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RICARDO PRESTES PAZELLO
DIREITO INSURGENTE E MOVIMENTOS POPULARES:
O GIRO DESCOLONIAL DO PODER E A CRTICA MARXISTA AO DIREITO
Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Direito, no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas, da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig.
Curitiba 2014
Catalogao na publicao - Universidade Federal do Paran Sistema de Bibliotecas - Biblioteca de Cincias Jurdicas
Bibliotecrio: Pedro Paulo Aquilante Junior - CRB 9/1626
P348d Pazello, Ricardo Prestes
Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crtica marxista ao direito / Ricardo Prestes Pazello; orientador: Celso Luiz Ludwig. Curitiba, 2014.
545 p.
Bibliografia: p. 499-545. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Paran, Setor
de Cincias Jurdicas, Programa de Ps-graduao em Direito. Curitiba, 2014.
1. Direito. 2. Crtica marxista. 3. Poder (Cincias Sociais).
4. Movimentos sociais. I. Ludwig, Celso Luiz. II. Ttulo.
CDU 34
TERMO DE APROVAO
RICARDO PRESTES PAZELLO
DIREITO INSURGENTE E MOVIMENTOS POPULARES: O GIRO DESCOLONIAL DO PODER E A CRTICA MARXISTA AO DIREITO
Tese aprovada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito das Relaes Sociais no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas, Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:
____________________________________ Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
Orientador Departamento de Direito Privado, Universidade Federal do Paran (UFPR)
___________________________________ Prof. Dr. Abili Lzaro Castro de Lima
Departamento de Direito Pblico, Universidade Federal do Paran (UFPR)
___________________________________ Prof. Dr. Alysson Leandro Barbate Mascaro
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, Universidade de So Paulo (USP)
___________________________________ Prof. Dr. Ricardo Nery Falbo
Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
___________________________________ Prof. Dr. Jess Antonio de la Torre Rangel
Departamento de Derecho, Universidad Autnoma de Aguascalientes (UAA/Mxico)
Curitiba, 08 de agosto de 2014.
Este trabalho resultado do amor. Ele dedicado Edi, o meu amor, representando para mim, em sua prxis, as lutadoras e lutadores do povo brasileiro que organizados em movimentos populares mantm-se em firme resistncia diante das formas opressivas do capital. Este trabalho , portanto e tambm, resultado da resistncia.
DA MEMRIA, PERCURSO E GRATIDO
Os quatro anos de doutorado, que tm na presente tese seu resultado mais visvel,
catalisaram um percurso de vida que chegou a um dado momento de amadurecimento,
decorrncia dos vrios projetos coletivos em que eu pude participar e me engajar.
Os anos do doutoramento coincidiram com decises profundas, que agora me
permitem um reconhecimento individual mas tambm um assentar de razes acerca das
relaes sociais em que estive envolvido, tendo repercusses na construo de minha
memria pessoal e de meu percurso social. Em face disto que se forja a gratido que aqui
gostaria de expressar.
Como filho da classe trabalhadora, no posso deixar de reconhecer minha profunda
gratido para com a educao pblica brasileira, que sempre fez parte de minha histria.
Desde o antigo primrio e ensino fundamental, realizados no Colgio Estadual Professor
Lysmaco Ferreira da Costa, comecei a costurar meu senso crtico sobre o mundo em que
vivemos, ainda que muitas das vezes incentivado pelas dificuldades educacionais em face das
quais estava colocado. No ensino mdio, vivido no Colgio Estadual do Paran, esta
criticidade se agudizou e chegou a uma espcie de pice vivencial cinco mil secundaristas,
estimulados de vrias maneiras a pensar e criar, mesmo que o horizonte do vestibular fosse
um sonho impossvel, representaram a vanguarda de tal auge. Por fim, nos desvos do
impossvel, a entrada no curso de direito da Universidade Federal do Paran amenizou a
experincia da crtica a ser vivenciada com aqueles setores filhos do proletariado, mas
irrompeu a experincia da crtica terica. A despeito de uma pesada tradio causdica, um
curso como o da UFPR produziu vrias frinchas e delas aflua, como giser, um pensamento
crtico, com portas abertas totalidade do conhecimento humanstico, bem como, ainda que
residualmente, radicalidade que ele exige.
A partir disso, as demais experincias me fizeram amadurecer por vezes, muito
lentamente um pensar ao mesmo tempo rigoroso e crtico, sobre o direito e a sociedade na
qual estamos insertos. O mestrado em direito na Universidade Federal de Santa Catarina foi
um passo destacado na construo de laos polticos e intelectuais, em especial com a sempre
mais frtil comunidade discente. O doutorado, por conseqncia, serviu de corolrio a esta
trajetria. A volta UFPR exigiu reenfrentar-me com o passado e construir um novo presente.
Acredito que, no geral, fui bem-sucedido nisto, tendo por prova esta tese.
A volta Santos Andrade foi mais do que um simples retorno ao antigo prdio com o
qual convivi por toda minha graduao. Muito mais. O ano de 2010 marcou uma sensvel
transio na minha vida pessoal. Depois de tantas incertezas, desde os anos da faculdade,
passava a optar por me dedicar exclusivamente docncia. Findo o mestrado, iniciava minha
carreira no Centro Universitrio Curitiba e no sabia que logo na esquina do tempo me
aguardava a oportunidade de realizar outro sonho impossvel a carreira docente na UFPR.
Aprovado em concurso pblico de provas e ttulos, a 29 de abril de 2010 (e nomeado
a de 7 de julho), iniciava minha trajetria de regresso como professor de antropologia jurdica.
Em esforo de coincidncia, sabedor de todas as dificuldades de um professor apenas
mestre, dediquei-me ao doutorado tambm na UFPR, titulao que at ento pretendia obter
fora do pas. Assim que os quatro anos do doutoramento foram os quatro primeiros anos de
professor de uma universidade pblica e, neste sentido, sinto-me instado a agradecer a todos
que fizeram parte de minha caminhada.
A atividade de professor, sob meu ponto de vista, tem no mnimo cinco faces: ensino,
pesquisa, extenso, atividades administrativas e atuao sindical. Hoje, olhando para estes
quatro anos, tenho orgulho de dizer que milito nessa quintuplicidade de funes. Com isso em
mente, gostaria de explicitar minha gratido especialmente para com a estudantada, sendo que
dentro dela os orientandos foram os que mais sentiram as conseqncias desses turbulentos
anos. Seja na iniciao cientfica, na iniciao docncia, nos trabalhos de concluso de curso
ou na extenso, a todos agradeo pela compreenso e inspirao. Uma nota especial deve ser
feita por mim: a importncia do Movimento de Assessoria Jurdica Popular MAJUP Isabel
da Silva (antes Frum de Extenso e antes ainda dois projetos distintos que passei a
coordenar, primeiramente o Direito e Cidadania, depois o Servio de Assessoria Jurdica
Popular SAJUP) com quem aprendo que pouco sei ensinar e que a autonomia estudantil
uma conquista.
Se ensinamentos pude angariar com os estudantes, no menos pedaggico foi para
mim ter a experincia de duas justssimas greves de professores, em 2011 e 2012, sendo a
ltima a maior da histria das universidades federais no Brasil. Participando de dois
comandos de greve, com todos os limites de minha inexperincia, fortaleci a convico de que
o movimento sindical um movimento popular que no pode ser, como o faz uma certa
leitura sociolgica, desconsiderado. Devido a isto me disponibilizei para integrar a diretoria
da Associao dos Professores da Universidade Federal do Paran Seo Sindical do
ANDES-SN (APUFPR-SSind). Aos meus companheiros de sindicato, agradeo a
compreenso que me permitiu o afastamento necessrio para finalizar esta tese.
Tambm gostaria de deixar consignada minha gratido aos membros do Ncleo de
Estudos Filosficos NEFIL, do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFPR, com
quem pude compartilhar, quinzenalmente, uma busca por aprofundamento de conhecimentos,
lastreada por compreenso crtica que nos permitiu estudar o pensamento crtico latino-
americano (descolonial, de libertao e marxista), fundamental para minha tese. Na mesma
linha, fica o meu reconhecimento ao Instituto de Filosofia da Libertao IFiL, ao qual passei
a integrar decididamente neste perodo.
A partir dos encontros propiciados pelo mundo da pesquisa universitria, uma grande
iniciativa pode ser destacada em meu percurso. Quando, em 2011, fui a So Paulo participar
do I Seminrio de Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais no sabia que ali se consolidaria
uma pretenso da nova gerao de pesquisadores e assessores jurdicos populares engajada
com os movimentos sociais. Confluindo para este espao, pudemos fundar, em 2012 ano da
formatura da primeira turma especial em direito para beneficirios da reforma agrria , na
Cidade de Gois, o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais IPDMS. Mesmo
com imensos desafios de todas as ordens, o IPDMS j realizar seu quarto seminrio nacional,
em Curitiba, no ano de 2014, ano em que se perfectibilizou a abertura de uma turma especial
de direito tambm na UFPR. Registro, assim, meus mais profundos agradecimentos a toda
esta gerao que hoje integra o IPDMS, com uma nota especial ao Grupo Temtico Direito e
Marxismo, no qual estou engajado e pude participar da organizao de seu primeiro
seminrio, em Florianpolis, em 2013.
Nesse sentido, aproveito a oportunidade para agradecer o convite feito pela
coordenao do programa de especializao Direitos Sociais do Campo Residncia Agrria,
da Universidade Federal de Gois, campus Gois, para participar junto a uma dedicada turma
de juristas populares, oriundos de diversos movimentos sociais e reas do saber, ministrando
uma disciplina de Teorias Crticas do Direito e Assessoria Jurdica Popular. A experincia de
Gois foi marcante para a realizao final da tese e fica o meu apreo para com todos os
participantes.
No menos agradecido sou aos coletivos de pesquisa e educao popular que integro
na minha cidade natal. Em Curitiba, tive a sorte de me identificar com a trajetria de um
grupo de educadores populares que pe sua experincia disposio das organizaes e
movimentos populares da regio, para construir um novo mundo possvel. Pela partilha de
ideais e inquietaes, meu agradecimento a todos que fazem parte do Centro de Formao
Milton Santos-Lorenzo Milani, em especial por terem permitido que eu fizesse parte dessa
histria tambm.
No poderia deixar de agradecer tambm aos integrantes do grupo de estudos de
Antropologia, Direito, Povos e Comunidades Tradicionais que periodicamente se encontram
no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos Constitucionais, do Ministrio
Pblico do Estado do Paran, sob a batuta do Dr. Marcos Bittencourt Fowler.
Um agradecimento especial ainda no pode faltar. Ao mesmo tempo em que me
reinseri na vida universitria de Curitiba, dentro da UFPR como professor e doutorando,
tambm, nestes ltimos quatro anos, passei organicidade junto Consulta Popular,
organizao poltica socialista que defende um Projeto Popular para o Brasil. A luta dentro e
fora da ordem, com perspectiva revolucionria mas totalmente baseada na cultura popular
brasileira no pode deixar de ser nosso horizonte. A todos os meus camaradas, desde o ncleo
de base Anita Pereira Czar passando pelos setores que passei a integrar at os debates
nacionais com grandes companheiros, meus sinceros agradecimentos, em especial pelo ltimo
ano de compenetrao quase total na tese.
At aqui rendi agradecimentos aos coletivos que integrei nestes ltimos quatro anos.
Mas existem outros, que os extravasam. Os muitos amigos que fizeram parte dessas jornadas
tambm tm um lugar garantido nesses agradecimentos. Simbolizando tantos que me
ajudaram, ainda que s vezes sem o saber, menciono os leitores das primeiras verses dos
captulos desta tese: Andr Luiz Barreto Azevedo, Daniela Pessoa de Ges Calmon, Danilo
Uler Corregliano, Diana Melo Pereira, Diego Augusto Diehl, Elosa Dias Gonalves, Felipe
Heringer Roxo da Motta, Gladstone Leonel da Silva Jnior, Luiz Otvio Ribas, Moiss Alves
Soares e Pedro Pompeo Pistelli Ferreira. Agrego, tambm, os parceiros de doutoramento,
Mrcio Soares Berclaz, Luciana Souza de Arajo e Mrcia Miranda Vasconcellos Cunha, por
terem dividido comigo os momentos finais da realizao da tese. A todos eles, pelo
desprendimento na leitura e solidariedade de interlocutores, o meu agradecimento.
Quero, ainda, marcar estes agradecimentos com o peso que tiveram sobre minha
produo as mulheres da minha vida, representando toda minha famlia. Em primeiro lugar,
minha me, Celia Prestes dos Santos, lutadora que me fez ser tudo o que sou, um filho da
classe trabalhadora, com essa disciplina e desapego prprios de quem nela nasce. No poderia
deixar de lembrar de minha tia, Soeli Prestes dos Santos, sempre presente em momentos
decisivos. Na pessoa das duas irms, a memria de minha av, que nos deixou no incio da
caminhada da qual resultaria esta tese, ainda em 2010.
Famlia, porm, no se herda apenas, tambm se constri. Os ltimos quatro anos
foram de edificao: da carreira docente, da militncia na assessoria jurdica popular, da
educao popular, da organizao poltica e da pesquisa de doutorado. Mas foi,
principalmente, de casamento no sentido menos conservador possvel que possa ser dado a
esta palavra com a pessoa que deixou, da maneira mais delicada e indelvel, sua presena
em cada uma das linhas e entrelinhas que compem esta tese. Seja pelo carinho, pela
generosidade, pela aposta no futuro ou pelos ensinamentos polticos, profissionais e de vida,
agradeo incomensuravelmente querida Ednubia Cristina Ghisi o eterno namoro, a casa
dividida e todo o tempo que com ela, e sua famlia que passou a ser minha tambm, no pude
desfrutar. Edi, portanto, com muito amor!
Por fim, devo agradecer ao Programa de Ps-Graduao em Direito PPGD/UFPR
que me permitiu elaborar a tese, tendo seu projeto sido aprovado h quatro anos. Os muitos
crditos cumpridos e compridos foram contrabalanceados pelo incentivo pesquisa e
interlocuo acadmica em nvel nacional e internacional, permitindo-me, inclusive,
apresentar trabalhos em Cuba e no Mxico. Agradeo, igualmente, s bancas examinadoras de
qualificao e defesa final de tese, compostas pelos professores Dr. Alysson Leandro Barbate
Mascaro (USP), Dr. Ricardo Nery Falbo (UERJ), Dr. Jess Antonio de la Torre Rangel
(Universidad Autnoma de Aguascalientes/Mxico), Dr. Abili Lzaro Castro de Lima
(UFPR) e o orientador Dr. Celso Luiz Ludwig. Seguramente, com os professores que
compuseram a banca, o trabalho que aqui vem luz fica engrandecido e prestigiado, ainda
que tambm certeiramente criticado. Portanto, agradeo aos professores Mascaro e Falbo,
pela possibilidade de interlocuo, ainda que advinda de lugares tericos distintos. Tambm,
ao professor De la Torre Rangel, com quem pude travar boa conversao, em pelo menos
cinco ocasies anteriores, a respeito de uma teoria crtica do direito na Amrica Latina e o
papel reservado proposta do direito insurgente que ora resgato. Ao professor Abili de Lima
deixo mais que o agradecimento pela disponibilidade, sempre extra, na leitura da tese, uma
vez que me acompanhou em minha curta trajetria, desde os tempos de graduao e, ademais,
pde me brindar com seu extremo companheirismo como colega de UFPR, junto ao
Departamento de Direito Pblico grato reencontro, portanto, que em mim fez consolidar o
reconhecimento por sua sinceridade e integridade tanto nas coisas simples do dia-a-dia quanto
naquelas mais complexas atinentes coisa pblica. Finalmente, o mais do que necessrio
agradecimento a meu orientador, professor Ludwig, que tendo a misso de formar as novas
geraes de docentes da UFPR e de outras instituies no se priva de lhes dar toda a
liberdade necessria para desenvolverem seu prprio pensamento, sem, contudo, deixar de
permanecer na correta linha descolonial e de libertao que tanta falta faz ao pensamento
universitrio brasileiro, marcado por um eurocentramento intelectual sem fim. Como
orientador, mas tambm como professor, pesquisador, colega de instituio, grevista e amigo,
por sua honestidade e modstia, fica registrada toda minha admirao.
Se o sonho impossvel, de apenas mais um filho da classe trabalhadora, tornou-se
factvel algum dia, isto nada mais foi do que o resultado da inabalvel convico de que a
organizao das classes populares que deve guiar nosso horizonte de transformao, seja em
incurses tericas seja na indissocivel prtica de resistncia que se origina em seus
movimentos. A responsabilidade pela tese minha, mas a gentica da factibilidade que nela
se gestou se deve a tantos que tornaram possvel minhas realizaes individuais e coletivas,
nomes individuais e coletivos constantes nestes agradecimentos, no extremo, o conjunto da
classe trabalhadora que tais nomes representam.
No canto minha dor dor de um s homem no dor que se proclame.
Canto a dor dos homens sem face canto os que tombaram crivados
os homens escondidos os que conheceram a nostalgia do exlio
para os encarcerados. Canto aos prias da vida
aos bbados, aos vagabundos e aos toxicmanos. Canto as prostitutas
e as mulheres que foram embora com o homem amado.
Canto multido que entra e sai pelos portes das fbricas aos que vem o dia nascer no asfalto das rodovias
e aos lavadores de carros e aos que vendem a loteria canto aos coletores de lixo e aos guardies noturnos
as longas filas de pessoas que esperam os nibus nas praas e aos estrangeiros que aqui vieram viver.
Canto os homens sem razes, sem famlia, sem ptria canto meu sonho quando canto os que viveram o mar
que aportaram em pases distantes e conheceram homens de muitas raas
e quando canto os navios, canto ao meu corao de barco.
...
Ah, meus versos
minha absolvio neles renaso transfigurado e forte
e cavalgo o universo inteiro; e caminho cheio de amor por todos os seres
e por todas as coisas; cheio de asco pelos tiranos e pelos homens hipcritas
e sinto o corao limpo e macio de ternura meu canto crescer e explodir mais forte que a bomba.
Ah, meus versos,
meus versos que no so meus, que so de todos os homens e de todas as mulheres que eu canto;
que so de todos os que se aproximam de mim e que falam comigo.
Meus versos que afinal nunca sero de ningum, caminhando pela terrvel solido branca do papel,
pelo itinerrio clandestino das gavetas; estampados nas palavras escarlates da minha revolta pblica,
impressos no meu olhar solitrio de samurai.
Eu canto para todos os homens contudo, neste tempo,
eu canto para os homens sem face aqueles que se perdem na multido das grandes cidades,
e que amadurecem, a cada dia, os punhos para a luta.
(Manoel de Andrade, Cano para os homens sem face, de 1968)
RESUMO
A presente tese tem por objetivo estudar a relao entre direito e movimentos populares a
partir da insurgncia como categoria de mediao, sob a perspectiva da crtica estrutural s
relaes sociais capitalistas e da posio especfica da periferia dependente latino-americana
no sistema mundial colonial/moderno, ensejando uma anlise que conjugue o marxismo e o
giro descolonial do poder. Para tanto, realiza-se a apreciao conjuntural da questo dos
movimentos populares, no contexto das discusses categoriais sobre a relao entre classe e
povo, bem como seus desdobramentos. Alm disso, busca-se o aporte terico das
contribuies do pensamento crtico latino-americano, em especial o decorrente das
perspectivas descoloniais e de libertao, para a relao entre direito e movimentos populares
no contexto perifrico do capitalismo. Por sua vez, o aprofundamento da abordagem crtica
promovida pelo pensamento de Marx e Engels permite delimitar a compreenso do direito em
sua significao mais densa, como relao social vinculada forma-valor. A crtica marxiana
e marxista que a partir da se desenvolve admite uma recepo das contribuies das teorias
crticas do direito, entendidas sob chave analtica diferenciada, ensejando a formulao
especfica do direito insurgente para a Amrica Latina, em que direito e movimentos
populares conformam relaes e apontam para o horizonte de extino de suas prprias
formas sociais, ainda que acolhendo um uso poltico ttico do jurdico em termos de transio
para modos de vida superiores.
Palavras-chave: Direito insurgente. Crtica marxista ao direito. Movimentos populares. Giro
descolonial do poder.
RESUMEN
Esta tesis tiene como objetivo estudiar la relacin entre derecho y movimientos populares
desde la insurgencia como categora de mediacin, bajo la perspectiva de la crtica estructural
a las relaciones sociales capitalistas y la posicin especfica de la periferia dependiente
latinoamericana en el sistema-mundo colonial/moderno, dando lugar a un anlisis que
combina el marxismo y el giro descolonial del poder. Para ello, se hace una apreciacin
conjuntural de la cuestin de los movimientos populares en el contexto de los debates
categoriales acerca de la relacin entre clase y pueblo, as como sus consecuencias. Adems,
se busca la base terica de las contribuciones del pensamiento crtico latinoamericano, en
particular las perspectivas descoloniales y de liberacin, para la relacin entre derecho y
movimientos populares en el contexto del capitalismo perifrico. A su vez, la profundizacin
del enfoque de la crtica promovida por el pensamiento de Marx y Engels permite definir la
comprensin del derecho en su sentido ms denso, como una relacin social ligada a la forma-
valor. La crtica marxiana y marxista que se desarrolla a partir de entonces admite una
recepcin de las contribuciones de las teoras crticas del derecho, entendidas en clave
analtica diferenciada, lo que permite la formulacin especfica del derecho insurgente para
Amrica Latina, donde el derecho y los movimientos populares conforman relaciones y
apuntan para el horizonte de extincin de sus propias formas sociales, aunque absorviendo un
uso poltico tctico del derecho en trminos de transicin a modos de vida superiores.
Palabras-clave: Derecho insurgente. Crtica marxista al derecho. Movimientos Populares.
Giro descolonial del poder.
ABSTRACT
This thesis aims to study the relation between Law and popular movements using insurgency
as a mediating category, under the perspective of structural critique of capitalist social
relations and the specific position of Latin America as dependent periphery in the modern/
colonial world-system, entailing an analysis combining Marxism and the decolonial turn of
power. To do so, the conjunctural assessment of the issue of popular movements is made in
the context of categorical discussions about the relation between class and the people, as well
as its consequences. It also reaches to the theoretical basis of the contributions of Latin
American critical thought, especially arising from the decolonial and liberation perspectives,
to the relation between Law and popular movements in the context of peripheral capitalism. In
turn, deepening the critical approach promoted by the thought of Marx and Engels allows to
delimit the understanding of Law in its densest significance as a social relation linked to the
value-form. The Marxian and Marxist critique thereafter undertaken allows for a reception of
the contributions made by the critical theories of Law, read under an adapted analytical
framwork, giving rise to the specific formulation of the Insurgent Law for Latin America, in
which Law and popular movements encompass social relations and point toward the
boundaries of extinction of their own social forms, even welcoming a tactical political use of
the Law in terms of transition to higher modes of life.
Keywords: Insurgent Law. Marxist critique of Law. Popular movements. Decolonial turn of
Power.
LISTA DE QUADROS
QUADRO I ....................................................................................................................... p. 144
QUADRO II ...................................................................................................................... p. 145
QUADRO III .................................................................................................................... p. 150
QUADRO IV .................................................................................................................... p. 172
QUADRO V...................................................................................................................... p. 298
QUADRO VI .................................................................................................................... p. 445
QUADRO VII ................................................................................................................... p. 489
SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 18
1. MOVIMENTOS POPULARES: QUESTES PRELIMINARES ................................ 26
1.1. AS DISJUNTIVAS POLTICAS DOS MOVIMENTOS POPULARES NA CONJUNTURA LATINO-AMERICANA .......................................................................... 26
1.2. DIREITO E MOVIMENTOS POPULARES: CONVERGNCIAS E PROBLEMAS 34
2. GIRO DESCOLONIAL DO PODER ............................................................................... 38
2.1. PONTO DE PARTIDA GEOPOLTICO: O CRIVO DA DEPENDNCIA ............... 39
2.2. CRTICA COLONIALIDADE DO PODER: A FORMA DO DIREITO NA HETEROGENEIDADE HISTRICO-ESTRUTURAL E DEPENDENTE ....................... 62
2.2.1. Heterogeneidade histrico-estrutural e dependncia .............................................. 63
2.2.2. O problema do marxismo: debates mariateguianos ................................................ 67
2.2.3. O giro descolonial: modernidade colonialidade .................................................. 76
2.2.4. Poder, tendncias e formas: o possvel lugar do direito ......................................... 83
2.3. CRTICA COLONIALIDADE DO SABER: LIMITES E POSSIBILIDADES ...... 89
2.4. POLTICA DA LIBERTAO: APROXIMAES RELAO ENTRE DIREITO E MOVIMENTOS POPULARES ...................................................................................... 105
2.4.1. Direito e estado na trajetria da poltica da libertao ......................................... 106
2.4.2. Direito, dependncia e movimentos populares a partir de um Marx desconhecido ........................................................................................................................................ 121
3. CRTICA MARXIANA AO DIREITO .......................................................................... 130
3.1. O LUGAR DO DIREITO NO MTODO ................................................................... 131
3.2. O DIREITO ACHADO NO CAPITAL ...................................................................... 141
3.3. DA CRTICA EMANCIPAO POLTICA AO PRINCPIO DA SOCIEDADE COMUNISTA: O DIREITO ENTRE DOIS PLOS ........................................................ 175
3.4. MOVIMENTO OPERRIO ENTRE A LEGALIDADE E A ILEGALIDADE: PROJETO REVOLUCIONRIO DENTRO E FORA DA ORDEM ................................ 188
4. CRTICA MARXISTA AO DIREITO ........................................................................... 208
4.1. DUAS (RE)FUNDAES DA CRTICA JURDICA: DA RELAO JURDICA AO PROJETO POLTICO ................................................................................................. 210
4.2. DO PREPARO CONCRETIZAO DA REVOLUO: LNIN, A ORGANIZAO DO MOVIMENTO OPERRIO E O DIREITO ................................. 230
4.3. DA TRANSIO EXTINO NO DEBATE JURDICO SOVITICO ENTRE STUCKA E PACHUKANIS .............................................................................................. 262
4.3.1. Stucka e a teoria do direito de transio proletrio .............................................. 269
4.3.2. Os momentos da forma jurdica em Pachukanis .................................................. 277
4.3.3. Pachukanis, da transio extino ..................................................................... 293
4.4. A CURVATURA DESCENDENTE DA CRTICA JURDICA EUROPIA: A TRANSIO PARA A EXTINO DA EXTINO .................................................... 305
5. DIREITO INSURGENTE E MOVIMENTOS POPULARES ..................................... 323
5.1. CRTICA E INSURGNCIA ...................................................................................... 324
5.1.1. Entre o universal e o particular: a historicidade e o negativo ............................... 325
5.1.2. Insurgncia: crtica entre mediao e totalidade................................................... 333
5.1.2.1. Dimenso fenomnica ou sociolgica ........................................................... 336
5.1.2.2. Dimenso originria ou histrica ................................................................... 343
5.1.2.3. Dimenso fundamental ou filosfica ............................................................. 348
5.2. CRTICA JURDICA LATINO-AMERICANA......................................................... 353
5.2.1. Crtica jurdica e marxismo na Amrica Latina: notas para um futuro mapeamento ........................................................................................................................................ 354
5.2.2. Crtica jurdica mexicana: um debate paradigmtico ........................................... 363
5.2.2.1. O direito como arma de libertao nasce do povo......................................... 364
5.2.2.2. Forma normativa como crtica da ideologia jurdica ..................................... 382
5.2.3. Prxis de libertao, direito revoluo e comunismo jurdico: posies intermdias ..................................................................................................................... 395
5.3. CRTICA JURDICA BRASILEIRA ......................................................................... 408
5.3.1. Dos escombros da crtica jurdica: alternativismo e pluralismo ........................... 409
5.3.2. Da engenharia do marxismo jurdico: partindo da especificidade da forma jurdica ........................................................................................................................................ 429
5.3.3. Dos alicerces do direito insurgente: a prtica da assessoria jurdica popular ....... 440
5.4. A RECONSTRUO DA TEORIA CRTICA DO DIREITO PELO DIREITO INSURGENTE ................................................................................................................... 469
5.4.1. Direito insurgente e giro descolonial do poder: a relao jurdica dependente .... 472
5.4.2. Direito insurgente e movimentos populares: relaes .......................................... 479
5.4.3. Direito insurgente: entre a crtica do direito e a crtica marxista ao direito ......... 487
CONCLUSES ..................................................................................................................... 495
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 499
18
INTRODUO
A relao entre direito e movimentos populares vem sendo cada vez mais debatida,
seja por aqueles que defendem a legitimidade da ao destes ltimos seja por aqueloutros que
os consideram atentatrios democracia formal. As ltimas dcadas assistem, portanto, a uma
evidenciao das desigualdades sociais, conforme se organizam os setores da sociedade para
suprir suas necessidades ou projetar novas relaes. Esta tese busca inserir-se neste contexto
maior contribuindo com uma interpretao crtica no campo jurdico.
Desde o processo de reconstitucionalizao pelo qual passou o Brasil e que foi,
guardadas as especificidades de cada pas, relativamente equivalente em todo o continente
latino-americano a relao entre direito e movimentos populares no deixou de ser pauta de
governos, partidos, sindicatos, assessorias, mdia e empresariado, ainda que por vias distintas
e de acordo com interesses destoantes. Diante disso, entendemos que a reflexo que ora
trazemos a pblico enreda-se no tempo presente, a partir de seus reclamos por mudanas.
Esta tese encerra um ciclo de pesquisas, iniciado ainda na graduao e, depois, no
mestrado, que sempre teve a preocupao com uma formulao crtica do direito, a partir do
contexto latino-americano e da situao do capitalismo em geral. Da a dupla fonte na qual
esta tese bebe: o pensamento crtico latino-americano e a teoria marxista. Nesse sentido,
uma tese tipicamente assentada em uma perspectiva de teoria e filosofia do direito, ainda que
sejam inegveis as contribuies sociolgicas, politolgicas, histricas e outras.
Nossa trajetria de pesquisa convergiu para nos aproximarmos destas preocupaes.
Podemos dizer que nossas atividades investigativa, docente e de assessoria jurdica popular se
delimitaram por este horizonte de prxis, ainda que venhamos intentando alar vos mais
significativos em termos de formulao terica. Nesse sentido, o discurso tradicional do
direito e o entendimento de tal fenmeno apenas a partir de suas aparncias normativas nos
motivaram a uma tarefa crtica. Trata-se de uma crtica jurdica que busca imiscuir-se na
histria do campo de reflexes sobre o direito, sem concesses a reducionismos ou
universalismos. Sob esta perspectiva, fazemos uma crtica externa ao direito, na medida em
que no nos interessam suas explicaes cannicas. Por outro lado, esta crtica ao direito
tambm pode ser interna como crtica do direito se for tomada a prpria crtica jurdica
como os limites explicativos do direito. Assim, realizamos uma crtica marxista ao direito,
porque no adotamos nenhum fundamento interno s teorias tradicionais; mas, tambm uma
crtica do direito, j que a crtica marxista pode ser uma das crticas possveis ao fenmeno.
19
O que buscamos apresentar, ento, tem a ver com esta ordem de problemas. Partindo
de um mbito fenomnico, em que se ressaltam os movimentos populares como elemento
desestabilizador da juridicidade tradicional (fundada na neutralidade do judicirio, na
individualidade dos sujeitos jurdicos, alm de em sua igualdade formal, e nos paradigmas
normativos proprietrios), chegamos a uma proposta de direito insurgente, o qual, ao mesmo
tempo em que se rebela contra o prprio direito, com ele trabalha de acordo com as
necessidades contextuais e geopolticas que o realizam.
Como o grande objetivo da pesquisa o de estudar a relao entre direito e
movimentos sociais, tal como vem se consolidando como tema de pesquisa, a partir do
pensamento crtico latino-americano e do marxismo, o temrio em face do qual nos
colocamos no nem o direito nem os movimentos sociais separadamente, mas antes a sua
relao. Da a necessria concluso que se pode tirar da leitura da tese: ela est construda sob
o paradigma relacional (que, a nosso entender, o que est presente na proposta de Marx e
incorporado pelas teorias crticas da Amrica Latina).
Assim, trata-se de uma tese que encontra por mote um entre-tema. Nesse sentido,
natural o estranhamento que venha a produzir, apresentando-se como, ao mesmo tempo, pra-
raios de vrias crticas (se se adotar uma postura exclusivamente descolonialista, se pode
criticar o peso do marxismo nela; se se adotar apenas o marxismo, se pode recear o papel do
giro descolonial) e de catalisador de contribuies complementares.
O direito insurgente que da decorre a concluso possvel para esta relao (entre
direito e movimentos, mas tambm entre marxismo e Amrica Latina). Aqui, valemo-nos de
todo um esforo para nos distanciarmos de um discurso redentorista do direito (a
universalizao da forma jurdica como estratgia de luta) e de uma rejeio simples do
mesmo fenmeno (verificada sob a crtica da ideologia do reforo). Desse modo, estamos
conscientes de todas as contradies que podem ser levantadas a partir da tentativa de fugir
dessas posies extremas (que exigem muitas mediaes), da mesma forma que conclumos
pela possibilidade de defender tal tese como contribuio que recoloca a questo de uma
crtica jurdica no contexto do capitalismo dependente do sculo XXI.
A tese est dividida em 5 captulos: um captulo introdutrio dedicado a estabelecer
os contornos muito gerais do fenmeno social que motiva o presente estudo; outro captulo
dedicado contextualizao da preocupao que aproxima a problemtica dos movimentos
populares geopoltica que os torna possveis, tendo por resultado a evidenciao do crivo da
dependncia como necessrio analise da relao entre direito e movimentos; um terceiro
captulo dedicado a compreender o significado que o direito tem na obra de Marx, referindo-
20
se especialmente a trs momentos de sua obra (textos de 1844, 1867 e 1875); a partir da
estrutura do fenmeno jurdico esboada por Marx, no quarto captulo ensejamos a temtica
no horizonte da teoria poltica marxista e da crtica jurdica construda no seio do debate
sovitico e europeu do sculo XX; e, por fim, um captulo conclusivo em que a tese do direito
insurgente ganha corpo a partir da referncia aos movimentos populares e ao pensamento
jurdico-crtico da Amrica Latina.
Adotamos por ponto de partida da exposio o fenmeno social dos movimentos
populares. Em termos metodolgicos, elegemos um elemento central para nossa reflexo: as
relaes sociais em seu formato coletivo e disjuntivo. Os movimentos populares so a clula
de nosso discurso na medida em que nosso objeto processual a relao deles com o direito
insurgente, que propomos. No de se estranhar que faamos esta advertncia, j que o incio
do discurso expositivo muito importante para o marxismo do qual compartilhamos. Se em
termos de uma crtica economia poltica, como veremos, Marx inicia seus estudos pela
mercadoria e se em termos de uma crtica teoria jurdica, como tambm faremos notar,
Pachukanis adota o sujeito de direito como ponto de arranque, em nossa caminhada terica
sero os prprios movimentos populares o momento inaugural. O debate sociolgico a
implicado vasto e no nos caberia esgot-lo. Contentamo-nos em caracterizar os
movimentos populares dentro do debate que mais coerente com nossos pressupostos. Assim,
a problemtica dos cortes estruturais que os guiam, da conformao como possibilidade
organizativa do sujeito histrico da transformao, bem como das disjuntivas que os
constituem entre a totalidade de explorao/dominao e as opresses especficas, nos
pavimenta os primeiros passos segundo os quais desenvolveremos inquiries sobre os
movimentos populares, na seara de suas relaes, problemticas ou no, com o direito. O
captulo 1, portanto, tratar apenas de questes preliminares.
Os movimentos populares (mais especficos que os sociais e menos que os operrios)
so uma mediao organizativa entre os sentidos objetivo e subjetivo de classe que agrega
condies tnicas e de gnero. Da fazer sentido compreend-los como marcados por noes
tais quais as de relaes sociais atreladas s formas de produo da vida e os cortes
estruturais de classe, de raa/etnia e de gnero. Por sua vez, como sujeito histrico, e
coletivo, da ruptura com referidos cortes estruturais, implicam o debate sobre o conceito
ampliado de classe operria ou sobre a classe-que-vive-do-trabalho ou ainda sobre o povo
como bloco histrico dos oprimidos, todas polmicas prprias ao pensamento crtico latino-
americano. Tal tarefa de caracterizao, todavia, demanda de ns uma compreenso que
localize os movimentos populares em algumas disjuntivas, dentre as quais elegemos quatro:
21
espontaneidade-organizao; reivindicao-contestao; denncia-anncio; e especificidade-
totalidade. Ainda que assim seja, no entanto, em face destas idias apenas nos aproximamos a
ttulo contextual, no tendo sido possvel, por motivos de ordem espao-temporal, sua
discusso emprica ou poltico-conjuntural.
A questo dos movimentos populares, por ser factual, sugere uma contextualizao e
esta, a nosso ver, precisa ser considerada desde uma perspectiva geopoltica. Dessa forma, a
Amrica Latina adquire referencialidade em nosso discurso, em especial segundo o itinerrio
das teorias crticas colonialidade do poder. Neste mbito, retornamos s bases fundadoras de
tais teorias e encontramos no crivo da dependncia do continente (e de toda a periferia do
capitalismo) a razo pela qual fazer este resgate. Dos movimentos populares ao giro
descolonial do poder nos dirigimos, a fim de perceber de que maneira, no contexto latino-
americano, a crtica jurdica pode ser recepcionada, sem nos desvincularmos de sua base
social. O arco de teorias resgatadas atinge-se pela preocupao com a caracterstica que define
as relaes capitalistas perifricas, a dependncia. Da tratarmos do dependentismo, sob
enfoque marxista, e passarmos s heterodoxas teses do giro descolonial do poder e do saber,
at aportarmos na poltica da libertao, reinterpretada sob o signo da dependncia mesma. Os
tericos latino-americanos que lastreiam nossas perspectivas so, principalmente, Ruy Mauro
Marini, Anbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel. No entanto, tais propostas, por
no alcanarem a especificidade de nosso objeto mas apenas ensejarem os seus pressupostos
geopolticos, merecem complementao rumo a explicaes estruturantes do capitalismo
contemporneo. Assim que definimos a temtica do captulo 2.
De todo modo, o giro descolonial do poder aparece, para ns, sob o paradigma
relacional. Isto porque noes centrais para o desenvolvimento desta fundamentao assim se
evidenciam. As noes de dependncia, colonialidade e valor redundam nesta perspectiva,
sendo exemplar a primeira delas, entendida como relao que implica totalidade,
condicionalidade, internalidade e rigor tipolgico. Todas elas, pois bem, expressam relaes
sociais da, se podendo chegar mesma concluso acerca do direito (exigindo um
aprofundamento posterior). A partir disso, como diria Franz Hinkelammert, resgatar a teoria
crtica hoje reconstituir a crtica economia poltica e o mtodo do materialismo histrico,
bases tericas acordes ao paradigma relacional por ns enunciado.
A partir da necessidade de retomada do materialismo histrico e da crtica ao
capitalismo, mostrou-se-nos inafastvel a crtica marxiana (do prprio Marx), segundo a qual
as relaes sociais do capital do vida ao prprio direito como relaes jurdicas. Nesse
sentido, a volta aos textos de Marx naquilo que se referem ao jurdico, e notadamente sua obra
22
mxima, fazem com que nos desvinculemos de um trajeto mais singelo para a crtica jurdica
e encontremos o direito nO capital. No s formalmente encontramo-lo a, j que o texto de
Marx fonte de reflexes jurdicas aparentemente esquecidas pela maioria da teoria crtica do
direito, mas tambm materialmente. A circulao de mercadorias implica circulao de
sujeitos de direito formalmente equivalentes entre si e este o cerne do debate marxiano.
certo que tambm nos aventuramos por outros territrios em que Marx realizou a crtica
jurdica, mas O capital acabou sendo nossa inspirao central. A partir dele, inclusive,
excursionamos por consideraes acerca dos movimentos populares na leitura de Marx e
Engels. Nosso captulo 3 acabou sendo, pois bem, o centro gravitacional de nossa tese.
Com base no mtodo de Marx, que para ns adquire a silhueta criativa dos elementos
de totalidade, historicidade, essencialidade e dialtica, o direito pde ser encontrado no capital
(mais que na rua). A partir de uma imerso na leitura de O capital, resgatamos a teoria do
valor e estabelecemos suas relaes com a teoria do direito, em especial a construo de um
sentido no universal para o jurdico que est intimamente imbricado, como relao jurdica,
com a forma do valor, o valor de troca. Desta imerso resulta uma interpretao do jurdico
que se expressa conforme os sentidos que lhe empresta o capital assim como suas formas:
havendo uma forma jurdica essencial, a relao jurdica, haver tambm formas jurdicas
aparentes a legislativa e a judicial. Alm de estas, tambm formas transitivas, todas elas
fundadas em uma forma de regulao social decorrente da produo. Agregadamente a tudo
isto, constatamos que a crtica emancipao poltica repercute como crtica s funes
declaratria e constitutiva dos direitos do homem e do cidado, respectivamente; que a crtica
ao estreito horizonte jurdico burgus representa uma crtica ao direito potencialmente
extinguvel ainda que remanescente na transio revolucionria; e que o movimento operrio
passa a ser a sntese de formas de revolta, relaes sociais do sujeito coletivo dentro e fora da
ordem jurdica (ou seja, o movimento social como forma reivindicativa prpria do modo de
produo capitalista).
Complementarmente a uma crtica marxiana do direito, desenvolvemos a
interpretao das crticas marxistas ao fenmeno jurdico, especialmente a decorrente do
legado sovitico. Se a crtica jurdica de Marx no est sistematizada em um volume dedicado
integralmente a isto, ela no desaparece por conta deste fato. E assim que os juristas
soviticos, mormente Pachukanis, desdobram suas anlises a partir das explicaes de Marx.
Ao mesmo tempo em que nos dedicamos mais sistemtica das crticas marxistas ao direito,
jungimos os primeiros experimentos de nossa proposta de direito insurgente, em
conformidade com o acoplamento entre crtica relao jurdica e o projeto poltico que
23
orienta tal crtica. Por isso, os textos chamados polticos de Marx e Engels, assim como as
indicaes de Lnin e dos juristas soviticos, no s Pachukanis mas tambm Stucka, passam
a ganhar considervel peso em nossa trilha terica. Neste nvel de anlises, propomos uma
teoria jurdica da transio socialista, que no implica uma subordinao da transio ao
fenmeno jurdico, mas que tambm no desconsidera sua funo a dentro. Mesmo assim,
alertamos para a conjuntura em que tal teorizao possvel a inspirao revolucionria
russa e apontamos para os descaminhos dessa mirada, com referncia crtica jurdica
europia. Este, o percurso do captulo 4.
A partir de uma crtica marxista, entrementes, no apenas a estrutura do fenmeno
pode ser evocada, mas tambm seus desdobramentos polticos. Seguindo a senda de Marx,
Engels e Lnin chegamos, ento, s duas (re)fundaes da crtica jurdica, como crtica
relao jurdica e como projeto poltico. O debate que acaba por legitimar esta refundao o
dos juristas soviticos na primeira dcada da revoluo russa. Tanto Stucka quanto
Pachukanis pautam-se na crtica da economia poltica de Marx para compreender o fenmeno
do direito, mas do espao para um uso ttico do direito (Stucka de maneira sistemtica;
Pachukanis, em especial em um texto sobre Lnin de 1925, de forma mais residual).
Independentemente disso, a crtica pachukaniana ao direito a que consegue chegar a uma
definio sistemtica do significado do fenmeno, como forma jurdica que garante a
circulao de mercadorias entre iguais sujeitos de direito.
Ainda que seja inusual diz-lo, a partir de nossa interpretao de Marx chegamos a
aproximaes com relao proposta de Pachukanis, em quem se verificam as formas
jurdicas, a partir de suas dimenses essencial ou aparentes (agora, para ns, como forma
fundante e forma essencial, forma legal, forma judicial, forma moral e forma privada). Como
decorrncia, a possibilidade de aliar tais formas dimenso do uso ttico do direito, ainda que
sempre lembrando o contexto totalmente diverso em que elas foram elaboradas, o da
revoluo bolchevique, que nos encaminha para uma reflexo sobre a relao entre usos
polticos do direito e as formas de transio do modo de produzir a vida hegemnico para um
novo. Assim, sentidos e formas ensejam a anlise dos usos polticos do direito e das
caractersticas do horizonte de transio que provocam. Neste mbito, a questo da transio
acaba sendo crucial para uma crtica forma jurdica que admita o uso poltico do direito (por
isso a importncia de denotar seu declnio dada a consolidao do direito como instncia
universalizvel no debate europeu posterior).
Como o ltimo momento de nossa reflexo, tratamos de reconsiderar a crtica
jurdica marxista no contexto latino-americano, sem olvidar das indicaes iniciais atinentes
24
problemtica da dependncia no capitalismo perifrico. Desse modo, revalidamos o marxismo
neste contexto, para os fins de nossa investigao, e apresentamos as suas possibilidades.
Entre crtica e insurgncia uma crtica como negatividade histrica e insurgncia como
possibilidade transitria , estabelecemos os condicionantes de nossa interpretao. Com isso,
aparecem as dimenses da insurgncia e sua cardealidade para a compreenso das
contribuies latino-americana e brasileira de crticas jurdicas. Ao fim, resgatando as
intuies e momentos auges das teorias crticas assinaladas, damos vida ao que entendemos
por direito insurgente, um conjunto de relaes jurdicas que envolvem, por sua vez, as
relaes dos movimentos populares, no capitalismo dependente, e que fazem um uso ttico do
direito, com o horizonte de sua extino. Aqui, todo o debate do derradeiro captulo 5.
Este ltimo momento de nosso debate remete ao sumo de nossa proposta de tese,
qual seja, o da construo da teoria de transio em um contexto geopoltico no
revolucionrio com o direito insurgente. A insurgncia possui dimenses (sociolgica,
histrica ou filosfica) e abre espao para sua combinao com a questo do direito. Em
grande medida, a crtica jurdica latino-americana burilou esta possibilidade, mas, premida
por circunstncias diversas, acabou por estancar suas possibilidades. A nosso ver, o debate
paradigmtico realizou-se com a crtica jurdica mexicana, que trouxe lume posies tais
como a do direito como arma de libertao que nasce do povo e a da forma normativa como
crtica da ideologia jurdica. Por sua vez, a crtica jurdica brasileira passou por um processo
de esgotamento que s a conjugao entre marxismo jurdico e a prxis dos assessores
jurdicos populares que esculpiram um direito insurgente poderia resgatar. Eis a nossa tarefa.
Absorvendo o debate acerca da especificidade da forma jurdica, mas incorporando tambm
os resultados tericos da prtica da assessoria jurdica popular, chegamos reconstruo da
teoria crtica do direito pelo direito insurgente. Por meio deste ltimo, elaboramos as costuras
possveis com relao ao giro descolonial do poder, com os movimentos populares e com as
crticas marxiana e marxista ao direito, para apontar para um programa de pesquisa que leve
em conta a relao jurdica dependente e o dilogo entre pensamento crtico latino-americano
e marxismo.
Esta a fotografia possvel da exposio para a qual convidamos a partir de agora. O
risco do pensar crtico se atenua com a necessidade da urgncia por transformaes estruturais
que a realidade exige. Em tempos de quarentena do pensamento nico, ainda no fomos
postos frente de uma batalha das idias em que a ela adiram as maiorias para as quais nosso
discurso se destina. Ainda assim, cremos na possibilidade futura de uma retomada do
pensamento crtico, que j se avista em insatisfaes coletivas ainda no organizadas em
25
movimentos sociais. Por isso que feita a triagem inicial com respeito aos vrios momentos
de nossa tese, encaminhamos a leitura da mesma, sugerindo a abertura a uma crtica marxista
ao direito desde o horizonte geopoltico latino-americano.
26
1. MOVIMENTOS POPULARES: QUESTES PRELIMINARES
A reflexo crtica sobre o direito, na Amrica Latina, exige pontos de partida e, ao
mesmo tempo, esforo de superao de lugares comuns. O nosso esforo, neste trabalho, ser
o de superar uma viso universalista do direito (que tem no normativismo jurdico sua
principal ancoragem). Portanto, no podemos comear nosso discurso pelo direito mesmo,
ainda que ele seja parte do objeto de nossa preocupao. A outra parte diz respeito aos grupos
sociais que tornam possvel esta crtica.
Nas ltimas dcadas, o fenmeno social dos movimentos populares adquiriu
importncia diferenciada, j que se tornou o centro de vrias polmicas e apostas no
capitalismo contemporneo. Polmicas e apostas estas que giram em torno de questes como
as que povoam os debates da esquerda principalmente, quanto ao papel da organizao
classista e acirram os conflitos entre um pensamento conservador e um crtico quanto
legitimidade ou no de tais movimentos.
A ttulo de debatermos estas questes, considerando-as preliminares, procuraremos
realizar uma breve caracterizao dos movimentos populares neste cenrio, a partir daquilo
que consideramos sejam suas disjuntivas polticas, para, na seqncia, inserirmo-nos no
debate que mobiliza as investigaes jurdico-crticas atuais em torno da relao entre tais
movimentos e o direito mesmo. Vamos a estas questes preliminares.
1.1. AS DISJUNTIVAS POLTICAS DOS MOVIMENTOS POPULARES NA
CONJUNTURA LATINO-AMERICANA
De que maneira podemos entender os movimentos populares? Desde uma
perspectiva que faz sentido na periferia do capitalismo, preciso, em primeiro lugar, assinalar
a sua razo de ser. Veremos, mais adiante (no captulo 3), que os movimentos populares so
formas sociais prprias de um determinado tempo histrico. Nosso ponto de partida ,
portanto, a interpretao marxista segundo a qual as relaes sociais aparecem
necessariamente atreladas s formas de produo da vida, ainda que isto no implique
determinismos de nenhuma espcie, uma vez que a produo da vida se rege pela totalidade
das formas a partir das quais os homens e as mulheres realizam sua existncia.
27
Desde logo, o primado da produo da vida aparece e permite a compreenso dos
fenmenos sociais. Seja sob uma perspectiva marxista ortodoxa (portanto, no dogmtica),
seja a partir de uma viso latino-americana do marxismo (s vezes marxismo criativo, s
vezes heterodoxo) e com ambas dialogamos ns o foco a ser realizado o da explicao
transformadora da realidade percebida como desigual, injusta ou opressora. A este contexto
de explorao e dominao nos reportamos lanando mo de uma noo que permita integrar
os seus elementos centrais. Assim, a partir da evidenciao de crtica e busca de superao
dos cortes estruturais da sociedade, caminhamos em nossa proposta de anlise.
Os cortes estruturais da sociedade representam o conjunto de relaes marcadas pelas
inerentes formas de classificao social havidas sob o sistema mundial capitalista moderno e
colonial. Teremos oportunidade, mais frente, de elucidar os sentidos que damos a este
contexto geral, uma vez que partimos de uma explicao descolonialista para a relao entre
direito e movimentos populares. Por ora, gostaramos de ressaltar referidos cortes estruturais,
noo guia de nossa explanao.
A meno a estruturas, aqui, no importa adeso a nenhuma espcie de
estruturalismo nem tampouco, em termos de marxismo, a um reducionismo de compreenso
da realidade social metfora dicotmica infra-superestrutura (sobre a qual tambm
falaremos no captulo 3). Em verdade, os cortes estruturais da sociedade, tal como os
utilizamos aqui, se referem a um entendimento continuamente relacional a respeito dos
fenmenos sociais.
Os cortes estruturais aos quais nos referimos so os de classe, os de raa/etnia e os de
gnero e, mais do que meros marcadores de diferenas, consubstanciam-se em relaes
sociais magnetizadoras das complexas polarizaes que caracterizam a sociedade capitalista
(e, portanto, moderna).
Sem dvida alguma, a inspirao primeira a nos conduzir nessa proposta, e sobre a
qual apenas pincelaremos nosso entendimento por enquanto, a leitura de Marx, ainda que
sob chave latino-americana. Dentre as vrias possibilidades de utilizao do conceito classe
social, tendemos quele no qual se sobressai o mximo de especificidade histrica, para
designar o arranjo societrio inerente ao sistema de produo capitalista. Florestan Fernandes
se aproxima deste conceito estrito de classe social da seguinte maneira:
a classe social s aparece onde o capitalismo avanou suficientemente para associar, estrutural e dinamicamente, o modo de produo capitalista ao mercado como agncia de classificao social e ordem legal que ambos requerem, fundada na
28
universalizao da propriedade privada, na racionalizao do direito e na formao de um Estado nacional formalmente representativo.1
No nos toca, aqui, revisar o que h de especfico no pensamento de Fernandes (e
percebamos o lugar especial destinado ao direito na conceituao), mas apenas indicar que
sua formulao abre espao para a incorporao de interessantes tendncias de contato do
conceito de classe social. Portanto, com isto queremos dizer que, nessa perspectiva, as classes
configuram a sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, atraem outras formas de classificao
social to determinantes quanto. Ainda que sob o risco de ampliarmos em demasia o espectro
das formas de classificao social, acreditamos que superamos tal risco na medida em que
delimitamos nosso horizonte histrico referente modernidade como sendo marcado pela
subordinao do trabalho, por suas intrnsecas origens coloniais e pela reconfigurao
evidente do patriarcado. Da classe, raa e gnero serem os cortes estruturais de nossa
sociedade.
A nosso ver, Anbal Quijano quem expressa tais cortes de modo mais exemplar, ao
denomin-los por formas de classificao social: desde a insero da Amrica no
capitalismo mundial moderno/colonial, as pessoas se classificam e so classificadas segundo
trs linhas diferentes, mas articuladas em uma estrutura global comum pela colonialidade do
poder: trabalho, gnero e raa.2 Segundo Quijano e teremos oportunidade de ver essas e
outras questes referentes a seu pensamento no prximo captulo a totalidade social tem
uma estrutura heterognea cuja caracterizao no impede que haja elementos primaciais.
Estas primazias so atinentes a eixos de articulao, tais como o trabalho no capitalismo, e
dependem do sistema ao qual se faz referncia. No podemos deixar de indicar que Quijano,
tendo origem em reflexes sociolgicas marxistas acaba por critic-las quando simplificam a
realidade; no entanto, entendemos que esta simplificao estranha ao marxismo mesmo e,
assim, podemos incorporar muitas das contribuies do autor em nossa perspectiva.
Pois bem, os eixos de articulao do conjunto se do conforme os padres de poder
(que colonial, capitalista e moderno) e sugerem a necessidade de sua reverso, para
subverter as lgicas sociais de explorao do trabalho, de apartao racial e dominao
patriarcal. Em termos de totalidade, trata-se, sem dvida, de uma sociedade dividida em
classes (formalmente, proprietrios e no proprietrios dos meios de produo; materialmente, 1 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na Amrica Latina. 4 ed. rev. So Paulo: Global, 2009, p. 41. 2 QUIJANO, Anbal. Colonialidad del poder y clasificacin social. Em: CASTRO-GMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramn (eds.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistmica ms all del capitalismo global. Bogot: Siglo del Hombre; IESCO/Universidade Central; Instituto Pensar/Pontificia Universidad Javeriana, 2007, p. 115.
29
detentores do saber tcnico e despossudos da subjetividade de produtores diretos), mas, ao
mesmo tempo, de classes sociais em que se acoplam as classificaes tnicas e de gnero de
modo a constituir um conjunto de relaes subordinantes, classificatrias e imbricadas umas
s outras. Os movimentos populares dizem respeito organizao social que se orienta pela
contestao de eixos articulares de nossa realidade social.
Preferimos utilizar o termo movimento popular (ao invs de movimento social, ou
outro) j que incorporamos em nossa reflexo a necessidade de nos atermos articulao
classe-raa-gnero. Tendo por foco a crtica sociedade capitalista, a questo referente s
classes sociais tem primazia (assim como se nos referimos sociedade colonial ou
colonizada, haver destaque para a classificao tnico-racial, ou ao patriarcado, para as
opresses de gnero). No entanto, esta primacialidade implica um amplo espectro de aes
coletivas que podem se destinar ao questionamento tanto de configuraes essenciais ao
capitalismo (por exemplo, a subsuno do trabalho ao capital) quanto de seus elementos
menos profundamente explicativos (a reivindicao por igualdade ou liberdade jurdicas). Os
movimentos populares, portanto, no se confundem com a classe social, mas so um
momento organizativo especfico dela. Nem so a classe social objetivamente, j que neste
caso implicaria uma identidade cabal entre ambos, logo um esgotamento da classe como algo
mais amplo que os movimentos; nem so a classe social subjetivamente, j que nem sempre
carregam consigo a autoconscincia classista, que seria prpria das organizaes partidrias,
no sentido marxista (tocaremos esta questo no captulo 4). Em verdade, os movimentos
populares so uma mediao organizativa entre os sentidos objetivo e subjetivo de classe que
agrega condies tnicas e de gnero.
Temos por base, ento, a proposta de que a noo de popular mais condizente
com o sentido organizativo que os movimentos ensejam. Da nossa preferncia pelo termo
movimento popular, j que movimento social referir-se-ia a todas as formas de organizao
social (inclusive, as formas conservadoras e/ou burguesas) e movimento operrio
significaria uma especificao ainda maior, com a qual no estamos trabalhando no contexto
latino-americano (apesar de ser uma dentre as realidades possveis do movimento popular).
Nem por isso, contudo, deixamos de realizar a aproximao com a idia de classe, j que a
nica abordagem plausvel para uma interpretao cientfica dos movimentos populares e, em
30
geral, de todos os movimentos sociais consiste em consider-los, dinamicamente e em toda
sua complexidade, com referncia s classes sociais.3
Este mbito da discusso remete ao problema do sujeito histrico, e coletivo, que
capaz, em nosso contexto, de catalisar as condies necessrias para levar adiante a ruptura
com relao sociedade que admite os cortes estruturais a que nos referimos. A partir deste
questionamento clssico da teoria da organizao poltica revolucionria, vrias tentativas de
respostas j foram dadas. Certamente, no nos aventuraremos por repaginar a totalidade da
discusso nem tampouco ensaiar uma resposta original. Apenas teremos por inteno oferecer
argumentos que justifiquem o interesse pelos movimentos populares.
Desde a teoria da dependncia, com a qual nos encontraremos no captulo 2 seguinte,
j vemos sinais dessa polmica. Ruy Mauro Marini nos diz que restringir a classe operria
aos trabalhadores assalariados que produzem a riqueza material, isto , o valor de uso sobre o
qual repousa o conceito de valor, corresponde a perder de vista o processo global da
reproduo capitalista. Qual a implicao desta forma de interpretar as classes sociais desde
Marx? Principalmente, que h espao para o sujeito revolucionrio tomar contornos para alm
de os pressupostos relativos a um purismo da noo de proletariado. Alis, a prtica poltica
bem o comprova e o comprovou historicamente, com as alianas polticas reincidentes nos
processos revolucionrios, desde 1917. Assim, Marini chega concluso de que a tendncia
do sistema aumentar, nunca diminuir, a classe operria, isto , aquela categoria social
formada por trabalhadores pagos mediante o investimento de capital varivel e cuja
remunerao sempre inferior ao valor do produto de seu trabalho.4 Portanto, tem vez aqui
um conceito ampliado de classe operria, a partir do debate em torno do trabalho produtivo
(Marini fala em operrio coletivo, operrios assalariados mercantis e demais operrios
da circulao5).
Dentro do marxismo latino-americano, outras discusses se deram. Talvez uma das
mais difundidas tenha sido a proposta de Ricardo Antunes. Para ele, h de se ter em conta
uma noo ampliada de classe trabalhadora, incluindo todos aqueles e aquelas que vendem
sua fora de trabalho em troca de salrio: no s o clssico proletariado industrial, mas
tambm o rural, o do setor de servios, os precarizados, terceirizados e informais, e at
3 CAMACHO, Daniel. Movimentos sociais: algumas discusses conceituais. Em: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. Uma revoluo no cotidiano?: os novos movimentos sociais na Amrica Latina. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 224. 4 MARINI, Ruy Mauro. O conceito de trabalho produtivo: nota metodolgica. Em: _____. Dialtica da dependncia: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrpolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 249-250. 5 MARINI, R. M. O conceito de trabalho produtivo, p. 246-249.
31
mesmo o extra-assalariamento das mulheres, em casa. Antunes oferece-nos, assim, a
possibilidade de visualizar, ao nvel da diviso do trabalho, todos os cortes estruturais, j que
o trabalho intensivo estaria sendo destinado s mulheres trabalhadoras (e, muito
freqentemente tambm aos trabalhadores/as imigrantes e negros/as).6 Tudo isto d vida
noo de classe-que-vive-do-trabalho:
a classe-que-vive-do-trabalho, a classe trabalhadora, hoje inclui a totalidade daqueles que vendem sua fora de trabalho, tendo como ncleo central os trabalhadores produtivos (no sentido dado por Marx, especialmente no Captulo VI, Indito). Ela no se restringe, portanto, ao trabalho manual direto, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo assalariado. Sendo o trabalhador produtivo aquele que produz diretamente mais-valia e participa diretamente do processo de valorizao do capital, ele detm, por isso, um papel de centralidade no interior da classe trabalhadora, encontrando no proletariado industrial o seu ncleo principal. Portanto, o trabalho produtivo, onde se encontra o proletariado, no entendimento que fazemos de Marx, no se restringe ao trabalho manual direto (ainda que nele encontre seu ncleo central), incorporando tambm formas de trabalho que so produtivas, que produzem mais-valia, mas que no so diretamente manuais.7
Conseguimos enxergar, aqui, uma linha de continuidade entre as posies de Marini
e Antunes, ainda que elas no sejam idnticas, estando ambos preocupados com uma
definio que lhes permita no cindir a caracterizao do centro nervoso do capital com as
possibilidades de sua superao. Assim, se o sujeito revolucionrio , ontologicamente, o
proletariado, ele no pode restar restringido a uma categoria social que no mais adquire a
centralidade poltica que tinha no sculo XIX europeu.
Da que aventamos, inclusive, uma posio mais heterodoxa, e que se aproxima ao
conceito de povo, para operacionalizar tal abertura. Veremos que os movimentos sociais so
uma forma prpria ao capitalismo. Porm, preciso resguardar nossa posio de posturas
eurocntricas. Se verdade que os movimentos sociais (feitos por massas de explorados) se
perfectibiliza sob a lgica do capital, tambm verdade que ela agrega outras formas de luta,
como as anticoloniais e antiescravistas, e assim por diante. Uma definio dada por Enrique
Dussel parece ser compatvel com o debate geral que fazemos:
povo o bloco comunitrio dos oprimidos de uma nao. O povo constitudo pelas classes dominadas (classe operrio-industrial, camponesa, etc.), mas alm disso por grupos humanos que no so classe capitalista ou exercem prticas de classe esporadicamente (marginais, etnias, tribos, etc.). Todo este bloco no sentido de Gramsci o povo como sujeito histrico da formao social, do pas
6 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. 10 reimp. So Paulo: Boitempo, 2009, p. 105. 7 ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho..., p. 102.
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ou nao. Povo cubano, povo nicaragense, povo brasileiro so os que atravessam a histria das diversas totalidades prtico-produtivas: pr-hispano-lusitanas, colonial, neocolonial, e ainda sujeitos das sociedades ps-capitalistas. [...] O povo como dominado massa; como exterioridade reserva escatolgica; como revolucionrio construtor da histria.8
Com base nesse debate que nos coloca entre classe e povo que chegamos noo
de movimentos populares como a que aparece propcia a ser enfocada em nossa investigao.
Mais do que, todavia, realar a dimenso epistmica que aporta, tambm nos interessa
caracterizar sumariamente o fenmeno, com a finalidade de apresent-lo como forma
contraditria em face da qual se poder utilizar a noo, igualmente marcada por
contradies, do direito insurgente. A nosso ver, os movimentos populares constituem-se por
disjuntivas, as quais do margem para uma aproximao com o direito e com a insurgncia, a
um s tempo.
A discusso atual acerca dos movimentos populares tributria de uma
dicotomizao entre velhos e novos movimentos sociais. A tentativa de diferenciao, aqui,
gira em torno de colocar em tela novas demandas em face daquelas consolidadas no sculo
XIX, pelos movimentos massivos de trabalhadores. Assim, os velhos movimentos sociais
seriam caracterizados pelas formas organizativas sindicais, partidrias e cooperativas, ao
passo que os novos se distinguiriam por suas pautas territoriais e identitrias. No entanto,
entre trabalho e identidade reside uma falsa dicotomia, uma vez que, para o debate marxista,
so complementares. A distino vlida em termos de formas aparentes de concretizao da
organizao dos movimentos populares, porm no pode ser tomada como uma nova matriz
de inteleco do fenmeno. Em especial, na Amrica Latina, classe e identidade imbricam-se,
ao menos sob um ponto de vista popular como bloco histrico dos oprimidos.
Diante desse quadro, podemos inferir que os movimentos populares representam
momentos oscilatrios entre plos complementares, ainda que mais enraizveis que a falsa
contradio entre o velho e o novo. Entendemos, entrementes, que a questo pode ser
resumida a partir de disjuntivas, que do a tnica da aproximao ao contedo geral dos
movimentos populares. Elegemos quatro disjuntivas para esta tarefa de caracterizao:
a) Espontaneidade-organizao: os movimentos populares apresentam-se entre os
levantes espontneos e as construes rigorosamente planejadas. certo que podemos tom-
los como decorrncia da organizao popular, mas tambm inegvel que possuem graus
organizativos diferenciados de organizaes mais rgidas, ainda que isto possa ser tido como a
8 DUSSEL, Enrique Domingo. tica comunitria: liberta o pobre! Traduo de Jaime Clasen. Petrpolis: Vozes, 1986, p. 97.
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espcie de um gnero maior. Dissemos que, em termos de classes sociais, os movimentos
sociais so uma mediao entre a classe objetivamente falando, sem, contudo, se identificar
necessariamente com a classe organizada em partido, intersubjetiviamente falando. Para nos
expressarmos mais claramente, os movimentos sociais (e, para o que nos interessa, os
populares) no podem ser considerados como sinonmia da organizao partidria, ainda que
esta seja uma sua espcie. Logo, demonstram a contradio em que aparecem e criam o
espectro de sua atuao que pode ser visualizada nas chamadas revolues magrebinas de
2011 (no norte da frica, principalmente nos exemplos egpcio e tunisiano), bem como nas
manifestaes de junho e julho que o Brasil presenciou em 2013. Ou nas aes gestadas pelos
zapatistas mexicanos por pelo menos uma dcada antes de sua apario pblica (na verdade,
desde 1969, quando da fundao das Foras de Libertao Nacional-FLN, das quais surgiria o
Exrcito Zapatista de Libertao Nacional-EZLN, criado em 1983 e tornado pblico em
1994). Estes exemplos extremos de movimentos populares, alis, fazem enfatizar o seu
enfrentamento com governos autoritrios e conservadores.
b) Reivindicao-contestao: talvez a disjuntiva que permita mais facilmente
aproximar os movimentos populares ao direito seja esta, uma vez que a contradio de tais
movimentos reivindicar a ordem posta e, ao mesmo tempo, refut-la, dada a impossibilidade
congnita de sua universalizao. Sob o capitalismo e dentro da ordem, reivindicam o estado,
a cidadania e o direito; para alm das relaes capitalistas e contra esta mesma ordem social,
econmica e poltica, questionam o formalismo e a explorao do trabalho delas decorrentes.
Assim, os movimentos camponeses reivindicam a reforma agrria e, portanto, a distribuio
da propriedade. No entanto, estes mesmos movimentos impulsionam formulaes e aes que
destacam o carter impossvel desta distribuio de terras no Brasil. Nesse sentido, a Via
Campesina um exemplo eloqente, que alberga o Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), logo, pequenos
proprietrios e no proprietrios (ainda que nunca grandes proprietrios, o que muito
significativo).
c) Denncia-anncio: se contestam, os movimentos populares denunciam a ordem
posta, mas no se trata de uma acusao sem utopias, ainda que concretas. Alis, o
pensamento crtico acentua muito um uso poltico da utopia, a qual pode servir de reserva
contra fatalismos de todo tipo. Com os movimentos populares no diferente, j que possuem
um horizonte utpico delimitvel. Desse modo, a denncia do patriarcalismo, do racismo e da
superexplorao do trabalho existe sob o pressuposto de, ao mesmo tempo, ressaltar a
necessidade de articular um horizonte que responda superao dessas opresses
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estruturantes. Foi isto o que permitiu anunciar e criar, com todas as contradies a inerentes,
desde a Aliana Bolivariana para as Amricas (ALBA), contra a rea de Livre Comrcio das
Amricas (ALCA), at o outro mundo possvel do Frum Social Mundial (FSM),
sublinhando-se os vrios matizes de um imaginrio anticapitalista.
d) Especificidade-totalidade: com esta ltima disjuntiva, voltamos aos argumentos
iniciais, reiterando a existncia de trs cortes estruturais em nossas sociedades. Eles tanto
mais fazem sentido quanto mais nos defrontamos com a concentrao e centralizao do
capital, com a subalternizao dos no-brancos no contexto do capitalismo dependente e com
a inferiorizao da mulher nos espaos pblicos, da poltica e do trabalho, e nos espaos
privados, como o da famlia. Logo, os movimentos populares so formas de mobilizao e
organizao popular a partir dos problemas visveis queles que so atingidos por tais cortes.
Mesmo que, porm, no advoguem por uma perspectiva que conecte, pelas razes essenciais
que consubstanciam o sistema capitalista, referidas expresses, elas existem e pem em
xeque, mesmo que de um ponto de vista parcial, as fundaes do capitalismo. Da a existncia
de um sentido de totalidade que guia a problemtica, pois o questionamento da explorao e
dominao do trabalho, de raa e de gnero levam a isso a totalidade concreta.
Eis que chegamos a uma primeira concluso cujo significado se expressa no
entendimento de que mais do que procurar o conceito de movimentos populares (ou sociais),
preciso perceb-los como mediao e fronteira entre classe e partido, marcada pelas
disjuntivas espontaneidade-organizao, reivindicao-contestao, denncia-anncio e pela
totalidade concreta. E com este repertrio de estruturas subjugadoras e aes coletivas de
resistncia que o direito tem de lidar.
1.2. DIREITO E MOVIMENTOS POPULARES: CONVERGNCIAS E PROBLEMAS
Independentemente da conceituao que se adote sobre os movimentos populares, h
uma vasta literatura sobre o tema e alguma produo terica em termos de pesquisa jurdica.
Quanto sociologia dos movimentos sociais, acreditamos que no seja o caso resenhar a
bibliografia pertinente, uma vez que j realizamos parte desta tarefa em outro momento.9 Por
9 Referimo-nos nossa dissertao de mestrado: PAZELLO, Ricardo Prestes. A produo da vida e o poder dual do pluralismo jurdico insurgente: ensaio para uma teoria de libertao dos movimentos populares no choro-
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outro lado, quanto produo interna ao campo do direito, entendemos que seja suficiente
indicar alguns dos caminhos seguidos pelos pesquisadores, a fim de nos localizarmos neste
debate.
Ainda que no possamos nos aprofundar sobre a problemtica, estamos certos da
necessidade de uma vigilncia epistmica quanto a determinar se o direito e a pesquisa
jurdica distinguem a realidade quanto ao que ela e quanto ao que dela se afirma,10 qual
se refere Ricardo Nery Falbo. No temos condies, nesta pesquisa, de realizar uma descrio
empirista (que, at certo ponto, seria produtiva, devido a seu dficit no campo jurdico) do
objeto real que nos propomos a debater. Sendo assim, fica mais evidente nossa preocupao
com um objeto terico cujo significado processual se desdobrar no contexto das relaes
entre direito e movimentos populares. E mesmo no realizando, para continuar usando o
lxico de Falbo, anlises conjunturais especficas (a comear pelo contexto de economia
globalizada no qual vivemos, sob a tnica de uma macroeconomia neoliberal em que o poder
estatal perde fora, a participao poltica se rarefaz e o mundo jurdico sofre abalos tais a
ponto de tornar-se, sem nenhum enxavimento, a economia o parmtro para as decises
polticas e jurdicas11) atentamos para o fato de que nosso caminho terico levar a uma
problemtica conjuntural, qual seja, a de resgatar a crtica jurdica marxista desde uma
conjuntura latino-americana, desenrolando-se na noo de direito insurgente. Entendemos
que nossa abordagem inova (o que at justifica a tese) na medida deste desenrolar, em que
congregamos a crtica marxista ao direito e a perspectiva marxista latino-americana, assim
como a crtica jurdica latino-americana e brasileira e alguns temas produzidos na seara da
relao entre direito e marxismo. Nossa proposta de direito insurgente, portanto e neste senso,
conjuntural.
Pois bem, desde as primeiras teorizaes da crtica jurdica os movimentos sociais
tornaram-se presentes no discurso progressista do direito na Amrica Latina (neste caso,
remetemos especialmente para o captulo 5 desta tese). No obstante, apenas na dcada de
1990 ficou evidenciada uma relativa autonomizao do debate, ganhando especificidade como
objeto de investigaes. Afora alguns precedentes havidos em torno, por exemplo, dos
debates do pluralismo jurdico (de Boaventura de Sousa Santos, Roberto Lyra Filho e outros)
ou do direito alternativo (que se tornou um movimento de juristas progressistas em fins da
cano latino-americano. Florianpolis: Curso de Ps-Graduao (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2010, p. 293 e seguintes. 10 FALBO, Ricardo Nery. Reflexes epistemolgicas sobre o direito e a prtica da pesquisa. Em: Revista direito e prxis. Rio de Janeiro: UERJ, v. 2, n. 3, 2011, p. 226. 11 LIMA, Abili Lzaro Castro de. Globalizao econmica, poltica e direito: anlise das mazelas causadas no plano poltico-jurdico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 314.
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dcada de 1980 e incio da de 1990), a relao entre direito e movimentos sociais passou a ser
estudada em debates de sociologia jurdica crtica. Significativos so os exemplos de Jos
Geraldo de Sousa Jnior, teorizando sobre o sujeito coletivo de direito,12 Joo Batista
Moreira Pinto, tratando de uma cultura jurdica instituinte a partir dos novos movimentos
sociais,13 e Jos Eduardo Faria, preocupado com a maneira pela qual os movimentos eram
interpretados pelo judicirio.14
Nosso intento no o de continuar pela senda do resgate de todas as tentativas de
relacionar direito e movimentos populares, mas, como dissemos, localizar nossa perspectiva
nesse debate. Mais recentemente, inclusive, novos estudos vm aparecendo, enfocando
preocupaes mais gerais15 ou mais particulares,16 e at mesmo questes de ordem
epistmica17 ou ainda mais prticas.18
Entendemos que, no geral, h uma temtica que sempre aparece nesses estudos, que
a da criminalizao dos movimentos sociais. Assim, este o ponto de convergncia
terico-prtico que mobiliza os pesquisadores da relao entre direito e movimentos. Esta
convergncia realiza-se quase sempre em termos de denncia do aparato do estado no que
tange represso ou marginalizao dos movimentos populares. Portanto, o direito se
apresenta sempre que o poder de polcia aparece, e o judicirio costuma ser o local
preferencial desses estudos. Ao mesmo tempo, vige uma certa posio idealizadora dos
mesmos movimentos, o que tem suas justificativas no mpeto de lhes reconhecer legitimidade
como sujeitos de direito.
A nosso ver, entretanto, exatamente este o problema que a maior parte dos estudos,
salvo algumas excees, ocasiona. Independentemente de se valerem ou no da nfase na
criminalizao aos movimentos sociais, eles irrompem por uma seara que desconsidera as
disjuntivas constitutivas do fenmeno. Considerar as disjuntivas, porm, implica lanar mo 12 Ver SOUSA JNIOR, Jos Geraldo de. Movimentos sociais emergncia de novos sujeitos: o sujeito coletivo de direito. Em: ARRUDA JNIOR, Edmundo Lima de (org.). Lies de direito alternativo. So Paulo: Acadmica, 1991, p. 131-142. 13 Conferir PINTO, Joo Batista Moreira. Direito e novos movimentos sociais. So Paulo: Acadmica, 1992. 14 Consultar FARIA, Jos Eduardo. Justia e conflito: os juzes em face dos novos movimentos sociais. 2 ed. rev. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. 15 Ver a coletnea de artigos reunida em HERKENHOFF, Joo Baptista. Movimentos sociais e direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 16 Ver a problematizao do conceito de cidadania, em leitura jurdica, a partir dos movimentos urbanos de luta por moradia, em BELLO, Enzo. Teoria dialtica da cidadania: poltica e direito na atuao dos movimentos sociais urbanos de ocupao na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Programa de Ps-Graduao (Doutorado) em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. 17 o caso da aplicao da teoria dos sistemas na relao entre direito e movimentos sociais: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretao do direito e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 18 Conferir a publicao em que se disponibiliza material processual referente a um caso de criminalizao de movimentos sociais, em FON FILHO, Aton (org.). Represso aos movimentos sociais habeas corpus fatos, feitos e resultados. So Paulo: Expresso Popular; Rede Social de Justia e Direitos Humanos, 2010.
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de um itinerrio de explicaes em que no suficiente uma noo pressuposta de direito. E
mais: sequer a crtica jurdica tradicional colabora para essa superao, j que continua
polarizando-se a partir do debate clssico entre naturalismo e positivismo jurdico (no
mximo, aparecem o ps-positivismo ou decisionismo). E mesmo que venham a se aventurar
por outras teorias, o direito como norma ou faculdade acaba prevalecendo.
Esta predominncia terica s pode ser desfeita se o direito for visto de maneira
relacional e especfica, como forma jurdica, assim como os movimentos populares
representam relaes e aparecem como uma forma prpria da modernidade capitalista. Nessa
medida, a crtica marxista ao direito precisa ser reenvidada. Por outro lado, esta mesma crtica
no deve descolar-se da realidade mais concreta na qual estamos inseridos, da nossa
insistncia em uma mirada descolonial do poder. A superao mais frente diremos:
extino do direito passa pela transformao radical das relaes sociais que o tornam
possvel e hegemnico. Esta mudana qualitativa no passvel de realizao por mero ato
volitivo dos homens em sociedade. Mas isso no implica que a luta poltica no jogue um
papel central. Da fazer sentido a reflexo que procuramos empreender aqui: a partir de uma
preocupao geopoltica, enredar a anlise crtica do direito, que o fere de morte, a um seu uso
poltico, tendo por plano maior a insurgncia.19 Subordinada a uma crtica insurgente, a
relao entre direito e movimentos populares d vez ao antinormativismo jurdico como
fundamento que no se antitetiza a um uso ttico do direito. Este todo o caminho que
seguiremos a partir de agora. O primeiro e prximo passo referente a nosso ponto de partida
geopoltico, para, a partir dele, adentrarmos na crtica marxista ao direito at que cheguemos
ao direito insurgente.
19 Iniciam