistas em cada uma das artes, e a preocupao de manter o

    manipulador fora da viso dos espectadores inexiste. Frequentemente o

    bunraku referido como o teatro de bonecos mais avanado e requintado do

    mundo.

    Os primrdios do bunraku

    A origem do teatro de bonecos japons incerta. H estudiosos

    defensores da hiptese de essa ser uma arte transmitida desde a sia Central

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    at o Japo, relacionando a origem da palavra kugutsu (designao antiga para

    bonecos) a palavras chinesas, turcas e at gregas; outros acreditam tratar-se

    de uma criao tipicamente japonesa, baseando-se na existncia de bonecos

    usados para representar deuses e mensageiros de deuses em danas

    primitivas; e h ainda aqueles que, em uma perspectiva hbrida, defendem a

    influncia chinesa nessa arte autctone por volta dos sculos VII e VIII.

    Os bonecos eram inicialmente bem rudimentares, porm mais

    apropriados para dramatizaes do que aqueles mecnicos desenvolvidos na

    China mesma poca. A princpio, seu uso tinha carter puramente religioso e

    a manipulao ficava a cargo de sacerdotisas (miko) e de outros servidores de

    santurios. Sua utilizao acrescentava mistrio e autoridade aos gestos

    divinos; como se os deuses temporariamente possussem os tteres, sendo,

    portanto, mais adequados para fins sagrados do que atores humanos. Nesse

    primeiro momento, as representaes eram feitas sobretudo em santurios e

    monastrios com o objetivo de reverenciar divindades, no sendo vistas

    portanto como uma forma de arte independente. Contudo, os bonecos atraam

    pblico, e isso levou criao de um teatro embrionrio que visava no s

    agradar os deuses como tambm aprazer os espectadores. Com o tempo, a

    manipulao se refina e a naturalidade dos movimentos dos bonecos

    assemelha-se a dos humanos.

    Durante o perodo Nara (710-794), o Japo recebe, via Coreia, um

    grande nmero de emigrantes operadores de bonecos vindos da sia Central.

    Essas pessoas, chamadas de kairaishi ou kugutsu-mawashi (manipuladores

    de bonecos), se naturalizam japonesas em massa e adotam uma vida

    nmade, passando a viajar por todo o pas e a desempenhar atividades

    diversas a fim de subsistir. Apresentavam-se com seus tteres pelos mais

    diversos locais, contribuindo para a popularizao da arte. Sua tcnica acabou

    influenciando os operadores nativos de bonecos sagrados, e assim elementos

    folclricos, fantsticos e populares foram somados motivao religiosa,

    originando um espetculo voltado para o entretenimento.

    Os sculos passam e o desenvolvimento da arte de manipulao

    pequeno, at que no sculo XIV marionetes de vara movimentadas atravs de

    fios so importadas da China, reavivando o interesse pelo teatro de bonecos

    nativo. Em seguida, no sculo XV, h a chegada de tteres mecnicos, tambm

    via China, e a importao por parte de missionrios europeus de novos

    brinquedos mecanizados, no sculo XVI. Os artesos japoneses passam a

    imitar as novas tecnologias e a desenvolv-las bastante, e ainda que os

    bonecos produzidos nesse perodo no tenham sido to influentes para a forma

    de teatro que se sucedeu, foram fundamentais na ulterior implementao da

    tcnica do uso de fios internos para mover olhos, lbios e dedos dos bonecos,

    em contraposio ao sistema de cordas externas empregado em marionetes.

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    Uma vez que o n e o kygen eram as nicas formas de teatro poca,

    as apresentaes do teatro de bonecos passam a consistir na encenao de

    peas desses dois gneros, coisa que perdurou por sculos. O sucesso da arte

    junto ao pblico foi grande, chegando ao ponto de artistas serem convidados a

    se apresentar, no poucas vezes, no palcio perante o imperador.

    No fim do sculo XVI surge uma variedade interessante do teatro de

    bonecos, o hotoke mawashi (volteio de Buda), em que fantoches serviam

    inicialmente como meio de apresentar sermes e lendas budistas com fins

    ritualsticos, sem preocupao em agradar o pblico. Contudo, posteriormente,

    os sermes transformaram-se em peas cuja narrativa continha descries

    junto aos dilogos. A narrao era feita por um cantador-narrador, que deveria

    diferenciar as partes do texto modulando a voz. Nesse sentido, o hotoke

    mawashi se assemelha com o que hoje chamamos de bunraku.

    A evoluo tcnica do teatro de bonecos foi grande a ponto de na virada

    para o perodo Tokugawa (1603-1867) o gnero ser capaz de desenvolver

    qualquer tema. A partir de ento, progrediu mais como uma forma de narrativa,

    o jruri.

    Narrao jruri

    O jruri um gnero de narrativa originado do heikyoku, tambm

    conhecido como Heike-biwa. O heikyoku foi criado no sculo XII e vem a ser a

    narrativa acompanhada do biwa, uma espcie de alade japons de som

    melanclico, dos acontecimentos da guerra travada pelo controle poltico-militar

    do Japo entre os cls Minamoto e Taira, respectivamente chamados tambm

    Genji e Heike. A parcela da populao que simpatizava com o cl Taira,

    derrotado na guerra, passa a apreciar muito esse novo gnero narrativo, de

    grande aceitao no pas. Com o tempo, entretanto, as apresentaes caram

    na mesmice, originando transformaes na estrutura da arte por volta do incio

    do sculo XVI, que ento passa a incluir outros contos guerreiros e histrias

    romnticas em seu repertrio, bem como a fazer uso, junto ao biwa, do gi-

    byshi, para marcar o ritmo (a batida, na palma da mo, de um leque dobrado).

    Essa nova arte narrativa foi denominada jruri, termo tomado do nome

    da princesa Jruri, personagem fictcia da pea Jruri Hime Monogatari

    Junidan Zshi, ou simplesmente Jruri Hime Monogatari (Conto da Princesa

    Jruri), que conta a histria do romance entre o guerreiro Ushiwakamaru, mais

    tarde conhecido como general Yoshitsune Minamoto, famoso heri pico e

    trgico, e a bela princesa Jruri. Essa pea trata dos temas da fora do amor

    puro e da incerteza da vida, transparece a atmosfera romntica da corte Heian

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    (794-1185), contm muitos elementos fantsticos e religiosos e cativou os

    japoneses por quase um sculo.

    A arte refina-se com o tempo e no fim do sculo XVI o termo jruri

    cristaliza-se na lngua japonesa. Foi principalmente em Kyoto, no ano de 1592,

    que o gnero tornou-se extremamente popular.

    A origem do shamisen e a juno das trs artes

    O shamisen um instrumento de trs cordas e brao comprido que deve

    ser tocado com uma palheta de marfim, chamada bachi. mais leve do que o

    biwa tanto no que diz respeito ao peso como tambm aparncia e

    sonoridade, alm de produzir sons bem mais altos. Acredita-se que seu

    antecessor tenha sido criado no Egito e levado pela sia at a China, onde

    recebeu o nome san-hsien (trs cordas); de l, foi transmitido at as Ilhas

    Ryky, atual Okinawa, em 1392, e dessa propagou-se pelo Japo durante a

    era Eiroku (1558-1570). O instrumento ento foi adaptado e modificado,

    tornando-se caracteristicamente japons.

    A aceitao da populao foi imediata, e o shamisen veio a substituir o

    biwa e o gi-byshi na narrao do jruri. Foi Sawazumi Kengy, um monge

    cego famoso na arte do heikyoku e posteriormente tambm na do jruri, o

    primeiro a utilizar o novo instrumento com o fim de acompanhar a narrao em

    uma apresentao sua em Kyoto, aproximadamente no ano de 1610. Menukiya

    Chzabur, discpulo de Kengy, junta-se a Shigedayu Hikita, um operador de

    bonecos da Ilha Awaji, e Kenmotsu, discpulo de Takino Koto, outro jorurista

    famoso, junta-se ao operador Jirobei, de Nishinomiya, dando incio assim

    forma atual do teatro de bonecos. Ainda hoje a representao do bunraku

    feita em sua forma primitiva nesses locais onde o gnero nasceu.

    O bunraku uma arte que une narrativa, religio, literatura, msica e

    destreza e que, embora tenha gozado da simpatia da nobreza, foi amplamente

    aceita e sustentada de fato pelas camadas populares. Os bonecos inicialmente

    tinham a funo de criar efeitos visuais que complementassem a narrao, e

    depois passaram a ter o objetivo de incorporar o texto com seus movimentos.

    Texto, alis, que nesse gnero teatral vem a ser o principal elemento a guiar a

    encenao, afinal a partir dele que os manipuladores de bonecos, tocadores

    de shamisen e narradores-cantores iro desenvolver, juntos, sua apresentao.

    Edo, atual Tquio, era a sede do xogunato Tokugawa e onde o teatro de

    bonecos comeava a se estabelecer, contudo aps seu incndio em 1657

    muitos artistas que para l tinham ido voltam para a regio de Kansai (Kyoto,

    Osaka e cercanias), onde novos estilos e novos artistas surgem; assim, Kyoto

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    e Osaka tornam-se o centro de desenvolvimento do bunraku, ao passo que em

    Edo fica o kabuki, gnero de teatro surgido mais ou menos na mesma poca

    que o bunraku e rival desse por aproximadamente dois sculos. Em Osaka

    desenvolvido um jruri forte e vigoroso, denominado harima-bushi; em Kyoto,

    um jruri mais esbelto e delicado. Esse um perodo em que surgem os

    primeiros teatros de ningy-jruri e tambm quando so escritas as primeiras

    peas especificamente para o teatro de bonecos (ainda que boa parte delas

    seja baseada em textos j existentes).

    Faz-se necessrio destacar aqui a importante contribuio de Uji

    Kaganoj arte da narrativa jruri. Em suas peas pode-se notar uma srie de

    inovaes: a unidade dramtica, a boa qualidade literria e a introduo de

    elementos de outras formas de teatro, como o heikyoku, o prprio kabuki, o n

    e o kygen. Esses dois ltimos eram gneros j bastante prestigiados poca,

    o que fez com que o teatro de bonecos, considerado como atividade dos

    prias, adquirisse maior reconhecimento. Foi Kaganoj tambm quem lanou

    Chikamatsu Monzaemon, um dos maiores e mais famosos nomes do bunraku.

    A fase urea do bunraku e sua decadncia

    O perodo de maior prosperidade do teatro de bonecos japons comea,

    pode-se dizer, em 1684, data da criao do Teatro Takemoto-za em Dtonbori

    [2] por Takemoto Giday (1651-1714). Giday, oriundo de famlia camponesa e

    possuidor de uma belssima voz, iniciou-se em 1671 na arte do jruri como

    discpulo de Inoue Harimanoj II, mestre do harima-bushi, e estreou de fato

    nesse universo em 1674 como narrador. Entretanto, Giday estava

    descontente com a rigidez do estilo desenvolvido em Osaka, e assim foi para

    Kyoto estudar com o mestre Uji Kaganoj a variao elegante de jruri l

    praticada. Tendo aprendido os dois estilos, Giday cria um estilo prprio, o

    giday-bushi, ao mesmo tempo vigoroso e refinado, e deixa o teatro de

    Kaganoj para trilhar seu prprio caminho, abrindo algum tempo depois o

    Takemoto-za e conquistando fama atravs de apresentaes de peas escritas

    por Chikamatsu Monzaemon (1653-1724). Em 1685, h dois acontecimentos

    importantes: Giday e Kaganoj, antes discpulo e mestre, realizam uma

    apresentao de desafio, com vitria de Giday e sua tcnica original; tambm,

    Monzaemon convidado por Giday a integrar a companhia de teatro recm-

    criada como dramatista exclusivo.

    O giday-bushi torna-se um marco e sinnimo de ningy-jruri,

    principalmente aps a encenao, em 1686, da pea Shusse Kagekiyo (O

    vitorioso Kagekiyo) [3], primeiro trabalho conjunto entre Giday e Monzaemon,

    que alm de ser sucesso de pblico, tambm influenciou o estilo da escrita e o

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    contedo de todas as outras peas que se sucederam. Assim, s obras

    anteriores a essa dado o nome de velho jruri ou ko-jruri e s posteriores,

    novo jruri ou giday jruri [4]. Devido ao xito de Shusse Kagekiyo, morte

    de Inoue Harimanoj II em 1684 e vitria sobre Kaganoj em 1685, Giday

    estabeleceu-se como o mestre dos narradores do perodo.

    Vale lembrar que alm de Monzaemon e de Giday, tambm o insigne

    manipulador de bonecos Tatsumatsu Hachirobei e o mestre de shamisen

    Takezawa Gonemon contriburam em muito para o desenvolvimento e sucesso

    do bunraku. Juntos, formaram o importante quarteto do Teatro Takemoto-za.

    Em 1703, Monzaemon escreve sua primeira grande pea sewamono

    (sobre o cotidiano das pessoas comuns), chamada Sonezaki Shinj (O duplo

    suicdio em Sonezaki). Ela baseia-se no caso real de dois amantes que por

    conta de um amor impossvel cometeram duplo suicdio nos bosques de

    Sonezaki, Osaka. A pea um marco das tragdias teatrais do cotidiano.

    Monzaemon em seus escritos sewamono faz uso de uma linguagem

    bela e fortemente lrica, alm de introduzir o tratamento realstico da mente e

    da personalidade humana; no tocante temtica, aborda nesse gnero de

    narrativa o conflito entre razo e emoo. Essas peas consagraram o artista

    e, por no retratarem somente a vida aristocrtica, contriburam para que o

    bunraku adquirisse ainda mais prestgio do que j havia conquistado

    anteriormente graas a Kaganoj, quem introduziu em suas peas elementos

    dos respeitados teatros n e kygen. A iniciativa por parte de Giday de abrir

    uma escola de jruri no santurio Ikutama onde qualquer pessoa, independente

    de sua origem, pudesse aprender a arte tambm contribuiu grandemente para

    tal valorizao do teatro de bonecos, tornando-o um gnero burgus.

    Na ocasio da encenao da pea Ymei Tenn Shokunin Kagami, em

    1705, manipuladores apresentam-se completamente visveis ao pblico e

    narradores e tocadores de shamisen, que se escondiam nas laterais do palco,

    tambm pem-se diante da plateia. Nesse mesmo ano, Takemoto Uneme,

    discpulo de Giday, deixa o Takemoto-za, adota o nome de Toyotake

    Wakadayu e reabre um teatro que havia sido fundado e fechado recentemente,

    o Teatro Toyotake. Tendo Ki-no Kaion como dramaturgo exclusivo, o Teatro

    Toyotake ganha prestgio e torna-se rival do Takemoto-za. Tal rivalidade

    impulsionou o crescimento do teatro de bonecos.

    Com a morte de Monzaemon em 1724, vrios dramaturgos renomados

    escrevem peas para bunraku, muitas das quais assinadas em parceria. Em

    decorrncia da competio entre os teatros, novas tecnologias vo sendo

    implementadas na confeco dos bonecos e h um consequente

    desenvolvimento da tcnica de manipulao. Uma das mais importantes

    dessas inovaes sem dvida aquela instituda por Yoshida Bunzabur em

    1734: o sistema usado at hoje de trs homens para a manipulao de cada

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    boneco, que possibilitou aos operadores executar movimentos mais flexveis e

    complexos com os tteres.

    Os bonecos ento se expressam de forma cada vez mais humana, as

    peas vo se tornando tambm mais realistas e a descrio lrica dos cenrios

    substituda pelo dilogo. nesse momento que so criadas as trs obras-

    primas do bunraku: Sugawara Denju Tenarai Kagami (Segredos da caligrafia

    de Sugawara), em 1746; Yoshitsune Senbon Zakura (Yoshitsune e as mil

    cerejeiras), em 1747; e Kanadehon Chshingura (A liga dos 47 samurais),

    datada de 1748. As trs foram escritas em conjunto por Miyoshi Shraku

    (1696-1775), Takeda Izumo (1691-1758), e Namiki Senry (1695-1771),

    tambm conhecido como Namiki Ssuke. A arte ento chega ao pice da sua

    popularidade.

    O bunraku vinha sendo preferido ao kabuki pelo pblico desde 1725,

    porm devido a desentendimentos entre os vrios artistas envolvidos nos

    espetculos, a arte comea a decair. Em 1748, Takemoto Konoday, narrador

    do Takemoto-za, ofende-se com um pedido de Bunzabur, manipulador de

    bonecos tambm do Takemoto-za; a situao adquire dimenses tais que

    culmina na mudana de Konoday e seus discpulos para o Toyotake-za [5].

    Ulteriormente acontece a troca de um bom nmero de artistas entre os dois

    teatros, e assim as caractersticas de jruri peculiares a cada grupo perdem-se.

    Tambm, a tcnica de manipulao desenvolveu-se tanto, e os movimentos

    dos bonecos ficaram to parecidos com os humanos, que o pblico passou a

    se interessar mais pela atuao de atores reais e pelas suas tcnicas de

    representao.

    Aps as mortes dos dramaturgos Namiki, do Toyotake-za, em 1751, e

    Takeda Izumo, do Takemoto-za, em 1756, e da aposentadoria do manipulador

    de bonecos Bunzabur, tambm do Takemoto-za, em 1759, os dois teatros

    enfrentam dificuldades e no conseguem mais se sustentar apenas encenando

    peas de bonecos. O Toyotake-za fecha em 1765 e o Takemoto-za resiste at

    1772. A ltima pea escrita para o teatro de bonecos neste ciclo foi Ehon

    Taikki (As faanhas de Taik), e apenas algumas pequenas companhias em

    Osaka tentaram preservar a tradio e os textos da arte.

    Do resgate do gnero graas a Bunrakuken at a contemporaneidade

    Uemura Bunrakuken (1737-1810) foi um manipulador de bonecos

    nascido na Ilha Awaji que chegou a Osaka no fim do sculo XVIII, onde criou

    uma pequena companhia de jruri. Aps tentativa malograda de se estabelecer

    em Dotonbori, firma seu grupo em Kitahorie no ano de 1809, poca em que

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    inexistiam peas novas para o teatro de bonecos e apenas peas antigas eram

    encenadas. Com a morte do artista no ano seguinte, o teatro fica sob a

    administrao de sua filha e de seu genro, que mudam o local dos espetculos

    para o teatro Inari, ainda em Osaka. Contudo, esse estabelecimento tem de

    encerrar as atividades em 1842 por consequncia de uma lei do xogunato. O

    ento administrador da companhia, Bunrakuo (Bunrakuken II), que lutava para

    reerguer o gnero, demora alguns anos at conseguir assentar-se com sua

    trupe: volta para o teatro de Kitahorie, algum tempo depois vai para o teatro

    Hamachi em Shimizumachi e nove anos mais tarde retorna para o teatro Inari,

    j reaberto, at que, com a Restaurao Meiji em 1868, o novo governo

    promulga uma lei (no ano de 1872) que obriga a mudana do teatro para o

    bairro de Matsushima, nascendo assim o Bunraku-za. A partir de ento, esse

    o nome que passa a ser usado para se referir ao estilo de Osaka do teatro de

    bonecos.

    A pea de estreia foi Ehon Taikki, representada pelo manipulador de

    bonecos Tamaz, tido como um dos trs maiores operadores da histria

    juntamente com Tatsumatsu e Bunzabur, pelo narrador Harudayu V e pelo

    tocador de shamisen Toyozawa Danpei, quem colocou o instrumento em lugar

    de destaque (at ento no era muito proeminente), escreveu peas [6] e

    lecionou para artistas que vieram a se tornar mestres. Os grandes artistas da

    era Meiji (1868-1912), perodo quando o bunraku readquire popularidade, so

    tidos atualmente quase como lendrios.

    Em 1884, Danpei se desentende com a administrao do Bunraku-za e

    muda-se para o ento recm-aberto Hikoroku-za, dando incio a uma rivalidade

    entre as duas companhias semelhante quela de outrora entre o Takemoto-za

    e o Toyotake-za. Nesse mesmo ano, aps uma apresentao de Danpei com o

    renomado narrador Takemoto Osumidayu III, discpulo de Harudayu V,

    Bunrakuo sente seu teatro ameaado e constri um novo estabelecimento no

    recinto do Santurio Goryo em Awajimachi, transferindo assim o grupo do

    ponto afastado em que estava para o centro de Osaka.

    Bunrakuo morre em 1887 e o Bunraku-za enfrenta uma fase de

    problemas financeiros decorrentes da m gerncia por parte da quarta gerao

    da famlia Uemura, at que a administrao do teatro passa em 1909 a ficar a

    cargo da Companhia Shchiku, uma empresa de espetculos surgida na

    poca. O Hikoroku-za tambm vive dificuldades e fecha em 1893. Muitas foram

    as companhias de bunraku que surgiram para rivalizar com o Bunraku-za

    (Meiraku-za, Inari-za, Horie-za, entre outras), mas nenhuma conseguiu

    perdurar por mais de seis anos. Com isso, o Bunraku-za passa a ser o nico

    teatro exclusivamente de bunraku em todo o Japo at ser destrudo em um

    incndio no ano de 1926. Os artistas ento se apresentam eventualmente no

    Benten-za, em Dotonbori, e viajam com seus espetculos por todo o pas. s

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    em 1930 que acaba a construo de um novo teatro de concreto em

    Yotsubashi, Osaka.

    Com a guerra da Manchria durante a dcada de 1930, o teatro de

    bonecos s consegue resistir graas ao subsdio do governo e s

    representaes de peas baseadas no conflito. No perodo da Segunda Guerra

    Mundial, o governo investe nas artes japonesas genunas e assim o gnero

    consegue endireitar um pouco sua situao. Entretanto, na ocasio do

    bombardeio de Osaka, em maro de 1945, o Bunraku-za destrudo mais uma

    vez. Finda a guerra, a Companhia Shchiku trabalha rapidamente em sua

    reconstruo, de modo que a reinaugurao acontece em fevereiro de 1946.

    Dois anos depois, os membros mais jovens do Bunraku-za reclamam o

    fim da poltica feudalista adotada pela Shchiku, provocando a diviso da trupe

    em dois grupos: o Mitsuwakai, formado por esses membros insatisfeitos e que

    em 1950 desvincular-se-o do teatro para formar uma companhia itinerante, e

    o Chinamikai, composto por aqueles outros que permanecero sob a

    administrao da Shchiku. Em 1956, a Companhia inaugura um

    estabelecimento novo e moderno de trs andares e mil lugares em Dotonbori,

    porm o pblico recebido fica aqum do desejado, chegando ao ponto de

    algumas pessoas acreditarem que o bunraku chegaria ao fim.

    Visando tornar a arte mais popular para as novas geraes e assim

    atrair pblico, o novo Bunraku-za passa a apresentar, alm das peas j

    tradicionais, tambm peas novas e adaptaes diversas, seja de danas

    famosas do kabuki, de romances populares contemporneos ou de obras

    estrangeiras, como por exemplo Madame Butterfly, Hamlet e La Traviata. Tal

    estratgia no obteve muitos resultados e as peas tradicionais mostraram-se

    ainda as favoritas.

    O teatro de bonecos sobrevive graas ajuda do governo, que premia

    os artistas de maior destaque, ajudando assim o gnero a recuperar parte de

    seu prestgio. Contudo, isso no evita que tanto o Bunraku-za como o teatro

    formado pelos Mitsuwakai enfrentem dificuldades financeiras devido falta de

    pblico, em especial de pblico jovem, que prefere atividades de assimilao

    mais fcil a ter de lidar com a linguagem arcaica das peas e com o ritmo lento

    do bunraku, que destoava da rapidez e da agilidade do cinema, por seu turno

    uma arte cada vez mais presente.

    Chinamikai e Mitsuwakai veem-se obrigados a diminuir o nmero de

    apresentaes, at que em 1962 a Companhia Shchiku abandona o bunraku.

    Vinte e oito artistas das duas companhias juntam-se e fazem uma turn pelos

    Estados Unidos e Canad com o apoio financeiro da Kokusai Bunka Shinkkai

    (Associao de Relaes Culturais Internacionais), conquistando o primeiro

    sucesso do bunraku no exterior. Por sua vez, essa empreitada bem-sucedida

    fez com que o governo japons, a prefeitura de Osaka e a Nihon Hs Kykai

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    (Associao Japonesa de Rdio e Televiso, tambm conhecida como NHK)

    criassem a Bunraku Kykai (Associao de Bunraku), rgo semi-

    governamental de assistncia ao teatro de bonecos responsvel tambm por

    reunir o Chinamikai e o Mitsuwakai em um novo grupo, chamado Nihon Jruri

    Bunrakuza (Grupo Bunraku-za de Jruri), o qual recebe o ttulo de Herana

    Cultural. O teatro Bunraku-za reformado e rebatizado de Asahi-za, e onde

    as apresentaes ocorrero at abril de 1984, quando fundado o Teatro

    Nacional do Bunraku, a sede da trupe at os dias de hoje. Ainda que haja mais

    de cem grupos amadores e semi-profissionais de jruri pelo Japo, s esses

    profissionais de Osaka so conhecidos como trupe Bunraku.

    O grupo, que conta e j contou com nomes condecorados como

    Tesouros Nacionais Humanos, composto atualmente por artistas de faixa

    etria bem varivel (indo dos 15 at mais de 80 anos), sendo que muitos foram

    formados pelo curso da Associao de Bunraku. Eles se apresentam no s

    em teatros dentro do Japo, indo tambm a programas de TV e viajando ao

    exterior. J se apresentaram inclusive no Brasil.

    Apesar dos anacronismos e de hoje s sobreviver por meio de

    investimentos do governo e de entidades de apoio, o bunraku conquistou

    novamente o pblico japons, alm de ganhar simpatizantes em outros pases.

    Trata-se de um teatro sem equivalentes no Ocidente.

    ________________________

    Notas

    [1] Jruri um termo que pode ser usado tanto como nome para o teatro de

    bonecos japons como tambm para designar uma arte especfica de

    narrao, nascida do heikyoku.

    [2] Atualmente, no lugar onde ficava o Takemoto-za est o Teatro Naniwa-za.

    [3] Shusse Kagekiyo um jidaimono (pea baseada em fatos histricos do

    Japo) sobre as preocupaes da alma humana; retrata a difcil opo que um

    homem deve fazer entre sua noiva e uma cortes.

    [4] A poca do velho jruri, que durou aproximadamente 90 anos, apresentou

    encenaes montonas e peas focando o aspecto narrativo em detrimento ao

    dramtico, sempre com algum componente mstico no enredo. Aps a

    apresentao de Shusse Kagekiyo, as peas passam a ganhar em

    dramaticidade, a ser cada vez mais estilizadas e a adquirir realismo.

    [5] Konoday adota ento o nome de Toyotake Chikuzennoj.

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    [6] Dentre as peas criadas por Danpei est Tsubosaka Kannon Reigenki (O

    milagre no monastrio Tsubosaka Kannon), composta em conjunto com sua

    esposa. Essa foi a ltima pea de destaque a ser escrita para o teatro de

    bonecos.

    Referncias bibliogrficas

    GIROUX, Sakae M.; SUZUKI, Tae. Bunraku: Um Teatro de Bonecos. So Paulo: Perspectiva, 1991.

    KUSANO, Darci. Os Teatros Bunraku e Kabuki: Uma Visada Barroca. So Paulo: Perspectiva; Aliana Cultural Brasil-Japo, 1993.