ritual yaokwa - povo enawene nawe

Upload: lenco-de-seda-cecab

Post on 11-Jul-2015

358 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Dossi IPHAN

2

Yaokwa

Dossi IPHAN - Yaokwa

Povo Enawene Nawe

3

Dossi IPHAN

ATORE NAWE WIXOWETE WOANAAos ancestrais e futuras geraes...

4

Yaokwa

Dossi IPHAN Ritual Yaokwa - Povo Enawene Nawe Vale do Juruena . Mato Grosso . Brasil

5

Dossi IPHAN

6

Yaokwa

Marcus Malthe

7

Dossi IPHANPRESIDENTE DA REPBLICA Luiz Incio Lula da Silva MINISTRO DA CULTURA Juca Ferreira PRESIDENTE DO IPHAN Luiz Fernando de Almeida CHEFE DE GABINETE Fernanda Pereira PROCURADOR - CHEFE FEDERAL Antonio Fernando Neri DIRETORA DE PATIMNIO IMATERIAL Marcia SantAnna DIRETOR DE PATRIMNIO MATERIAL E FISCALIZAO Dalmo Vieira Filho DIRETORA DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAO Maria Emlia Nascimento Santos DEPARTAMENTO DE ARTICULAO E FOMENTO Mrcia Helena Gonalves Rollemberg SUPERINTENDENTE DO IPHAN EM MATO GROSSO Cludio Quoos Conte Elaborao do Dossi INICIATIVA E PRODUO CULTURAL Povo Enawene Nawe OPAN- Operao Amaznia Nativa COORDENAO DE PESQUISA: Andrea Jakubaszko EQUIPE DE PESQUISA: Ana Paula Lima Rogers - Musica/Partituras, Instrumentos Musicais e Coreografias Andrea Jakubaszko -Reviso Bibliografica e Transmisso dos Conhecimentos Jos Maria Andrade - Edificaes e Arquitetura FOTOGRAFIA: Emanuel Braga Jos Maria Andrade Juliana Almeida Rodrigo Petrela *Arquivo OPAN - (Alberto Cesar Augusto/Ameiro/Atainaene/CTI/ Edson Rodrigues/Kristian Bengheston/Luciana Pinheiro/Marcos Malthe/ Serg Giuraud/Fiona Watson) REDAO DO DOSSI: Andrea Jakubaszko REVISO DOS ORIGINAIS: Daniela Jakubaszko EDIO E ARTE GRAFICA DOS ORIGINAIS: Alan Cesar Bortoleto ACOMPANHAMENTO E SUPERVISO Emanuel Braga Slvia Ferreira Guimares

Departamento do Patrimnio Imaterial COORDENAO GERAL DE IDENTIFICAO E REGISTRO Ana Gita de Oliveira COORDENADORA DE IDENTIFICAO Mnia Silvestrim COORDENADORA DE REGISTRO Claudia Marina Vasques COORDENADORA GERAL DE SALVAGUARDA Teresa Maria Cotrim Paiva Chaves COORDENADORA DE APOIO SUSTENTABILIDADE Rvia Ryker Bandeira de Alencar

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS: Fausto Campoli (Mapa Iconografico) e Juliana Almeida, equipe indigenista Enawene Nawe/OPAN, pelo apoio logstico e acompanhamento do processo de pesquisa e Emanuel Braga, tcnico do IPHAN (Cuiab) pelo acompanhamento e orientao sistemtica.

DADOS DO PROCESSO Processo n 01450.011160/2006-42 Data de abertura: 22/08/2006 Proponente: Operao Amaznia Nativa - OPAN

8

Yaokwa

Notas sobre a grafia enawene nawe. A definio de uma grafia Enawene Nawe passou a ser formulada a partir da dcada de 80, com a assessoria do etnlogo e linguista Mrcio Ferreira da Silva, atravs das referncias dadas pela grafia da lngua Paresi (Aruak), bem como, dos levantamentos realizados por Dorotia de Paula, Cleacir Alencar S e Ktia S.Zortha. Os fonemas c, f, g, j, p,q, r, v, z, e a vogal u, no integram a grafia da lngua Enawene Nawe. As consoantes l e r, bem como, b e w, so flutuantes. Optamos, no Dossi, pela supresso dos acentos. Com a aquisio e incorporao da escrita pelos Enawene Nawe, desde a dcada de 90, essa grafia tem passado por constantes alteraes. Os sufixos re, ene e atokwe, correspondem a sufixos de designao do gnero masculino; lo, eneto e asero, correspondem a sufixos de designao do gnero feminino.

Mendes do Santos:2001

9

Dossi IPHAN

10

Yaokwa

Sumrio

Apresentao I. A Potica do Espao: A paisagem cultural. 1. Territrio, ancestralidade, ecologia e ritual. 2. A Aldeia e o lugar dos harekare. 2.1 A Casa de Yaokwa. 2.2 As Barragens: lugar de pescadores. 3. A Cincia dos Caminhos: os cantadores e as coreografias. II. Yaokwa: homens-espritos e suas flautas. III. O Ritmo do Tempo... 1.As Estaes Rituais. 2. As fases da vida e a transmisso dos conhecimentos. 3. A Formao dos Cantadores: Kote e a Casa de Yaokwa. IV. A Salvaguarda. 4.1 O Ritual Yaokwa como Patrimnio Cultural do Brasil 4.2. Ameaas ao desenvolvimento do Ritual Yaokwa (Panoramas Histricos). 4.3. Focos de proteo para salvaguarda do Ritual Yaokwa. 4.4. Plano de Ao: Propostas e Recomendaes.

11

Dossi IPHAN

I - A Potica do Espao:A Paisagem Cultural

12

Yaokwa

Croqui da aldeia (HALATAIKWA:2008)- Marikeroseene. Patio central (Rodas de Yaokwa e seus respectivos instrumentos musicais) Caminho de Yaokwa / Casa de Yaokwa. Circulo das Casas Residnciais. reas de Cultivo (Roas) no entorno da aldeia.

13

Dossi IPHAN

caracteriza-se como um estado multitnico e multilnge, o terceiro no Brasil em diversidade cultural, totalizando 33 diferentes lnguas de distintos troncos lingsticos (Tupi, Macro-J, Karib, Aruak, dentre outros) falados por cerca de 30.000 pessoas. Essa riqueza de lnguas, de organizaes sociais e saberes, constituem o Patrimnio Cultural de nosso pas, que enfrenta inmeros desafios na atualidade para garantir sua integridade e reproduo fsica e cultural. Seus modos de viver e seus modelos de produo so ainda vistos, comumente, como obstculos e ameaa aos interesses preconizados pelo imaginrio do progresso to presente em nosso contexto social, histrico e poltico-econmico.Arquivo OPAN

Apresentao: O Yaokwa um ritual realizado anualmente pelo Povo Enawene Nawe. A importncia e grandiosidade esttica e pica desse evento foram abordadas por alguns estudiosos e ele est registrado em um premiado audiovisual intitulado O Banquete dos Espritos (CTI/OPAN, 1996). O Yaokwa articula os domnios distintos, porm, indissociveis e interdependentes da Sociedade, da Cultura e da Natureza. Est orientado pela cosmologia viso de mundo do Povo Enawene, e regulado pelos ciclos prprios da natureza atravs de um calendrio socioeconmico que integra complexas relaes de ordem simblica. Ao mesmo tempo, o Yaokwa se inscreve no cotidiano, nos sentidos de pertena e enraizamento desse povo que expressa na execuo desse rito suas concepes sobre si e sobre os outros os termos de sua identidade vinculados memria, aos mitos e ao lugar privilegiado que o canto, o sopro (flautas) e a msica ocupam nessa operao. Da diversidade tnica que compe o pas, com aproximadamente 215 etnias, 38 delas esto presentes no Estado de Mato Grosso. So Terras Indgenas localizadas em 42 dos 139 municpios do Estado. Desse modo, Mato Grosso,

A prpria categoria ndio, utilizada genericamente para identificar tantas culturas diferentes e particulares, acaba servindo a finalidades muito especficas como o acirramento do preconceito, a anulao da diversidade, a invisibilidade de sistemas sociais singulares e, sobretudo, a um processo de deslegitimar as estratgias e opes sociopolticas historicamente construdas por esses povos. Os Enawene Nawe, falantes do Aruak, ocupam tradicionalmente o Vale do Juruena, em Mato Grosso, e no configuram exceo regra. Lutam dia-a-dia pela valorizao e reconhecimento do direito, que lhes constitucionalmente assegurado, de vivenciarem suas tradies, sua lngua e seus modos de ser e estar no mundo, cotidianamente ameaados por presses ambientais, econmicas, territoriais e polticas. As sociedades tradicionais, geralmente, incluindo os Enawene Nawe, no fragmentam a vida em diferentes setores como o trabalho, o lazer, a economia, a religio, ao contrrio, as dimenses da vida esto todas integradas compondo um universo vasto e profundo resultante de uma construo histrica que transmitida h muitas e muitas geraes. Sendo assim, a trama da vida cotidiana to interligada que, ao destacarmos um aspecto qualquer estamos automaticamente trazendo em cena todos os outros, pois, se dispem como um tecido, cujos fios, no se separam.

14

YaokwaO Ritual Yaokwa como objeto de pesquisa para Registro Patrimonial implicou, contudo, em selecionar um foco e operar recortes nessa trama to entrelaada na inteno de evidenciar como esse ritual um componente vital para o universo da cultura Enawene Nawe. A complexa dramaturgia Enawene est composta por uma seqncia de rituais em que o Yaokwa o mais extenso, dura aproximadamente sete meses, impe um envolvimento efetivo de toda a sociedade Enawene em suas execues e reconhecido como um eixo fundamental de seu patrimnio cultural, um signo da sua identidade como Povo. Por essas razes, o Yaokwa foi eleito como objeto desse estudo e Registro. A salvaguarda do Yaokwa depende, portanto, da proteo e valorizao dos processos e recursos envolvidos na materializao deste rito, o que significa, em ltima instncia, que a especificidade da cultura Enawene Nawe estaria a, como um todo, contemplada. Entretanto, a pesquisa concentrou-se em trs dimenses: a cultura material envolvida na realizao do ritual, com destaque para o conjunto arquitetnico (especialmente barragens de pesca e Casa das Flautas); os processos de transmisso dos conhecimentos em torno da continuidade dessa prtica; e algumas msicas e mitos que a sustentam. Cada dimenso do estudo esteve a cargo de um pesquisador especfico e contou com a participao direta dos Enawene Nawe em todas as etapas, tendo sido eles os protagonistas do processo principalmente nos perodos da discusso em torno do Plano de Salvaguarda e na finalizao do Dossi. O Dossi no segue, em sua elaborao, a estrutura dos recortes de pesquisa. Ele apresenta uma configurao em que as leituras dos pesquisadores se fundem num conjunto que se desdobra em dois eixos de exposio O Espao e O Tempo, inserindo nesse cruzamento o Yaokwa. A produo desse Registro fundamenta-se ainda na sistematizao bibliogrfica dos estudos e etnografias j produzidos a cerca da Sociedade e do Povo Enawene. Os ttulos consultados esto nas referncias bibliogrficas ao fim do Dossi.Vale ressaltar que a perspectiva deste trabalho no a de produzir uma etnografia exaustiva mas, sim, de apresentar a um pblico mais amplo e heterogneo - outras formas - compartilhadas conosco nesse presente - de pensar, fazer e viver a vida, formas que por si manifestam as tantas possibilidades de ser dos humanos atravs dos cdigos diversos das culturas.

Por fim, importante destacar que, contemporaneamente, muita nfase tem sido dada, principalmente atravs da mdia, importncia de aes voltadas preservao do meio ambiente e proteo de espcies ameaadas de extino, no entanto, preciso compreender que essa biodiversidade depende diretamente das sociedades humanas, pois, ela tambm um produto desta interao homemnatureza. Assim, se quisermos promover uma efetiva sustentabilidade necessrio e imprescindvel que reconheamos, em primeiro plano, o papel definitivo que a diversidade de sociedades (scio-diversidade) desempenha na manuteno e reproduo da biodiversidade.

Edson Rodrigues

15

Dossi IPHAN

I. A Potica do Espao: A paisagem cultural.

1. Territrio, ancestralidade, ecologia e ritual.

habitam o Vale do Juruena encontram-se nas proximidades dos municpios de Juna, Sapezal, Comodoro, Campo Novo dos Paresis e Brasnorte, entre outros municpios de origem recente. Foi apenas a partir da dcada de 70 que a ocupao na regio se intensificou, com a abertura de estradas e o asfaltamento da BR364, motivada por contextos extrativistas seringa, minrio e madeira - promovendo uma rpida transformao na paisagem, hoje tornada um plo agro-pecurio. A demarcao de Terras Indgenas, ao mesmo tempo em que oferece garantias quanto ao direito de uso fruto dos territrios de ocupao tradicional, define um debate, conhecido por aqueles que esto mais diretamente envolvidos com a questo indgena, que diz respeito problemtica de encerrar essas populaes em reservas delimitadas, tornando-as ilhas diante da presso dos modelos de ocupao do entorno e restringindo

Os Enawene Nawe so, atualmente, uma populao em torno de 540 indivduos que vivem em uma nica aldeia. Contase que, no passado, eram muito numerosos e viviam por diversos aldeamentos ocupando um vasto territrio que se estendia por todo o rio Juruena e que, em funo de guerras, ataques, catstrofes, foram se dispersando e constituindo uma nova configurao na distribuio dessa populao outrora densa e assentada em outros padres de organizao. Reconhecem, dessa forma, o rio Papagaio, o rio Preto e Juna Mirim, no Vale do Juruena, e suas adjacncias, como seu territrio de ocupao tradicional. A Terra Enawene Nawe corresponde hoje a uma rea de 742.088 ha, homologada e registrada, localizada numa regio de transio entre o cerrado e a floresta Amaznica. A sobreposio entre essas paisagens produz ambientes caracterizados por uma diversidade em que co-habitam tanto espcies na fauna e flora presentes no cerrado e na floresta, quanto outras, prprias a esse ecossistema de transio (endmicas) que forma, desse modo, um sem nmero de microhabitats. A importncia dessa regio ainda evidenciada por uma ampla bacia hidrogrfica que desemboca no Amazonas e na sua foz, na costa leste do Brasil. Circunvizinhos Terra Enawene Nawe esto os Povos Nambikwara, Myky, Rikbaktsa e Cinta Larga. Os Enawene se relacionam tambm, de modo freqente, com os Arara, Irantxe e Paresi e mais esporadicamente com outras etnias quando em viagens ou encontros do Movimento Indgena. Esses povos que

Fonte: Mendes do Santos:2001

16

Yaokwaa circulao de povos que s conheciam fronteiras intransponveis quando em perodos de conflitos e guerra. Assim, dentre as vrias etnias que habitavam extensas regies, a troca, no a posse, era (e continua sendo) o princpio bsico de regulao das relaes sociais. perigosos. Se contrariados, lanam aos Enawene toda sorte de infortnios - doenas, epidemias, colheitas e pescas fracassadas, morte. So, ainda, regentes dos principais cultivos, a mandioca e o milho plantados nas roas de Yaokwa (bem como do feijo, amendoim), so donos dos peixes, todos eles- alimentos cerimoniais - concernentes e imprescindveis realizao do ritual Yaokwa.

Para esses povos, a posse da Terra, e de tudo quanto ela pode nos oferecer, no cabe propriamente ao domnio dos humanos, eles a reconhecem como Territrio na medida em que esses espaos definem pertenas fundadas numa ancestralidade remota que desde h muito, muito tempo, se enraizaram na interao sistemtica, realizada pelas sucessivas geraes, com os lugares e paisagens sobre as quais se constituram como Povo e como Sociedade. Assim, so Eles que pertencem Terra, e ela, por sua vez, pertence ao domnio de seus antepassados, ancestrais mticos e dos seres espirituais que lhe do vida e significados.

Dizem os Enawene, que os Yakairiti so muito preguiosos, lamuriosos, seres disformes e ftidos que esto condenados a viver com uma fome intensa e inscivel. Desse modo, como no sabem preparar seu prprio alimento, precisam dos Enawene para saciar seu apetite voraz. E, o alimento que mais desejam, alm dos bijus, sopas e mingaus de milho, mandioca e peixe, o sal.

Para manter a ordem, ao mesmo tempo social, e csmica, pois so indissociveis, os Enawene precisam se relacionar com a Terra observando constantemente diversas regras para sua utilizao e manejo. Essas regras esto fundadas em valores e princpios ticos e eco-lgicos, nas experincias e saberes acumulados ao longo do tempo. Como os recursos disponibilizados pela terra no lhes pertencem, todo cuidado pouco.

A fabricao do sal pelos Enawene constitui uma, dentre as tantas tcnicas e saberes que desenvolveram com base nas prticas de manejo, do conhecimento do ecossistema que habitam e da domesticao, processamento e utilizao de tantos recursos que configuram a biodversidade da regio.

Na viso Enawene Nawe, os Yakairiti correspondem ao nome genrico dado a uma legio de espritos que so os donos da maioria dos recursos naturais. O buriti e o aa, por exemplo, espcies vegetais utilizadas em larga escala pelos Enawene, base das construes arquitetnicas, das indumentrias rituais e da confeco de artefatos diversos, so de domnio desses seres. Eles podem aparecer metamorfoseados em onas, animais peonhentos, monstros aquticos e so extremamente

Contam que num tempo muito antigo, um demiurgo, Dataware, recolhia o sal que se acumulava sob uma palmeira, guardado por uma cobra surucucu. Toda vez que ocorria a cerimnia do Yaokwa, a cobra desenrolava-se do tronco e observava Dataware retir-lo para levar aos Yakairiti. Finalizada a operao, a cobra enrolava-se novamente mantendo a guarda do sal que, magicamente se amontoava ao p da planta. Certa vez, o irmo de Dataware, Ayarioko pensou: vou cortar e queimar a palmeira, pois, desse modo, ser melhor para obter o sal. Ao fazer isso, o sal fugiu para dentro do oco da rvore e quando Dataware - foi peg-lo novamente, descobriu a faanha do irmo e o reprovou imediatamente.

17

Dossi IPHAN

A partir das repetidas desobedincias e trapalhadas de Ayarioko, os Enawene narram a passagem de um mundo espontaneamente criado pela ao dos demiurgos, para um mundo onde os Enawene Nawe ficaram responsveis por fabricar, construir, produzir, plantar, em decorrncia das transgresses, trapaas e aes malss empreendidas por estas figuras desordeiras que, num primeiro momento, desestruturam a ordem estabelecida, instituindo assim uma nova ordem. A tcnica de produo do sal consiste de uma seqncia de procedimentos que se inicia pela busca das espcies vegetais adequadas sua fabricao, so mais de dez as conhecidas e utilizadas, principalmente palmeiras, localizadas no entorno das aldeias e procuradas, sobretudo em matas secundrias das antigas aldeias/roas. Aps o corte, no perodo do fim das

chuvas, acumulam um farto estoque numa clareira e aguardam secar para poder proceder queima. As cinzas so recolhidas e transportadas para a aldeia embrulhadas em folhas de pacova e transportadas em grandes cestos cargueiros (dolate) fabricados pelos homens. Na aldeia, os homens preparam um coador com as folhas de pacova, em forma cnica, e a partir da as mulheres do continuidade ao preparo. As mulheres vo acrescentando gua as cinzas, que ficam, por dias, filtrando neste coador que funciona como um conta-gotas. O lquido que escorre lentamente para uma bacia depois levado ao fogo at formar uma substncia slida e cristalina - um sal de colorao cinza esverdeada, de consistncia prxima a uma farinha e sabor levemente metlico. A extrao e preparao do sal um processo, extremante dispendioso, trabalhoso e lento. Alm do peso que

Jos Maria 18

J

YaokwaA distribuio dessas referncias abrange toda a extenso do alto-mdio rio Juruena at a confluncia com o rio do Sangue ao norte e das cabeceiras do rio Iqu ao sul. Porm, esses seres no esto localizados apenas nesse territrio histrico de ocupao tradicional dos Enawene, eles so o domnio das paisagens, podendo ser sempre reconhecidos a partir de suas moradas presentes nesses ambientes de natureza, principalmente, aqutica e subaqutica.

preciso carregar no momento do corte para aguardar a queima, mais os vrios dias necessrios filtragem e, depois, as horas de fervura que consomem estoques de lenha, os Enawene executam toda uma complexa seqncia que resulta em apenas pequenas trouxas desse produto - to caro, e tambm por essa razo, considerado to valioso. Desse modo, tem seu uso dirigido prioritariamente a finalidades rituais. Raramente os Enawene o consomem de maneira ordinria com a inteno de salgar alimentos no dia-a-dia. Se o fazem, geralmente com os cogumelos, ainda assim necessitam da operao ritual em que convm a interveno de um soprador (huenaitare - o especialista que atua como um benzedor que sopra/profere palavras mgicas investidas do poder de neutralizar possveis perigos envolvidos com a ao indesejada dos Yakairiti).

O sal deve ser sempre oferecido aos Yakairiti. a moeda de troca, pagamento indispensvel que entra em cenas diversas nas etapas rituais consagradas aos Yakairiti, especialmente no ritual de Yaokwa, antes da construo das barragens de pesca, a fim de obter o auxlio desses seres na captura dos peixes e, depois, no retorno dos pescadores aldeia, antecedendo distribuio e consumo dos peixes armazenados durante a expedio de pesca.

Rodrigo Petrela

Os Yakairiti habitam toda a extenso das paisagens, suas residncias so fixas e nominam os acidentes geogrficos tais quais: morros, ilhas, barrancos, margens, lagoas, brejos, cavernas, pedras, configurando uma lgica de representao espacial e definindo o padro de ocupao territorial, servindo de referncia classificao dos lugares para realizao de suas atividades econmicas, para estabelecimento de aldeias, acampamentos, reas de coleta, pesca, pontos de encontro, vias de deslocamento e compondo o cenrio das narrativas que expressam a memria de suas vivncias e tambm de um tempo ancestral muito distante.

Esse povo, que se destaca por serem exmios pescadores, mergulhadores e navegadores, perambula menos por vias terrestres, a maioria dos caminhos, vias de ligao, se d por acessos fluviais, com exceo dos caminhos da roa e de algumas coletas. Nesse sentido a hidrografia corresponde a um campo de conhecimento e orientao espacial e temporal, numa fonte de recursos vitais inestimveis aos Enawene Nawe. Os Enawene no so caadores, no consomem carne de caa vermelha. A coleta e a carne de trs espcies de aves mutum, macuco e jacutinga - juntamente com o peixe constituem as suas principais fontes de protena. At 1998, os deslocamentos se realizavam atravs de embarcaes que passaram por diversas transformaes tecnolgicas. Eram fabricadas de casca de jatob, com pontas chatas e arrematadas por uma mistura de cascas e barro. Por serem muito pesadas para remar e, portanto, lentas, foram substitudas pela madeira de caj do mato, tecnologia desenvolvida a partir da observao de canoas Rikbaktsa.19

Dossi IPHANPorm, essas, por terem vida til curta (por volta de um ano), passaram a ser construdas com o mogno e a cerejeira, aps a introduo dos machados de metal, garantindo um tempo de uso maior.

A partir de 1998 foram gradativamente incorporando os motores de popa e, atualmente, possuem uma ampla frota contando com dezenas de embarcaes movidas por combustvel.

Arquivo OPAN 20

Desse modo, os Enawene esto a todo o momento espalhados por sua dimenso territorial, num vai e vem constante, envolvidos em inmeras atividades reguladas pelos ciclos ecolgicos e rituais, numa disperso definida a partir da lgica clnica.

YaokwaOs cls correspondem aos diferentes grupos internos que, associados, configuram o conjunto, a coletividade maior denominada Enawene Nawe. o eixo que conforma a organizao social desse povo, manifesta contextos da memria, aspectos histricos e territoriais, e fundamentos da dinmica social instituinte do povo Enawene Nawe. Ele se articula - orienta - tanto s concepes que os Enawene fazem do Tempo, quanto do Espao. Cada cl - Yaokwa - tem um lugar demarcado no territrio, uma origem que remonta um passado muito remoto e conjuga grupos de pessoas, espritos, paisagens, recursos, saberes e instrumentos musicais. Os Enawene contam que sua sociedade resultado de um longo trajeto histrico que gradativamente foi incorporando pessoas e saberes de remanescentes de outros grupos que so considerados o vnculo de ancestralidade que integra os Enawene Nawe. Os Enawene so monogmicos e as alianas matrimoniais constituem relaes recprocas entre os cls que, dessa maneira, no podem se casar entre si. O cl passado de pai para filho, quando o pai reconhece a paternidade pagando peixe ao sogro e, garantindo, assim, a continuidade de seu cl. Os cls so: Kailore (KL), Aweresese (AW), Anihiare (AH), Kawekwarese (KK), Kawinariri (KN), Maolokori (ML), Mairoete (MR), Lolahese (LH), Kaholase (KH). Dessa forma, os cls comportam distines - como papis, funes, atribuies, dialetos, tcnicas e saberes, estoques de nomes, repertrios de narrativas mticas, canes e instrumentos musicais, performances rituais, enfim, todos aqueles elementos que so de importncia capital para a composio da sociedade Enawene Nawe. Os Aweresese, por exemplo, so os que contriburam, entre outros elementos, com o desenvolvimento das tcnicas arquitetnicas, das casas residnciais, das barragens de pesca. Junto com os Kaholase, tm a morada de seus Yakairiti indicando a forte presena desses cls na regio do baixo Juruena. Aos Anihiare atribui-se a difuso da utilizao do estojo1

peniano1, do corte de cabelo, da tcnica de fiar e tecer o algodo, das caneleiras de borracha femininas. Conjuntamente com os Lolahese, os Anihiare tm a presena territorialmente demarcada entre as nascentes do rio Aripuan e a foz do rio do Sangue. Outros dominam as tcnicas de cestaria, outros da confeco de adornos feitos de tucum e assim por diante. O mdio curso do Juruena, por sua vez, de domnio da legio de Yakairiti associada aos Kailore e o alto Juruena aos Kawekwarese.

Fonte: Mendes Dos Santos: 2006

Alm do conjunto de atribuies e conhecimentos, alm das pessoas e genealogias, os cls so constitudos tambm por legies de espritos, a cada cl se associa um grupo de Yakairiti e um grupo de seres celestes denominados genericamente de Enore Nawe (que literalmente quer dizer gente do alto/do cu). Se, como vimos, nas relaes estabelecidas com os Yakairiti convm a troca, as relaes com os espritos celestes esto pautadas pela reciprocidade, marcada pela generosidade por meio de oferendas, presentes e retribuies.

Emanuel 21

Pequena amarrao, como uma miniatura de gravata, confeccionada de folha de bacuri, utilizada pelos homens (como um tapa pnis) aps a iniciao masculina, por volta dos 12 anos.

Dossi IPHANNo caso e contexto Enawene, a floresta - Kaira - como vimos, de domnio dos Yakairiti, outros seres, espritos que representam a anttese daquilo que os Enawene devem ser, ou vir a ser, enquanto Gente. Psiquicamente esses entes revelam o lado sombrio, a conduta humana indesejvel, mas tambm inevitvel, aquilo que deve ser ocultado e que tem seu espao de expresso e manifestao explicitada na dramatizao do Yaokwa, j que Yaokwa, destaca-se entre os outros ritos por caracterizar-se pela sua potncia de condensar os sentidos da integralidade do ser Enawene e de sua conexo com o Todo - o cosmo.

Os Enawene os chamam de avs, os Enore so donos do mel, da batata doce, das ervas, do algodo e das aves, como os mutuns, araras, papagaios e periquitos, e tambm, das bordunas e arco e flechas. So eternamente jovens, belos e imortais, e possuem o poder da cura. Para os Yakairiti os Enawene dedicam os rituais Yaokwa e lerohi, e para os Enore Nawe, os rituais Salom e Kateoko.

Dessa feita, esses rituais no se caracterizam como festa, diverso, lazer, ainda que os destinados aos espritos celestes sejam mais leves e descontrados, diferentemente dos voltados aos Yakairiti, nos quais o clima se desenvolve numa atmosfera mais tensa, at hostil em determinados momentos. Esses rituais trazem impresso um carter de obrigatoriedade, no h como escapar, negar ou furtar-se a estes deveres. Da execuo destes compromissos depende a prpria vida e a ordem social; deixar de cumpri-los, como avisam os prprios Enore Nawe, estar exposto e vulnervel ao infortnio, calamidade, com conseqncias que podem tomar dimenses trgicas.

A floresta, nesse ponto de vista, corresponde ao lugar dos outros e a aldeia - hotaikiti (cidade) - que corresponde ao lugar de humanos, Gente Enawene. Os Enawene, por sua vez, identificam-se, dessa maneira, com os seres celestes Enore Nawe - Gente do Alto que fornece os padres e a justa medida da ao humana. Assim, a aldeia Enawene, localizada na paisagem terrestre constitui um reflexo, uma tentativa de reproduo do espao aldeo que configura a morada dos Enore Nawe na paisagem celeste.

Ao mesmo tempo, esses rituais se interpenetram e, assim, mais do que delimitaes, compem uma entrelaada complexa dramaturgia que encena em muitos e diferentes atos cnicos a representao de todo um acervo de memria narrada atravs de um vasto repertrio musical, expresso pelas flautas e coreografias. Esses atos revelam os padres de conduta, de tica e esttica institudos pelos acontecimentos e saberes acumulados no tempo, entoando dilogos e transmitindo modelos e histrias fundadoras e primordiais, atualizando constantemente a memria seletiva e coletiva dos Enawene.

Entre os Enawene Nawe, portanto, msica e territrio, esttica e ecologia, esto radicalmente embricados atravs de uma relao ritualizada com a ancestralidade.

muito comum associarmos, automaticamente, as populaes indgenas floresta, sendo recorrente, portanto, a idealizao de que operam como povos plenamente identificados com aquilo que denominamos natureza. Da perspectiva dos amerndios, porm, geralmente a relao se d de modo inverso.22

O znite, que podemos ver de qualquer ponto da terra, localiza o centro do grande ptio da aldeia dos Enore Nawe que ocupa toda a extenso da abbada celeste. Os Enawene dizem que a aldeia to imensa que os Enore devem ter cuidado para no se perder. As casas dispostas num desenho circular com a presena da casa das flautas no eixo do itinerrio solar apresentam uma arquitetura magnfica. No cu tudo perfeito e tudo belo. Os Enore so alegres, exuberantes, esto sempre bem trajados, elegantes, exibem ornamentos confeccionados com preciso: braceletes, colares, tornozeleiras, brincos e cocares magistrais. Esto sempre com os cabelos bem aparados, vivem pintados de urucum exalando um perfume estonteante. Nessa dimenso, tudo farto, tudo floresce e as roas so impecveis e abundantes. Os Enawene procuram viver, na terra, de acordo com o modelo estabelecido por esse patamar onde os Enore, seus avs, representam o ideal do bem viver e a referncia para os padres de ordem, beleza, e da conduta humana por excelncia.

Yaokwa

As prticas rituais reafirmam a conjuno entre essas dimenses, Cu-Terra-gua, que se espelham e se referenciam mutuamente, tendo nos Enawene o intermdio - o corpo e a expresso - dessas relaes que manifestam oposies, tenses e conflitos, que encarnadas nos Enawene devem ser harmonizadas por meio da execuo ritual para garantir o equilbrio ecolgico e a ordem social e csmica. O palco imaginrio do rito se define pelas cenografias que representam essas dimenses em questo, encenando ora encontros, ora confrontos, ora apaziguamentos, realizados em jogos de fora que atuam numa poltica csmica em que essas esferas exercem influncias e interferncias umas nas outras. O espao da concretizao dessas peas rituais se d na inter-relao entre as roas, a floresta e a aldeia. As roas representam o universo do cultivo e da colheita, com nfase nas plantaes de milho e mandioca. A floresta, a ocupao, o manejo e utilizao de recursos, com nfase para as coletas e a pesca e, no caso do ritual de Yaokwa, para os acampamentos e barragens de pesca. A aldeia aparece como lugar privilegiado para o processamento dos alimentos, fabricao da cultura material, distribuio e consumo.

23

Dossi IPHAN

Edson Rodrigues

2. A Aldeia e o lugar dos harekare.

Essa circularidade est diretamente impressa no manejo dos ciclos ecolgicos, nos caminhos da ocupao territrial, e nas representaes temporais e espaciais. Toda a subsistncia a vida agrcola, pesqueira e coletora vinculada aos ciclos climticos, hidrolgicos, que regulam a sazonalidade das espcies, encontra nos Enawene uma percepo e sensibilidade para cada um desses perodos, que esto expressos no apenas no rito, que narra esse processo cclico e se impe dentre essas passagens e opera como agente, como interventor, como sujeito. Mas, tambm, visvel pelo modo como os Enawene detm uma observao objetiva e cumulativa desses ciclos, elaborando e praticando tcnicas que demonstram o profundo conhecimento, os saberes, que entre tantos (manejo de solos, do ambiente aqutico, de coletas, de consrcios e seqncias de cultivos, usos medicinais, etc.), sabe manejar, modificar, usar, interferir, sem produzir altos

Os Enawene mudam de aldeia, aproximadamente, a cada dez anos. Esse ciclo est, de um lado, motivado pelo contexto de ocupao: desgaste dos solos, crregos e recursos que circundam a aldeia e que precisaro de pousio para se regenerar. E, de outro, ao trmino do ciclo do rodzio entre os cls no papel de anfitries - Harekare - da cerimnia de Yaokwa. Ambas as motivaes esto regidas por um princpio de circularidade. Essa forma circular e sua multifacetada seqncia se refletem em muitas outras prticas, gestos e concepes dos Enawene Nawe, ou seja, fundam em grande escala toda uma filosofia Enawene Nawe.

24

2

Esse caminho, mede, em mdia, um percurso em torno de 2,5 a 3km de distncia entre a aldeia e o porto dos Yaokwa. Muitos caminhos circunscritos na aldeia levam ao caminho de Yaokwa, so como ramificaes, por onde a circulao intensa. Esse caminho, inscrito no itinerrio solar, leva, ainda, Roa de Yaokwa.

Yaokwaimpactos negativos. Pois, a idia a constante troca estabelecendo ciclos de construo e reconstruo. A idia perpetuar, no extinguir! As tecnologias de manejo so to especializadas, que permitem um equilbrio entre o que se extrai e entre o que deve permanecer, permitindo as reconstituies, a re-criao contnua. Esses mesmos conhecimentos se fazem presentes na dinmica das ocupaes territoriais que obedecem a uma tendncia de reocupao de stios anteriormente ocupados por eles mesmos, ou por outros povos, ou tambm por uma recombinao de grupos dos Enawene e de outras etnias; trata-se de um saber arqueolgico, cuja funo beneficiar-se de nichos de diversidade e melhor adaptatividade dos solos gerados pelas ocupaes humanas: a questo denominada terra preta de ndio e a ciclicidade de ocupao de pores de terra que ela implica.

Emanuel

Desde 1974, data oficial do contato, os Enawene j erigiram cinco aldeias (Hakotokwa, Maerekwa, Matokodakwa I, Matokodakwa II e Halataikiwa), cada uma foi nominada de acordo com o recurso mais abundante na regio, ou por alguma referncia histrica, seguida do sufixo Kwa, que designa a idia de Lugar, atualmente, chama-se Halataikiwa. As aldeias so compostas pela rea residencial, hoje configurada por 15 casas (o dobro do que havia em 1974), de formato oblongo, que tem em seus fundos os caminhos que do acesso s roas familiares, distribudas num raio de 3km, aos lugares de coleta e aos pequenos cursos dgua que circundam a aldeia em 200m. Um grande ptio circular localiza-se no centro (Wetekokwa), lugar do lado de fora que define o espao adequado s reunies, aos passeios, e bate-papos no fim do dia, e opera como o palco das cerimnias rituais. Assim como na aldeia celeste, encontra-se tambm na aldeia dos Enawene, no eixo do sol, a haiti - Casa de Yaokwa (Cls) - de formato cnico com uma pequena abertura voltada para o poente, e a entrada defronte ao grande Ptio voltada para leste, apontando em direo ao Caminho de Yaokwa2(Yaokwa Awiti). O Caminho de Yaokwa a ligao e a passagem entre as3

Edson Rodrigues

dimenses Celeste e Terrestre, entre o domnio da aldeia e o domnio da floresta, entre o Um e o Todo (Micro e Macro Cosmo), e entre o passado, o presente e o devir. Quando o sol se pe na aldeia Enawene, est nascendo na aldeia dos Enore. E, por esse caminho que os Yaokwa adentram o espao aldeo durante as peas rituais.

a chegada do Yaokwa e o incio das performances musicais e coreogrficas na aldeia - O Ritual de Yaokwa. No retorno das expedies/barragens de pesca, aps dois meses, os pescadores -Yaokwa - chegam aldeia, durante o pr do sol3, sorrateiramente, enfileirados, cobertos com barro, pintados de jenipapo e ornados com palhas de buriti in natura, quando so surpreendidos pelos harekare (anfitries) saindo de dentro da Casa de Yaokwa, portando cajados e canivetes (tonohi), pintados de urucu, e com os cabelos minuciosamente aparados, ornados com braceletes, colares, cocares e palhas de buriti processadas, numa idumentria pomposa composta de muitos detalhes que produzem um marcante impacto esttico. Saem um a um pela porta da Casa das Flautas, em saltos para Ptio, liberando gritos e urros. Nesse primeiro encontro, um dos pontos auge do roteiro ritual, o clima hostil; se d na cena, um confronto violento, um combate aberto, corpo a corpo.

A entrada na aldeia se d no pr ou nascer do sol, eventualmente no meio dia, invariavelmente numa dessas trs possibilidades.

25

Dossi IPHANDo conjunto de tarefas que os anfitries devem se dedicar nos preparativos para a recepo dos Yaokwa no retorno das pescarias, a limpeza desse caminho parte integrante. Essa limpeza inclui a terraplanagem do terreno, a reposio e conserto de pontes (pinguelas) e se d com o auxlio dos sopradores e com a disposio, pelo trajeto, de alimentos em processo de deteriorao, os quais os Yaokwa, no momento da passagem, seguem chutando em gestos brutos. So as bebidas azedas que entornam pelo cho e vo direto para as panelas dos Yakairiti. Os Enawene so avessos a bebidas fermentadas, dizem que o sabor azedo prprio ao gosto dos Yakairiti que as apreciam imensamente. Assim como o caminho deve estar limpo e preparado, o ptio tambm deve estar impecvel e, prximo s residncias, os harekare mantm estoques imensos de lenha que foram sendo armazenadas e iro abastecer as fogueiras noturnas que iluminam o ptio durante o perodo dos espetculos rituais. Nos fundos das residncias, preparam ainda, toda a indumentria (esoana) que fica acondicionada dentro das casas. O processamento do buriti (recurso de extrema importncia na vida, na alimentao, na arte e na cultura material dos Enawene), aps a coleta e o desfio, passa por inmeras lavagens e fervura para depois proceder ao desbaste, aguardar a secagem e pentear - produzindo uma textura sedosa.Luciana Pinheiro 26 Edson Rodrigues

Arquivo Opan

Nos instantes que antecedem a entrada, o clima da aldeia de ansiedade e expectativa. A sonoridade dos piles toma conta, como uma sinfonia, que anuncia a intensa produo dos alimentos em processamento para saciar a fome voraz dos Yakairiti. As mulheres espiam a todo o momento pelas frestas das palhas da casa, aguardando o momento da chegada. No momento em que os Yaokwa adentram o espao aldeo, nada se move, o silncio reina absoluto e s ser rompido pelo estampido dos Harekare, em gritos, invadindo o ptio para o confronto.

YaokwaDependendo da pea do figurino que est sendo confeccionada, o buriti ser reunido em feixes dessa seda fibrosa que recebem amarras de algodo, como pinas, conformando um cinturo drapeado. Ora tranados, ora torcidos, conformam braceletes, colarinhos, gravatas, e ainda, podem ser combinados embira, algodo e plumas conforme o adorno que se manufatura.

Seq. Jos Maria

Serg GiuraudEdson Rodrigues 27

Dossi IPHANO conjunto plumrio apresenta destaque para as penas de mutum e gavio, que aps a caa dos pssaros passa por seleo e corte das penas antecedendo a montagem seja de braceletes, colares ou cocares. J as penas de papagaio, crias domsticas e de estimao, so utilizadas na colorao amarela, modificando o colorido original por meio da tcnica da tapiragem, utilizadas nos cocares que sobressaem como presena imponente nas peas rituais e simbolizam a fora e o itinerrio solar.Ameiro

Edson Rodrigues

Essa indumentria produzida com um pequeno conjunto de recursos, que em suas variaes e versatilidade compem um figurino extremamente rico, produzindo um efeito de forte intensidade esttica, constituindo um cone - formas que caracterizam a imagem conferida aos Enawene Nawe. Enquanto os fundos das casas definem um espao essencialmente domstico, utilizado no dia-a-dia por todos os moradores da residncia, sobretudo pelas mulheres e crianas,

o ptio corresponde ao espao pblico, destinado aos temas de interesse para o bem comum, lugar predominantemente masculino e de representao social. As esposas dos Harekare so tambm anfitris Harekalo. Os afazeres femininos esto voltados prioritariamente para a produo dos alimentos, o banquete que ser servido aos espritos, em cena no Yaokwa. Esses alimentos, que sero trocados pelos peixes e que constituem os alimentos cerimoniais tm como base de seu preparo a mandioca e o milho (Kete e Koreto). So bijus (xixi), sopas (holokwari), mingaus (ketera) e bebidas (oloyti), em grandes quantidades e que exigem muito trabalho. Jos Maria

28

Ameiro

Jos Maria

Ameiro Jose

Yaokwa

Rodrigo Petrela

29

Dossi IPHAN

30

Jos Maria

Yaokwa

31

Dossi IPHAN

A roa de Yaokwa (milho e mandioca) que abastece os ciclos rituais, plantada numa sequncia (representada pelos Enawene em forma circular) de dois anos, determinada pela lgica clnica e o rodzio estabelecido de associao entre dois cls para o cumprimento do papel de anfitries. As donas das roas - Harekalo - que iro zelar pelo cuidado dessas reas cultivadas, colher e processar os alimentos, auxiliadas por suas filhas e parentela extensa. Cultivar a mandioca uma atividade extremamente relacionada s performances msico-rituais ligadas ao Yaokwa (e ao Leroh)). Seu espao de cultivo imediatamente limtrofe ao espao da aldeia, estabelecido radialmente e de forma expansiva em torno da aldeia circular. O consumo abrange tambm o mbito domstico dado pelo dia-a-dia, portanto, assim como todas as atividades de subsistncia que so tematizadas pelos cantos, o cultivo tambm enfatizado coreograficamente4. Os grandes perodos de performances na aldeia esto, portanto, diretamente associados agricultura, especialmente ao cultivo e colheita da mandioca e do milho. As cozinhas esto sempre movimentadas, principalmente em perodos rituais e, mais ainda, nas casas das anfitris da vez. As casas compem-se de compartimentos, como quartos privados, em que se estabelecem os ncleos familiares - Pai, me e filhos(as) solteiros - considerando que aps o casamento, o homem que se muda de residncia, permanecendo as filhas na casa dos pais. Desse modo, os compartimentos abrigam tradicionalmente irms casadas com membros de outros cls, defindo o grupo domstico. Cada casa abriga at, no mximo, quatro grupos domsticos constitudos dos pequenos ncleos familiares compondo o grupo residencial, que pode variar de 30 a 60 indivduos numa mesma e nica grande casa comum. Assim, h uma cozinha para cada grupo domstico - a me e suas filhas, podendo, portanto, ocorrer numa casa, at trs cozinhas.Fonte: Silva:1998a:29

mo de pilo), esteiras, xires (dolate), (todos esses artefatos confeccionados pelos homens), e, ainda, pratos de cermica (atare), panelas (mataloxi, matalowise), cabaas (ixixawi, ixixase), manufaturadas pelas mulheres. A partir da dcada de 80, os registros do conta de indicar uma gradativa insero do alumnio. As bacias desse material esto, hoje, difundidas em todas as casas, bem como, as grandes panelas de cermica que tm sido substitudas, em geral, pelas grandes panelas de alumnio, permanecendo apenas algumas menores que so utilizadas para servir o alimento cerimonial durante o banquete ritual. As mulheres argumentam que as bacias so mais leves e prticas para manusear, e as panelas aceleram o cozimento dos alimentos, otimizando o tempo e, principalmente, o gasto de lenha que se torna conseqentemente menor.

Durante o preparo dos alimentos: colher, carregar, descascar, lavar, ralar, espremer, moldar ou pilar, o frenesi grande dentro das casas. Todas reunidas, muitas conversas, e todo um aparato de equipamentos em atividade, raladores (tinoare), peneiras (manarise), piles (anase - base, atata 324

Elas revezam entre elas quem vai roa, o grupo que vai descascar, ou ralar, preparar a massa, ou inclusive, quem se dedicar a outro afazer como o algodo ou a cermica. No que se refere aos alimentos e ao feitio das cabaas, nunca trabalham sozinhas, j a confeco de artigos de algodo, cermica ou algumas coletas especficas so tarefas individuais. Como vimos, as mulheres, so tambm as responsveis pela finalizao do preparo do sal, bem como, pelo arremate de algodo presente na maioria das peas que integram a indumentria ritual.

A forma danekwanae danekwata verificada em alguns momentos rituais consistem em um espcie de varredura da praa central pelo danadores, uma abertura em linha da coreografia circular que reina durante todo o perodo do Yaokwa e que comentaremos mais adiante.

Yaokwa

Marcus Malthe

33

Dossi IPHAN

Jos Maria

As casas se transformam tambm, em verdadeiros camarins, e palco, conforme a fase msico-coreogrfica em andamento na seqncia ritual.

Seq. Serg Giurand

34

Yaokwa

Kristian Benghestone 35

Dossi IPHAN

Marcus Malthe

36

Yaokwa

A Casa Enawene

Juliana Almeida

Toda a estrutura das casas Enawene de madeira, que retirada e utilizada in natura sem praticamente nenhum acabamento. Para a fixao das peas umas as outras utilizado o cip e toda a vedao (frontal, posterior e lateral) em palha de buriti tendo acabamento na cumeeira com palha de aa. Estes materiais conferem construo um excelente isolamento trmico permitindo internamente um clima e uma iluminao bem agradvel.

37

Dossi IPHANDesse modo, a aldeia Enawene conjuga tanto o domnio dos Yakairiti, como os construtores em si do espao aldeo, que, por sua vez, obedece ao padro espacial dado pelo modelo de habitao dos Enore Nawe. Cada casa , portanto, construda, dinamizando as relaes entre cls, gnero, classes de idade e parentesco. A Casa de Yaokwa (casa dos cls - que abriga as flautas) constitui o eixo fundamental - primeira edificao orientadora das demais e nica na qual todos participam da construo.

O formato das casas em planta retangular, isto permite um alongamento na sua dimenso se necessrio for. Existem apenas duas aberturas nestas casas, uma de frente para o ptio central e outro na extremidade oposta. Nas casas que atingiram medidas superiores a 40 metros, pequenas aberturas so providenciadas nas laterais para maior entrada de luz natural. Pode-se perceber que as casas possuem dimenses praticamente idnticas na largura e altura se diferenciando apenas no comprimento. No sentido transversal em formato de uma ogiva, como o arco ogival. O emprego desta forma permite uma excelente distribuio de cargas no solo. Embora existam pequenas diferenas de medidas entre as casas, podemos afirmar que na mdia, os valores se apresentam da seguinte maneira: para a largura = de 8,50 a 10,00 metros; para o comprimento = de 22,00 a 44,00 metros; para a altura = 5,00 a 6,00 metros. As casas maiores tm mais de 300m de rea construda. Uma vez definido o permetro de cada casa, inicia-se a construo atravs dos pilares centrais e laterais em todas as casas do conjunto ao mesmo tempo, de modo alternado (pois os moradores de uma residncia no constroem a sua prpria casa), definindo uma dinmica cruzada em que cada grupo que se dedica construo da casa do outro, que assim, o retribui. A construo do espao aldeo opera como um momento de reafirmao dos laos e papis que expressam a ordem social. Aos homens cabe a tarefa da construo em si e s mulheres cabe o preparo dos alimentos que devero ser oferecidos em meio aos cantos, gestos e gritos caractersticos dos rituais Yaokwa e Lerohi, concernentes aos Yakairiti - donos da maioria dos recursos utilizados no processo de construo.

Juliana Almeida

Arquivo OPAN

38

Juliana Almeida

Yaokwa

Juliana Almeida

As madeiras cortadas e trazidas at o local ficam disposio de seus construtores como se estivessem depositadas em um canteiro de obras. De fato assim , pois logo que o trabalho de corte de madeiras e de cips para as amarraes est prestes a ser concludo, chega a vez da extrao das palhas de buriti e aa. Vale destacar que, atualmente, h predominncia da presena das palhas de buriti, considerando que o aa, recurso tradicionalmente preferencial para esse fim, tem se tornado escasso, presente em maior abundncia nas reas do lado de fora da terra demarcada. A aldeia, territrio dos humanos, espao que reproduz em sua ordem e composio a forma de ser e viver dos antepassados que moram, agora, na abbada celeste, define o lugar do viver a vida e o ambiente de expresso das relaes estabelecidas entre o micro e o macro cosmo, numa arquitetura que manifesta a conexo indissocivel entre as esferas celeste e terrestre, entre os homens e os espritos que conferem sentido e existncia paisagem que habitam. Durante todo o ano enawene nawe h sempre alguma atividade ritual/sazonal acontecendo: ou se est em performances msico-coreogrficas na aldeia, ou se est em expedio pelo seu territrio. Nos perodos de expedio, os que ficam na aldeia tambm realizam performances diariamente esse especialmente o caso do Yaokwa Hla (xerimbabos do Yaokwa) no momento das barragens de pesca, quando os anfitries que permanecem na aldeia (Harikare) cantam, tocam e danam o bloco de cantos denominado Hekali. Trata-se de um estilo msico-coreogrfico especfico, composto por uma alternncia entre canto vocal e canto instrumental entoado em trompetes as chamadas flautas rachadas o qual se revela extremamente sui generis no repertrio ritual Enawene Nawe por apresentarse em formatos coreogrficos muito variados conforme o momento da seqncia ritual.39

As peas de madeira que diferem no seu dimetro e dimenso tm seu lugar certo na construo. As peas utilizadas para o pilar central tm suas dimenses especficas assim como os pilares laterais. Da mesma forma, as vigas que funcionam como teras (peas posicionadas em alturas diferentes no sentido longitudinal da construo) tambm possuem medidas especficas. Entendido como medidas especficas apenas o que se refere ao dimetro de cada pea, pois no comprimento a interpretao diferente. Os pilares de sustentao ficam distantes uns dos outros de acordo com a dimenso (comprimento) das peas disponveis para a cumeeira (a viga mais alta da estrutura). No h, ento, um padro de distncia pr-estabelecido.

Dossi IPHANNessa estrutura, destaca-se a Casa de Yaokwa (casa dos cls), projetada um pouco mais frente no crculo das casas residnciais em direo ao Ptio, que possui um dimetro de aproximadamente 30 metros. De formato cnico, a casa erigida em torno de um nico pilar central, de quase 6m de altura, sob uma planta circular de, atualmente, 9m de dimetro.Rodrigo Pereira

2.1 A Casa de Yaokwa.Podemos perceber que a estrutura da aldeia enawene evoca a onipresena dos espritos (Enore Nawe e Yakairiti) no espao aldeo. De um lado, pela referncia do padro que segue uma fiel reproduo do modelo dado pela dimenso celeste e, de outro, pela utilizao das matrias primas, recursos de domnio dos Yakairiti. como se os Enore fossem os arquitetos, e os Yakairiti a matria e mo de obra indispensvel.

Juliana Almeida

40

Rodrigo Pereira

Enquanto limpam o terreno no preparo para a construo, tocam as flautas que so levadas para o local onde ser feita a casa e muitas bebidas so oferecidas. No solo, desenhado o crculo correspondente ao dimetro da construo. Neste permetro, os pilares vo sendo posicionados numa altura de 1,40 metros de altura. As peas seguintes so posicionadas de forma a ficarem paralelas ao solo e amarradas no topo destes pilares laterais. Aqui cabe uma observao: estas peas precisam oferecer, alm da resistncia, uma excelente envergadura, pois faro com que a forma circular desenhada no solo se concretize. Estas peas posicionadas iro dar o arranque para as demais.

YaokwaAs novas peas so posicionadas perpendicularmente ao solo e amarradas primeira linha de peas que foram fixadas aos pilares que se encontram no permetro do crculo. De dimetro aproximado de 5 ou 6 centmetros e colocadas cerca de 50 centmetros umas das outras, estas peas vo se encontrar no centro, atingindo a altura de 5,70 metros. A cada um metro e meio, um novo elo construdo amarrando em feixes as peas que vm perpendicularmente do solo, sobrepondo em dimetros decrescentes, num efeito espiralado, at o fechamento no ponto mais alto. Esse movimento vai sendo realizado pelos homens que correm por dentro da estrutura, gritando, enquanto as bebidas continuam sendo servidas ao toque das flautas e da execuo dos cantos. Depois so providenciadas as peas que daro sustentao e fixao s palhas. Em toda aldeia, a Casa de Yaokwa sempre a primeira edificao, orientando as demais. Quando pronta, guarda os instrumentos musicais em seu interior, de acordo com as posies definidas desde o momento da instituio da sociedade Enawene.

Os Enawene contam que quando Wadare (heri mtico) levou os Enawene, em tempos remotos, estabelecendo-os no curso do rio Papagaio, tocou uma flauta e todos os paus saram sozinhos de dentro dgua e foram se empilhando, formando a casa de Yaokwa e, depois, vieram os outros paus e formaram as casas da aldeia. A aldeia j estava pronta quando Ayareoko falou: - est casa minha. - No sua no! a casa dos Yaokwa! Ento, Ayareoko tocou a flauta mgica e os paus no gostaram e voltaram para dentro dgua. As casas se desmancharam. Com sua desobedincia, Ayareoko estragou tudo, acabou a aldeia! Durante o processo de construo, a cargo ento dos Enawene, auxiliados pelos Yakairiti, necessrio manter uma viglia constante, posto que, as flautas, ainda desabrigadas, representam um perigo iminente.

Fonte:Silva:1998a:35

Assim guardadas, a ordem ideal de configurao espacial e social est garantida e, ento, possvel dar continuidade construo da aldeia, a partir desse ncleo georeferenciador representado pela Casa de Yaokwa, que oferece as coordenadas csmicas que determinam a estrutura social.

A ordem social Enawene Nawe tem na Serg Giuraud casa dos cls o sentido de sua origem, do ajuntamento de grupos que historicamente definiram a atual constituio que caracteriza os Enawene como um Povo, como Coletivo Social. Desse modo, a Casa dos Cls, desponta tambm nas narrativas e relatos dos Enawene como o cerne da histria Enawene Nawe - a cada destruio, uma nova haiti construda, marca sempre um princpio, um espaotempo de gnesis (Princpio) social.41

Dossi IPHANPara esse povo indgena, a topologia territorial amplamente reconhecida e detalhadamente nomeada pela populao em geral est associada de forma direta a uma topologia musical da casa das flautas na aldeia. O elo vital e motor dessa relao a combinao seqenciada ou incidental das quatro grandes prestaes sazonais j citadas denominadas yaokwa, leroh), salom e kateok. A memria desse processo social e histrico revelada tanto materialmente, no percurso de construo da aldeia e ordenao das flautas no interior da casa, quanto pelo acervo musical que expressa em suas narrativas cantadas e em suas composies meldicas, as tramas que se desenrolam nesse longnquo trajeto histrico. Os cls Yaokwa - so, como j assinalamos, formados pela conjuno de Pessoas (linhagens), Espritos (legies de entes celestes e da paisagem) e Flautas (associadas por sua vez s linhagens e legies de espritos correspondentes), conforme ilustra a tabela a seguir.

Fonte:Ataina.Sistematizao dos dados: Lima Rogers

42

Yaokwa

As flautas utilizadas nos rituais destinados aos seres celestes so acondicionadas nas residncias, enquanto que a Casa do Yaokwa abriga apenas os instrumentos herdados dessa origem social enawene, as flautas dos cls utilizadas no Ritual de Yaokwa. Os instrumentos musicais do Yaokwa so tambm antropomrficos, ou seja, compreendidos como gente e enfeitados como eles, ambas as suas vestes (dos homens e das flautas), so feitas de palha amarrada (esoana) que so,

tambm, associadas s cobras (que os Yakairiti portam enroladas no brao), remetendo-se aos modos Yakairiti. Assim, as referncias de ancestralidade e destino esto simbolizadas pela presena do Caminho e da Casa de Yaokwa e pelos instrumentos musicais e seres sobrenaturais que a habitam, representando a materializao do significado de Yaokwa - expresso da integralidade do ser Enawene - conjunto de Pessoas, Espritos e Flautas.

43

Dossi IPHANos movimentos reprodutivos e migratrios definidos em sua sazonalidade pelos ciclos hidrolgicos. No manejo de lagoas marginais (durante a seca), os Enawene se utilizam da linhada, pesca com anzol (Iotakare), anzol de espera (Maritihi), anzol de colher (Mere Mere). Nas lagoas de mdio e grande porte que apresentam, em funo da seca, baixo nvel fluviomtrico (e de preferncia sem ligao direta com os grandes rios), lanam mo do timb - utilizao de venenos/ictiotxicos, preparados a partir de cips e cascas de rvores - que produzido e aplicado com base em minuciosas prticas tecnolgicas. So as pescarias de Aikyuna do ritual Lerohi. Nos riachos recm alagados (durante a cheia), fazem uso das armadilhas (Mataxi) de formato cnico para a captura de pequenas espcies. Nas reas alagadas (no final da enchente), alm das armadilhas, realizam a pesca com arco e flechas, faces

2.2 As Barragens: lugar de pescadores.As barragens de pesca constituem uma, dentre as modalidades e tcnicas de pesca empreendidas pelos Enawene. A cada etapa ritual - Lerohi, Salom, Kateoko e Yaokwa corresponde o emprego de determinados pacotes tecnolgicos envolvendo o manejo das reas alagveis e da fauna ictiolgica. A escolha dos locais e dos instrumentos e tcnicas de pesca, alm de definidos de acordo com o calendrio e as prticas rituais, levam em conta os nveis fluviomtricos, as dimenses e profundidade dos ambientes de pesca - rios, lagoas, riachos, crregos - a diversidade de peixes e predominncia de espcies (so cerca de 80 espcies conhecidas e manejadas), bem como,

Marcus Malthe

44

Yaokwae/ou arpes. Nos rios de mdio porte, constroem, na vazante, as barragens de Yaokwa. Vale destacar que cada um dos elementos e instrumentos de pesca encontra correspondncia na corporalidade Enawene, conformando a anatomia do corpo masculino5.

Fonte:Costa Jr.:1995:108

Fonte:Costa Jr.:1995:110

Em seu estudo sobre a pesca na sociedade Enawene, Costa Jr. (1995) observa que a incorporao de novas tcnicas, sem prejuzo das formas tradicionais enfatizadas nos ciclos rituais, permitiram, sobretudo os anzis, e tambm arpes/mscaras de mergulho, a ampliao da atividade pesqueira com a explorao de remansos, corredeiras, poos e regies profundas, antes esporadicamente utilizadas.

Os peixes, e a pesca por meio das barragens, revelam um universo fascinante onde se fundem prticas, saberes, lugares, personagens, relaes e representaes que proporcionam inmeras possibilidades de reflexes: sobre os modos de elaborao de formas de coeso social, sobre os modos de relacionamento entre a cultura e a natureza, sobre o saber e o fazer, sobre os significados do alimento, e tantas outras, inspirando aprendizados diversos. A dinmica ritual, que envolve as expedies de pesca e a construo e utilizao das barragens, revive e reconstitui, sazonalmente, o Mito de Dokoi.

5

Para maiores detalhes Costa Jr.:1995

45

Dossi IPHAN

O Mito de DokoiDokoi era o nico que possua uma rede mgica denominada hiala, com a qual capturava grandes quantidades de peixes. Dokoi avisa Ayareoko (seu tio paterno) para ele no pegar a rede, pois ele poderia morrer. Quando Dokoi no estava olhando, Ayareoko pegou esta rede e a mesma se enrolou nele, ele caiu no cho, ficando sufocado, quase morto, de tanto que a rede o apertava. No podia falar, imobilizado, seu corao batia devagar. A rede o apertou tanto, que ele defecou ali mesmo. Nisso, Dokoi vai procurar a rede e encontra aquela situao, vendo que Ayareoko estava morrendo, pegou uma vara (olokoira) e comeou a bater no corpo envolto pela rede, conseguindo libert-lo. Dokoi disse: Porque voc pegou a rede, voc no podia ter feito isso, s eu posso peg-la, eu sou o dono da rede. Ayareoko ficou pensando - Quase que eu morri. Ressentido, foi para a beira do rio. Pegou uma peneira e tingiu-a de extrato de urucu e resina de jenipapo, criando o pac de pintas pretas e vermelhas e jogando-o na gua. Feito isso, ao retornar para aldeia, o tio paterno diz: filho, tem peixe no porto. Dokoi respondeu: Eu vou buscar minha rede. Ayareoko retruca: Voc no precisar da rede, pois os peixes esto em locais rasos. Dokoi, ouvindo-o, pegou seu arco e flecha e flechou o Kayare, que escapou para o meio do rio. Ento Ayareoko falou: Entre l e pegue os peixes. Dokoi se transforma em peixe e vai atrs dele. Ao entrar na gua, um cardume de pequenos peixes se aproxima e eles falam: Voc ruim, voc pegou todos os peixes e eles acabaram, olha o weteco (ptio dos peixes), ele est vazio, no h mais peixes. Quem o seu pai? Dokoi responde: Eu sou filho da areia. Os peixes perguntaram novamente: quem o seu pai?. E Dokoi, novamente, respondeu que era filho da areia. Os peixes insistiram: Quem o seu pai? Dokoi mente mais uma vez: Sou filho das folhas. Os peixes no se convencem. Sou filho do lolaihi (fruto da margem dos rios), sou filho das rvores... Os peixes disseram: Voc filho de Dataware. Outros disseram para que fossem embora, pois ele era filho de Dataware e iria voltar, ento os peixes comearam a mordisc-lo e Dokoi avisa: Parem com isso ou vo morrer, em minhas veias corre Nololohi, o veneno do cip de Aykyuna e vou lana-lo sujando toda a gua e matando todos vocs. Os peixes respondem: Se tiver alguma mulher menstruada e se chover forte, no sero todos os peixes que morrero. Ento eu usarei o veneno Halolase do pequi, que corre em meus testculos. Mas se tiver mulher menstruada ou chover forte, poucos morrero, e ento vamos com-lo, ou, o que mais voc poder fazer contra ns? Usarei o veneno Dalala que est em meus olhos, usarei o Waho que est em minhas unhas. Os peixes continuaram usando o mesmo argumento, at que Dokoi responde: Usarei minha cintura (Mata - armadilha das barragens de pesca). Desta vez os peixes se calaram e ficaram com muito medo. Repentinamente aparecem mos nos peixes, que agarram Dokoi, o peixe agulha lhe desfere um golpe mortal e assim os peixes levam Dokoi at a margem e o devoram. Feito isso, os peixes grandes, com medo de Dataware, pai de Dokoi, fogem em direo aos grandes rios. Enquanto isso, Dataware, dando pela falta do filho sai a sua procura pelos lagos e igaraps, e pergunta a todos os peixes que vai encontrando pelo caminho, se haviam visto seu filho, se eles haviam comido seu filho. Os peixinhos negam, dizendo que foram os peixes grandes que fizeram isso. Dataware se dirige para as reas alagveis e planta todo tipo de rvores que, durante a cheia, produz frutos e flores que servem de alimento aos peixes. Quando tudo fica pronto, Dataware se transforma em um pac e vai em direo ao grande rio (Juruena). Ao encontrar com os peixes grandes, chama a todos: Vamos subir o rio que h muitos frutos e flores para a gente comer! (o av dos peixes - Jacu percebe que se trata de Dataware disfarado e alerta os peixes, porm, eles no lhe prestam ateno e aceitam o convite). Enquanto os peixes se fartam de comer, Dataware rapidamente desce o rio, arremessa os paus para dentro da gua e magicamente a barragem se eleva, pronta por sobre as guas. Dataware ainda preparou os jiraus e estocou lenha para defumar os peixes. Terminado, retorna e diz aos peixes que levem comida ao seu av, preparando o dolate. Dataware retoma sua forma humana e chama Ayareoko e alguns Enawene para irem ajudar a pegar os peixes que, na descida, seriam todos capturados pela barragem encantada. Os Mata pegaram muitos peixes, todo tipo de peixes.

Fonte:Costa Jr.:1995:110 46

Yaokwa

47

Dossi IPHANAps a temporada dos jogos de futebol de cabea (em janeiro), pontuam, dia a dia, movimentos, gestos, afazeres, falas rituais que indicam a proximidade da partida dos homens para as barragens - uma tcnica arquitetnica que realiza elementos do imaginrio vinculados ao contexto da vingana e da guerra, operando relaes de trocas e inverses que produzem efeitos de ordem bio-psico-socioculturais. Toda a populao masculina, incluindo os meninos, se retira da aldeia em direo aos acampamentos de pesca, todos os anos, entre os meses de fevereiro a abril, com exceo das mulheres, crianas pequenas e dos homens pertencentes aos cls que cumprem, naquele perodo, o papel de anfitries. Esses acampamentos so construdos em pontos especficos do territrio enawene - de acordo com a lgica de distribuio dos cls e seus respectivos Yakairiti na paisagem prximo s margens de rios de mdio porte: rio Joaquim Rios (Tinuliwna e Muxikiawina - tributrios do rio Camarar), rio Arimena e rio Preto (Olowina e Adowina - tributrios do Juruena) e rio Nambikwara (Huyakawina - tributrio do Doze de Outubro). Nesse perodo que antecede a ida dos Yaokwa para as barragens, os anfitries se ocupam das roas e preparo do sal, enquanto os futuros pescadores se dedicam ao feitio de indumentrias e coleta da matria prima de confeco das armadilhas de pesca - Mata. A Mata corresponde ao trax e abdmen no corpo masculino, a cintura de Dokoi. Aps o exame e seleo das rvores, os Enawene procedem ao corte por todo o permetro do tronco, e outro mais abaixo, distante cerca de 50 cm. Num corte longitudinal e com o auxlio de cunhas, descolam a casca em forma cilndrica que vai sendo estocada no porto para posterior fabricao das armadilhas nos acampamentos. Os homens mais velhos, durante a madrugada, passam pelas casas entoando cantos que avisam - Cunhado, pea sua esposa que prepare muita comida pra levarmos para as barragens de pesca!. Na aldeia, os anfitries executam danas e cantos no ptio, bem como no interior da Casa de Yaokwa.48

Vejamos um trecho:

Acorda Dokoi, filho de Dataware. V pegar o peixe! Como antigamente, o cajuzinho j caiu na gua e o peixe o comeu, muito peixe ir com-lo. Como antigamente o cajuzinho caiu na gua e a matrinx o comeu Como antigamente o cajuzinho caiu na gua e o pac o comeu Como antigamente o cajuzinho caiu na gua e o [ citao de vrias espcies na mesma estrutura do verso].

Vou pescar primeiro o piau, vou pela margem. Se Dokoi morreu, agora a minha vez. Pegarei bastante peixe: pegarei pacu

Levante para escutar Escute, wayato. No fique triste, fique feliz. Quando eu voltar, ser a vez de outra wayato. Meu tempo chegar ao fim, havera outro Yaokwa. Voc vai colher da nova roa, a roa velha est chegando ao fim.

(Dataware): Acorda Dorinero, Yaokwa j comeou. Venha fazer oloyti, ketera No faa pouco, faa muito para o meu ritual. (Dorinero): Mais tarde farei a comida para o seu ritual. (Datamare): Porque voc fez pouca comida? (Dorinero): Calma! Isso no tudo, tem mais assim mesmo, estou fazendo oloyti, keteraNada vai faltar. Os danarinos ficaro satisfeitos com o seu ritual.Fonte: Mendes Dos Santos: 2006

Yaokwaobservao e conhecimento dos corpos celestes e suas referncias astronmicas, conforme veremos no terceiro captulo, so tambm indispensveis nas determinaes das atividades rituais. Na sada, os harekare entregam pequenas trouxas de sal aos honerekaiti, e as embarcaes j prontas e carregadas de comida, instrumentos de pesca, matria prima para confeco de artefatos e pertences pessoais, partem, inicialmente juntas, at irem encontrando cada qual sua rotas. Atualmente, com a incorporao dos motores de popa, e conseqente alterao no tempo do trajeto, os Enawene chegam rapidamente em seu destino. No perodo do deslocamento via canoas a remo seguiam pousando, coletando e pescando pelo caminho, num ritmo mais lento. Os Enawene que permanecem nos acampamentos de pesca, retiram todas as insgnias que os identificam como Gente Enawene - os braceletes, tornozeleiras, trocam os brincos de conchas por pequenas argolas de tucum, no raspam as sobrancelhas como de costume, deixam os cabelos despenteados e sem corte, mantendo apenas o estojo peniano. Incorporam uma identidade ntegra durante o perodo das barragens, simultaneamente humanos e seres sobrenaturais, so os Yaokwa. Aps procederem rapidamente ao arranjo da infra-estrura necessria permanncia prolongada, limpeza do local, reforma ou construo, em propores menores, de rplicas das casas da aldeia, com espaos destinados a confeco de grandes jiraus que vo armazenar todo o pescado defumado, ser iniciado o processo de construo das barragens.

Esses homens mais velhos so os mestres de cerimnia - funo ritual rotativa (honerekaiti) - que guiam, em parte, a sucesso das peas rituais, coordenando a pesca. Fazem recomendaes a cerca dos preparativos para a sada e indicam os momentos adequados de proceder seqncia ritual organizao da partida; oferecimento de sal aos Yakairiti no acampamento; construo e destruio da barragem; organizao do retorno; e sinal de entrada na aldeia. Esses homens experientes so especialistas na leitura de diversos sinais (bio-indicadores e outros) que permitem o clculo preciso para identificar a hora certa de se dirigir as barragens em funo da descida dos cardumes de peixe, pelas calhas dos rios, aps a piracema. Uma gramnea, denominada por eles Oh (Gymnopogo foliosu), pouco antes de florir indica o momento da partida, bem como, uma rvore denominada Owe em seu estado de florescncia, j seu estado de frutificao indica o fim das chuvas. A temperatura ambiente dos dias que antecedem a ida para as barragens, por estar relacionada fenologia de alguns vegetais com significado cultural, tambm levada em considerao, pois um perodo de dias muito quentes, segundo os enawene nawe, aceleram o processo de amadurecimento dos frutos de vrias rvores encontradas nas reas alagveis, o que provoca uma antecipao na sada de vrios cardumes de peixes onvoros como a matrinx, o pacu e o piau entre outros. (Costa Jr, 1995:129). Alm desses, a

Arquivo OPAN 49

Dossi IPHANO Honerekaiti oferece o sal aos Yakairiti (representado por um pescador enawene). Os Enawene explicam que os pescadores saem para os acampamentos de pesca acompanhados pelas legies de espirtos dos Harekare anfitries que permanecem na aldeia. A finalidade da oferenda de sal, como j observamos, diz respeito troca a ser efetuada com os Yakairiti, sal em troca do peixe, pois, como senhores dos peixes, so os Yakairiti os responsveis pela conduo dos cardumes em direo s armadilhas posicionadas nas barragens. No ato da oferta, o Honerekaiti professa a seguinte sentena: Aqui est o sal como troca pelo peixe que ns queremos pegar nas armadilhas. Faremos as armadilhas para que vocs levem os peixes para dentro delas. Quando os capturarmos, teremos peixes para ns e para vocs que muito os desejam6.

Alm do auxlio dos Yakairiti, Dokoi, por meio de sua cintura (Mata), quem captura os peixes, puxando e prendendo-os com toda fora. A criao das barragens, de acordo com a narrativa mtica transcrita acima, a resposta de Dataware que pretende se vingar dos peixes, responsveis pela morte de seu filho. Ele os atrai por meio das rvores e frutos que planta e que lhes serve de alimento, induzindo a migrao que vai ao encontro das armadilhas. Assim, os Enawene revivem esse episdio, incorporando a vingana de Dataware atravs da execuo da pesca ritual. Os Enawene, desse modo, mantm uma relao extremamente cuidadosa com as Mata, posto que constituem uma pea dotada de vida no corpo arquitetnico da barragem. As Mata se caracterizam por uma extrema sensibilidade, o acabamento de sua borda corresponde ao corte de cabelo tpico dos Enawene. Eles as acariciam, abraam, conversam com elas - pegue peixe para mim... pegue muitos peixes, pacu, piau, matrinx...; fique feliz, pegue peixes, seja atenta, no deixe escapar nenhum.

50

6

Extraido de Mendes dos Santos: 2006:170

Yaokwa

A Mata sente a aproximao dos peixes, pois tem a capacidade de ver e ouvir e muito sensvel aos humores e odores em geral. Por serem muito temperamentais definem, em grande medida, o clima que deve ser mantido durante a permanncia nos acampamentos. Ela no tolera diversos cheiros, em especial o suor caracterstico dos corpos aps os intercursos sexuais dos quais os Enawene devem abster-se enquanto perdura a pesca de Yaokwa. Portanto, os Enawene precisam se banhar, bem como banhar as Mata, utilizando ervas aromticas. Se contrariadas, no capturam os peixes, ento necessrio manter um estado de esprito sereno e alegre, no convm falar alto, travar brigas ou discusses, as crianas no devem chorar ou resmungar e no deve haver espao para a tristeza, produzindo um ambiente que assegure a eficcia das Mata em sua funo de captura dos peixes.

Cada homem possui cerca de uma dezena de Mata que ficam distribudas, como em setores, sobrepostas em compartimentos submersos que se dispem ao longo de toda a estrutura da construo da barragem e recebem bebidas no momento de seu encaixe (em torno de 100 Mata, conforme o tamanho da barragem). A construo se d, em mdia, em cinco a seis dias e nesse processo o peixe est excludo da dieta que deve estar restrita aos produtos derivados da mandioca brava. Os Enawene do preferncia aos pontos mais rochosos no leito dos rios, evitando rompimentos devido fora das guas. Vejamos o esquema das etapas da construo.

Emanuel

51

Dossi IPHAN

Seq. Barragem: Jos Maria

52

Yaokwa

Emanuel

53

Dossi IPHAN

54

Yaokwa

55

Dossi IPHAN

56

Yaokwa

57

Dossi IPHAN

58

Yaokwa

59

Dossi IPHAN

Construda a obra e oferecidos os primeiros peixes aos Yakairiti, os Enawene ficam vontade para comer, beber, fazer coletas, fabricar utenslios diversos - peneiras, esteiras, cestos -, colares de tucum, brincar, lembrar acontecimentos do cotidiano da aldeia, fofocar, falar e imitar as mulheres, dar muita risada. Mais do que na forma de contos, na sociedade Enawene Nawe, o mito expresso por narrativas que so, sobretudo, cantadas. Porm, os acampamentos das barragens, local onde no se canta, tambm o lugar e o momento privilegiado para ouvir e contar as histrias e mitos referentes aos heris e ancestrais dos Enawene. Os harekare que ficam na aldeia sempre comentam o quanto agradvel estar nas barragens. Dizem que ser anfitrio d muito trabalho, enquanto nos acampamentos esto sempre relaxados e com abundncia de peixes. J os Yaokwa em expedio, so ressabiados, por considerarem que os anfitries, a ss com todas aquelas mulheres na aldeia, so uma ameaa, pois se aproveitam de sua ausncia para seduzir suas mulheres.

As barragens so revistadas trs vezes ao dia (de manhzinha, ao meio dia, e fim de tarde). Mergulham e cada qual vistoria suas Mata, recolhendo os peixes e limpando as frestas das armadilhas recolocando-as em seus lugares. Os peixes se amontoam nos cestos cargueiros para serem examinados e ento levados. So limpos, em gestos rpidos, e embalados com o pecolo da folha de buriti. Um conjunto de aproximadamente 15 a 20 unidades, conforme o tamanho dos peixes, contornado por uma embalagem um pouco maior, confeccionada com o mesmo material, que ficar acondicionada nos jiraus (formados por trs a quatro prateleiras) por sobre um fogo permanentemente aceso que ir desidratar e defumar o pescado garantindo o processo de conservao e acumulao.

60

Yaokwa

61

Dossi IPHAN

Os Honerekaiti, atentos ao movimento dos astros, em sua observao e conhecimento dos corpos celestes, avisa o momento de retornar aldeia. No fim das chuvas, e com farto estoque de peixes, coordena o regresso. Conduz os Enawene at as barragens - hora de destru-la. Os homens retiram as Mata, e vo desfazendo algumas amarras de modo que a fora das guas se encarrega de empurrar suas peas leito do rio abaixo, permanecendo apenas os eixos mais estruturais e pesados da construo. De modo tumultuado, assistem ao desmoronamento, falas rituais so entoadas em meio a gritos e breves toques de flautas. No caminho de volta, todas as embarcaes, vindas dos diferentes pontos de acampamentos, vo convergindo at alcanarem o ponto de encontro entre elas, prximo da aldeia, um ou dois dias antes de encenar a entrada triunfal dos pescadores no espao aldeo pelo Caminho de Yaokwa. O momento de euforia entre os pescadores que se cumprimentam, fazem saudaes e analisam de modo comparativo as cargas, comentando os resultados do perodo da expedio. Alguns Harekare dirigem-se para este ponto, a fim de oferecer boas vindas e combinar os detalhes do momento da entrada em cena no ptio da aldeia. Tanto os pescadores (no porto) quanto os anfitries (na aldeia) iro se adornar adequadamente para esse momento. a chegada do Yaokwa e o incio das performances musicais e coreogrficas na aldeia - O Ritual de Yaokwa.

62

Jos Maria

Yaokwa

A Cincia dos Caminhos: os cantadores e as coreografias.

Emanuel

63

Dossi IPHAN

3. A Cincia dos Caminhos: os cantadores e as coreografias.

As intensas idas e vindas, sadas e chegadas, de pequenos a grandes grupos da populao operam sobre uma verdadeira cincia dos caminhos (awiti), sejam eles terrestres ou do conhecimento, geogrficos ou cosmolgicos. So tambm caminhos que ligam a aldeia aos patamares sobrenaturais, o territrio casa das flautas atravs da noo de pertencimento clnico.

As trocas entre os cls casamento, aliana, nomes, cerimoniais tambm so concebidas como estabelecendo, reforando ou enfraquecendo caminhos. Os caminhos atuam, portanto, em vrias dimenses cognitivas, como vetores norteadores de toda reinveno vital e cotidiana de sua sociocosmologia. A cincia de como percorrer, extrair, produzir, mas tambm desfazer e cuidar desses caminhos e seus ecossistemas a cincia dos mestres msico-rituais (Sotakatare), figuras absolutamente essenciais socialidade enawene nawe, condutores por excelncia de todos os ritos.

Enquanto os Xams (Sotairiti) viajam pelo espao, atravs de um transe que possibilita um transporte psico-fsico, sendo a eles reconhecida a capacidade de curar - em funo de seu potencial para se comunicar, ver e interagir com o mundo invisvel do sobrenatural, os Cantadores (Sotakatare) so os senhores dos caminhos - guias do povo Enawene por entre esses caminhos e mundos s vistos e descritos pelos Xams, que do testemunho de sua existncia e verdade.

Essa cincia dos caminhos exige um conhecimento profundo e extenso dos caminhos de toda espcie percorridos por esse povo, com suas histrias peculiares, da memria coletiva, da ecologia de seu territrio, enfim, dos segredos e saberes estruturados no tempo. Os Sotakatare so, por excelncia, os mestres da atividade ritual, guardies da cultura enawene nawe, sendo imensa a importncia, admirao, respeito, prestgio e autoridade a eles coletivamente conferidos.

Esse entrelaamento entre Territrio e Msica, impresso em todos os aspectos da vida social enawene nawe, expressam manifestaes da mitologia, das narrativas musicais e da estrutura meldica dos cantos, que so compreendidas como portais. Mltiplas vias de acesso a diferentes aspectos dessa sofisticada filosofia amerndia.

Para abrir os portais e prosseguir nos caminhos, necessrio conhecer as chaves de acesso.

64

Yaokwa

Os cantadores so os nicos que as possuem. somente mediante o conhecimento do preciso encadeamento da seqncia narrativa que possvel dar continuidade ao percurso. como se, no ato de cantar, se produzisse simultaneamente os destinos da sociedade Enawene (ancorados na ancestralidade que a sustenta). Nessa tarefa to delicada, errar pode ser fatal. O Cantador no pode, no tem licena para errar. O erro leva a imprevisveis conseqncias danosas, para si e/ou para seu povo, pois pode atiar tanto a fria dos Yakairiti quanto dos Enore Nawe.

Conhecer o fio narrativo, que no pode ser perdido, pois traa a trama da qual depende a ordem social (e csmica) e seu contnuo devir, impe, para aquele que se prepara para exercer essa responsabilidade, muitos anos de dedicao e disciplina no cumprimento de amplas exigncias, que prescrevem desde prticas corporais diversas - que envolvem os hbitos alimentares, de sono, postura, respirao, bem como, o exerccio de prticas e condutas sociais e polticas especficas. Memorizar esse complexo e extenso fio narrativo, sem se desviar da exata seqncia vital, requer concentrao e ateno extrema e constante, alm de determinao, renncias, abnegao, perseverana e pacincia.

A sabedoria e a cincia dos Sotakatare/Cantadores caracterizam, em grande parte, a singularidade do modo de vida Enawene Nawe.

Proceder de modo preciso ao desempenho ritual, por meio do desenvolvimento das narrativas cantadas atravs do toque das flautas que executam a estrutura musical, inclui um complexo de carter cnico que dramatizam diferentes atos - identificados pelas cenografias dadas pelo roteiro de incurso dos instrumentos musicais, ou seja, a prpria dinmica interpretativa das peas, que so identificadas/ situadas pelas indumentrias, pela interposio de personagens e figuras coreogrficas incidentais, pela repartio dos msicos e danarinos em cada um dos crculos, que se sobrepem, em arranjos e descompassos: as coreografias.

As coreografias percorrem trajetos que esto inscritos nesses caminhos, dados pela seqncia musical, orientados pelos Cantadores. Elas concretizam a travessia dos portais que vo sendo transpostos pelo itinerrio que perfaz, periodicamente, a histria e os saberes do povo Enawene.

65

Dossi IPHAN

Esse itinerrio revivido e contado em tantos detalhes que se faz praticamente impossvel registrar os pormenores de cada gesto ritual significativo nessa longa dramatizao que dura meses de apresentao diria. Apresentamos apenas breves descries de algumas fases msicocoreogrficas.

O formato msico-coreogrfico que atravessa quase todos os dias da cerimnia do Yaokwa o de trs7 crculos de canto e dana concomitante, porm, cada qual detentor de um conjunto diverso de instrumento musical (da casa de flautas), cada qual entoando um refro onomatopico especfico e, conseqentemente, uma textura rtmico-meldica especfica. Mesmo assim, h um forte engajamento entre os trs crculos, tanto ao nvel da matria narrativa dos cantos - que a mesma para cada crculo - quanto tambm ao nvel sonoro-harmnico (no se trata de uma harmonia vertical, nem configura cacofonia).

Destacamos assim, os seguintes formatos/fases msico-coreogrficos expressivos no ritual de Yaokwa: hekali, danekwana e weresero.

hekali : abrange vrias fases msico-coreogrficas no ptio da aldeia. Antecedem sada dos pescadores para as barragens de pesca e permanecem concomitantes pescaria nas barragens e posterior chegada dos pescadores. a figura incidental dos cantos hekali. H, contudo, uma importante variao observada na intensidade das performances conforme o perodo de sua execuo. A volta dos pescadores para a aldeia define o pice dessa forma coreogrfica medida que o conjunto cnico vai ganhando corpo. Esse formato, peculiar aos ritos destinados aos Yakairiti, adentra tambm o incio do Lero h ) , outra modalidade ritual.

Danando o Yaokwa e () fazendo, arando, a roa de mandioca danekwana : figura coreogrfica do ritual Yaokwa performada em geral ao final de um dos blocos diurnos de performances dirias. Dos trs crculos de dana caractersticos desse ritual, abre-se em linha (danekwana) apenas o crculo maior, aquele que comporta o instrumento weresero - o tipo menos grave de flauta doce pertencente ao conjunto de instrumentos da casa de flautas (Haiti), do qual se pode dizer que o nico instrumento inter-clnico, ou seja, dos 9 cls, pertence a 8 deles. Os demais instrumentos da casa das flautas, todos associados ao Yaokwa, no so de posse de todos os cls, apresentando uma distribuio mais rarefeita.

6 6 7- Dependendo dos Cls que cumprem, no periodo, o papel de Harekare, os circulos de canto e dana podem chegar a quatro concomitantes.

Yaokwa

O movimento em questo uma espcie de conteno da forma circular - prpria das vrias etapas do ciclo ritual - insinuando uma abertura para o espao do Ptio da aldeia (wetekokwa). Primeiro dana-se (alikywa) dentro do espao da Casa de Yaokwa, depois, ao sair para o Ptio, os danarinos mantm-se prximos Casa, sempre em trs crculos. No final, o movimento ganha sua verso extensiva - arando, abrindo, varrendo todo o Ptio da aldeia, com a figura nominada danekwana. a simulao do cultivo da mandioca que tem nas roas, exatamente esse sentido de ampliao do crculo da aldeia ao longo dos anos, at que se esgote, em cerca de dez anos, o dimetro possvel para o plantio, quando se d a mudana de aldeia.

Ameiro

weresero : a qualidade sonora desta flauta doce de 4 furos, compe, com sua companheira um pouco mais grave walal, uma textura marcante e expressivamente destoante do restante de blocos de instrumentos musicais. As linhas altamente melodiosas que executam (quer em termos relativos intracomparativos -, quer absolutos), destacam-se, no acmulo de contra-passos dos trs crculos concomitantes, como a prpria tessitura Yaokwa.

67

Dossi IPHAN

Por isso no parece casual a larga distribuio destes dois instrumentos (principalmente o primeiro) entre os cls, se comparados a todos os outros. A riqueza dos timbres de um coro de cerca de 20 a 40 flautas doces desenhando as mesmas ehaynada (linhas meldicas) extremamente penetrante - aerofones, dentre os quais as flautas em particular, produzem sons extremamente ricos em harmnicos, como se sabe.

Sem dvida, podemos chamar as ehaynada por elas executadas a elas atribudas enquanto instrumentos musicais e clnicos - de Temas. Enquanto aos outros instrumentos seriam atribudos contra-temas, ou mesmo variaes, estruturalmente falando. No entanto, etnograficamente, no h nada nas concepes enawene nawe que nos permita distinguir hierarquicamente (ainda que de forma apenas estruturalmente hierrquica) a disposio entre temas e contra-temas.

As peas msico-coreogrficas so todas calcadas em cantos de referncia, cantos-conceitos, e da mesma forma que no se pode dizer que h predominncia do crculo executante da flauta doce em relao ao da trompa ou do chocalho, tambm as partes instrumentais no so contra- temticas em relao aos cantos-conceitos. Tratam-se mais de blocos de canto vocal ou instrumental, entremeados segundo seqncia diversa por refres onomatopicos estreitamente ligados aos passos minimalisticamente distintos da dana circular. Os limites entre esses blocos, alguns Enawene os glosam como porteiras.

Arquivo OPAN

68

Yaokwa

Fonte:Lima Rogers 69

Dossi IPHAN

70

Yaokwa

Yaokwa: Homens - Espritos e suas Flautas71

Dossi IPHAN

Interior da Casa das Flautas. Momento que antecede a saida dos pescadores para as barragens.

72

Edison Rodrigues

Yaokwa

ser. arquivo OPAN

73

Dossi IPHAN

Coreografia dos Harekares (anfitries) na aldeia, executada enquanto os Yaokwa esto nas barragens.74

Emanuel

Yaokwa

Roas deYaokwa

seq. Jos Maria

75

Dossi IPHAN

Nas Barragens76

Seq. PB. Rodrigo Petrela

Yaokwa

77

Dossi IPHAN

Mata - Armadilha de Pesca, usadas nas barragens.

Fonte Costa Jr.:1995

78

Yaokwa

79

Dossi IPHAN

80

Yaokwa

*Processo de construo das barragens. Desenho: Jos Maria Andrade

81

Dossi IPHAN

82

Yaokwa

Destruio das Barragens que antecede o retorno dos pescadores aldeia

Edson Rodrigues

83

Dossi IPHAN

84

Jos Maria Andrade

Yaokwa

85

Dossi IPHAN

86

Arq.OPAN

Yaokwa

Mulheres preparam o banquete deYaokwa.

Serg Giuraud

Serg Giurand

87

Dossi IPHAN

Seq. CTI/OPAN

Yaokwa se preparam no porto para adrentar aldeia

88

Yaokwa

Arq.OPAN

89

Dossi IPHAN

Seq. CTI/OPAN

A entrada pelo caminho de Yaokwa

90

Yaokwa

Seq. CTI/OPAN

O confroto entre o anfitries e pescadores

91

Dossi IPHANSequncias musico-coreogrficas (Noturno)

92

Jos Maria

Jos Maria

Yaokwa

Jos Maria

93

94

Dossi IPHAN

Seq. Jos Maria

Yaokwa

Oferta de Sal dos Anfitries aos Yaokwa.

95

Dossi IPHAN

Harekare oferece o DAWAITI (cocares/plumrias -tapiragem) aos Yaokwa.

96

Yaokwa

97

Dossi IPHAN

J domesticados os Yaokwa oferecem Sal aos Harekare (anfitries).

98

Yaokwa

Marcos Malthe

As rodas de Yaokwa no ptio.

99

Dossi IPHAN

O Amanhecer

100

Seq. Jos Maria

Yaokwa

Troca dos peixes e o banquete

101

102

Dossi IPHAN

Jos Maria Andrade

YaokwaSequncias musico-coreogrficas (Diurna)

Emanuel

Seq. Arq. OPAN

Emanuel

103

Dossi IPHAN

Indumentria Ritual

104

Jos Maria Andrade

Yaokwa

Jos Maria Andrade

105

106

Dossi IPHAN

Jos Maria Andrade

Yaokwa

107

Dossi IPHAN

108

Emanuel

Yaokwa

109

Dossi IPHAN

110

Serg. Giurand

Serg. Giurand

Yaokwa

111

Dossi IPHAN

112

Emanuel

Serg. Giurad

Yaokwa

113

Dossi IPHAN

114

Emanuel

Rodrigo Petrela

Yaokwa

115

Dossi IPHAN

116

Yaokwa

Jos Maria

117

Dossi IPHAN

Seq. Z Maria Andrade

Nova Sequncias musico-coreogrficas (Noturna)

118

Yaokwa

119

120

Dossi IPHAN

Jos Maria Andrade

Yaokwa

121

Dossi IPHAN

122

Marcus Malthe

Yaokwa

123

Dossi IPHAN

124

Yaokwa

Ameiro

125

Dossi IPHAN

126

Yaokwa

Marcus Malthe

127

Dossi IPHAN

III. O Ritmo do Tempo...

128

Yaokwa

129

Dossi IPHANpara elaborao e aplicao desses conhecimentos. Assim, para a execuo de todas as atividades sociais da vida Enawene, esse referencial indispensvel e determinante. Pode atuar tanto no sentido ordinrio, como um relgio acessvel a todos, que demarca as prticas e afazeres corriqueiros do dia-a-dia, quanto na decodificao qualificada, dos ciclos prprios da natureza em consonncia com as atividades produtivas e rituais, necessitando a da coordenao de pessoas capacitadas para a realizao dessas orientaes. Os Enawene observam, ainda, que a pontualidade imprescindvel, pois definitiva para que suas atividades, quais f