risco e saúde nos locais de trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo...

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Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* M4RIA LÍGIA RANGEL ** . Introdução A preocupação com os chamados riscos ocupacionais é relativamente recente no campo da medicina social e somente a partir da década de 70 é que a medicina do trabalho vem se desenvolvendo no Brasil como um novo campo de prática. Isso se fez observar quando se puderam sentir, de modo mais dramático e oneroso, os efeitos dos riscos à saúde nos locais de trabalho, expressos especialmente pelos elevados índices de acidentes de trabalho. Os estudos predominantes na subárea de saúde ocupacional denominam 05 fatores de risco como "riscos ocupacionais" e privilegiam análises mate- máticas para o exame das relações que se tecem em torno dos riscos e que participam da determinação dos acidentes e doenças nos locais de trabalho. Tal perspectiva nos parece ao mesmo tempo incoerente, como ressaltou Almeida Filho,l e restritiva. Outras abordagens introduzem elementos mais dinâmicos e procuram resgatar o caráter social da produção dos riscos, via o estudo dos processos Trabalho realizado junto ao Departamento de Medicina"Preventiva da UFBA, baseado na Dissertação de Mestrado em Saúde Comunitária intitulada Cadê o meu Aumento ou Vou Causar Acidente - Um Estudo de Caso da Cultura do Risco numa Indústria Petroquímica, defendida em janeiro de 1993, no DMP/UFBA. $O Médica Sanitarista da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, São Paulo. 1. N. Almeida Filho,A Clínica e a Epidemiologia, Salvador, APCE/Abrasco, 1992.

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Page 1: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

M4RIA LIacuteGIA RANGEL

Introduccedilatildeo

A preocupaccedilatildeo com os chamados riscos ocupacionais eacute relativamente recente no campo da medicina social e somente a partir da deacutecada de 70 eacute que a medicina do trabalho vem se desenvolvendo no Brasil como um novo campo de praacutetica Isso se fez observar quando se puderam sentir de modo mais dramaacutetico e oneroso os efeitos dos riscos agrave sauacutede nos locais de trabalho expressos especialmente pelos elevados iacutendices de acidentes de trabalho

Os estudos predominantes na subaacuterea de sauacutede ocupacional denominam 05 fatores de risco como riscos ocupacionais e privilegiam anaacutelises mateshymaacuteticas para o exame das relaccedilotildees que se tecem em torno dos riscos e que participam da determinaccedilatildeo dos acidentes e doenccedilas nos locais de trabalho Tal perspectiva nos parece ao mesmo tempo incoerente como ressaltou Almeida Filhol e restritiva

Outras abordagens introduzem elementos mais dinacircmicos e procuram resgatar o caraacuteter social da produccedilatildeo dos riscos via o estudo dos processos

Trabalho realizado junto ao Departamento de MedicinaPreventiva da UFBA baseado na Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Sauacutede Comunitaacuteria intitulada Cadecirc o meu Aumento ou Vou Causar Acidente - Um Estudo de Caso da Cultura do Risco numa Induacutestria Petroquiacutemica defendida em janeiro de 1993 no DMPUFBA

$O Meacutedica Sanitarista da Secretaria Municipal de Sauacutede de Campinas Satildeo Paulo 1 N Almeida FilhoA Cliacutenica e a Epidemiologia Salvador APCEAbrasco 1992

134 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

de trabalho Destacam-se sobretudo as anaacutelises de Laurell e Marquez e Laurell e Noriega2 em consonacircncia com o Modelo Operaacuterio Italiano difundido na Ameacuterica Latina principalmente pelos estudos de Berlinguer e Oddone et alli 3

Essas abordagens buscando ampliar o modelo explicativo das doenccedilas ocupacionais introduzem a expressatildeo cargas laborais que agrupa os fatores de risco Por meio dessa categoria procura-se uma espeacutecie de condensaccedilatildeo na forma de carga do conjunto de fatores em interaccedilatildeo que participam da determinaccedilatildeo dos eventos moacuterbidos nos locais de trabalho Tenta-se romper com a perspectiva de fatores isolados de seus determinanshytes sociais Nesse sentido o enfoque do social revela-se priorizando a dimensatildeo econocircmica especialmente as estrateacutegias do capital para extrair a mais-valia4 e a dimensatildeo poliacutetica particularmente a poliacutetica sindica15

O propoacutesito de estudar os determinantes sociais dos acidentes e doenccedilas nos locais de trabalho nos coloca a necessidade de examinar o conceito de risco assim como tambeacutem as formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Considerashyse para esse exame as complexas relaccedilotildees que se tecem em torno dos riscos nos locais de trabalho sejam elas de natureza econocircmica poliacutetica ideoloacuteshygica ou maacutegico-religiosa O risco eacute pensado aqui a partir de um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com a etnometodologia a qual propotildee estudar a ordem social a partir da accedilatildeo dos que dela participam Nesse enfoque teoacuterico autores como Berger e Luckmann e Goffman6 partindo dos pressupostos da fenomenologia entendem a realidade como uma construccedilatildeo do homem

A etnometodologia leva em consideraccedilatildeo os trecircs momentos que integram o processo dialeacutetico fundamental por que passam todas as sociedades a exteriorizaccedilatildeo a objetivaccedilatildeo e a internalizaccedilatildeo7 Por seu intermeacutedio os indiviacuteduos interagem com seus contextos produzindo praacuteticas e represenshy

2 A C La urell eM Marquez E I Desgaste Obrero en Meacutexico Proceso de Producccedilioacuten y Salud Coleccioacuten Problemas de Meacutexico Meacutexico Ediciones Era 1983 e A C Laurell eM Noriega Processo de Produccedilatildeo e Sauacutede Satildeo Paulo Hucitec 1989

3 G BerlinguerMedicina e Poliacutetica Satildeo Paulo Cebes-Hucitec 1978 G BerlinguerA Sauacutede nas Faacutebricas Satildeo Paulo Cebes-HucitecjOboreacute 1983 e I Oddone et aUi Ambiente de Trabalho -A Luta dos Trabalhadores pela Sauacutede Satildeo Paulo Hucitec 1986

4 A C Laurell eM Marquez EI Desgaste Obrero op cito 5 I Oddone et aUiAmbiente de Trabalho op cit e A C Laurell eM Noriega Processo

de Produccedilatildeo op cito 6 P Berger e T LuckmannA Construccedilatildeo Social da Realidade Petroacutepolis Vozes 1976 e E

GoffmanA Representaccedilatildeo do Eu na Vida Cotidiana Petroacutepolis Vozes 1975 7 M C L Braga Conceitos Fundamentais da Etnometodologia Salvador 1977 mimeo

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 135

taccedilotildees sociais as quais seriam para Goffman8 a expressatildeo que o indiviacuteduo transmite - os sUacutellbolos verbais - e emite que inclui uma ampla gama de accedilotildees decorrentes de razotildees diferentes da informaccedilatildeo transmitida

O momento da exteriorizaccedilatildeo eacute definido tendo como base a compreensatildeo de que a sociedade eacute produto da atividade do homem a partir da qual ele constroacutei o mundo da cultura9 A partir dessa noccedilatildeo eacute que buscamos ver o risco na atividade humana do trabalho

O momento da objetivaccedilatildeo diz BragalO eacute o da transformaccedilatildeo da cultura em realidade o que o homem faz ao atuar em grupo Eacute o momento da relaccedilatildeo do homem com o mundo objetivo quando ele experimenta a coisa objetiva praticando-a Eacute nesse momento que as caracteriacutesticas ou a natureza da coisa objetiva se impotildee ao indiviacuteduo definindo por seu lado as formas das praacuteticas e representaccedilotildees

O momento seguinte eacute o do retorno da internalizaccedilatildeo quando o homem se apropria da mesma realidade e subsequumlentemente transforma as estrushyturas do mundo objetivo em estruturas da sua consciecircncia subjetiva

Eacute a partir dessa concepccedilatildeo que desenvolvemos o conceito de risco buscando identificar a sua natureza as suas caracteriacutesticas primeiras que se impotildeem objetivamente ao homem para entender as possibilidades de consshytruccedilatildeo de sua realidade em uma sociedade plural

Risco - imprecisatildeo conceituai

Risco e perigo satildeo termos frequumlentemente usados de modo indistinto Tal imprecisatildeo conceituaI traz dificuldades para problematizar um e outro quando tomados como objetos de estudo

No campo cientiacutefico encontramos o risco definido de maneira variada na economia e engenharia industrial ele eacute descrito como probabilidade de ocorrecircncia de dano em um tempo ou nuacutemero de ciclos operacionais ou como variaacutevel muacuteltipla prescrita cercando a vida laborativa que pode acarretar dano (azar)

A noccedilatildeo de risco como azar eacute construiacuteda ao lado da noccedilatildeo de perigo em uma elaboraccedilatildeo tautoloacutegica em que risco se define por si mesmo

8 E Goffman A Representaccedilatildeo do op cit p 12 9 M C L Braga ConCeitos Fundamentais op cit p 6 10 Idem

136 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

[ ] um risco pode estar presente mas pode haver baixo niacutevel de perigo devido agraves precauccedilotildees Assim um banco de transformadores de alta voltagem possui um risco inerente de eletrocussatildeo uma vez que esteja energizado Haacute um alto niacutevel de perigo se o banco estiver desprotegido no meio de uma aacuterea de pessoas [ ]11

o risco tomado assim como caracteriacutestica do ambiente externo ao indiviacuteduo sendo portanto apenas objetivado torna possiacutevel seu controle e reduccedilatildeo a partir de uma intervenccedilatildeo programada sobre as condiccedilotildees objetivas Essa noccedilatildeo natildeo fica contudo isenta de derivaccedilotildees de ordem econocircmica poliacutetica e ideoloacutegica Segundo Duelos12 ela se filia a uma concepccedilatildeo que J Short chama de uma verdadeira induacutestria de anaacutelise do risco Desenvolvida especialmente nos Estados Unidos para ela satildeo constituiacutedos quadros comparativos de avaliashyccedilatildeo social dos riscos que buscam exprimir a variaccedilatildeo em termos monetaacuterios desenvolvendo uma espeacutecie de gerenciamento do mesmo Isso segundo Dushyelos tem influenciado o modo de pensar dos atores em corpos profissionais distintos

Por outro lado no niacutevel econocircmico esse modo de ver o risco daacute lugar a um novo ramo industrial de produccedilatildeo de equipamentos voltados para a proteccedilatildeo individual e coletiva

No plano ideoloacutegico daacute substrato a dois conceitos que baseados na doutrina de concausalidade informam as decisotildees juriacutedicas em caso de ocorrecircncia de acidentes com trabalhadores o ato inseguro e a condiccedilatildeo insegura Tais conceitos fragmentam de forma artificiosa um uacutenico momento do processo de trabalho

A epidemiologia voltada para a compreensatildeo da distribuiccedilatildeo e causalidade das doenccedilas utiliza o conceito de risco tambeacutem pautada no modelo matemaacutetishyco Almeida Filho e Rouqueyrol o definiram como o correspondente epideshymioloacutegico matemaacutetico da probabilidade de ocorrecircncia de um evento referido a um tempo e a uma populaccedilatildeo 13 Este conceito eacute similar ao anterior permitindo enfocar apenas parte do fenocircmeno risco As caracteriacutesticas da populaccedilatildeo e da doenccedila (ou dano) satildeo separadas em fatores que combinados mediante relaccedilotildees matemaacuteticas datildeo estimativas de probabilidade de o dano ocorrer Os fatores de risco satildeo desse modo elementos fragmentados do indiviacuteduo ou do seu meio sociocultural e estudados em uma relaccedilatildeo matemaacutetica e naturalizada

11 De Cicco e Fantazzini Introduccedilatildeo agrave Engenharia de Seguranccedila de Sistemas Satildeo Paulo Fundacentro 1979

12 D Duelos La Construction Sociale du Risque Le Cas des Ouvriers de la Chimie Face aux Dangers Industrieis Paris Conservatoire National des Arls et Meacutetiers 1986

13 N Almeida Filho e E Rouqueyrol Introduccedilatildeo agrave Epidemiologia Modema Rio de Janeiro Abrasco 1990 p 3

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 137

Assim essas disciplinas definem o risco conferindo privileacutegio a algumas dimensotildees que satildeo apenas fragmentos de uma totalidade complexa relaccedilatildeo nuacutemero de ciclos operatoacuterios ou tempos e dano na engenharia e economia relaccedilatildeo populaccedilatildeo doenccedila e tempo na epidemiologia

No campo da epidemiologia observam-se esforccedilos de alguns autores em favor de um novo paradigma reconhecendo a existecircncia de uma crise episteshymoloacutegica que se revela de modo mais evidente quando satildeo analisadas as ambiguumlidades contradiccedilotildees inconsistecircncias em torno do conceito de risco como bem ressaltou Almeida Filho 14

Quanto ao perigo eacute definido por Cicco e Fantazzini expressando uma exposiccedilatildeo relativa a um risco que favorece a sua materializaccedilatildeo em dashynos1 5 No Novo DicionaacuterioAureacutelio da Liacutengua Portuguesa encontramos perigo significando circunstacircncia estado ou situaccedilatildeo que faz prenuacutencio de um mal a algueacutem ou algo O risco eacute definido como perigo mais possiacutevel que provaacutevel

Deduz-se que geralmente perigo eacute conceituado como sinocircnimo de risco pois este (no conceito matemaacutetico) se manifesta no proacuteprio dano Ou o risco eacute diferenciado do perigo isentando-o da relaccedilatildeo matemaacutetica definindo-o como exposiccedilatildeo circunstacircncia estado situaccedilatildeo

Risco - uma construccedilatildeo social

Pensar o risco como uma construccedilatildeo social o distingue do perigo por ser aquele conhecido experimentado e nomeado pelo homem enquanto tal O perigo no nosso entender eacute o que permanece desconhecido invisiacutevel e inesperado Porque existe enquanto construccedilatildeo social tecido em meio a relaccedilotildees sociais eacute que o risco pode ser mensurado matematicamente e sobre suas relaccedilotildees eacute possiacutevel intervir

Poreacutem o caraacuteter de virtualidade e de liminaridade eacute comum a ambos O perigo distingue-se do risco por antecedecirc-lo e estar contido nele encontrandoshyse em todas as situaccedilotildees tanto de inseguranccedila como de seguranccedila

No campo das Ciecircncias Sociais o conceito de risco como relaccedilatildeo matemaacuteshytica tem sido rejeitado por diversos autores Douglas16 ao analisar questotildees relevantes aos limites de aceitaccedilatildeo do risco por populaccedilotildees expostas tece uma criacutetica bastante abrangente agraves abordagens matemaacuteticas e planificadoras e introshy

14 N Almeida Filho A Cliacutenica e a op cit p 124 15 De Cicco e FantazziniIntroduccedilatildeo agrave EngenluJria op cit p 61 16 M Douglas Risk Acceptability According to the Social Sciences Londres Routledge amp

Kegan Paul 1985

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

140 PHYSIS - Revista de Sauacutede C-Oletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

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Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

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RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

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lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 2: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

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de trabalho Destacam-se sobretudo as anaacutelises de Laurell e Marquez e Laurell e Noriega2 em consonacircncia com o Modelo Operaacuterio Italiano difundido na Ameacuterica Latina principalmente pelos estudos de Berlinguer e Oddone et alli 3

Essas abordagens buscando ampliar o modelo explicativo das doenccedilas ocupacionais introduzem a expressatildeo cargas laborais que agrupa os fatores de risco Por meio dessa categoria procura-se uma espeacutecie de condensaccedilatildeo na forma de carga do conjunto de fatores em interaccedilatildeo que participam da determinaccedilatildeo dos eventos moacuterbidos nos locais de trabalho Tenta-se romper com a perspectiva de fatores isolados de seus determinanshytes sociais Nesse sentido o enfoque do social revela-se priorizando a dimensatildeo econocircmica especialmente as estrateacutegias do capital para extrair a mais-valia4 e a dimensatildeo poliacutetica particularmente a poliacutetica sindica15

O propoacutesito de estudar os determinantes sociais dos acidentes e doenccedilas nos locais de trabalho nos coloca a necessidade de examinar o conceito de risco assim como tambeacutem as formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Considerashyse para esse exame as complexas relaccedilotildees que se tecem em torno dos riscos nos locais de trabalho sejam elas de natureza econocircmica poliacutetica ideoloacuteshygica ou maacutegico-religiosa O risco eacute pensado aqui a partir de um exerciacutecio de aproximaccedilatildeo com a etnometodologia a qual propotildee estudar a ordem social a partir da accedilatildeo dos que dela participam Nesse enfoque teoacuterico autores como Berger e Luckmann e Goffman6 partindo dos pressupostos da fenomenologia entendem a realidade como uma construccedilatildeo do homem

A etnometodologia leva em consideraccedilatildeo os trecircs momentos que integram o processo dialeacutetico fundamental por que passam todas as sociedades a exteriorizaccedilatildeo a objetivaccedilatildeo e a internalizaccedilatildeo7 Por seu intermeacutedio os indiviacuteduos interagem com seus contextos produzindo praacuteticas e represenshy

2 A C La urell eM Marquez E I Desgaste Obrero en Meacutexico Proceso de Producccedilioacuten y Salud Coleccioacuten Problemas de Meacutexico Meacutexico Ediciones Era 1983 e A C Laurell eM Noriega Processo de Produccedilatildeo e Sauacutede Satildeo Paulo Hucitec 1989

3 G BerlinguerMedicina e Poliacutetica Satildeo Paulo Cebes-Hucitec 1978 G BerlinguerA Sauacutede nas Faacutebricas Satildeo Paulo Cebes-HucitecjOboreacute 1983 e I Oddone et aUi Ambiente de Trabalho -A Luta dos Trabalhadores pela Sauacutede Satildeo Paulo Hucitec 1986

4 A C Laurell eM Marquez EI Desgaste Obrero op cito 5 I Oddone et aUiAmbiente de Trabalho op cit e A C Laurell eM Noriega Processo

de Produccedilatildeo op cito 6 P Berger e T LuckmannA Construccedilatildeo Social da Realidade Petroacutepolis Vozes 1976 e E

GoffmanA Representaccedilatildeo do Eu na Vida Cotidiana Petroacutepolis Vozes 1975 7 M C L Braga Conceitos Fundamentais da Etnometodologia Salvador 1977 mimeo

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taccedilotildees sociais as quais seriam para Goffman8 a expressatildeo que o indiviacuteduo transmite - os sUacutellbolos verbais - e emite que inclui uma ampla gama de accedilotildees decorrentes de razotildees diferentes da informaccedilatildeo transmitida

O momento da exteriorizaccedilatildeo eacute definido tendo como base a compreensatildeo de que a sociedade eacute produto da atividade do homem a partir da qual ele constroacutei o mundo da cultura9 A partir dessa noccedilatildeo eacute que buscamos ver o risco na atividade humana do trabalho

O momento da objetivaccedilatildeo diz BragalO eacute o da transformaccedilatildeo da cultura em realidade o que o homem faz ao atuar em grupo Eacute o momento da relaccedilatildeo do homem com o mundo objetivo quando ele experimenta a coisa objetiva praticando-a Eacute nesse momento que as caracteriacutesticas ou a natureza da coisa objetiva se impotildee ao indiviacuteduo definindo por seu lado as formas das praacuteticas e representaccedilotildees

O momento seguinte eacute o do retorno da internalizaccedilatildeo quando o homem se apropria da mesma realidade e subsequumlentemente transforma as estrushyturas do mundo objetivo em estruturas da sua consciecircncia subjetiva

Eacute a partir dessa concepccedilatildeo que desenvolvemos o conceito de risco buscando identificar a sua natureza as suas caracteriacutesticas primeiras que se impotildeem objetivamente ao homem para entender as possibilidades de consshytruccedilatildeo de sua realidade em uma sociedade plural

Risco - imprecisatildeo conceituai

Risco e perigo satildeo termos frequumlentemente usados de modo indistinto Tal imprecisatildeo conceituaI traz dificuldades para problematizar um e outro quando tomados como objetos de estudo

No campo cientiacutefico encontramos o risco definido de maneira variada na economia e engenharia industrial ele eacute descrito como probabilidade de ocorrecircncia de dano em um tempo ou nuacutemero de ciclos operacionais ou como variaacutevel muacuteltipla prescrita cercando a vida laborativa que pode acarretar dano (azar)

A noccedilatildeo de risco como azar eacute construiacuteda ao lado da noccedilatildeo de perigo em uma elaboraccedilatildeo tautoloacutegica em que risco se define por si mesmo

8 E Goffman A Representaccedilatildeo do op cit p 12 9 M C L Braga ConCeitos Fundamentais op cit p 6 10 Idem

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[ ] um risco pode estar presente mas pode haver baixo niacutevel de perigo devido agraves precauccedilotildees Assim um banco de transformadores de alta voltagem possui um risco inerente de eletrocussatildeo uma vez que esteja energizado Haacute um alto niacutevel de perigo se o banco estiver desprotegido no meio de uma aacuterea de pessoas [ ]11

o risco tomado assim como caracteriacutestica do ambiente externo ao indiviacuteduo sendo portanto apenas objetivado torna possiacutevel seu controle e reduccedilatildeo a partir de uma intervenccedilatildeo programada sobre as condiccedilotildees objetivas Essa noccedilatildeo natildeo fica contudo isenta de derivaccedilotildees de ordem econocircmica poliacutetica e ideoloacutegica Segundo Duelos12 ela se filia a uma concepccedilatildeo que J Short chama de uma verdadeira induacutestria de anaacutelise do risco Desenvolvida especialmente nos Estados Unidos para ela satildeo constituiacutedos quadros comparativos de avaliashyccedilatildeo social dos riscos que buscam exprimir a variaccedilatildeo em termos monetaacuterios desenvolvendo uma espeacutecie de gerenciamento do mesmo Isso segundo Dushyelos tem influenciado o modo de pensar dos atores em corpos profissionais distintos

Por outro lado no niacutevel econocircmico esse modo de ver o risco daacute lugar a um novo ramo industrial de produccedilatildeo de equipamentos voltados para a proteccedilatildeo individual e coletiva

No plano ideoloacutegico daacute substrato a dois conceitos que baseados na doutrina de concausalidade informam as decisotildees juriacutedicas em caso de ocorrecircncia de acidentes com trabalhadores o ato inseguro e a condiccedilatildeo insegura Tais conceitos fragmentam de forma artificiosa um uacutenico momento do processo de trabalho

A epidemiologia voltada para a compreensatildeo da distribuiccedilatildeo e causalidade das doenccedilas utiliza o conceito de risco tambeacutem pautada no modelo matemaacutetishyco Almeida Filho e Rouqueyrol o definiram como o correspondente epideshymioloacutegico matemaacutetico da probabilidade de ocorrecircncia de um evento referido a um tempo e a uma populaccedilatildeo 13 Este conceito eacute similar ao anterior permitindo enfocar apenas parte do fenocircmeno risco As caracteriacutesticas da populaccedilatildeo e da doenccedila (ou dano) satildeo separadas em fatores que combinados mediante relaccedilotildees matemaacuteticas datildeo estimativas de probabilidade de o dano ocorrer Os fatores de risco satildeo desse modo elementos fragmentados do indiviacuteduo ou do seu meio sociocultural e estudados em uma relaccedilatildeo matemaacutetica e naturalizada

11 De Cicco e Fantazzini Introduccedilatildeo agrave Engenharia de Seguranccedila de Sistemas Satildeo Paulo Fundacentro 1979

12 D Duelos La Construction Sociale du Risque Le Cas des Ouvriers de la Chimie Face aux Dangers Industrieis Paris Conservatoire National des Arls et Meacutetiers 1986

13 N Almeida Filho e E Rouqueyrol Introduccedilatildeo agrave Epidemiologia Modema Rio de Janeiro Abrasco 1990 p 3

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Assim essas disciplinas definem o risco conferindo privileacutegio a algumas dimensotildees que satildeo apenas fragmentos de uma totalidade complexa relaccedilatildeo nuacutemero de ciclos operatoacuterios ou tempos e dano na engenharia e economia relaccedilatildeo populaccedilatildeo doenccedila e tempo na epidemiologia

No campo da epidemiologia observam-se esforccedilos de alguns autores em favor de um novo paradigma reconhecendo a existecircncia de uma crise episteshymoloacutegica que se revela de modo mais evidente quando satildeo analisadas as ambiguumlidades contradiccedilotildees inconsistecircncias em torno do conceito de risco como bem ressaltou Almeida Filho 14

Quanto ao perigo eacute definido por Cicco e Fantazzini expressando uma exposiccedilatildeo relativa a um risco que favorece a sua materializaccedilatildeo em dashynos1 5 No Novo DicionaacuterioAureacutelio da Liacutengua Portuguesa encontramos perigo significando circunstacircncia estado ou situaccedilatildeo que faz prenuacutencio de um mal a algueacutem ou algo O risco eacute definido como perigo mais possiacutevel que provaacutevel

Deduz-se que geralmente perigo eacute conceituado como sinocircnimo de risco pois este (no conceito matemaacutetico) se manifesta no proacuteprio dano Ou o risco eacute diferenciado do perigo isentando-o da relaccedilatildeo matemaacutetica definindo-o como exposiccedilatildeo circunstacircncia estado situaccedilatildeo

Risco - uma construccedilatildeo social

Pensar o risco como uma construccedilatildeo social o distingue do perigo por ser aquele conhecido experimentado e nomeado pelo homem enquanto tal O perigo no nosso entender eacute o que permanece desconhecido invisiacutevel e inesperado Porque existe enquanto construccedilatildeo social tecido em meio a relaccedilotildees sociais eacute que o risco pode ser mensurado matematicamente e sobre suas relaccedilotildees eacute possiacutevel intervir

Poreacutem o caraacuteter de virtualidade e de liminaridade eacute comum a ambos O perigo distingue-se do risco por antecedecirc-lo e estar contido nele encontrandoshyse em todas as situaccedilotildees tanto de inseguranccedila como de seguranccedila

No campo das Ciecircncias Sociais o conceito de risco como relaccedilatildeo matemaacuteshytica tem sido rejeitado por diversos autores Douglas16 ao analisar questotildees relevantes aos limites de aceitaccedilatildeo do risco por populaccedilotildees expostas tece uma criacutetica bastante abrangente agraves abordagens matemaacuteticas e planificadoras e introshy

14 N Almeida Filho A Cliacutenica e a op cit p 124 15 De Cicco e FantazziniIntroduccedilatildeo agrave EngenluJria op cit p 61 16 M Douglas Risk Acceptability According to the Social Sciences Londres Routledge amp

Kegan Paul 1985

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

140 PHYSIS - Revista de Sauacutede C-Oletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

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Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

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A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

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lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 3: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

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taccedilotildees sociais as quais seriam para Goffman8 a expressatildeo que o indiviacuteduo transmite - os sUacutellbolos verbais - e emite que inclui uma ampla gama de accedilotildees decorrentes de razotildees diferentes da informaccedilatildeo transmitida

O momento da exteriorizaccedilatildeo eacute definido tendo como base a compreensatildeo de que a sociedade eacute produto da atividade do homem a partir da qual ele constroacutei o mundo da cultura9 A partir dessa noccedilatildeo eacute que buscamos ver o risco na atividade humana do trabalho

O momento da objetivaccedilatildeo diz BragalO eacute o da transformaccedilatildeo da cultura em realidade o que o homem faz ao atuar em grupo Eacute o momento da relaccedilatildeo do homem com o mundo objetivo quando ele experimenta a coisa objetiva praticando-a Eacute nesse momento que as caracteriacutesticas ou a natureza da coisa objetiva se impotildee ao indiviacuteduo definindo por seu lado as formas das praacuteticas e representaccedilotildees

O momento seguinte eacute o do retorno da internalizaccedilatildeo quando o homem se apropria da mesma realidade e subsequumlentemente transforma as estrushyturas do mundo objetivo em estruturas da sua consciecircncia subjetiva

Eacute a partir dessa concepccedilatildeo que desenvolvemos o conceito de risco buscando identificar a sua natureza as suas caracteriacutesticas primeiras que se impotildeem objetivamente ao homem para entender as possibilidades de consshytruccedilatildeo de sua realidade em uma sociedade plural

Risco - imprecisatildeo conceituai

Risco e perigo satildeo termos frequumlentemente usados de modo indistinto Tal imprecisatildeo conceituaI traz dificuldades para problematizar um e outro quando tomados como objetos de estudo

No campo cientiacutefico encontramos o risco definido de maneira variada na economia e engenharia industrial ele eacute descrito como probabilidade de ocorrecircncia de dano em um tempo ou nuacutemero de ciclos operacionais ou como variaacutevel muacuteltipla prescrita cercando a vida laborativa que pode acarretar dano (azar)

A noccedilatildeo de risco como azar eacute construiacuteda ao lado da noccedilatildeo de perigo em uma elaboraccedilatildeo tautoloacutegica em que risco se define por si mesmo

8 E Goffman A Representaccedilatildeo do op cit p 12 9 M C L Braga ConCeitos Fundamentais op cit p 6 10 Idem

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[ ] um risco pode estar presente mas pode haver baixo niacutevel de perigo devido agraves precauccedilotildees Assim um banco de transformadores de alta voltagem possui um risco inerente de eletrocussatildeo uma vez que esteja energizado Haacute um alto niacutevel de perigo se o banco estiver desprotegido no meio de uma aacuterea de pessoas [ ]11

o risco tomado assim como caracteriacutestica do ambiente externo ao indiviacuteduo sendo portanto apenas objetivado torna possiacutevel seu controle e reduccedilatildeo a partir de uma intervenccedilatildeo programada sobre as condiccedilotildees objetivas Essa noccedilatildeo natildeo fica contudo isenta de derivaccedilotildees de ordem econocircmica poliacutetica e ideoloacutegica Segundo Duelos12 ela se filia a uma concepccedilatildeo que J Short chama de uma verdadeira induacutestria de anaacutelise do risco Desenvolvida especialmente nos Estados Unidos para ela satildeo constituiacutedos quadros comparativos de avaliashyccedilatildeo social dos riscos que buscam exprimir a variaccedilatildeo em termos monetaacuterios desenvolvendo uma espeacutecie de gerenciamento do mesmo Isso segundo Dushyelos tem influenciado o modo de pensar dos atores em corpos profissionais distintos

Por outro lado no niacutevel econocircmico esse modo de ver o risco daacute lugar a um novo ramo industrial de produccedilatildeo de equipamentos voltados para a proteccedilatildeo individual e coletiva

No plano ideoloacutegico daacute substrato a dois conceitos que baseados na doutrina de concausalidade informam as decisotildees juriacutedicas em caso de ocorrecircncia de acidentes com trabalhadores o ato inseguro e a condiccedilatildeo insegura Tais conceitos fragmentam de forma artificiosa um uacutenico momento do processo de trabalho

A epidemiologia voltada para a compreensatildeo da distribuiccedilatildeo e causalidade das doenccedilas utiliza o conceito de risco tambeacutem pautada no modelo matemaacutetishyco Almeida Filho e Rouqueyrol o definiram como o correspondente epideshymioloacutegico matemaacutetico da probabilidade de ocorrecircncia de um evento referido a um tempo e a uma populaccedilatildeo 13 Este conceito eacute similar ao anterior permitindo enfocar apenas parte do fenocircmeno risco As caracteriacutesticas da populaccedilatildeo e da doenccedila (ou dano) satildeo separadas em fatores que combinados mediante relaccedilotildees matemaacuteticas datildeo estimativas de probabilidade de o dano ocorrer Os fatores de risco satildeo desse modo elementos fragmentados do indiviacuteduo ou do seu meio sociocultural e estudados em uma relaccedilatildeo matemaacutetica e naturalizada

11 De Cicco e Fantazzini Introduccedilatildeo agrave Engenharia de Seguranccedila de Sistemas Satildeo Paulo Fundacentro 1979

12 D Duelos La Construction Sociale du Risque Le Cas des Ouvriers de la Chimie Face aux Dangers Industrieis Paris Conservatoire National des Arls et Meacutetiers 1986

13 N Almeida Filho e E Rouqueyrol Introduccedilatildeo agrave Epidemiologia Modema Rio de Janeiro Abrasco 1990 p 3

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 137

Assim essas disciplinas definem o risco conferindo privileacutegio a algumas dimensotildees que satildeo apenas fragmentos de uma totalidade complexa relaccedilatildeo nuacutemero de ciclos operatoacuterios ou tempos e dano na engenharia e economia relaccedilatildeo populaccedilatildeo doenccedila e tempo na epidemiologia

No campo da epidemiologia observam-se esforccedilos de alguns autores em favor de um novo paradigma reconhecendo a existecircncia de uma crise episteshymoloacutegica que se revela de modo mais evidente quando satildeo analisadas as ambiguumlidades contradiccedilotildees inconsistecircncias em torno do conceito de risco como bem ressaltou Almeida Filho 14

Quanto ao perigo eacute definido por Cicco e Fantazzini expressando uma exposiccedilatildeo relativa a um risco que favorece a sua materializaccedilatildeo em dashynos1 5 No Novo DicionaacuterioAureacutelio da Liacutengua Portuguesa encontramos perigo significando circunstacircncia estado ou situaccedilatildeo que faz prenuacutencio de um mal a algueacutem ou algo O risco eacute definido como perigo mais possiacutevel que provaacutevel

Deduz-se que geralmente perigo eacute conceituado como sinocircnimo de risco pois este (no conceito matemaacutetico) se manifesta no proacuteprio dano Ou o risco eacute diferenciado do perigo isentando-o da relaccedilatildeo matemaacutetica definindo-o como exposiccedilatildeo circunstacircncia estado situaccedilatildeo

Risco - uma construccedilatildeo social

Pensar o risco como uma construccedilatildeo social o distingue do perigo por ser aquele conhecido experimentado e nomeado pelo homem enquanto tal O perigo no nosso entender eacute o que permanece desconhecido invisiacutevel e inesperado Porque existe enquanto construccedilatildeo social tecido em meio a relaccedilotildees sociais eacute que o risco pode ser mensurado matematicamente e sobre suas relaccedilotildees eacute possiacutevel intervir

Poreacutem o caraacuteter de virtualidade e de liminaridade eacute comum a ambos O perigo distingue-se do risco por antecedecirc-lo e estar contido nele encontrandoshyse em todas as situaccedilotildees tanto de inseguranccedila como de seguranccedila

No campo das Ciecircncias Sociais o conceito de risco como relaccedilatildeo matemaacuteshytica tem sido rejeitado por diversos autores Douglas16 ao analisar questotildees relevantes aos limites de aceitaccedilatildeo do risco por populaccedilotildees expostas tece uma criacutetica bastante abrangente agraves abordagens matemaacuteticas e planificadoras e introshy

14 N Almeida Filho A Cliacutenica e a op cit p 124 15 De Cicco e FantazziniIntroduccedilatildeo agrave EngenluJria op cit p 61 16 M Douglas Risk Acceptability According to the Social Sciences Londres Routledge amp

Kegan Paul 1985

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

140 PHYSIS - Revista de Sauacutede C-Oletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

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Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

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dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

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RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

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[ ] um risco pode estar presente mas pode haver baixo niacutevel de perigo devido agraves precauccedilotildees Assim um banco de transformadores de alta voltagem possui um risco inerente de eletrocussatildeo uma vez que esteja energizado Haacute um alto niacutevel de perigo se o banco estiver desprotegido no meio de uma aacuterea de pessoas [ ]11

o risco tomado assim como caracteriacutestica do ambiente externo ao indiviacuteduo sendo portanto apenas objetivado torna possiacutevel seu controle e reduccedilatildeo a partir de uma intervenccedilatildeo programada sobre as condiccedilotildees objetivas Essa noccedilatildeo natildeo fica contudo isenta de derivaccedilotildees de ordem econocircmica poliacutetica e ideoloacutegica Segundo Duelos12 ela se filia a uma concepccedilatildeo que J Short chama de uma verdadeira induacutestria de anaacutelise do risco Desenvolvida especialmente nos Estados Unidos para ela satildeo constituiacutedos quadros comparativos de avaliashyccedilatildeo social dos riscos que buscam exprimir a variaccedilatildeo em termos monetaacuterios desenvolvendo uma espeacutecie de gerenciamento do mesmo Isso segundo Dushyelos tem influenciado o modo de pensar dos atores em corpos profissionais distintos

Por outro lado no niacutevel econocircmico esse modo de ver o risco daacute lugar a um novo ramo industrial de produccedilatildeo de equipamentos voltados para a proteccedilatildeo individual e coletiva

No plano ideoloacutegico daacute substrato a dois conceitos que baseados na doutrina de concausalidade informam as decisotildees juriacutedicas em caso de ocorrecircncia de acidentes com trabalhadores o ato inseguro e a condiccedilatildeo insegura Tais conceitos fragmentam de forma artificiosa um uacutenico momento do processo de trabalho

A epidemiologia voltada para a compreensatildeo da distribuiccedilatildeo e causalidade das doenccedilas utiliza o conceito de risco tambeacutem pautada no modelo matemaacutetishyco Almeida Filho e Rouqueyrol o definiram como o correspondente epideshymioloacutegico matemaacutetico da probabilidade de ocorrecircncia de um evento referido a um tempo e a uma populaccedilatildeo 13 Este conceito eacute similar ao anterior permitindo enfocar apenas parte do fenocircmeno risco As caracteriacutesticas da populaccedilatildeo e da doenccedila (ou dano) satildeo separadas em fatores que combinados mediante relaccedilotildees matemaacuteticas datildeo estimativas de probabilidade de o dano ocorrer Os fatores de risco satildeo desse modo elementos fragmentados do indiviacuteduo ou do seu meio sociocultural e estudados em uma relaccedilatildeo matemaacutetica e naturalizada

11 De Cicco e Fantazzini Introduccedilatildeo agrave Engenharia de Seguranccedila de Sistemas Satildeo Paulo Fundacentro 1979

12 D Duelos La Construction Sociale du Risque Le Cas des Ouvriers de la Chimie Face aux Dangers Industrieis Paris Conservatoire National des Arls et Meacutetiers 1986

13 N Almeida Filho e E Rouqueyrol Introduccedilatildeo agrave Epidemiologia Modema Rio de Janeiro Abrasco 1990 p 3

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 137

Assim essas disciplinas definem o risco conferindo privileacutegio a algumas dimensotildees que satildeo apenas fragmentos de uma totalidade complexa relaccedilatildeo nuacutemero de ciclos operatoacuterios ou tempos e dano na engenharia e economia relaccedilatildeo populaccedilatildeo doenccedila e tempo na epidemiologia

No campo da epidemiologia observam-se esforccedilos de alguns autores em favor de um novo paradigma reconhecendo a existecircncia de uma crise episteshymoloacutegica que se revela de modo mais evidente quando satildeo analisadas as ambiguumlidades contradiccedilotildees inconsistecircncias em torno do conceito de risco como bem ressaltou Almeida Filho 14

Quanto ao perigo eacute definido por Cicco e Fantazzini expressando uma exposiccedilatildeo relativa a um risco que favorece a sua materializaccedilatildeo em dashynos1 5 No Novo DicionaacuterioAureacutelio da Liacutengua Portuguesa encontramos perigo significando circunstacircncia estado ou situaccedilatildeo que faz prenuacutencio de um mal a algueacutem ou algo O risco eacute definido como perigo mais possiacutevel que provaacutevel

Deduz-se que geralmente perigo eacute conceituado como sinocircnimo de risco pois este (no conceito matemaacutetico) se manifesta no proacuteprio dano Ou o risco eacute diferenciado do perigo isentando-o da relaccedilatildeo matemaacutetica definindo-o como exposiccedilatildeo circunstacircncia estado situaccedilatildeo

Risco - uma construccedilatildeo social

Pensar o risco como uma construccedilatildeo social o distingue do perigo por ser aquele conhecido experimentado e nomeado pelo homem enquanto tal O perigo no nosso entender eacute o que permanece desconhecido invisiacutevel e inesperado Porque existe enquanto construccedilatildeo social tecido em meio a relaccedilotildees sociais eacute que o risco pode ser mensurado matematicamente e sobre suas relaccedilotildees eacute possiacutevel intervir

Poreacutem o caraacuteter de virtualidade e de liminaridade eacute comum a ambos O perigo distingue-se do risco por antecedecirc-lo e estar contido nele encontrandoshyse em todas as situaccedilotildees tanto de inseguranccedila como de seguranccedila

No campo das Ciecircncias Sociais o conceito de risco como relaccedilatildeo matemaacuteshytica tem sido rejeitado por diversos autores Douglas16 ao analisar questotildees relevantes aos limites de aceitaccedilatildeo do risco por populaccedilotildees expostas tece uma criacutetica bastante abrangente agraves abordagens matemaacuteticas e planificadoras e introshy

14 N Almeida Filho A Cliacutenica e a op cit p 124 15 De Cicco e FantazziniIntroduccedilatildeo agrave EngenluJria op cit p 61 16 M Douglas Risk Acceptability According to the Social Sciences Londres Routledge amp

Kegan Paul 1985

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

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Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

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Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

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dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

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A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

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lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 5: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

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Assim essas disciplinas definem o risco conferindo privileacutegio a algumas dimensotildees que satildeo apenas fragmentos de uma totalidade complexa relaccedilatildeo nuacutemero de ciclos operatoacuterios ou tempos e dano na engenharia e economia relaccedilatildeo populaccedilatildeo doenccedila e tempo na epidemiologia

No campo da epidemiologia observam-se esforccedilos de alguns autores em favor de um novo paradigma reconhecendo a existecircncia de uma crise episteshymoloacutegica que se revela de modo mais evidente quando satildeo analisadas as ambiguumlidades contradiccedilotildees inconsistecircncias em torno do conceito de risco como bem ressaltou Almeida Filho 14

Quanto ao perigo eacute definido por Cicco e Fantazzini expressando uma exposiccedilatildeo relativa a um risco que favorece a sua materializaccedilatildeo em dashynos1 5 No Novo DicionaacuterioAureacutelio da Liacutengua Portuguesa encontramos perigo significando circunstacircncia estado ou situaccedilatildeo que faz prenuacutencio de um mal a algueacutem ou algo O risco eacute definido como perigo mais possiacutevel que provaacutevel

Deduz-se que geralmente perigo eacute conceituado como sinocircnimo de risco pois este (no conceito matemaacutetico) se manifesta no proacuteprio dano Ou o risco eacute diferenciado do perigo isentando-o da relaccedilatildeo matemaacutetica definindo-o como exposiccedilatildeo circunstacircncia estado situaccedilatildeo

Risco - uma construccedilatildeo social

Pensar o risco como uma construccedilatildeo social o distingue do perigo por ser aquele conhecido experimentado e nomeado pelo homem enquanto tal O perigo no nosso entender eacute o que permanece desconhecido invisiacutevel e inesperado Porque existe enquanto construccedilatildeo social tecido em meio a relaccedilotildees sociais eacute que o risco pode ser mensurado matematicamente e sobre suas relaccedilotildees eacute possiacutevel intervir

Poreacutem o caraacuteter de virtualidade e de liminaridade eacute comum a ambos O perigo distingue-se do risco por antecedecirc-lo e estar contido nele encontrandoshyse em todas as situaccedilotildees tanto de inseguranccedila como de seguranccedila

No campo das Ciecircncias Sociais o conceito de risco como relaccedilatildeo matemaacuteshytica tem sido rejeitado por diversos autores Douglas16 ao analisar questotildees relevantes aos limites de aceitaccedilatildeo do risco por populaccedilotildees expostas tece uma criacutetica bastante abrangente agraves abordagens matemaacuteticas e planificadoras e introshy

14 N Almeida Filho A Cliacutenica e a op cit p 124 15 De Cicco e FantazziniIntroduccedilatildeo agrave EngenluJria op cit p 61 16 M Douglas Risk Acceptability According to the Social Sciences Londres Routledge amp

Kegan Paul 1985

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

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Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

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lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 6: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

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duz novos elementos socioantropoloacutegicos para problematizar o tema tais como status social niacutevel cultural literaacuterio acesso agraves fontes de creacutedito fatores embutidos em redes de parentesco e outros relacionados agrave identidade dos sujeitos Tambeacutem Duelos e outros pesquisadores da aacuterea de engenharia como Lagadec e Sevaacute Filho ou ergonomistas como Wisner tecircm buscado outras relaccedilotildees que natildeo somente as matemaacuteticas para tratar da questatildeo do risco em suas disciplinasP DucloS18 enfatiza as dimensotildees simboacutelica e praacutetca na conshyformaccedilatildeo da prevenccedilatildeo dos riscos Para ele os fatores propriamente psicoloacutegishycos cognitivos e defensivos articulam-se com as relaccedilotildees poliacuteticas e ideoloacutegishycas dentro das empresas

O propoacutesito de nos aproximarmos dessa discussatildeo e entender a realidade dos riscos a partir de quem os vivencia nos coloca a questatildeo da proacutepria natureza do risco enquanto fenocircmeno social Duas caracteriacutesticas lhe satildeo proacuteprias e possuem implicaccedilotildees na construccedilatildeo de sua realidade a virtualidade e a liminashyridade Vejamos que consequumlecircncias podem ter

Fenocircmeno virtual

Tal como definido no Novo Dicionaacuterio Aureacutelio ser virtual eacute existir como faculdade poreacutem sem exerciacutecio ou efeito atual suscetiacutevel de se realizar potencial Assim a condiccedilatildeo de virtualidade define-se enquanto algo que pode vir a ser sem ser ainda Estaacute presente em estado latente podendo ou natildeo se manifestar

O risco encerra pelo seu caraacuteter de virtualidade uma relaccedilatildeo podersaber que se constitui a partir das experiecircncias dos homens para conhececirc-lo e dominaacute-lo A possibilidade de dominaccedilatildeo exerce sempre um certo fasciacutenio sobre o homem porque vai ao encontro dos seus interesses e necessidades para a vida Diante do risco o homem constroacutei um saber em face do perigo o homem teme e anseial9

17 D Duelos La Construction Sociae op cit P Lagadec La Civiization du Risque shyCatastrophes T echnologiques et Responsabiliteacute Sociale Paris Eacutedi ti ons du Seui I 1981 A O Sevaacute Filho No Limite dos Riscos e da Dominaccedilatildeo A Politizaccedilatildeo dos Investimentos Industriais de Grande Porte Tese de Livre Docecircncia Instituto de GeociecircnciasUnicamp 1988 e A Wisner Le Travailleur Face aux Systemes Complexes et Dangereux Collogne de Chantilly se 1986

18 D DucosLa Construction Sociale op cito 19 C Dejours A Loucura do Trabalho Estudo de Psico patologia do Trabalho (Trad A I

Paraguay e L L Ferreira) Satildeo Paulo Olrtez-Oboreacute 1987

140 PHYSIS - Revista de Sauacutede C-Oletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 7: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

140 PHYSIS - Revista de Sauacutede C-Oletiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Fenocircmeno liminar

Um outro aspecto da natureza do risco que nos interessa ressaltar eacute o seu caraacuteter liminar Como entidade liminar que eacute o risco coloca-se em meio a dois momentos polares de processos como sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranshyccedila vida e morte constituindo-se em um atributo ambiacuteguo e indeterminado em relaccedilatildeo a eles23 Tal ambiguumlidade e indeterminaccedilatildeo tornam a exposiccedilatildeo a momentos ou a situaccedilotildees de risco revestida de especial tensatildeo e atenccedilatildeo

Estar sob risco eacute estar sob suspeita de ter deixado de ser um sem ser ainda o outro Eacute um estado de incerteza que se define pela experiecircncia de ritos de passagem de um poacutelo a outro do processo em que o homem passa a nomear uma situaccedilatildeo como arriscada ou natildeo e a construir formas de proteccedilatildeo e prevenccedilatildeo Por intermeacutedio dos ritos de passagem a situaccedilatildeo eacute separada de um poacutelo para ser agregada a outro24

As polaridades sauacutede e doenccedila seguranccedila e inseguranccedila vida e morte satildeo tambeacutem construccedilotildees sociais e como tais definidas pelos valores socioshyculturais dos sujeitos

A noccedilatildeo de sauacutede vincula-se a um estado de normalidade do corpo Mas ser normal ou patoloacutegico satildeo condiccedilotildees definidas socialmente por um conjunto de normas que exprimem apenas distinccedilotildees outras formas de vida possiacuteveis e gradaccedilotildees Canguilhem25 chama a atenccedilatildeo para o fato de que as normas humanas satildeo determinadas como possibilidades de agir de um organismo em situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilotildees de um organismo encashyrado como mecanismo vinculado ao meio fiacutesico Ressalta que a forma e as funccedilotildees do corpo humano satildeo principalmente a expressatildeo dos modos de viver socialmente adotados pelo meio 26

Como mudam os valores culturais e cientiacuteficos os criteacuterios que definem sauacutede e doenccedila satildeo mutaacuteveis natildeo apenas em sociedades distintas mas em uma mesma sociedade em tempos diversos ou em diferente~ grupamentos sociais

Berlinguer em A Doenccedila27 mostra como essa entidade sofre variaccedilotildees culturais tanto na sua definiccedilatildeo quanto na sua funccedilatildeo social Ela pode ser interpretada socialmente como culpa sofrimento privileacutegio puniccedilatildeo etc

23 V W Turner O Processo Ritual-Estrutura e Antiestrutura Petroacutepolis Vozes 1974 p 117

24 A Van Gennep Os Ritos de Passagem Petroacutepolis Vozes 1978 25 G Onguilhem O Normal e o Patoloacutegico Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1978 p

113 26 Idem p 244 27 G BerlinguerA Doenccedila Satildeo Paulo CebesHucitec 1988

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 8: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 141

Sontag28 analisa a tuberculose e o cacircncer como metaacuteforas por meio das quais o homem usa a doenccedila como um valor fora do universo cliacutenico Em diversas culturas mantecircm-se sobre o fenocircmeno doenccedila formas de pensashymento maacutegico que tornam possiacutevel a metaacutefora

A doenccedila pode ser tambeacutem referida a uma relaccedilatildeo econocircmica como o fazem Laurell e Marquez29 ao trataacute-la como o desgaste da forccedila de trabalho - um valor econocircmico - pelo capital Neste caso a doenccedila eacute concebida como a expressatildeo da ausecircncia de integridade da forccedila de trabalho que foi desgastada ou consumida pelo capital no processo de trabalho para aleacutem daquilo que o capitalista compra e deve repor mediante o pagamento do salaacuterio

Assim como sauacutede e doenccedila o sentido de seguranccedila e inseguranccedila eacute igualmente variaacutevel O sentir-se seguro pode ter razotildees fiacutesicas ou metafiacutesishycas A seguranccedila pode estar ligada agrave utilizaccedilatildeo de tecnologia apropriada ou de outros elementos simboacutelicos natildeo necessariamente objetivos Fazer o sinal da cruz pode ser uma boa medida de seguranccedila para enfrentar uma situaccedilatildeo de risco Verificar a sua eficaacutecia ou tentar testaacute-la empiricamente natildeo eacute o que estaacute em questatildeo jaacute que o significado central de um rito de um comportamento maacutegico eacute expressivo constituindo-se em um fim em si mesmo 3D A sorte ou a ajuda divina nesses casos satildeo frequumlentemente apelos humanos conscientes ou inconscientes Beattie31 nos diz que a magia natildeo eacute apenas uma maneira de pensar sobre as coisas mas tambeacutem de fazer as coisas Ainda segundo ele as pessoas recorrem a ela em situaccedilotildees de perigo ou infortuacutenio real ou potencial pois se tudo estivesse oacutetimo no melhor dos mundos possiacuteveis haveria pouca necessidade de magia ou de religiatildeo Para esse autor o comportamento ritual maacutegico-religioso pode fornecer um modo de enfrentar situaccedilotildees de infortuacutenio ou perigo com as quais natildeo haacute outros meios de lidar Fazer qualquer coisa em face de um desastre real ou de sua ameaccedila eacute satisfatoacuterio psicologicamente e eacute um meio de aliviar a ansiedade O autor relaciona o comportamento com o corpo de conhecimenshytos que os indiviacuteduos possuem Ressalta que na ausecircncia de um corpo de conhecimentos empiacutericos ao qual apelar como auxiacutelio ou quando o mesmo eacute inadequado os procedimentos rituais cuja validade natildeo estaacute na experiecircnshycia podem fornecer uma alternativa aceitaacutevel

28 S Sontag A Doenccedila como Metaacutefora (Trad M Ramalho) Rio de Janeiro Graal Coleccedilatildeo Tendecircncias vaI 61984

29 A C Laurell eM Marquez El Desgaste Obrero op cito 30 J BeattieIntroduccedilatildeo agraveAntropologiaSocial Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1977

p24l 31 Idem p 245

142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 9: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

142 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coetiva Vol 4 Nuacutemero 1 1994

Tambeacutem no que se refere a vida e a morte natildeo encontramos uniformidade conceituaI embora margens de diferonciaccedilatildeo cultural se estreitem quanto a esses fenocircmenos jaacute que eles unificam e equalizam os seres humanos

Ziegler em Les Vivants la mostra diferenccedilas existentes entre a cultura africana e a medicina ocidental para definir a morte Enquanto esta Iacute1ltima se utiliza de sinais cliacutenicos para determinar o instante da morte momento estaacute ausente na tanatopraacutexis nagocirc Isto porque para esses povos segundo Ziegler deg homem natildeo deixa nunca de existir permanecendo vivo de algum modo seja danccedilando a roda dos Orixaacutes quando vivo ou realizanshydo o peacuteriplo noturno ou ainda em algumas ocasiotildees se apoderando de outro homem em transe e falando por seu intermeacutedio a seus descendentes

Os diferentes momentos polares dos processos de vida dos indiviacuteduos satildeo todos integrantes de universos sociais sendo portanto veis de concepccedilotildees maacutegicas que tambeacutem pode participar da construccedilatildeo da realidade do risco

Enfocando a doenccedila o acidente e a morte em relaccedilatildeo ao risco estes significam momentos de ruptura redefiniccedilatildeo Isto uma instalado um desses fenocircmenos os homens reconhecem a situaccedilatildeo como de risco podenshydo acrescentaacute-la agrave sua experiecircncia anterior e construir novas noccedilotildees de risco c de proteccedilatildeo

A possibilidade de mudanccedila suacutebita de um poacutelo a outro do processo mais particularmente com a oeorrecircncia de um acidente ou natildeo recobre as situaccedilotildees de risco de sentimentos de inseguranccedila anguacutestia desconforto e desconfianccedila Esse espaccedilo de virtualidade negativa pode lugar a consshytruccedilotildees fantasmaacuteticasque funcionam como mecanismos para contornar esses sentimentos reduzir-lhes efeitos Tais contornos reduccedilotildees se agrave medida que esses sentimentos satildeo reconhecidos e de algum modo nomeashydos conferindo-lhes realidade e tambeacutem permitindo exerciacutecio alguma praacutetica sobre eles

Risco nos locais de trabalho

A depender dos jogos sociais e dos traccedilos socioculturais dos sujeitos existentes nos locais de trabalho os riscos de acidentes e doenccedila podem assumir acepccedilotildees distintas para os diferentes atares sociais Tais significashy

32 J Ziegler Les Vivants et la Mort Paris Eacuteditions du Seuil 1975 p 65

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

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Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 143

dos podem ser definidos de maneiras diferentes ocultados ou enfatizados Duelos em La Construction Sociale du Risque33 ao estudar os riscos em induacutestrias quiacutemicas da Franccedila e Estados Unidos a partir da aplicaccedilatildeo de uma enquete entre operadores depara-se com formas distintas de percepccedilatildeo dos riscos Estas vatildeo da negaccedilatildeo dos riscos incorridos ateacute a eufemizaccedilatildeo e a ecircnfase percorrendo discursos de autovalorizaccedilatildeo de dramatizaccedilatildeo reivinshydicante e relativizaccedilatildeo individualista

Desse modo a teoria nos permite afirmar que os riscos no trabalho podem ter significados com base natildeo apenas em relaccedilotildees econocircmicas mas no conjunto de relaccedilotildees complexas que se datildeo no processo de trabalho sejam elas econocircmicas poliacuteticas ou ideoloacutegicas Elas produzem praacuteticas e represhysentaccedilotildees sociais natildeo homogecircneas mesmo em uma mesma categoria de trabalhadores em funccedilatildeo das diferenccedilas socioculturais dos sujeitos conforshymando culturas de risco especiacuteficas

A relaccedilatildeo do homem com o perigo estaacute intrinsecamente ligada aos processos de trabalho desde o seu momento mais originaL34 As experiecircnshycias humanas com mateacuterias-primas de natureza diversificada assim como as formas de obtenccedilatildeo e armazenamento das mesmas e os tipos de fluxos produtivos forjados pela tecnologia constroem uma gama bastante variada de riscos originados dessa relaccedilatildeo Tambeacutem a organizaccedilatildeo do trabalho eacute capaz de criar novas situaccedilotildees em que este eacute executado sob condiccedilotildees de perigo dando origem a novos riscos Diversos autores tecircm evidenciado os efeitos dessas mudanccedilas sobre a sauacutede dos trabalhadores35

Para o estudo do risco nos locais de trabalho contudo importa distinguir a noccedilatildeo de processo produtivo daquela de processo de trabalho e resgatar as muacuteltiplas dimensotildees deste uacuteltimo as de natureza poliacutetica econocircmica ideoloacutegica bem como a que diz respeito agrave intersubjetividade dos atares

O enfoque do processo de trabalho que nos interessa se daacute no sentido de apreender as relaccedilotildees que se tecem em torno do risco e que contribuem para a construccedilatildeo de sua realidade e consequumlentemente das praacuteticas e represhysentaccedilotildees que se configuram socialmente

33 D DuelosLa Construction Sociale op cito 34 E R Servi ce Os Caccediladores Rio de Janeiro Zahar 1975 e G Clark A Preacute-Histoacuteria Rio

de Janeiro Zahar 1975 35 MJ B Moran Enfermidades ProfesionalesinA TJimenezcoord Enfermidady Case

Obrera Meacutexico DF Unidad Profesional Sto Tomas junho de 1982 Diesat - H P Ribeiro e F A C Lacaz orgs De que Adoecem e Morrem os Trabalhadores Satildeo Paulo Diesat 1984 Diesal - AJ A Rebouccedilas et alliInsalubridade Morte Lenta no Trabalho A Insalubridade no Brasil Satildeo Paulo Oboreacute Editorial 1989

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 11: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

144 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

A recente aproximaccedilatildeo da Sociologia do Trabalho da Antropologia sugerida por autores como Kaplinsky Zarifian36 e apropriada por Leite Fleury e Valle37 tem revelado novas possibilidades analiacuteticas para o conheshycimento dos processos de trabalho o que sem duacutevida poderaacute contribuir para o estudo dos riscos e da sauacutede nos locais de trabalho

Consideraccedilotildees finais

o enfoque do risco como uma construccedilatildeo social nos oferece ricas possibilishydades analiacuteticas para o estudo do processo sauacutededoenccedila sobretudo porque nos daacute a chance de perceber e explicar as diferentes maneiras como os indiviacuteduos se relacionam com as situaccedilotildees de risco nos locais de trabalho valorizando-se as construccedilotildees proacuteprias das pessoas e dos grupos sociais

O estudo do processo de trabalho enquanto cenaacuterio em que tal realidade eacute construiacuteda pode se revelar frutiacutefero sobretudo quando se enfoca as muacuteltiplas relaccedilotildees desse processo e natildeo apenas as de natureza teacutecnica e poliacutetica Os riscos podem ter significados baseados no conjunto de relaccedilotildees que se tecem na vida social sejam elas de natureza econoacutemica poliacutetica ideoloacutegica ou maacutegico-religiosa produzindo praacuteticas e representaccedilotildees natildeo homogecircneas ainda que em um mesmo grupo social Tais significados definem de algum modo a forma como os sujeitos se colocam nas situaccedilotildees de risco como o reconhecem e como se protegem

As noccedilotildees de identidade e de subjetividade poderatildeo por sua vez nos conduzir ao entendimento da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos na construccedilatildeo da realidade dos riscos da cultura especiacutefica e elucidar os meios pelos quais e processa a accedilatildeo social em torno dos riscos

36 R Kaplinsky Restructuring the Capitalist Labour Process Some Lessons Irom the Autoshymobile Industry Brighton IDSUniversity of Sussex sd e P Zarifian Simbolisation et Produtiviteacute Trabalho apresentado no seminaacuterio Processo de Trabalho e Produccedilatildeo Simboacutelica Satildeo Paulo USPBID 1989

37 M Leite A Vivecircncia Operaacuteria da Automaccedilatildeo Microeletrocircnica Tese de Doutorado em Sociologia USP 1990 M T Fleury A Produccedilatildeo Simboacutelica das Organizaccedilotildees in Padrotildees Tecnoloacutegicos e Poliacuteticas de Gestatildeo sll sd MT Fleury Estoacuterias Mitos Heroacuteis - Cultura Organizacional em Relaccedilatildeo de Trabalho Revista de Administraccedilatildeo de Empreshysas vol 27 nO 4 outubrodezembro de 1987 pp 7-18 e R Valle Automaccedilatildeo Comparada A Induacutestria na Franccedila na Alemanha e no Brasil Trabalho apresentado no XII Encontro Anual da Anpocs Caxambu MG 22-26 de outubro de 1990

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

Page 12: Risco e Saúde nos Locais de Trabalho* - scielo.br · perigo distingue-se do risco por antecedê-lo e estar contido nele, encontrando se em todas as situações, tanto de insegurança

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho 145

RESUMO

Risco e Sauacutede nos Locais de Trabalho

o artigo apresenta uma exploraccedilatildeo criacutetica do conceito de risco no campo da medicina social em especial o chamado risco ocupacional mediante uma aproximaccedilatildeo com a etnometodologia O estudo do risco como fenocircmeno sociocultural revela relaccedilotildees de natureza diversa que o cercam nem sempre passiacuteveis de serem compreendidas por abordagens matemaacuteticas tradicioshynalmente estabelecidas pelos enfoques da epidemiologia e engenharia de seguranccedila Satildeo relaccedilotildees do tipo econocircmico poliacutetico ideoloacutegico ou maacutegicoshyreligioso que satildeo vividas em situaccedilotildees particulares e cenaacuterios definidos onde praacuteticas e representaccedilotildees sociais se estruturam conferindo realidade aos riscos

ABSTRACT

Work-place Risks and Health

The article explores the concept of risk within the field of social medicine particularly in relation to the work place The concept is examined in terms of the imprecision with which it has been employed in the scientific field as well as in terms of its phenomenal characteristics ofvirtuality and threshold With these characteristics in mind the text also explores how health risks can have distinct meanings within the dynamics of the work process in ali its multiple dimensions

REacuteSUMEacute

Risque de Santeacute dans les Locaux de Travail

L article explore sous un angle critique au moyen dune approche ethnoshymeacutethodologique le concept de risque dans le domaine de la meacutedecine sociale speacutecialement ce qu on appelIe le risque du travail Leacutetude du risque comme pheacutenomene socio-culturel reacutevele des relations de nature di verse qui Ientourent pas toujours compreacutehensibles par des approches matheacuteshymatiques traditionnellement mises en eacutevidence par Ieacutepideacutemiologie et

146 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 4 Nuacutemero 11994

lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel

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lingeacutenierie de la seacutecuriteacute Ce sont des relations de type eacuteconomique politique ideacuteologique ou macro-religieux qui sont veacutecues dans des situations particulieres et des sceacutenarios deacutefinis les pratiques et relations sociales structurent donnant risques leu r reacuteel