romantismo subversivo em sade
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romantisco na literatura erótica do século XVIIITRANSCRIPT
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O ABSOLUTO E O CONTRADITRIO:O ROMANTISMO SUBVERSIVO EM MARQUS DE SADE
Daniela Casoni MOSCATO1
GIANNATTASIO, G. Sade, um anjo negro da modernidade. So Paulo: Imaginrio,2000. 206 p.
O livro Sade, um anjo negro da modernidade prova de que o divino Marqusnome pelo qual Sade passou a ser chamado pelos surrealistas e suas reflexesproduzidas no sculo XVIII, ainda so capazes de seduzir os leitores. Essa percepoimpe-se a qualquer anlise que se faa da obra de Giannattasio, pois, nela, difcildistinguir a voz do Marqus daquela do autor.
Na obra, dividida em oito tpicos, Giannattasio convida-nos a participar de umbanquete muito particular no nos esqueamos de que o banquete um componentefundamental do imaginrio libertino em que os convidados formam a legio dosanjos negros da modernidade. nesse singular repasto que o autor apresenta suatese: Sade romntico.
Esse romantismo latente permeia, sutilmente, todo o texto e as anlises doautor. O banquete tomado aqui como a metfora do teatro das idias, ou, para sermais claro, como se cada convidado tivesse sido chamado pelo autor para dissertarsobre Sade ou sobre as questes fundamentais do pensamento sadeano. Poucoimporta a variao dos temas - historiogrficos, metodolgicos, filosficos -, apolmica, a contradio o fio que vai alinhavando e construindo um mosaico devozes. No tpico derradeiro, denominado Sade romntico, a proposta alcanaseu clmax, como se ali encontrssemos as respostas do jogo de enigmas propostono incio do livro.
As reflexes acerca do pensamento sadeano e sua relao com o romantismocircunscrevem-se, sobretudo, ao campo da histria das idias e da histria da leitura.Inserido nesses territrios, o autor sente-se vontade para realizar os mais arbitrriosdeslocamentos temporais. As idias assim se comunicam para alm dos diques datemporalidade clssica. No ser estranho reconhecermos Sade comunicando-se comos sofistas, epicuristas e esticos da antigidade grega: as idias e o pensamentovoam! Menos estranho ainda, ser v-lo identificado ao movimento romntico, masno quele romantismo datado, piegas e historicamente circunscrito ao sculo XIX.
1 Mestranda Programa de Ps-graduao em Histria Faculdade de Cincias e Letras UNESP Universidade Estadual Paulista 19800-000 Assis SP [email protected]
Itinerrios, Araraquara, 22, 269-271, 2004
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No! As afinidades do pensamento sadeano so com os princpios do Tempestade empeto de Goethe, de Schiller, de Herder, de Hamann e de Lenz.
Sem dvida alguma, trata-se de um trabalho que no pode ser lido a partir doslugares comuns da histria, como, por exemplo, a distncia entre sujeito e objeto doconhecimento; a pesquisa histrica como investigao da verdade; a histria comomestra da vida.
Uma das questes que permite considerar Sade um romntico deve-se,especialmente, a uma dada concepo do romantismo, vista por Giannattasio e outroshistoriadores das idias como Isaiah Berlin, autor de um trabalho indito no Brasilintitulado Le radici del romanticismo como um movimento rebelde e plstico,passvel de ser reconhecido em diferentes temporalidades humanas. A fora queestaria na origem do romantismo exatamente a compreenso da vida comomovimento, mudana incessante e marcada pelo paradoxo, ou seja, pela impossibilidadede a existncia ser guiada pela verdade. Por isso, Sade s pode ser reconhecido pormeio da multiplicidade de suas mscaras.
Nesse sentido, as anlises de Eliane Robert Moraes acerca de Sade fartamenteutilizadas pelo autor colaboram, no apenas para a compreenso do pensamentosadeano (como apropriao da cultura iluminista no sentido de subvert-la), comoindicam um caminho singular aos estudos que pretendem compreender e entenderSade. Um mtodo to particular quanto o do prprio Marqus: interpretar Sade pormeio de um pressuposto que seria indicado por ele prprio. Para que esse mtodoseja possvel, Giannattasio insiste nos elementos que a narrativa revela e que nopodem ser compreendidos fora das relaes obra/autor (por isso a necessidade de setrabalhar com as obras completas) e leitor/obra. A alcova sadeana se constituiriaassim no nico espao possvel de aplicao desse mtodo, pois, nela, as idias devemser avaliadas, submetidas ao corpo, e este ltimo o corpo que detm o poder daltima palavra, ou seja, Sade prope a inverso do mtodo platnico.
Todavia, percebe-se, no decorrer da obra, que o caminho metodolgico escolhidopelo autor compreender as reflexes sadeanas pelas pistas que se apresentam nacorrespondncia ou nas personagens de suas narrativas est apoiado em vriasinterpretaes e anlises acerca do pensamento sadeano e da crtica literria, mesmonaquela no especializada em Sade. Na verdade, a prpria singularidade do objeto que efetivamente atravessado por uma pluralidade de interpretaes conduziu ejustificou a escolha do mtodo, mesmo que esse no se faa visvel em algunsmomentos da anlise.
Lanando mo destes recursos, o autor amplia o quadro de troca e comrcio dasidias, estabelecendo um dilogo entre a reflexo filosfica sadeana e temporalidadeshistricas outras. No inoportuno repetir que tais temporalidades transcendem oslimites biogrficos e cronolgicos circunscritos ao sculo XVIII. Dessa forma, pode-
se reconhecer, no captulo intitulado Leitores e leituras de Sade, as marcas que aliteratura sadeana deixou nos sculos XIX particularmente na gerao dos romnticosfranceses e no sculo XX por meio da apropriao surrealista de Sade.
J as matrizes do pensamento sadeano comeam a se tornar mais claras nocaptulo denominado O absoluto e o contraditrio. nele que a figura transgressivade Sade comea a se tornar visvel, que ele aparece como um interlocutor crtico daerudio enciclopdica e passa a ser considerado como uma espcie de filsofo anti-iluminista que ope, ao plano das certezas racionais, as tenses da ambigidade e doparadoxo. A clareza do trao reto se desagrega na lgica sadeana num caleidoscpiode sensaes. S por meio do exerccio da imaginao to cara aos romnticos possvel superar os paradoxos da existncia: todo prazer est na imaginao, afirmaSade. Dessa forma, ope em seu modo muito particular de pensar a imaginao razo, a poesia cincia, a natureza a Deus.
Sem dvida alguma, o captulo nomeado O absoluto e o contraditrio ocupaum lugar chave na anlise de Giannattasio, pois ele serve de guia aos captulos seguintes,Deus e natureza e razo e imaginao. A filosofia, com Sade, reconquista suadimenso perdida, volta a ser um Pharmacon da existncia. Perseguindo essa idia,Giannattasio nos faz ver que o laboratrio sadeano no composto por anjos oudiabos, Lcifer ou arcanjos, virtuosos ou viciosos, porque nada est fora da alcovalibertina e isso explicita a simpatia nutrida por Sade pelos banquetes orgisticos,pois, mesa de tais banquetes, toda fora se faz presente.
Quem no capaz de lanar um olhar nossa contemporaneidade e de reconhecernela o argumento da fora, ao invs da fora do argumento? Mas isso histrico e acrueldade o sentimento mais genuinamente humano. Pois bem, a filosofia de Sadenasce para desnudar o corao do homem e mostr-lo na sua mais ntegra hipocrisia.O pensamento sadeano quer declarar aquilo que se oculta sob a astcia das belaspalavras, dos nobres gestos, das boas intenes.
E por mais paradoxal que possa parecer desse lodo existencial que nasce oSade romntico, pois preciso ter vontade suficiente para olhar-se no espelho e dizer:isto humano! Reconheo em mim todos os vcios e todas as virtudes do mundo eno posso e nem quero me purificar e, por ser e pensar assim, sou mais homem doque os homens, sou mais deus do que Deus!
Daniela Casoni Moscato O absoluto e o contraditrio: o romantismo subversivo em Marqus de Sade
Itinerrios, Araraquara, 22, 269-271, 2004 Itinerrios, Araraquara, 22, 269-271, 2004